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BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude.

​Os herdeiros​: os estudantes e a


cultura. Tradução Ione Ribeiro Valle e Nilton Valle. Editora UFSC: Florianópolis,
2014. 172 p.1

Marcelo Pinheiro Cigales


Doutorando em Sociologia Política – UFSC.
marcelo.cigales@gmail.com

Resenha

O livro “Os herdeiros: os estudantes e a cultura” escrito em 1964, por Pierre


Bourdieu e Jean-Claude Passeron, é uma publicação que inaugura o campo de
investigação dos autores na área de Sociologia da Educação (Os Herdeiros, 1964; A
reprodução, 1970; Homo Academicus, 1984. Este último sem a colaboração de
Passeron). Em conjunto, Bourdieu e Passeron publicam seis anos depois, em 1970, “A
reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino”, obra que ganhou
destaque mundialmente e foi traduzido cinco anos depois, em 1975 no Brasil. Em “A
reprodução” os autores desenvolvem uma teoria mais robusta sobre as formas de
reprodução e manutenção da classe dominante, que se vale do sistema de ensino, para
perpetuar seu poder diante da estrutura social dividida em classes.
Publicado em 2014 no Brasil pela editora da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), “os herdeiros” contou com a tradução para a lingua portuguesa dos
professores Ione Ribeiro Valle e Nilton Valle, ambos da UFSC. O livro apresenta os
primeiros resultados de uma pesquisa de Bourdieu e Passeron sobre a educação e os
estudantes na França. Dividido em três capítulos e uma conclusão, a obra possui, além
de um índice remissivo e um prefácio escrito pela tradutora, dois apêndices sobre dados
estatísticos dos estudantes na França (entre 1960-1963) e alguns documentos resultados
de enquetes com esse público alvo.
No primeiro capítulo intitulado “A escolha dos eleitos” os autores comparam e
analisam as diferenças culturais que estão presentes nas origens sociais dos estudantes
univesitários da França. Um dos principais assuntos tratados nesta parte da obra,

1
Trabalho da disciplina de Tópicos Especiais: Estudos exemplares em Ciências Sociais ministrada pelo
professor João Pedro Simões Neto, do Programa de Pós-graduação em Sociologia Política da UFSC. 1ª
semestre de 2015.
refere-se a cultura da escola. Esta, não seria imparcial, pois reconhece e aceita como
legítima apenas uma cultura, a cultura da classe dominante. O mito do “dom” é posto
em xeque pelos autores que percebem este, como o resultado das desigualdades sociais
que fazem com que “[...] uma maior ou menor afinidade entre os hábitos culturais de
uma classe e as exigências do sistema de ensino ou os critérios que para ele definem o
sucesso.”.
Nesta parte do livro, há uma tentativa de desenvolver conceitos que consigam
apreender e compreender a complexidade das relações de dominação entre as classes.
Assim, o “arbitrário cultural”, conceito relevante em “A reprodução”, é esboçado aqui
de uma maneira mais simples.

Para os filhos de camponeses, de operários, de empregados ou de pequenos


comerciantes, a aquisição da cultura escolar é aculturação. [...]. É portanto,
sob a dupla relação da facilidade em assimilar a cultura e da propensão em
adquiri-la que os estudantes oriundos das classes camponesas e operárias
estão em desvantagem [...]. (BOURDIEU, PASSERON, 2014, p. 40).

O que os autores querem dizer é que entre as várias “culturas” existentes entre as
classes sociais, apenas uma (da classe dominante) é reconhecida e legitimada pela
escola. Nesse sentido, as desigualdades sociais são asseguradas pelo sistema de ensino,
pois consequentemente os filhos das classes dominantes terão mais facilidade em se
adequar a esse meio. Por outro lado, também se rompe o paradigma de que a escola
seria uma via de ascenção social igualitária.
No segundo capítulo “Jogo sérios e jogos de seriedade” os autores se utilizam de
dados qualitativos sobre a percepção que os estudantes tem de sí próprios. O que está
em relevo nesta parte do estudo “é a adesão ao jogo intelectual e aos valores” que nunca
são independente da origem social (BOURDIEU, PASSERON, 2014, p. 74). Nesse
sentido, os autores ressaltam:

Em nome da “seriedade” dissimulam-se portanto duas maneiras de viver a


condição estudantil. Uma é caracterizada sobretudo dos estudantes de origem
burguesa, que fazem de seus estudos uma experiência na qual não entram
problemas mais sérios do que aqueles que eles introduzem. Outra exprime a
inquietude do futuro própria dos estudantes vindos das camadas sociais mais
distantes da cultura escolar e condenadas a vivê-la irrealmente. Resulta que
nem todas as denúncias da irrealidade têm a mesma seriedade e que as
experiêncais mais sérias da irrealidade não necessariamente predispõem ao
irrealismo. (Ibidem).
A diferença entre as classes está impressa na preocupação dos estudantes. Se por
um lado, os advindos das classes dominantes, possuem estruturas estruturadas
predispostas a funcionar como princípios estruturantes de suas práticas e significações,
por outro, os filhos das classes mais distantes da cultura escolar tendem a viver tais
signicações irrealmente. Em outras palavras, esta seria a diferença entre habitus herdado
e habitus adquirido.
No último capítulo “Aprendizes ou aprendizes de feiticeiro?” Bourdieu e
Passeron, procuram mostrar como a cultura escolar se reproduz no interior do sistema
de ensino. Se por um lado, os filhos das classes dominantes herdam o “habitus”
desejado e legitimado por essa instituição social, não ocorre o mesmo com os filhos das
classes subordinadas que em alguns casos, tendem a apelar para o sobrenatural na
intenção de superação das dificuldades encontradas no seio desse esfera social.

Mantendo com seu futuro uma relação contraditória, o estudante pode reunir o
desprezo explicíto no que concerne aos meios racionais que permitiriam
dominá-lo e a adesão vergonhosa às receitas e aos truques, mais mágicos que
técnicos, que lhe permitem exorcizar as ameaças. (BOURDIEU, PASSERON,
2014, p. 87).

A conclusão do trabalho apresenta outros argumentos que reforçam as


afirmações da escola como reprodutora da ideologia dominante. Entre estes está o
concurso. Para os autores (2014, p. 92-93), “compreende-se que esse sistema encontra
sua plena realização no concurso, que assegura perfeitamente a igualdade fomal dos
candidatos mas que exclui pelo anonimato as desigualdades reais diante da cultura”. Ou
seja, o concurso como é apresentado, dá a entender que todos (as) possuem as mesmas
condições de ascenção social, dependendo do esforço pessoal de cada um. Porém,
dissimula as relações de classe que objetivamente resulta na esfera individual. Por outro
lado, os autores são otimistas ao descreverem uma possível saída para o problema posto
no livro. Através da pedagogia racional, seria viável reconhecer essas desigualdades
sociais por meio de uma sociologia das desigualdades culturais, que consequentemente
contribuiria para reduzir as desigualdades diante da escola e da cultura.
Esta obra de Boudieu e Passeron, ainda pouco estudada no Brasil devido a sua
tardia tradução, é essencial para compreender o arcabouço teórico dos livros que se
seguem sobre a temática escrito pelos pesquisadores. Sendo um livro essencialmente
empírico, caracteriza-se pela abundância de dados quantitativos e qualitativos sobre os
estudantes na França no início da década de 1960. Essa característica da obra, é
resultado da forma como os autores, mais especificamente Pierre Bourdieu, procura
legitimar uma escrita sociológica que se distingua das outras ciências humanas e da
filosofia.
Entre as principais críticas ao trabalho dos autores, está a demasiada valorização
da objetividade. Pois a ação do indivíduo é moldada pela forma de sua socialização em
determinado espaço social, onde não resta saída para sua ação enquanto indivíduo capaz
de mudar os espaços já estruturados.

Referências

BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. Os herdeiros: os estudantes e a cultura.


Tradução Ione Ribeiro Valle e Nilton Valle. Editora UFSC: Florianópolis, 2014.

BOURDIEU, P.; PASSERON, J.-C. A reprodução: elementos para uma teoria do


sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2. ed. 1982.

VALLE, Ione Ribeiro. O lugar da educação (escolar) na sociologia de Pierre Bourdieu.


Rev. Diálogo Educ., Curitiba, v. 13, n. 38, p. 411-437, jan./abr. 2013.

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