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São Paulo
2010
TIAGO ABDALLA TEIXEIRA NETO
São Paulo
2010
1
AGRADECIMENTOS
A Deus, por agir de forma soberana e graciosa em minha história, dando-me vida e esperança
por meio de Seu Filho, Cristo Jesus.
Aos meus pais, Otavio Augusto e Lilian Rose, porque “desde a infância” me ensinaram, com
carinho e dedicação, as “Sagradas Letras” e me contagiaram com sua paixão pelo estudo da
Palavra de Deus.
Ao Prof. Dr. Estevan Kirschner, pelo seu exemplo de integridade e seriedade no estudo das
Sagradas Escrituras, pelo apoio constante no percurso do mestrado e por sua paciência,
disposição e motivação na orientação da minha dissertação.
Ao Prof. Luiz Sayão, pelos insights em sala de aula que deram origem à pesquisa da relação
do Deuteronômio com os Profetas Anteriores.
Ao Prof. Dr. Carlos Osvaldo Pinto, por sua devoção inspiradora no estudo e exposição das
Escrituras, por sua amizade e pela mentoria em meus estudos teológicos, sempre com palavras
de incentivo e disposição na orientação de minhas pesquisas.
Ao Prof. Robinson J. de Souza, por suas orientações metodológicas e por sua prontidão na
ajuda e orientação de meus estudos no Seminário Teológico Servo de Cristo, colaborando
muito para a conclusão deles.
Ao meu irmão, Filipe, pela sua amizade constante, seu apoio sacrificial no ministério e pelo
incentivo no meu aperfeiçoamento dos estudos teológicos.
Ao amigo Éder Marques que, em nossas conversas e diálogos, sempre me mostra que a
teologia é um mundo amplo para se viver com alegria e devoção.
Ao Seminário Teológico Servo de Cristo, pela visão de treinar líderes cristãos com excelência
e possibilitar a mim este precioso treinamento.
Aos queridos irmãos da Igreja Batista Nova Esperança, por honrar e valorizar o trabalho de
ensino que desempenho, por possibilitar e me motivar nos estudos de Pós-Graduação e por
tornar o pastoreio uma tarefa alegre e prazerosa.
2
Aos diretores, professores e alunos da Faculdade de Teologia Paulistana e do Seminário
Teológico Batista do Sudeste do Brasil, pela oportunidade preciosa de desenvolver algo que
amo fazer: ensinar e preparar futuros expositores da Palavra de Deus.
3
RESUMO
4
SUMÁRIO
Páginas
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 6
CONCLUSÃO ..................................................................................................................... 66
5
INTRODUÇÃO
Há muito tempo se tem percebido a forte conexão teológica existente entre o
Deuteronômio e os Profetas Anteriores.1 A história da nação de Israel encontrada entre Josué
e Reis revela uma leitura dos acontecimentos a partir da aliança entre Yahweh e Israel nas
planícies de Moabe, conforme o quinto livro de Moisés. Tal fato gerou uma série de teorias
críticas a respeito da composição destas obras, desde uma edição única para o Deuteronômio e
os Primeiros Profetas,2 até a suposição de uma escola deuteronômica na formação destes
últimos escritos.3
Mesmo que não se adote as teorias de datação propostas pelos críticos bíblicos,
deixar de considerar suas descobertas e insights resultaria em grande perda para a análise
exegético-teológica da historiografia profética. Muitos teólogos das mais diversas correntes
vêm reconhecendo a aliança deuteronômica como uma chave hermenêutica essencial para a
leitura dos livros de Josué a Reis. 4
1 Conjunto do Cânon Hebraico que abarca os livros de Josué, Juízes, Samuel (1 e 2) e Reis (1 e 2). Outra
tradução possível para a expressão é Primeiros Profetas e, também, será usada neste trabalho. Cf. Gleason L.
ARCHER, Jr., Merece confiança o Antigo Testamento?, p. 70; Roland K. HARRISON, Introduction to the Old
Testament. p. 267-268.
2 Steven MACKENZIE, “Deuteronomistic history”. In: D. FREEDMAN (Ed.), Anchor Bible Dictionary, p. 160-
161; Roy D. WELLS, “Deuteronomist/Deuteronomistic historian”. In: Watson E MILLS, Roger Aubrey
BULLARD (Eds), Mercer Dictionary of the Bible, p. 210-211.
3 Steven MACKENZIE, op. cit., p. 161-162.
4 Walter C. KAISER, Teologia do Antigo Testamento, p. 127; Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento,
p. 213-215; William S. LASOR, David A. HUBBARD, Frederic W. BUSH, Introdução ao Antigo Testamento,
p. 145-146; Steven MACKENZIE, op. cit., p. 160-167.
6
relação de influência canônica, em que o narrador profético entende a história de Ana e do
nascimento de seu filho, à luz da revelação anterior dada por Deus a Moisés. 5
5 Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible
commentary, v. 3, p. 555-557.
7
1. O DEUTERONÔMIO: SUA TEOLOGIA E PERSPECTIVA HISTÓRICA
6 Um claro exemplo quanto à influência do entendimento do contexto histórico para a abordagem hermenêutica e
teológica de Deuteronômio, ver John D. W. WATTS, The deuteronomic theology. Review and Expositor, v. 74,
no. 3, 1977, p. 323-330. Sobre a importância destas questões introdutórias do livro em sua relação com os
profetas anteriores, consultar Gerhard VAN GRONINGEN, “Joshua – II Kings: Deuteronomistic? Priestly? Or
prophetic writing?”. Bulletin of the Evangelical Theological Society, v. 12, no.1, 1969. p. 10-13.
7 DE WETTE, W.M.L. Dissertatio critico-exegetica, qua deuteronomium a prioribus Pentateuchi libris
diversum, alius cuiusdam recentioris auctoris opus ese monstratur. Halle: 1805.
8 Ernst SELLIN, George FOHRER, Introdução ao Antigo Testamento, v. 1, p. 230.
8
adoração central em Jerusalém (Dt 12.13ss),9 diferentemente da possibilidade de altares
múltiplos encontrada no Êxodo (Êx 20.24). Apesar de ser contestada por diversos estudiosos,
a hipótese de uma autoria não mosaica para o livro, dentro do século VII, continua a receber o
apoio maior da academia teológica.10
9 Julius WELLHAUSEN, Prolegomena to the history of Israel, p. 16, 20-41; William S. LASOR, David A.
HUBBARD, Frederic W. BUSH, Introdução ao Antigo Testamento, p. 124; J. A. THOMPSON, Deuteronômio:
introdução e comentário, p. 57; WALKER, L. L, “Deuteronomy”. In: Merril C TENNEY, The Zondervan
pictorial encyclopedia of the Bible, v. 2, p. 112; Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo
Testamento, p. 159-160.
10 Ver J. A. THOMPSON, op. cit., p. 56-65.
11 Roy D. WELLS, “Deuteronomist/Deuteronomistic historian”. In: Watson E. MILLS, Roger Aubrey
176.
13 Ibid., p. 170.
14 Ver J. A. THOMPSON, op. cit., p. 56-65; Cf. Ernst SELLIN, George FOHRER, Introdução ao Antigo
Testamento, v. 1, p. 230.
15 J. A. THOMPSON, op. cit., p. 53-55; Gleason L. ARCHER, Jr., Merece confiança o Antigo Testamento?, p.
488-189. Após analisar as várias propostas de datação para o Deuteronômio, J. A. Thompson chega a uma
conclusão próxima àquela que Welch e Oestreicher defendem. Ver sua obra citada, p. 66-67.
9
teológicas remontam a um movimento iniciado por Samuel. 16 A razão que apresentam para se
oporem a uma data durante o governo de Josias é que a preocupação do Deuteronomista não
era a centralização do culto em Jerusalém (Kulteinheint), mas a purificação dos elementos
pagãos na adoração (Kultreinheint) (2 Rs 23.4-20, 24).17 Argumentam que certas leis eram
demasiadamente primitivas para a monarquia judaica posterior, mas que seriam plenamente
plausíveis no período final dos Juízes e começo da monarquia, como a lei acerca do homicídio
cujo autor fosse desconhecido, em que os sacerdotes deveriam exercer o julgamento (Dt 21.1-
9), ou a permissão e a proibição de determinados grupos estrangeiros participarem da
assembléia do Senhor (Dt 23.1-8).
Este autor entende que a solução mais satisfatória para a questão de data e autoria do
Deuteronômio se dá na proposta da autoria mosaica do livro, durante a segunda metade do
segundo milênio, 20 incluindo pequenas edições posteriores, provavelmente, inseridas por
algum editor da geração seguinte a Moisés (cf. Dt 2.10-12; 34).21
412; J. A. THOMPSON, op. cit., p. 65-66; Gleason L. ARCHER, Jr., op. cit., p. 489-491.
19 J.A. THOMPSON, op. cit., p. 66.
20 Para uma defesa mais detalhada da posição deste autor, ver Tiago Abdalla T. NETO, Deuteronômio: escrito
10
Há indicações claras no livro da atividade redatorial de Moisés e de sua comunicação
e exposição da lei contida no Deuteronômio (Dt 31.9, 19, 22, 24-26; cf. 1.1, 3, 5; 4.44-45, 5.1;
27.1, 9, 11; 29.1-2; 31.1).22 As referências a ocasiões que suscitaram os sentimentos de
Moisés e recordações de detalhes históricos mencionados na obra, somente fariam sentido
caso o seu autor tivesse experimentado tais situações (Dt 1.9-12; 5.6; 7.8; 8.14; 9.22-24;
11.10; 16.6; 25.17ss).23 Digna de nota é a menção da intercessão de Moisés em favor de Arão,
depois da quebra da aliança, cujo incidente não é sequer referido no relato de Êxodo, mas
consta em Deuteronômio (Dt 9.20ss).
22 K. A. KITCHEN, The Old Testament in its context 2: from Egypt to the Jordan, p. 4-5; THOMPSON, J. A,
Deuteronômio: introdução e comentário, p. 49; G.T. MANLEY, “Deuteronômio, livro de”. In: J. D. DOUGLAS
(ed.), O novo dicionário da Bíblia, v. 1, p. 413.
23 G.T. MANLEY, op. cit., p. 413; L. L. WALKER, “Deuteronomy”. In: Merril C TENNEY, The Zondervan
(Versão eletrônica disponível em Bíblia Online 3.0 – Módulo Avançado); Gleason L. ARCHER, Jr., Merece
confiança o Antigo Testamento?, p. 175-176.
25 Gleason L. ARCHER, Jr., op. cit., p. 179; L. L. WALKER, op. cit., p. 115; George L. ROBINSON, op. cit.
(Versão eletrônica).
26 G.T. MANLEY, op. cit., p. 412-413. Carlos Osvaldo observa, pertinentemente: “(...) parece claro que se
Deuteronômio foi uma ‘fraude piedosa’ projetada para legitimar Jerusalém como santuário único, seu autor fez
um péssimo trabalho, pois a cidade jamais é mencionada no livro. Ao contrário, Deuteronômio prescreve a
construção de um altar no monte Ebal, na região de Samária, rival de Jerusalém, e a celebração da renovação da
aliança ali!” (Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 160).
27 Moshe WEINFELD, “Deuteronomy, book of”. In: D. FREEDMAN (Ed.), Anchor Bible Dictionary, p. 169-
171.
11
diferentes) datar Deuteronômio cerca de 621 a.C. (...) é simplesmente um erro grotesco, sem
nenhuma base, na verdade”.28
28 K.A. KITCHEN, The Old Testament in its context 2: from Egypt to the Jordan, p. 9.
29 Meredith G. KLINE, Two tables of the covenant. Westminster Theological Journal, v. 22, no. 2, 1960, p. 140-
142; K.A. KITCHEN, Ancient Orient and Old Testament, p. 98-99.
30 K.A. KITCHEN, Ancient Orient and Old Testament, p. 92-97; ________________, The fall and rise of
covenant, law and treaty. Tyndale Bulletin, v. 40, no. 1, 1989, p. 126-127.
31 K.A. KITCHEN, The fall and rise of covenant, law and treaty. Tyndale Bulletin, v. 40, no. 1, 1989, p. 128-
______________, The fall and rise of covenant, law and treaty. Tyndale Bulletin, v. 40, no. 1, 1989, p. 132-133.
33 Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 217. Ver, também, William S. LASOR, David A.
Deste modo, Yahweh é retratado como o Deus Guerreiro que luta por Israel não
apenas no êxodo do Egito (1.30), mas, também, quando Israel enfrenta inimigos antes de sua
entrada na terra prometida, como Seom, rei de Hesbom e Ogue, rei de Basã (2.33-34; 3.1-2,
21-22). Isso fortaleceria a confiança israelita no poder de Deus para as batalhas que viriam
durante a conquista de Canaã (1.30; 3.21-22).38
A presença ativa do Senhor no meio de Seu povo, também, pode ser vista no sustento
de Israel durante sua peregrinação no deserto. Yahweh é retratado como um pai que carrega
seu filho no colo (1.31) e seu cuidado é evidente por meio da orientação sobre o caminho a
seguir, com a coluna de fogo, à noite e a nuvem, de dia (1.32-33). O suprimento de Deus para
com Israel é tão suficiente que o Deuteronômio nega a falta de qualquer coisa durante a
jornada (2.7). A ausência temporária de alimento no meio do deserto é vista como um fato
positivo, tencionando a preparação de Israel para a entrada em Canaã, no qual Deus provou o
coração do povo para ver sua dependência dele, disposição em obedecê-lo e, também, para
ensinar a importância fundamental de sua revelação (8.1-5).39 Ainda assim, a provisão do
maná, as roupas não gastas e os pés sem inchação durante tanto tempo de peregrinação,
evidenciam a ação de Yahweh em favor de Israel (8.3-4).
PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 168; J. A. THOMPSON, op. cit., p. 71.
39 John D. W. WATTS, The deuteronomic theology. Review and Expositor, v. 74, no. 3, 1977, p. 327-328.
13
conceitos teológicos centrais: Israel é o povo eleito de Deus e Yahweh é o Senhor da Aliança
com Israel.40
A eleição de Israel como povo pactual de Deus se dá não por qualquer mérito que
possua, mas simplesmente pela graciosa bondade divina (Dt 4.37; 7.7-8; 10.14-15).41 Tal
atitude de Deus é expressa pelos verbos “amar” ( - a`h}b) e “afeiçoar-se” ( - j`v~q).
Esta última palavra indica uma afeição íntima e profunda, um apego forte, que Deus tem para
com os patriarcas e seus descendentes. 42 Apesar de Yahweh ser o dono de toda a terra e céus e
todos os povos lhe pertencerem, Ele amou e se inclinou em favor deles, prometendo-lhes a
terra de Canaã (4.36-38; 10.14-15; cf. 7.6-8; 9.4-6).43 A ausência de qualquer qualidade do
povo hebreu é realçada pela sua obstinação em não confiar em Deus e, prontamente,
desobedecê-lo (9.6ss).44
40 William S. LASOR, David A. HUBBARD, Frederic W. BUSH, Introdução ao Antigo Testamento, p. 130-131.
41 P. Teodorico BALLARINI (Dir.), Introdução à Bíblia: com antologia exegética, v. 1. p. 298-299; Paul R.
HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 226.
42 Leonard J. COPPES, “”. In: Laird R. HARRIS, Gleason L. ARCHER, Jr., Bruce K. WALTKE, Dicionário
7 e 17.5. Ali, a escolha e santidade se referem à liderança e sacerdócio do povo hebreu, especificamente a Arão e
Moisés como escolhidos e separados por Deus para o ministério que desempenhavam e a rejeição de Corá, Datã,
Abirão e boa parte do povo dessa condição dada a eles (cf. 16.1-14, 41-50). Portanto, apesar do uso semelhante
do substantivo “santo” e do verbo “escolher”, ainda assim, em Números o destaque não é dado a Israel como
escolhido e separado por Deus, mas ao líder do povo e ao sumo-sacerdote. Para mais informações sobre este
texto específico, ver Gordon J. WENHAN, Números: introdução e comentário, p. 140-147.
46 Moshe WEINFELD, “Deuteronomy, book of”. In: D. FREEDMAN (Ed.), Anchor Bible Dictionary, p. 181.
47 Id. Ibid.
48 J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 73.
14
como referência ao ouro e prata que faziam parte dos tesouros reais particulares, cujo uso não
se dava para fins ordinários, mas era reservado para propósitos especiais (cf. 1 Cr 29.3; Ec
2.8).49 Assim, o povo de Israel era considerado a propriedade valiosa, o tesouro particular, 50 a
coroa de jóias de Yahweh. 51
Diante disso, “a santidade não indica o chamado de Israel (como em Levítico), mas
sua condição como resultado da escolha deles por Yahweh”. 52 A santidade não é algo a ser
buscado e desenvolvido como no Código de Santidade (Lv 19.2; 20.26) e, sim, o status que
impulsiona o povo a ser completamente leal ao seu Deus (Dt 7.1-6; 14.1-2).53 “Trata-se antes
de um convite dirigido a Israel, para que se aproprie pessoalmente de uma realidade que já
está dada e para que se instale nessa realidade através da obediência e em atitude de
gratidão”.54
49 H. WILDBERGER, “”. In: Ernst JENNI, Claus WESTERMANN, Theological lexicon of the Old
Testament, v. 2, p. 792; F. BROWN, S. DRIVER, C. BRIGGS, The Brown-Driver-Briggs Hebrew and English
lexicon. p. 688.
50 F. BROWN, S. DRIVER, C. BRIGGS, op. cit., loc. cit.
51 H. WILDBERGER, op. cit., p. 792-793.
52 John GOLDINGAY, Theological diversity and the authority of the Old Testament, p. 142.
53 Moshe WEINFELD, “Deuteronomy, book of”. In: D. FREEDMAN (Ed.), Anchor Bible Dictionary, p. 181.
54 Gerhard VON RAD, Teologia do Antigo Testamento, p. 226.
55 John GOLDINGAY, op. cit., p. 142.
56 John D. W. WATTS, The deuteronomic theology. Review and Expositor, v. 74, no. 3, 1977, p. 328.
57 Walter C. KAISER, Teologia do Antigo Testamento, p. 130; J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e
comentário, p. 71.
15
abundância também de riquezas minerais (Dt 8.7-9)”.58 A fertilidade da terra era tamanha que
é contrastada com o Egito (uma terra fértil) em Deuteronômio 11.10-12.59
Aqui cabe salientar as observações de Moshe Weinfeld que as promessas feitas aos
patriarcas de propriedade da terra eram incondicionais, típicas de “documentos de
concessão” do Oriente Médio Antigo (OMA), em que o rei concedia doações a servos reais,
dedicados exclusivamente ao seu senhor, com afirmações iguais àquelas feitas por Deus a
Abraão: “... darei como propriedade perpétua a você e a seus descendentes... ” (Gn 17.7-8; cf.
Dt 1.8). Por outro lado, a renovação da aliança que Deus faz com Israel nas planícies de
Moabe, quanto à permanência na terra, era condicional, correspondente aos “tratados de
vassalagem” em que se exigia do povo obediência às estipulações da aliança, para que
continuasse gozando da paz e permanência em Canaã (Dt 4.25-27; 8.19-20; 11.8-10, 13-17,
22-25; 28.25, 47-52, 62-67).60
falta de percepção da relação destes elementos histórico-contextuais com o Deuteronômio leva a uma abordagem
confusa desta obra bíblica, como se vê em Robert POLZIN, “Deuteronômio”. In: Robert ALTER, Frank
KERMODE, Guia literário da Bíblia, p. 113-114. O conhecimento destes dois tipos de tratados, também, torna
desnecessárias as conclusões como a de von Rad, que afirma uma preponderância da lei sobre o evangelho nas
adições posteriores de Deuteronômio (Gerhard VON RAD, Studies in Deuteronomy, p. 72).
61 Walter C. KAISER, Teologia do Antigo Testamento, p. 134-135; Carlos Osvaldo PINTO, Foco e
179; J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 272-273. Este último, comentando sobre o
texto de Deuteronômio 30.1-10, diz: “Em termos candentes a passagem descreve o estado final de bênção
divina” e “O amplo quadro de bênção e cura do povo num dia futuro tem um forte paralelo em todo o capítulo 32
de Jeremias”.
16
A supremacia e transcendência de Yahweh, o Senhor da aliança, são bem destacadas
no livro de Deuteronômio.63 Yahweh é o possuidor da terra, dos céus e dos “céus dos céus”, o
que incluía os corpos celestes adorados pelos vizinhos pagãos de Israel (Dt 10.14). 64 Mas, o
Deus de Israel se distingue e está acima de sua criação, jamais podendo ser confundido com
ela (4.15-20).65 Ele, também, se encontra acima de todas as nações e exerce sua soberania
sobre elas (7.17-19),66 é o “Deus dos deuses e Senhor dos senhores, o Deus grande, poderoso
e temível” (10.17). “Mesmo que alguém em Israel admitisse a existência de outros deuses, a
afirmação de que somente Javé era Soberano e único objeto da obediência de Israel fazia soar
o toque fúnebre para quaisquer posições inferiores ao monoteísmo”. 67
Deste modo, atrelada à soberania divina está a sua singularidade. O famoso credo de
Deuteronômio 6.4 destaca que “Yahweh, nosso Deus, Yahweh é único”, 68 indicando o caráter
singular de Yahweh, sem igual, que não poderia ser comparado nem emulado. Aqui,
provavelmente, há um antídoto contra o perigo do sincretismo religioso cananeu, impedindo
qualquer associação com Baal. 69 Von Rad observa que a singularidade do caráter de Yahweh
servia de base para o estabelecimento de um lugar central para a sua adoração (Dt 12.2-7).
Enquanto Baal se revelava em qualquer lugar onde se havia experimentado um mistério da
natureza, o culto a Yahweh tinha sua característica única e centralizadora, distinta da forma
como se dava a adoração do deus da fertilidade cananeu. 70
63 John D. W. WATTS, The deuteronomic theology. Review and Expositor, v. 74, no. 3, 1977, p. 325.
64 Carlos Osvaldo PINTO Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 165.
65 Paul House observa: “Por Yahweh ser o criador, quaisquer deuses que supostamente existam teriam de ser
feitos por ele, e o cânon não contempla tal possibilidade. Os atos de Deus na história removem qualquer dúvida
de que Israel deve fidelidade absoluta ao seu Deus como a única divindade viva” (Paul R. HOUSE, Teologia do
Antigo Testamento, p. 219).
66 George L. ROBINSON, “Deuteronomy”. In: James ORR, The international Standard Bible encyclopedia.
preocupa com a existência ou não de outros deuses: o que ele quer acima de tudo é sublinhar o fato de não terem
poder algum; e um Deus sem poder não merece consideração. Javé é a fonte de toda a autoridade, de todo o
poder, de todo o criado, só dele é que depende o universo” (P. Teodorico BALLARINI (Dir.), Introdução à
Bíblia: com antologia exegética, v. 1. p. 298). A dificuldade com essa conclusão é que outros textos do
Deuteronômio, que o próprio Ballarini cita em seu livro, deixam muito clara a inexistência de qualquer outro
deus além de Yahweh (cf. Dt 4.35, 39; 32.39).
68 A tradução de (a#j^d) como “único”, indicando a exclusividade da divindade de Yahweh, parece ser a
melhor tradução do termo, tendo em vista o próprio contexto que exige de Israel um coração totalmente
consagrado a Ele como o único Deus de sua devoção (Dt 6.5). Ver Herbert WOLF, “”. In: Laird R. HARRIS,
Gleason L. ARCHER, Jr., Bruce K. WALTKE, Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, p.
47-49; Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 224, 228.
69 Carlos Osvaldo PINTO, op. cit., p. 165.
70 Gerhard VON RAD, Teologia do Antigo Testamento, p. 222-223; Ver, também, John GOLDINGAY,
Como Walter Kaiser notou, isso, de modo algum, é uma ordem contrária a Êxodo
20.24 que fala sobre ofertas e holocaustos levados a “todo lugar onde eu fizer celebrar a
memória do meu nome”, desde que o Deuteronômio não lança uma polêmica sobre um altar
de Yahweh contra os muitos altares de Yahweh, mas sim, contra o caráter corruptor da
religião cananita. 73 Isso é reforçado, ainda, pela menção do erguimento de um altar no monte
Ebal em Deuteronômio 27.1-8.74 Tal localização “não é jamais denominada o lugar, nem [sic]
tampouco ali ficaram a Arca ou a Tenda da Congregação”.75 Enquanto no livro de Êxodo a
ordenança se destina à comunidade peregrina do deserto, em Deuteronômio, Moisés
estabelece o modus operandi cúltico de um povo que está prestes a estabelecer-se em Canaã,
num sistema de vida sedentário.
71 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v.
3, p. 92-93.
72 J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 40-41.
73 Walter C. KAISER, Teologia do Antigo Testamento, p. 134-135; C. PIEPENBRING, Theology of the Old
Testament, p. 79.
74 Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 135-137.
75 J. A. THOMPSON, op. cit, p. 40-41.
76 “Dificilmente seria possível fazer uma declaração monoteísta mais clara do que essa” (Paul R. HOUSE,
77 John D. W. WATTS, The deuteronomic theology. Review and Expositor, v. 74, no. 3, 1977, p. 326; Carlos
Osvaldo PINTO, e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 165-166.
78 John GOLDINGAY, Theological diversity and the authority of the Old Testament, p. 148-150.
79 P. Teodorico BALLARINI (Dir.), Introdução à Bíblia: com antologia exegética, v. 1. p. 299; C.
Deus verdadeiro é central na apresentação que Deuteronômio faz da aliança. Porque só há um Deus, ele exige a
lealdade total do seu povo” (Eugene MERRIL, “Deuteronômio”. In: David S. DOCKERY (Ed.), Manual bíblico
Vida Nova, p. 211).
81 J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 74.
82 A obra em inglês foi traduzida quase quarenta anos depois de sua primeira edição em alemão: NOTH, Martin.
Apesar deste autor discordar das conclusões de Noth quanto à autoria e datação dos
Profetas Anteriores, e mesmo diante de objeções como a de Van Groningen quanto ao fato de
não haver um molde teológico deuteronômico nas obras de Josué a Reis, 86 parece impossível
negar o valor das contribuições de Martin Noth no campo teológico e hermenêutico, como
Kaiser e House outrora observaram. 87 “(...) os Profetas Anteriores (...) foram influenciados por
Deuteronômio e por seu conceito de aliança. Esse conceito destaca a fidelidade à aliança e o
culto exclusivo a Deus, explicando como a história é afetada pela moralidade da nação”. 88
84 Anthony F. CAMPBELL, Mark A. O’BRIEN, Unfolding the deuteronomistic history: origins, upgrades,
present text, p. 2; Steven MACKENZIE, “Deuteronomistic history”. In: D. FREEDMAN (Ed.), Anchor Bible
Dictionary, p. 161.
85 Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 27-28.
86 Gerhard VAN GRONINGEN, Joshua – II Kings: Deuteronomistic? Priestly? Or prophetic writing?. Bulletin
p. 213-215. Ver, também, Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The
expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 556-557.
88 Kenneth A. MATHEWS, “Os livros históricos”. In: David S. DOCKERY (Ed.), Manual bíblico Vida Nova, p.
223.
89 Id., Ibid.; cf. J. Gordon MCCONVILLE, The Old Testament Historical Books in the modern scholarship.
Percebe-se uma ênfase na graça e fidelidade de Yahweh pelas vitórias recentes sobre
Seom, rei de Hesbom (Dt 2.24-37) e sobre Ogue, rei de Basã (3.1-11), apesar de todos os
obstáculos possíveis como cidades fortificadas com muros altos (2.36; 3.5-6) e inimigos com
características físicas amedrontadoras (3.11).91 Tal graça e fidelidade divinas é que dão
segurança a Israel de que vencerá os inimigos cananeus e tomará posse da terra (3.18-22; cf.
1.6-8).
Por outro lado, a justiça divina, também, é destacada contra a rebelião do povo, no
prólogo histórico. A falta de confiança no poder de Deus para a conquista de Canaã por parte
da geração que saiu do Egito, levou-a a vagar durante quase quarenta anos no deserto e não
entrou na terra prometida (1.26-40; 2.14-15). Isso ocorreu devido à ira de Deus (1.34-36) que
julgou a maldade do povo com sua justa “mão” (2.15). A derrota infligida pelos amorreus que
viviam nas montanhas mostra o abandono de Deus aos israelitas que buscam a vitória por suas
próprias forças, em oposição à palavra de Yahweh (1.42-45). Além destes incidentes, Deus,
também, executou sua ira contra aqueles homens de Israel que se entregaram à idolatria
moabita de Baal-Peor (4.3-4).
Representações e avaliações destes períodos [de Moisés até o exílio] são formuladas
em relação como a Lei dada a Israel por meio de Moisés (Dt 12-26), foi cumprida ou
violada no decorrer da história. O Deuteronômio serve de liderador programático do
bloco para o que se segue em Josué até Reis (...) É característico do autor-
compilador de HD [História Deuteronomista] suprir os principais períodos históricos
com passagens interpretativas na forma de exames introdutórios e sumários,
discursos e orações (...) Estes suplementos interpretativos periodizam e matizam os
materiais mais antigos incluídos e ligam os quatro períodos históricos segundo o
programa moral-teológico estabelecido no Deuteronômio (Gottwald, 1988, p. 180).93
Diante disso, nesta parte da dissertação, serão abordados, de forma sucinta, os textos
de Josué 23, Juízes 3.7-11, 1 Samuel 7.2-14 e 2 Reis 17.7-23, que exemplificam o uso da
moldura pactual deuteronômica para a compreensão da história israelita.94
22
Em Josué 23, após a conquista inicial e fundamental de Canaã (v. 1), o líder nacional
convocou a liderança de Israel e os exortou a darem seqüência à tomada da terra prometida
(vv. 2-4). A conquista é vista como bênção graciosa de Deus dada a Israel (v. 3, 9-10) em
resposta à confiança e obediência do povo a Ele (vv. 6-8; cf. 1.6-9).95 Ao mesmo tempo, há
uma ameaça prevista por Josué que reflete a perspectiva deuteronômica: se Israel não cumprir
o mandamento divino de eliminar as nações que ainda restam diante de si (v. 12; cf. Dt 7.1-6)
e se prostituir diante de seus deuses (v. 16), será disciplinado por Deus e eliminado da terra
(v. 13, 15).96
95 Anthony F. CAMPBELL, Mark A. O’BRIEN Unfolding the deuteronomistic history: origins, upgrades,
present text, p. 160-161.
96 Norman K. GOTTWALD, Introdução socioliterária à Bíblia hebraica, p. 181.
97 Cf. 1 Samuel 12.9-10. Ver Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 229-
230; Walter C. KAISER, Teologia do Antigo Testamento, p. 142. Para uma posição diferente, que vê o
arrependimento de Israel como superficial, cf. K. GOTTWALD, op. cit., p. 184.
23
com a idolatria comum em Canaã, chegando ao ponto de oferecerem seus próprios filhos em
sacrifício (v. 16-17; cf. Dt 12.30-31). Apesar do chamado profético para que o povo se
voltasse (vWb) para Deus em uma obediência completa (v. 13), conforme a esperança
Deuteronômica da reversão de sorte,98 não houve qualquer resposta positiva da parte do povo
(vv. 14-15).99
Diante da contínua dureza de coração de Israel para ouvir o chamado divino, tanto a
população do reino do Norte quanto Judá são eliminados da terra (vv. 18-20, 23),100 como
cumprimento da palavra divina anunciada por Moisés nas planícies de Moabe (cf. Dt 4.25-27;
28.49ss).
O cântico de Ana (2.1-10), por sua referência ao rei (v. 10), sugere, para muitos
teólogos, uma redação posterior à época dos juízes, mais propriamente durante a monarquia e,
possivelmente, anterior ao exílio.105 Há a proposta de que devido às expressões “inimigos”,
“libertação”, “não é pela força que o homem prevalece,” et al, o Sitz im Leben da composição
101 Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible
commentary, v. 3, p. 556.
102 Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 31; Mary J. EVANS, 1 and 2 Samuel, p. 4;
O’BRIEN, Unfolding the deuteronomistic history: origins, upgrades, present text, p. 220; Robert P. GORDON,
op. cit., p. 22-24; Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. XXX; Marc BRETTLER, The composition of 1 Samuel 1 and
2. Journal of Biblical Literature, v. 116, no. 4, 1997, p. 601-612.
104 Anthony F. CAMPBELL, Mark A. O’BRIEN, op. cit., p. 220; Joyce G. BALDWIN, op. cit., p. 32; Claus
Depois de 200 anos de crítica bíblica no Ocidente, é preciso encarar o fato de que
mesmo conceitos estabelecidos, tais como o Pentateuco, têm sido abalados por
teorias conflitantes quanto à autoria. Na ausência de critérios objetivos, não há
qualquer maneira, fora do consenso entre os estudiosos, que dura algum tempo,
porém aberto a novas tendências, de avaliar todo o árduo trabalho dispendido [sic]
na busca de fontes, mas que resultou num número tão variado de possibilidades.
(1996, p. 33)
Sem dúvida alguma, o livro de Samuel foi produto de um trabalho editorial, que uniu
fontes das várias épocas da história de Israel e as tornou compreensíveis dentro de uma grande
narrativa.111 A edição do livro deve ter ocorrido, pelo menos, posteriormente ao fim do
reinado de Davi (970 a.C.), desde que reporta “as últimas palavras” do rei (2 Sm 23.1).112
Provavelmente, foi composto durante a monarquia dividida, após 930 a.C., devido à indicação
de que Ziclague pertencia aos reis de Judá “até os dias de hoje” (1 Sm 27.6).113 A ausência de
106 Robert P. GORDON, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 79; Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. 15.
107 Êxodo 15 e Juízes 5 trazem dois exemplos de poesia antiga.
108 Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 61-62; Cf. Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2
Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 79.
109 Robert P. GORDON, op. cit., p. 23; Joyce G. BALDWIN, op cit., p. 62-63.
110 Para a proposta de Noth e outros insights a partir dela tanto para os Profetas Anteriores quanto para Samuel,
ver: Martin NOTH, The Deuteronomistic History, passim; Anthony F. CAMPBELL, Mark A. O’BRIEN,
Unfolding the deuteronomistic history: origins, upgrades, present text, passim.; Ralph W. KLEIN, op. cit., p.
XXVIII-XXXII; Robert P. GORDON, op. cit., p. 20-21.
111 Mary J. EVANS, 1 and 2 Samuel, p. 2; William S. LASOR, David A. HUBBARD, Frederic W. BUSH,
Introdução ao Antigo Testamento, p. 180. Ver, por exemplo, a menção ao “livro dos Justos” em 2 Samuel 1.18.
112 Ronald F. YOUNGBLOOD, op. cit., p. 554.
113 Id., Ibid.; Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 253.
26
qualquer menção à queda de Samaria pode indicar que a obra fora concluída até antes de 722
a.C.114 Portanto, é plausível uma datação para a edição do livro entre 930 e 722 a.C.
A história narrada no primeiro capítulo do livro de Samuel e que serve como pano de
fundo para a poesia cantada por Ana, ocorre no final da época tenebrosa dos juízes, quando
Eli exercia tal função de liderança em Israel (cf. 1 Sm 4.18).115 O texto começa com a
genealogia de um homem chamado Elcana que, provavelmente, era um levita (cf. 1 Cr 6.16,
22, 31-33) cuja família vivia na região montanhosa de Efraim, no povoado de Ramataim ou
Ramá (1 Sm 1.1; cf. 1.19; 7.17).116
Era costume de Elcana subir, anualmente, talvez durante a festa dos tabernáculos (cf.
Jz 21.19-21),120 ao santuário em Siló que, desde a conquista, ocupava uma posição central na
vida cúltica israelita e passou a ser o lugar onde repousava a Arca da Aliança (Js 18.1; Jz
18.31; 1 Sm 4.3-4).121 Ali, ele cumpria seus deveres como adorador de “Yahweh dos
exércitos”,122 oferecendo sacrifícios (1 Sm 1.3). Siló era o lugar onde vivia o sacerdote e juiz
Eli, juntamente com seus dois filhos, Hofni e Finéias, os quais serviam a Yahweh no
santuário. Ambos são introduzidos nesta passagem como contraponto à piedade de Elcana,
pois, a maldade dos dois será desmascarada mais à frente na narrativa (cf. 1 Sm 2.12ss).123
que Ana era a primeira ( - a^j^t) e Penina, a segunda ( - h^v@n't), sugerem fortemente que os
casamentos ocorreram em tal seqüência. Ver, também, KLEIN, Ralph W. op. cit. p. 6.
118 Ronald F. YOUNGBLOOD, op. cit., p. 571.
119 Ralph W. KLEIN, op. cit., p. 6; Ronald F. YOUNGBLOOD, op. cit., p. 572.
120 William S. LASOR, David A. HUBBARD, Frederic W. BUSH, Introdução ao Antigo Testamento, p. 181;
571.
122 Para uma explicação sobre o sentido do termo e sua origem, ver o sub-ponto seguinte deste trabalho e os
comentários de Robert P. GORDON, op. cit., p. 71-72; Ronald F. YOUNGBLOOD, op. cit., p. 571.
123 Joyce G. BALDWIN, op. cit., p. 58.
27
A refeição familiar em acompanhamento ao sacrifício sugere que Elcana oferecia
ofertas pacíficas, nas quais o adorador compartilhava do alimento com os sacerdotes (1 Sm
1.4-5; Lv 7.11-18).124 Neste momento, a diferença gritante entre Ana e Penina ficava nítida,
pois, esta compartilhava de tal momento com “todos os seus filhos e filhas”, enquanto a outra,
apesar de receber uma parte honrosa da refeição de seu marido, 125 deparava-se com os
resultados solitários da infertilidade. Somado a isso, Penina, ao perceber a afeição maior do
marido por Ana, irritava-a de modo insistente e excessivo, o que gerava maior tristeza e ira
em Ana (1 Sm 1.6-8).126
Confiante na resposta divina ao seu pedido, talvez por ouvir a bênção sacerdotal, 130
Ana volta para participar da refeição religiosa, não mais triste como antes (vv. 18). O texto
comenta que, após isso, Yahweh agiu em prol de Ana e lhe concedeu um filho, a quem deu o
nome de Samuel, reconhecendo que seu pedido fora “ouvido por Deus” (1 Sm 1.19-20).131
124 Mary J. EVANS, 1 and 2 Samuel, p. 16; Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 58.
125 H.W. HERTZBERG, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 24. Hertzberg sugere alguns sentidos possíveis para a
palavra hebraica (a^pP`y!m) que ajudam no entendimento desta expressão incomum.
126 Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible
commentary, v. 3, p. 571-572.
127 Joyce G. BALDWIN, op. cit., p. 59; Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. 8; Mary J. EVANS, op. cit., p. 18.
128 H.W. HERTZBERG, op. cit., p. 25; William S. LASOR, David A. HUBBARD, Frederic W. BUSH,
p. 574.
131 Tony W. CARTLEDGE, Hanna asked and God heard. Review and Expositor, v. 99, Spring 2002, p. 143-144.
Cartledge oferece uma boa explicação para o nome, com exemplos da literatura do oriente antigo, na qual Ana
reconhece que Deus ouvira sua oração. Assim o nome (v+mWa@l) deriva da junção do verbo (vmU) no
particípio passivo e o substantivo (a@l), significando “ouvido por Deus”. Ver a mesma proposta etimológica
do nome em C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the books of Samuel, p. 25.
28
No decorrer da narrativa, fica claro que a dedicação do menino a Deus incluía sua
consagração ao trabalho no santuário por toda a vida (1 Sm 1.21-22). Seu marido Elcana
consente com o voto da esposa (cf. Nm 30.6-8, 10ss),132 e invoca a capacitação divina para
que Ana cumpra com seu compromisso perante Yahweh (v. 23).133 Isso ocorre,
provavelmente, por volta dos três anos de idade ou um pouco mais, depois que Samuel é
desmamado (cf. 2 Macabeus 7.27).134 Quando sobe para entregar o menino aos cuidados de
Eli, para o serviço de Yahweh, em Siló, Ana leva as ofertas necessárias, e as oferece em sinal
de gratidão a Deus (1 Sm 1.24-25).135 Então, lembra a Eli de que Samuel era a resposta
graciosa divina àquela oração em que se derramara diante de Deus, na presença do próprio
Eli, clamando por um filho (1 Sm 1.25-27).136 Finalmente, o menino é confiado aos cuidados
do sacerdote e dedicado a Yahweh por toda a sua vida (v. 28).
A história e cântico de Ana apresentam uma riqueza de temas teológicos sobre Deus,
sua ação na história e o viver piedoso de uma israelita na terra concedida por Yahweh, em seu
amor leal a Israel. Nesta parte do trabalho, serão desenvolvidos aqueles pontos que mais se
destacam no texto e que possuem uma conexão clara com o Deuteronômio.
132 H.W. HERTZBERG, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 28; Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In:
Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 574.
133 Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 60; Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p.10.
134 Mary J. EVANS, 1 and 2 Samuel, p. 19; Robert P. GORDON, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 77; H.W.
plausíveis. Ela observa que havia três ofertas a serem feitas por Ana, conforme instituído pelo livro de Levítico:
a oferta queimada, a de purificação e a oferta pacífica em cumprimento de um voto. Além disso, um efa de
farinha equivalia a três vezes mais da quantidade normal a ser oferecida com um touro (Nm 15.9). Ver Joyce G.
BALDWIN, op. cit., p. 60.
136 Há um nítido jogo de palavras com o verbo (v*a^l) no versos 27-28 que ressalta a gratidão de Ana por
receber o que “pediu” do Senhor e alegremente o “devolver” ou “dedicar”. Ver Robert P. GORDON, op. cit., p.
78; Ronald F. YOUNGBLOOD, op. cit., p. 577-578.
29
necessitados.137 Desde o início da história, Yahweh se encontra ativo. Primeiramente, Ele é o
responsável pela esterilidade de Ana, ao “fechar seu ventre” (1 Sm 1.5-6). Em momento
algum a narrativa sugere que a esterilidade se dá como castigo divino por algum pecado
cometido por ela (cf. Dt 28.1, 4, 8).138 Tal ação de Deus ocorre com o alvo de destacar Sua
graça e soberania na concessão posterior de um filho a uma mulher estéril, completamente
incapaz de gerar descendentes por suas próprias forças (1 Sm 1.19-20).139 Isso propicia uma
total dependência de Deus por parte de Ana, expressa em sua oração de petição (1.11 - “se
atentares”; “se te lembrares”; “se deres”; “tua serva”, três vezes) e no cântico de
agradecimento (2.5), ressaltando um propósito didático pelo qual Yahweh permite situações
adversas na vida de seus fiéis, a fim de conduzi-los à confiança exclusiva nele.
2001, p. 176; C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the books of Samuel, p. 30.
143 Robert P. GORDON, op. cit., loc. cit.; Ralph W. KLEIN, op. cit., p. 15.
30
quem vindica Ana (Dt 32.35), pois Yahweh ouviu sua oração e efetuou tamanha salvação em
seu favor, ao conceder-lhe o filho (“me alegro em Tua salvação”).144
F. BROWN, S. DRIVER, C. BRIGGS, The Brown-Driver-Briggs Hebrew and English lexicon, p. 780. Wanke
destaca a relação do termo com a humilhação, o abatimento e a insignificância como um estado causado ou
extinto por Yahweh, seja no abatimento e destruição de cidades (“lança ao pó”, Is 25.12 e 26.5) ou na remoção
da degradação e da insignificância experimentadas por uma pessoa (“ergue do pó”, 1 Sm 2.8; 1 Rs 16.2). Ver G.
WANKE, “”. In: Ernst JENNI, Claus WESTERMANN, Theological lexicon of the Old Testament, v. 2, p.
940.
148 Ronald B. ALLEN, “”. In: Laird R. HARRIS, Gleason L. ARCHER, Jr., Bruce K. WALTKE, Dicionário
A temática da libertação divina em prol de seu povo eleito e necessitado possui uma
conexão importante entre 1 Samuel 1.19-20 e 2.1, 8 e o quinto livro do Pentateuco. Neste
último, diversas vezes, Israel é descrito como povo que se encontrava debaixo da escravidão
egípcia, sem qualquer expectativa de libertação por suas próprias forças (Dt 5.6, 15; 6.12, 21;
7.8; 8.14; 13.5, 10; 15.15; 24.18, et al).152 A angústia da escravidão chega a ser retratada de
modo vívido como uma fornalha de ferro (4.20).153 Tal condição destaca o agir de Yahweh em
favor de seu povo, que, com seu poder grandioso (3.24; 4.34; 5.15; 6.22; 7.19), tira Israel de
seu Sitz im Leben de fraqueza e miséria (4.20, 37; 5.6, 15; 6.12, 21; 9.12) e o conduz a uma
posição honrada, em uma terra própria e abençoada (4.38; 6.10, 23; 7.1; 8.7; 32.20). Se Israel
vivesse de modo piedoso na terra, experimentaria o favor de seu Deus, o qual exaltaria o
antigo povo escravo a uma posição de domínio sobre as nações (Dt 15.5-6).
150 Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible
commentary, v. 3, p. 581; Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. 18; C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary
on the books of Samuel, p. 33. Aqui, opta-se pelo Texto Massorético, cuja leitura é mais difícil do que a da LXX
e, portanto, mais provável.
151 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), op. cit., v. 3, p. 75.
152 O substantivo hebraico (U#b#d) aparece 29 vezes em Deuteronômio, em 12 ocorrências caracteriza tanto o
Egito como a “casa de servidão (lit. dos servos)” e o próprio povo de Israel como “servo” ou “servos” de Faraó,
ou no Egito.
153 Earl S. KALLAND, op. cit., p. 45-46.
32
O regozijo de Ana pela “salvação” (y+vW>) concedida por Yahweh diante de sua
rival (a{y+b'm) (1 Sm 2.1), faz coro à proclamação mosaica de que o Senhor é quem peleja
por Israel contra seus inimigos (a{y+b'm) e lhe dá salvação (y+vW>) (Dt 20.4; 33.29).
O retrato do fiel como aquele que depende exclusivamente de Yahweh para a sua
salvação, no verso 1 do capítulo 2, contrasta fortemente com os orgulhosos do verso 3, os
quais não levam em conta o caráter supremo do Deus de Israel e confiam em si mesmos. A
reversão de sortes descrita na seqüência (vv. 5-7), precisa ser vista à luz desta ênfase do
julgamento de Yahweh sobre os soberbos e sua bênção aos fiéis.154
154 John A. MARTIN, The Literary Quality of 1 and 2 Samuel. Bibliotheca Sacra, v. 141, no. 562, April-June
1984, p. 135-136; Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 63-64; Robert P. GORDON,
1 & 2 Samuel: a commentary, p. 79.
155 H.W. HERTZBERG, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 30; Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In:
Biblical commentary on the books of Samuel, p. 31. Esse detalhe parece ser ignorado ou desprezado pelas
versões em português Revista e Atualizada, Nova Versão Internacional e Revista e Corrigida. Já a Bíblia de
Jerusalém apresenta maior sensibilidade a tal aspecto lingüístico e traduz a expressão hebraica como “Deus
cheio de saber”.
157 Ver o mesmo entendimento do texto em Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 290.
158 Provérbios 24.12 apresenta este conceito duplo: “Se disseres: ‘Não o soubemos’, não o perceberá aquele que
pesa [T*k^n]os corações? Não o saberá aquele que atenta para a tua alma? E não pagará ele ao homem segundo
as suas obras?” (grifo do autor). Ver ; Robert P. GORDON, op. cit., p. 79; Ronald F. YOUNGBLOOD, op. cit.,
33
enfatiza o exercício do justo juízo de Yahweh sobre as ações humanas, pois ele é capaz de
sondar seus corações e avaliar com retidão os seus atos.159
Ele ajudará aqueles que se lançam sobre Ele, clamando pela provisão de que
precisam (...) Pessoas aparentemente sem importância se tornam importantes, e
aqueles que parecem ser importantes, tornam-se sem importância. O fator crucial
para eles como israelitas era sua resposta à vontade de Deus, conforme contida na
Aliança Mosaica. (Constable, 2007a, p. 13-14, itálico próprio).
Aquilo que ocorre no campo da história humana tem uma fonte sobrenatural,
explicitada nos versos 6-8. Yahweh é quem tira a vida e a dá, que põe fim à existência terrena
humana no Sheol, ou livra o fiel do mundo dos mortos por meio da cura (v. 6; cf. Dt 32.39; Sl
30.2-3).163 Tanto riqueza quanto pobreza, exaltação e humilhação provêm do Senhor (vv. 7-8).
p. 580. O uso do verbo no Particípio Nifal em Ezequiel auxilia na compreensão do vocábulo com o sentido de
“ser justo” ou “ser reto”.
159 C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the books of Samuel, p. 31-32.
160 O verbo j`d~l oferece a possibilidade semântica de “engordar” ou “ser bem nutrido”. Cf. Joyce G.
BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 64; Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. 17; Robert P.
GORDON, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 80.
161 Mary J. EVANS, 1 and 2 Samuel, p. 22; Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In: Frank E.
GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 580-581.
162 Mary J. EVANS, op. cit., p. 21.
163 Ronald F. YOUNGBLOOD, op. cit., p. 581; Ralph W. KLEIN, op. cit., p. 17.
34
O final da poesia torna claro o que ficara subentendido até então. Yahweh “guarda os
pés” daquele que é “fiel” à aliança (h&s'do) (2.9).164 O substantivo h*s'd, apesar de conter
um significado amplo, mantém a idéia básica de alguém comprometido em uma aliança de
amor com Yahweh, em que o j#s#d ou “amor leal” é experimentado e demonstrado.165 Ter os
pés guardados é uma figura de linguagem originada, provavelmente, nas viagens feitas pelos
antigos israelitas que incluía, na maior parte, andar a pé por sendas rochosas e perigosas (cf.
Sl 91.11-12; 121.3).166 Portanto, a expressão indica o cuidado e proteção de Yahweh para com
os que vivem conforme sua vontade revelada (Pv 3.26),167 especialmente, proteção da morte
(Sl 56.13 [Heb. v. 14]; 116.8), já que, após ela, não há mais como louvar ao Senhor e
desfrutar de suas bênçãos (cf. Sl 6.5; 88.10-12; 115.17; Is 26.14; 38.18). Aqui há um forte
contraste com os ímpios que são retratados na seqüencia do paralelismo poético.
Os que se opõem a Yahweh, confiando na própria força humana (cf. v. 9), serão
quebrados por ele, assim como o arco dos fortes (2.10; cf. v. 4, verbo j*t~t). O texto conecta
este fato com o juízo de Deus sobre as extremidades da Terra (2.10). 171 Em contraste com os
rebeldes e auto-suficientes, o rei ungido de Israel, escolhido por Yahweh para governar seu
164 Robert P. GORDON, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 80; H.W. HERTZBERG, 1 & 2 Samuel: a
commentary, p. 31.
165 Laird R. HARRIS, “”. In: Laird R. HARRIS, Gleason L. ARCHER, Jr., Bruce K. WALTKE, Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento, p. 581; J Robert. VANNOY, “1 e 2 Samuel”. In: Kenneth
BARKER (Org.), Bíblia de estudo NVI, p. 420; F. BROWN, S. DRIVER, C. BRIGGS, The Brown-Driver-
Briggs Hebrew and English lexicon. p. 339.
166 J Robert. VANNOY, op. cit., p. 420.
167 Robert P. GORDON, op. cit., p. 80.
168 Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible
commentary, v. 3, p. 581.
169 Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. 18.
170 Ibid., p. 18-19.
171 Robert P. GORDON, op. cit., p. 81.
35
povo, terá sua força exaltada assim como Ana e os fiéis à aliança (v. 10 – w+y*r#m q#r#n;
cf. v. 1).172 O favor de Yahweh sobre o rei do povo escolhido reflete o conceito do Salmo
89.17-18 [Heb. vv. 18-19], no qual o monarca é retratado como pertencente ao Santo de Israel
e o instrumento pelo qual Yahweh exalta o q#r#n da nação. Assim, a bênção sobre o rei
implicava em bênção sobre o povo.173
Portanto, a visão de Yahweh como o Senhor da história e justo Juiz que abate os
orgulhosos e exalta os humildes compõe o cerne da teologia do cântico de Ana. 174 Há um
chamado à dependência e à lealdade a Yahweh e uma lembrança de que o resultado desta
escolha será uma vida realizada que desfruta das bênçãos plenas de Deus. Por outro lado, o
cântico adverte os orgulhosos, perversos e auto-suficientes de que seu estilo de vida trará um
saldo negativo de vergonha e humilhação, pois Yahweh não admite nenhum concorrente e
destrói os que desafiam seu poder ou menosprezam sua majestade. 175
172 Mary J. EVANS, 1 and 2 Samuel, p. 21; Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 65.
173 Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. 19.
174 Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 267.
175 Este motif da reversão de sortes da humilhação e infertilidade para a bênção e vitalidade, e vice-versa,
conforme a fidelidade ou infidelidade à aliança, permeará todo o restante do livro de Samuel, oferecendo uma
chave hermenêutica indispensável para a compreensão de toda a narrativa desenvolvida na obra. Ver os dois
artigos de John A. MARTIN, The Structure of 1 and 2 Samuel. Bibliotheca Sacra, v. 141, no. 561, January-
March 1984, p. 31-32, 40; _________________. The Literary Quality of 1 and 2 Samuel. Bibliotheca Sacra, v.
141, no. 562, April-June 1984, p. 133-144.
176 Ver página 33. Cf. Thomas L. CONSTABLE, Notes on 1 Samuel, p. 13-14.
177 Carlos Osvaldo PINTO, op. cit., p. 266.
178 Ibid., p. 265; cf. John A. MARTIN, The Literary Quality of 1 and 2 Samuel. Bibliotheca Sacra, v. 141, no.
562, April-June 1984, p. 132; Joel ROSENBERG, “1 e 2 Samuel”. In: Robert ALTER, Frank KERMODE, Guia
literário da Bíblia, p. 138.
179 John D. W. WATTS, The deuteronomic theology. Review and Expositor, v. 74, no. 3, 1977, p. 329.
36
apresenta bênçãos e maldições enquanto sanções da aliança entre Yahweh e Israel. 180 A
obediência da nação resultaria no desfrute do favor de Deus, i.e., prosperidade, longevidade e
paz na terra, ao passo que a desobediência traria o castigo divino, doenças, infertilidade da
terra e expulsão dela (Dt 4.15-40; 8.18-20; 11.8-17, 22-32; 27.9-26; 28.1-68; 30.1-20). A
fidelidade ou infidelidade ao Deus da aliança são os critérios para o juízo ou bênção do povo
(Dt 28.1-68). Por isso, Moisés exorta os israelitas, diversas vezes, à obediência a seu Deus,
para que experimentem seu favor (Dt 4.40; 5.16; 7.9-15; 11.8-10; 13.17-18; 30.19-20).
180 J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 72; K.A. KITCHEN, Ancient Orient and Old
Testament, p. 93, 97; Moshe WEINFELD, “Deuteronomy, book of”. In: D. FREEDMAN (Ed.), Anchor Bible
Dictionary, p.180. Ver as páginas 10-11 da presente dissertação.
181 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v.
182 Por exemplo, o cântico de Ana fala sobre os “fracos” serem revestidos de força, os “famintos” engordarem, a
“estéril” dar à luz a setes filhos, o “pobre” ou “necessitado” ser exaltado à posição de príncipes e o “rei” ou
“ungido” ter sua força exaltada.
183 O juízo anunciado por Deus contra a nação por sua idolatria em Dt 8.19-20 está intimamente relacionado com
a soberba e auto-confiança dela, descritas nos versos 10-18, que levariam à adoração de outros deuses. A mesma
seqüência de infidelidade, autossuficiência seguida por idolatria, aparece em Dt 32.15-16. Cf. J. A.
THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 286-287.
184 Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 66.
185 Gail O’DAY, Singing woman’s song. Currents in Theology and Mission, v. 12, no. 4, 1985, p. 204-205.
186 Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. 17.
38
história do capítulo inicial de Samuel. 187 Uma expressão que tem chamado a atenção dos
estudiosos no debate quanto ao seu significado e conteúdo teológico.188 Muitos vêm
observando o uso abrangente do termo x*b*a tanto em relação ao exército humano de Israel
(1 Sm 17.45), como, também, em conexão aos seres angelicais (Js 5.14ss) e aos corpos
celestes (Dt 4.19; Is 40.26).189 Este último uso do substantivo ocorre apenas no singular e
nunca ligado diretamente à expressão yhwh x+b*aot.190
O contexto em que tal nome divino é aplicado parece ressaltar não tanto o caráter
guerreiro do Deus de Israel, como mais um entre os principais deuses-guerreiros das outras
nações, 191 mas, principalmente, o “majestoso esplendor do domínio de Iavé”. 192 O termo,
portanto, é “predominantemente real”. 193 No livro de Samuel, a realeza de Yahweh dos
Exércitos é bem nítida, por exemplo, em 1 Samuel 4.4: “... a arca do SENHOR dos Exércitos,
entronizado entre os querubins” (grifo do autor). Ainda que a narrativa fale sobre a batalha
entre os israelitas e os filisteus, a ênfase da expressão não está sobre um Deus militante, pois
seria surpreendente sua primeira ocorrência em narrativas de guerra, num combate nada
glorioso para Yahweh. Conforme observou J.P. Ross: “Mas, de fato, ele não é aqui retratado
como um deus-guerreiro. Sua característica é sentar sobre um trono. Esta não é a atitude de
um soldado. São os reis que se assentam sobre tronos; o poder de Jahweh x+b*aot é real”. 194
Além do trecho samuelino 195 citado acima, 1 Samuel 15.2ss, também, descreve uma
cena de corte real em que yhwh x+b*aot pronuncia seu juízo e envia seu oficial para executá-
lo.196 Outrossim, Davi, em 1 Samuel 17.45, considera-se um soldado a serviço deste mesmo
rei. Os dois textos trazem consigo uma conotação militar, mas esta é um corolário do
187 Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 65; Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2
Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 571; John E. HARTLEY,
. In: Laird R. HARRIS, Gleason L. ARCHER, Jr., Bruce K. WALTKE, Dicionário internacional de teologia
do Antigo Testamento, p. 1258; C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the books of Samuel, p.
19.
188 J. P. ROSS, Jahweh x+b*aot in Samuel and Psalms. Vetus Testamentum, v. 17, no. 1, 1967, p. 76-77.
189 Robert P. GORDON, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 72-73; Eduard MACK, “God, names of”. In: James
ORR, The international Standard Bible encyclopedia. (Versão eletrônica disponível em Bíblia Online 3.0 –
Módulo Avançado); BALDWIN, Joyce G. Op cit. p. 57; Ronald F. YOUNGBLOOD, op. cit., p. 571. C. F.
KEIL, F. DELITZSCH, op. cit., p. 19-21.
190 J. P. ROSS, op. cit., p. 77.
191 John E. HARTLEY, op. cit., p. 1258-1259.
192 Ibid., p. 1259.
193 J. P. ROSS, op. cit., p. 78.
194 Ibid., p. 80.
195 Devo o uso deste termo ao Dr. Carlos Osvaldo em Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo
Testamento, p. 255.
196 J. P. ROSS, op. cit., p. 80-81.
39
significado majestático de Yahweh dos Exércitos, visto que o próprio rei aparece no livro de
Samuel liderando seu exército na batalha (cf. 1 Sm 15.4-9; 31.1-13; 2 Sm 11.1; 12.26-31).197
É uma suposição muito mais natural que, quando a invisível soberania de Jeová
recebeu uma visível manifestação no estabelecimento da monarquia, tal soberania
(...) necessariamente reivindicou o reconhecimento em seu poder e glória totalmente
abrangentes, e que no título “Deus dos exércitos (celestiais)”, a adequada expressão
foi criada para o governo universal do Deus-Rei de Israel – um título que serviu não
apenas como um baluarte contra qualquer ofuscamento da soberania invisível de
Deus pela monarquia terrena, como também lançou por terra a vã ilusão das nações
de que o Deus de Israel era simplesmente uma deidade nacional daquela nação
específica. (Keil & Delitzsch, 1865, p. 21.)
197 Sobre as guerras no antigo oriente e o envolvimento do rei nelas, ver Roland de VAUX, Instituições de Israel
no Antigo Testamento, p. 285-293.
198 J. P. ROSS, Jahweh x+b*aot in Samuel and Psalms. Vetus Testamentum, v. 17, no. 1, 1967, p. 82.
199 É importante notar que o próprio contexto da história de Ana é familiar e cúltico, não militar.
200 Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 57-59.
40
1.11, 19-20). Aqui, Yahweh é retratado conforme os reis da antiguidade, ele é Supremo e
Benfeitor.201
Outra parte do início de 1 Samuel que merece atenção em suas declarações acerca do
ser divino é o tricólon em 2.2. O primeiro atributo de Yahweh proclamado neste versículo é
sua santidade (q*dov). Tal qualidade em si é quase um sinônimo da divindade (compare Am
4.2 com 6.8; cf. Hc 3.3) e indica um mysterium tremendum, lembrando que Deus está acima
de todas as fraquezas e imperfeições dos seres humanos, por isso, é capaz de realizar
maravilhas (Êx 15.11).202 As observações de Ralph L. Smith são bem pertinentes e
esclarecedoras acerca do caráter santo de Yahweh no Antigo Testamento:
201 Roland de VAUX, Instituições de Israel no Antigo Testamento, p. 138-139; Herbert LOCKYER, All the
trades and occupations of the Bible, p. 128-129. Richard Patterson oferece vários exemplos das culturas
mesopotâmica, egípcia e siro-palestina em que o cuidado pelos pobres e desfavorecidos era uma atribuição do rei
ideal. Ver Richard D. PATTERSON, The widow, the orphan, and the poor in the Old Testament and extra-
biblical literature. Bibliotheca Sacra, v. 130, n. 519, July-August 1973, p. 226-228.
202 Thomas E. MCCOMISKEY, “” . In: Laird R. HARRIS, Gleason L. ARCHER, Jr., Bruce K. WALTKE,
Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, p. 1322.
203 Ibid., p. 1322-1323.
204 Ralph L. SMITH, op. cit., p. 183.
205H. P. MÜLLER, “”. In: Ernst JENNI, Claus WESTERMANN, Theological lexicon of the Old Testament,
v. 3, p. 110-111. H.P. Müller sugere que há uma influência cananita sobre o pensamento religioso hebraico, na
compreensão de santidade e majestade como idéias sinônimas. Quanto à ênfase na majestade divina dentro
cântico, ver estudo da expressão yhwh x+b*aot nas páginas 37-40 desta dissertação.
41
A transcendência divina intrínseca ao conceito de santidade pode ser vista na
declaração: “Eu sou Deus e não homem, o Santo no meio de ti” (Os 11.9). O Salmo 99
declara três vezes a santidade de Yahweh (vv. 3, 5, 9) e o termo claramente se relaciona com
sua majestade, supremacia e poder temível.
Portanto, deve-se entender a santidade divina em 1 Samuel 2.2 como uma indicação
de sua transcendência, especialmente pelos outros atributos destacados neste mesmo versículo
e pela própria declaração de que “não há Santo como o SENHOR” (grifo do autor). “Neste
contexto, a santidade de Deus se refere primariamente à sua soberania e incomparabilidade.
Ele é único e distinto de todo os outros assim chamados deuses”. 206
Robert Chisholm, em seu artigo Yahweh versus the Canaanite gods, fornece
informações importantes sobre o contexto cultual cananeu que serve como pano de fundo para
a poética de Ana e contra o qual o texto de 1 Samuel 2.1-10 pretende desafiar e se opor.207
Geralmente, nos mitos ugaríticos, a assembléia dos deuses era descrita como “filhos do
Santo” e El retratado como o líder da assembléia. 208 Além dele, Baal se encontra, muitas
vezes, na mesma posição de proeminência, como uma declaração da deusa Anate evidencia:
“O Todo-Poderoso Baal é nosso rei, nosso juiz, sobre o qual não há ninguém”.209 Diante
disso, a afirmação de Ana de que “não há ninguém santo como Yahweh”, é uma poderosa
declaração sobre a singularidade suprema de Yahweh que polemiza e abafa as reivindicações
das divindades cananéias.210
A frase seguinte: “porque não há ninguém além de Ti” (K' a?n B]lT#k`) - reforça o
caráter singular de Deus já subentendido na expressão anterior. Yahweh é o Deus santo,
transcendente, porque é o único, não há outro igual. 211 Esta frase encontrada de forma similar
em outros textos do Antigo Testamento (cf. 2 Sm 7.22; Dt 4.39; Is 45.6, 21), proclama em alto
e bom tom a crença monoteísta hebraica de que apenas Yahweh é Deus, nada nem ninguém
mais pode ser considerado ou adorado como tal.212
206 NET BIBLE, Biblical Studies Foundation. Disponível em www.bible.org. Acessado em Setembro de 2008.
(Versão eletrônica). 1 Samuel 2, s.n. (study note) 5.
207 Robert B. CHISHOLM, Jr., Yahweh versus the Canaanite gods: polemic in Judges and 1 Samuel 1 – 7.
commentary, p. 79.
42
A última parte do tricólon diz que “não há Rocha como o nosso Deus”. A palavra
hebraica xWr (“rocha”), geralmente, indica formações de pedra e, também, penhascos e
montes rochosos (cf. Êx 33.22; Nm 23.9; 1 Cr 11.15; Jó 14.18; 18.4; Is 48.21).213 Certamente,
o uso vetero-testamentário é metafórico e, de forma alguma, indica qualquer relação com uma
origem animista da religiosidade hebraica. 214 A figura da rocha associada a Yahweh,
descreve-o como um forte refúgio no qual seu povo pode se abrigar em meio às dificuldades
(Sl 18.2; 94.22; Is 17.10) e uma fonte de força inabalável (Sl 27.5; 62.2, 6, 7 [Heb. 3, 7, 8]). 215
Assim, o fiel é levado a confiar totalmente no caráter fiel, justo e protetor de seu Deus (Is
26.4; cf. Dt 32.4).
Ao declarar que Yahweh é uma rocha incomparável, o cântico de Ana expressa que
ele é a única fonte segura e permanente de cuidado, salvação e força (cf. 2 Sm 22.31-33, 47-
49; Dt 32.15).216 O Deus de Israel é o Fiel Protetor e Salvador de seu povo.
213 John E. HARTLEY, “” In: Laird R. HARRIS, Gleason L. ARCHER, Jr., Bruce K. WALTKE, Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento, p. 1278; NET BIBLE, Biblical Studies Foundation. Disponível
em www.bible.org. Acessado em Setembro de 2008. (Versão eletrônica). 1 Samuel 2, t.n. (translator’s note) 6.
214 Eduard MACK, “God, names of”. In: James ORR, The international Standard Bible encyclopedia. (Versão
commentary, v. 3, p. 581; Robert P. GORDON, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 79; Ralph W. KLEIN, 1
Samuel, p.16.
217 Eugene H. MERRIL, “Uma teologia do Pentateuco”. In: Roy B. ZUCK, Teologia do Antigo Testamento, p.
43
Antigo Oriente acerca da existência de outros deuses, mas nega a realidade deles, 219 já que
apenas Yahweh possui poder ou significância. 220
A glória temível que caracteriza o próprio ser do Soberano da aliança, uma clara
expressão de sua grandeza, deve levar Israel a temer o seu Senhor e obedecê-lo (Dt
28.58ss).221 No trecho de Deuteronômio 10.17-18 há um conceito próximo daquele expresso
por yhwh x+b*aot na história de Ana, em que o Deus de Israel é retratado conforme a figura
do rei no Antigo Oriente: ao mesmo tempo em que é Soberano, ele é, também, Benfeitor para
com uma mulher estéril e necessitada de seu povo.222 O mediador da aliança lembra que
Yahweh é o Rei e Deus Supremo preocupado em cuidar e promover o bem dos fracos e
necessitados sejam eles parte do seu povo ou a própria nação de Israel (Dt 10.17-19).223
Enquanto 1 Samuel 2.2 lança mão da palavra “Santo” para enfatizar a transcendência
de Yahweh, o livro de Deuteronômio o faz por meio das menções à revelação teofânica. Uma
clara ligação da aparição teofânica com a transcendência divina pode ser contemplada na
proibição contra a idolatria em Deuteronômio 4.15-20. Quando Deus revelou sua aliança no
Sinai para o seu povo, do meio do fogo (m!tTok h`a@v), deu-se a conhecer de um modo que
nenhuma forma criada fora contemplada por Israel (4.15; v. 12), o que demonstrou sua
completa transcendência sobre todas as criaturas e manifestou seu caráter Criador (4.16-19).
A aproximação teofânica de Yahweh para com Israel revelou ao povo sua glória e majestade e
marcou a distinção entre Deus e o ser humano (5.22-26).
219 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v.
3, p. 86.
220 J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p.143.
221 Earl S. KALLAND, op. cit., p. 175-176.
222 Ver acima, p. 39-40 e Nota de Rodapé 201.
223 Cf. John GOLDINGAY, Theological diversity and the authority of the Old Testament, p. 135-136.
224 Ver acima, p. 16-18.
44
a afirmação de que Yahweh é único em Deuteronômio 6.4, à luz de outros textos do mesmo
livro, é uma clara indicação da crença monoteísta hebraica contra o politeísmo cananeu (cf. Dt
5.7; 32.39).225
Outras afirmações deuteronomistas como hWa h*a$l)h'm a?n uod m]lb^Do (“Ele
é Deus, não há outro além/fora dele” – Dt 4.35),226 cuja base se dá na forma
incomparavelmente maravilhosa pela qual Deus libertou seu povo do Egito e na majestosa
revelação do Sinai (4.32-34), juntamente com a declaração exclusivista mais adiante, yhwh
hWa h*a$l)h'm B~V`m~y!m m!M~u~l w+u~l h*a*r#x m!tT*j~t ?n uod (“Yahweh é
Deus em cima nos céus e embaixo, sobre a terra; não há outro” – Dt 4.39),227 não deixam
espaço para a existência real de qualquer outra divindade, apenas Yahweh é o verdadeiro
Deus.228 A completa ineficácia dos ídolos, a ser experimentada na história posterior da nação
(Dt 32.37-38), comprovará que apenas o Deus de Jacó é Deus e não há nenhum outro como
ele (Dt 32.39). A confissão de Ana no cântico, “porque não há ninguém além de Ti” (K' a?n
B]lT#k`), é um eco da singularidade divina desenvolvida pelo Deuteronômio.229
Por fim, o quinto livro de Moisés, também, oferece uma visão de Deus como
Protetor. Seu cuidado é perceptível na peregrinação de Israel pelo deserto, em que Deus é
retratado como Pai para seu próprio povo (1.31) ou como a águia que cuida de seus filhotes
(32.10-11), dando-lhes orientação na viagem (Dt 1.32-33; 32.12-13), proteção (8.15; 32.10) e
suprimento de comida e roupa (8.3-4, 16; 32.13-14). Israel poderia contar com o mesmo
cuidado e proteção do Senhor na terra prometida (33.11-12), caso permanecesse leal à aliança
(cf. Dt 28.25ss). A figura de Deus como a Rocha em 1 Samuel 2.2 deve sua origem direta do
Deuteronômio.230 É no cântico do mediador da aliança que a palavra xWr aparece cinco vezes
como referência a Yahweh (Dt 32.4, 15, 18, 30, 31).
A rocha como metáfora para Deus no verso 4 contrasta com a nação israelita
corrupta dos versos 5-6. Ela indica, portanto, o caráter imutável, justo e forte de Yahweh que
225 Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 224; J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e
comentário, p. 117-118.
226 Luis Alonso SCHÖKEL, Dicionário bíblico hebraico-português, p. 88.
227 Ibid., p. 482.
228 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v.
Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 580.
45
proporciona segurança para seu povo, sendo digno de sua confiança. 231 A Rocha de Israel é
descrita como seu Salvador (32.15), pois o cuidado divino foi claramente evidenciado durante
sua libertação do Egito e sua peregrinação no deserto rumo à terra da promessa (32.7-14).
Dentro do ambiente de aliança, a proteção de Yahweh seria real e inabalável para com Israel,
desde que o povo se mantivesse leal ao seu Rei, caso contrário, eles sofreriam as
conseqüências por não confiarem no Senhor (Dt 32.30-31).232 Da mesma forma que no
cântico de Ana, o contexto do desfrute da segurança de Yahweh como fonte de abrigo ocorre
num andar em fidelidade a Ele (Dt 32.30). Além disso, as duas partes das Escrituras
reconhecem a singularidade de Deus como Rocha verdadeira (compare 1 Sm 2.2 com Dt
32.31).233
2.3. Conclusão
231 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v.
3, p. 200; J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 286-287.
232 NET BIBLE, Biblical Studies Foundation. Disponível em www.bible.org. Acessado em Setembro de 2008.
commentary, v. 3, p. 580.
46
3. IMPLICAÇÕES DA TEOLOGIA DEUTERONÔMICA PARA A COMUNIDADE
DA NOVA ALIANÇA
(...) nós encontramos aqui a mais admirável condenação daqueles fanáticos que
ostentam que o Antigo Testamento está abolido e não pertence em nível algum aos
cristãos; pois, com que desaforo podem eles desviar os cristãos daquelas coisas as
quais, conforme Paulo testifica, são designadas por Deus para a nossa salvação?
(Calvin, 1998, p. 407)
234Walter C. KAISER, Jr., The old promise and the New Covenant. Journal of Evangelical Theological Society,
v. 15, n. 1, 1972, p. 19.
47
3.1. Implicações da Teologia Própria Deuteronômica para a Adoração do Povo
da Nova Aliança
Outro atributo divino que caminha de forma íntima com a supremacia de Deus e
recebe destaque na teologia deuteronômica é sua transcendência. Como já ressaltado, isto é
percebido quando Deus é proclamado por Ana como o incomparavelmente Santo (1 Sm 2.2),
o mysterium tremendum, aquele que é “o completamente outro” e está acima das fraquezas e
imperfeições de suas criaturas (cf. o uso de “Santo” em Os 11.8; Am 4.2 e 6.8; Hb 3.3). 237 Da
48
mesma forma, o Deuteronômio destaca este caráter divino por meio de teofanias que o
distinguem de toda a sua criação e lhe conferem majestade absoluta (Dt 4.15-20; 5.22-26).238
238 Eugene H. MERRIL, “Uma teologia do Pentateuco”. In: Roy B. ZUCK, Teologia do Antigo Testamento, p.
79.
239 Valdeci dos SANTOS, Refletindo sobre a adoração e o culto cristão. Fides Reformata, v. 3, n. 2, 1998, p.
142.
240 Curtis VAUGHAN, “Colossians”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 11,
p. 216.
241 Eugene PETERSON, Baalism and Yahwism Update. Theology Today, v. 29, n. 2, 1972, p. 138.
49
cautelosos em apoiá-las. 242 Um exemplo deste tipo de atitude é o que se vê em parte do artigo
de um site de louvor e adoração na internet:
242 Eugene PETERSON, Baalism and Yahwism Update. Theology Today, v. 29, n. 2, 1972, p. 138.
243 Ibid., p. 143.
50
imanente. A comunidade cristã moderna vem enfatizando a experiência do crente durante o
momento de adoração em lugar do Deus glorioso e transcendente que estabelece a forma e o
tempo da adoração. Eugene Peterson classificou esta busca intensa por satisfação pessoal
como “neobaalismo”244 e afirmou o seguinte:
O culto passa, então, a girar em torno dos desejos do adorador, tentando satisfazê-los,
e tende a proporcionar um tempo de entretenimento empolgante. O culto “agradável” para o
adorador contemporâneo não é mais aquele em que há uma proclamação fiel das Escrituras,
mas o que lhe traz maior satisfação pessoal. 245 A ênfase na experiência subjetiva de adoração
torna a glória de Deus secundária no culto e faz do homem a medida suprema. O Criador
transcendente é substituído pela criatura limitada e a reverência humana devida ao único Deus
verdadeiro é trocada pela adoração ao próprio homem. O livro de Romanos descreve tal
postura como uma inversão do que Deus estabeleceu, trocando a verdade pela mentira e
dando glórias à criatura em lugar do Criador (Rm 1.21-23, 25).
Um exemplo disso pode ser visto na reportagem de uma revista, intitulada “Ao gosto
dos fãs”, que tratava acerca do lançamento do CD de uma cantora evangélica. Depois de
discursar acerca das qualidades e experiência da cantora, além das músicas que compunham
seu novo CD, o editor da revista evangélica escreve: “Resumindo: é um CD feito na medida
para agradar aos fãs de Assíria”.246 Outro caso semelhante se dá na gravação do álbum de
uma banda gospel de grande reconhecimento no cenário brasileiro, em que o vocalista inicia o
show expressando à platéia o seu desejo de que ela viesse a “curtir e se divertir do melhor que
o Oficina G3 tem a oferecer pra vocês”.247 Essa atitude centralizadora no homem e suas
experiências, durante a adoração pública, demonstra uma rejeição do Deus transcendente e é
condenada nas Escrituras como idolatria.
244 Eugene PETERSON, Baalism and Yahwism Update. Theology Today, v. 29, n. 2, 1972, p. 141.
245 Valdeci dos SANTOS, Refletindo sobre a adoração e o culto cristão. Fides Reformata, v. 3, n. 2, 1998, p.
140.
246 Carlos FERNANDES, Ao gosto dos fãs. Eclésia, ano 7, ed. 75, mar., 2002, p. 64.
247 Oficina G3. CD Acústico ao Vivo. Faixa 2. Gospel Records, 1999.
51
A Igreja de Cristo deve desenvolver, portanto, a perspectiva do Deus que é
singularmente Santo (1 Sm 2.2; Ap 15.4) e que requer adoração exclusiva a si, pois está acima
de qualquer ser criado e nada se assemelha a ele (Dt 4.15-19; Mt 4.8-10; 1 Tm 6.15-16). O
crente deve abandonar a busca pela gratificação psicológica enquanto adora e desenvolver um
santo temor e reverência quando se aproxima do Transcendente, assim como fizeram os
israelitas no deserto, ao se achegarem a Deus e verem a majestade de sua glória (Dt 5.22-26;
cf. Hb 12.28-29). A adoração contemporânea precisa deixar de ser uma capa protetora para os
interesses egoístas248 e tornar-se uma atitude de assombro diante do Deus santo e temível,
como ocorreu com Moisés e Isaías, quando se depararam com aquele que é majestosamente
“o Outro” (Êx 3.1-6; Is 6.1-6).
248 Eugene PETERSON, Baalism and Yahwism Update. Theology Today, v. 29, n. 2, 1972, p. 142.
249 Id., Ibid.
52
cântico, a própria Maria se identifica com uma posição de “humilhação” ( ) e se
auto-intitula “serva” ( ) (Lc 1.48).
É dentro de tal contexto, no alvorecer da plenitude dos tempos (Gl 4.4-5), que se
percebe a continuidade da ação compassiva e soberana de Deus em prol daqueles que são
desprezados e aflitos. No Magnificat, Maria, assim como Ana, reconhece que Deus é o seu
Salvador (Lc 1.46-47; cf. 1 Sm 2.1), pois, ele reverteu sua situação de humilhação para uma
posição em que todas as gerações a chamarão de bem-aventurada ( ) (Lc
1.48).254 Tal reversão de sorte, da humilhação para a exaltação, é proclamada pelo próprio
Jesus, quando chama de bem-aventurados ( ) os pobres, os famintos e os que
choram, porque herdarão o reino de Deus, serão saciados e consolados (Lc 6.20-21).
250 Gail O’DAY, Singing woman’s song. Currents in Theology and Mission, v. 12, no. 4, 1985, p. 207.
251 John CALVIN, Commentary on Matthew, Mark, Luke, v. 1, p. 65; Walter L. LIEFELD, “Luke”. In: Frank E.
GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 8, p. 836; Thomas L. CONSTABLE, Notes on Luke,
p. 24.
252 Joel B. GREEN, The Gospel of Luke, p. 103; John CALVIN, op. cit., p. 65; Gail O’DAY, op. cit., p. 207.
253 O verbo , a preposição , e a construção estão presentes tanto
em 1 Sm 1.11 [LXX] quanto em Lc 1.48. Ver “ ” (Lc
1.48) e “ ” (1 Sm 1.11 - LXX).
254 I. Howard MARSHALL, The Gospel of Luke, p. 82-83.
255 Joel B. GREEN, op. cit., p. 102.
53
O quadro do Poderoso que faz grandes coisas em favor de Maria ecoa a linguagem
do Deuteronômio, quando fala dos grandes sinais e maravilhas que Yahweh realizou com sua
poderosa mão, na salvação de seu povo Israel (cf. Dt 3.24; 4.34; 5.15; 6.22; 7.19).256 A
declaração de que “Santo é o seu nome [caráter]”257 aponta para a transcendência Majestosa
de Deus258 que possibilita seu agir em benefício de “pequeninos” como Maria e Ana (cf. 1 Sm
2.1-2; Sl 99.1-5). Neste sentido, a declaração de Jacques Dupont é salutar:
A compaixão de Deus como base para seu agir condescendente é ressaltada pelo uso
da palavra nos versos 50 e 54-55. Esta palavra, geralmente, traduz o termo hebraico
(j#s#d) e se refere à compaixão de Deus, especialmente demonstrada àqueles com quem
ele possui um relacionamento pactual (Lc 1.54-55, 72, 78; cf. Dt 5.10; 7.9, 12).259 O termo
grego aparece em Lucas, quase sempre, relacionado a Deus. A única vez que não está
relacionada à misericórdia de Deus, serve para qualificar a atitude de profunda compaixão que
o samaritano da parábola demonstrou para com o homem ferido e sem recursos, na estrada
para Jericó, cuidando de seus ferimentos e provendo-lhe um local para dormir (Lc 10.37).
(...) esta misericórdia é nada menos que a iniciativa graciosa de Deus, a qual é o
pressuposto para a criação de uma humanidade como sua parceira de aliança e para
o seu contínuo relacionamento com a humanidade, a despeito da constante oposição
de homens e mulheres ao seu propósito. (Green, 1997, p. 103-104).
256 Gail O’DAY, Singing woman’s song. Currents in Theology and Mission, v. 12, no. 4, 1985, p. 208.
257 Walter L. LIEFELD, “Luke”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 8, p.
836.
258 I. Howard MARSHALL, The Gospel of Luke, p. 83; Thomas L. CONSTABLE, Notes on Luke, p. 24. Para
uma exposição da santidade divina como sinal de sua transcendência, ver as páginas 40-41 desta dissertação.
259 Thomas L. CONSTABLE, op. cit., p. 24.
260 I. Howard MARSHALL, op. cit., p. 83.
54
que servirá de molde nas narrativas de Lucas e Atos. 261 Em que aspectos concretos, percebe-se
a ação de Deus em favor dos “pequeninos” neste novo momento da história da salvação?
261 John CALVIN, Commentary on Matthew, Mark, Luke, v. 1, p. 68-69; Joel B. GREEN, The Gospel of Luke, p.
102.
262 Leon MORRIS, Teologia do Novo Testamento, p. 186-187.
263 Darrel BOCK, “Teologia de Lucas-Atos”. In: Roy B. ZUCK, Teologia do Novo Testamento, p. 134; I. 263 I.
O rico representa aqueles que já têm sua consolação na sociedade e não necessitam
do consolo de Deus; eles, portanto, rejeitam o Profeta. O pobre representa todos
aqueles que foram rejeitados com base nos padrões humanos, mas são aceitos por
Deus; eles, em contrapartida, aceitam o Profeta. (1991, p. 22).
266 Darrel BOCK, “Teologia de Lucas-Atos”. In: Roy B. ZUCK, Teologia do Novo Testamento, p. 134.
267 Luke Timothy JOHNSON, The Gospel of Luke, p. 169-171; I. Howard MARSHALL, The Gospel of Luke, p.
434.
268 Joel B. GREEN, The Gospel of Luke, p. 23-24; Luke Timothy JOHNSON, op. cit., p. 22.
269 BRUCE, F.F, The book of Acts, p. 30.
56
O livro de Atos mostra como o Deus supremo continuou a estender seus braços de
misericórdia aos marginalizados, por meio da Igreja. 270 Esta apreendeu, em alguns momentos,
naturalmente, em outros, com muita dificuldade, a sua missão de proclamar as boas novas e
servir aos “pobres” em seu redor. A comunidade da Nova Aliança proclamou o evangelho e
ministrou a doentes (At 3.1-10; 5.12-16; At 14.8-13), a mulheres (At 5.14; 16.13-15), a viúvas
e pobres (At 6.1-7; 9.36, 39), a endemoninhados (At 8.4-8) e a escravos (At 16.16-21).271
Dificilmente, haveria um melhor modo de indicar que o mesmo Espírito que estava
em ação no Messias em sua proclamação das boas novas aos pobres e aos rejeitados
entre o povo e no chamado para um lugar no banquete de Deus, e que atuou,
também, em seus seguidores, do que mostrar os seguidores proféticos de Jesus
proclamando a mesma oferta de salvação, não apenas àqueles que eram, por herança,
parte do “povo de Deus”, mas a “todos a quem o Senhor, nosso Deus, chamar para
si” (At 2.39).
Apesar da dificuldade inicial para aceitar aqueles que eram diferentes e considerados
como pessoas de “segunda categoria” (cf. At 11.1-3; 15.1-2), a Igreja de Jerusalém percebeu
que “Deus não trata as pessoas com parcialidade, mas de todas as nações aceita todo aquele
que o teme e faz o que é justo” (At 10.34-35), assim, o evangelho se estendeu até os confins
da terra, chegando ao coração do império romano (At 1.8; 28.11-31).
Philip Yancey, em seu livro Maravilhosa Graça, apresenta um relato que aponta para
a falha da comunidade cristã em demonstrar a compaixão de Deus. Ele conta a história de um
de seus amigos, que trabalha com pessoas marginalizadas e que se defrontou com a realidade
de uma prostituta que alugava sua filha de dois anos de idade para homens interessados em
sexo pervertido. Sem saber o que dizer à mulher, seu amigo perguntou se ela nunca havia
270 Joel B. GREEN, The Gospel of Luke, p. 24; Luke Timothy JOHNSON, The Acts of the Apostles, p. 16.
271 Ben WITHERINGTON III, The Acts of the Apostles: a social-rethorical commentary, p. 71.
272 Ibid., p. 69.
57
pensado em ir à igreja para pedir ajuda, ao que ela, assustada, respondeu: “Por que eu iria a
uma igreja? Eu já me sinto terrível o suficiente. Eles vão fazer que eu me sinta ainda pior”. 273
Pertinentemente, Yancey observou:
O que me feriu na história de meu amigo é que mulheres muito parecidas com essa
prostituta procuraram Jesus, não fugiram dele. Por pior que uma pessoa se sentisse a
respeito de si mesma, ela sempre procurava Jesus como um refúgio. Será que a
igreja perdeu esse dom? Evidentemente, os desvalidos que recorriam a Jesus quando
ele vivia na terra já não se sentem bem-vindos entre os seus discípulos. O que
aconteceu? (1999, p. 9-10).
Esta situação é o oposto das boas novas pregadas e demonstradas por Jesus de
Nazaré que, ungido pelo Espírito Santo, “andou por toda a parte, fazendo o bem e curando
todos os oprimidos do Diabo, porque Deus estava com ele” (At 10.38).
O povo da Nova Aliança, então, precisa se dispor a estender suas mãos de compaixão
e trabalhar com aqueles a quem o mundo ao seu redor dá as costas, percebendo quem são e
como o evangelho pode transformar as suas realidades; sejam eles moradores de rua, grupos
de pessoas exploradas sexualmente, imigrantes de países pobres da América do Sul,
população de favelas nos seus arredores, pessoas sem alfabetização, entre muitos outros.
Uma maneira como a comunidade cristã pode levar o evangelho aos “pequeninos” é
o desenvolvimento de trabalho conjunto de igrejas locais com organizações missionárias, em
que os membros destas igrejas participem, freqüentemente, de atividades nas quais possam
servir aos grupos marginalizados, desde tarefas simples até áreas mais complexas que se
relacionem com suas capacidades e formações. 275 Outra possibilidade é o uso das instalações
da igreja local para trabalhos com a comunidade ao redor, como aulas de alfabetização, de
prática de esportes, aulas de computação e outras atividades que promovam o crescimento
pessoal e profissional daqueles que participam, sendo, antes de tudo, uma oportunidade para a
Um dos ângulos deste julgamento divino no Novo Testamento diz respeito ao destino
eterno dos homens. Aqueles que rejeitam a Cristo e a salvação oferecida por meio dele,
mantendo-se rebeldes e inimigos de Deus, serão condenados eternamente (Jo 3.18-20, 36; 2
Ts 1.8-10; 1 Jo 5.10-12), porém, os que se humilham diante de Deus, reconhecendo sua
necessidade de perdão, e confiam em Cristo para a sua salvação, recebem o favor divino e a
comunhão eterna com Deus (Jo 5.24; 17.3; Rm 5.8-11; Ef 2.8-9; Hb 9.27-28). Estes passam a
fazer parte da comunidade da Nova Aliança (Mt 26.28; Lc 22.20; 1 Co 11.25; Ef 2.11-22).
Muitas vezes esse dia é referido em termos de alegria do crente ao unir-se ao seu
Senhor. Mas o Novo Testamento não passa por alto o fato de que também será o
tempo de julgamento da obra que o crente realizou. Aqui a idéia é de uma prova
rigorosa, pois pode ser comparada com o fogo (...) Todos quantos são considerados
aqui, são salvos. Construíram sobre o fundamento único, Jesus Cristo. Até mesmo
do homem cuja obra se queima se diz que será salvo. A distinção é feita, não entre
os perdidos e os salvos, mas entre os que construíram bem e os que construíram
precariamente. Sofrerá ele dano (AV, “perda”) significa que ele perderá o seu
galardão, como um trabalhador punido pelo trabalho mal feito. (Morris, 1983, p. 54-
55).
Existem implicações vastas para o campo ético que tal ensinamento bíblico traz. No
presente trabalho, dar-se-á atenção para a relação entre esta teologia de Deus como o Juiz
Soberano e a prática da justiça social.
62
integrantes do esquema de corrupção.283 Tal “contexto de corrupção condiciona a autoridade
da Palavra de Deus, sugere a manipulação da mesma, enfatiza os elementos materialistas,
desemboca em numerosas heresias e sempre há uma total desconfiança em relação à
interpretação bíblica”.284
Aqueles que afirmam fazer parte da comunidade cristã e usam do poder para o
próprio benefício devem ser chamados ao arrependimento e a uma mudança de vida. Precisam
ser lembrados de que um dia todos comparecerão diante do tribunal divino e, ainda que sejam
salvos, caso permaneçam em sua conduta errada, serão envergonhados na vinda de Cristo e
deixarão de receber seu galardão (Rm 14.10-12; 1 Co 3.12-15; 2 Co 5.9-10; 1 Jo 2.28-29). Por
outro lado, há a importância de adverti-los que a falta de uma conduta justa, pode ser
evidência de que nunca experimentaram a nova vida em Cristo (1 Jo 3.6-10) e o juízo futuro
deixará bem claro a ausência de frutos de arrependimento e de justiça (Lc 3.8-14; Mt 7.17-
23).
Aos cristãos que sofrem pela injustiça, a comunidade do Novo Pacto deve promover
a esperança de que a vinda do Senhor porá fim ao contexto de corrupção e maldade em que
vivem (cf. Tg 5.7-8), enxugando todas as suas lágrimas (Ap 21.3-4). Ela pode alentá-los com
a certeza de que nenhuma situação de dificuldade e sofrimento é capaz de separá-los do amor
de Deus para com eles (Rm 8.35-39), que continua o mesmo amor que o levou a entregar o
próprio Filho em favor deles na cruz (Rm 5.8; 8.31-34). A Igreja deve proclamar a seus
membros oprimidos que Deus é “o Pai de misericórdias e Deus de toda consolação! É ele que
nos conforta em toda a nossa tribulação...” (2 Co 1.3-4). O Criador de céus e terras, também,
não está surdo ao clamor dos sofredores (Tg 5.4) e ele fará vingança no tempo certo (Rm
12.19-20).
A sociedade corrupta está em oposição ao reino de Deus, pois, é uma sociedade que
se autodestrói. A comunidade alternativa se caracteriza pela vida em justiça, amor,
serviço e santidade. A comunidade alternativa que não tem sido pervertida pelos
valores corruptos, será por sua própria existência, uma presença incômoda e
profética na sociedade. (WIENS, 1997, p. 83)
3.4. Conclusão
285 Jorge PINHEIRO, Pão, terra e justiça social. Vox Scripturae, v. VI, no. 2, dez. 1996, p. 308-309.
64
novas da salvação e no seu serviço aos marginalizados (Lc 4.18; 6.20-23; 5.27-32; 7.22, 28-
50; 15.1-2; 18.9-14; 19.1-10). Dentro desta compreensão da graça livre e soberana de Deus
nas obras e ditos de Jesus, o povo da Nova Aliança dá continuidade àquilo que Deus começou
a realizar por meio de Cristo e, como parte de sua missão, deve demonstrar compaixão para
com aqueles que são desprezados em sua sociedade, anunciando o evangelho da reconciliação
com Deus e expressando o mesmo amor que receberam do alto.
65
CONCLUSÃO
67
reflexões acerca da influência teológica fundamental do Deuteronômio sobre a historiografia
sagrada, contida nos Profetas Anteriores.
68
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