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TIAGO ABDALLA TEIXEIRA NETO

A INFLUÊNCIA DA PERSPECTIVA HISTÓRICO-


TEOLÓGICA DEUTERONÔMICA EM

1 SAMUEL 1.1 – 2.10

São Paulo

2010
TIAGO ABDALLA TEIXEIRA NETO

A INFLUÊNCIA DA PERSPECTIVA HISTÓRICO-


TEOLÓGICA DEUTERONÔMICA EM

1 SAMUEL 1.1 – 2.10

Dissertação apresentada em cumprimento das


exigências do curso de Master of Arts in Biblical
Theology do Seminário Teológico Servo de Cristo,
sob a orientação do Prof. Estevan F. Kirschner.

São Paulo

2010

1
AGRADECIMENTOS

A Deus, por agir de forma soberana e graciosa em minha história, dando-me vida e esperança
por meio de Seu Filho, Cristo Jesus.

Aos meus pais, Otavio Augusto e Lilian Rose, porque “desde a infância” me ensinaram, com
carinho e dedicação, as “Sagradas Letras” e me contagiaram com sua paixão pelo estudo da
Palavra de Deus.

Ao Prof. Dr. Estevan Kirschner, pelo seu exemplo de integridade e seriedade no estudo das
Sagradas Escrituras, pelo apoio constante no percurso do mestrado e por sua paciência,
disposição e motivação na orientação da minha dissertação.

Ao Prof. Luiz Sayão, pelos insights em sala de aula que deram origem à pesquisa da relação
do Deuteronômio com os Profetas Anteriores.

Ao Prof. Dr. Carlos Osvaldo Pinto, por sua devoção inspiradora no estudo e exposição das
Escrituras, por sua amizade e pela mentoria em meus estudos teológicos, sempre com palavras
de incentivo e disposição na orientação de minhas pesquisas.

Ao Prof. Robinson J. de Souza, por suas orientações metodológicas e por sua prontidão na
ajuda e orientação de meus estudos no Seminário Teológico Servo de Cristo, colaborando
muito para a conclusão deles.

Ao meu irmão, Filipe, pela sua amizade constante, seu apoio sacrificial no ministério e pelo
incentivo no meu aperfeiçoamento dos estudos teológicos.

Ao amigo Éder Marques que, em nossas conversas e diálogos, sempre me mostra que a
teologia é um mundo amplo para se viver com alegria e devoção.

Ao Seminário Teológico Servo de Cristo, pela visão de treinar líderes cristãos com excelência
e possibilitar a mim este precioso treinamento.

Aos queridos irmãos da Igreja Batista Nova Esperança, por honrar e valorizar o trabalho de
ensino que desempenho, por possibilitar e me motivar nos estudos de Pós-Graduação e por
tornar o pastoreio uma tarefa alegre e prazerosa.

2
Aos diretores, professores e alunos da Faculdade de Teologia Paulistana e do Seminário
Teológico Batista do Sudeste do Brasil, pela oportunidade preciosa de desenvolver algo que
amo fazer: ensinar e preparar futuros expositores da Palavra de Deus.

3
RESUMO

NETO, Tiago Abdalla Teixeira. A influência da perspectiva histórico-teológica


deuteronômica em 1 Samuel 1 e 2. São Paulo, 2010. 73 p. (Dissertação produzida para o curso
de Master of Arts in Biblical Theology do Seminário Teológico Servo de Cristo).

A presente dissertação procurou mostrar a influência da perspectiva histórica e teológica que


o livro de Deuteronômio exerceu sobre o registro da história e cântico de Ana, no texto de 1
Samuel 1 e 2. O autor, primeiramente, trabalhou questões da autoria do Deuteronômio,
percebendo maior plausibilidade na autoria mosaica, e destacou a temática teológica
fundamental no livro, como a ação de Deus na história em favor de seu povo, a escolha e
relacionamento pactual entre Yahweh e Israel e o caráter soberano e singular divino. Então,
examinou a perspectiva de leitura da história contida no Deuteronômio, em que Deus age em
juízo e graça, conforme a fidelidade ou infidelidade de seu povo à aliança, e o modo como tal
leitura da história influenciou a historiografia israelita feita pelos Profetas Anteriores. Após
isso, traçou-se o desenvolvimento de importantes conceitos encontrados em 1 Samuel 1 e 2 e
se analisou a relação destes conceitos com o quinto livro do Pentateuco, em perspectiva
histórica e no entendimento acerca do caráter de Deus. Dentro da análise temática de 1
Samuel 1 e 2, o autor estudou as ênfases histórico-teológicas principais e que encontravam
profunda influência do Deuteronômio, como a ação compassiva de Deus na história em favor
dos eleitos e necessitados; seu juízo e graça operados na história conforme a atitude humana,
de rebeldia e soberba ou de humildade e obediência; e o caráter supremo, transcendente e
protetor de Yahweh. Por fim, esta dissertação indicou as implicações que a teologia do caráter
divino soberano e transcendente traz para a adoração da comunidade da Nova aliança e que a
compreensão da ação compassiva de Deus para com os necessitados oferece para a
missiologia da Igreja, além da implicação ética de prática da justiça social que a perspectiva
da resposta de Deus em juízo e graça, conforme os atos humanos, promove na comunidade
cristã.

Palavras-chave: Deuteronômio, 1 Samuel 1 e 2, perspectiva histórica, teologia, ação de Deus,


caráter de Deus, Israel, ação humana, obediência, desobediência, aliança.

4
SUMÁRIO

Páginas
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 6

1. O DEUTERONÔMIO: SUA TEOLOGIA E PERSPECTIVA HISTÓRICA....................8

1.1. Questões Introdutórias: autoria e data ................................................................... 8


1.2. A Teologia do Deuteronômio ................................................................................ 12
1.3. A Perspectiva Histórica do Deuteronômio e sua Influência sobre os Profetas
Anteriores ........................................................................................................................ 19

2. A TEOLOGIA DA HISTÓRIA E POÉTICA DE ANA E SUA RELAÇÃO COM O


DEUTERONÔMIO ............................................................................................................. 25

2.1. Introdução à Narrativa e Poesia de 1 Samuel 1.1 – 2.10....................................... 25


2.2. A Teologia da Narrativa e Poesia de Ana e Sua Perspectiva Deuteronômica ........ 29
2.2.1. A ação soberana e compassiva de Yahweh em favor dos escolhidos e
necessitados......................................................................................................................29
2.2.2. A expressão da justiça de Yahweh por meio do julgamento dos ímpios orgulhosos
e da bênção dos fiéis humildes...................................................................................... 33
2.2.3. O Caráter supremo, singular e protetor de Yahweh ...................................... 38
2.3. Conclusão ............................................................................................................ 46

3. IMPLICAÇÕES DA TEOLOGIA DEUTERONÔMICA PARA A COMUNIDADE DA


NOVA ALIANÇA ............................................................................................................... 47

3.1. Implicações da Teologia Própria Deuteronômica para a Adoração do Povo da


Nova Aliança ................................................................................................................... 48
3.2. Implicações da Teologia da Ação Compassiva e Soberana de Deus para a Missão
do Povo da Nova Aliança aos “Pequeninos” da Sociedade .............................................. 52
3.3. Implicações da Teologia da Ação de Deus na História para a Conduta Ética do
Povo da Nova Aliança ...................................................................................................... 59
3.4. Conclusão ............................................................................................................ 64

CONCLUSÃO ..................................................................................................................... 66

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ...................................................................................... 69

5
INTRODUÇÃO
Há muito tempo se tem percebido a forte conexão teológica existente entre o
Deuteronômio e os Profetas Anteriores.1 A história da nação de Israel encontrada entre Josué
e Reis revela uma leitura dos acontecimentos a partir da aliança entre Yahweh e Israel nas
planícies de Moabe, conforme o quinto livro de Moisés. Tal fato gerou uma série de teorias
críticas a respeito da composição destas obras, desde uma edição única para o Deuteronômio e
os Primeiros Profetas,2 até a suposição de uma escola deuteronômica na formação destes
últimos escritos.3

Mesmo que não se adote as teorias de datação propostas pelos críticos bíblicos,
deixar de considerar suas descobertas e insights resultaria em grande perda para a análise
exegético-teológica da historiografia profética. Muitos teólogos das mais diversas correntes
vêm reconhecendo a aliança deuteronômica como uma chave hermenêutica essencial para a
leitura dos livros de Josué a Reis. 4

Esta dissertação, portanto, objetiva examinar os principais temas de Deuteronômio e


compreender sua relação com as ênfases teológicas contidas num trecho específico dos
Profetas Anteriores, isto é, a história e o cântico de Ana (1 Sm 1.1 – 2.10). Na conclusão do
trabalho, o autor pretende confirmar a ligação histórico-teológica entre os dois textos
sagrados, em sua perspectiva dos atos históricos e do caráter de Yahweh, o Deus de Israel.

A presente análise abordará tais conexões a partir de seu entendimento da situação


histórica que cercou a autoria e datação do último livro do Pentateuco e de Samuel. Espera-se
que, ao final, fique patente a relação entre ambos, não por serem o produto literário de uma
mesma escola teológica, distinta de outras dentro do pensamento hebraico, mas devido à

1 Conjunto do Cânon Hebraico que abarca os livros de Josué, Juízes, Samuel (1 e 2) e Reis (1 e 2). Outra
tradução possível para a expressão é Primeiros Profetas e, também, será usada neste trabalho. Cf. Gleason L.
ARCHER, Jr., Merece confiança o Antigo Testamento?, p. 70; Roland K. HARRISON, Introduction to the Old
Testament. p. 267-268.
2 Steven MACKENZIE, “Deuteronomistic history”. In: D. FREEDMAN (Ed.), Anchor Bible Dictionary, p. 160-

161; Roy D. WELLS, “Deuteronomist/Deuteronomistic historian”. In: Watson E MILLS, Roger Aubrey
BULLARD (Eds), Mercer Dictionary of the Bible, p. 210-211.
3 Steven MACKENZIE, op. cit., p. 161-162.
4 Walter C. KAISER, Teologia do Antigo Testamento, p. 127; Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento,

p. 213-215; William S. LASOR, David A. HUBBARD, Frederic W. BUSH, Introdução ao Antigo Testamento,
p. 145-146; Steven MACKENZIE, op. cit., p. 160-167.
6
relação de influência canônica, em que o narrador profético entende a história de Ana e do
nascimento de seu filho, à luz da revelação anterior dada por Deus a Moisés. 5

Para isso, o autor da presente dissertação desenvolverá um roteiro que propicie o


desenvolvimento de sua pesquisa e fundamente sua tese. No primeiro capítulo se analisará
questões introdutórias pertinentes ao livro de Deuteronômio, os temas teológicos mais
importantes que formam o cerne de seu ensino e, ainda, sua perspectiva histórico-teológica
em relação aos Primeiros Profetas. Já no segundo capítulo, o foco será especificamente
voltado para a história e cântico de Ana (1 Sm 1.1 – 2.10), sua perspectiva teológica da
história e como esta fora, significativamente, influenciada pelo Deuteronômio. No último
capítulo, o autor proporá de que forma a compreensão do divino e sua relação com a história
percebidos nos livro de Deuteronômio e nos dois primeiros capítulos de Samuel oferecem
implicações para a comunidade da Nova Aliança, em sua adoração, missão e conduta ética.

5 Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible
commentary, v. 3, p. 555-557.
7
1. O DEUTERONÔMIO: SUA TEOLOGIA E PERSPECTIVA HISTÓRICA

O livro de Deuteronômio, certamente, é um dos que mais movimenta a crítica e


teologia bíblica em discussões acerca de sua autoria, composição, teologia e influência sobre
os Primeiros Profetas. Esta parte do trabalho se concentrará, principalmente, na teologia e
perspectiva histórica do livro, a fim de lançar as bases para a análise, no ponto seguinte, com
respeito à relação e influência do Deuteronômio sobre a história e poética de Ana. Ao mesmo
tempo, o presente capítulo tratará de questões introdutórias com respeito à autoria e data da
obra, pois, influenciam na compreensão hermenêutica dela e de seu relacionamento com os
Profetas Anteriores (dos quais o livro de 1 Samuel faz parte).6

1.1. Questões Introdutórias: autoria e data

Determinar a autoria e o Sitz im Leben do Deuteronômio é desafiador, desde que a


erudição bíblica vem propondo diversas possibilidades para a origem do livro. Sugestões que
remontam à época de Moisés até o período pós-exílico são feitas e não se chega a um
consenso geral. Portanto, faz-se necessária uma exposição resumida das várias propostas de
datação do livro e o parecer deste autor sobre aquela que, mais adequadamente, faz jus ao
texto bíblico.

Em 1805, W. M. L. de Wette propôs que o Deuteronômio provinha de uma fonte à


parte do restante do Pentateuco, cuja origem se deu no século VII a.C., pouco antes do
reinado de Josias. 7 Mais adiante, tal tese fora sustentada por K. A. Riehm 8 e, então,
desenvolvida, estabelecida e popularizada entre os eruditos por Julius Wellhausen, em 1876, o
qual via a composição do livro por profetas da época de Josias que o esconderam no templo
para, em seguida, ser “achado” e dar impulsão à reforma promovida pelo rei, legitimando a

6 Um claro exemplo quanto à influência do entendimento do contexto histórico para a abordagem hermenêutica e
teológica de Deuteronômio, ver John D. W. WATTS, The deuteronomic theology. Review and Expositor, v. 74,
no. 3, 1977, p. 323-330. Sobre a importância destas questões introdutórias do livro em sua relação com os
profetas anteriores, consultar Gerhard VAN GRONINGEN, “Joshua – II Kings: Deuteronomistic? Priestly? Or
prophetic writing?”. Bulletin of the Evangelical Theological Society, v. 12, no.1, 1969. p. 10-13.
7 DE WETTE, W.M.L. Dissertatio critico-exegetica, qua deuteronomium a prioribus Pentateuchi libris

diversum, alius cuiusdam recentioris auctoris opus ese monstratur. Halle: 1805.
8 Ernst SELLIN, George FOHRER, Introdução ao Antigo Testamento, v. 1, p. 230.

8
adoração central em Jerusalém (Dt 12.13ss),9 diferentemente da possibilidade de altares
múltiplos encontrada no Êxodo (Êx 20.24). Apesar de ser contestada por diversos estudiosos,
a hipótese de uma autoria não mosaica para o livro, dentro do século VII, continua a receber o
apoio maior da academia teológica.10

Tal proposta afirma que, em vários aspectos, o livro de Deuteronômio apresenta


características legais e religiosas desenvolvidas numa época posterior da história hebraica,
como uma preocupação mais humanitária com os escravos (Êx 21.1-11 com Dt 15.12-18)11 e
um conceito mais transcendente de Deus no seu ambiente cúltico, seja quanto à habitação do
templo (Sl 76.3 com Dt 12.11; 1 Sm 7.13; 1 Rs 3.2; 5.17; 8.17-20, 44, 48) ou ao propósito da
Arca da Aliança (Êx 25.10-22; Nm 10.33-36 com Dt 31.12-13, 26). 12 Além disso, afirmam
que partes da estrutura literária e alguns termos do Deuteronômio se enquadram dentro dos
tratados assírios do século VII.13

Os proponentes da autoria no século VII a.C. argumentam, então, que as reformas


religiosas promovidas por Ezequias e Josias seriam ambientes propícios para a redação do
Deuteronômio, o qual com sua perspectiva profética fora escrito entre a queda de Samaria, em
722 a.C., e o começo do reinado de Josias, servindo como base para a reforma cúltica
realizada em 2 Reis 22 e 23.14

Vários estudiosos têm reagido à datação do século VII para a composição do


Deuteronômio e proposto datas anteriores e posteriores às reformas de Ezequias e Josias.

Adam C. Welch e Theodor Oestreicher representam o grupo de estudiosos que


propõe uma data no décimo século, entre os reinados de Davi e Salomão, 15 cujas raízes

9 Julius WELLHAUSEN, Prolegomena to the history of Israel, p. 16, 20-41; William S. LASOR, David A.
HUBBARD, Frederic W. BUSH, Introdução ao Antigo Testamento, p. 124; J. A. THOMPSON, Deuteronômio:
introdução e comentário, p. 57; WALKER, L. L, “Deuteronomy”. In: Merril C TENNEY, The Zondervan
pictorial encyclopedia of the Bible, v. 2, p. 112; Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo
Testamento, p. 159-160.
10 Ver J. A. THOMPSON, op. cit., p. 56-65.
11 Roy D. WELLS, “Deuteronomist/Deuteronomistic historian”. In: Watson E. MILLS, Roger Aubrey

BULLARD (Eds), Mercer Dictionary of the Bible, p. 210;


12 Moshe WEINFELD, “Deuteronomy, book of”. In: D. FREEDMAN (Ed.), Anchor Bible Dictionary, p. 175-

176.
13 Ibid., p. 170.
14 Ver J. A. THOMPSON, op. cit., p. 56-65; Cf. Ernst SELLIN, George FOHRER, Introdução ao Antigo

Testamento, v. 1, p. 230.
15 J. A. THOMPSON, op. cit., p. 53-55; Gleason L. ARCHER, Jr., Merece confiança o Antigo Testamento?, p.

488-189. Após analisar as várias propostas de datação para o Deuteronômio, J. A. Thompson chega a uma
conclusão próxima àquela que Welch e Oestreicher defendem. Ver sua obra citada, p. 66-67.
9
teológicas remontam a um movimento iniciado por Samuel. 16 A razão que apresentam para se
oporem a uma data durante o governo de Josias é que a preocupação do Deuteronomista não
era a centralização do culto em Jerusalém (Kulteinheint), mas a purificação dos elementos
pagãos na adoração (Kultreinheint) (2 Rs 23.4-20, 24).17 Argumentam que certas leis eram
demasiadamente primitivas para a monarquia judaica posterior, mas que seriam plenamente
plausíveis no período final dos Juízes e começo da monarquia, como a lei acerca do homicídio
cujo autor fosse desconhecido, em que os sacerdotes deveriam exercer o julgamento (Dt 21.1-
9), ou a permissão e a proibição de determinados grupos estrangeiros participarem da
assembléia do Senhor (Dt 23.1-8).

Teólogos como R. K. Kennett e G. Hölscher propõem uma data para o livro no


período exílico e pós-exílico em círculos sacerdotais. 18 Defendem este Sitz im Leben de
Deuteronômio por entenderem ser impossível que um reformador da época de Josias
escrevesse leis como as que constam nos capítulos 13 e 17, quando a grande maioria das
cidades de Judá, inclusive Jerusalém, estavam contaminadas pela idolatria, o que implicaria
na morte de comunidades inteiras em Israel no século VII. Hölscher, outrossim, identificou
paralelos de linguagem em textos de Malaquias e Neemias com aquela encontrada em
Deuteronômio, o que, ao seu ver, favorece uma data pós-exílica (cf. Ml 1.2, 6, 8; 2.1-2, 4-5, 8;
3.1, 3; Ne 13.25-27).19

Este autor entende que a solução mais satisfatória para a questão de data e autoria do
Deuteronômio se dá na proposta da autoria mosaica do livro, durante a segunda metade do
segundo milênio, 20 incluindo pequenas edições posteriores, provavelmente, inseridas por
algum editor da geração seguinte a Moisés (cf. Dt 2.10-12; 34).21

16 J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 54; Ernst SELLIN, George FOHRER,


Introdução ao Antigo Testamento, v. 1, p. 241.
17 Gleason L. ARCHER, Jr., Merece confiança o Antigo Testamento?, p. 488; J. A. THOMPSON, op. cit., p. 53.
18 G.T. MANLEY, “Deuteronômio, livro de”. In: J. D. DOUGLAS (ed.), O novo dicionário da Bíblia, v. 1, p.

412; J. A. THOMPSON, op. cit., p. 65-66; Gleason L. ARCHER, Jr., op. cit., p. 489-491.
19 J.A. THOMPSON, op. cit., p. 66.
20 Para uma defesa mais detalhada da posição deste autor, ver Tiago Abdalla T. NETO, Deuteronômio: escrito

de Moisés ou uma fraude piedosa?. http://www.fatep-sp.com.br/pdf_version.php. Acessado em Abril de 2010.


Outros estudiosos e obras que defendem a mesma posição, com pequenas diferenças: Meredith G. KLINE, Two
tables of the covenant. Westminster Theological Journal, v. 22, no. 2, 1960, p. 133-146; Paul R. HOUSE,
Teologia do Antigo Testamento, p. 214-215; G.T. MANLEY, op. cit., p. 412-414; Gleason L. ARCHER, Jr., op.
cit., p. 173-183; L. L. WALKER, “Deuteronomy”. In: Merril C TENNEY, The Zondervan pictorial
encyclopedia of the Bible, v. 2, p. 112-116; K.A. KITCHEN, The Old Testament in its context 2: from Egypt to
the Jordan, p. 4-8.
21 Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 161.

10
Há indicações claras no livro da atividade redatorial de Moisés e de sua comunicação
e exposição da lei contida no Deuteronômio (Dt 31.9, 19, 22, 24-26; cf. 1.1, 3, 5; 4.44-45, 5.1;
27.1, 9, 11; 29.1-2; 31.1).22 As referências a ocasiões que suscitaram os sentimentos de
Moisés e recordações de detalhes históricos mencionados na obra, somente fariam sentido
caso o seu autor tivesse experimentado tais situações (Dt 1.9-12; 5.6; 7.8; 8.14; 9.22-24;
11.10; 16.6; 25.17ss).23 Digna de nota é a menção da intercessão de Moisés em favor de Arão,
depois da quebra da aliança, cujo incidente não é sequer referido no relato de Êxodo, mas
consta em Deuteronômio (Dt 9.20ss).

O posicionamento de Israel, dentro do livro, é sempre fora de Canaã prestes a entrar


nela (3.20, 25; 4.5, 14; 5.31; 11.30; 12.10; 18.9)24 e as tribos são vistas como parte de “todo o
Israel” (1.1; 5.1; 13.11; 21.21; 27.9; 29.2, 10; 31.1, 7, 11; 32.45), não há referência a Norte e
Sul como nações separadas.25 Outrossim, no aspecto religioso, não há qualquer menção à
abolição dos “lugares altos” (B`mot) nem à centralização do templo em Jerusalém, o que
enfraquece a posição dos que defendem a autoria de século VII, dizendo que estes eram os
principais objetivos do grupo reformador profético responsável pela edição do livro na época
de Josias. 26

Um fator final que favorece a escrita de Deuteronômio no segundo milênio, na época


de Moisés e não no primeiro milênio, época de Josias, é a semelhança muito maior de tratados
do segundo milênio com o livro do que com os do milênio posterior, conforme a
argumentação de Weinfeld.27 K. A. Kitchen afirma claramente: “À luz de tal padrão de
medida tangível (especialmente quando as formas do primeiro milênio são completamente

22 K. A. KITCHEN, The Old Testament in its context 2: from Egypt to the Jordan, p. 4-5; THOMPSON, J. A,
Deuteronômio: introdução e comentário, p. 49; G.T. MANLEY, “Deuteronômio, livro de”. In: J. D. DOUGLAS
(ed.), O novo dicionário da Bíblia, v. 1, p. 413.
23 G.T. MANLEY, op. cit., p. 413; L. L. WALKER, “Deuteronomy”. In: Merril C TENNEY, The Zondervan

pictorial encyclopedia of the Bible, v. 2, p. 114-115.


24 George L. ROBINSON, “Deuteronomy”. In: James ORR, The international Standard Bible encyclopedia.

(Versão eletrônica disponível em Bíblia Online 3.0 – Módulo Avançado); Gleason L. ARCHER, Jr., Merece
confiança o Antigo Testamento?, p. 175-176.
25 Gleason L. ARCHER, Jr., op. cit., p. 179; L. L. WALKER, op. cit., p. 115; George L. ROBINSON, op. cit.

(Versão eletrônica).
26 G.T. MANLEY, op. cit., p. 412-413. Carlos Osvaldo observa, pertinentemente: “(...) parece claro que se

Deuteronômio foi uma ‘fraude piedosa’ projetada para legitimar Jerusalém como santuário único, seu autor fez
um péssimo trabalho, pois a cidade jamais é mencionada no livro. Ao contrário, Deuteronômio prescreve a
construção de um altar no monte Ebal, na região de Samária, rival de Jerusalém, e a celebração da renovação da
aliança ali!” (Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 160).
27 Moshe WEINFELD, “Deuteronomy, book of”. In: D. FREEDMAN (Ed.), Anchor Bible Dictionary, p. 169-

171.
11
diferentes) datar Deuteronômio cerca de 621 a.C. (...) é simplesmente um erro grotesco, sem
nenhuma base, na verdade”.28

O livro de Deuteronômio é uma renovação da aliança do Sinai e sua estrutura em


muito se assemelha com as formas encontradas nos tratados de vassalagem hititas da última
metade do segundo milênio. 29 As seguintes características são comuns tanto em
Deuteronômio quanto nos tratados hititas: (1) Título ou Preâmbulo (Dt 1.1-5); (2) Prólogo
Histórico (Dt 1.6 – 3.29); (3) Estipulações ou Mandamentos (Dt 4, 5 – 26); (4) Depósito do
Texto e Leitura Pública (Dt 31.9-13, 24-26); (5) Testemunhas (Dt 31.16-30; 32.1-47);
Bênçãos e Maldições (Dt 28.1-68).30

Quando se compara o livro de Deuteronômio com os tratados neo-assírios e neo-


babilônicos (primeiro milênio) percebe-se pouca semelhança. Nestes não há a menção de
bênçãos que acompanham as maldições.31 Também, não existe qualquer prólogo histórico
nem indicação de depósito do texto e leitura posterior, o que é típico do segundo milênio. 32

Diante da exposição acima, para o presente autor, atribuir o texto encontrado em


Deuteronômio a Moisés e datá-lo no Segundo Milênio é a opção mais plausível e honesta a se
fazer numa perspectiva científica, devido aos fortes paralelos histórico-contextuais com a
época de Moisés e com o Segundo Milênio, além da fraqueza na proposta de datação no
século VII a.C. que não resiste a um exame histórico e teológico mais acurado.

1.2. A Teologia do Deuteronômio

Alguns temas teológicos centrais emanam do livro de Deuteronômio, naturalmente.


Um deles é a ação de Yahweh em favor de Seu povo Israel. A história não possui qualquer
poder autônomo e seu significado só é compreendido à luz do agir de Deus nela. 33 Israel se
encontrava numa situação de escravidão dentro da terra do Egito (Dt 5.6; 6.12, 21; 7.8; 8.14;

28 K.A. KITCHEN, The Old Testament in its context 2: from Egypt to the Jordan, p. 9.
29 Meredith G. KLINE, Two tables of the covenant. Westminster Theological Journal, v. 22, no. 2, 1960, p. 140-
142; K.A. KITCHEN, Ancient Orient and Old Testament, p. 98-99.
30 K.A. KITCHEN, Ancient Orient and Old Testament, p. 92-97; ________________, The fall and rise of

covenant, law and treaty. Tyndale Bulletin, v. 40, no. 1, 1989, p. 126-127.
31 K.A. KITCHEN, The fall and rise of covenant, law and treaty. Tyndale Bulletin, v. 40, no. 1, 1989, p. 128-

129; ______________, Ancient Orient and Old Testament, p. 96.


32 Meredith G. KLINE, op. cit., p. 139-141; K.A. KITCHEN, Ancient Orient and Old Testament. p. 95;

______________, The fall and rise of covenant, law and treaty. Tyndale Bulletin, v. 40, no. 1, 1989, p. 132-133.
33 Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 217. Ver, também, William S. LASOR, David A.

HUBBARD, Frederic W. BUSH, Introdução ao Antigo Testamento, p. 136-137.


12
15.15; 24.18), descrita em termos vívidos como uma fornalha de ferro (4.20).34 Yahweh age
em prol de seu povo, tirando-os35 daquela situação hostil debaixo do poder do Faraó (4.20, 37;
5.15). Ao tirar Israel do Egito, Deus o resgatava, isto é, libertava-o do poder egípcio e o
tomava como propriedade sua (9.26; 15.15; cf. 7.8; 24.18).36 A salvação da terra da servidão
operada por Yahweh, destaca seu poder e presença como expressam os termos “mão
poderosa”, “braço forte”, “provas, sinais miraculosos e maravilhas” (4.34; 5.15; 6.22; 7.19). 37

Deste modo, Yahweh é retratado como o Deus Guerreiro que luta por Israel não
apenas no êxodo do Egito (1.30), mas, também, quando Israel enfrenta inimigos antes de sua
entrada na terra prometida, como Seom, rei de Hesbom e Ogue, rei de Basã (2.33-34; 3.1-2,
21-22). Isso fortaleceria a confiança israelita no poder de Deus para as batalhas que viriam
durante a conquista de Canaã (1.30; 3.21-22).38

A presença ativa do Senhor no meio de Seu povo, também, pode ser vista no sustento
de Israel durante sua peregrinação no deserto. Yahweh é retratado como um pai que carrega
seu filho no colo (1.31) e seu cuidado é evidente por meio da orientação sobre o caminho a
seguir, com a coluna de fogo, à noite e a nuvem, de dia (1.32-33). O suprimento de Deus para
com Israel é tão suficiente que o Deuteronômio nega a falta de qualquer coisa durante a
jornada (2.7). A ausência temporária de alimento no meio do deserto é vista como um fato
positivo, tencionando a preparação de Israel para a entrada em Canaã, no qual Deus provou o
coração do povo para ver sua dependência dele, disposição em obedecê-lo e, também, para
ensinar a importância fundamental de sua revelação (8.1-5).39 Ainda assim, a provisão do
maná, as roupas não gastas e os pés sem inchação durante tanto tempo de peregrinação,
evidenciam a ação de Yahweh em favor de Israel (8.3-4).

A atividade sobrenatural de Yahweh, libertando, derrotando os inimigos e provendo


orientação e suprimento necessários no deserto ao povo hebreu relaciona-se com outros dois

34 J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 70.


35 O verbo hebraico mais comumente empregado pelo Deuteronômio para narrar a libertação de Israel por Deus
no Egito é  (y`x~r) no grau Hifil, sendo traduzido como “tirar” (NVI e ARA) ou “fazer sair” (BJ). Ver J. A.
THOMPSON, op. cit., p. 70.
36 Ver William B. COKER, “”. In: Laird R. HARRIS, Gleason L. ARCHER, Jr., Bruce K. WALTKE,

Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, p. 1200-1201.


37 C. PIEPENBRING, Theology of the Old Testament, p. 121.
38 John GOLDINGAY, Theological diversity and the authority of the Old Testament, p. 142; Carlos Osvaldo

PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 168; J. A. THOMPSON, op. cit., p. 71.
39 John D. W. WATTS, The deuteronomic theology. Review and Expositor, v. 74, no. 3, 1977, p. 327-328.

13
conceitos teológicos centrais: Israel é o povo eleito de Deus e Yahweh é o Senhor da Aliança
com Israel.40

A eleição de Israel como povo pactual de Deus se dá não por qualquer mérito que
possua, mas simplesmente pela graciosa bondade divina (Dt 4.37; 7.7-8; 10.14-15).41 Tal
atitude de Deus é expressa pelos verbos “amar” ( - a`h}b) e “afeiçoar-se” ( - j`v~q).
Esta última palavra indica uma afeição íntima e profunda, um apego forte, que Deus tem para
com os patriarcas e seus descendentes. 42 Apesar de Yahweh ser o dono de toda a terra e céus e
todos os povos lhe pertencerem, Ele amou e se inclinou em favor deles, prometendo-lhes a
terra de Canaã (4.36-38; 10.14-15; cf. 7.6-8; 9.4-6).43 A ausência de qualquer qualidade do
povo hebreu é realçada pela sua obstinação em não confiar em Deus e, prontamente,
desobedecê-lo (9.6ss).44

O verbo hebraico  (B`j~r) ganha realce particular no livro de Deuteronômio


enquanto referência a Israel como povo eleito (4.37; 7.6-7; 10.15; 14.2). Em nenhum outro
livro do Pentateuco há o uso do verbo neste sentido 45 que, geralmente, é expresso por 
(y`d~u), “conhecer”, como exemplifica a referência a Abraão e seus descendentes em Gênesis
18.19, ou pelo verbo (B`d~l) no grau Hifil, “separar”, como em Levítico 20.26.46

Juntamente com , aparece a palavra (s+g%ll>), “propriedade especial” (Dt


7.6; 14.2; 26.18), cujo termo semelhante, em acádico, se utilizava na esfera militar, quando o
suserano escolhia um de seus vassalos e dava-lhe o status de “propriedade especial”. 47 O
próprio rei poderia ser indicado como “propriedade especial” do deus, como na literatura de
Alalakh.48 O substantivo hebraico  ocorre no Antigo Testamento, em seu contexto secular,

40 William S. LASOR, David A. HUBBARD, Frederic W. BUSH, Introdução ao Antigo Testamento, p. 130-131.
41 P. Teodorico BALLARINI (Dir.), Introdução à Bíblia: com antologia exegética, v. 1. p. 298-299; Paul R.
HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 226.
42 Leonard J. COPPES, “”. In: Laird R. HARRIS, Gleason L. ARCHER, Jr., Bruce K. WALTKE, Dicionário

internacional de teologia do Antigo Testamento, p. 548.


43 Gerhard VON RAD, Teologia do Antigo Testamento, p. 219-220.
44 C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the Old Testament: The Pentateuch, v. 3, p. 227.
45 Um uso parecido, mas não totalmente igual, do verbo  ligado ao status de “santo” é feito em Números 16.5,

7 e 17.5. Ali, a escolha e santidade se referem à liderança e sacerdócio do povo hebreu, especificamente a Arão e
Moisés como escolhidos e separados por Deus para o ministério que desempenhavam e a rejeição de Corá, Datã,
Abirão e boa parte do povo dessa condição dada a eles (cf. 16.1-14, 41-50). Portanto, apesar do uso semelhante
do substantivo “santo” e do verbo “escolher”, ainda assim, em Números o destaque não é dado a Israel como
escolhido e separado por Deus, mas ao líder do povo e ao sumo-sacerdote. Para mais informações sobre este
texto específico, ver Gordon J. WENHAN, Números: introdução e comentário, p. 140-147.
46 Moshe WEINFELD, “Deuteronomy, book of”. In: D. FREEDMAN (Ed.), Anchor Bible Dictionary, p. 181.
47 Id. Ibid.
48 J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 73.

14
como referência ao ouro e prata que faziam parte dos tesouros reais particulares, cujo uso não
se dava para fins ordinários, mas era reservado para propósitos especiais (cf. 1 Cr 29.3; Ec
2.8).49 Assim, o povo de Israel era considerado a propriedade valiosa, o tesouro particular, 50 a
coroa de jóias de Yahweh. 51

Esses apontamentos semânticos realçam a singularidade de Israel em seu


relacionamento particular e pactual com Yahweh, além de sua responsabilidade de submissão
e cooperação na realização dos propósitos do Deus soberano na terra.

Diante disso, “a santidade não indica o chamado de Israel (como em Levítico), mas
sua condição como resultado da escolha deles por Yahweh”. 52 A santidade não é algo a ser
buscado e desenvolvido como no Código de Santidade (Lv 19.2; 20.26) e, sim, o status que
impulsiona o povo a ser completamente leal ao seu Deus (Dt 7.1-6; 14.1-2).53 “Trata-se antes
de um convite dirigido a Israel, para que se aproprie pessoalmente de uma realidade que já
está dada e para que se instale nessa realidade através da obediência e em atitude de
gratidão”.54

A escolha amorosa de Yahweh pelos patriarcas o levou a se comprometer, de forma


prática, na concessão da terra de Canaã por herança à descendência deles, expulsando as
nações que ali habitavam (4.37-38).55 Tanto que a terra é indicada muitas vezes no
Deuteronômio como uma dádiva divina (1.20, 25; 2.29; 3.20; 4.40; 5.16, passim)56 prometida
aos antepassados (1.35; 8.1; 9.5; 10.11; 11.9, passim).57 Isso se coaduna com outros textos do
Pentateuco que falam de Canaã como o presente perpétuo e incondicional de Deus a Abraão e
seus filhos (Gn 12.1-3; 15.12-21; 17.1-8; 48.3-4). Tal dádiva era um presente maravilhoso, a
“boa terra” (Dt 1.25, 35; 3.25; 4.21-22; 6.18; 11.17), que “mana leite e mel” (Dt 11.29; 26.9,
15; 31.20), “generosamente irrigada, cheia das mais viçosas culturas e de parreiras, com

49 H. WILDBERGER, “”. In: Ernst JENNI, Claus WESTERMANN, Theological lexicon of the Old
Testament, v. 2, p. 792; F. BROWN, S. DRIVER, C. BRIGGS, The Brown-Driver-Briggs Hebrew and English
lexicon. p. 688.
50 F. BROWN, S. DRIVER, C. BRIGGS, op. cit., loc. cit.
51 H. WILDBERGER, op. cit., p. 792-793.
52 John GOLDINGAY, Theological diversity and the authority of the Old Testament, p. 142.
53 Moshe WEINFELD, “Deuteronomy, book of”. In: D. FREEDMAN (Ed.), Anchor Bible Dictionary, p. 181.
54 Gerhard VON RAD, Teologia do Antigo Testamento, p. 226.
55 John GOLDINGAY, op. cit., p. 142.
56 John D. W. WATTS, The deuteronomic theology. Review and Expositor, v. 74, no. 3, 1977, p. 328.
57 Walter C. KAISER, Teologia do Antigo Testamento, p. 130; J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e

comentário, p. 71.
15
abundância também de riquezas minerais (Dt 8.7-9)”.58 A fertilidade da terra era tamanha que
é contrastada com o Egito (uma terra fértil) em Deuteronômio 11.10-12.59

Aqui cabe salientar as observações de Moshe Weinfeld que as promessas feitas aos
patriarcas de propriedade da terra eram incondicionais, típicas de “documentos de
concessão” do Oriente Médio Antigo (OMA), em que o rei concedia doações a servos reais,
dedicados exclusivamente ao seu senhor, com afirmações iguais àquelas feitas por Deus a
Abraão: “... darei como propriedade perpétua a você e a seus descendentes... ” (Gn 17.7-8; cf.
Dt 1.8). Por outro lado, a renovação da aliança que Deus faz com Israel nas planícies de
Moabe, quanto à permanência na terra, era condicional, correspondente aos “tratados de
vassalagem” em que se exigia do povo obediência às estipulações da aliança, para que
continuasse gozando da paz e permanência em Canaã (Dt 4.25-27; 8.19-20; 11.8-10, 13-17,
22-25; 28.25, 47-52, 62-67).60

O direito de posse da terra sempre seria de Israel, mas o desfrute da permanência


nela dependia de cada geração confiar totalmente na Palavra de Yahweh e obedecer aos seus
mandamentos (Dt 4.10; 12.1; 31.13).61 Apesar das constantes precauções contra a
desobediência e o testemunho quanto ao coração rebelde e obstinado de Israel, que o levará a
ser disciplinado por Deus e exterminado da terra no futuro (Dt 4.25-28; 30.1; 32.15-35), há
uma esperança escatológica de arrependimento da nação e o recebimento de um coração
circuncidado por Deus (4.29-30; 30.2-6), de um retorno para a terra e permanência próspera
nela (4.31; 30.3-6, 9) e da vingança de Deus em prol de seu povo contra os seus inimigos
(30.7; 32.39-43).62 A razão para essa esperança futura se dá pelo caráter gracioso e fiel de
Yahweh que mantém seu compromisso de aliança com os pais da nação (4.31).

58 Gerhard VON RAD Teologia do Antigo Testamento, p. 220.


59 Ibid. p. 220-221.
60 Moshe WEINFELD, “Deuteronomy, book of”. In: D. FREEDMAN (Ed.), Anchor Bible Dictionary, p. 180. A

falta de percepção da relação destes elementos histórico-contextuais com o Deuteronômio leva a uma abordagem
confusa desta obra bíblica, como se vê em Robert POLZIN, “Deuteronômio”. In: Robert ALTER, Frank
KERMODE, Guia literário da Bíblia, p. 113-114. O conhecimento destes dois tipos de tratados, também, torna
desnecessárias as conclusões como a de von Rad, que afirma uma preponderância da lei sobre o evangelho nas
adições posteriores de Deuteronômio (Gerhard VON RAD, Studies in Deuteronomy, p. 72).
61 Walter C. KAISER, Teologia do Antigo Testamento, p. 134-135; Carlos Osvaldo PINTO, Foco e

desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 161.


62 Quanto à perspectiva profética e escatológica destes textos, ver Carlos Osvaldo PINTO, op. cit., p. 169, 178-

179; J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 272-273. Este último, comentando sobre o
texto de Deuteronômio 30.1-10, diz: “Em termos candentes a passagem descreve o estado final de bênção
divina” e “O amplo quadro de bênção e cura do povo num dia futuro tem um forte paralelo em todo o capítulo 32
de Jeremias”.
16
A supremacia e transcendência de Yahweh, o Senhor da aliança, são bem destacadas
no livro de Deuteronômio.63 Yahweh é o possuidor da terra, dos céus e dos “céus dos céus”, o
que incluía os corpos celestes adorados pelos vizinhos pagãos de Israel (Dt 10.14). 64 Mas, o
Deus de Israel se distingue e está acima de sua criação, jamais podendo ser confundido com
ela (4.15-20).65 Ele, também, se encontra acima de todas as nações e exerce sua soberania
sobre elas (7.17-19),66 é o “Deus dos deuses e Senhor dos senhores, o Deus grande, poderoso
e temível” (10.17). “Mesmo que alguém em Israel admitisse a existência de outros deuses, a
afirmação de que somente Javé era Soberano e único objeto da obediência de Israel fazia soar
o toque fúnebre para quaisquer posições inferiores ao monoteísmo”. 67

Deste modo, atrelada à soberania divina está a sua singularidade. O famoso credo de
Deuteronômio 6.4 destaca que “Yahweh, nosso Deus, Yahweh é único”, 68 indicando o caráter
singular de Yahweh, sem igual, que não poderia ser comparado nem emulado. Aqui,
provavelmente, há um antídoto contra o perigo do sincretismo religioso cananeu, impedindo
qualquer associação com Baal. 69 Von Rad observa que a singularidade do caráter de Yahweh
servia de base para o estabelecimento de um lugar central para a sua adoração (Dt 12.2-7).
Enquanto Baal se revelava em qualquer lugar onde se havia experimentado um mistério da
natureza, o culto a Yahweh tinha sua característica única e centralizadora, distinta da forma
como se dava a adoração do deus da fertilidade cananeu. 70

63 John D. W. WATTS, The deuteronomic theology. Review and Expositor, v. 74, no. 3, 1977, p. 325.
64 Carlos Osvaldo PINTO Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 165.
65 Paul House observa: “Por Yahweh ser o criador, quaisquer deuses que supostamente existam teriam de ser

feitos por ele, e o cânon não contempla tal possibilidade. Os atos de Deus na história removem qualquer dúvida
de que Israel deve fidelidade absoluta ao seu Deus como a única divindade viva” (Paul R. HOUSE, Teologia do
Antigo Testamento, p. 219).
66 George L. ROBINSON, “Deuteronomy”. In: James ORR, The international Standard Bible encyclopedia.

(Versão eletrônica disponível em Bíblia Online 3.0 – Módulo Avançado).


67 J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 118. Ballarini afirma: “O orador não se

preocupa com a existência ou não de outros deuses: o que ele quer acima de tudo é sublinhar o fato de não terem
poder algum; e um Deus sem poder não merece consideração. Javé é a fonte de toda a autoridade, de todo o
poder, de todo o criado, só dele é que depende o universo” (P. Teodorico BALLARINI (Dir.), Introdução à
Bíblia: com antologia exegética, v. 1. p. 298). A dificuldade com essa conclusão é que outros textos do
Deuteronômio, que o próprio Ballarini cita em seu livro, deixam muito clara a inexistência de qualquer outro
deus além de Yahweh (cf. Dt 4.35, 39; 32.39).
68 A tradução de  (a#j^d) como “único”, indicando a exclusividade da divindade de Yahweh, parece ser a

melhor tradução do termo, tendo em vista o próprio contexto que exige de Israel um coração totalmente
consagrado a Ele como o único Deus de sua devoção (Dt 6.5). Ver Herbert WOLF, “”. In: Laird R. HARRIS,
Gleason L. ARCHER, Jr., Bruce K. WALTKE, Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, p.
47-49; Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 224, 228.
69 Carlos Osvaldo PINTO, op. cit., p. 165.
70 Gerhard VON RAD, Teologia do Antigo Testamento, p. 222-223; Ver, também, John GOLDINGAY,

Theological diversity and the authority of the Old Testament, p. 150.


17
Este apontamento requer uma consideração, pois, a ênfase em um santuário central é
constante no livro de Deuteronômio. O capítulo 12 trata, de modo específico, da adoração
central a Yahweh com as expressões “no lugar que o SENHOR escolher para ali pôr o seu
nome [dentre todas as tribos – v. 5]” e “no lugar que o SENHOR escolher [numa das suas
tribos – v. 14]” (cf. Dt 12.5, 11, 14, 18, 21, 26). O contexto que cerca as ordens acerca do
lugar escolhido por Deus para adoração mostra uma preocupação com a multiplicidade de
locais usados pelos cananeus para prestar culto a seus deuses e seu caráter abominável a
Yahweh, tanto no começo quanto no final desta seção (12.1-3, 29-32).71 Além deste texto,
outras partes que tratam da entrega do dízimo (14.23-25), das festas religiosas (16.2, 6-7, 11,
15-17), das primícias (26.2) e da leitura da lei a cada sete anos diante de todo o povo (31.11)
enfatizam a necessidade do adorador ir até o santuário escolhido por Deus, determinando um
lugar cúltico centralizado.72

Como Walter Kaiser notou, isso, de modo algum, é uma ordem contrária a Êxodo
20.24 que fala sobre ofertas e holocaustos levados a “todo lugar onde eu fizer celebrar a
memória do meu nome”, desde que o Deuteronômio não lança uma polêmica sobre um altar
de Yahweh contra os muitos altares de Yahweh, mas sim, contra o caráter corruptor da
religião cananita. 73 Isso é reforçado, ainda, pela menção do erguimento de um altar no monte
Ebal em Deuteronômio 27.1-8.74 Tal localização “não é jamais denominada o lugar, nem [sic]
tampouco ali ficaram a Arca ou a Tenda da Congregação”.75 Enquanto no livro de Êxodo a
ordenança se destina à comunidade peregrina do deserto, em Deuteronômio, Moisés
estabelece o modus operandi cúltico de um povo que está prestes a estabelecer-se em Canaã,
num sistema de vida sedentário.

A singularidade de Deus é afirmada de modo bem explícito em outros textos, além


do v+m~a, como Deuteronômio 4.35: “A ti te foi mostrado para que soubesses que o Senhor é
Deus; nenhum outro há, senão ele” (cf. 4.39; 32.39).76 Por ser o único Deus, Yahweh exige a
devoção e adoração exclusiva de Israel, sua “propriedade especial” e seu povo escolhido, não

71 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v.
3, p. 92-93.
72 J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 40-41.
73 Walter C. KAISER, Teologia do Antigo Testamento, p. 134-135; C. PIEPENBRING, Theology of the Old

Testament, p. 79.
74 Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 135-137.
75 J. A. THOMPSON, op. cit, p. 40-41.
76 “Dificilmente seria possível fazer uma declaração monoteísta mais clara do que essa” (Paul R. HOUSE,

Teologia do Antigo Testamento, p. 219).


18
admitindo qualquer concorrente (Dt 7.5-6). Ele é Deus zeloso que pune com a morte os que o
abandonam, para ir em busca de ídolos e outros deuses (Dt 4.23-24; 5.8-9; 6.14-15; 13.2-11;
17.2-7).77 Não apenas a adoração a outros deuses, como a própria forma na qual ela ocorria,
deveria ser evitada por Israel (4.15-19; 12.29-31; 14.1-2).78

Em resposta à singularidade de Yahweh e à sua ação graciosa na eleição, libertação


do Egito e concessão da terra, Israel é chamado a amá-lo com todo o seu coração, não
dividindo este amor com ninguém mais (Dt 6.5),79 e a confiar exclusivamente nele, não em
outras fontes (17.16-20).80 Outros verbos destacam a necessidade do comprometimento de
Israel a seu Deus, como servi-lo (6.13; 11.13), apegar-se a Ele (10.20; 13.4), temê-lo (4.10;
6.2; 8.6) e andar em seus caminhos (8.6; 10.12). Sua lealdade deveria ser completa e
indivisível (18.13; cf. 11.13, 16-17, 32).81 A fidelidade israelita experimentaria a própria
fidelidade do Deus da aliança (4.31; 29.12-13), sua Rocha (Dt 32.4), expressa mediante seu
“amor leal” ( - j#s#d) para com Israel (5.10; 7.9, 12).

1.3. A Perspectiva Histórica do Deuteronômio e sua Influência sobre os Profetas


Anteriores

O clássico livro de Martin Noth, Überlieferungsgeschichtliche Studien, 82 se


caracterizou como um marco dentro dos estudos de Deuteronômio e dos Profetas Anteriores.
A proposta de Noth foi que os livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis formam uma unidade
literária, escrita por um autor, chamado de “Deuteronomista”, na metade do século VI a.C.,
pouco após a libertação do rei Joaquim da prisão em 562 a.C. (cf. 2 Rs 25.27-30).83 Diante das
catástrofes históricas do exílio, tanto de Israel quanto de Judá, o autor buscou explicar o
motivo do sofrimento de seu povo como caracterizado pelo declínio constante de sua lealdade

77 John D. W. WATTS, The deuteronomic theology. Review and Expositor, v. 74, no. 3, 1977, p. 326; Carlos
Osvaldo PINTO, e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 165-166.
78 John GOLDINGAY, Theological diversity and the authority of the Old Testament, p. 148-150.
79 P. Teodorico BALLARINI (Dir.), Introdução à Bíblia: com antologia exegética, v. 1. p. 299; C.

PIEPENBRING, Theology of the Old Testament, p. 76-77.


80 John GOLDINGAY, op. cit., p. 147. “O fato de que o Deus que livrou Israel da escravidão egípcia é o único

Deus verdadeiro é central na apresentação que Deuteronômio faz da aliança. Porque só há um Deus, ele exige a
lealdade total do seu povo” (Eugene MERRIL, “Deuteronômio”. In: David S. DOCKERY (Ed.), Manual bíblico
Vida Nova, p. 211).
81 J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 74.
82 A obra em inglês foi traduzida quase quarenta anos depois de sua primeira edição em alemão: NOTH, Martin.

The Deuteronomistic History. Sheffield: JSOT, 1981.


83 Steven MACKENZIE, “Deuteronomistic history”. In: D. FREEDMAN (Ed.), Anchor Bible Dictionary, p.

210-211. Cf. Norman K. GOTTWALD, Introdução socioliterária à Bíblia hebraica, p. 113.


19
a Yahweh, desobedecendo às estipulações contidas na lei deuteronômica.84 Para isso, o
deuteronomista fez uso de tradições históricas existentes, modelou a obra com seus próprios
comentários e descreveu a história de Israel, desde a conquista até o cativeiro, como objeto do
julgamento divino previsto pelo próprio Deuteronômio (cf. Dt 4.25ss; 28.15ss).85

Apesar deste autor discordar das conclusões de Noth quanto à autoria e datação dos
Profetas Anteriores, e mesmo diante de objeções como a de Van Groningen quanto ao fato de
não haver um molde teológico deuteronômico nas obras de Josué a Reis, 86 parece impossível
negar o valor das contribuições de Martin Noth no campo teológico e hermenêutico, como
Kaiser e House outrora observaram. 87 “(...) os Profetas Anteriores (...) foram influenciados por
Deuteronômio e por seu conceito de aliança. Esse conceito destaca a fidelidade à aliança e o
culto exclusivo a Deus, explicando como a história é afetada pela moralidade da nação”. 88

É plausível, portanto, perceber e observar a forte unidade temática que há entre os


Profetas Anteriores e o Deuteronômio, seja no que diz respeito ao tema do santuário central
ou quanto à linha da ação abençoadora e disciplinadora de Deus na vida de Israel, sem,
todavia, perder de vista as peculiaridades de cada livro ou tentar impor um molde rígido
Deuteronomista/Josiânico que os enfraqueça como narrativa e teologia. 89 Como House
afirmou:

A hipótese de Noth tem implicações canônicas significativas, visto que faz de


Deuteronômio o pai teológico de quatro livros subseqüentes. Que Deuteronômio
desempenha essa função é algo que pode-se [sic] afirmar (...) Certamente um livro
mosaico poderia estar numa posição de tal autoridade a ponto de ser usado como
guia para reflexão teológica. (2005, p. 215)

84 Anthony F. CAMPBELL, Mark A. O’BRIEN, Unfolding the deuteronomistic history: origins, upgrades,
present text, p. 2; Steven MACKENZIE, “Deuteronomistic history”. In: D. FREEDMAN (Ed.), Anchor Bible
Dictionary, p. 161.
85 Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 27-28.
86 Gerhard VAN GRONINGEN, Joshua – II Kings: Deuteronomistic? Priestly? Or prophetic writing?. Bulletin

of the Evangelical Theological Society, v. 12, no.1, 1969. p. 24-26.


87 Walter C. KAISER, Teologia do Antigo Testamento, p. 127; Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento,

p. 213-215. Ver, também, Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The
expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 556-557.
88 Kenneth A. MATHEWS, “Os livros históricos”. In: David S. DOCKERY (Ed.), Manual bíblico Vida Nova, p.

223.
89 Id., Ibid.; cf. J. Gordon MCCONVILLE, The Old Testament Historical Books in the modern scholarship.

Themelios, v. 22, n. 3, 1997, p. 9-11.


20
A rememoração da história israelita feita por Moisés nos quatro primeiros capítulos
de Deuteronômio introduz um molde de interpretação teológica da história, que será tomado
mais à frente no próprio livro e na historiografia hebraica posterior.90

Percebe-se uma ênfase na graça e fidelidade de Yahweh pelas vitórias recentes sobre
Seom, rei de Hesbom (Dt 2.24-37) e sobre Ogue, rei de Basã (3.1-11), apesar de todos os
obstáculos possíveis como cidades fortificadas com muros altos (2.36; 3.5-6) e inimigos com
características físicas amedrontadoras (3.11).91 Tal graça e fidelidade divinas é que dão
segurança a Israel de que vencerá os inimigos cananeus e tomará posse da terra (3.18-22; cf.
1.6-8).

Por outro lado, a justiça divina, também, é destacada contra a rebelião do povo, no
prólogo histórico. A falta de confiança no poder de Deus para a conquista de Canaã por parte
da geração que saiu do Egito, levou-a a vagar durante quase quarenta anos no deserto e não
entrou na terra prometida (1.26-40; 2.14-15). Isso ocorreu devido à ira de Deus (1.34-36) que
julgou a maldade do povo com sua justa “mão” (2.15). A derrota infligida pelos amorreus que
viviam nas montanhas mostra o abandono de Deus aos israelitas que buscam a vitória por suas
próprias forças, em oposição à palavra de Yahweh (1.42-45). Além destes incidentes, Deus,
também, executou sua ira contra aqueles homens de Israel que se entregaram à idolatria
moabita de Baal-Peor (4.3-4).

A graça e juízo de Deus são dois enfoques conjuntos expressos no Deuteronômio


para a nova fase de vida dentro da terra prometida. Se o povo abandonar a Deus e suas
ordenanças, para seguir deuses estranhos, experimentará a justa ira de Yahweh, por meio da
infertilidade da terra, doenças, fome, opressão dos inimigos e, logo, serão eliminados de
Canaã (4.25-28; 28.15-68; 29.18-28; 30.17-18). Todavia, se forem obedientes e leais a Ele,
guardando e cumprindo os seus mandamentos, certamente, gozarão de bênção plena da parte
de Yahweh, como a fertilidade humana, da terra e do rebanho, a supremacia militar e política
sobre as demais nações e a fartura de alimento (6.12-16; 28.1-14; 30.9-10).

Deuteronômio 27 e 28 é o oferecimento sincero ou de graça divina ou de juízo


divino. O fato de que Deus chega a revelar essa proposta de relacionamento constitui
graça, pois seres humanos não possuem meio algum de discernir a vontade de
Yahweh sem direção claramente dada por Yahweh. Por isso, a oportunidade de os
israelitas receberem bênçãos por fazer o que devem fazer como criaturas de Deus
representa uma graciosidade ampliada e inesperada. Rejeitar a graça traz catástrofe

90 Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 220.


91 C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the Old Testament: The Pentateuch, v. 3, p. 302-303.
21
certa. O juízo de Yahweh sempre acompanha a graça rejeitada. (House, 2005, p.
242).

A reversão da sorte israelita de juízo para a graça é algo significativo, também, em


Deuteronômio. O destaque dado ao arrependimento, caracterizado pelo verbo hebraico
(vWb) em Deuteronômio 4.29-31 e 30.1-10, mostra a Israel que, mesmo em meio à
desgraça nacional do cativeiro como julgamento divino por sua apostasia, há esperança de
restauração em seu relacionamento com Yahweh e de retorno ao desfrute de suas bênçãos. Tal
certeza do perdão e restauração divinos se dá pela misericórdia de Yahweh, expressos pelo
verbo (r>j^m) e o adjetivo  (r~jWm) nos textos de 4.31 e 30.3. Mas, isso requer um
arrependimento de “todo o teu coração” e “toda a tua alma”, isto é, uma inclinação à voz do
Senhor “segundo tudo o que hoje te ordeno” (4.29 e 30.2).

A resposta divina de salvação ou de julgamento à obediência ou desobediência de


seu povo, bem como o arrependimento como ponto conversor do juízo para a graça, servem
de base teológica para historiografia israelita de Josué a Reis. 92 Em linhas gerais, pode-se
concordar com o que Norman Gottwald afirma sobre a perspectiva histórico-teológica
deuteronômica dos Profetas Anteriores:

Representações e avaliações destes períodos [de Moisés até o exílio] são formuladas
em relação como a Lei dada a Israel por meio de Moisés (Dt 12-26), foi cumprida ou
violada no decorrer da história. O Deuteronômio serve de liderador programático do
bloco para o que se segue em Josué até Reis (...) É característico do autor-
compilador de HD [História Deuteronomista] suprir os principais períodos históricos
com passagens interpretativas na forma de exames introdutórios e sumários,
discursos e orações (...) Estes suplementos interpretativos periodizam e matizam os
materiais mais antigos incluídos e ligam os quatro períodos históricos segundo o
programa moral-teológico estabelecido no Deuteronômio (Gottwald, 1988, p. 180).93

Diante disso, nesta parte da dissertação, serão abordados, de forma sucinta, os textos
de Josué 23, Juízes 3.7-11, 1 Samuel 7.2-14 e 2 Reis 17.7-23, que exemplificam o uso da
moldura pactual deuteronômica para a compreensão da história israelita.94

92 Roy D. WELLS, “Deuteronomist/Deuteronomistic historian”. In: Watson E MILLS, Roger Aubrey


BULLARD (Eds), Mercer Dictionary of the Bible, p. 210-211; Walter C. KAISER, Teologia do Antigo
Testamento, p. 140-146; Anthony F. CAMPBELL, Mark A. O’BRIEN, Unfolding the deuteronomistic history:
origins, upgrades, present text, p. 14-15.
93 Este autor discorda de Gottwald quando o mesmo afirma que certos discursos e orações foram “colocados

freqüentemente na boca de personagens principais” e que os suplementos interpretativos da História


Deuteronômica são sempre posteriores os “materiais mais antigos” (cf. Norman K. GOTTWALD, op. cit., p.
180). Há uma convicção por parte do autor de que os materiais interpretativos da HD possuem fundamento
históricos, não sendo invenções de um historiador deuteronomista.
94 Steven MACKENZIE, “Deuteronomistic history”. In: D. FREEDMAN (Ed.), Anchor Bible Dictionary, p. 161.

22
Em Josué 23, após a conquista inicial e fundamental de Canaã (v. 1), o líder nacional
convocou a liderança de Israel e os exortou a darem seqüência à tomada da terra prometida
(vv. 2-4). A conquista é vista como bênção graciosa de Deus dada a Israel (v. 3, 9-10) em
resposta à confiança e obediência do povo a Ele (vv. 6-8; cf. 1.6-9).95 Ao mesmo tempo, há
uma ameaça prevista por Josué que reflete a perspectiva deuteronômica: se Israel não cumprir
o mandamento divino de eliminar as nações que ainda restam diante de si (v. 12; cf. Dt 7.1-6)
e se prostituir diante de seus deuses (v. 16), será disciplinado por Deus e eliminado da terra
(v. 13, 15).96

No texto de Juízes 3.7-11, há a primeira narrativa específica sobre a história cíclica


que caracterizou este período. Os israelitas desobedecem a Deus e se prostituem perante os
deuses cananeus (v. 7), então, Yahweh os pune em sua ira com um governante estrangeiro
opressor (v. 8; cf. Dt 28.25, 33). A nação se volta arrependida para Deus, clamando por
libertação (v. 9),97 e o Senhor em sua graça infinita atende o clamor de seu povo e o liberta da
opressão, revertendo a situação de juízo para a bênção da paz na terra (vv. 10-11; cf. Dt 4.30-
31).

1 Samuel 7.2-14 inicia com a descrição do clamor israelita em meio à opressão


filistéia (7.2-3). A razão para tal desventura, novamente, é sua deslealdade a Yahweh na
prática da idolatria (v. 3). Diante do apelo do profeta Samuel, o povo se arrepende de tal
maldade e reconhece seu pecado diante do Senhor, lança fora suas imagens e passa a cultuar
unicamente a Yahweh (vv. 3-6). Devido à disposição do povo em ouvir a palavra do profeta e
obedecer ao Senhor, este lhes concede vitória na batalha contra os filisteus, juntamente com a
reconquista de suas cidades e libertação das mãos de seus inimigos num novo período de paz
(vv. 8-14).

O historiador do livro de Reis busca explicar o cativeiro do Reino do Norte mediante


uma fundamentação teológica claramente deuteronômica. Israel demonstra ingratidão para
com seu Deus que o tirara do Egito e se envolve tanto com os deuses da terra de Canaã quanto
com a prática idólatra introduzida pelos seus reis (vv. 7-12, 21-22; cf. Dt 4.15-20). O texto
descreve o envolvimento israelita com a adoração ao exército celestial (v. 16; cf. Dt 13.2-6) e

95 Anthony F. CAMPBELL, Mark A. O’BRIEN Unfolding the deuteronomistic history: origins, upgrades,
present text, p. 160-161.
96 Norman K. GOTTWALD, Introdução socioliterária à Bíblia hebraica, p. 181.
97 Cf. 1 Samuel 12.9-10. Ver Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 229-

230; Walter C. KAISER, Teologia do Antigo Testamento, p. 142. Para uma posição diferente, que vê o
arrependimento de Israel como superficial, cf. K. GOTTWALD, op. cit., p. 184.
23
com a idolatria comum em Canaã, chegando ao ponto de oferecerem seus próprios filhos em
sacrifício (v. 16-17; cf. Dt 12.30-31). Apesar do chamado profético para que o povo se
voltasse (vWb) para Deus em uma obediência completa (v. 13), conforme a esperança
Deuteronômica da reversão de sorte,98 não houve qualquer resposta positiva da parte do povo
(vv. 14-15).99

Diante da contínua dureza de coração de Israel para ouvir o chamado divino, tanto a
população do reino do Norte quanto Judá são eliminados da terra (vv. 18-20, 23),100 como
cumprimento da palavra divina anunciada por Moisés nas planícies de Moabe (cf. Dt 4.25-27;
28.49ss).

Mediante os exemplos acima, torna-se nítida a influência exercida pelo


Deuteronômio sobre a maneira como os autores da historiografia sagrada, de Josué a Reis,
enxergavam a história da nação, desde sua conquista até o cativeiro. Deus julga o seu povo
quando este o desobedece, ao mesmo tempo, o abençoa quando o povo se arrepende, anda em
fidelidade e confia nele. Isso abre espaço para a análise mais específica do texto de 1 Samuel
1.1 – 2.10 e sua relação histórico-teológica com o Deuteronômio.

98 Walter C. KAISER, Teologia do Antigo Testamento, p. 142.


99 K. GOTTWALD, Introdução socioliterária à Bíblia hebraica, p. 220.
100 Anthony F. CAMPBELL, Mark A. O’BRIEN, Unfolding the deuteronomistic history: origins, upgrades,

present text, p. 441-442.


24
2. A TEOLOGIA DA HISTÓRIA E POÉTICA DE ANA E SUA RELAÇÃO COM O
DEUTERONÔMIO

Como assinalado acima, a influência teológica e de perspectiva histórica do livro de


Deuteronômio sobre a literatura dos Profetas Anteriores é muito perceptível. “Vários outros
traços estilísticos, lingüísticos e temáticos são compartilhados pelo livro de Deuteronômio até
o livro de Reis”.101 Assim, este capítulo observará os principais temas teológicos encontrados
na narrativa de 1 Samuel 1.1-28 e na poesia de 1 Samuel 2.1-10, que evidenciam conexões
importantes com a obra central de Deuteronômio.

2.1. Introdução à Narrativa e Poesia de 1 Samuel 1.1 – 2.10

A narrativa da desventura de Ana e sua libertação por meio da dádiva divina de um


filho (1 Sm 1.1-28), geralmente, é vista como parte de um bloco de tradição maior da obra de
Samuel que inclui os capítulos 1 – 3, conhecida como coleção das “tradições de Siló”, 102
usada pelos editores deuteronomistas que mantiveram a narrativa basicamente intacta, com
pequenas adições.103 O bloco que contém o relato do nascimento de Samuel e seu surgimento
como profeta de Yahweh (3.1 – 4.1a), também, é visto como parte de tradições proféticas
contidas no livro.104

O cântico de Ana (2.1-10), por sua referência ao rei (v. 10), sugere, para muitos
teólogos, uma redação posterior à época dos juízes, mais propriamente durante a monarquia e,
possivelmente, anterior ao exílio.105 Há a proposta de que devido às expressões “inimigos”,
“libertação”, “não é pela força que o homem prevalece,” et al, o Sitz im Leben da composição

101 Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible
commentary, v. 3, p. 556.
102 Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 31; Mary J. EVANS, 1 and 2 Samuel, p. 4;

Robert P. GORDON, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 22-24.


103 Claus WESTERMANN, Handbook to the Old Testament, p. 104; Anthony F. CAMPBELL, Mark A.

O’BRIEN, Unfolding the deuteronomistic history: origins, upgrades, present text, p. 220; Robert P. GORDON,
op. cit., p. 22-24; Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. XXX; Marc BRETTLER, The composition of 1 Samuel 1 and
2. Journal of Biblical Literature, v. 116, no. 4, 1997, p. 601-612.
104 Anthony F. CAMPBELL, Mark A. O’BRIEN, op. cit., p. 220; Joyce G. BALDWIN, op. cit., p. 32; Claus

WESTERMANN, op. cit., p. 104, 109.


105 Ralph W. KLEIN, op. cit., p. 14-15; Robert P. GORDON, op. cit., p. 23; Anthony F. CAMPBELL, Mark A.

O’BRIEN, op. cit., p. 221-222.


25
deva ter ocorrido numa situação de vitória militar israelita contra um inimigo estrangeiro. 106
Para este autor é totalmente improvável que o cântico fora composto posteriormente e nada
tivesse a ver com a história que o editor de Samuel relaciona pelas palavras w^tT]tP^L@l
j^N> w^tT)am^r (“e orou Ana ao Senhor, dizendo:”). A sugestão de Joyce Baldwin,
iluminada pelo comentário de Albright, de que Ana possa ter cantado um hino antigo,107 o
qual fazia parte de uma coletânea de outros cânticos, é bem provável. 108 Além disso, não
existe qualquer impedimento de se ver o verso 10 como um suplemento posterior ao cântico,
na época do advento da monarquia, assim como ocorreu na edição pós-exílica do Salmo 51 de
Davi (cf. vv. 18-19).109

Não há a necessidade de se adotar a tese de Noth ou as propostas derivadas dela, de


um autor ou editores deuteronomistas exílico(s) e pré-exílicos e, assim, pressupor os Profetas
Anteriores como uma produção conjunta.110 Como Baldwin pontuou:

Depois de 200 anos de crítica bíblica no Ocidente, é preciso encarar o fato de que
mesmo conceitos estabelecidos, tais como o Pentateuco, têm sido abalados por
teorias conflitantes quanto à autoria. Na ausência de critérios objetivos, não há
qualquer maneira, fora do consenso entre os estudiosos, que dura algum tempo,
porém aberto a novas tendências, de avaliar todo o árduo trabalho dispendido [sic]
na busca de fontes, mas que resultou num número tão variado de possibilidades.
(1996, p. 33)

Sem dúvida alguma, o livro de Samuel foi produto de um trabalho editorial, que uniu
fontes das várias épocas da história de Israel e as tornou compreensíveis dentro de uma grande
narrativa.111 A edição do livro deve ter ocorrido, pelo menos, posteriormente ao fim do
reinado de Davi (970 a.C.), desde que reporta “as últimas palavras” do rei (2 Sm 23.1).112
Provavelmente, foi composto durante a monarquia dividida, após 930 a.C., devido à indicação
de que Ziclague pertencia aos reis de Judá “até os dias de hoje” (1 Sm 27.6).113 A ausência de

106 Robert P. GORDON, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 79; Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. 15.
107 Êxodo 15 e Juízes 5 trazem dois exemplos de poesia antiga.
108 Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 61-62; Cf. Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2

Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 79.
109 Robert P. GORDON, op. cit., p. 23; Joyce G. BALDWIN, op cit., p. 62-63.
110 Para a proposta de Noth e outros insights a partir dela tanto para os Profetas Anteriores quanto para Samuel,

ver: Martin NOTH, The Deuteronomistic History, passim; Anthony F. CAMPBELL, Mark A. O’BRIEN,
Unfolding the deuteronomistic history: origins, upgrades, present text, passim.; Ralph W. KLEIN, op. cit., p.
XXVIII-XXXII; Robert P. GORDON, op. cit., p. 20-21.
111 Mary J. EVANS, 1 and 2 Samuel, p. 2; William S. LASOR, David A. HUBBARD, Frederic W. BUSH,

Introdução ao Antigo Testamento, p. 180. Ver, por exemplo, a menção ao “livro dos Justos” em 2 Samuel 1.18.
112 Ronald F. YOUNGBLOOD, op. cit., p. 554.
113 Id., Ibid.; Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 253.

26
qualquer menção à queda de Samaria pode indicar que a obra fora concluída até antes de 722
a.C.114 Portanto, é plausível uma datação para a edição do livro entre 930 e 722 a.C.

A história narrada no primeiro capítulo do livro de Samuel e que serve como pano de
fundo para a poesia cantada por Ana, ocorre no final da época tenebrosa dos juízes, quando
Eli exercia tal função de liderança em Israel (cf. 1 Sm 4.18).115 O texto começa com a
genealogia de um homem chamado Elcana que, provavelmente, era um levita (cf. 1 Cr 6.16,
22, 31-33) cuja família vivia na região montanhosa de Efraim, no povoado de Ramataim ou
Ramá (1 Sm 1.1; cf. 1.19; 7.17).116

Elcana é retratado, logo no início da narrativa, como um bígamo cujas esposas se


chamavam Ana, a primeira, e Penina, a segunda (1 Sm 1.2).117 Tal situação sugere que Elcana
era um homem de posses118 e, provavelmente, tomou uma segunda esposa com o propósito de
dar seqüência à sua descendência, já que Ana era estéril. 119 Este fato serve como introdução
ao ponto central da narrativa.

Era costume de Elcana subir, anualmente, talvez durante a festa dos tabernáculos (cf.
Jz 21.19-21),120 ao santuário em Siló que, desde a conquista, ocupava uma posição central na
vida cúltica israelita e passou a ser o lugar onde repousava a Arca da Aliança (Js 18.1; Jz
18.31; 1 Sm 4.3-4).121 Ali, ele cumpria seus deveres como adorador de “Yahweh dos
exércitos”,122 oferecendo sacrifícios (1 Sm 1.3). Siló era o lugar onde vivia o sacerdote e juiz
Eli, juntamente com seus dois filhos, Hofni e Finéias, os quais serviam a Yahweh no
santuário. Ambos são introduzidos nesta passagem como contraponto à piedade de Elcana,
pois, a maldade dos dois será desmascarada mais à frente na narrativa (cf. 1 Sm 2.12ss).123

114 Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 253.


115 Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible
commentary, v. 3, p. 571; Carlos Osvaldo PINTO, op. cit., p. 267; Robert P. GORDON, 1 & 2 Samuel: a
commentary, p. 71; Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. 8.
116 Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 56-57.
117 A seqüência em que os nomes aparecem na apresentação das duas esposas, juntamente com a indicação de

que Ana era a primeira ( - a^j^t) e Penina, a segunda ( - h^v@n't), sugerem fortemente que os
casamentos ocorreram em tal seqüência. Ver, também, KLEIN, Ralph W. op. cit. p. 6.
118 Ronald F. YOUNGBLOOD, op. cit., p. 571.
119 Ralph W. KLEIN, op. cit., p. 6; Ronald F. YOUNGBLOOD, op. cit., p. 572.
120 William S. LASOR, David A. HUBBARD, Frederic W. BUSH, Introdução ao Antigo Testamento, p. 181;

Robert P. GORDON, op. cit., p. 71.


121 J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 36; Ronald F. YOUNGBLOOD, op. cit., p.

571.
122 Para uma explicação sobre o sentido do termo e sua origem, ver o sub-ponto seguinte deste trabalho e os

comentários de Robert P. GORDON, op. cit., p. 71-72; Ronald F. YOUNGBLOOD, op. cit., p. 571.
123 Joyce G. BALDWIN, op. cit., p. 58.

27
A refeição familiar em acompanhamento ao sacrifício sugere que Elcana oferecia
ofertas pacíficas, nas quais o adorador compartilhava do alimento com os sacerdotes (1 Sm
1.4-5; Lv 7.11-18).124 Neste momento, a diferença gritante entre Ana e Penina ficava nítida,
pois, esta compartilhava de tal momento com “todos os seus filhos e filhas”, enquanto a outra,
apesar de receber uma parte honrosa da refeição de seu marido, 125 deparava-se com os
resultados solitários da infertilidade. Somado a isso, Penina, ao perceber a afeição maior do
marido por Ana, irritava-a de modo insistente e excessivo, o que gerava maior tristeza e ira
em Ana (1 Sm 1.6-8).126

Diante da provocação constante da rival, numa das peregrinações ao santuário em


Siló, Ana derrama sua alma diante de Yahweh, reconhece sua posição de serva e clama pela
bênção de um filho, o qual promete dedicar ao Senhor como um nazireu (1 Sm 1.9-11; cf. Nm
6.1-21; Jz 13.5).127 Em meio a tamanha dor e angústia, Ana orava em voz baixa, apenas com
os lábios em movimento (1 Sm 1.12-13), um modo diferente das orações cúlticas israelitas
(Ver Sl 3.4; 64.1).128 Isso levou o sacerdote Eli a julgá-la e repreendê-la por embriaguez, já
que havia bebida em festas religiosas (1 Sm 1.13-14; cf. Jz 21.19-21; Is 28.7).129 Logo após a
repreensão do sacerdote, Ana explica sua situação de angústia e de oração perante Yahweh,
em total sobriedade (1Sm 1.15-16). Eli percebe a sinceridade dela e invoca a bênção de Deus
sobre sua petição (v. 17; cf. Nm 6.22ss).

Confiante na resposta divina ao seu pedido, talvez por ouvir a bênção sacerdotal, 130
Ana volta para participar da refeição religiosa, não mais triste como antes (vv. 18). O texto
comenta que, após isso, Yahweh agiu em prol de Ana e lhe concedeu um filho, a quem deu o
nome de Samuel, reconhecendo que seu pedido fora “ouvido por Deus” (1 Sm 1.19-20).131

124 Mary J. EVANS, 1 and 2 Samuel, p. 16; Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 58.
125 H.W. HERTZBERG, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 24. Hertzberg sugere alguns sentidos possíveis para a
palavra hebraica  (a^pP`y!m) que ajudam no entendimento desta expressão incomum.
126 Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible

commentary, v. 3, p. 571-572.
127 Joyce G. BALDWIN, op. cit., p. 59; Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. 8; Mary J. EVANS, op. cit., p. 18.
128 H.W. HERTZBERG, op. cit., p. 25; William S. LASOR, David A. HUBBARD, Frederic W. BUSH,

Introdução ao Antigo Testamento, p. 182.


129 Ralph W. KLEIN, op. cit., p. 9; H.W. HERTZBERG, op. cit., p. 25.
130 Joyce G. BALDWIN, op. cit., p. 59; H.W. HERTZBERG, op. cit., p. 25; Ronald F. YOUNGBLOOD, op. cit.,

p. 574.
131 Tony W. CARTLEDGE, Hanna asked and God heard. Review and Expositor, v. 99, Spring 2002, p. 143-144.

Cartledge oferece uma boa explicação para o nome, com exemplos da literatura do oriente antigo, na qual Ana
reconhece que Deus ouvira sua oração. Assim o nome (v+mWa@l) deriva da junção do verbo (vmU) no
particípio passivo e o substantivo  (a@l), significando “ouvido por Deus”. Ver a mesma proposta etimológica
do nome em C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the books of Samuel, p. 25.
28
No decorrer da narrativa, fica claro que a dedicação do menino a Deus incluía sua
consagração ao trabalho no santuário por toda a vida (1 Sm 1.21-22). Seu marido Elcana
consente com o voto da esposa (cf. Nm 30.6-8, 10ss),132 e invoca a capacitação divina para
que Ana cumpra com seu compromisso perante Yahweh (v. 23).133 Isso ocorre,
provavelmente, por volta dos três anos de idade ou um pouco mais, depois que Samuel é
desmamado (cf. 2 Macabeus 7.27).134 Quando sobe para entregar o menino aos cuidados de
Eli, para o serviço de Yahweh, em Siló, Ana leva as ofertas necessárias, e as oferece em sinal
de gratidão a Deus (1 Sm 1.24-25).135 Então, lembra a Eli de que Samuel era a resposta
graciosa divina àquela oração em que se derramara diante de Deus, na presença do próprio
Eli, clamando por um filho (1 Sm 1.25-27).136 Finalmente, o menino é confiado aos cuidados
do sacerdote e dedicado a Yahweh por toda a sua vida (v. 28).

Com tal introdução ao texto e panorama da história, agora, passa-se a empreender a


tarefa de compreensão da teologia que permeia o texto de 1 Samuel 1.1 – 2.10 em sua relação
com o Deuteronômio.

2.2. A Teologia da Narrativa e Poesia de Ana e Sua Perspectiva Deuteronômica

A história e cântico de Ana apresentam uma riqueza de temas teológicos sobre Deus,
sua ação na história e o viver piedoso de uma israelita na terra concedida por Yahweh, em seu
amor leal a Israel. Nesta parte do trabalho, serão desenvolvidos aqueles pontos que mais se
destacam no texto e que possuem uma conexão clara com o Deuteronômio.

2.2.1. A ação soberana e compassiva de Yahweh em favor dos escolhidos e


necessitados

Um ponto teologicamente importante, visível tanto na narrativa quanto na poesia de


Ana, é a atividade soberana e graciosa de Deus na história, agindo em favor dos piedosos e

132 H.W. HERTZBERG, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 28; Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In:
Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 574.
133 Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 60; Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p.10.
134 Mary J. EVANS, 1 and 2 Samuel, p. 19; Robert P. GORDON, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 77; H.W.

HERTZBERG, op. cit., p. 28


135 As observações de Baldwin em favor da leitura do texto Massorético no verso 24 (“três novilhos”) são bem

plausíveis. Ela observa que havia três ofertas a serem feitas por Ana, conforme instituído pelo livro de Levítico:
a oferta queimada, a de purificação e a oferta pacífica em cumprimento de um voto. Além disso, um efa de
farinha equivalia a três vezes mais da quantidade normal a ser oferecida com um touro (Nm 15.9). Ver Joyce G.
BALDWIN, op. cit., p. 60.
136 Há um nítido jogo de palavras com o verbo (v*a^l) no versos 27-28 que ressalta a gratidão de Ana por

receber o que “pediu” do Senhor e alegremente o “devolver” ou “dedicar”. Ver Robert P. GORDON, op. cit., p.
78; Ronald F. YOUNGBLOOD, op. cit., p. 577-578.
29
necessitados.137 Desde o início da história, Yahweh se encontra ativo. Primeiramente, Ele é o
responsável pela esterilidade de Ana, ao “fechar seu ventre” (1 Sm 1.5-6). Em momento
algum a narrativa sugere que a esterilidade se dá como castigo divino por algum pecado
cometido por ela (cf. Dt 28.1, 4, 8).138 Tal ação de Deus ocorre com o alvo de destacar Sua
graça e soberania na concessão posterior de um filho a uma mulher estéril, completamente
incapaz de gerar descendentes por suas próprias forças (1 Sm 1.19-20).139 Isso propicia uma
total dependência de Deus por parte de Ana, expressa em sua oração de petição (1.11 - “se
atentares”; “se te lembrares”; “se deres”; “tua serva”, três vezes) e no cântico de
agradecimento (2.5), ressaltando um propósito didático pelo qual Yahweh permite situações
adversas na vida de seus fiéis, a fim de conduzi-los à confiança exclusiva nele.

O Senhor não apenas administra o sofrimento na vida de seu povo, mas,


principalmente, propicia a sua libertação. Diante do clamor de Ana (1 Sm 1.11, 15-16), Deus
se “lembra” (z`k^r) dela e a liberta de sua infertilidade (1.19-20), assim, como “lembrou-se”
(z`k^r) da aliança com Israel e o salvou, quando este clamava ao Senhor pela libertação da
escravidão imposta pelos egípcios (Êx 2.23-24; 6.5-6).140 A “lembrança” divina é um
antropomorfismo, indicando não um esquecimento anterior, mas “uma superintendência dos
eventos em direção à sua desejada, ou prometida, conclusão”.141

A salvação divina é por demais enfatizada na poesia do capítulo 2. A canção usa


metáforas vívidas que retratam muito bem a alegria de Ana em Yahweh. A expressão “em
Yahweh” (B^yhwh), repetida no verso 1, deixa claro de quem Ana depende e quem é o
grande herói e personagem da sua história. Ao contrário de Penina, que se gaba de sua
capacidade reprodutora, o coração de Ana festeja em Deus. A figura do chifre erguido pelo
animal consciente de sua força e vitória (Dt 33.17),142 juntamente com a metáfora da boca que
se alarga sobre seus inimigos, numa atitude de desprezo (Sl 35.21; Is 57.4),143 lembram que as
provocações contínuas da esposa rival foram vindicadas (1 Sm 2.1; cf. 1.6-7). Porém, é Deus

137 Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 261-261.


138 Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. 7.
139 Thomas L. CONSTABLE, Notes on 1 Samuel, p. 9.
140 Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 59.
141 Robert P. GORDON, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 76.
142 Ralph W. KLEIN, op. cit., p. 15; Marjorie MENAUL, 1 Samuel 1 and 2. Interpretation, v. 55, n. 2, April

2001, p. 176; C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the books of Samuel, p. 30.
143 Robert P. GORDON, op. cit., loc. cit.; Ralph W. KLEIN, op. cit., p. 15.

30
quem vindica Ana (Dt 32.35), pois Yahweh ouviu sua oração e efetuou tamanha salvação em
seu favor, ao conceder-lhe o filho (“me alegro em Tua salvação”).144

Os necessitados experimentam da graça ativa de Deus em suas vidas. Se o verso 1


enfatiza o agir de Deus para com aqueles que nele esperam, o verso 8 ressalta a carência dos
que são objeto do seu amor. Ambos os adjetivos d`l (“pobre” - ARA) e a#byom
(“necessitado” - ARA) se interconectam em seus significados, apesar de possuírem nuances
diferentes em seu campo semântico.145 Aqui o sentido básico para ambos é de pobreza,
alguém sócio-economicamente carente, sem qualquer recurso.146 Pois, o contexto em que se
encontram é o “pó” e o “monte de cinzas” ou “monturo”.

O vocábulo U`p`r (“pó”) é uma expressão figurativa para uma condição de


humildade, fragilidade ou insignificância (cf. Gn 18.27; 103.14),147 indicando que o homem
depende do Deus que o “formou do pó da terra” (Gn 2.7).148 A outra palavra a^vp)t
(“monturo”, “lixão”) aponta para o lugar na parte externa de uma cidade, onde os mendigos se
assentavam durante o dia para pedir esmolas e, à noite, dormir.149 O quadro de miséria
daqueles em prol de quem Yahweh age fica patente.

Deus reverte a condição do necessitado, em sua infinita bondade, tirando-o do


monturo e o fazendo assentar-se juntamente com os “nobres” ou “príncipes”. Estes são
retratados como autoridades entre o povo (Nm 21.18; Pv 8.16) e assentar-se no meio deles é
um claro sinal de honra (Pv 25.6-7). Além disso, Yahweh concede aos necessitados um “trono
de glória”, termo que se refere ao seu próprio trono no templo (Jr 14.21; 17.12) e a uma
posição de poder inabalável e gloriosa (Is 22.20-23). Yahweh é capaz de realizar tal salvação

144 C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the books of Samuel, p. 30-31.


145 O primeiro adjetivo (d`l) pode se referir a alguém de condição sócio-econômica baixa e carente de recursos
(ver Êx 30.15; Lv14.21; Jó 31.16; Pv 19.4, et al), mas, também, a um grupo político enfraquecido (2 Sm 3.1), ou
a um corpo adoecido (2 Sm 13.4). Já o segundo (a#byom) foca apenas no necessitado sócio-economicamente (Êx
23.11; Dt 15.7; Et 9.22; Jó 31.19, et al).
146 Ver outras passagens em que os adjetivos são usados paralelamente nesse mesmo sentido (Sl 72.13; 82.4;

113.7; Pv 14.31; Is 14.30; Am 8.6).


147 J. W. GESENIUS, Hebrew and English lexicon of the Old Testament including the biblical Chaldee. p. 505;

F. BROWN, S. DRIVER, C. BRIGGS, The Brown-Driver-Briggs Hebrew and English lexicon, p. 780. Wanke
destaca a relação do termo com a humilhação, o abatimento e a insignificância como um estado causado ou
extinto por Yahweh, seja no abatimento e destruição de cidades (“lança ao pó”, Is 25.12 e 26.5) ou na remoção
da degradação e da insignificância experimentadas por uma pessoa (“ergue do pó”, 1 Sm 2.8; 1 Rs 16.2). Ver G.
WANKE, “”. In: Ernst JENNI, Claus WESTERMANN, Theological lexicon of the Old Testament, v. 2, p.
940.
148 Ronald B. ALLEN, “”. In: Laird R. HARRIS, Gleason L. ARCHER, Jr., Bruce K. WALTKE, Dicionário

internacional de teologia do Antigo Testamento, p. 1152.


149 Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. 18; Robert P. GORDON, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 80; F. BROWN, S.

DRIVER, C. BRIGGS, op. cit., p. 1046.


31
e benfeitoria em favor de pessoas completamente miseráveis, porque é o Criador e o
Sustentador Soberano deste mundo (parte final do verso 8).150

Como já destacado anteriormente, o livro de Deuteronômio também mostra Deus


ativo na história de seu povo. Assim como Yahweh administrou o sofrimento da infertilidade
na vida de Ana, a fim conduzi-la a uma dependência e à percepção de que é Ele quem faz a
estéril “ser mãe de sete filhos” (1 Sm 1.11, 15-16; 2.5), do mesmo modo, Moisés já declarara,
anteriormente, que Deus permitira a humilhação de Israel durante o deserto, com o propósito
de ensiná-los a depender completamente de Yahweh para o seu suprimento, confiando em
suas promessas e obedecendo à sua palavra (Dt 8.2-6).151 Isso os protegeria de confiarem em
suas próprias forças e capacidades quando viessem a prosperar na terra prometida (Dt 8.12-
18).

A recordação das dificuldades enfrentadas no deserto produziria um espírito de


humildade em Israel. Já durante os quarenta anos de peregrinação Deus ensinara a
Israel a absoluta dependência dEle para seu suprimento de água e comida. Fome e
sede não poderiam jamais ter sido satisfeitos por auxílio humano, somente por Deus.
(Thompson, 1982, p. 130)

A temática da libertação divina em prol de seu povo eleito e necessitado possui uma
conexão importante entre 1 Samuel 1.19-20 e 2.1, 8 e o quinto livro do Pentateuco. Neste
último, diversas vezes, Israel é descrito como povo que se encontrava debaixo da escravidão
egípcia, sem qualquer expectativa de libertação por suas próprias forças (Dt 5.6, 15; 6.12, 21;
7.8; 8.14; 13.5, 10; 15.15; 24.18, et al).152 A angústia da escravidão chega a ser retratada de
modo vívido como uma fornalha de ferro (4.20).153 Tal condição destaca o agir de Yahweh em
favor de seu povo, que, com seu poder grandioso (3.24; 4.34; 5.15; 6.22; 7.19), tira Israel de
seu Sitz im Leben de fraqueza e miséria (4.20, 37; 5.6, 15; 6.12, 21; 9.12) e o conduz a uma
posição honrada, em uma terra própria e abençoada (4.38; 6.10, 23; 7.1; 8.7; 32.20). Se Israel
vivesse de modo piedoso na terra, experimentaria o favor de seu Deus, o qual exaltaria o
antigo povo escravo a uma posição de domínio sobre as nações (Dt 15.5-6).

150 Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible
commentary, v. 3, p. 581; Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. 18; C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary
on the books of Samuel, p. 33. Aqui, opta-se pelo Texto Massorético, cuja leitura é mais difícil do que a da LXX
e, portanto, mais provável.
151 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), op. cit., v. 3, p. 75.
152 O substantivo hebraico  (U#b#d) aparece 29 vezes em Deuteronômio, em 12 ocorrências caracteriza tanto o

Egito como a “casa de servidão (lit. dos servos)” e o próprio povo de Israel como “servo” ou “servos” de Faraó,
ou no Egito.
153 Earl S. KALLAND, op. cit., p. 45-46.

32
O regozijo de Ana pela “salvação” (y+vW>) concedida por Yahweh diante de sua
rival (a{y+b'm) (1 Sm 2.1), faz coro à proclamação mosaica de que o Senhor é quem peleja
por Israel contra seus inimigos (a{y+b'm) e lhe dá salvação (y+vW>) (Dt 20.4; 33.29).

2.2.2. A expressão da justiça de Yahweh por meio do julgamento dos ímpios


orgulhosos e da bênção dos fiéis humildes

O retrato do fiel como aquele que depende exclusivamente de Yahweh para a sua
salvação, no verso 1 do capítulo 2, contrasta fortemente com os orgulhosos do verso 3, os
quais não levam em conta o caráter supremo do Deus de Israel e confiam em si mesmos. A
reversão de sortes descrita na seqüência (vv. 5-7), precisa ser vista à luz desta ênfase do
julgamento de Yahweh sobre os soberbos e sua bênção aos fiéis.154

A declaração enfática no tricólon de 1 Samuel 2.2 acerca da singularidade de


Yahweh em poder e majestade, prepara o palco para outras declarações sobre o caráter de
Deus e para a advertência contra os soberbos no verso 3.155 Yahweh é descrito como a}l
D}uot, literalmente “Deus de conhecimentos”, uma referência à onisciência divina, já que o
substantivo D}u> (“conhecimento”, “sabedoria”) encontra-se no plural. 156A onisciência de
Deus é aplicada à sua capacidade de “pesar” ou “examinar” as ações humanas,157 pois, o
verbo hebraico T*k^n (“examinar”, “sondar”, “pesar”), geralmente, como referência a Deus
enquanto sujeito e ao homem como objeto, traz a idéia do exame profundo de Yahweh do
coração ou espírito humano e suas motivações (Pv 16.2; 21.2; 24.12).

Diante da reversão de sortes nos versos 4 e 5, e das declarações explícitas sobre a


ação de Deus no mundo dos homens em 6-8, T*k^n deve apresentar, também, a idéia de um
exame judicial, em forma retributiva, segundo o padrão de justiça divino. 158 Portanto, o texto

154 John A. MARTIN, The Literary Quality of 1 and 2 Samuel. Bibliotheca Sacra, v. 141, no. 562, April-June
1984, p. 135-136; Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 63-64; Robert P. GORDON,
1 & 2 Samuel: a commentary, p. 79.
155 H.W. HERTZBERG, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 30; Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In:

Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 580.


156 Ronald F. YOUNGBLOOD, op. cit., p. 582; Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. 16; C. F. KEIL, F. DELITZSCH,

Biblical commentary on the books of Samuel, p. 31. Esse detalhe parece ser ignorado ou desprezado pelas
versões em português Revista e Atualizada, Nova Versão Internacional e Revista e Corrigida. Já a Bíblia de
Jerusalém apresenta maior sensibilidade a tal aspecto lingüístico e traduz a expressão hebraica como “Deus
cheio de saber”.
157 Ver o mesmo entendimento do texto em Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 290.
158 Provérbios 24.12 apresenta este conceito duplo: “Se disseres: ‘Não o soubemos’, não o perceberá aquele que

pesa [T*k^n]os corações? Não o saberá aquele que atenta para a tua alma? E não pagará ele ao homem segundo
as suas obras?” (grifo do autor). Ver ; Robert P. GORDON, op. cit., p. 79; Ronald F. YOUNGBLOOD, op. cit.,
33
enfatiza o exercício do justo juízo de Yahweh sobre as ações humanas, pois ele é capaz de
sondar seus corações e avaliar com retidão os seus atos.159

Os versos 4 e 5 aplicam a reversão de sortes às situações específicas da vida.


Enquanto os que confiam em seu material bélico são quebrados por Deus (v. 4; cf. Ez 49.35;
39.3), os que tropeçam porque mal conseguem manter-se de pé, recebem força do Senhor e
derrotam seus inimigos (v. 4; cf. 2 Sm 22.40; Sl 18.39 [Heb. v. 40]). Os que tinham comida
em abundância, agora prestam serviços para sobreviver, enquanto os que passavam fome são
bem alimentados e engordam.160 Por fim, um exemplo que lembra a própria história de Ana: a
estéril torna-se mãe de sete filhos, uma situação ideal, símbolo de muitos descendentes (cf. Rt
4.15),161 já a que era fértil e se gabava de sua capacidade reprodutora (como era o caso de
Penina), desfalece, perdendo filhos por uma situação calamitosa (cf. o uso do verbo hebraico
a*m^l em Jr 15.9) ou tornando-se incapaz de reproduzir. A exaltação dos fracos não indica
mera condescendência divina, mas sim, que “O que importa é a obediência e confiança em
Deus”.162

Ele ajudará aqueles que se lançam sobre Ele, clamando pela provisão de que
precisam (...) Pessoas aparentemente sem importância se tornam importantes, e
aqueles que parecem ser importantes, tornam-se sem importância. O fator crucial
para eles como israelitas era sua resposta à vontade de Deus, conforme contida na
Aliança Mosaica. (Constable, 2007a, p. 13-14, itálico próprio).

Aquilo que ocorre no campo da história humana tem uma fonte sobrenatural,
explicitada nos versos 6-8. Yahweh é quem tira a vida e a dá, que põe fim à existência terrena
humana no Sheol, ou livra o fiel do mundo dos mortos por meio da cura (v. 6; cf. Dt 32.39; Sl
30.2-3).163 Tanto riqueza quanto pobreza, exaltação e humilhação provêm do Senhor (vv. 7-8).

YHWH é invocado como o Deus imprevisível que rebaixa os poderosos e soergue os


oprimidos; empobrece os ricos e enriquece os pobres; esteriliza os férteis e torna
férteis os estéreis – sempre fazendo malograr a vaidade humana e a complacência
dos excessivamente satisfeitos. (Rosenberg, In: Alter & Kermode, 1997, p. 138).

p. 580. O uso do verbo no Particípio Nifal em Ezequiel auxilia na compreensão do vocábulo com o sentido de
“ser justo” ou “ser reto”.
159 C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the books of Samuel, p. 31-32.
160 O verbo j`d~l oferece a possibilidade semântica de “engordar” ou “ser bem nutrido”. Cf. Joyce G.

BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 64; Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. 17; Robert P.
GORDON, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 80.
161 Mary J. EVANS, 1 and 2 Samuel, p. 22; Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In: Frank E.
GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 580-581.
162 Mary J. EVANS, op. cit., p. 21.
163 Ronald F. YOUNGBLOOD, op. cit., p. 581; Ralph W. KLEIN, op. cit., p. 17.

34
O final da poesia torna claro o que ficara subentendido até então. Yahweh “guarda os
pés” daquele que é “fiel” à aliança (h&s'do) (2.9).164 O substantivo h*s'd, apesar de conter
um significado amplo, mantém a idéia básica de alguém comprometido em uma aliança de
amor com Yahweh, em que o j#s#d ou “amor leal” é experimentado e demonstrado.165 Ter os
pés guardados é uma figura de linguagem originada, provavelmente, nas viagens feitas pelos
antigos israelitas que incluía, na maior parte, andar a pé por sendas rochosas e perigosas (cf.
Sl 91.11-12; 121.3).166 Portanto, a expressão indica o cuidado e proteção de Yahweh para com
os que vivem conforme sua vontade revelada (Pv 3.26),167 especialmente, proteção da morte
(Sl 56.13 [Heb. v. 14]; 116.8), já que, após ela, não há mais como louvar ao Senhor e
desfrutar de suas bênçãos (cf. Sl 6.5; 88.10-12; 115.17; Is 26.14; 38.18). Aqui há um forte
contraste com os ímpios que são retratados na seqüencia do paralelismo poético.

Os ímpios ou perversos, também, experimentam a ação divina em suas vidas, mas de


modo negativo. Eles serão silenciados (y!d*MW) nas trevas (B~j)v#k) (2.9). As “trevas”
são, geralmente, uma referência ao Sheol, i.e., a sepultura ou o lugar dos mortos (Jó 10.21-22;
17.13; 18.18; Sl 88.12; Pv 20.20).168 Tanto o Salmo 31.17 [Heb. v. 18] quanto o texto em
análise falam sobre os r+v*u'm (“ímpios”) sendo silenciados (D*m~m). Enquanto aqui eles
são silenciados “nas trevas”, no Salmo 31 isto se dá no Sheol, apontando para o sentido
intercambiável dos termos.169 Assim, a força física, a fartura de alimento e a capacidade
reprodutora de nada valem, se Deus porá fim àqueles que confiam em seus próprios recursos e
se rebelam contra a soberania dele. 170

Os que se opõem a Yahweh, confiando na própria força humana (cf. v. 9), serão
quebrados por ele, assim como o arco dos fortes (2.10; cf. v. 4, verbo j*t~t). O texto conecta
este fato com o juízo de Deus sobre as extremidades da Terra (2.10). 171 Em contraste com os
rebeldes e auto-suficientes, o rei ungido de Israel, escolhido por Yahweh para governar seu

164 Robert P. GORDON, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 80; H.W. HERTZBERG, 1 & 2 Samuel: a
commentary, p. 31.
165 Laird R. HARRIS, “”. In: Laird R. HARRIS, Gleason L. ARCHER, Jr., Bruce K. WALTKE, Dicionário

internacional de teologia do Antigo Testamento, p. 581; J Robert. VANNOY, “1 e 2 Samuel”. In: Kenneth
BARKER (Org.), Bíblia de estudo NVI, p. 420; F. BROWN, S. DRIVER, C. BRIGGS, The Brown-Driver-
Briggs Hebrew and English lexicon. p. 339.
166 J Robert. VANNOY, op. cit., p. 420.
167 Robert P. GORDON, op. cit., p. 80.
168 Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible

commentary, v. 3, p. 581.
169 Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. 18.
170 Ibid., p. 18-19.
171 Robert P. GORDON, op. cit., p. 81.

35
povo, terá sua força exaltada assim como Ana e os fiéis à aliança (v. 10 – w+y*r#m q#r#n;
cf. v. 1).172 O favor de Yahweh sobre o rei do povo escolhido reflete o conceito do Salmo
89.17-18 [Heb. vv. 18-19], no qual o monarca é retratado como pertencente ao Santo de Israel
e o instrumento pelo qual Yahweh exalta o q#r#n da nação. Assim, a bênção sobre o rei
implicava em bênção sobre o povo.173

Portanto, a visão de Yahweh como o Senhor da história e justo Juiz que abate os
orgulhosos e exalta os humildes compõe o cerne da teologia do cântico de Ana. 174 Há um
chamado à dependência e à lealdade a Yahweh e uma lembrança de que o resultado desta
escolha será uma vida realizada que desfruta das bênçãos plenas de Deus. Por outro lado, o
cântico adverte os orgulhosos, perversos e auto-suficientes de que seu estilo de vida trará um
saldo negativo de vergonha e humilhação, pois Yahweh não admite nenhum concorrente e
destrói os que desafiam seu poder ou menosprezam sua majestade. 175

A conexão entre esta ênfase da poética em 1 Samuel 2 e o Deuteronômio é bem


estreita. Já fora observado que o fator crucial subentendido para o desfrute das bênçãos de
Deus em 1 Samuel 2.1-10 é a resposta do fiel à vontade de Yahweh revelada na aliança
mosaica.176 Carlos Osvaldo Pinto reconhece que os contrastes nas histórias de Samuel, em
termos de obediência e desobediência, bênção e juízo, esboçados no cântico de Ana, 177 “têm
como ponto de referência a aliança deuteronômica”. 178

No quinto livro do Pentateuco, Canaã é o local em que Israel terá a oportunidade de


experimentar a lealdade de Yahweh e onde sua própria lealdade ao Senhor da aliança será
testada (e.g. Dt 11.8-17).179 Como os tratados de vassalagem antigos, o Deuteronômio

172 Mary J. EVANS, 1 and 2 Samuel, p. 21; Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 65.
173 Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. 19.
174 Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 267.
175 Este motif da reversão de sortes da humilhação e infertilidade para a bênção e vitalidade, e vice-versa,

conforme a fidelidade ou infidelidade à aliança, permeará todo o restante do livro de Samuel, oferecendo uma
chave hermenêutica indispensável para a compreensão de toda a narrativa desenvolvida na obra. Ver os dois
artigos de John A. MARTIN, The Structure of 1 and 2 Samuel. Bibliotheca Sacra, v. 141, no. 561, January-
March 1984, p. 31-32, 40; _________________. The Literary Quality of 1 and 2 Samuel. Bibliotheca Sacra, v.
141, no. 562, April-June 1984, p. 133-144.
176 Ver página 33. Cf. Thomas L. CONSTABLE, Notes on 1 Samuel, p. 13-14.
177 Carlos Osvaldo PINTO, op. cit., p. 266.
178 Ibid., p. 265; cf. John A. MARTIN, The Literary Quality of 1 and 2 Samuel. Bibliotheca Sacra, v. 141, no.

562, April-June 1984, p. 132; Joel ROSENBERG, “1 e 2 Samuel”. In: Robert ALTER, Frank KERMODE, Guia
literário da Bíblia, p. 138.
179 John D. W. WATTS, The deuteronomic theology. Review and Expositor, v. 74, no. 3, 1977, p. 329.

36
apresenta bênçãos e maldições enquanto sanções da aliança entre Yahweh e Israel. 180 A
obediência da nação resultaria no desfrute do favor de Deus, i.e., prosperidade, longevidade e
paz na terra, ao passo que a desobediência traria o castigo divino, doenças, infertilidade da
terra e expulsão dela (Dt 4.15-40; 8.18-20; 11.8-17, 22-32; 27.9-26; 28.1-68; 30.1-20). A
fidelidade ou infidelidade ao Deus da aliança são os critérios para o juízo ou bênção do povo
(Dt 28.1-68). Por isso, Moisés exorta os israelitas, diversas vezes, à obediência a seu Deus,
para que experimentem seu favor (Dt 4.40; 5.16; 7.9-15; 11.8-10; 13.17-18; 30.19-20).

Além da indicação da idolatria como a grande ameaça à fidelidade da nação (Dt


4.25-28; 6.12-16; 7.1-6; 11.16-17; 13.1-18; 29.23-27; 30.17-18), o Deuteronômio, do mesmo
modo que o cântico de Ana, percebe na autossuficiência um perigo extremamente pernicioso
para a permanente dependência e obediência de Israel a Yahweh. No capítulo 8 do livro,
Yahweh adverte seu povo para que, em meio à prosperidade em Canaã (vv. 12-13), não se
esquecesse de seu Deus que o trouxera até ali nem se gabasse de suas riquezas como
advindos, unicamente, de seu próprio esforço (vv. 14, 17). Tal arrogância resultaria em
deslealdade ao Senhor da aliança, ou seja, em desobediência aos seus mandamentos e na
adoração de ídolos (v. 11, 14, 19-20).

Aqui, algumas conexões lingüísticas importantes merecem atenção. Deuteronômio 8


usa o verbo c*b@^u (“estar satisfeito”, “estar farto”) para descrever a condição de
prosperidade que propiciaria a autossuficiência israelita (vv. 10, 12) e 1 Samuel 2 utiliza um
adjetivo com a mesma raiz para falar daqueles que, em meio à fartura de alimento, não
dependem de Deus para o seu sustento (v. 5). No texto deuteronômico, condena-se a atitude
arrogante dos que atribuem a sua prosperidade à própria K)^j(“força”) (Dt 8.17), do mesmo
modo, o cântico de Ana adverte que não é por sua própria K)^j que o homem prevalece, pois
está sujeito ao Senhor da história (1 Sm 2.9).

Deuteronômio 32.15-16, também, aponta a prosperidade de Israel como o contexto


de sua autossuficiência, orgulho e o conseqüente abandono da aliança e adoração a outros
deuses. 181 A relação de 1 Samuel 2.1-10 com esses dois textos de Deuteronômio é

180 J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 72; K.A. KITCHEN, Ancient Orient and Old
Testament, p. 93, 97; Moshe WEINFELD, “Deuteronomy, book of”. In: D. FREEDMAN (Ed.), Anchor Bible
Dictionary, p.180. Ver as páginas 10-11 da presente dissertação.
181 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v.

3, p. 206-207; J. A. THOMPSON, op. cit., p. 286-287.


37
significativa, pois, no cântico de Ana a soberba e autossuficiência são identificadas com a
impiedade e rebelião a Yahweh (vv. 3, 9-10).

Há outras ligações importantes entre Deuteronômio 8 e 1 Samuel 2.1-10 quanto à


reversão de sortes. Enquanto o primeiro texto desenvolve o aspecto macro no sustento
proporcionado por Deus a seu povo, em situações críticas, e na libertação deste de sua
condição de miséria e escravidão, recebendo daquele riquezas e bem-estar na terra prometida
(Dt 8.7-9, 14-16, 18), 1 Samuel 2 foca a mesma ação libertadora e abençoadora do Senhor,
mas a aplica como um princípio geral da relação de Yahweh com indivíduos da comunidade
de Israel, em situações específicas da vida (vv. 4-10).182 O mesmo ocorre quando se trata do
julgamento. Moisés anuncia o juízo de Deus sobre a nação de Israel, caso se tornasse soberba
e idólatra (Dt 8.17-20),183 e o cântico de Ana aplica tal princípio (juízo contra os orgulhosos) a
tipos particulares de indivíduos (1 Sm 2.4-5).184

A poesia de 1 Samuel 2 apresenta a sorte pessoal conforme o juízo e graça de


Yahweh, porque entende que ele é o Senhor Soberano e ativo na história, que tira a vida e a
dá (1 Sm 2.6),185 um conceito herdado de Deuteronômio 32.39 em que os mesmos verbos
hebraicos, no mesmo grau causativo, aparecem (mWt e j*y> no grau Hifil),186 e mostram a
Israel a tolice de abandonar o único Deus e a única fonte de vida.

2.2.3. O Caráter supremo, singular e protetor de Yahweh

Até aqui, foram destacados alguns temas encontrados em 1 Samuel 1 e 2.1-10


relacionados ao Deuteronômio, com ênfase na atividade de Yahweh e seu relacionamento
com os homens. Nesta última parte, certas afirmações teológicas quanto ao caráter de
Yahweh dentro da narrativa e poética de Ana receberão uma atenção especial, bem como o
matiz deuteronômico por trás dos conceitos nelas encontrados.

Interessantemente, o título divino yhwh x+b*aot (“Yahweh dos Exércitos” ou


“SENHOR dos Exércitos”) aparece pela primeira vez no Antigo Testamento dentro da

182 Por exemplo, o cântico de Ana fala sobre os “fracos” serem revestidos de força, os “famintos” engordarem, a
“estéril” dar à luz a setes filhos, o “pobre” ou “necessitado” ser exaltado à posição de príncipes e o “rei” ou
“ungido” ter sua força exaltada.
183 O juízo anunciado por Deus contra a nação por sua idolatria em Dt 8.19-20 está intimamente relacionado com

a soberba e auto-confiança dela, descritas nos versos 10-18, que levariam à adoração de outros deuses. A mesma
seqüência de infidelidade, autossuficiência seguida por idolatria, aparece em Dt 32.15-16. Cf. J. A.
THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 286-287.
184 Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 66.
185 Gail O’DAY, Singing woman’s song. Currents in Theology and Mission, v. 12, no. 4, 1985, p. 204-205.
186 Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. 17.

38
história do capítulo inicial de Samuel. 187 Uma expressão que tem chamado a atenção dos
estudiosos no debate quanto ao seu significado e conteúdo teológico.188 Muitos vêm
observando o uso abrangente do termo x*b*a tanto em relação ao exército humano de Israel
(1 Sm 17.45), como, também, em conexão aos seres angelicais (Js 5.14ss) e aos corpos
celestes (Dt 4.19; Is 40.26).189 Este último uso do substantivo ocorre apenas no singular e
nunca ligado diretamente à expressão yhwh x+b*aot.190

O contexto em que tal nome divino é aplicado parece ressaltar não tanto o caráter
guerreiro do Deus de Israel, como mais um entre os principais deuses-guerreiros das outras
nações, 191 mas, principalmente, o “majestoso esplendor do domínio de Iavé”. 192 O termo,
portanto, é “predominantemente real”. 193 No livro de Samuel, a realeza de Yahweh dos
Exércitos é bem nítida, por exemplo, em 1 Samuel 4.4: “... a arca do SENHOR dos Exércitos,
entronizado entre os querubins” (grifo do autor). Ainda que a narrativa fale sobre a batalha
entre os israelitas e os filisteus, a ênfase da expressão não está sobre um Deus militante, pois
seria surpreendente sua primeira ocorrência em narrativas de guerra, num combate nada
glorioso para Yahweh. Conforme observou J.P. Ross: “Mas, de fato, ele não é aqui retratado
como um deus-guerreiro. Sua característica é sentar sobre um trono. Esta não é a atitude de
um soldado. São os reis que se assentam sobre tronos; o poder de Jahweh x+b*aot é real”. 194

Além do trecho samuelino 195 citado acima, 1 Samuel 15.2ss, também, descreve uma
cena de corte real em que yhwh x+b*aot pronuncia seu juízo e envia seu oficial para executá-
lo.196 Outrossim, Davi, em 1 Samuel 17.45, considera-se um soldado a serviço deste mesmo
rei. Os dois textos trazem consigo uma conotação militar, mas esta é um corolário do

187 Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 65; Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2
Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 571; John E. HARTLEY,
. In: Laird R. HARRIS, Gleason L. ARCHER, Jr., Bruce K. WALTKE, Dicionário internacional de teologia
do Antigo Testamento, p. 1258; C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the books of Samuel, p.
19.
188 J. P. ROSS, Jahweh x+b*aot in Samuel and Psalms. Vetus Testamentum, v. 17, no. 1, 1967, p. 76-77.
189 Robert P. GORDON, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 72-73; Eduard MACK, “God, names of”. In: James

ORR, The international Standard Bible encyclopedia. (Versão eletrônica disponível em Bíblia Online 3.0 –
Módulo Avançado); BALDWIN, Joyce G. Op cit. p. 57; Ronald F. YOUNGBLOOD, op. cit., p. 571. C. F.
KEIL, F. DELITZSCH, op. cit., p. 19-21.
190 J. P. ROSS, op. cit., p. 77.
191 John E. HARTLEY, op. cit., p. 1258-1259.
192 Ibid., p. 1259.
193 J. P. ROSS, op. cit., p. 78.
194 Ibid., p. 80.
195 Devo o uso deste termo ao Dr. Carlos Osvaldo em Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo

Testamento, p. 255.
196 J. P. ROSS, op. cit., p. 80-81.

39
significado majestático de Yahweh dos Exércitos, visto que o próprio rei aparece no livro de
Samuel liderando seu exército na batalha (cf. 1 Sm 15.4-9; 31.1-13; 2 Sm 11.1; 12.26-31).197

As referências em 2 Samuel confirmam a perspectiva real de yhwh x+b*aot. No


capítulo 6, a narrativa é de uma procissão cúltica e, mais uma vez, Yahweh é descrito como
assentado em seu trono, entre os querubins (2 Sm 6.2). No decorrer da história, Uzá, filho de
Abinadabe, é morto por não tratar com a devida reverência a santidade majestosa de Yahweh
dos Exércitos (6.3-7).198 Por fim, em 2 Samuel 7.8, 26-27, a expressão se encontra diretamente
ligada ao levantamento de Davi como líder da nação israelita e ao estabelecimento de sua
dinastia real. Yahweh é o rei de todos os reinos sobre a face da terra (cf. yhwh x+b*aot em Is
37.16) e, de forma especial, de seu povo, Israel (cf. yhwh x+b*aot em 1 Sm 15.2ss; 17.45; Sl
46.11; 59.5; 84.3; Jr 29.8). Diante do entendimento de que Yahweh é o Rei de Israel, 2
Samuel 7 descreve o estabelecimento de Davi e sua dinastia como vice-regentes da nação,
cujo Soberano é o Senhor (cf. a&d)n*y nos vv. 19, 20, 22, 28-29; cf. Sl 2; 110).

É uma suposição muito mais natural que, quando a invisível soberania de Jeová
recebeu uma visível manifestação no estabelecimento da monarquia, tal soberania
(...) necessariamente reivindicou o reconhecimento em seu poder e glória totalmente
abrangentes, e que no título “Deus dos exércitos (celestiais)”, a adequada expressão
foi criada para o governo universal do Deus-Rei de Israel – um título que serviu não
apenas como um baluarte contra qualquer ofuscamento da soberania invisível de
Deus pela monarquia terrena, como também lançou por terra a vã ilusão das nações
de que o Deus de Israel era simplesmente uma deidade nacional daquela nação
específica. (Keil & Delitzsch, 1865, p. 21.)

Portanto, quando o termo Yahweh dos Exércitos aparece na história de Ana (1 Sm


1.3, 11),199 ele realça o caráter Soberano e Supremo do Deus Israel que se assenta em seu
trono, cercado por sua corte celestial (1 Sm 4.4; 2 Sm 6.2; cf. Sl 103.21; Is 6.3, 5), e que
possui todos os recursos e poderes do universo para operar em prol de seu povo,
particularmente, de Ana.200 Apesar da natureza suprema e universal do governo de yhwh
x+b*aot, Ana, assim como o fiel do Salmo 84 (Sl 84.1-3, 12), pôde expressar sua confiança no
cuidado onipotente e pessoal do Deus de Israel para consigo e experimentá-la, de fato (1 Sm

197 Sobre as guerras no antigo oriente e o envolvimento do rei nelas, ver Roland de VAUX, Instituições de Israel
no Antigo Testamento, p. 285-293.
198 J. P. ROSS, Jahweh x+b*aot in Samuel and Psalms. Vetus Testamentum, v. 17, no. 1, 1967, p. 82.
199 É importante notar que o próprio contexto da história de Ana é familiar e cúltico, não militar.
200 Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 57-59.

40
1.11, 19-20). Aqui, Yahweh é retratado conforme os reis da antiguidade, ele é Supremo e
Benfeitor.201

Outra parte do início de 1 Samuel que merece atenção em suas declarações acerca do
ser divino é o tricólon em 2.2. O primeiro atributo de Yahweh proclamado neste versículo é
sua santidade (q*dov). Tal qualidade em si é quase um sinônimo da divindade (compare Am
4.2 com 6.8; cf. Hc 3.3) e indica um mysterium tremendum, lembrando que Deus está acima
de todas as fraquezas e imperfeições dos seres humanos, por isso, é capaz de realizar
maravilhas (Êx 15.11).202 As observações de Ralph L. Smith são bem pertinentes e
esclarecedoras acerca do caráter santo de Yahweh no Antigo Testamento:

Deus não é criatura; conseqüentemente, ele é santo. O “atributo” da santidade refere-


se a esse mistério do ser divino que o distingue como Deus (...) Dizer que Deus é
santo é dizer que Deus é Deus. Santidade sugere o poder, o mistério, a
transcendência – mas não a inatingibilidade – de Deus. O Antigo Testamento com
freqüência recorre a antropomorfismos para falar de Deus (...) Essa linguagem
poderia levar à humanização de Deus, não fosse sua santidade. A santidade de Deus
o separa de todas as outras coisas no universo, incluindo o próprio universo. A
palavra “santo”, usada para descrever Deus torna impossível qualquer pensamento
de um deus criado pelo ser humano. Deus não é uma pessoa divinizada. (Smith,
2001, p. 180-181)
Apesar das várias ocorrências de q*dov e o substantivo de mesma raiz, q)d#v
(“santidade”, “objeto santo”), indicarem a pureza moral do Senhor ou de seu povo (Lv 19.2;
Js 24.19; Sl 15.1ss; Is 17.7; 30.11, passim),203 a natureza transcendente e majestosa de Deus
parece ser o significado primário de sua santidade. 204 Em Isaías 6.1-5, que narra o encontro do
profeta com o Deus Santíssimo (v. 3), o que predomina na cena é a visão da realeza gloriosa
divina e seu poder transcendente (vv. 1-4). Ainda que Isaías perceba a santidade moral de
Yahweh em contraste com sua pecaminosidade, o que o leva a exclamar “Ai de mim!” é o
fato de que, além de ser puro, este Deus é o Rei Supremo (v. 5).205

201 Roland de VAUX, Instituições de Israel no Antigo Testamento, p. 138-139; Herbert LOCKYER, All the
trades and occupations of the Bible, p. 128-129. Richard Patterson oferece vários exemplos das culturas
mesopotâmica, egípcia e siro-palestina em que o cuidado pelos pobres e desfavorecidos era uma atribuição do rei
ideal. Ver Richard D. PATTERSON, The widow, the orphan, and the poor in the Old Testament and extra-
biblical literature. Bibliotheca Sacra, v. 130, n. 519, July-August 1973, p. 226-228.
202 Thomas E. MCCOMISKEY, “”  . In: Laird R. HARRIS, Gleason L. ARCHER, Jr., Bruce K. WALTKE,
Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, p. 1322.
203 Ibid., p. 1322-1323.
204 Ralph L. SMITH, op. cit., p. 183.
205H. P. MÜLLER, “”. In: Ernst JENNI, Claus WESTERMANN, Theological lexicon of the Old Testament,

v. 3, p. 110-111. H.P. Müller sugere que há uma influência cananita sobre o pensamento religioso hebraico, na
compreensão de santidade e majestade como idéias sinônimas. Quanto à ênfase na majestade divina dentro
cântico, ver estudo da expressão yhwh x+b*aot nas páginas 37-40 desta dissertação.
41
A transcendência divina intrínseca ao conceito de santidade pode ser vista na
declaração: “Eu sou Deus e não homem, o Santo no meio de ti” (Os 11.9). O Salmo 99
declara três vezes a santidade de Yahweh (vv. 3, 5, 9) e o termo claramente se relaciona com
sua majestade, supremacia e poder temível.

Portanto, deve-se entender a santidade divina em 1 Samuel 2.2 como uma indicação
de sua transcendência, especialmente pelos outros atributos destacados neste mesmo versículo
e pela própria declaração de que “não há Santo como o SENHOR” (grifo do autor). “Neste
contexto, a santidade de Deus se refere primariamente à sua soberania e incomparabilidade.
Ele é único e distinto de todo os outros assim chamados deuses”. 206

Robert Chisholm, em seu artigo Yahweh versus the Canaanite gods, fornece
informações importantes sobre o contexto cultual cananeu que serve como pano de fundo para
a poética de Ana e contra o qual o texto de 1 Samuel 2.1-10 pretende desafiar e se opor.207
Geralmente, nos mitos ugaríticos, a assembléia dos deuses era descrita como “filhos do
Santo” e El retratado como o líder da assembléia. 208 Além dele, Baal se encontra, muitas
vezes, na mesma posição de proeminência, como uma declaração da deusa Anate evidencia:
“O Todo-Poderoso Baal é nosso rei, nosso juiz, sobre o qual não há ninguém”.209 Diante
disso, a afirmação de Ana de que “não há ninguém santo como Yahweh”, é uma poderosa
declaração sobre a singularidade suprema de Yahweh que polemiza e abafa as reivindicações
das divindades cananéias.210

A frase seguinte: “porque não há ninguém além de Ti” (K' a?n B]lT#k`) - reforça o
caráter singular de Deus já subentendido na expressão anterior. Yahweh é o Deus santo,
transcendente, porque é o único, não há outro igual. 211 Esta frase encontrada de forma similar
em outros textos do Antigo Testamento (cf. 2 Sm 7.22; Dt 4.39; Is 45.6, 21), proclama em alto
e bom tom a crença monoteísta hebraica de que apenas Yahweh é Deus, nada nem ninguém
mais pode ser considerado ou adorado como tal.212

206 NET BIBLE, Biblical Studies Foundation. Disponível em www.bible.org. Acessado em Setembro de 2008.
(Versão eletrônica). 1 Samuel 2, s.n. (study note) 5.
207 Robert B. CHISHOLM, Jr., Yahweh versus the Canaanite gods: polemic in Judges and 1 Samuel 1 – 7.

Bibliotheca Sacra, v. 164, April-June 2007, p. 176-179.


208 Ibid., p. 177.
209 Id., Ibid.
210 Id., Ibid.
211 Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 290.
212 H.W. HERTZBERG, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 29-30; Robert P. GORDON, 1 & 2 Samuel: a

commentary, p. 79.
42
A última parte do tricólon diz que “não há Rocha como o nosso Deus”. A palavra
hebraica xWr (“rocha”), geralmente, indica formações de pedra e, também, penhascos e
montes rochosos (cf. Êx 33.22; Nm 23.9; 1 Cr 11.15; Jó 14.18; 18.4; Is 48.21).213 Certamente,
o uso vetero-testamentário é metafórico e, de forma alguma, indica qualquer relação com uma
origem animista da religiosidade hebraica. 214 A figura da rocha associada a Yahweh,
descreve-o como um forte refúgio no qual seu povo pode se abrigar em meio às dificuldades
(Sl 18.2; 94.22; Is 17.10) e uma fonte de força inabalável (Sl 27.5; 62.2, 6, 7 [Heb. 3, 7, 8]). 215
Assim, o fiel é levado a confiar totalmente no caráter fiel, justo e protetor de seu Deus (Is
26.4; cf. Dt 32.4).

Ao declarar que Yahweh é uma rocha incomparável, o cântico de Ana expressa que
ele é a única fonte segura e permanente de cuidado, salvação e força (cf. 2 Sm 22.31-33, 47-
49; Dt 32.15).216 O Deus de Israel é o Fiel Protetor e Salvador de seu povo.

A percepção teológica quanto aos atributos divinos, encontrada na história e no


cântico de Ana possui ligações interessantes e pertinentes com o Deuteronômio.
Primeiramente, a própria estrutura de aliança ou tratado entre suserano e vassalo que compõe
o livro indica Yawheh como o grande Rei a quem Israel deve obediência. 217 Deste modo, sua
soberania e majestade são incontestáveis. No capítulo 10, os versos 14 e 17-18 retratam a
supremacia do Deus de Israel sobre toda a criação, abrangendo a totalidade dos céus e da terra
(Dt 10.14).218 Assim, Yahweh é confessado como o Deus acima de todos os deuses e o Senhor
sobre todos os soberanos da face da terra, digno da reverência e temor de quem quer que seja
(Dt 10.17; cf. 7.17-19). O superlativo “Deus dos deuses” parte da afirmação comum no

213 John E. HARTLEY, “” In: Laird R. HARRIS, Gleason L. ARCHER, Jr., Bruce K. WALTKE, Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento, p. 1278; NET BIBLE, Biblical Studies Foundation. Disponível
em www.bible.org. Acessado em Setembro de 2008. (Versão eletrônica). 1 Samuel 2, t.n. (translator’s note) 6.
214 Eduard MACK, “God, names of”. In: James ORR, The international Standard Bible encyclopedia. (Versão

eletrônica disponível em Bíblia Online 3.0 – Módulo Avançado).


215 John E. HARTLEY, op. cit., p. 1278-1279; A. S. van der WOUDE, “”.In: Ernst JENNI, Claus

WESTERMANN, Theological lexicon of the Old Testament, v. 2, p. 1070; F. BROWN, S. DRIVER, C.


BRIGGS, The Brown-Driver-Briggs Hebrew and English lexicon. p. 849.
216 Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible

commentary, v. 3, p. 581; Robert P. GORDON, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 79; Ralph W. KLEIN, 1
Samuel, p.16.
217 Eugene H. MERRIL, “Uma teologia do Pentateuco”. In: Roy B. ZUCK, Teologia do Antigo Testamento, p.

77; J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 68-69.


218 Thomas L. CONSTABLE, Notes on Deuteronomy, p. 47; J. A. THOMPSON, op. cit., p. 142.

43
Antigo Oriente acerca da existência de outros deuses, mas nega a realidade deles, 219 já que
apenas Yahweh possui poder ou significância. 220

A glória temível que caracteriza o próprio ser do Soberano da aliança, uma clara
expressão de sua grandeza, deve levar Israel a temer o seu Senhor e obedecê-lo (Dt
28.58ss).221 No trecho de Deuteronômio 10.17-18 há um conceito próximo daquele expresso
por yhwh x+b*aot na história de Ana, em que o Deus de Israel é retratado conforme a figura
do rei no Antigo Oriente: ao mesmo tempo em que é Soberano, ele é, também, Benfeitor para
com uma mulher estéril e necessitada de seu povo.222 O mediador da aliança lembra que
Yahweh é o Rei e Deus Supremo preocupado em cuidar e promover o bem dos fracos e
necessitados sejam eles parte do seu povo ou a própria nação de Israel (Dt 10.17-19).223

Enquanto 1 Samuel 2.2 lança mão da palavra “Santo” para enfatizar a transcendência
de Yahweh, o livro de Deuteronômio o faz por meio das menções à revelação teofânica. Uma
clara ligação da aparição teofânica com a transcendência divina pode ser contemplada na
proibição contra a idolatria em Deuteronômio 4.15-20. Quando Deus revelou sua aliança no
Sinai para o seu povo, do meio do fogo (m!tTok h`a@v), deu-se a conhecer de um modo que
nenhuma forma criada fora contemplada por Israel (4.15; v. 12), o que demonstrou sua
completa transcendência sobre todas as criaturas e manifestou seu caráter Criador (4.16-19).
A aproximação teofânica de Yahweh para com Israel revelou ao povo sua glória e majestade e
marcou a distinção entre Deus e o ser humano (5.22-26).

Além da auto-revelação nos acontecimentos, na história, o Senhor revelou-se como


soberano na teofania. Desta maneira, o esplendor glorioso do Rei contribui para a
aura de majestade e poder e, assim, é convincente da dignidade e autoridade. Quase
sem exceção, a revelação teofânica deu-se na forma de fogo e, do oposto, escuridão
(Dt 1.33; 4.11, 12, 33, 36; 5.4, 22-26; 9.10, 15; 10.4; 33.2; cf. Sl 50.2; 80.2; 94.1). O
Senhor é Deus absconditus (Deus absconso), aquEle que continuamente se retira na
auto-revelação. A escuridão fala da sua transcendência, seu mysterium, sua
inacessibilidade. Por outro lado, o fogo representa a imanência, a possibilidade de
ser conhecido mesmo que de modo limitado (cf. Ez 1.4, 27, 28; Dn 7.9; Ap 1.14).
(Merril In: Zuck, 2009, p. 79)

A singularidade divina, um tema contido no texto samuelino, já fora observada


dentro do livro de Deuteronômio no capítulo anterior deste trabalho.224 Vale salientar aqui que

219 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v.
3, p. 86.
220 J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p.143.
221 Earl S. KALLAND, op. cit., p. 175-176.
222 Ver acima, p. 39-40 e Nota de Rodapé 201.
223 Cf. John GOLDINGAY, Theological diversity and the authority of the Old Testament, p. 135-136.
224 Ver acima, p. 16-18.

44
a afirmação de que Yahweh é único em Deuteronômio 6.4, à luz de outros textos do mesmo
livro, é uma clara indicação da crença monoteísta hebraica contra o politeísmo cananeu (cf. Dt
5.7; 32.39).225

Outras afirmações deuteronomistas como hWa h*a$l)h'm a?n uod m]lb^Do (“Ele
é Deus, não há outro além/fora dele” – Dt 4.35),226 cuja base se dá na forma
incomparavelmente maravilhosa pela qual Deus libertou seu povo do Egito e na majestosa
revelação do Sinai (4.32-34), juntamente com a declaração exclusivista mais adiante, yhwh
hWa h*a$l)h'm B~V`m~y!m m!M~u~l w+u~l h*a*r#x m!tT*j~t ?n uod (“Yahweh é
Deus em cima nos céus e embaixo, sobre a terra; não há outro” – Dt 4.39),227 não deixam
espaço para a existência real de qualquer outra divindade, apenas Yahweh é o verdadeiro
Deus.228 A completa ineficácia dos ídolos, a ser experimentada na história posterior da nação
(Dt 32.37-38), comprovará que apenas o Deus de Jacó é Deus e não há nenhum outro como
ele (Dt 32.39). A confissão de Ana no cântico, “porque não há ninguém além de Ti” (K' a?n
B]lT#k`), é um eco da singularidade divina desenvolvida pelo Deuteronômio.229

Por fim, o quinto livro de Moisés, também, oferece uma visão de Deus como
Protetor. Seu cuidado é perceptível na peregrinação de Israel pelo deserto, em que Deus é
retratado como Pai para seu próprio povo (1.31) ou como a águia que cuida de seus filhotes
(32.10-11), dando-lhes orientação na viagem (Dt 1.32-33; 32.12-13), proteção (8.15; 32.10) e
suprimento de comida e roupa (8.3-4, 16; 32.13-14). Israel poderia contar com o mesmo
cuidado e proteção do Senhor na terra prometida (33.11-12), caso permanecesse leal à aliança
(cf. Dt 28.25ss). A figura de Deus como a Rocha em 1 Samuel 2.2 deve sua origem direta do
Deuteronômio.230 É no cântico do mediador da aliança que a palavra xWr aparece cinco vezes
como referência a Yahweh (Dt 32.4, 15, 18, 30, 31).

A rocha como metáfora para Deus no verso 4 contrasta com a nação israelita
corrupta dos versos 5-6. Ela indica, portanto, o caráter imutável, justo e forte de Yahweh que

225 Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 224; J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e
comentário, p. 117-118.
226 Luis Alonso SCHÖKEL, Dicionário bíblico hebraico-português, p. 88.
227 Ibid., p. 482.
228 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v.

3, p. 48-49; J. A. THOMPSON, op. cit., p. 106-107.


229 H.W. HERTZBERG, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 29-30.
230 Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 62; Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2

Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 580.
45
proporciona segurança para seu povo, sendo digno de sua confiança. 231 A Rocha de Israel é
descrita como seu Salvador (32.15), pois o cuidado divino foi claramente evidenciado durante
sua libertação do Egito e sua peregrinação no deserto rumo à terra da promessa (32.7-14).
Dentro do ambiente de aliança, a proteção de Yahweh seria real e inabalável para com Israel,
desde que o povo se mantivesse leal ao seu Rei, caso contrário, eles sofreriam as
conseqüências por não confiarem no Senhor (Dt 32.30-31).232 Da mesma forma que no
cântico de Ana, o contexto do desfrute da segurança de Yahweh como fonte de abrigo ocorre
num andar em fidelidade a Ele (Dt 32.30). Além disso, as duas partes das Escrituras
reconhecem a singularidade de Deus como Rocha verdadeira (compare 1 Sm 2.2 com Dt
32.31).233

2.3. Conclusão

Ao final deste capítulo, fica patente a relação histórico-teológica entre o


Deuteronômio e os dois capítulos iniciais do livro de Samuel. As duas obras sagradas
retratam Yahweh como o Deus ativo na história de seu povo e da humanidade, agindo de
forma soberana e compassiva para com os necessitados, julgando os soberbos e perversos e
abençoando os fiéis e humildes.

Outrossim, as literaturas deuteronômica e samuelina evidenciam conexões teológicas


concernentes ao caráter do Deus de Israel, como o Senhor Supremo, Incomparável em sua
divindade e Protetor de Seus fiéis. Não resta dúvida de que o historiador profético, que editou
o livro de Samuel, compreendeu a história de Ana e seu cântico à luz da renovação da aliança
sinaítica contida no Deuteronômio.

231 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v.
3, p. 200; J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 286-287.
232 NET BIBLE, Biblical Studies Foundation. Disponível em www.bible.org. Acessado em Setembro de 2008.

(Versão eletrônica). Deuteronomy 32, s.n. 3.


233 Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible

commentary, v. 3, p. 580.
46
3. IMPLICAÇÕES DA TEOLOGIA DEUTERONÔMICA PARA A COMUNIDADE
DA NOVA ALIANÇA

A teologia encontrada tanto no livro de Deuteronômio quanto nos dois primeiros


capítulos de Samuel traz consigo implicações. A revelação divina veterotestamentária afetou
de modo profundo a comunidade de Israel e, mesmo diante do advento da Nova Aliança, há
princípios importantes e indispensáveis para a comunidade cristã (Jr 31.33-34; Hb 8.1-2, 6-8,
10-11).234 Paulo destaca a importância das Escrituras para o povo da Nova Aliança, quando
cita uma passagem do Antigo Testamento em Romanos 15.3 (cf. 2 Sm 22.50; Sl 18.49) e diz
que toda a revelação escriturística passada tem o propósito de ensinar os crentes em Cristo
(Rm 15.4).

(...) nós encontramos aqui a mais admirável condenação daqueles fanáticos que
ostentam que o Antigo Testamento está abolido e não pertence em nível algum aos
cristãos; pois, com que desaforo podem eles desviar os cristãos daquelas coisas as
quais, conforme Paulo testifica, são designadas por Deus para a nossa salvação?
(Calvin, 1998, p. 407)

Em 2 Timóteo 3.16-17, Paulo reconhece a origem divina das Escrituras


veterotestamentárias, afirma sua profunda utilidade e sua função de ensinar, corrigir e treinar
na justiça o crente da Nova Aliança, a fim de conduzi-lo à maturidade na prática de toda a boa
obra.

Portanto, neste último capítulo, o autor mostrará como a perspectiva deuteronômica


sobre o caráter de Deus se relaciona com a teologia e a adoração da comunidade de fé
neotestamentária, bem como traçará o modo pelo qual a teologia da justiça e graça de Yahweh
para com o pecado e obediência humanos encontra uma continuidade de princípios e
implicações no Novo Testamento, que devem transformar a conduta ética dos discípulos de
Cristo.

234Walter C. KAISER, Jr., The old promise and the New Covenant. Journal of Evangelical Theological Society,
v. 15, n. 1, 1972, p. 19.
47
3.1. Implicações da Teologia Própria Deuteronômica para a Adoração do Povo
da Nova Aliança

O escritor A.W. Tozer observou, pertinentemente, que a “adoração é pura ou vil


conforme os pensamentos elevados ou inferiores que o adorador alimenta em relação a
Deus”.235

A adoração cresce ou diminui em qualquer igreja dependendo de nossa atitude para


com Deus, se o consideramos grande ou pequeno. A maioria de nós vê Deus em
ponto pequeno; nosso Deus é diminuto. Davi exclamou: ‘Magnificai a Deus comigo’
e magnificar não significa tornar Deus grande, pois você não pode fazer isso. O que
pode fazer é vê-lo grande. (Tozer, 1991, p. 183)

Assim, a perspectiva da majestade de Deus desenvolvida em Deuteronômio e 1


Samuel 1 e 2 é crucial para se resgatar o espírito da adoração verdadeira e a cura de diversos
males que afetam a comunidade cristã atual.236 A visão de Deus como o Rei Supremo, cercado
por sua corte celestial (Yahweh dos Exércitos em 1 Sm 1.3; cf. 1 Sm 4.4; 2 Sm 6.2; Sl 103.21;
Is 6.3, 5; cf. Ap 4 e 5), ou como aquele que é o “Deus dos deuses e Senhor dos senhores, o
Deus grande, poderoso e temível” (Dt 10.17), deveria gerar um santo temor e reverência nos
que o adoram, como produziu em Ana, quando se achegou diante Deus em sua oração (1 Sm
1.11).

Esta concepção da Majestade de Deus encontra sua continuidade nos escritos do


Novo Testamento. Deus é confessado como o Rei eterno e imortal que é digno de toda honra
e glória (1 Tm 1.17), ele é o soberano supremo, o Rei dos reis e Senhor dos senhores (1 Tm
6.15-16). O louvor dos santos no céu emana da compreensão de que Deus é Todo-Poderoso e
Rei das nações, o único merecedor de glória, o que leva as nações a adorá-lo (Ap 15.3-4).
Aqui, percebe-se a ligação íntima entre a majestade divina com a adoração, que é
impulsionada pela primeira.

Outro atributo divino que caminha de forma íntima com a supremacia de Deus e
recebe destaque na teologia deuteronômica é sua transcendência. Como já ressaltado, isto é
percebido quando Deus é proclamado por Ana como o incomparavelmente Santo (1 Sm 2.2),
o mysterium tremendum, aquele que é “o completamente outro” e está acima das fraquezas e
imperfeições de suas criaturas (cf. o uso de “Santo” em Os 11.8; Am 4.2 e 6.8; Hb 3.3). 237 Da

235 A.W. TOZER, Mais perto de Deus, p. 7.


236 Valdeci dos SANTOS, Refletindo sobre a adoração e o culto cristão. Fides Reformata, v. 3, n. 2, 1998, p.
137; A.W. TOZER, Mais perto de Deus, p. 7.
237 Ver o desenvolvimento deste conceito nas páginas 40-41 da presente dissertação.

48
mesma forma, o Deuteronômio destaca este caráter divino por meio de teofanias que o
distinguem de toda a sua criação e lhe conferem majestade absoluta (Dt 4.15-20; 5.22-26).238

No Novo Testamento, há claras afirmações acerca da transcendência de Deus. O


evangelho de João apresenta o Pai como aquele que “ninguém jamais viu” (Jo 1.18), e na
Primeira Carta a Timóteo, há a declaração de que Deus “habita em luz inacessível, a quem
homem algum jamais viu, nem é capaz de ver” (1 Tm 6.16). Pelo fato de Deus ser o Criador
invisível, de poder eterno e imortal (atributos que indicam transcendência), é uma blasfêmia
terrível adorar criaturas e objetos criados em seu lugar (Rm 1.18-25).

Como os conceitos de soberania e transcendência divinos afetam de modo prático a


adoração comunitária e pessoal do povo da Nova aliança? Primeiro, há um modo adequado
de se adorar a Deus (Hb 12.28), o qual deve ser regido e conduzido conforme a vontade do
próprio Soberano, isto é, sua Palavra revelada (cf. Dt 12.30-32).239 O texto de Colossenses
3.16-17 ensina que o louvor adequado à dignidade de Deus flui naturalmente dos corações em
que a Palavra de Cristo habita ricamente.240

Eugene Peterson alertou para o risco de se realizar mudanças na adoração


comunitária, movido pelo freqüente senso de pânico de inadequação do que por uma visão
clara do que é requerido pela Palavra de Deus.241 A proliferação de sugestões sobre como
desenvolver uma adoração relevante e moderna tem dado espaço a idéias inovadoras sem uma
avaliação bíblica adequada:

Somos grandes em ministério e pequenos em adoração. Somos desastrosamente


pragmáticos. Só queremos saber do que funciona. Queremos fórmulas e truques e,
de alguma maneira, no meio do processo, deixamos de fora a tarefa para a qual Deus
nos chamou (...) Somos Marta em excesso e Maria de menos. Estamos tão
envolvidos no fazer que perdemos o ser. Somos programados, informados,
planejados, e ocupados – mal cultuamos! Temos nossas funções, nossas promoções,
nossos objetivos, nossos esforços voltados para o sucesso, preocupados com
números, tradicionais e até passageiros. Porém, é muito comum nos escapar um
culto aceitável, verdadeiro e espiritual. (MacArthur, 1998, p. 259)
O experts na “área” de louvor e adoração farão todo o possível para vender seu
produto e criticar como retrógados ou “fariseus” os que não seguem suas propostas ou são

238 Eugene H. MERRIL, “Uma teologia do Pentateuco”. In: Roy B. ZUCK, Teologia do Antigo Testamento, p.
79.
239 Valdeci dos SANTOS, Refletindo sobre a adoração e o culto cristão. Fides Reformata, v. 3, n. 2, 1998, p.

142.
240 Curtis VAUGHAN, “Colossians”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 11,

p. 216.
241 Eugene PETERSON, Baalism and Yahwism Update. Theology Today, v. 29, n. 2, 1972, p. 138.

49
cautelosos em apoiá-las. 242 Um exemplo deste tipo de atitude é o que se vê em parte do artigo
de um site de louvor e adoração na internet:

Se alguém acha que se emocionar e se expressar com extravagância na presença de


Deus é pecado eu não posso falar nada (...) Só sei dizer que Jesus não repreendeu a
mulher [a prostituta que derramou perfume sobre os pés de Jesus em Lucas 7.36ss].
Por outro lado, repreendeu o fariseu [Simão, da mesma história de Lucas]. Só sei
dizer que a mulher fora recompensada com o perdão dos pecados e com a salvação
(Lc 7.50). Já Simão levou uma “chicotada” das mais doídas de Jesus (...) O fariseu é
um religioso extravagante. Ele vem pra igreja e não oferece nada. Ele é orgulhoso,
ele se acha superior e espiritual demais. Ele não gosta de se expor e de se expressar
na presença de Deus. Ele condena a adoração dos outros, por mais “correta” que
pareça (...) Nós precisamos ser adoradores, não religiosos. Nós precisamos oferecer
a Deus algo de valor, como a mulher ofereceu o ungüento precioso. Precisamos
adorar com humildade, e expressar nosso louvor sem qualquer tipo de vergonha e
medo. Não devemos nos preocupar com os religiosos extravagantes, eles sempre vão
estar lá. Sempre vão estar questionando, mas Jesus estará recebendo sua adoração,
Jesus estará satisfeito com você! (...) O que você prefere ser? Um adorador
extravagante ou um religioso extravagante? Pense nisso (...) a escolha é sua.
(Tessmann, http://www.vivos.com.br/338.htm, Acessado em 14/01/2010)
O artigo é, claramente, desenvolvido com o alvo de validar atitudes extravagantes na
adoração comunitária, ainda que o mesmo não especifique como elas se dão. A Bíblia é
tratada apenas como um recurso para embasar idéias pessoais do autor, como se percebe em
seu trato de Lucas 7.36-48. O foco da história não está em como se adora a Deus (de modo
extravagante ou não), mas na atitude de amor e devoção devida a Jesus quando se percebe a
imensidão dos pecados perdoados por ele (cf. vv. 40-47). Além disso, o escritor do texto
ignora a passagem clara de 1 Coríntios 14, que exorta à ordem e decência no culto e orienta
como o mesmo deveria se processar (1 Co 14.26-33, 40).

Ainda no texto supracitado, quando o autor oferece o conselho de que o adorador


deve expressar seu louvor, sem vergonha ou medo, e que não precisa se importar com os
“religiosos extravagantes”, há uma falta de consideração cuidadosa pelo ensino direto da
Palavra de Deus. Esta exorta o cristão à busca por não ser motivo de escândalo ou tropeço ao
irmão na fé (Rm 14.5-22), e a não agir de forma extravagante durante o culto público, de
modo que o incrédulo venha a pensar que os cristãos estão loucos (1 Co 14.23). A Palavra
autoritativa do Deus Soberano perdeu seu espaço na adoração moderna e necessita ser
restituída ao seu local supremo e central. 243

A segunda implicação que a compreensão do caráter de Deus na teologia


deuteronômica traz é uma adoração centrada no Deus transcendente e não no adorador

242 Eugene PETERSON, Baalism and Yahwism Update. Theology Today, v. 29, n. 2, 1972, p. 138.
243 Ibid., p. 143.
50
imanente. A comunidade cristã moderna vem enfatizando a experiência do crente durante o
momento de adoração em lugar do Deus glorioso e transcendente que estabelece a forma e o
tempo da adoração. Eugene Peterson classificou esta busca intensa por satisfação pessoal
como “neobaalismo”244 e afirmou o seguinte:

A ênfase do Baalismo estava sobre a ligação psicofísica e a experiência subjetiva. O


abismo entre o homem e Deus era eliminado em sua existência por meio de ritos
participativos. A terrível majestade de Deus, sua “diversidade”, era assimilada pelas
paixões religiosas do adorador (...) Os desejos que inflamavam a alma eram
satisfeitos no ato cúltico da adoração. A transcendência da divindade era superada
pelo êxtase da sensação.(1972, p. 139)

O culto passa, então, a girar em torno dos desejos do adorador, tentando satisfazê-los,
e tende a proporcionar um tempo de entretenimento empolgante. O culto “agradável” para o
adorador contemporâneo não é mais aquele em que há uma proclamação fiel das Escrituras,
mas o que lhe traz maior satisfação pessoal. 245 A ênfase na experiência subjetiva de adoração
torna a glória de Deus secundária no culto e faz do homem a medida suprema. O Criador
transcendente é substituído pela criatura limitada e a reverência humana devida ao único Deus
verdadeiro é trocada pela adoração ao próprio homem. O livro de Romanos descreve tal
postura como uma inversão do que Deus estabeleceu, trocando a verdade pela mentira e
dando glórias à criatura em lugar do Criador (Rm 1.21-23, 25).

Um exemplo disso pode ser visto na reportagem de uma revista, intitulada “Ao gosto
dos fãs”, que tratava acerca do lançamento do CD de uma cantora evangélica. Depois de
discursar acerca das qualidades e experiência da cantora, além das músicas que compunham
seu novo CD, o editor da revista evangélica escreve: “Resumindo: é um CD feito na medida
para agradar aos fãs de Assíria”.246 Outro caso semelhante se dá na gravação do álbum de
uma banda gospel de grande reconhecimento no cenário brasileiro, em que o vocalista inicia o
show expressando à platéia o seu desejo de que ela viesse a “curtir e se divertir do melhor que
o Oficina G3 tem a oferecer pra vocês”.247 Essa atitude centralizadora no homem e suas
experiências, durante a adoração pública, demonstra uma rejeição do Deus transcendente e é
condenada nas Escrituras como idolatria.

244 Eugene PETERSON, Baalism and Yahwism Update. Theology Today, v. 29, n. 2, 1972, p. 141.
245 Valdeci dos SANTOS, Refletindo sobre a adoração e o culto cristão. Fides Reformata, v. 3, n. 2, 1998, p.
140.
246 Carlos FERNANDES, Ao gosto dos fãs. Eclésia, ano 7, ed. 75, mar., 2002, p. 64.
247 Oficina G3. CD Acústico ao Vivo. Faixa 2. Gospel Records, 1999.

51
A Igreja de Cristo deve desenvolver, portanto, a perspectiva do Deus que é
singularmente Santo (1 Sm 2.2; Ap 15.4) e que requer adoração exclusiva a si, pois está acima
de qualquer ser criado e nada se assemelha a ele (Dt 4.15-19; Mt 4.8-10; 1 Tm 6.15-16). O
crente deve abandonar a busca pela gratificação psicológica enquanto adora e desenvolver um
santo temor e reverência quando se aproxima do Transcendente, assim como fizeram os
israelitas no deserto, ao se achegarem a Deus e verem a majestade de sua glória (Dt 5.22-26;
cf. Hb 12.28-29). A adoração contemporânea precisa deixar de ser uma capa protetora para os
interesses egoístas248 e tornar-se uma atitude de assombro diante do Deus santo e temível,
como ocorreu com Moisés e Isaías, quando se depararam com aquele que é majestosamente
“o Outro” (Êx 3.1-6; Is 6.1-6).

Além disso, a ênfase na adoração simplesmente como uma experiência momentânea


é extremamente perigosa, pois limita o culto a um ato público e a uma parte da vida da
pessoa, separada do restante de seu dia-a-dia.249 Tal foco produzirá cultos meramente rituais,
que até entretém seus freqüentadores, mas que são totalmente destituídos de vida.

Situações como essas foram duramente reprovadas pelos escritores e profetas do


Antigo Testamento que chamavam a atenção do povo para o fato de que Deus abominava
rituais cúlticos destituídos da prática da justiça, do amor à misericórdia e de um andar
humilde perante Deus (Mq 6.6-8; cf. 1 Sm 15.22-23; Sl 50.7-15; Is 1.10-17; 58.1-9). O Novo
Testamento ensina que a adoração do cristão não se limita a experiências em um determinado
local ou num tempo específico, mas se estende por toda a vida, em que o cristão deve
oferecer-se como um sacrifício vivo, santo e agradável a Deus (Rm 12.1-2; cf. Jo 4.23-24; 1
Co 10.31; Cl 3.17).

3.2. Implicações da Teologia da Ação Compassiva e Soberana de Deus para a


Missão do Povo da Nova Aliança aos “Pequeninos” da Sociedade

A soberania compassiva de Deus percebida em seu cuidado pela desprezada Ana e


no suprimento do filho pedido por esta mulher estéril (1 Sm 1.6-7, 19-20; 2.1, 5), já
demonstrada, anteriormente, na libertação operada por Yahweh em prol de seu povo
humilhado e oprimido no Egito (4.20, 37; 5.6, 15; 6.12, 21; 9.12), percorre a linha do tempo
da história da salvação e encontra expressão no famoso Magnificat (Lc 1.46-55). Neste

248 Eugene PETERSON, Baalism and Yahwism Update. Theology Today, v. 29, n. 2, 1972, p. 142.
249 Id., Ibid.
52
cântico, a própria Maria se identifica com uma posição de “humilhação” ( ) e se
auto-intitula “serva” ( ) (Lc 1.48).

A expressão “humilhação” traduzida como “humildade” na Nova Versão


Internacional (NVI) e na Almeida Revista e Atualizada (ARA) pode levar o leitor a uma
compreensão psicológica do termo, como se este indicasse um espírito manso e submisso de
Maria. 250 Mas a expressão encontra seu pano de fundo no Antigo Testamento, especialmente
no cântico de Ana (1 Sm 1.11) e no Deuteronômio (26.7-8), e aponta para uma “pobre e
desprezível posição” social, 251 sendo uma declaração, por parte de Maria, tanto de sua
ausência de valor aos olhos humanos quanto de sua solidariedade com os pobres e aflitos.252 O
paralelo lingüístico entre as orações de Ana e o Magnificat ressalta este fato.253

É dentro de tal contexto, no alvorecer da plenitude dos tempos (Gl 4.4-5), que se
percebe a continuidade da ação compassiva e soberana de Deus em prol daqueles que são
desprezados e aflitos. No Magnificat, Maria, assim como Ana, reconhece que Deus é o seu
Salvador (Lc 1.46-47; cf. 1 Sm 2.1), pois, ele reverteu sua situação de humilhação para uma
posição em que todas as gerações a chamarão de bem-aventurada ( ) (Lc
1.48).254 Tal reversão de sorte, da humilhação para a exaltação, é proclamada pelo próprio
Jesus, quando chama de bem-aventurados ( ) os pobres, os famintos e os que
choram, porque herdarão o reino de Deus, serão saciados e consolados (Lc 6.20-21).

O Poder Soberano e a Compaixão de Deus para com os “pequeninos” são a razão e a


causa para a mudança da condição destes, como o cântico de Maria anuncia: “... atentou para
a humilhação da sua serva ... todas as gerações me chamarão bem-aventurada, pois o
Poderoso fez grandes coisas em meu favor; santo é o seu nome. A sua misericórdia estende-
se aos que o temem...” (Lc 1.48-50). 255

250 Gail O’DAY, Singing woman’s song. Currents in Theology and Mission, v. 12, no. 4, 1985, p. 207.
251 John CALVIN, Commentary on Matthew, Mark, Luke, v. 1, p. 65; Walter L. LIEFELD, “Luke”. In: Frank E.
GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 8, p. 836; Thomas L. CONSTABLE, Notes on Luke,
p. 24.
252 Joel B. GREEN, The Gospel of Luke, p. 103; John CALVIN, op. cit., p. 65; Gail O’DAY, op. cit., p. 207.
253 O verbo , a preposição , e a construção estão presentes tanto
em 1 Sm 1.11 [LXX] quanto em Lc 1.48. Ver “ ” (Lc
1.48) e “ ” (1 Sm 1.11 - LXX).
254 I. Howard MARSHALL, The Gospel of Luke, p. 82-83.
255 Joel B. GREEN, op. cit., p. 102.

53
O quadro do Poderoso que faz grandes coisas em favor de Maria ecoa a linguagem
do Deuteronômio, quando fala dos grandes sinais e maravilhas que Yahweh realizou com sua
poderosa mão, na salvação de seu povo Israel (cf. Dt 3.24; 4.34; 5.15; 6.22; 7.19).256 A
declaração de que “Santo é o seu nome [caráter]”257 aponta para a transcendência Majestosa
de Deus258 que possibilita seu agir em benefício de “pequeninos” como Maria e Ana (cf. 1 Sm
2.1-2; Sl 99.1-5). Neste sentido, a declaração de Jacques Dupont é salutar:

A pobreza daqueles a quem Jesus anuncia a boa-nova do Reino de Deus é enfocada


como uma condição humana desfavorável, que faz dos pobres vítimas da fome e
opressão. É um mal: precisamente por isso os sofrimentos e as privações dos pobres
aparecem como um desafio à justiça real de Deus. Deus decidiu pôr termo a tudo
isso. (Dupont, 1971, p. 32 apud (conforme) Boff, 1980, p. 232, itálico nosso).

A compaixão de Deus como base para seu agir condescendente é ressaltada pelo uso
da palavra nos versos 50 e 54-55. Esta palavra, geralmente, traduz o termo hebraico
 (j#s#d) e se refere à compaixão de Deus, especialmente demonstrada àqueles com quem
ele possui um relacionamento pactual (Lc 1.54-55, 72, 78; cf. Dt 5.10; 7.9, 12).259 O termo
grego aparece em Lucas, quase sempre, relacionado a Deus. A única vez que não está
relacionada à misericórdia de Deus, serve para qualificar a atitude de profunda compaixão que
o samaritano da parábola demonstrou para com o homem ferido e sem recursos, na estrada
para Jericó, cuidando de seus ferimentos e provendo-lhe um local para dormir (Lc 10.37).

Portanto, a misericórdia de Deus “comunica a idéia de compaixão e misericórdia ao


desafortunado” e, ao mesmo tempo, é uma “atitude demonstrada por Deus em relação à sua
aliança (1.72) para com aqueles que o temem e o adoram (Êx 20.6)”.260

(...) esta misericórdia é nada menos que a iniciativa graciosa de Deus, a qual é o
pressuposto para a criação de uma humanidade como sua parceira de aliança e para
o seu contínuo relacionamento com a humanidade, a despeito da constante oposição
de homens e mulheres ao seu propósito. (Green, 1997, p. 103-104).

O cântico de Maria fornece, então, o modelo da ação soberana e condescendente de


Deus para com os desprezados e aflitos que o temem, já no raiar desta nova era da salvação e

256 Gail O’DAY, Singing woman’s song. Currents in Theology and Mission, v. 12, no. 4, 1985, p. 208.
257 Walter L. LIEFELD, “Luke”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 8, p.
836.
258 I. Howard MARSHALL, The Gospel of Luke, p. 83; Thomas L. CONSTABLE, Notes on Luke, p. 24. Para

uma exposição da santidade divina como sinal de sua transcendência, ver as páginas 40-41 desta dissertação.
259 Thomas L. CONSTABLE, op. cit., p. 24.
260 I. Howard MARSHALL, op. cit., p. 83.

54
que servirá de molde nas narrativas de Lucas e Atos. 261 Em que aspectos concretos, percebe-se
a ação de Deus em favor dos “pequeninos” neste novo momento da história da salvação?

Leon Morris menciona um corolário objetivo desta misericórdia soberana de Deus: o


seu perdão e salvação a pecadores que são incapazes de justificarem-se a si mesmos. Ele cita
dois exemplos importantes: o publicano da parábola que não podia se justificar de forma
alguma, “Mas podia apelar a Deus por misericórdia e encontrá-la” (Lc 18.13), e a pecadora
que derramou óleo precioso sobre os pés de Jesus como gratidão pelo perdão recebido da
parte dele (Lc 7.47).262 Jesus proclama e concede, então, a graciosa salvação de Deus para
pecadores e publicanos, pessoas rejeitadas no aspecto sócio-religioso e sócio-político do
judaísmo da época (Lc 5.27-32; 7.28-50; 15.1-2; 18.9-14; 19.1-10).263

Por meio de Cristo, Deus visita a humanidade, em misericórdia, concedendo


salvação e perdão a judeus e gentios (Lc 1.68-69, 76-77; 2.29-32), mas, para recebê-los é
necessária a percepção da condição de miséria e pecado em que a pessoa se encontra, pois
Jesus veio curar os espiritualmente doentes e que possuem consciência de tal fato (Lc 5.30-
32).264

A “lealdade de Deus à aliança, prometida no AT e ativamente demonstrada na


história de Israel, chegaria ao seu ponto alto na graciosa auto-humilhação de Deus, feita em
prol dos humildes (...) no evento de Cristo (1:50, 54, 72, 78)”.265

As orações do publicano e do fariseu juntamente com o comentário de Jesus,


proporcionam uma ligação importante com o cântico de Maria e reforçam o fato de que a
graça livre e soberana de Deus se manifesta aos “pequeninos” pecadores e marginalizados,
que dependem dela para a sua salvação. O fariseu é soberbo em seu coração, gabando-se de
seus atos religiosos, desprezando os demais e se achegando a Deus com base em seus méritos
(Lc 18.11-12). O publicano é humilde, consciente de seus pecados e de sua incapacidade de
agradar a Deus com seus atos, clamando pelo perdão que só pode vir do alto (Lc 18.13). A
conclusão de Jesus é que o publicano foi quem voltou para a sua casa justificado por Deus e

261 John CALVIN, Commentary on Matthew, Mark, Luke, v. 1, p. 68-69; Joel B. GREEN, The Gospel of Luke, p.
102.
262 Leon MORRIS, Teologia do Novo Testamento, p. 186-187.
263 Darrel BOCK, “Teologia de Lucas-Atos”. In: Roy B. ZUCK, Teologia do Novo Testamento, p. 134; I. 263 I.

Howard MARSHALL, The Gospel of Luke, p. 36.


264 Thomas L. CONSTABLE, Notes on Luke, p. 66.
265 H. H. ESSER, “ ”. In: Lothar COENEN, Colin BROWN, Dicionário internacional de teologia do Novo
Testamento, p. 1297.
55
não o fariseu, pois “quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado” (Lc
18.14). Da mesma forma, Maria cantou que Deus “dispersou os que são soberbos no mais
íntimo do coração” (Lc 1.51) e “exaltou os humildes” (1.52).

Além destes grupos marginalizados nos aspectos político e religioso, há um foco na


demonstração da graça divina para aqueles que são sócio-economicamente e culturalmente
pobres.266 A proclamação do reino de Deus por Jesus é diversas vezes endereçada aos pobres
(Lc 4.18; 6.20-23; 7.22). Os próprios discípulos são os “pequeninos”, pobres e culturalmente
desprezados pelos grandes e sábios da época, a quem Deus concedeu o entendimento
espiritual necessário para a compreensão das boas novas da salvação (Lc 10.21-22).267 São os
pobres que Jesus convida para o banquete escatológico no reino (14.13, 21-24). Mas o foco
sobre o pobre não é uma manifestação política, como Darrel Bock bem observou:

O Evangelho de Lucas dedica atenção especial ao pobre. Em Lucas 1.46-55, o


cântico de Maria estabelece o tom para esse tema. A referência dela ao fato de Deus
elevar e abençoar o pobre (vv. 52-53), não se refere a todos os pobres. Refere-se
principalmente ao [sic] a&n~w'm do Antigo Testamento, os pobres piedosos que
confiam humildemente em Deus (vv. 50-55; cf. 2 Sm 2.5; Jó 5.11; 12.19; Sl 103.11,
13, 17; 89.10.; 107.9). Essa distinção é importante para Lucas, já que o foco no
pobre não é uma manifestação política. O que a passagem indica é que, com
freqüência, o pobre é mais dependente de Deus e sintonizado com Ele do que o rico.
(...) Para Lucas, as pessoas humildes são mencionadas, em especial, como
candidatas à graça de Deus. (1998, p. 134).

Timothy Johnson, também, destaca o seguinte:

O rico representa aqueles que já têm sua consolação na sociedade e não necessitam
do consolo de Deus; eles, portanto, rejeitam o Profeta. O pobre representa todos
aqueles que foram rejeitados com base nos padrões humanos, mas são aceitos por
Deus; eles, em contrapartida, aceitam o Profeta. (1991, p. 22).

Portanto, a Soberana compaixão de Deus, em Cristo, se revela por meio da oferta de


salvação e comunhão com Deus em seu reino àqueles que vivem à margem da sociedade, seja
por questões econômicas, raciais, religiosas, culturais ou estilo de vida. 268 Este é um aspecto
que não pode ser negligenciado pela comunidade da Nova Aliança, em sua missão. Desde que
ela passa a ser o agente de Deus no anúncio das boas novas do Reino, dando continuidade ao
ministério de Cristo (cf. At 1.1-2, 8; 9.1-5).269

266 Darrel BOCK, “Teologia de Lucas-Atos”. In: Roy B. ZUCK, Teologia do Novo Testamento, p. 134.
267 Luke Timothy JOHNSON, The Gospel of Luke, p. 169-171; I. Howard MARSHALL, The Gospel of Luke, p.
434.
268 Joel B. GREEN, The Gospel of Luke, p. 23-24; Luke Timothy JOHNSON, op. cit., p. 22.
269 BRUCE, F.F, The book of Acts, p. 30.

56
O livro de Atos mostra como o Deus supremo continuou a estender seus braços de
misericórdia aos marginalizados, por meio da Igreja. 270 Esta apreendeu, em alguns momentos,
naturalmente, em outros, com muita dificuldade, a sua missão de proclamar as boas novas e
servir aos “pobres” em seu redor. A comunidade da Nova Aliança proclamou o evangelho e
ministrou a doentes (At 3.1-10; 5.12-16; At 14.8-13), a mulheres (At 5.14; 16.13-15), a viúvas
e pobres (At 6.1-7; 9.36, 39), a endemoninhados (At 8.4-8) e a escravos (At 16.16-21).271

Todavia, o que se destaca em Atos é universalização da missão da igreja,


ultrapassando as barreiras raciais e atingindo aqueles que eram marginalizados etnicamente
pelos judeus (At 8; 10 - 11). “Pode-se dizer, então, que o Evangelho [de Lucas] focaliza sobre
a universalização vertical (para cima e para baixo, na escala social) do evangelho, enquanto
Atos enfoca a sua universalização horizontal (para todos os povos, por todo o império)”. 272

Dificilmente, haveria um melhor modo de indicar que o mesmo Espírito que estava
em ação no Messias em sua proclamação das boas novas aos pobres e aos rejeitados
entre o povo e no chamado para um lugar no banquete de Deus, e que atuou,
também, em seus seguidores, do que mostrar os seguidores proféticos de Jesus
proclamando a mesma oferta de salvação, não apenas àqueles que eram, por herança,
parte do “povo de Deus”, mas a “todos a quem o Senhor, nosso Deus, chamar para
si” (At 2.39).

Apesar da dificuldade inicial para aceitar aqueles que eram diferentes e considerados
como pessoas de “segunda categoria” (cf. At 11.1-3; 15.1-2), a Igreja de Jerusalém percebeu
que “Deus não trata as pessoas com parcialidade, mas de todas as nações aceita todo aquele
que o teme e faz o que é justo” (At 10.34-35), assim, o evangelho se estendeu até os confins
da terra, chegando ao coração do império romano (At 1.8; 28.11-31).

O princípio do kerigma da compaixão e salvação soberana de Deus, em Cristo, aos


desprezados, precisa ser resgatado dentro da comunidade cristã de hoje. A Igreja de Cristo
deve se perguntar, em que medida, ela tem servido e compartilhado das boas novas aos
“pequeninos” de sua sociedade.

Philip Yancey, em seu livro Maravilhosa Graça, apresenta um relato que aponta para
a falha da comunidade cristã em demonstrar a compaixão de Deus. Ele conta a história de um
de seus amigos, que trabalha com pessoas marginalizadas e que se defrontou com a realidade
de uma prostituta que alugava sua filha de dois anos de idade para homens interessados em
sexo pervertido. Sem saber o que dizer à mulher, seu amigo perguntou se ela nunca havia

270 Joel B. GREEN, The Gospel of Luke, p. 24; Luke Timothy JOHNSON, The Acts of the Apostles, p. 16.
271 Ben WITHERINGTON III, The Acts of the Apostles: a social-rethorical commentary, p. 71.
272 Ibid., p. 69.

57
pensado em ir à igreja para pedir ajuda, ao que ela, assustada, respondeu: “Por que eu iria a
uma igreja? Eu já me sinto terrível o suficiente. Eles vão fazer que eu me sinta ainda pior”. 273
Pertinentemente, Yancey observou:

O que me feriu na história de meu amigo é que mulheres muito parecidas com essa
prostituta procuraram Jesus, não fugiram dele. Por pior que uma pessoa se sentisse a
respeito de si mesma, ela sempre procurava Jesus como um refúgio. Será que a
igreja perdeu esse dom? Evidentemente, os desvalidos que recorriam a Jesus quando
ele vivia na terra já não se sentem bem-vindos entre os seus discípulos. O que
aconteceu? (1999, p. 9-10).

Outro exemplo da falha da Igreja em ministrar aos grupos marginalizados da


sociedade, pode ser visto numa entrevista com a capelã Eleny Vassão, sobre portadores do
vírus da Aids: “Já presenciei casos em que pessoas infectadas pelo HIV vieram participar do
culto. Quando se sentaram no banco, quem estava perto se levantou e foi procurar outro
lugar”.274

Esta situação é o oposto das boas novas pregadas e demonstradas por Jesus de
Nazaré que, ungido pelo Espírito Santo, “andou por toda a parte, fazendo o bem e curando
todos os oprimidos do Diabo, porque Deus estava com ele” (At 10.38).

O povo da Nova Aliança, então, precisa se dispor a estender suas mãos de compaixão
e trabalhar com aqueles a quem o mundo ao seu redor dá as costas, percebendo quem são e
como o evangelho pode transformar as suas realidades; sejam eles moradores de rua, grupos
de pessoas exploradas sexualmente, imigrantes de países pobres da América do Sul,
população de favelas nos seus arredores, pessoas sem alfabetização, entre muitos outros.

Uma maneira como a comunidade cristã pode levar o evangelho aos “pequeninos” é
o desenvolvimento de trabalho conjunto de igrejas locais com organizações missionárias, em
que os membros destas igrejas participem, freqüentemente, de atividades nas quais possam
servir aos grupos marginalizados, desde tarefas simples até áreas mais complexas que se
relacionem com suas capacidades e formações. 275 Outra possibilidade é o uso das instalações
da igreja local para trabalhos com a comunidade ao redor, como aulas de alfabetização, de
prática de esportes, aulas de computação e outras atividades que promovam o crescimento
pessoal e profissional daqueles que participam, sendo, antes de tudo, uma oportunidade para a

273 Philip YANCEY, Maravilhosa Graça, p. 9.


274 Marco STEFANO, Preconceito, um inimigo a ser vencido. Eclésia, ano 11, no. 119, 2006, p. 37.
275 Um exemplo de missão que trabalha com moradores de rua é Comunidade Evangélica Nova Aurora (Missão

CENA). Ver http://www.missaocena.com.br/.


58
proclamação da mensagem do evangelho, que permanece primordial na agenda dos discípulos
de Cristo.

O evangelismo é o mais básico e radical ministério a um ser humano. Isso é verdade


não porque o “espiritual” é mais importante do que o físico (devemos ser cuidadosos
para mão cair numa distinção grega dualista), mas porque o eterno é mais importante
do que o temporal (Mt 11.1-6; Jo 17.18; 1 Jo 3.17-18) (...) O evangelho da
justificação tem a prioridade; isto é o que nos salva. Mas assim como as boas obras
são inseparáveis da fé na vida do crente, da mesma forma, o cuidado pelos pobres é
inseparável da obra de evangelismo e do ministério da Palavra. No ministério de
Jesus, curar o doente, alimentar o faminto era inseparável do evangelismo (Jo 9.1-7,
35-41). (Keller, 2008, p. 17)

Finalmente, o povo da Nova Aliança pode demonstrar e proclamar, de diversas


formas, as boas novas de que o Deus Soberano, em Cristo, se interessa, de modo compassivo,
por aqueles que não possuem qualquer esperança e consolo nesta vida. Nunca se esquecendo
de que, se Deus ama os pobres, os sofredores e perseguidos, os discípulos de Jesus precisarão
ser a expressão e os arautos deste amor (1 Co 9.19-23).276

3.3. Implicações da Teologia da Ação de Deus na História para a Conduta Ética


do Povo da Nova Aliança

O cerne da teologia deuteronômica destacada neste trabalho se dá na presença ativa


de Deus na história, como o soberano e juiz (1 Sm 2.3) que julga e castiga os orgulhosos e
rebeldes, mas concede seu favor aos humildes e fiéis. Isto é ressaltado no livro de
Deuteronômio, de forma macro, em que a obediência de Israel como povo pactual de Yahweh
traria a bênção divina de prosperidade e paz à nação, ao passo que a desobediência
culminaria no juízo de Yahweh sobre o povo da antiga aliança, por meio de doenças,
infertilidade da terra e perda da posse da mesma (4.15-40; 8.18-20; 11.8-17, 22-32; 27.9-26;
28.1-68; 30.1-20). Em 1 Samuel 2, o mesmo princípio governa a teologia central do cântico,
em que Deus reverte as sortes de tipos de indivíduos dentro da comunidade (2.4-8), punindo
os ímpios soberbos, mas concedendo sua graça aos piedosos humildes (2.3, 9-10).

Em que medida estes conceitos teológicos veterotestamentários se relacionam com a


teologia neotestamentária e trazem implicações para a comunidade da Nova Aliança? No
Novo Testamento, tanto Deus Pai quanto o Filho são reconhecidos como juízes da
humanidade (Jo 5.22-30; 8.26; At 10.42; 17.30-31; Rm 3.5-6; 1 Co 5.13; Hb 12.23; Tg 4.12).
Como Soberano e Juiz, o Deus Triúno julgará os homens e as suas ações praticadas em vida

276 Philip YANCEY, O Jesus que eu nunca conheci, p. 168.


59
(Rm 2.2-11; 1 Co 3.11-15), mas este julgamento recebe uma ênfase muito maior nos aspectos
espiritual e escatológico do que nos aspectos terreno e presente, como ocorria com a
comunidade do antigo pacto (cf. Mt 25.31-46; Jo 5.28-29; 12.48; 2 Tm 4.1).

Um dos ângulos deste julgamento divino no Novo Testamento diz respeito ao destino
eterno dos homens. Aqueles que rejeitam a Cristo e a salvação oferecida por meio dele,
mantendo-se rebeldes e inimigos de Deus, serão condenados eternamente (Jo 3.18-20, 36; 2
Ts 1.8-10; 1 Jo 5.10-12), porém, os que se humilham diante de Deus, reconhecendo sua
necessidade de perdão, e confiam em Cristo para a sua salvação, recebem o favor divino e a
comunhão eterna com Deus (Jo 5.24; 17.3; Rm 5.8-11; Ef 2.8-9; Hb 9.27-28). Estes passam a
fazer parte da comunidade da Nova Aliança (Mt 26.28; Lc 22.20; 1 Co 11.25; Ef 2.11-22).

Diante da condenação ou salvação eterna por parte de Deus, há um chamado para


que os homens se arrependam de sua autossuficiência e rebeldia para crerem no evangelho
(At 2.38; 3.19; 5.31; 20.21; 2 Co 5.20; Cl 1.28). Cada homem é responsável por sua resposta,
por outro lado, há favor ou condenação divinos diante da escolha que o indivíduo fizer (Jo
3.18, 36)

Outro ângulo do juízo e graça se relaciona especificamente com a comunidade


pactual neotestamentária. O apóstolo Paulo, em diversas ocasiões, afirma que os crentes darão
contas a Deus pelas obras praticadas, comparecendo perante o tribunal de Cristo, em sua
parousía (Rm 14.10-12; 1 Co 3.12-15; 2 Co 5.9-10). O cristão receberá recompensas ou não
da parte de Deus, dependendo de como viveu sua vida. Isso de forma alguma afeta a sua
salvação (1 Co 3.13, 15), mas determina o recebimento de seu galardão.277

Muitas vezes esse dia é referido em termos de alegria do crente ao unir-se ao seu
Senhor. Mas o Novo Testamento não passa por alto o fato de que também será o
tempo de julgamento da obra que o crente realizou. Aqui a idéia é de uma prova
rigorosa, pois pode ser comparada com o fogo (...) Todos quantos são considerados
aqui, são salvos. Construíram sobre o fundamento único, Jesus Cristo. Até mesmo
do homem cuja obra se queima se diz que será salvo. A distinção é feita, não entre
os perdidos e os salvos, mas entre os que construíram bem e os que construíram
precariamente. Sofrerá ele dano (AV, “perda”) significa que ele perderá o seu
galardão, como um trabalhador punido pelo trabalho mal feito. (Morris, 1983, p. 54-
55).

Nos três textos paulinos (Rm 14.10-12; 1 Co 3.12-15; 2 Co 5.9-10), a perspectiva da


recompensa ou perda da mesma diante do tribunal de Cristo, motiva a uma vida de fidelidade

277 Thomas L. CONSTABLE, Notes on 2 Corinthians, p. 50-51.


60
e obediência a Deus, seja por meio do amor ao próximo (Rm 14.13-21), da edificação do
Corpo de Cristo (1 Co 3.10) ou de um estilo de vida em geral que busca agradá-lo (2 Co 5.9).

O apóstolo João, também, percebe na parousía de Cristo e o julgamento que a


acompanha (“tenhamos confiança e não sejamos envergonhados”), uma forte motivação para
que a comunidade cristã viva de forma justa, refletindo o caráter de Deus (1 Jo 2.28-29).278 Na
carta de Tiago, a certeza de que Deus se opõe a seu povo e o humilha quando este é infiel a
ele, mas que lhe concede graça quando há humildade e desejo por obedecê-lo (Tg 4.1-6) serve
como mola propulsora para o quebrantamento e submissão a Deus (4.7-10).

Aqui há uma importante relação do ensino neotestamentário com o deuteronômico,


pois à luz da graça e juízo de Deus para com o seu povo e a humanidade, fossem eles
manifestados, principalmente, de forma presente e material (Israel) ou escatológica (Igreja),
há o chamado para uma vida de fidelidade e submissão ao Senhor e uma exortação ao
abandono da desobediência e autossuficiência. Ou seja, o fato de que Deus pesa, avalia e julga
as ações dos homens, deve conduzi-los a uma conduta ética presente que o agrada.

Existem implicações vastas para o campo ético que tal ensinamento bíblico traz. No
presente trabalho, dar-se-á atenção para a relação entre esta teologia de Deus como o Juiz
Soberano e a prática da justiça social.

O capítulo 5 do livro de Tiago liga o julgamento vindouro com a condenação do


abuso sócio-econômico por parte de fazendeiros cristãos ricos e com a esperança e
dependência em Deus por parte dos camponeses cristãos pobres (Tg 5.1-8).279 Diversas
expressões ressaltam o juízo futuro no texto: “vossas desventuras, que vos sobrevirão” (v. 1),
“últimos dias” (v. 3; cf. Jr 23.20; 30.24; Jo 12.48), “os clamores dos ceifeiros penetraram até
aos ouvidos do Senhor dos Exércitos” (v. 4), “a vinda do Senhor” (vv. 7, 8).

A manifestação futura de Cristo traria condenação sobre a ganância e opressão


praticadas pelos ricos (vv. 1-6), e salvação e esperança para os camponeses oprimidos que
aguardassem pacientemente a vinda do Senhor (vv. 7-8). Os ricos são acusados de se
enriquecerem às custas da vida dos camponeses que trabalhavam em suas terras (vv. 4, 6), de

278John R. W. STOTT, 1, 2 e 3 João: introdução e comentário, p. 100-101.


279Há certa discussão se os ricos a quem Tiago se dirige são cristãos ou não. Para este autor, há dois textos que
favorecem o pensamento de que tais ricos eram realmente crentes em Cristo. Primeiramente, em Tiago 1.9-11, o
autor se dirige a pobres e ricos, como se fossem parte da mesma comunidade e os ensina acerca da fragilidade
das riquezas. Em segundo lugar, há a ilustração que sugere fortemente a participação de ricos nas reuniões dos
judeus convertidos (2.1-4). Apoio a esta posição pode ser vista em C.P. PLOOY, La epístola de Santiago: la fe
que actúa, p. 49-50; Thomas L. CONSTABLE, Notas sobre Santiago, p. 59.
61
colocarem a confiança em seus bens (vv. 2-3) e de centrarem seu viver no desfrute de prazeres
(v. 5). A mensagem de Tiago para eles é uma advertência acerca do juízo divino eminente
(vv. 1, 4) e um chamado ao arrependimento de suas más ações (v. 1; cf. Tg 4.7-10).280

A descrição dos camponeses pobres os apresenta como em situação de extrema


necessidade, sem receber seu salário devido e vivendo quase ao ponto da morte (vv. 4, 6). A
mensagem de Tiago para eles é um encorajamento à paciência e esperança em meio ao
sofrimento presente, tendo em vista a expectativa da volta de Cristo, julgando os que praticam
o mal e salvando os que nele esperam (vv. 7-8).

A expectativa da manifestação de Cristo deve produzir, portanto, uma vida de justiça


e bem social por parte dos que compõem o povo da Nova Aliança, rejeitando a ganância e
opressão. Mais do que nunca, a igreja de Cristo precisa retornar à perspectiva do juízo e graça
futuros de Deus, a fim de mudar sua atitude ética vergonhosa na sociedade em que convive e
combater a injustiça social no país, como o próprio Jesus fez (Lc 6.22-25).

O problema da corrupção política no contexto brasileiro é um claro exemplo de


injustiça social. “A corrupção não é apenas sumamente nociva para a maioria da sociedade,
como também provoca o enriquecimento ilícito dos ‘privilegiados’, enquanto as classes
pobres e marginalizadas estão destinadas a pagar o custo da corrupção estrutural”. 281 A
situação se torna mais lastimosa quando se percebe que a própria comunidade cristã vem
sendo contaminada pelo estado de corrupção do ambiente que a cerca.

No final de 2006, a sociedade brasileira se deparou com um dos maiores esquemas


de corrupção da história do Parlamento brasileiro, no qual cerca de R$ 110 milhões foram
desviados dos cofres públicos. Dentro deste projeto ilícito, quase metade da chamada
“bancada evangélica” estava envolvida, vinte e cinco deputados e um senador.282 Pessoas que
se identificavam como membros do Corpo de Cristo, promoveram a opressão do justo, sem
que o mesmo lhes fizesse resistência (cf. Tg 5.6).

Recentemente, um escândalo político chamou a atenção, novamente. Deputados


evangélicos da Câmara legislativa do Distrito Federal aparecem, em gravação, recebendo
propina, escondendo o dinheiro em bolsos e meias, e, ao final, orando pela vida de um dos

280 Douglas J. MOO, Tiago: introdução e comentário, p. 158.


281 Arnold WIENS, Los evangélicos latinoamericanos ante el desafío de la corrupción. Vox Scripturae, v. VII,
no. 1, Jun. 1997, p. 75.
282 Calebe PACHECO, Sanguessugas evangélicos. Eclésia, São Paulo, ano 11, ed. 117, p. 22-24.

62
integrantes do esquema de corrupção.283 Tal “contexto de corrupção condiciona a autoridade
da Palavra de Deus, sugere a manipulação da mesma, enfatiza os elementos materialistas,
desemboca em numerosas heresias e sempre há uma total desconfiança em relação à
interpretação bíblica”.284

Urge, portanto, relembrar os princípios deuteronômicos que encontram sua


continuidade no Novo Testamento para a comunidade da Nova Aliança. Ela necessita ser
profética, condenando o mal social em seu meio ou na sociedade que a cerca, bem como ser
proclamadora, anunciando a esperança aos oprimidos de que um dia o mal será vencido pelo
Reino de Cristo.

Aqueles que afirmam fazer parte da comunidade cristã e usam do poder para o
próprio benefício devem ser chamados ao arrependimento e a uma mudança de vida. Precisam
ser lembrados de que um dia todos comparecerão diante do tribunal divino e, ainda que sejam
salvos, caso permaneçam em sua conduta errada, serão envergonhados na vinda de Cristo e
deixarão de receber seu galardão (Rm 14.10-12; 1 Co 3.12-15; 2 Co 5.9-10; 1 Jo 2.28-29). Por
outro lado, há a importância de adverti-los que a falta de uma conduta justa, pode ser
evidência de que nunca experimentaram a nova vida em Cristo (1 Jo 3.6-10) e o juízo futuro
deixará bem claro a ausência de frutos de arrependimento e de justiça (Lc 3.8-14; Mt 7.17-
23).

Aos cristãos que sofrem pela injustiça, a comunidade do Novo Pacto deve promover
a esperança de que a vinda do Senhor porá fim ao contexto de corrupção e maldade em que
vivem (cf. Tg 5.7-8), enxugando todas as suas lágrimas (Ap 21.3-4). Ela pode alentá-los com
a certeza de que nenhuma situação de dificuldade e sofrimento é capaz de separá-los do amor
de Deus para com eles (Rm 8.35-39), que continua o mesmo amor que o levou a entregar o
próprio Filho em favor deles na cruz (Rm 5.8; 8.31-34). A Igreja deve proclamar a seus
membros oprimidos que Deus é “o Pai de misericórdias e Deus de toda consolação! É ele que
nos conforta em toda a nossa tribulação...” (2 Co 1.3-4). O Criador de céus e terras, também,
não está surdo ao clamor dos sofredores (Tg 5.4) e ele fará vingança no tempo certo (Rm
12.19-20).

283 ARRUDA já tem seis pedidos de impeachment. http://jornalnacional.globo.com/Telejornais/JN. Acessado em


01/02/2010.
284 Arnold WIENS, Los evangélicos latinoamericanos ante el desafío de la corrupción. Vox Scripturae, v. VII,

no. 1, Jun. 1997, p. 82.


63
No Novo Testamento, há um chamado à própria comunidade cristã a ser a expressão
viva do amor de Deus, ajudando os necessitados e vítimas da injustiça (1 Jo 3.16-18; cf. Tg
1.26-27). Novamente, a temática do julgamento futuro se destaca, pois, o amor ativo e prático
dos crentes para com o seu próximo lhes proporciona segurança no Dia do Juízo (1 Jo 3.18-
20; 4.16-18). Não basta proclamar o conforto do amor e a esperança da salvação que provêm
de Deus, é necessário encarná-los. 285

A perseverança da Igreja em seguir os princípios deuteronômicos aplicáveis a ela,


fará da mesma uma comunidade alternativa que promoverá a transformação social.

A sociedade corrupta está em oposição ao reino de Deus, pois, é uma sociedade que
se autodestrói. A comunidade alternativa se caracteriza pela vida em justiça, amor,
serviço e santidade. A comunidade alternativa que não tem sido pervertida pelos
valores corruptos, será por sua própria existência, uma presença incômoda e
profética na sociedade. (WIENS, 1997, p. 83)

3.4. Conclusão

Ao final deste capítulo, pode-se afirmar que a teologia do livro de Deuteronômio e da


história e poesia de Ana é de inestimável valor para a reflexão da comunidade
neotestamentária. Sua perspectiva sobre o caráter e atributos divinos como, também, acerca
do cuidado soberano e compassivo de Deus em favor dos necessitados e aflitos, e de Sua ação
em julgar e abençoar os homens conforme seus atos, afeta de modo profundo a práxis do povo
da Nova Aliança.

A apresentação de Deus como majestoso e transcendente traz implicações para a


adoração na comunidade de fé. Uma delas é que a majestade divina requer que sua Palavra
soberana forneça o padrão para o modus operandis do culto, não os desejos e vontades do
adorador. A segunda implicação diz respeito à transcendência divina, que demanda a
diferenciação entre Criador e criatura e, conseqüentemente, torna a glória e honra de Deus
centrais na adoração, antes de qualquer pessoa ou ser. A glória do Criador jamais pode ser
subestimada em importância ou substituída pela experiência do adorador.

O cuidado e ação soberanos e compassivos de Deus em favor dos necessitados,


vivenciados por Israel e Ana (Dt 26.7-8; 1 Sm 1.19-20; 2.1), proveu um molde da atividade
divina que teve sua continuidade na nova era da salvação, previsto por Maria em seu cântico
(Lc 1.46-55), e manifestado no próprio ministério de Jesus em sua proclamação das boas

285 Jorge PINHEIRO, Pão, terra e justiça social. Vox Scripturae, v. VI, no. 2, dez. 1996, p. 308-309.

64
novas da salvação e no seu serviço aos marginalizados (Lc 4.18; 6.20-23; 5.27-32; 7.22, 28-
50; 15.1-2; 18.9-14; 19.1-10). Dentro desta compreensão da graça livre e soberana de Deus
nas obras e ditos de Jesus, o povo da Nova Aliança dá continuidade àquilo que Deus começou
a realizar por meio de Cristo e, como parte de sua missão, deve demonstrar compaixão para
com aqueles que são desprezados em sua sociedade, anunciando o evangelho da reconciliação
com Deus e expressando o mesmo amor que receberam do alto.

Por fim, a compreensão deuteronômica do agir soberano de Deus, com juízo ou


graça, em resposta às ações humanas na história, encontra paralelos no Novo Testamento e
chama os homens e a comunidade cristã à responsabilidade diante do “Juiz de toda a terra”. O
fato de que um dia o fiel do Novo Pacto se deparará com o “tribunal de Cristo”, deve conduzi-
lo a uma vida íntegra e humilde diante de Deus, especialmente no que tange à pratica da
justiça social e ao compromisso com o bem daqueles que o cercam.

65
CONCLUSÃO

A presente dissertação atinge o objetivo principal proposto na introdução, ao analisar


os temas teológicos e históricos centrais do quinto livro do Pentateuco e verificar que eles
exerceram, de fato, uma forte influência na composição da história e poesia encontradas em 1
Samuel 1.1 – 2.10.

Na primeira parte do trabalho, comparou-se as várias propostas de datação para o


livro de Deuteronômio e o autor constatou que há maior plausibilidade em reconhecer a
origem mosaica do livro, tanto pelas evidências internas que apontam para um escritor que
vivenciou um Sitz im Leben precedente à entrada de Israel na Terra Prometida e a libertação
do poder egípcio, como também, pelas fortes semelhanças com os tratados hititas do segundo
milênio antes de Cristo.

Ainda no primeiro capítulo, deu-se atenção a duas partes importantes do trabalho: os


temas teológicos deuteronomistas fundamentais e a influência da perspectiva histórica que o
Deuteronômio desempenhou sobre os Profetas Anteriores.

Na análise do cerne teológico do Deuteronômio, percebeu-se uma ênfase na


atividade libertadora de Yahweh na história, em prol de seu povo, salvando-o do cativeiro
egípcio e o conduzindo até Canaã. Também, observou-se um grande destaque dado à escolha
absolutamente graciosa de Deus por Israel e o compromisso pactual decorrente desta escolha.
Ainda, a soberania e singularidade de Yahweh são dois conceitos importantíssimos do livro,
que enfatizam a sublimidade do caráter do Deus de Israel e a resposta decorrente de devoção a
Ele, que o povo deveria dar, em sua vida e adoração.

A partir do entendimento da autoria mosaica de Deuteronômio, abordou-se a


influência de sua perspectiva histórica sobre os Profetas Anteriores. Percebeu-se uma leitura
dos acontecimentos na vida de Israel mediante as lentes da ação abençoadora ou julgadora de
Yahweh para com seu povo, conforme a fidelidade ou infidelidade deste à revelação da
aliança. Relacionado a isso, fora notado que dentro de tal leitura histórica deuteronômica,
presente tanto no livro de Moisés quanto nos Profetas Anteriores, há uma perspectiva de
reversão de sortes de juízo para bênção quando a nação de Israel se arrepende de sua
infidelidade e se volta para o seu Deus.
66
O eixo principal da dissertação se desenvolveu no capítulo 2. Ali, após situar o
contexto histórico da história e poesia de Ana, traçou-se os temas teológicos centrais que
permearam o texto de 1 Samuel 1 e 2, bem como suas influências e relações com a teologia
deuteronômica.

Primeiramente, destacou-se a ação de Deus em prol dos eleitos e necessitados,


promovendo a libertação deles de sua condição de miséria e opressão e dando-lhes uma
condição de honra, tanto no caso de Ana ou dos pobres de seu cântico, como com a nação de
Israel, no Deuteronômio. Depois, o autor deste trabalho mostrou a ênfase do cântico de 1
Samuel 2 na reversão de sortes, em que Deus julga os soberbos e rebeldes, humilhando-os e
os tirando de sua situação de honra, e demonstra graça para com os humildes e fiéis,
concedendo a força, o sustento e o vigor que carecem. Aqui, a dependência teológica do
Deuteronômio, que proclamou a bênção de Deus sobre a obediência da nação e o seu juízo em
caso de infidelidade da mesma, foi absoluta.

Na última parte do segundo capítulo, estudou-se a Teologia Própria apresentada na


história e cântico de Ana, em que Deus é reconhecido como o Rei Soberano, Transcendente,
Singular em sua existência e Protetor dos que nele confiam. Todos estes conceitos teológicos
já se encontravam de forma expressiva no quinto livro do Pentateuco e mostraram ter uma
influência importante na compreensão de Deus exposta em 1 Samuel 1 e 2.

Por fim, o último capítulo tratou de implicações importantes que a reflexão


deuteronômica, em diálogo com a teologia neotestamentária, tem a oferecer para a
comunidade da Nova Aliança. A concepção de Deus como Soberano e Transcendente
promoveu uma reflexão sobre a adoração direcionada por sua Palavra Soberana e centrada em
sua glória. A preocupação misericordiosa de Deus com os humilhados e aflitos, proveu um
molde de ministério compassivo na realização da missão do povo da Nova Aliança aos
pequeninos da sociedade. A perspectiva de juízo e graça de Deus para com as ações dos
homens na história trouxe implicações para a atitude ética da comunidade cristã, na busca
íntegra pela prática da justiça e do bem social.

A conclusão deste trabalho, portanto, é que a perspectiva histórico-teológica de 1


Samuel 1.1 – 2.10 reflete uma leitura marcantemente deuteronômica da atividade abençoadora
e punitiva de Yahweh na história, bem como de Seu caráter como Senhor supremo e singular
de Israel e do mundo. Esta dissertação, então, abre espaço e motiva futuras e contínuas

67
reflexões acerca da influência teológica fundamental do Deuteronômio sobre a historiografia
sagrada, contida nos Profetas Anteriores.

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