Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Cláudia Casimiro1
Resumo
Quais as razões que concorrem para a escassez de investigações académicas sobre os
homens abusados e a violência feminina em contexto conjugal? Apontam-se linhas de
discussão que procuram responder ao tabu da mulher violenta: a lenta mudança de
atitudes e mentalidades, a construção social do género, a masculinidade posta em causa
e a manutenção de estereótipos, a associação entre o conceito de violência e a sua
dimensão física e, ainda, o “feminismo vitimista”. A reflexão em torno desta
problemática, substancialmente inexplorada, pretende incentivar novas e aprofundadas
pesquisas numa matéria que ajuda à compreensão mais lata e rigorosa do fenómeno que
é a violência na intimidade.
Abstract
What reasons contribute to the scarcity of academic research about abused men and
female violence? Some lines of discussion are stressed in order to answer the taboo of
the violent woman: the slow change in attitudes and mentalities, the social construction
of gender, the threatened masculinity and the maintenance of stereotypes, the
association between the concept of violence and its physical dimension, and also the
"victimist feminism". The reflection about this issue, substantially unexplored, pretends
to encourage new and detailed research on a subject that can lead to a more profound
and broader understanding of the phenomenon of intimate partner violence.
1
Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-
IUL), claudia.casimiro@iscte.pt
5
SOCIOLOGIA ON LINE, Nº 6, JUNHO 2013
Nota introdutória
2 Veja-se, para o caso de Portugal, os quatro Planos Nacionais Contra a Violência Doméstica (I – 1999/2002;
II – 2003/2006; III – 2007/2010 e IV – 2011-2013).
3 Em trabalhos anteriores, centrou-se já a atenção sobre esta problemática (Casimiro, 1998 e 2002).
6
CASIMIRO - Violência feminina: a face oculta da violência no casal
__________________________________________________________________________________
7
SOCIOLOGIA ON LINE, Nº 6, JUNHO 2013
7 Kellerhals, et al., em 1985, apontavam já para a ideia de que as formas mais modernas de conjugalidade (e o
estilo “associação” encontra-se por excelência no polo mais modernista - por oposição a um outro polo
tradicional onde se situam estilos conjugais como o “bastião”) estariam na origem do aumento do número de
divórcios.
8
CASIMIRO - Violência feminina: a face oculta da violência no casal
__________________________________________________________________________________
Yarwood (2004), volta a reforçar a ideia de que é necessária mais investigação neste
domínio no sentido de vir a estabelecer as diferenças e semelhanças entre mulheres e
homens vítimas de violência doméstica, sob pena de se incorrer em falsas interpretações
acerca de uma realidade que permanece para quase todos ainda uma incógnita. Jack
(1999), num trabalho em que entrevista 60 mulheres para saber mais acerca da sua
agressividade, desafia a visão tradicional sobre esta questão quase sempre abordada
como um simples impulso destrutivo e predominantemente masculino e sublinha que foi
precisamente a falta de modelos que permitissem compreender a questão que estimulou
o propósito da sua pesquisa. No decorrer do século XXI, a tónica e o tom mantêm-se
nas publicações que vão sendo editadas. Em 2005 Swan e Snow dão conta da
inexistência de um enquadramento teórico para explicar a violência praticada pelas
mulheres no domínio das relações íntimas e McHugh e Livingstone (2005) ao fazerem
referência aos artigos de um dos volumes da revista Psychology of Women Quarterly,
inteiramente dedicado ao tema da violência feminina, adiantam que embora alguns dos
artigos nela publicados apresentem explicações para o uso de violência por parte das
mulheres, mais investigação, renovadas abordagens e novas conceptualizações sobre
violência íntima são fundamentais.
Em Portugal, o único trabalho académico de pendor qualitativo, e relativo ao contexto
da conjugalidade, em que, para além das mulheres, também os homens foram
entrevistados, foi realizado no âmbito de um doutoramento sobre representações e
práticas de violência na família (Dias, 2002). A autora remeteu maioritariamente a sua
investigação para as dimensões físicas da violência e equacionou o problema da
violência “quer como meio de controlo do homem sobre a mulher e os filhos, quer
como uma manifestação de poder, sobretudo quando a autoridade daquele está de certa
forma comprometida” (p. 254). Por essa razão, contrapõe as “reacções das mulheres à
violência conjugal” àquelas que designa como as “reacções do agressor” – ou seja,
implicitamente, o homem. Assim, não considerou a hipótese de que os homens se
pudessem constituir também como potenciais alvos de uma violência pró-activa por
parte das mulheres. Para a autora, a ideia de que as mulheres se constituem como
agressoras parece enquadrar-se no registo da violência defensiva e no da violência que
exercem sobre os filhos.
Já em termos de investigações quantitativas, extensivas, a única a debruçar-se sobre a
vitimação quer feminina como masculina foi realizada muito recentemente (Lisboa et
10
CASIMIRO - Violência feminina: a face oculta da violência no casal
__________________________________________________________________________________
8 Nesse inquérito, perguntava-se, por exemplo, especificamente aos homens se durante a inspecção e o
serviço militar (obrigatório ou voluntário) e/ou contexto de guerra haviam sofrido actos de violência e quais.
11
SOCIOLOGIA ON LINE, Nº 6, JUNHO 2013
sugerir algumas hipóteses de explicação que concorrem para o facto de este assunto se
manter na penumbra até aos dias de hoje.
12
CASIMIRO - Violência feminina: a face oculta da violência no casal
__________________________________________________________________________________
Pouco se sabe sobre a vida familiar através da voz dos homens9. O tema da violência na
família não fugiu a esta tendência sendo por isso expectável o baixo grau de
reconhecimento da ocorrência da violência feminina que, como tal, se mantém como
objecto de estudo pouco debatido e, consequentemente, pouco pesquisado. Acresce a
isto o facto de as investigações sobre as violências na conjugalidade terem vindo a ser
muito mais apanágio de mulheres.
9 Essa tendência tem vindo a ser alterada nos últimos anos, como comprovam alguns dos mais recentes
trabalhos na área da Sociologia da Família.
13
SOCIOLOGIA ON LINE, Nº 6, JUNHO 2013
agressões de que são alvo (Cook, 1997), tendendo a ignorá-los (Fontes, 1998) ou a
desculpabilizá-los (Stockdale, 1999), quer com receio de poderem ser socialmente
marginalizados e estigmatizados ao sentir a sua masculinidade ameaçada, ridicularizada
ou colocada em causa, os homens tendem a silenciar, mais do que as mulheres, as
violências de que são alvo. Brogden e Nijhar (2004) concluíram, a este respeito, após
uma investigação sobre homens vítimas de violência feminina que “parte do problema,
para vários entrevistados, era o de terem sido eles próprios socializados em termos de
género. Consequentemente, revelavam dificuldade em lidar com o seu estatuto de
vítimas” (p. 59). E assim, esta realidade tende a permanecer na penumbra. “Enquanto a
violência praticada pelos homens sobre as mulheres é, hoje em dia, ‘visível’ na
sociedade, e resulta de uma preocupação pelas mulheres, o reverso tornou-se um ‘toque
invisível’, conspícuo apenas pela sua banalização ou negação completa” (George, 2003:
24). Migliaccio (2002) sugere igualmente a ideia de como o patriarcado pode também
resultar em repercussões para os homens numa situação que foi enquadrada em termos
do género, ajudando a manter o estereótipo do homem, que surge sempre como o
agressor, e a mulher como vítima e, simultaneamente, negando a existência de mulheres
violentas e de homens abusados.
A construção social do género não se esgota na dificuldade que os homens têm,
eventualmente, em se assumir como alvos de violência conjugal. Essa construção
contribui, também, para a manutenção da invisibilidade da violência feminina. Este é
mais um dos aspectos que ajuda a compreender o facto de a própria comunidade
científica não ter vindo a dar muita atenção às mulheres enquanto agressoras já que o
género feminino está frequentemente associado às noções de fragilidade, delicadeza,
brandura, como se intui, por exemplo, em relação aos trabalhos sobre a violência
infantil que centram quase sempre a sua análise na vítima – a criança – esquecendo o
agressor, ou como se sabe que acontece em muitos casos, a agressora.
apenas dois exemplos que ilustram a ideia. No final da década de 90, Straus (1999) a
propósito da controvérsia em torno da violência exercida pelas mulheres, nota a
ausência de teoria para fundamentar os dados que até então haviam surgido e que
indiciavam que as mulheres podiam ser tão violentas em cenário conjugal quanto os
homens. Nas palavras do próprio: “as circunstâncias únicas que explicam as agressões
cometidas pelas mulheres ainda não foram analisadas teoricamente (…), não existe uma
teoria que explique essas descobertas” (p. 30). O autor lamenta a inexistência de uma
grelha teórica que ajude a clarificar esta polémica e para colmatar essa falta propõe,
alertando porém para a necessidade de demonstração empírica, um primeiro passo nesse
sentido. Partindo de uma perspectiva sociológica, apresenta um quadro com variáveis
diversas onde coloca, em jeito de hipótese, por um lado, os factores que inibem as
agressões físicas das mulheres fora do espaço doméstico e, por outro, os factores que
facilitariam esse género de agressões. Sem entrar em grandes detalhes, salienta-se,
contudo, quão claro transparece o facto de ser objectiva e estritamente à dimensão física
da violência que se refere a sua proposta. Também em relação à violência exercida por
mulheres Lourenço et al., (1997), embora admitam que estas se possam assumir “como
protagonistas relevantes” (p. 16), notam porém, embora sem que para isso apresentem
argumentos de qualquer ordem ou mencionem investigações levadas a cabo sobre o
assunto, que “muitos estudos têm também mostrado que a violência cometida por
mulheres é muito mais contida e episódica que a dos homens. Quando se manifesta é
fundamentalmente sob aspectos de ordem psicológica, sendo muito menos provável que
cause tantos danos físicos continuados como acontece quando é cometida por homens”
(p. 17). Curioso que referindo os autores que é sob aspectos de ordem psicológica que a
violência feminina se revela, concluam o argumento salientado a dimensão física da
violência. Vê-se deste modo o peso estruturante que a dimensão física da violência
revela nos estudos sobre a problemática.
Poder-se-ia argumentar que a reduzida investigação científica em torno da violência
feminina está também relacionada com o facto de esta poder ter uma expressão muito
menos significativa quando comparada com a violência exercida pelos homens sobre as
mulheres. Mas em que tipo de violência se cogita quando se argumenta nesse sentido?
Com o evoluir dos tempos, o conceito de violência tem vindo a assumir novos
contornos. Tanto em termos de senso comum como ao nível das pesquisas científicas e
também em termos jurídicos. Assim, e para não aplanar a problemática, torna-se
15
SOCIOLOGIA ON LINE, Nº 6, JUNHO 2013
imperativo distinguir tipos de violência10 e entender este conceito muito para além da
sua dimensão física.
Tendo em consideração o dimorfismo sexual entre homens e mulheres, considera-se
que a violência que o homem poderá sofrer comporta sempre consequências menos
graves do que a violência exercida ao invés. Este paradigma salienta as diferenças de
género no uso da violência (física) e impede, impossibilita até, a revelação do potencial
que as mulheres podem ter para agredir - isto, nas suas múltiplas dimensões,
nomeadamente a psicológica. E, em bom rigor, o “abuso emocional” praticado pelas
mulheres sobre os homens é, de facto, uma área inexplorada no domínio dos estudos
sociológicos.
O “feminismo vitimista”
forma mais aprofundada surge igualmente plasmada nos trabalhos (poucos) sobre a
violência que é exercida sobre os idosos. Por exemplo, sabemos que para o caso de
Portugal, a partir das estatísticas recolhidas pela APAV12, o número de queixas aumenta
anualmente. Os crimes contra os idosos (80% destes crimes relacionados com a
violência doméstica) mais do que duplicaram (aumentaram 158%) entre 2000 e 2011.
Sabe-se também que, neste período temporal, a maioria das vítimas são mulheres
(82,3%) e que a maioria dos queixosos se situa entre as faixas etárias dos 65 aos 75
anos, que a maior partes dos maus-tratos infligidos são físicos e psicológicos ocorrendo
também a negligência e crimes contra o património. Sabe-se ainda que somente em 29%
dos casos o agressor é o cônjuge. Na lista dos maiores agressores seguem-se os filhos
ou as filhas (não aparece discriminado nas estatísticas o sexo do agressor) e outros
familiares. Em 2011, 62,6% dos autores dos crimes contra idosos eram do sexo
masculino, o que significa que perto de 40% dos crimes foram praticados por mulheres.
Contudo, sobre esses crimes e a sua autoria nada se sabe: as estatísticas e os trabalhos
sobre violência contra os idosos centram-se mais nas vítimas - os idosos - do que nos
agressores. As agressões que as mulheres exercem sobre os idosos permanecem, assim,
igualmente, como uma temática em terreno ainda por explorar.
Notas finais
http://apav.pt/apav_v2/images/pdf/Estatisticas_APAV_Pessoas_Idosas_2000-2011.pdf [acedido a 27 de
12
Novembro de 2012].
19
SOCIOLOGIA ON LINE, Nº 6, JUNHO 2013
tratos físicos e psicológicos ou “mulheres batidas”. É verdade que muitas vezes assim
acontece. Mas esta não é a única acepção que a expressão poderá assumir.
Esboça-se neste artigo uma crítica à visão dual que vê tout court as mulheres como as
vítimas da violência e os homens como os agressores: “se admitimos esta noção de
‘violência de género’, voltamos a uma definição dual e oposta da humanidade: os
carrascos e as vítimas, ou o mal contra o bem”, como sublinha Badinter (2005b). Ao
fazê-lo, está a cometer-se um erro pois ao globalizar a violência masculina sem a
mínima distinção qualitativa, cultural e política, condenamo-nos a nada alterar. Abordar
a violência conjugal unicamente como um problema de violência de género revela-se
um caminho pouco enriquecedor incapaz de contribuir para um mapeamento
substantivo da efectiva realidade deste fenómeno. Por um lado, porque as relações de
género se tornaram, elas próprias, mais simétricas, por outro, talvez mais ainda, porque
o conflito e a violência podem independer do género. Neste sentido, alvitra-se que tão
ou mais relevante do que as questões do género, a natureza da relação pode constituir-se
como uma variável importante para a compreensão dos fenómenos violentos que
ocorrem em casal e contribui também para a forma como os sujeitos os interpretam e/ou
experimentam. Por “natureza da relação” quer dizer-se a dinâmica e as interacções que
decorrem no seu seio, como sejam: os níveis de satisfação conjugal; os estilos conjugais
adoptados pelos sujeitos; a dificuldade de fixação de fronteiras no seio do casal (tensão
entre o individual/conjugal); a organização do trabalho doméstico e as expectativas em
torno da vida a dois; a tentativa de dominação e controlo do cônjuge (homem ou
mulher) e/ou sentimentos de insegurança; as estratégias inter-relacionais adoptadas
pelos sujeitos – por exemplo, a tentativa de chamar a atenção do cônjuge. Tanto assim
que a violência ocorrida em casal não é um fenómeno específico nem exclusivo dos
casais heterossexuais. Acontece também em casais homossexuais (Balsam, 2001 e
Krahé, 2000).
O objectivo do presente artigo é o de, em traços largos, enunciar algumas das razões
que, congregadas, têm até agora justificado a ausência de investigações aturadas sobre a
violência protagonizada pelas mulheres em contextos de conjugalidade. Feito o
exercício de reflexão crítica, espera-se que este possa ser um contributo para o debate
neste campo, um incentivo para novas e aprofundadas investigações sobre os contextos
em que ocorre a violência no casal, o modo como se manifesta, as modalidades que
assume, as consequências que gera. Importa não perpetuar o tabu da mulher violenta. Só
20
CASIMIRO - Violência feminina: a face oculta da violência no casal
__________________________________________________________________________________
assim, afinal, se poderá almejar uma compreensão mais lata e rigorosa do fenómeno que
é o da violência na intimidade.
Bibliografia
22
CASIMIRO - Violência feminina: a face oculta da violência no casal
__________________________________________________________________________________
George, Malcolm (1994), “Riding the donkey backwards: Men as the unacceptable
victims of marital violence”, The Journal of Men's Studies, 3 (2), 137-159
George, Malcolm (1997), “Into the eye of the Medusa: beyond testosterone, men and
violence”, Journal of Men’s Studies, 5 (4), 295–313
George, Malcolm (2003), “Invisible touch”, Aggression and Violent Behavior, 8 (1),
23–60
George, Malcolm & Yarwood, David J. (2004), Male domestic violence victims
survey 2001 – main findings, Ascot, Dewar Research
Informa D&B Portugal (2012), “Perfil da presença feminina no tecido empresarial
português”. Disponível em: http://www.empreender.aip.pt/irj/go/km/docs/site-
manager/www_empreender_aip_pt/conteudos/pt/centrodocumentacao/Centro%20de%2
0Documenta%C3%A7%C3%A3o/PresencaFemininaTecido%20Empresarial%20PT_20
12_InformaDB.pdf [acedido a 02/05/2013]
Jack, Dana Crowley (1999), Behind the mask. Destruction and creativity in women’s
aggression, Cambridge, Harvard University Press
Johnson, Michael P. (1995), “Patriarchal terrorism and common couple violence: two
forms of violence against women”, Journal of Marriage and the Family, 57 (2), 283-
294
Kellerhals, Jean e Troutot, Pierre-Yves (1982), “Divorce et modèles matrimoniaux.
Quelques figures pour une analyse des règles de l’échange”, Revue Française de
Sociologie, XXIII, 195-222
Kellerhal, Jean; Languin, Noëlle; Perrin, Jean-François e Wirth, Geneviève (1985),
“Statut social, projet familial et divorce: une analyse longitudinale des ruptures d’union
dans une promotion de marriages”, Population, 6, 811-828
Krahé, Barbara (2000), “The prevalence of sexual aggression and victimization
among homosexual men”, Journal of Sex Research, 37 (2), 142-150
Lisboa, Manuel (Coord.); Barroso, Zélia; Patrício, Joana e Leandro, Alexandra
(2009), Violência e género. Inquérito Nacional sobre Violência exercida contra
mulheres e homens, Lisboa, CCIG
Lourenço, Nelson; Lisboa, Manuel e Pais, Elza (1997), Violência contra as mulheres,
Cadernos Condição Feminina, (48), Lisboa, Comissão para a Igualdade e para os
Direitos das Mulheres
23
SOCIOLOGIA ON LINE, Nº 6, JUNHO 2013
25