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Thiago Antônio de Oliveira Sá

Quem não gosta de samba, bom sujeito não é:


consumo e apropriação cultural

Dissertação apresentada ao Curso de


Mestrado em Sociologia da Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal de Minas Gerais, como
requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em Sociologia.

Área de concentração: sociologia da cultura

Orientador: Prof. Dr. Francisco Coelho dos


Santos

Belo Horizonte
Universidade Federal de Minas Gerais
2010
Ao povo lá de casa...

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Agradeço à minha mãe, aliviada, como eu, de termos dado este passo, e que parará de
me perguntar sobre o doutorado; ao meu pai, que acha o mestrado algo mais importante,
complexo e sofrido do que de fato é, e à Didi, que faz dela minha felicidade. Ao
Rafael[son], que discute com propriedade até coisas sobre as quais não tem a menor
idéia; à Andréia, ausente em boa parte desta história, mas grande apoiadora à distância.
Aos colegas do mestrado, que até sobre sociologia conversam. Ao Dr. Francisco
Coelho, pelas orientações acadêmicas, profissionais e musicais. À Celiana, que não
achou isso um absurdo, ao Rui, para quem caprichos fazem sentido para quem os tem e
à UFG, por aqueles dias. À Carol, que se incumbiu prontamente de tornar o arquivo de
apresentação apresentável. Aproveito também para agradecer à FAPEMIG, pelo apoio
financeiro indispensável, à UFMG, pela excelência desta instituição e pela dimensão
que tem em minha vida, à FAFICH, pela formação acadêmica e moral de seus filhos, ao
PPGS, pelo rigor com a produção acadêmica e pelos ensinamentos. E a todos que, pelo
menos uma única vez, perguntaram “e como tá o mestrado lá?”

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Resumo

Os objetivos deste trabalho foram caracterizar a ascensão social do samba, enfatizando-


se os fatores que proporcionaram ganho de visibilidade e de aceitação deste estilo
musical entre as classes médias e altas, e apontar um comportamento cultural
aparentemente contraditório, do interesse destes segmentos por um ritmo oriundo das
camadas pobres da população da cidade do Rio de Janeiro. Para isso, procedeu-se a um
levantamento bibliográfico sobre a história do samba no Brasil ao longo do século XX.
Concluiu-se que o samba, (1) enquanto preferência musical, não é referência de
posicionamento dos indivíduos no espaço social, dado que é preferência comum; que
(2) apesar de criação de classes subalternas, não é uma imitação da cultura dominante e
sim um processo criativo independente; que (3) ele inverte a direção da apropriação que
grupos hierarquicamente dispostos fazem da cultura uns dos outros e que, finalmente,
(4) embaça fronteiras do gosto de classes ao contribuir para o ecletismo nas preferências
musicais.
Palavras-chave: samba, consumo cultural, classes sociais.

Abstract

The aims of this work were featuring samba‟s social ascension, emphasizing the factors
that made that musical style become visible and attractive to high and medium classes,
and pointing out a seemingly contradictory cultural behavior, that is, those classes‟
interest in a kind of music made by poor levels of Rio de Janeiro‟s population. A
bibliographic research on samba‟s History in XX Century Brazil was taken in order to
pursuit these two objectives. It‟s possible to state that samba (1) as a musical
preference, isn‟t a proper representative clue of individuals‟ social position, because it
turned out to be commonplace among classes‟ consumption; (2) although it was made
up by the lowest classes, samba isn‟t an imitation of dominant culture, but an
independent culture-making process; (3) samba inverts the way hierarchically-situated
groups pick culture from each other and (4) make symbolic class boundaries unclear,
once it contributes for eclectic musical preferences.
Key-words: samba, cultural consumption, social classes.

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SUMÁRIO

1 Introdução .......................................................................................................................6
2 A origem social do samba ............................................................................................12
3 A ascensão social do samba .........................................................................................21
4 Teorias da legitimidade cultural ...................................................................................41
5 Abordagens da pluralidade ...........................................................................................55
6 O consumo de samba ....................................................................................................70
7 Conclusão .....................................................................................................................81
8 Referências bibliográficas ............................................................................................84

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1 Introdução
Este trabalho baseia-se e procura se alinhar com outros na sociologia da cultura
cujos objetos de investigação são as preferências artísticas, os hábitos culturais e
trânsito de indivíduos de diferentes segmentos sociais pelos diversos níveis de
legitimidade cultural. Nestes estudos, o interesse teórico subjacente está no uso e nos
efeitos que esses bens da cultura têm na construção de estilos de vida, na demarcação de
fronteiras e distâncias sociais, na projeção de identidades de classe e no mapeamento da
estratificação social através do gosto.
Estas investigações das práticas culturais se orientaram (quando não procuraram
se contrapor a ela) por uma tradição teórica designada como “Teoria da Legitimidade
Cultural” (LAHIRE, 2006, 2008), “Teoria da Hierarquia de Status” ou, ainda, “Teoria
da Elite/Massa” (PETERSON, 1992, 1996, 1997). Originada com Thorstein Veblen, em
1899, com a publicação de seu A Teoria da Classe Ociosa, consolida-se ao longo do
século XX em trabalhos como os de Simmel (1988 [1904]), Goffman (1951) e Elias
(1990, 2001).
Porém, a contribuição mais proeminente dessa vertente de estudos foi a de Pierre
Bourdieu (1983, 2008), que demonstrou como as necessidades individuais e grupais
emprestam aos produtos da cultura uma economia outra que transcende o estrito gozo
estético ou o utilitarismo, trazendo também ao debate o conceito de capital cultural e a
importância da socialização na apreciação artística e na construção de um estilo de vida
que cristalizam e mantêm distâncias na hierarquia social.
Essa perspectiva teórica tem como foco de investigação as oposições simbólicas
na cultura (a alta cultura e a subcultura, o cultural que eleva e o comercial que rebaixa, o
refinado que enriquece e o grosseiro que idiotiza, a contemplação aliada à experiência
intelectual e a busca pelo lúdico, emocional e sensual, etc.). As formas de cultura ditas
mais elevadas prescrevem atitudes mais polidas e contidas quanto à sua observação. O
olhar é educado, treinado para a apreciação. Associada à complexidade e ao
refinamento, impõe-se pelo respeito de que goza entre seus admiradores e por se
encontrar restrita às classes de escolarização mais elevada. A elas, opõe-se um conjunto
de costumes e objetos de consumo cultural destinados ao puro entretenimento, à
diversão casual e despretensiosa. Taxada muitas vezes de “subcultura” ou “baixa”
cultura, veicula-se através de interesses comerciais (sob forma de mercadoria) e
consegue adesão temporária, pela moda e pela comunicação de massa. Essas formas de

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cultura tidas como vulgares e simplistas são, muitas vezes, ingrediente essencial para a
agregação, para a coesão da multidão e para a euforia coletiva, ainda que efêmera
(LAHIRE, 2008). Esta constatação feita pelos estudos da assim chamada Teoria da
Legitimidade Cultural permitiu que autores como aqueles acima citados detectassem
como a cultura, sendo perpassada por essa clivagem de legitimidade, é incorporada
como meio de distinção e afirmação de dignidade cultural e abrange, por isso, uma
dimensão política na determinação da cultura legítima. Richard Peterson (1992)
reconhece que estes sociólogos perceberam que a hierarquização dos diversos grupos de
status se expressa pela apreciação da literatura, das artes, do vestuário, da destreza na
linguagem e pela maneira como o tempo livre é ocupado. O argumento geral de todos
eles que escrevem sob esta orientação teórica – resume Peterson – é de que os
indivíduos localizados nos estratos mais altos da hierarquia social tendem a caracterizar-
se pelo cultivo do gosto refinado pelas artes, pelas boas maneiras, pelo domínio da
linguagem e pelo pertencimento a grupos notáveis, a clubes e a entidades filantrópicas.
Observa-se na conduta dos segmentos dominantes uma contenção moralista e um
distanciamento de todas as manifestações culturais tidas como impróprias, indignas,
inferiores ou inadequadas. A internalização efetiva dos esquemas de apreciação cultural
através de longa socialização engendram escolhas análogas dos indivíduos de classes
superiores em diferentes âmbitos culturais, sendo essas escolhas guiadas, portanto, por
valores semelhantes relativos à distinção, à cultura dita elevada. Logo, os estratos
dominantes, segundo estes sociólogos, constituem referência em seus hábitos, seus
valores, seus artistas e estilos preferidos e seus modos, configurando uma imposição de
um ideal de cultural que se apresenta como geral e é valorizado e imitado por todas as
camadas da sociedade, embora remeta somente às hegemônicas. A direção da
apropriação cultural, conforme este enfoque, é sempre de “baixo pra cima”: as classes
inferiores, legitimando os valores culturais dominantes, aderem a eles através de
substitutos para os bens de consumo almejados ou imitando, através de adaptações
empobrecidas, os costumes culturais de indivíduos de classes superiores. Estes,
repudiando manifestações populares e receosos da perda de distinção que seus hábitos
sofrem à medida que são assimilados pelos estratos de baixo, dirigem seu interesse a
outros costumes e produtos, de forma a restituir a distância social. A cultura popular se
caracteriza, segundo estes autores, como uma caricatura da cultura legítima, uma versão
amputada dela.

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Assim, essa perspectiva contribuiu significativamente com a sociologia da
cultura porque desvelou as funções da arte e da cultura de demarcar fronteiras e
estabelecer distâncias sociais numa sociedade hierarquizada, e elucidou a hegemonia da
cultura dominante e a ideologia do gosto natural, de que a sensibilidade cultural e a
competência estética seriam inatas e não uma capacidade adquirida, fruto de processos
de socialização sistemática. (BOURDIEU, 1983, 2008).
Essa abordagem, de forma geral, foca os indivíduos imersos na oferta cultural,
ou seja, pesquisa-se o gosto e as atitudes desses indivíduos em relação a diferentes
domínios artísticos e culturais. Procura-se verificar se escolhas elitizadas em música,
por exemplo, estão mais frequentemente associadas estatisticamente a escolhas de igual
nível em cinema, ou se o perfil cultural individual predominante compõe-se de práticas
consonantes quanto ao nível de legitimidade de suas escolhas. São focos de investigação
também as possíveis correspondências entre as atitudes perante as diversas formas de
arte e o capital cultural acumulado e as probabilidade de algum segmento social tender a
concentrar suas escolhas em algum hábito cultural ou em algum estilo musical
específico, etc. O objetivo é se compreender o comportamento coletivo em relação à
cultura em geral, pensando-se as atitudes dos indivíduos em cada âmbito artístico
(cinema, música, teatro, fotografia, museus, etc.) e o quanto essas atitudes identificam
(ou não) posições hierárquicas no espaço social.
No trabalho aqui apresentado, percorreu-se o caminho oposto: ao invés de se
focar nas preferências e na circulação dos indivíduos de diversos segmentos sociais
pelas variadas manifestações culturais, aqui foi observada a apreciação que um único
ritmo musical – o samba – tem entre os segmentos sociais. Mais precisamente, almejou-
se conhecer a relação que os diversos segmentos sociais mantiveram (e mantêm) com
este ritmo ao longo do século XX.
Analisando-se a história do samba desde suas origens até os dias atuais, percebe-
se que, embora este ritmo tenha uma origem social muito delimitada, marcada pela
confluência de processos de marginalização da comunidade negra e pobre do Rio de
Janeiro entre o final do século XIX e o começo do século XX, o mesmo experimenta
uma progressiva aceitação por diversos públicos distintos ao longo de seu curso
histórico pelo século XX, situando-se dentro do mercado comum da música popular e
sendo passível de consumo e apropriação por indivíduos de todos os segmentos sociais
da sociedade brasileira.

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Esta ascensão social observada na trajetória do samba oferece alguns desafios à
interpretação teórica à luz da sociologia da cultura, sobretudo a partir daquela tradição
teórica cujo nome mais proeminente é Pierre Bourdieu.
Primeiramente, na cultura popular, de acordo com este autor, não se engendram
processos criativos. Pelo contrário, como os costumes culturais de estratos inferiores se
orientam por uma reverência às práticas e valores das camadas dominantes, a cultura
popular resulta uma versão simplificada, uma imitação da cultura dita legítima. O samba
não se permite interpretar conforme esta perspectiva, dado que é uma manifestação
popular inerente a segmentos populares, porém, original e inédita no cenário musical do
país e não uma forma de adesão a algum imperativo cultural dominante.
Desta forma, o primeiro objetivo deste trabalho foi caracterizar a situação
peculiar do samba, recuperando-se sua trajetória social, cuja característica, a exemplo
do jazz (HOBSBAWN, 2008 ), do funk carioca (BEZERRA, 2009), do forró
(REZENDE, 2001) e do maracatu (SOARES, 2005), é o ganho de visibilidade entre as
classes médias e altas, apontando os mecanismos e processos histórico-sociais que
favoreceram tal ascensão. A meta aqui foi demonstrar como o samba, produto do morro,
execrado e mal visto pelas demais camadas da população em suas origens, ascendeu
socialmente, sendo bem recebido posteriormente por elas quando de sua difusão através
da indústria cultural.
Nessa caracterização do samba, procurou-se também abordá-lo e descrevê-lo
enquanto objeto empírico para a sociologia da cultura que, embora originário de
camadas subalternas, possui dinâmica própria, é independente e original, e não um
arremedo de estilos musicais associados à cultura legítima, propondo assim um debate
teórico sobre a perspectiva bourdieusiana, que concebe a cultura popular, de camadas
subalternas da população, como desprovida de qualquer elaboração formal ou estilística
e pautada segundo ditames dos valores dominantes.
Além do mais, segundo o argumento bourdieusiano, a distinção cultural
experimentada pelos indivíduos se dá através do afastamento e da rejeição a
manifestações culturais de segmentos populares associados ao cultivo de hábitos e de
consumos culturais e artísticos mais elaborados, refinados e acessíveis somente após
processo de socialização estética. Também sob este aspecto, a trajetória do samba ao
longo do século XX também oferece um desafio a tal interpretação teórica, pois o
mesmo experimenta um ganho de prestígio, integrando o consumo cultural de todos os
estratos sociais da sociedade brasileira, firmando-se como “denominador comum” da

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cultura nacional. Esse interesse de segmentos médios e altos da população por tal
manifestação essencialmente popular quebra a correspondência prevista na literatura
sociológica entre o nível de refinamento das artes apreciadas e o gosto dos indivíduos
oriundos das diversas classes sociais, pois o que se observa é que o gosto até de
brasileiros de camadas mais abastadas se dirige, no caso do samba, ao consumo de uma
música cuja origem é pobre, subalterna e associada aos negros e excluídos. Há uma
contraposição entre a origem histórica e social popular do samba e seu acesso por
segmentos hegemônicos. Assim, uma análise sociológica desse contraditório gosto pelo
samba, que caracteriza sua “ascensão social” apresenta um paradoxo a este alinhamento
teórico. De acordo com a Teoria da Legitimidade Cultural, o cultivo de costumes
culturais está profundamente associado à estrutura de classes, ou seja, discrimina
segmentos e, portanto, expressa diferenças sociais. Este caso de apreciação de um ritmo
popular caracteriza uma forma de consumo na qual não é nítida a correspondência entre
a adesão à manifestação cultural apreciada e a estratificação. Como interpretar essa
convergência entre segmentos distintos da pirâmide social, se, de acordo com a
literatura, o gosto artístico das elites caracteriza-se pela recusa às manifestações
populares?
Assim, o segundo objetivo deste estudo foi desvelar uma forma aparentemente
paradoxal de consumo cultural, marcada pela subversão da direção do fluxo cultural,
pelo embaçamento de fronteiras entre as classes e pela incidência de trânsito de
indivíduos de diferentes posições do espaço social pelo mesmo nível de legitimidade
cultural. Segundo a literatura consultada, a cultura é perpassada por relações de
dominação e de imposição simbólica, ou seja, os valores, hábitos e objetos culturais
típicos das classes dominantes, dado que constituem referência e cuja observância a eles
se faz incumbência de todos os estratos sociais inferiores, são sempre imitados pelos
segmentos dominados. Aspirou-se compreender esta forma de apropriação cultural na
qual um tipo de música “de baixo” é incorporado pelos “de cima”, e não o contrário.
Algumas questões orientaram a pesquisa, como “a dominação cultural, neste caso,
resulta ineficaz, e mostra que a difusão cultural compreende mecanismos mais
complexos que a imposição simbólica e que os indivíduos circulam entre diversos
níveis de legitimidade em matéria de cultura?” e “qual o significado dessa disseminação
cultural „de baixo para cima‟?” Enfim, o objetivo foi trazer à luz essa adesão musical
inusitada, inversa às tendências empíricas já detectadas na vida cultural.

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Para a realização dos dois objetivos acima, o procedimento metodológico
adotado foi o levantamento bibliográfico que contemplasse, sob qualquer ótica, a
história e o desenvolvimento do samba. Sua trajetória social foi reconstruída,
destacando-se sua origem social específica e sua condição marginal na cidade do Rio de
Janeiro. Em seguida, foram analisados os principais fatores que favoreceram esta
ascensão e foram apontadas as implicações sociológicas deste movimento. Finalmente,
foi descrita sua elevação à posição de consumo cultural que perpassa todas as classes
sociais da sociedade brasileira e os usos que se passou a fazer desta música em seu
curso histórico. Esquematicamente, o levantamento bibliográfico compreendeu:

 recuperar as origens sociais do samba, enfatizando a localização de seus


idealizadores na estrutura social, sua exclusão e confinamento nos morros, a
composição étnica e socioeconômica dos sambistas e de seus admiradores, seus
locais típicos de execução, e o significado que portava, sobretudo entre as
camadas médias no Rio de Janeiro do começo do século XX;
 descrever a ascensão social do samba, evidenciando-se os mecanismos,
processos, tendências e fenômenos sociais que propiciaram tal fato;
 detalhar, neste ganho de prestígio do samba junto às demais classes, os usos que
estas passaram a lhe atribuir, os modos como passou a ser consumido, a relação
casual e de entretenimento com o mesmo e o novo significado que foi,
paulatinamente, recebendo;
 elucidar a situação atual, de aceitação por todos os segmentos, embora as
condições em que seja consumido possam ser estratificadas.
A pesquisa se beneficiou de análises provenientes da sociologia, da história e da
antropologia. Foram consultados também cronistas carnavalescos e jornalistas que
presenciaram os primórdios do samba.

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2 A origem social do samba

O samba, enquanto forma de cultura e resistência, surgiu em meio a um conjunto


de circunstâncias históricas, geográficas, étnicas, religiosas e sociais caracterizadas por
uma conseqüência comum, a saber, a marginalização sistemática de uma mesma parte
da população carioca – a comunidade negra –, o que confere a ele uma origem social
específica: pobre, perseguida, discriminada e periférica.
Este conjunto de circunstâncias comuns no qual este segmento da população da
cidade do Rio de Janeiro se encontrava desde finais do século XIX e começo do século
XX favoreceu a formação de redes e canais de socialização e de interatividade da
comunidade negra carioca que, embora estigmatizados e reprimidos, constituíram
espaços de cultivo de tradições afro e meios através dos quais o samba – uma dessas
manifestações negras – era concebido e divulgado.
A confluência de fatores de marginalização na origem do samba faz dele uma
música popular por excelência, feita por representantes das camadas mais subalternas da
população: pobres, negros, imigrantes, confinados nos morros, discriminados,
perseguidos e marginalizados. Porém, apesar dessa origem social, o samba surge como
uma expressão cultural inédita e peculiar a esses indivíduos, e não como adesão a um
imperativo cultural dominante na época.
O foco deste capítulo são as tendências demográficas, os processos urbanos de
expulsão, a discriminação racial e cultural e a perseguição policial que propiciaram a
formação de um núcleo comunitário negro dentro do qual o samba se manifestou. Todos
esses fenômenos por que passaram os negros no Rio de Janeiro tiveram como
consequência comum a sua marginalização nos âmbitos geográfico, social, religioso,
étnico e cultural, e tiveram como efeito a intensificação de canais de socialização deste
segmento da sociedade carioca, onde surge o samba.
Rafael Menezes Bastos (1995), Francisco Guimarães (1978), Sérgio Cabral
(1996), Hermano Vianna (2004) e Muniz Sodré (1998) comentam a polêmica acerca da
origem geográfica do samba. O ponto recorrente no debate mencionado por eles é:
quem tem primazia da invenção do gênero: cariocas ou baianos? Se por um lado a
invenção desse ritmo se consolida na cidade do Rio de Janeiro, então capital da
república entre o final do século XIX e começo do século XX, por outro, ela parece ter
se dado em regiões desta cidade povoadas predominantemente por afro-baianos, que
traziam consigo uma prática musical da Bahia, enquanto engrossavam uma tendência de

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migração pós-abolição. No final do século XIX, esse processo migratório de negros para
a cidade do Rio de Janeiro se intensificava com a decadência da cultura do café no
interior do Rio de Janeiro e na Zona da Mata mineira e com o fim da guerra de
Canudos, o que resultou na ocupação dos morros e do centro da cidade. (CABRAL,
1996). Foi o que Menezes Bastos (1995) designa como a “Pequena África”, pois
começava a se formar ali um núcleo comunitário no qual se arregimentava uma
identidade e um laboratório de criação musical. Assim, esta cidade se firmava cada vez
mais – coloca Sérgio Cabral – como ambiente de síntese cultural do país em função de
ser foco de migração, configurando os primeiros traços de síntese urbana de diversos
ritmos. O que seria então uma música brasileira começava com a fusão de sonoridades
indígenas, européias e africanas que chegavam ao Rio de Janeiro (SODRÉ, 1998).
É Sérgio Cabral quem descreve a conjuntura demográfica e social da cidade do
Rio de Janeiro no começo do século XX, época da qual data o começo da expulsão da
comunidade negra para os morros como requisito de uma reforma urbana estimulada
por um novo modelo de nação que se queria para o Brasil. A população carioca chegava
a cerca de 700 mil habitantes, o segmento mais rico da população habitava,
predominantemente, os bairros de Botafogo, Tijuca e Alto da Boa Vista, e a classe
média se distribuía pelos subúrbios. As camadas baixas se espalhavam pelos bairros
distantes, os cortiços e as favelas, principalmente no centro da cidade. Esta região
abrigava aproximadamente um quarto da população da cidade, cuja maioria era negra,
nas chamadas casas de cômodo. Esse tipo de habitação “de péssimas condições
sanitárias e que abrigava, quase sempre, um número exagerado de moradores”
(CABRAL, 1996, p. 30) havia sido local de residências das camadas abastadas da
população carioca desde tempos da colônia e do império, que as foram vendendo à
medida que a região era ocupada pela população pobre.
As camadas populares que migravam para o Rio de Janeiro alojavam-se
principalmente no centro da cidade, colaborando para a aglomeração que ali se
estabelecia. Mas, mais que isso, traziam consigo sua cultura de origem, reavivando seus
hábitos e estabelecendo laços étnicos, de parentesco ou condição, (CUNHA, 2004).
Associações de africanos e seus descendentes no Rio expressavam-se através de
“famílias de santo”, batuques, cordões, cantos e capoeiras. Unidos e organizados desta
forma, conseguiam sobreviver, manter suas tradições culturais em pleno espaço urbano
que expandia progressivamente. (CUNHA, 2004).

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Porém, essa proliferação urbana pela qual passava a cidade do Rio de Janeiro
ocorria num momento em que as classes dominantes planejavam para o país um modelo
de desenvolvimento e urbanização moderno. Motivados por ideais e teorias raciais da
assim chamada “geração de 1870” (intelectuais como Sílvio Romero, Euclides da
Cunha e Alberto Torres) e pela aceitação explícita de um modelo europeu de
civilização, mantinham a meta de desvincular o Brasil de suas antigas raízes e de tudo
aquilo que se relacionasse com seu passado arcaico ou que remetesse ao atraso e a
valores antigos.
Obviamente, aquela configuração que os grandes centros urbanos brasileiros
assumiam, principalmente a cidade do Rio de Janeiro, ia de encontro a este projeto das
elites dominantes emergentes de livrar o país da “confusão dos espaços urbanos,
povoados de ruas populosas e barulhentas, de habitações superlotadas, de epidemias que
se alastravam com rapidez pelos bairros, assolando continuamente as grandes capitais
litorâneas” (MARINS apud CUNHA, 2004: 74)1. Assim, teve início uma reforma do
centro da cidade que baniu dali a população pobre que o habitava. As habitações pobres
do centro da cidade foram demolidas com duas grandes reformas empreendidas por dois
prefeitos da cidade do Rio de Janeiro: Barata Ribeiro, em 1893 e Pereira Passos, em
1903 (CABRAL, 1996).
Pelas mesmas razões, manifestações culturais de origem escravocrata e africana
que ali afloravam, eram, em função desta orientação modernizadora, sistematicamente
perseguidas, pois associavam-se à miscigenação, à deterioração genética e ao atraso
civilizacional, características opostas aos ideais modernos e cosmopolitas da República
Velha.
Portanto, as obras de saneamento e embelezamento empreendidas no centro da
cidade destinaram-se a combater o crescimento desordenado e insalubre da cidade do
Rio de Janeiro, acentuado com a migração em fins do século XIX. Este remodelamento,
em curso em nome de um projeto administrativo de rompimento com o passado
imperial e escravocrata, causou a expulsão de grupos populares e de seus hábitos
culturais da área central da cidade, designada então para o desfrute de camadas sociais
aburguesadas (CUNHA, 2004). As classes populares assentaram-se nos subúrbios e
morros da cidade, como que “varridas” para aquela região, pois ali suas manifestações

1
MARINS, Paulo C. “Habitação e vizinhança: limites da privacidade no surgimento das metrópoles
brasileiras”, in SEVCENKO, Nicolau (org). História da vida privada no Brasil. São Paulo, Companhia
das Letras, v. 3, 1998.

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populares não maculariam a imagem “civilizada” que se queria construir da então
capital federal. Formaram-se, então, dois pólos entre os quais a população carioca se
distribuía: morro e cidade, lugares sócio-culturais irreconciliáveis, com suas posturas
ideológico-políticas antagônicas (MENEZES BASTOS, 1995). Na cidade, as elites e as
camadas médias; as primeiras residindo nos bairros e as segundas, no subúrbio. Nos
morros, confinavam-se os negros, pobres e marginalizados.
A expulsão dos negros para os morros contou com um mecanismo de controle
social muito familiar a eles e presente por todo o início da história do samba: a
perseguição policial. Seus cultos, suas festividades e outras formas de socialização
representavam todo o primitivismo que se queria ocultar na reconstrução da identidade
nacional, sintetizada na cidade do Rio. Sérgio Cabral menciona a constante referência
nos jornais do final do século XIX e começo do século XX à perseguição policial às
manifestações musicais e religiosas da comunidade negra da cidade do Rio de Janeiro,
com relatos de prisões de pais e mães-de-santo e de músicos. O autor comenta também
o significado do violão que, na época, era motivo de prisão do violonista.
Freqüentemente os sambistas eram surpreendidos por batidas policiais repentinas e
eram todos levados para a cadeia, enquanto os instrumentos eram apreendidos.
Nas áreas urbanas da cidade do Rio, estas formas de discriminação e de
segregação às quais a comunidade negra estava submetida favoreceram um modo de
sociabilidade propício ao cultivo de uma subcultura. Centros de socialização, batuques,
morros, festividades, encontros religiosos e organizações musicais permitiam o convívio
e afirmação étnica desta população.

Era natural, portanto, que as pessoas de cor do Rio de Janeiro


reforçassem as suas próprias formas de sociabilidade e os padrões
culturais transmitidos principalmente pelas instituições religiosas
negras, que atravessaram incólumes séculos de escravatura. As festas
ou reuniões familiares, onde se entrecruzavam bailes e temas
religiosos, institucionalizavam formas novas de sociabilidade no
interior do grupo (diversões, namoros, casamentos) e ritos de contato
interétnico, já que também brancos eram admitidos na casa. Estas
pertenciam majoritariamente a famílias baianas que, desde as últimas
décadas do século XIX, habitavam o bairro da Saúde, espalhando-se
mais tarde pela zona chamada Cidade Nova, com ramificações no
Mata –Cavalos e Lapa. (SODRÉ, 1998, p. 14).

Desde o fim do século XIX, os negros se reuniam na cidade do Rio de Janeiro


para manifestações religiosas, culturais, festivas ou carnavalescas pelos bairros e ruas
centrais, alvo freqüente de repressão policial, pois eram, aos olhos da elite, ambientes de

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primitivismo e atraso (CUNHA, 2004). Estes espaços destinavam-se a cultos africanos,
manifestações católicas sincréticas, batuques, sambas de umbigada, etc. das populações
migrantes para os grandes centros, dentre elas ex-escravos. As primeiras formas do
samba carioca, inclusive, se desenvolveram no centro da cidade, nestes espaços
discriminados e banidos, habitados predominantemente por negros (CABRAL, 1996).
Logo, observa-se que, apesar do preconceito dirigido a eles e da hostilidade das
autoridades, formavam-se ali canais de interação desta comunidade que estabeleciam
redes de sociabilidade, seja através do lazer, do convívio cotidiano, da co-habitação, da
condição marginal compartilhada, da raiz étnica comum ou da prática religiosa.
O mesmo processo de constituição de um reduto negro ocorria no povoamento
dos morros. À medida que se consolidam em função da expulsão dos marginalizados
das áreas centrais e da impossibilidade econômica de instalação da população em outras
regiões da cidade, as futuramente chamadas favelas ganhavam unidade e uniformidade
devido às suas formas peculiares de organização, suas festividades e suas atividades
religiosas. Formava-se, assim, um espaço de cultura peculiar, em “que as rádios,
gravadoras, editoras e revistógrafos [buscariam] novos sons e ritmos divulgando-os
como uma nova identidade estética e musical, e vislumbrada como exótica e original
por parte da intelectualidade e da elite do país” (CUNHA, 2004: 118). Ambiente de
criação cultural específica, onde os sambas seriam compostos e a partir de onde seriam
divulgados. Não por acaso, os sambas produzidos nesses espaços consistem, muitas
vezes, na exaltação do lugar, dos seus tipos sociais, das tradições negras, da
religiosidade local, etc. Francisco Guimarães (1978, p. 28) afirma que antes do samba
ser “cogitação dos literatos, dos poetas, dos escritores teatrais e até mesmo de alguns
imortais da Academia de Letras”, surgiam na Favela, no Salgueiro, São Carlos,
Mangueira e Querosene, morros da cidade do Rio de Janeiro.
As casas de prática religiosa também constituíram pontos de interação da
comunidade negra no Rio. Além disso, a religião foi, num primeiro momento, um
abrigo para o samba. Dentre as várias brechas pelas quais o samba penetrou na
sociedade branca brasileira, a legalização das casas de macumba, como se dizia na
época, foi uma delas. O samba era executado no mesmo dia dos cultos e rituais de
candomblés, tendo lugar logo após a cerimônia (CABRAL, 1996).
Portanto, tal condição comum de marginalidade que proporcionou proximidade
geográfica e, por isso, estabelecimento de laços sociais entre essa população que
convivia em guetos, possibilitou que a mesma dispusesse de momentos e ambientes

16
para cultivo de uma tradição cultural própria, afastada do centro da cidade do Rio de
Janeiro, onde não encontrava lugar. Costumes seculares, religiosidade africana, jogos,
relacionamentos conjugais e práticas culturais encontravam espaço para acontecer,
favorecidos pelo “confinamento” no qual aquele segmento populacional se encontrava.
Dentre todo este universo comum de valores próprios, uma prática cultural (e não só
musical, pois envolvia interação, dança e momentos cênicos) circulava e se desenvolvia
com uma dinâmica peculiar: o samba.
Mas como o samba, especificamente, se desenvolveu dentro dos redutos negros
do Rio de Janeiro?
Primeiramente, as práticas musicais (a criação, a execução e a dança) eram
relegadas às casas até o surgimento dos ranchos.2 Organizações tipicamente negras,
eram uma espécie de passeata musical. Através deles o samba conquistava o espaço
público, fora das casas. No carnaval, seus membros experimentavam – diz Muniz Sodré
– uma inserção social e espacial temporárias no território urbano, adquirindo
visibilidade e afirmando sua cultura pelas ruas da cidade, promovendo, ainda que
momentaneamente, uma ocupação do espaço branco; rompendo, por instantes, os
limites geográficos que lhes eram impostos. A partir de 1923 surgiram as escolas, com
mais características de bloco do que de cordões, mais negros (SODRÉ, 1998).
Muniz Sodré informa ainda que o processo de composição do samba à época de
sua formulação era aberto à participação de pessoas. Tinha-se um refrão fixo, sempre
retomado em coro, que sucedia cada uma das estrofes compostas em improviso em
diversas ocasiões, como rodas, festividades e desfiles. Nos encontros onde se executava
o samba, permitia-se a intervenção, o improviso e a inovação, não tendo assim uma
forma pronta, um produto final. Um motivo “viajava” pelos morros, em diversos
eventos festivos das comunidades, rodas, etc., sendo constantemente modificado.
Difundia-se pela cidade como canção sempre por fazer.3 Francisco Guimarães (1978),
cronista que vivenciou esta época da produção do samba, escreve que era um contexto
em que o samba circulava somente nas ocasiões festivas do morro, ao vivo, com versos

2
Em verdade,o samba já adentrava outros segmentos sociais desde o fim do século XIX, de forma parca,
discreta e recalcada. Na sociedade branca, era conhecido como tango, polca, marcha, etc.
3
No próximo capítulo, terá prosseguimento a análise de Muniz Sodré sobre a trajetória da forma do
samba. Este autor observa que o samba, quando incorporado pela indústria fonográfica, perde
peculiaridades morfológicas (como o improviso, por exemplo), dissocia-se da dança, admite novos
instrumentos e outras formas de execução, embora mantivesse tanto a síncopa, sua principal característica
enquanto feito rítmico e melódico negro quanto a referência a valores da cultura e à condição negras.

17
improvisados e com vigência limitada ao longo do ano, de boca em boca por “gente da
roda.” Para ele, nesta época, “o samba era vivo” (GUIMARÃES, 1978, p. 77).
Um local de samba famoso, citado de modo recorrente em diversas obras que
abordam o tema, é o da casa de Tia Ciata (Hilária Batista de Almeida), vendedora de
doces e mãe de santo. Fabiana Cunha (2004) destaca sua casa enquanto um dos espaços
coletivos de socialização dos negros da sociedade carioca. Tia Ciata “transformava a
sua casa, quer na Rua da Alfândega, quer ultimamente na Rua Visconde de Itaúna (onde
faleceu) em verdadeira Lapinha”. (GUIMARÃES, 1978, p. 88). Sua casa era ponto de
encontro da comunidade negra, de seus criadores musicais e trabalhadores, centro de
música e de candomblé (CABRAL, 1996). Lá, dançavam e tocavam samba (o partido-
alto e o raiado) em roda, ao som de palmas, cavaquinhos, violões e instrumentos de
percussão e cantavam melodias com versos populares (CUNHA, 2004), além de
promoverem bailes e encontros religiosos (SODRÉ, 1998). As ocasiões festivas em sua
casa e as rodas de samba que lá ocorriam eram estrategicamente relevantes para a
difusão dos sambas que se compunha nos morros, pois lá eram executados, divulgados e
se popularizavam. (CABRAL, 1996; CUNHA, 2004; GUIMARÃES, 1978; SODRÉ,
1998; VIANNA, 2004). A casa de Tia Ciata tornou-se notável no período por ser local
de resistência à repressão do cultivo dos costumes negros, pois era um ambiente musical
e cultural, ou seja, um local de expressão autônoma de uma tradição, até pelo fato de ter
sobrevivido à reforma do centro da cidade do Rio de Janeiro pelo então prefeito Pereira
Passos (SODRÉ, 1998). Situada na praça Onze, resultou foco de socialização da
comunidade negra de origem baiana (era para a praça Onze que convergia a população
pobre dos morros da Mangueira, Estácio e Favela, o que favorecia os grupos de samba,
as rodas de samba e os blocos e cordões carnavalescos) (CABRAL, 1996).
Neste ambiente festivo surgiu o samba que se popularizaria no carnaval de 1917,
sendo registrado por Donga: Pelo Telefone, uma explícita crítica à repressão policial às
camadas baixas da população. Até então, no carnaval carioca cantavam-se os mais
variados estilos musicais: marchas, valsas, polcas, toadas sertanejas, etc. A partir daí, o
samba passou a predominar (CABRAL, 1996). Estaria gravado então o primeiro samba,
cuja autoria é polêmica, pois teria sido uma criação conjunta numa das festividades da
casa de Tia Ciata. Devido ao sucesso de Pelo Telefone, “a palavra samba entrou na
moda e os dirigentes das poucas gravadoras da época, convictos de que ela contribuía
para as boas vendagens, trataram de usá-la até nas etiquetas dos discos que nada tinham
a ver com o samba”. (CABRAL, 1996, p. 33, ênfase do autor). Depois de gravar esta

18
canção, Donga iniciou sua carreira como músico profissional, tornando-se precursor da
indústria do samba e lançou ao restante da sociedade aquele ritmo musical de criação
coletiva por excelência.4
Assim era a produção e a circulação das composições do samba antes do advento
do disco: “[a]ntigamente, lançado o samba, a roda se incumbia de sua propagação”
(GUIMARÃES, 1978, p. 91). O samba, uma vez lançado – assim descreve este autor –
passava pelas escolas do Estácio e do Catete, sendo daí difundido pelo resto da cidade,
excedendo, muitas vezes, as expectativas do compositor quanto ao alcance de suas
canções. Independente de Francisco Guimarães estar correto sobre essa trajetória
específica do samba – do morro para as escolas e daí para o resto da cidade – o que é
importante em seu texto e nos outros cujos argumentos se fazem presentes aqui é o
modo como o samba se expandia e ganhava a cidade do Rio de Janeiro: por redes
sociais. Redes que se constituíam e se fortaleciam pela proximidade que as várias
circunstâncias de marginalização e discriminação impunham à comunidade negra.
Todas estas circunstâncias, conjuntamente, conformaram uma origem social específica e
nitidamente delimitada para o samba, cujo fator comum é a exclusão social, presente na
perseguição, no confinamento nos morros, na expulsão do centro, na proibição religiosa
ou na desconfiança constante.
Nas palavras de Sérgio Cabral, “[a] comunidade negra, instalada no centro da
cidade do Rio de Janeiro, criava, mais do que um gênero, uma cultura musical”
(CABRAL, 1996, p. 27). O samba despontou como manifestação cultural que tem como
origem social uma confluência de fatores desfavoráveis a membros enquadrados nesta
condição comum, apesar do significado pejorativo que detinha junto à sociedade
carioca. Fabiana Cunha (2004) tem razão quando resume a trajetória do samba, desde
seu início com Pelo Telefone: primeiramente, fruto de uma coletividade negra e restrito
aos espaços de sociabilidade das camadas subalternas da população. Originário de um
espaço de criação cultural peculiar, um Rio de Janeiro confinado à periferia, mostrou-se
uma manifestação cultural com interesses, ritmo e criação próprios e independentes.
O samba despontou na periferia da sociedade carioca como criação musical
inovadora, sob seu aspecto formal, porque continha elementos próprios e até então
4
A partir da gravação de Pelo Telefone vários sambistas despontariam no cenário musical brasileiro da
década de 20, destacando-se pela composição de sambas no carnaval e fora dele. Além de Donga (Ernesto
dos Santos), são exemplos Caninha (José Luís de Morais), Freitinhas (José Francisco de Freitas),
Pixinguinha (Alfredo da Rocha Viana Filho) e, o mais proeminente deles, José Barbosa da Silva, o Sinhô
(CABRAL, 1996).

19
inéditos, se comparados com outros estilos musicais já estabelecidos dentro do cenário
musical urbano. Maria Helena Pereira (1979) enumera os fatores que viriam a
configurar o samba, conferindo-lhe especificidade e ineditismo. Primeiramente, o ritmo
marcante da síncopa. Esta é a particularidade do ritmo do samba, na qual a batida
faltante instiga o corpo do ouvinte a preenchê-la de alguma forma, seja através de almas
ou gestos (PEREIRA, 1979; SODRÉ, 1998). Este seu ritmo característico advém,
segundo Muniz Sodré (1998) da reelaboração e da síntese de ritmos característicos da
cultura negra de origem africana no Brasil. Os outros elementos peculiares ao samba
destacados por Maria Helena Pereira (1979) são a melodia, o canto e a dança como
elemento componente, além da condição do negro, o espaço físico e social que ocupa. A
autora inclusive coloca que a significação libidinosa da dança negra é atribuída pelos
brancos desde tempos coloniais, o que acaba por reforçar o conceito animalizador que
fazem dos negros. Projetavam no negro sua própria lascividade, amparados pela religião
que, pregando a castidade e o puritanismo, taxavam-no de pecaminoso, libidinoso,
selvagem e primitivo. Além destes aspectos formais, outra característica própria do
samba é sua dinâmica de produção e circulação limitada à comunidade negra já
abordada anteriormente.
Além da novidade que o samba representou em termos de ritmo e expressão de
cultura própria, é, conforme se vê desde o início de sua criação, instrumento de
afirmação étnica e forma de resistência. Conforme coloca Sérgio Cabral, um povo
vítima de injustiças seculares é o criador de uma cultura que sobreviveu frente a todas
as formas de preconceito e oposição. Muniz Sodré argumenta na mesma direção ao
dizer que o samba é uma materialização da oposição negra à dominação branca
escravagista que concebia o corpo negro como ferramenta produtiva. Para ele, o samba
é um elemento da cultura negra através do qual se afirma sua identidade. Não considera
o samba como uma forma de “sobrevivência consentida” (SODRÉ, 1998, p. 10) e nem
uma adesão empobrecida a alguma prática dominante, conforme prescreve o conceito de
cultura popular de Bourdieu (1983, 2002); é resistência cultural ao modo de produção
dominante, consolidado num universo alternativo de valores e processos. É, conforme
colocaria Certeau (1994), um exemplo empírico da resistência ao imperativo cultural.

20
3 A ascensão social do samba
"...o morro não tem vez
mas, se derem vez ao morro,
toda a cidade vai cantar..."
(O Morro Não Tem Vez- Vinicius de Morais)

No capítulo anterior procurou-se descrever a origem social do samba,


caracterizada por múltiplos processos sociais cujo efeito foi colocar à margem da
sociedade os membros comunidade que o produzia. Abordou-se também que essa
condição periférica comum favoreceu formas de interação e de sociabilidade propícias
ao cultivo de uma cultura negra da qual o samba é uma expressão. Cabe destacar que,
em suas origens, o samba ainda é produto do morro, quase exclusivo daquela parcela
dos habitantes da cidade do Rio de Janeiro e manifestação cultural mal vista por grupos
dominantes da época. Francisco Guimarães (1978, p. 28), que vivenciou este contexto,
escreve que “... antigamente [o samba] era repudiado, debochado, ridicularizado.
Somente a gente da chamada roda do samba o tratava com carinho e amor!”
No curso de sua história, porém, o samba foi deixando de ser prática inerente ao
morro para ser, aos poucos, incorporado à rotina cultural carioca e, posteriormente,
brasileira. O sucesso alcançado pela primeira geração de sambistas, de ritmo semelhante
ao maxixe, a nova forma de samba desenvolvida pelos sambistas do bairro do Estácio
de Sá, a formação e a consolidação das escolas de samba, a maior cobertura dada pela
mídia, a ascensão do rádio como principal veículo de comunicação, a indústria
fonográfica, o uso político deste ritmo e o interesse de músicos das classes médias
foram fatores de ganho progressivo de prestígio junto à grande parte da sociedade.
Neste capítulo descreve-se estes processos concomitantes por meio dos quais o samba,
paulatinamente, deixa de ser costume reprimido e enclausurado para adentrar a
sociedade brasileira, atraindo a atenção do público, adquirindo visibilidade, ganhando
prestígio, se incorporado ao estilo de vida e ao gosto musical das demais grupos sociais,
obtendo respeitabilidade e representando a cultura típica da nação.
Sérgio Cabral (1996) e Fabiana Cunha (2004) identificam dois tipos de sambas
nas primeiras décadas do século XX na cidade do Rio de Janeiro. O primeiro deles é
oriundo dos redutos de baianos migrados para o Rio de Janeiro, freqüentadores da casa
de Tia Ciata e influenciados pelo maxixe. Seus principais representantes são Donga,
João da Baiana, Pixinguinha e Sinhô.

21
Sinhô, que passou a ser conhecido como “O Rei do Samba”, foi o mais famoso
da geração dos anos 20 e quem mais produziu canções (o que é questionável, pois sabe-
se que várias canções que ele lançou sob sua autoria na verdade eram de outros
compositores) (CABRAL, 1996). Também dissidente do grupo de Tia Ciata, dispunha
de vários canais de divulgação, como salas de espera de cinema, clubes carnavalescos,
teatros de revista e a famosa festa da Penha, adquirindo notoriedade naquela década,
quando o samba ainda era visto pela intelectualidade brasileira como música inferior e
não estava ainda estilisticamente estabelecido, como o seria na década de trinta.
(CUNHA, 2004).
Como o rádio só se firmaria como veículo maior de divulgação do samba a partir
dos anos 30, os artistas da década de 20 só dispunham do teatro de revista, das casas
festeiras como a de Tia Ciata, da festa da Penha e, de forma incipiente, dos primeiros
discos. Seus sambas ainda diferenciavam-se pouco do maxixe, e eram comercialmente
favorecidos por essa semelhança. Este primeiro estilo do samba também não explorava
ainda a síncopa, que se firmaria como a forma rítmica típica do samba.
O samba começava a se fazer conhecido e a ser composto em outras regiões da
cidade graças ao fato da geração de 20 ter despontado para o show business. Este
primeiro conjunto de sambistas foi responsável pelo começo do trânsito social do samba
do morro para a cidade (CABRAL, 1996).
O segundo tipo de samba, procedente do bairro Estácio de Sá, foi aquele que,
posteriormente, seria conhecido como o “verdadeiro samba”, definido estilisticamente.
A diferença rítmica entre eles é que, enquanto o primeiro é mais amaxixado, o segundo
é mais gingado e mais flexível, além de ser mais apoiado na percussão.
Em seu estudo sobre as escolas de samba do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral relata
que, no decorrer da década de 20 do século XX, um grupo de jovens compositores do
bairro do Estácio dava novo tratamento ao ritmo do samba, engendrando uma completa
mudança em seu estilo que traria fôlego à sua história. Interessados na criação de um
novo bloco, o Deixa Falar, passaram a produzir um samba mais adequado para se
dançar no carnaval, durante o desfile, promovendo assim uma inovação rítmica no
samba. Com notas mais longas que as dos sambas da geração anterior, as canções
oriundas do Estácio obtiveram notável sucesso comercial na época, atraindo cantores
como Francisco Alves, que comprava as composições e as lançava como sendo de sua
autoria. Os principais representantes desta nova concepção de Samba do Estácio de Sá
foram Ismael Silva, Rubem Barcelos, Alcebíades Barcelos (o Bide), Nilton Bastos,

22
Edgar Marcelino dos Passos, Osvaldo Vasques (o Baiaco), Sílvio Fernandes (o
Brancura), Eurípedes Capelani e Aurélio Gomes5.
Ainda segundo Sérgio Cabral, os ditos professores desta nova forma de samba
fundaram naquele bairro, no dia 12 de agosto de 1928, o bloco Deixa Falar, cujo
propósito era, além de divulgar sua nova proposta de samba, melhorar a relação dos
sambistas com as autoridades. Embora o autor ressalve que nessa época a perseguição
policial ao samba já não fosse tão violenta, ainda existia, e era contra ela que o Deixa
Falar pretendia atuar.

O Deixa Falar, além de reunir os jovens e revolucionários


compositores do bairro, pretendia também melhorar as relações dos
sambistas com a polícia, já que, sem a autorização policial, não tinham
o direito de promover as rodas de samba no Largo do Estácio e muito
menos de desfilar no carnaval. Por isso, trataram logo de legalizar a
situação do grupo. (CABRAL, 1996, p. 41).

Esta nova forma de samba desenvolvida por estes compositores foi fundamental
para a aceitação deste ritmo pelos demais segmentos sociais que compunham a
sociedade carioca daquele contexto. Mais que isso, este estilo de samba é que ficou
conhecido como a forma definitiva do mesmo, que alcançaria o status de típica música
do Brasil e objeto de consumo cultural dos brasileiros.
Outro fator que favoreceu a maior visibilidade do samba e, conseqüentemente, a
sua maior aceitação, é a formação e a consolidação das escolas de samba no Rio de
Janeiro. Sobre este assunto, a obra de Sérgio Cabral adotada aqui As escolas de samba
do Rio de Janeiro é a referência básica.
No final da década de 20, outros grupos carnavalescos além do Deixa Falar
brotavam em demais regiões da cidade do Rio, principalmente ao redor do centro da
cidade. Segundo o autor, todo ano surgiam novos agrupamentos carnavalescos – blocos,
cordões e ranchos - que, no carnaval, se apresentavam na Praça Onze, reduto do
carnaval popular carioca.
O primeiro desfile das escolas de samba foi promovido em 1932 pelo jornal
Mundo Sportivo6. O desfile aconteceu como decorrência de uma idéia de seu

5
Alguns sambistas do Estácio acabaram se profissionalizando. Bide e Ismael Silva, por exemplo, quando
começaram a conseguir gravar seus sambas, largaram seus empregos. Este fenômeno e suas implicações
serão abordados a seguir.
6
Com o fechamento do jornal Mundo Sportivo, outros jornais da época se incumbiram da organização
anual dos desfiles no carnaval, como O Globo, em 1933 e o jornal A Nação, em 1935.

23
proprietário, Mário Filho, de organizar uma disputa entre os sambistas das escolas
regulamentada por critérios para evolução , porta-bandeira, bateria, harmonia, etc.. A
competição aconteceu na Praça Onze, área de confluência dos morros da Favela, São
Carlos, Rio Comprido, Catumbi, Cidade Nova, Estácio de Sá, Saúde, Gamboa, Santo
Cristo e outras regiões também ocupadas pela comunidade negra carioca. Após ter
ocorrido, o desfile foi abordado na mídia como um acontecimento pitoresco na cidade,
em que o exótico descia à Praça Onze. Naquela época (anos 30), o principal assunto nos
jornais, na época do carnaval, eram ainda as grandes sociedades carnavalescas, com
seus bailes mais elitizados.
Em 1934 é criada a União das Escolas de Samba. Segundo seu estatuto, ela se
incumbiria de lutar pelos interesses das escolas, de conseguir apoio financeiro para as
mesmas, de organizar festejos carnavalescos e demais exibições públicas e de
padronizar os desfiles. Sua primeira reivindicação junto à prefeitura do então Distrito
Federal foi a oficialização do desfile das escolas, como já havia ocorrido com os
ranchos, os blocos e as grandes sociedades. A solicitação foi atendida, até porque era
interesse da prefeitura, que passou a usar os desfiles como atrativo turístico local. As
escolas, assim, passaram a contar com uma representação formal através desta
instituição e estreitaram seus laços junto ao poder público (CABRAL, 1996).
Pelos anos 50 percebia-se o crescente prestígio das escolas de samba junto à
sociedade carioca. Grupos da Mangueira apresentavam-se todos os anos no Country
Club e na Sociedade Hípica Brasileira, redutos das elites da época. Atores e atrizes de
Hollywood compareciam aos desfiles. Cada vez mais, o público das frações médias e
altas se interessava pelas escolas de samba. Seus desfiles passaram a se tornar
interessante programa cultural e forma de entretenimento destes indivíduos.

Até o final da década de 50, a platéia [dos desfiles] era formada


predominantemente por representantes das comunidades das escolas
que lá iam torcer pelas suas favoritas. Mas, já no inicio dos anos 60,
observa-se o interesse cada vez maior de um público de classe média
vindo da Zona Sul do Rio de Janeiro. (CABRAL, 1996, p. 187).

Além dos desfiles, seus ensaios passaram a ser opção de programa de fim de
semana da classe média carioca e até mesmo de autoridades oficiais. As quadras das
escolas se enchiam de jovens da zona sul da cidade do Rio. Veja-se o que Sérgio Cabral

24
diz sobre aquela nova composição social do público freqüentador dos desfiles e dos
ensaios e a proporção que tomavam estes últimos:

É verdade que não se podia mais chamar de ensaios aquelas reuniões


festivas em que as alas já não se preparavam mais para o desfile, até
porque o número de visitantes superava o de sambistas. Os ensaios
transformaram-se em simples festas carnavalescas animadas pela
bateria e pelos sambas-enredo. Os chamados sambas de quadra
também começavam a ser esquecidos. A Portela passou a promover
“ensaios” num clube de Botafogo para atender ao público da Zona
Sul. O Salgueiro, por sua vez, deixou de ensaiar em sua belíssima
Quadra Casemiro Calça Larga, no alto do morro, trocando-a pelo
Clube Maxwell. (CABRAL, 1996, p. 195).

Em meados da década de 60, o que se observa é que a classe média já não se


limitava a assistir ao desfile; passaram a desfilar nas escolas de samba, ou seja, inicia-se
uma mudança na composição da própria escola. Além da classe média, celebridades da
época também foram incorporadas ao desfile. Em 1965, por exemplo, a Portela
apresentou-se com uma ala só de artistas da TV Excelsior.
O Salgueiro foi a escola que primeiro percebeu como era o gosto desse novo
público, incutindo uma nova perspectiva na apresentação, sendo pioneira na contratação
de profissionais de fora incumbidos da transformação do desfile em espetáculo. Assim,
surge no Rio de Janeiro uma profissão que só havia lá: o carnavalesco profissional. Este
se fazia acompanhar de uma gama de profissionais envolvidos diretamente com os
desfiles e externos às comunidades de origem das escolas: bailarinos, coreógrafos,
figurinistas, especialistas em espetáculos, artistas plásticos, cenógrafos, desenhistas,
aderecistas, etc. Os carnavalescos atingiam o estrelato através do carnaval carioca,
enquanto aqueles diretamente ligados ao samba – ritmistas, compositores, cantores,
porta-bandeiras, mestres-salas e passistas – permaneciam no anonimato.
As distorções por que passavam as escolas de samba prosseguiram nos anos 70:
a tendência à grandiosidade, a ênfase ao cênico e a incorporação de profissionais
externos à escola, desde compositores a coreógrafos. Nesta época surgiu Joãozinho
Trinta, personalidade mais badalada do carnaval carioca. Trabalhando para escolas
como Salgueiro e Beija-Flor, foi responsável pela magnitude que tomavam os desfiles,
pois foi ele o idealizador das grandes alegorias.
No final da década de 70, um problema que acometia as escolas de samba era o
número de componentes que cada uma delas continha, que comprometia o andamento
do desfile. Mas a adesão crescente de participantes não era de sambistas, mas sim de

25
turistas que chegavam ao Rio com a garantia das agências de viagem de que desfilariam
numa escola de samba. Em cada escola havia, aproximadamente, mais de 4.000 pessoas.
O samba propriamente dito também sofria alterações em nome da funcionalidade do
desfile. Tornou-se simplificado, ficando mais curto, com apelo ao refrão e fácil de se
decorar.

O problema é que as escolas de samba sofreram com uma inchação de


proporções assustadoras e nem o samba-enredo aguentou com elas.
Foi preciso acelerar seu andamento e até alterar o ritmo para o da
marcha, a fim de que 4.500, 5.000 pessoas façam o seu desfile em 80
minutos. As baterias tiveram que se adaptar à correria da música e,
sem condições de manterem as antigas características de cadência,
timbre, etc., ficaram todas muito parecidas, como se houvesse uma só
bateria para todas as escolas [...]. Dançar o samba durante o desfile
tornou-se uma tarefa impossível de ser executada. (CABRAL, 1996, p.
234).

Apesar desse novo público freqüentador, dos novos participantes dos desfiles, da
imponência que tomou o evento do carnaval, com sua estrutura, volume de dinheiro
movimentado e apoio da prefeitura que visava arrecadar como o evento, persistia a
fragilidade das escolas de samba, cujas instalações ainda sofriam com chuvas,
enchentes, etc. Por outro lado, na avenida eram expandidas as instalações para
acomodação de turistas. Os sambistas há muito já não tinham controle sobre o carnaval,
transformado em atração turística altamente rentável para a cidade do Rio.
Por fim, os próprios sambistas começaram a se excluir do desfile, sintoma da
alienação a que eram submetidos. Dado o alto valor do ingresso, muitos não
conseguiam assistir ao carnaval, ficando de fora do evento e separados do produto do
qual eram os idealizadores.
Percebe-se como a importância e a visibilidade das escolas de samba foi
crescendo. Passou a ter reconhecimento oficial, firmou-se como atração turística da
cidade e ganhou a admiração da classe média, que aos poucos foi se apropriando da
audiência ao desfile, dos ensaios das escolas e até participando do próprio desfile. Como
conseqüência, o contato da sociedade com o samba das escolas se aproximou. Os
morros e as escolas passaram a ser cada vez mais frequentemente visitadas por
estrangeiros, políticos, governantes, artistas consagrados e personalidades da mídia.
Concomitante a isso, as escolas de samba e os sambistas que lhes representavam
passaram também a ser requisitados em diversas situações sociais. A folia se
industrializou e se tornou megaespetáculo inacessível para os próprios sambistas. As

26
escolas de sambas conquistaram, definitivamente, visibilidade social, mantendo relações
com o Estado, com a economia, com a imprensa e com a opinião pública. É um
acontecimento anual aguardado e de repercussão mundial que envolve cifras
milionárias, com dinheiro advindo desde a venda de ingressos até a publicidade
veiculada no sambódromo. Um artigo denominado Cidade do samba veiculado na
edição número 6, de 13/02/2009 da Revista Viver descreve a magnitude do desfile das
escolas de samba atualmente. A arrecadação é de aproximadamente 40 milhões de reais,
sendo que um desfile competitivo custa a uma escola aproximadamente seis milhões. A
renda das escolas provém do repasse da prefeitura, da venda de fantasias, do ingresso
cobrado para os ensaios, de patrocínio, do jogo do bicho, da transmissão pela TV e de
padrinhos. Celebridades são presença constante no desfile, não somente nos caros e
badalados camarotes, mas também como integrantes das escolas de samba. Há, por
outro lado, uma gama de profissionais do carnaval, encarregados dos aspectos
logísticos, técnicos, estéticos e operacionais. Para estes, o carnaval garante trabalho o
ano todo, ou ao menos durante boa parte dele. Os galpões da escola integram um
complexo, chamado Cidade do Samba, que é a indústria propriamente dita. Lá são
produzidos os carros alegóricos, os bonecos e demais alegorias que compõem o desfile
das escolas, sendo um local aberto a turistas, dispondo de espaço para shows e
apresentações. O turista é, inclusive, ator importante na indústria do carnaval, não só
pelo dinheiro que injeta na economia local, mas também na composição da platéia. Para
eles, cada vez mais o evento tomou feições de espetáculo.
Retomando o período compreendido entre o final da década de 1920 e o começo
dos anos 30, outro fator que acontecia paralelamente à divulgação do samba e à
consolidação das escolas e que contribuiu para o ganho de prestígio dessa música junto
à sociedade carioca foi o ganho de espaço concedido ao samba nos jornais da época.
Além do maior interesse dos jornais pelo desfile no carnaval apontado por
Sérgio Cabral, o samba e as escolas de samba também ganham mais visibilidade com
suas aparições esporádicas no cinema. O samba, os sambistas e os morros aparecem
caracterizados em filmes como “Favela dos meus amores” de 1934 (de direção de
Humberto Mauro, cuja história se passava no morro da Favela), “O Bobo do Rei”, em
1936 (baseado num texto teatral de Joraci Camargo e que contou com a participação de
vários portelenses, inclusive Paulo da Portela) e “Descobrimento do Brasil”, de
argumento de Humberto Mauro e Afonso de Taunay, que teve Cartola como figurante.
(CABRAL, 1996).

27
Com esta aparição na mídia, o samba e seus criadores iriam lentamente deixando
de ser somente banidos para serem reconhecidos como componentes do acervo musical
e cultural brasileiro, dado que a sua caracterização no cinema e sua menção nos jornais
da época aproximavam-nos do cotidiano carioca em vez de ser somente a música étnica
e mal vista dos morros.
No entanto, o veículo de comunicação que mais favoreceu a ascensão social do
samba, lhe conferindo local de destaque entre os ritmos executados no país, foi o rádio.
Através dele, este samba alcançou um nível de audiência que jamais conseguira em suas
formas tradicionais de veiculação. Pelo rádio a sociedade brasileira conheceu, de fato, o
samba.
Segundo Fabiana Cunha, quando se inicia a transmissão de rádio em 1923, não
havia ainda o profissionalismo artístico. O rádio – diz ela – foi fundamental para o
reconhecimento do samba porque nele os artistas eram convidados a se apresentar ao
vivo, muitas vezes recebendo cachê, e através dele suas canções eram divulgadas. Da
mesma forma passaram a ser também transmitidas as músicas carnavalescas. Por estas
razões, o rádio foi um dos grandes responsáveis pela difusão e consumo do samba pelas
classes médias a partir dos anos 30.

A situação melhorou na virada da década, quando o samba feito por


aqueles jovens do Estácio (e de outras regiões do Rio) penetrou
avassaladoramente no mundo do disco e do rádio, fazendo deles
personagens de destaque da área artística (CABRAL, 1996, p. 41).

Tanto os sambistas de classe média provenientes de Vila Isabel (como


Almirante, Noel Rosa, João da Baiana e Armando Reis) quanto os de origem humilde,
vindos do bairro de Estácio de Sá (Ismael Silva, Brancura, Baiaco, Nilton Bastos e
outros) obtiveram notável sucesso nos anos 30 e 40, dado o alcance atingido por suas
composições. Foram estes artistas que trouxeram a música do subúrbio e dos morros
para que, através do rádio, chegassem à população. Foi o contexto do sucesso alcançado
pela canção Na Pavuna, de Almirante, da abertura de um mercado de trabalho para os
ritmistas, da conquista de espaço na mídia pelo samba e pelo crescimento da indústria
de entretenimento no Brasil. Pode-se dizer que o rádio foi o fator responsável por
apresentar o samba às massas, difundindo-o em proporções inéditas. Mais do que nunca,
o samba percorria toda a cidade além do morro, agradando aos ouvidos das classes

28
médias e das elites cariocas, adquirindo cada vez mais respeitabilidade e fomentando
um mercado de consumo de música popular (CUNHA, 2004).
Mas o fator mais relevante na ascensão social do samba talvez tenha sido a sua
inserção no modo de produção capitalista com sua conversão em mercadoria. Esta
leitura da incorporação ao samba à indústria fonográfica e das conseqüências para este
estilo musical está baseada, sobretudo, na obra de Muniz Sodré Samba, o dono do
corpo, na qual ele aborda as metamorfoses pelas quais o samba passa desde os
primórdios de sua elaboração até sua efetiva integração à sociedade brasileira, como
mercadoria da indústria cultural. Tem lugar também os escritos de Guimarães (1978),
Menezes Bastos (1995) e José Jorge de Carvalho (2004), dos quais se extraiu
colocações para reconstrução do curso histórico do samba rumo à condição de produto
de vasta aceitação comercial.
Francisco Guimarães (1978) foi um dos que primeiro escreveram sobre a
industrialização do samba, já que a primeira edição de seu livro Na roda do samba data
de 1933. Esta obra compõe-se de uma compilação de crônicas de sua autoria e consiste
numa série de avaliações, impressões, descrições e opiniões pessoais, nas quais ele
aborda negativamente a mercantilização do samba. Nas palavras do próprio, “o samba é
hoje uma das melhores indústrias pelos lucros que proporciona aos autores e editores”
(GUIMARÃES, 1978, p. 28). O autor se mostra saudoso do tempo em que o samba
circulava somente em ocasiões festivas com execuções ao vivo. Porém, quando o samba
é comercializado pela indústria fonográfica, ele “morre”, pois perderia sua essência e
sua autenticidade por se difundir conforme padrões e interesses comerciais: “depois que
industrializaram-no, está perdendo a sua verdadeira cadência e vai assim aos poucos,
caminhando para a decadência” (GUIMARÃES, 1978:77). O autor, assim como outros
(MENEZES BASTOS, 1995; SODRÉ, 1998; VIANNA, 2004), aponta o fato precursor
desse fenômeno a gravação de Pelo Telefone por Donga. Como já se disse
anteriormente, a canção consiste numa criação coletiva tomada por ele, omitindo a
autoria dos demais envolvidos em sua composição. Após Donga, teria sido Sinhô quem
mais se inseriu nesse universo da comercialização musical. “Quantos sambas do Sinhô
nasceram no Morro do Salgueiro e morreram nos discos da vitrola?” (GUIMARÃES,
1978, p. 32).
Como conseqüência de sua integração ao modo de produção capitalista, o samba
experimentou, segundo Sodré (1998) o ritmo da indústria, caracterizado pela
intensificação da produção, pela padronização e pela veiculação do produto definitivo.

29
Anteriormente, o processo de composição do samba era aberto à participação de
pessoas. Nas ocasiões em que se cantava e tocava este tipo de música nos redutos
negros da cidade do Rio, as canções mantinham um refrão ao qual se retornava após
cada estrofe improvisada pelos participantes. Permitia-se a intervenção, a invenção e a
inovação, não tendo assim uma forma pronta, um produto final. As canções circulavam
pelos morros indefinidamente, em diversas festividades, rodas, etc., sendo
constantemente modificadas, difundindo-se sempre de forma inacabada. Com a
produção em massa, passou-se a ter uma subdivisão clara das etapas e a consolidação de
um produto final, resultante de uma fórmula padronizada para as canções e fixado na
gravação. A forma industrial anulava a espontaneidade em favor de peças prontas,
concluídas. Surgiram os sambistas profissionais que, mais que viver no samba, viviam
dele. A composição passou a ser tarefa individualizada, autoral. Muniz Sodré (1998)
ressalta que, na forma industrial de se produzir sambas, o indivíduo passou a ser
privilegiado com a transformação do samba em mercadoria pronta, independente do
campo social de criação como um todo. Adquiriram centralidade o papel do compositor
e sua produção individualizada, logo no samba, cuja criação era em bases coletivas. O
compositor, surgiu, portanto, como força de trabalho individual, contraposto à base
comunitária da produção desse ritmo. Sodré destaca que só então começou a se falar da
importância da autoria, que era problemática, pois se tratava da posse individual de uma
elaboração coletiva.
No capítulo A decadência da vitrola de sua obra Na Roda do Samba, Francisco
Guimarães se dispõe a revelar seu pessimismo e seu repúdio à indústria do samba.
Abstraindo-se seu ressentimento e seu posicionamento frente ao fenômeno que
presenciava, é possível obter em seu discurso uma descrição do mesmo. Segundo ele, a
seleção do que devia ser gravado de todo material que era produzido em matéria de
samba se dava “pela falta de escrúpulo dos editores, pela ganância de alguns autores e
principalmente pelo monopólio exercido por certo grupinho, que constitui a comissão
julgadora” (GUIMARÃES, 1978: 123). Percebe-se, em seu texto, que o repertório era
definido conforme a aceitabilidade do público, ou seja, pelas vendagens que poderiam
proporcionar. Guimarães aponta, como conseqüência,

um certo retraimento daqueles que poderiam apresentar trabalhos


apreciáveis, com originalidade e arte [...]. Hoje, o que está dando
dinheiro é samba. E os editores querem sambas em quantidade, sem
olhar a qualidade! (GUIMARÃES, 1978, p. 123-124).

30
Mais uma vez aqui, ele estabelece uma distinção entre “a roda” e a indústria.
“Da roda” - julga ele – são aqueles que se dedicavam ao samba de forma mais visceral,
não auferindo deles lucro e nem contribuindo para a consolidação dessa música
enquanto mercadoria, que leva necessariamente à perda de sua originalidade, de sua
origem, de sua pureza e seu ritmo.
A partir da incorporação do samba à indústria fonográfica pode-se constatar que
essa música de execução e uso coletivos, passa à condição, portanto, de música popular,
seguindo a linha de Menezes Bastos, pois é um tipo de música de raiz étnica e
transmitida por meios orais que é convertida em música produzida por um autor
individualizado e veiculada em bases urbano-industriais conforme tendências de
mercado (MENEZES BASTOS, 1995, CARVALHO, 2004). Nessa nova condição, o
samba perdeu peculiaridades morfológicas (como o improviso, por exemplo), dissociou-
se da dança e admitiu novos instrumentos e outras formas de execução, embora
mantivesse a síncopa, sua principal característica enquanto feito rítmico e melódico
negro e a referência a valores da cultura negra e à condição do negro. (MENEZES
BASTOS, 1995; SODRÉ, 1998)
Assim, o samba, atividade sensorial múltipla e conjunta, foi remodelado em
divisões binárias (produtor/consumidor, compositor/ouvinte, música/dança, etc.) que
romperam com seu costume original (SODRÉ, 1998). Sua entrada no universo da
indústria, contudo, não supôs a extinção de seu meio de origem e nem de sua forma
primeira de criação, segundo apontamentos de Sodré (1998). O autor coloca que seria
um erro presumir este destino do samba como inevitável. Pelo contrário, Sodré relata
que, desde que o samba começa a ser comercializado (a partir, sobretudo, da década de
20), percebe-se o convívio entre dois circuitos distintos de criação do samba: um deles,
que se mantém como resistência à sua própria reformulação e individualização,
seguindo como criação coletiva. Neste, o samba ainda era produzido de forma artesanal,
não-capitalista, circulando inacabado e sem autoria definida. O outro, fomentado pela
lógica do mercado das gravadoras, valorizava a autoria, a individualidade na criação, a
composição como ato de formulação de canções definitivas para registro fonográfico e a
produção para venda. Estes dois universos se encontravam numa prática muito comum
neste período: a compra de sambas. Músicos profissionais (brancos, como regra geral)
circulavam entre os compositores não integrados na indústria fonográfica para comprar
destes as obras que produzem. Após a “aquisição” da canção, o comprador se intitulava

31
autor da mesma, como é o caso do sambista Ismael Silva que vendia sambas ao cantor
Francisco Alves7.

A compra e a venda do samba eram „normais‟, constituindo-se numa


prática paralela – uma transversalidade econômica autorizada por um
outro sistema cultura – ao modo de produção econômico e à cultura
dominante [...] um puro índice de exploração do negro pelo branco.
[...] Mas do ponto de vista da comunidade negra, tal prática era
admissível, por não ser institucionalmente lesiva (SODRÉ, 1998, p.
57).

Embora configurasse hoje como uma situação de exploração, tal prática não era
considerada lesiva na época, sobretudo se se considera que a autoria e a canção
enquanto um bem eram concepções ausentes no universo tradicional do samba. A
compra de sambas indicava a existência de um sistema alternativo de valores, do qual a
indústria poderia se servir (SODRÉ, 1998).
Tal universo paralelo ao circuito industrial de composição das canções
prosseguia como um ambiente de prática cultural e de resistência negras. Situando-se à
margem do processo produtivo dominante, embora cogitado por ele, é o espaço da
composição musical espontânea e coletivizada, oposta a fórmulas prontas, a um ritmo
estabelecido e à disseminação num mercado. Como diz o autor, “o samba é o meio e o
lugar de uma troca social, de expressão de opiniões, fantasias e frustrações, de
continuidade de uma fala (negra) que resiste à sua expropriação cultural” (SODRÉ,
1998, p. 59). O samba tradicional é resistência cultural ao modo de produção
dominante, ainda configurando um universo alternativo de valores e processos
(SODRÉ, 1998).
A industrialização do samba possibilitou também a profissionalização daqueles
diretamente envolvidos com esse ritmo. Quando o samba passa a ser comercializado, o
músico negro se vê como um profissional da música, seja como professor de
instrumento ou contratado para tocar. Com o advento do disco e a venda do samba

7
Como conseqüência dessa nova concepção das canções como uma peça pronta que tinha autor, tornou-
se comum o costume do plágio. Como exemplo, tem-se Sinhô (José Barbosa da Silva), primeiro sambista
a se projetar profissionalmente. Brigava por reconhecimento individualizado pelas canções das quais
participava da autoria ou não. Outro exemplo é Pelo Telefone, samba gravado por Donga, mas obra de
diversas pessoas. Outros nomes de sambistas famosos à época como Lamartine Babo e Fonseca Moreira
também são citados como plagiadores, seja porque lançavam como suas composições antigas, porque
usurpavam obras alheias, porque compravam os direitos autorais ou mesmo compravam as canções,
propriamente (GUIMARÃES, 1978).

32
através dele, abriu-se um mercado que possibilitou a muitos negros e mestiços
sobreviver enquanto sambistas. Sobre isso, comentou Guimarães (1978, p. 90):

Hoje, o que inspira os sambistas e sambestros8 (sic) é a ambição do


ouro [...] há mesmo quem viva única e exclusivamente do samba,
apresentando coisas antigas como de sua lavra [...]. O samba
industrializado despertou a cobiça e fez surgir uma nova geração de
autores... de produções dos outros.

Diferente destes, o Francisco Guimarães designa como “da roda” aqueles outros que ele
julga terem um pertencimento mais autêntico à comunidade produtora de samba. Assim,
há aqueles que são da indústria e os “verdadeiros”.
Esta profissionalização do samba, segundo Muniz Sodré e José Jorge de
Carvalho, deve ser entendida como uma mínima penetração do negro numa sociedade
branca. O poder político e econômico, escravagista, que reprime a população e a cultura
negras, passa a acomodá-las até um certo limite, segundo Sodré. De qualquer forma, foi
mais um meio por meio do qual o samba penetrou na sociedade brasileira.
Através de sua incorporação ao universo da música popular, sendo oferecido
para consumo através do disco, o samba se encontrava finalmente disponível para livre
execução dos ouvintes. Cada vez mais presente no cotidiano cultural do Rio de Janeiro e
até em demais regiões do Brasil, esta música “desbancou a modinha; [...] subiu aos
palcos, [...] invadiu os clubes, [...] penetrou nos palácios [...]”. (GUIMARÃES, 1978, p.
28), amparada pela aceitação de seu consumo através do disco, pelo sucesso das
primeiras gerações de sambistas, pela visibilidade das escolas de samba e pelo poder de
divulgação do rádio. Apesar da vastidão que o consumo de samba alcançara como
mercadoria, como forma de entretenimento e sujeito a apropriações casuais pelas
camadas médias, subsistia ainda sua origem humilde dos morros, cada vez mais
ofuscada pelo sucesso de sua criação musical.
Mesmo no âmbito político o samba também experimenta uma “mudança de
lado”, passando de manifestação abominada, proibida e oposta aos interesses
modernizadores da República Velha a ritmo empregado em significações nacionalistas e
como veículo ideológico, associado a um modelo de nação, junto a um movimento de
exaltação do negro (ao lado do índio) como o autêntico brasileiro, recalcando-se sua
condição sócio-econômica subalterna. O crescimento da importância política do samba
e seu envolvimento com os interesses do Estado nas primeiras décadas do século XX

8
Compositor de sambas.

33
são o foco dos trabalhos de Fabiana Cunha, Da marginalidade ao estrelato: o samba na
construção da nacionalidade e de Hermano Vianna, O mistério do samba.
Segundo eles, a possibilidade de se delimitar uma identidade para o Brasil já
havia sido debatida por intelectuais como Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Alberto
Torres e outros9. Para a maioria deles, uma identidade brasileira, de antemão, estaria
comprometida devido à heterogeneidade racial, personificada na figura do mestiço,
típico representante do atraso brasileiro. Por outro lado, nos primeiros anos do século
XX observa-se, na literatura e nas artes, uma tendência de valorização do nativo, dos
tipos sociais característicos do território e da realidade nacionais. Esse movimento se
faz presente na obra de Afonso Arinos, Lima Barreto e outros. Esse sentimento
nativista, de buscas das raízes nacionais da cultura e da valorização da realidade sócio-
cultural brasileira foi a bandeira da Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo,
que se caracterizou pela mobilização de artistas, intelectuais, literatos e compositores
em torno de manifestações genuinamente nacionais que fossem capazes de representar
todo o povo brasileiro. Tal postura se contrapunha aos projetos culturais da República
Velha, pois, ao se privilegiar o folclore, as manifestações populares e todo tipo de
cultura que se acreditava nativa, negava-se os anseios da época, de difusão de uma
imagem da nação moderna, urbanizada e cosmopolita.
A busca dessa estética puramente brasileira fez com que artistas eruditos se
interessassem por motivos populares em seus trabalhos, notadamente na música, num
período de adensamento populacional da população urbana, de ampliação do espaço
urbano e de crescimento da indústria do entretenimento. Como resultado, o encontro de
grupos sociais distintos e o contato com a música popular por grupos dominantes foram
favorecidos. Assim coloca a autora:

Esse grande projeto de tentar construir uma estética homogênea,


original e legítima atrelada à identidade nacional levou muitos artistas
considerados „eruditos‟ a utilizar motivos populares em suas
composições. No entanto, estas obras também foram motivadas pelo
encontro de grupos sociais distintos propiciados pelas mudanças que
ocorriam dentro do espaço urbano que se ampliava meteoricamente,
devido ao crescimento populacional, ao desenvolvimento capitalista,
às profundas reformas na paisagem urbanística na cidade do Rio de
Janeiro, e ao crescimento da indústria de entretenimento que acabou
favorecendo a aproximação de músicos não eruditos em relação às
elites dominantes e aos compositores consagrados pelas mesmas.
(CUNHA, 2004, p. 42)

9
A assim chamada “geração de 1870”.

34
Durante a década de 1920 o trabalho de muitos músicos populares como Donga,
Pixinguinha e João da Baiana, valorizado por aquele discurso nativista, se desvinculou
de suas origens populares e marginalizadas para adentrar o universo da indústria
cultural, cujas músicas passaram a ser cada vez mais consumidas pela população em
geral, e não somente por seus pares.
Posteriormente, o projeto de educação homogeneizadora de Getúlio Vargas, de
estimular o sentimento de nacionalismo e de construir uma identidade brasileira, ainda
segundo Fabiana Cunha, fez com que o ministério da Educação contasse com nomes do
movimento modernista brasileiro, como Carlos Drummond de Andrade, Mário de
Andrade e Heitor Villa-Lobos, no trabalho de recuperação, resgate e mesmo construção
de uma cultura nacional. Foi um empreendimento tanto educativo e formativo quanto
político-social, uma vez que se pretendia a veiculação de propaganda da imagem do
país. Para tais objetivos, o Estado incentivou a produção cinematográfica, criou em
1934 o Departamento de Propaganda e Difusão Cultural, alinhou os meios de
comunicação em massa com seus interesses de divulgação ideológica. A música e o
rádio também atuaram nesse intuito educativo e mobilizador, contanto para isso com
Heitor Villa-Lobos, a quem coube desenvolver a educação musical e artística através do
canto coral popular. O alinhamento desses artistas com o Estado se justifica por ser este
a única instituição capaz de recuperar e divulgar a cultura nacional frente à cultura
estrangeira e industrial. Da parte do Estado, era estratégico se valer da música popular,
dos artistas, dos intelectuais e do rádio para difusão da propaganda oficial, de um
conceito da nação e da ideologia do Estado Novo.

Para a formação de uma cultura nacional, e para o resgate da cultura


popular, o Estado Novo vai se utilizar dos inúmeros intelectuais e
artistas do período, como Mário de Andrade e Villa-Lobos [...].
Veremos que a atuação do Estado Novo no campo da arte, e
particularmente da arte popular, destacava-se também no
reconhecimento do valor e do poder de sugestão da música popular.
(CUNHA, 2004, p. 212).

Neste período, o samba, principalmente, passou a conter uma nova temática, na


qual o malandro, outrora enaltecido no cancioneiro popular, se regenera e o elogio
começa a se dirigir à figura do trabalhador disciplinado, ao Estado Novo e ao
Presidente. A autora analisa, inclusive, o surgimento dos sambas-exaltação, de caráter
ufanista. Logo, o rádio e a música popular tornaram-se eficazes meios de propaganda
política e mobilização popular. Resume Cunha:

35
O governo estadonovista, contando com o apoio do Departamento de
Informação e Propaganda (DIP), e com os projetos de alguns
intelectuais contratados, conseguirá concretizar, até certo ponto de
forma bem sucedida, a construção de uma ideologia coadunada com a
sua propaganda política e cultural e de certa forma a utilizar o rádio e
os sambas para educar e disciplinar os consumidores desse tipo de
música. Isso se dará através da censura, dos sambas celebrando o
trabalho disciplinado, do nacionalismo ufanista das canções de
exaltação, dos grandes concertos promovidos pelo Estado [...] e
através dos concursos carnavalescos (CUNHA, 2004, p. 200).

O alinhamento do samba com os interesses do Estado Novo, sendo empregado


num discurso de invenção de uma identidade nacional pelas elites políticas (HALL,
2004; HOBSBAWN, 1990), representou mais um passo do samba rumo à condição de
música brasileira por excelência. Em função de sua popularidade e de sua larga
aceitação pela população em geral, foi estrategicamente adotado como propagador de
um conceito de nação e de propaganda governista. A partir de então, pode-se dizer que
o samba alcançara o status de “música oficial”.
Como o samba não ficou restrito ao morro e agradou aos demais estratos sociais,
passou a ser produzido também pela classe média, com outras significações e motivos.
Desta forma, não mais a composição desta música era exclusividade de um segmento
específico da população brasileira, sobre cuja localização social precisamente
demarcada se analisou no capítulo anterior. O samba, da mesma forma que o jazz, de
matriz negra (HOBSBAWN, 2008), se distribuiu por todas as camadas da sociedade,
que também começaram a se figurar como criadoras dele.
Porém, esta profusão de focos de criação revela, além da plena adesão ao samba
pela sociedade brasileira, um processo de expropriação paulatina de um recurso de
expressão de um segmento populacional pobre, marginalizado e oprimido por outro
médio, branco (SODRÉ, 1998). Muniz Sodré demonstra que tal fenômeno fica ainda
mais evidente a partir dos anos 50 e 60, quando a classe média começou a ser produtora
sistemática de sambas, incutindo nestes, através da letra e do som, novas significações
culturais. Como escreveu Vinícius de Morais, “porque o samba nasceu lá na Bahia/ e se
hoje ele é branco na poesia/ ele é negro demais no coração”. Indicador dessa
expropriação, segundo Sodré, é o tom “universitário”, intelectualizado, mais
criticamente pretensioso e afastado do léxico popular que ganharam as letras das
canções. Tendência que afetou também as escolas de samba, que passaram a introduzir
intelectuais e artistas no desfile do carnaval. Ainda conforme Sodré, tal expropriação é

36
concomitante à comercialização do samba, conseqüência de sua passagem à forma
industrial (GUIMARÃES, 1978; SODRÉ, 1998, CARVALHO, 2004).
Assim, através desses fatores e fenômenos aqui descritos, o samba foi deixando
sua condição de manifestação marginalizada para gradualmente se integrar à sociedade
brasileira. Tal trajetória de ganho progressivo de prestígio e de visibilidade trouxe,
como conseqüências para este ritmo, a sua conversão em música popular, a adesão
generalizada das camadas sociais, a sua espetacularização e a sua desapropriação.
Do gueto para a sociedade, o samba foi remodelado como música popular. A
música popular não é, de acordo Menezes Bastos (1995), mais um tipo de música que se
soma às demais, compondo uma tipificação ao lado de, por exemplo, música folclórica e
música oriental. Pelo contrário, ela as incorpora e as reinventa10. Seu núcleo se
consolida anos 30/60, surgindo como um fenômeno global, cuja produção e veiculação
só foi possível pelo estabelecimento tecnológico e industrial (disco, rádio e cinema).
Como exemplo, tem-se a ópera italiana, o jazz dançante e as músicas étnicas nos
Estados Unidos a partir dos anos 30, todas elas convertidas em fenômenos de massa.
Assim, mesmo que em sua origem a música popular atenda a lógicas locais, regionais e
nacionais, também o faz em amplitude mundial, devido ao aparato tecnológico de que
dispõe e pelo alcance do mesmo. “É esse quadro que dá consistência a um só tempo
global e local, regional e nacional a gêneros como o tango, a habanera, o samba, o fado,
o blues, etc”. (MENEZES BASTOS, 1995, p. 4). O que pode haver de mais local e que
contribua com o universo da diversidade, adentra este acervo mundial daquilo que se
produz musicalmente que é a música popular. Embora se tenha o local, sua difusão se
dá através de sua inserção num sistema que lhe articula em amplitude planetária.
A partir de 1917, o samba situou-se dentro do mercado comum da música
popular, quando da gravação de “Pelo telefone” (MENEZES BASTOS, 1995), primeiro
samba de sucesso, contando então com vários meios de difusão em massa como o disco
e o rádio. Desta forma, produto do morro, o samba alcançou todos os níveis da escala
social. Absorvido enquanto música popular, transcendeu seu universo de origem através

10
Segundo Menezes Bastos (1995), nos estudos musicais classifica-se e conceitua-se a música popular
em oposição à música clássica (erudita, acadêmica) e à música folclórica. A música popular é geralmente
oposta à primeira por nela não se supor o saber, o acesso ao código de escrita e leitura da música
ocidental, o que lhe atribui uma qualificação de “vulgar”, e é oposta à música folclórica na medida em
que nega a tradição, e por isso qualifica-se como desprovida de autenticidade. Ele discorda desta
tipificação porque acredita que a música popular não é mais um tipo de música como estes; é um
universal que os integra, os converte e ressignifica.

37
da circulação fonográfica, articulando desde o nível local até o nacional. Sua
transformação em fenômeno fonográfico ofuscou sua origem, atribuiu-lhe outra
dinâmica e propiciou-lhe maior amplitude de difusão e acesso por diversos segmentos
da sociedade. Estes, por sua vez, lhe designaram os mais diversos usos, apropriações e
sentidos. Nessa nova condição, tem desestabilizadas sua conotação original e sua
origem social. Eis o efeito da música popular.
Paralelamente, conforme se pretendeu descrever aqui, a adoção do samba,
enquanto representante desse modo de transmissão e comercialização cultural que é a
música popular, se fez acompanhar de racionalização em vários aspectos. Descoberto
como expressão musical altamente rentável, foi submetido a outra forma de criação,
acarretando uma série de papéis e profissões que até então não existiam, como o
compositor individual e o músico de samba, além dos trabalhadores envolvidos com os
desfiles das escolas os quais são analisados por Sérgio Cabral.
À medida que foi expandindo sua audiência, o samba agregava admiradores de
diversas posições do espaço social, que lhe atribuíam os mais diversos usos, consumos,
apropriações e sentidos, sem necessariamente estabelecer com ele uma relação local
como eram seus primeiros simpatizantes. Rafael Menezes Bastos lembra que, a partir
dos anos 30, sobretudo, o samba atingiu as camadas médias urbanas do país, quando se
iniciou a discussão sobre sua ascensão social no movimento morro/cidade. A audiência
ao samba foi deixando de ser socialmente situada como era em suas origens; a adesão a
ele embaciou a separação cultural entre camadas distintas da sociedade. Noel Rosa foi
um representante típico dessa tendência, desse contato e desse livre trânsito de que o
samba já gozava pelo espaço social.

“[...] talvez o primeiro músico burguês do país a se dar conta, com


grandeza, do povo, ou seja, daquele mundo visceralmente divorciado
do Estado (governo) e que é construído no Brasil como a sua
originalidade mais original, espécie de colônia perene da metrópole
eterna que o Estado aqui representa [...] [sendo] o primeiro burguês a
fluir entre o morro e a cidade, no cenário musical do país.”
(MENEZES BASTOS, 1995, p. 4-5)

Noel incorporou, deste modo, a fluidez do samba entre as diversas camadas sociais
possibilitada pela sua ascensão. Como parte do acervo da música popular brasileira, o
samba se difundiu em níveis indefinidos, plenamente disponível para consumo e
apropriação, o que não permite mais estabelecer alguma relação entre classe e a adesão

38
a este ritmo, ou seja, lugar comum do consumo cultural brasileiro, independente da
situação de classe.
Portanto, o samba, que era fruto de um processo contínuo em sua criação e
divulgação, acabou, a exemplo de outras manifestações culturais negras, transformado
em espetáculo estabelecido (CARVALHO, 2004), marcado pelo esteticismo, pela
separação entre produtor e consumidor e pela substituição da dança pela coreografia do
rebolado, teatral e espetacular. Plumas e paetês “de caráter ginástico ou pretensamente
erótico” (SODRÉ, 1998, p. 53).
Da mesma forma, o aspecto visual da atuação da escola no desfile foi adquirindo
tanta importância nesse processo de espetacularização que Sérgio Cabral julga que o
próprio samba foi colocado em segundo plano em favor das cores, da performance, das
luzes, etc. Mais um fato onde se presencia a transformação do samba e dos desfile das
escolas em eventualidade para consumo, concomitante a uma ausência cada vez maior
de seus criadores: a comunidade negra carioca. Coloca ele:

Os elementos ligados à tradição do samba – a harmonia, a dança, a


bateria e o próprio samba – abriam espaço para as atrações mais
ligadas ao aspecto visual das escolas. O espetáculo, de ano para ano,
vale mais do que o samba. E, também de ano para ano, era cada vez
menor o número de negros desfilando [...]. Os mais extremados
chegaram a sentenciar a morte dessa manifestação carnavalesca do
povo do Rio de Janeiro. (CABRAL, 1996, p. 196).

A ascensão social do samba não se fez acompanhar de movimento análogo de


seus criadores: a comunidade negra e mestiça. Na sucessão de fatos em que se observa o
ganho de prestígio do samba, o mesmo é expropriado progressivamente de sua cultura
de formação e de sua origem social em função de interesses econômicos, políticos,
artísticos, lúdicos e estéticos de outros segmentos que dele se apropriaram. As escolas
de samba são exemplo dessa tendência de autonomia de uma prática cultural em relação
aos seus segmentos originários.

A partir dos anos 60, as escolas percorreram o caminho inverso ao que


foi reservado para o povo.[...]. O resultado desse caminhar em
direções opostas foi uma segregação em que as vítimas foram
exatamente as comunidades que criaram as escolas. Para desfilar é
preciso ter dinheiro. Como o povo das favelas e dos subúrbios – o
mesmo que criou, desenvolveu e glorificou as escolas de samba – não
tem dinheiro, desfila quem o tem, venha de onde vier, mesmo que não
tenha qualquer ligação com o samba (CABRAL, 1996, p. 234).

39
O samba e as escolas se firmaram como opção de consumo e de diversão casual
para quem por eles pode pagar ou como campo de trabalho para quem neles pode
investir, ou seja, seu acesso definido em função da renda. Ficaram independentes,
portanto, de seus idealizadores.

[...] a partir da década de 70, desapareceu desta narrativa um


personagem anteriormente muito importante da nossa história, o
sambista. Os valores mudaram. Sambistas da linhagem de Paulo da
Portela, Cartola, Antenor Gargalhada, Silas de Oliveira e tantos outros
deixaram de ser protagonistas e abriram passagem para os
carnavalescos, modelos profissionais, atrizes e atores de televisão e
outros personagens que não fazem, não dançam, não tocam e, quase
sempre, sequer cantam o samba. Os velhos sambistas sabem apenas
que a sua criação se espalhou pelo país e pelo mundo.” (CABRAL,
1996, p. 233).

Resume-se, deste modo, a ascensão social do samba: concebido num Rio de


Janeiro confinado à periferia, depois de Pelo Telefone foi dissociando-se de suas origens
étnicas e suburbanas para se estabelecer no mercado de entretenimento brasileiro até se
tornar o estilo musical mais consumido pelas cidades, sendo difundido pelo rádio,
partituras, discos, eventos sociais, teatros, clubes, carnavais. Na intensificação da
urbanização carioca, muitos artistas dali provenientes foram incorporados ao show
business e à indústria fonográfica e muitos deles conseguiram até mesmo projeção
internacional, como Donga, Pixinguinha e João da Baiana, contribuindo para a
profissionalização dos músicos. O samba só se expandiu e ganhou as ruas e as demais
camadas sociais da população na condição de mercadoria, sendo também empregado em
projetos de veiculação ideológica, representando interesses do Estado e apresentando
uma identidade do Brasil e do brasileiro. Hoje, o samba integra eventos milionários do
carnaval carioca, vinculados aos interesses do capital operante nesse setor da indústria
do entretenimento, além de ser opção de lazer e consumo cultural da juventude de classe
média em casas de samba.

40
4 Teorias da legitimidade cultural

Para os autores reunidos sob esta orientação teórica, há uma clara diferenciação
entre a alta cultura, entendida aqui como o conjunto das criações artísticas e literárias de
maior nível de sofisticação e de refinamento, respaldadas e difundidas pela escola, e a
baixa cultura, de produções simplificadas, pouco originais, voltadas para o
entretenimento e que circulam através da mídia de massa. A alta cultura abrange
produções como o cinema experimental, a música clássica, as artes plásticas, a literatura
de vanguarda, etc., ao passo que a baixa cultura (ou cultura ilegítima) consiste nos
ritmos musicais populares, nos filmes de alta bilheteria com formatos prontos, nas
telenovelas, nas adaptações popularizadas de clássicos da dramaturgia, nas artes
plásticas imitativas de obras consagradas pelo cânone artístico, na literatura comercial,
nas obras esteticamente pouco pretensiosas e nas pinturas de temas socialmente
valorizados, como paisagens bucólicas, por exemplo. A alta cultura – ou cultura
legítima – encontra-se acessível somente para aqueles munidos de conhecimento prévio
para sua apreciação e está associada ao cultivo estético, à elevação intelectual e ao
enobrecimento cultural, enquanto a baixa cultura – ou cultura popular – designa-se ao
entretenimento e ao consumo ocasional e sensorial. Há interesse sociológico dos autores
apresentados abaixo por esse antagonismo alta/baixa cultura porque através dele –
observam eles – fronteiras entre classes são estabelecidas e desigualdades sociais e
diferenças de status são traduzidas, uma vez que os hábitos culturais têm função
expressiva. Esta distinção que se estabelece dentro do acervo cultural em função do grau
de legitimidade das obras e criações é abordado também pela sua importância na
instituição de um ideal cultural, em que classes dominantes se firmam como referência e
impõem uma concepção legítima de cultura. Através da distinção entre cultura legítima
e cultura vulgar é que se pode, segundo esta vertente teórica, mapear a estrutura social,
uma vez que o gosto é um bom indicador de localização social dos consumidores.
Quem iniciou o debate sobre o papel das práticas e dos gostos culturais na
demarcação de fronteiras sociais foi Thorstein Veblen, com a publicação de “A Teoria
da Classe Ociosa”, em 1899. Para Veblen, os padrões culturais vigentes em modernas
sociedades industriais se difundem de forma hierárquica e se mantêm com relativa
estabilidade, pois sua mudança é gradual, não resultando numa subversão de costumes
ou na supressão de ideais de decência do passado. Segundo o autor, as classes
dominantes – tidas por ele como a “classe ociosa”, em função do desprezo desta pelo

41
trabalho produtivo e industrial –, impõem um modo de vida cuja boa reputação reside
no dispêndio improdutivo de tempo e de recursos, na ostentação e na emulação
pecuniária. Estas atitudes conferem valor e status a seus praticantes que, numa
sociedade de classes, constituem referência de respeitabilidade a ser acatada pelos
demais segmentos sociais.

A classe ociosa está no topo da estrutura social em matéria de


consideração; e seu modo de vida, mais os seus padrões de valor,
proporcionam à comunidade as normas da boa reputação. A
observância desses padrões, em certa medida, torna-se também
incumbência de todas as classes inferiores da escala. Nas modernas
comunidades civilizadas, as linhas de demarcação entre as classes
sociais se tornaram vagas e transitórias, e, onde quer que isso ocorra, a
norma da boa reputação imposta pela classe superior estende sua
influência coercitiva, com ligeiros entraves, por toda a estrutura social,
até atingir as camadas mais baixas. O resultado é os membros de cada
camada aceitarem como ideal de decência o esquema de vida em voga
na camada mais alta logo acima dela, ou dirigirem suas energias a fim
de viverem segundo aquele ideal. Sob pena de perder seu bom nome e
respeito próprio em caso de fracasso, devem eles, pelo menos na
aparência, conformar-se com o código aceito. (VEBLEN, 1988, p. 41).

Embora o dispêndio improdutivo de tempo e recursos (ócio e consumo


conspícuos) seja digno de méritos e um requisito de decência, não implica indolência,
mas sim a prática de certos consumos e erudições como a aprendizagem de línguas,
música, artes, refinamentos de vestuário e mobília, a polidez, educação, boas maneiras,
posse de bens de luxo, etc. Exclusivos às classes dominantes, estes costumes são
marcadores de diferenças sociais, e sua adoção por segmentos populares diminui o
prazer e a distinção que proporcionam. Adquire importância para a expressão da
posição de status exclusivo, portanto, o cultivo do gosto, cujas regras avaliativas
também se pautam pelo dispêndio, pelo refinamento e pela sofisticação e que consistem
na capacidade rara de discernimento entre o desprezível e o notável.

[...] cultivar o gosto, já que lhe é imprescindível discriminar


cuidadosamente entre o nobre e o ignóbil nos bens de seu consumo.
Torna-se ele [o indivíduo distinto] assim um connoisseur dos vários
graus de valor dos alimentos, bebidas e dos adornos masculinos, do
vestuário adequado, da arquitetura, das armas, dos jogos, das danças e
dos narcóticos, sinais de conformidade com a norma de ócio e
consumo conspícuos. (VEBLEN, 1988, p. 37-38).

A capacidade de apreciação se dá através de um conhecimento longamente


internalizado e de um conjunto de regras de percepção custosamente adquirido. A

42
dispendiosidade é determinante da beleza, que, logo, é pecuniária. O belo em matéria de
consumo e de hábitos culturais está no rebuscado, no trabalhoso e no requintado, que se
torna um código estético da classe mais alta.

[...] o gosto para o qual apelam os efeitos de adorno e arranjos


domésticos é um gosto formado sob a orientação seletiva de uma regra
de decoro que exige exatamente essas provas de esforço despendido.
Tais efeitos nos são agradáveis, principalmente porque fomos
ensinados a achá-los agradáveis. (VEBLEN, 1988, p. 41).

O artigo de Simmel (1988 [1904]) sobre a moda também permite pensar as


implicações sociológicas dos costumes culturais relativas à coesão e ao distanciamento
de indivíduos e à demarcação simbólica de hierarquias. Conforme a perspectiva deste
autor, a moda é a imitação coletiva de um padrão estético difundido que proporciona
sensação de pertencimento e de conformidade social àqueles que o acompanham.
Simmel destaca que a instituição da moda tem como efeitos a união e a separação
simultaneamente, pois ao mesmo tempo em que permite aos indivíduos que aderem a
ela identificarem-se, possibilita o contraste com aqueles que, por quaisquer razões, não
compartilham dela. Simmel acreditava que este processo causado pela moda de
identificação e distinção era hegemônico, afirmando que “[...] as modas são sempre
modas de classe, de maneira que as modas da classe alta se diferenciam das modas da
classe inferior e são abandonadas no momento em que esta última começa a ascender a
elas” (1988, p. 29). A moda é, segundo Simmel, portanto, um artifício de projeção de
status hierárquico, e como tal, é abandonada pelos grupos dominantes tão logo começa
a ser adotada pelos agrupamentos inferiores, e assim uma nova moda é instituída para
que a distinção entre indivíduos de camadas sociais diferentes se mantenha visível.
Já Erving Goffman (1951) propõe uma abordagem interacionista para a
compreensão dos símbolos de status de classe. Segundo ele, nas interações sociais os
indivíduos transmitem, através da mobilização de sinais de status, a posição de classe
que alegam ocupar, negociando, portanto, o tratamento adequado que lhes deve ser
dispensado. Como, segundo Goffman, pessoas de mesma posição tendem a possuir
padrão de comportamento semelhante, os símbolos de status são, portanto, signos,
meios desenvolvidos de se demonstrar a posição social, dividindo o mundo social em
categorias de pessoas, mantendo a solidariedade dentro dessas categorias e a hostilidade
entre elas. A interpretação da posição de status demanda concordância e
reconhecimento na comunicação entre os envolvidos, pois as classificações na interação

43
envolvem múltiplos determinantes da posição de classe ocupada, o que demanda um
balanço interpretativo das indicações, em caso de dúvida ou dissenso. Para que os
símbolos mobilizados comuniquem a posição de classe, precisam de certa fixidez, isto
é, se mantenham através do tempo como referencial de uma posição na estrutura de
status, não de seus indivíduos.
Como os símbolos de status são recursos cênicos empenhados na projeção de
uma posição de status, podem ser empregados pelos indivíduos de forma fraudulenta.
Goffman aponta que, no entanto, certas restrições dificultam o uso cínico deles. No caso
de práticas culturais distintas associadas a posições de alto status, a falta de qualificação
para manipulação dos símbolos de status, condição financeira insuficiente, a pouca
disponibilidade dos mesmos, o despreparo para ocasiões sociais de ostentação ou
ausência de destreza ou familiaridade são exemplos de “proteção” ao poder expressivo
destes símbolos.
Norbert Elias (1990, 2001), analisando a dinâmica social aristocrática da
sociedade de corte, identifica a importância política e distintiva da aprendizagem das
boas maneiras e do refinamento cultural nesta configuração social para ganho de status
e diferenciação de grupos menos privilegiados. Esse mesmo mecanismo de expressão de
distância através do apelo aos consumos nobres, aos costumes requintados e às artes
refinadas identificado por Elias na sociedade de corte também se manifesta, conforme
este autor, nas camadas burguesas, o que corrobora a generalidade deste fenômeno
imanente à elitização. Portanto, qualquer grupo, casta, segmento ou camada social de
elite nitidamente demarcado em relação aos inferiores e relativamente estabilizado tem
a ocupação dessa posição como valor autônomo; a mera existência enquanto grupo
dominante é um valor em si mesmo, e um dos recursos para se expor essa dominação
está no cultivo da cultura dita elevada. A conservação da distância passa a ser, assim, o
motor de seu comportamento e preocupação inerente à posição, provocando assim uma
mudança comportamental constante em função da imitação pelas classes inferiores:

[...] a classe superior é levada a esmerar-se em refinamentos e


aprimoramentos de sua conduta, para novamente diferenciar-se dos
estratos mais baixos, estimulando um movimento de constante
metamorfose comportamental, onde a difusão de costumes provoca
sua desvalorização como sinais de distinção, e consequentemente a
adoção de novas regras comportamentais (ELIAS, 1990, p. 110).

44
O valor dessa existência enquanto elite, aos olhos de Elias, não necessita de
justificativa ou fundamentação para seus membros, e nem da elucidação de algum
motivo prático ou um sentido mais profundo para tal perseguição. “[O]nde quer que
existam tendências de elitização em uma sociedade, mesmo que sejam poucas,
evidencia-se o mesmo fenômeno” (ELIAS, 2001, p. 119).
Pierre Bourdieu (1983, 1996, 2002, 2008) também compartilha da idéia de que
cada uma das classes sociais mantém uma relação específica com a cultura dominante e
que essas relações diferenciais expressam a distinção. Para este autor, é possível mapear
o espaço social através do gosto alegado pelos indivíduos, porque à hierarquia
socialmente reconhecida das artes e, no interior delas, dos gêneros, estilos e épocas,
corresponde a hierarquia social dos consumidores. Por isso, o gosto é, para este autor,
marcador privilegiado de classe, e a arte e consumo artístico, desta forma,
desempenham a função social de legitimação das diferenças sociais.
Bourdieu (2008) observa que as preferências artísticas e culturais distintas e o
consumo qualificado estão, estatisticamente, mais fortemente associados às classes
dominantes, isto é, de maior proeminência em capital cultural e econômico. Isto se
explica pelo papel do sistema escolar, de atestar a validade da cultura legítima e de
transmitir conhecimentos necessários à competência cultural. O autor observa que a
posse de uma capacidade de avaliação estética aumenta proporcionalmente com a
escolaridade mesmo em domínios alheios ao ensino escolar, como jazz ou cinema. Isto
se deve ao fato da escola impor e inculcar valores e constituir uma disposição geral e
transponível em relação à cultura legítima que, ali aprendida, tende a se estender para
limites além daqueles estritamente escolares, como artes e literatura, tornando-se uma
propensão a acumular experiências e conhecimentos universalmente aplicáveis às
formas de cultura legítimas.

Esta lógica tem a ver, certamente, com o fato de que a disposição


legítima adquirida pela frequência de uma classe particular de obras, a
saber, as obras literárias e filosóficas reconhecidas pelo cânon escolar,
estende-se a outras obras, menos legítimas, tais como a literatura de
vanguarda, ou a domínios menos reconhecidos escolarmente, por
exemplo, o cinema: a tendência para a generalização está inscrita no
próprio princípio da disposição para reconhecer obras legítimas,
propensão e aptidão para reconhecer sua legitimidade e percebê-las
como dignas de serem admiradas em si mesmas que é,
inseparavelmente, aptidão para reconhecer nelas algo já conhecido, a
saber, os traços estilísticos próprios [...] Armada com um conjunto de
esquemas de percepção e apreciação de aplicação geral, esta
disposição transponível é o que dispõe a tentar outras experiências

45
culturais e permite percebê-las, classificá-las e memorizá-las de outro
modo [...](BOURDIEU, 2008, p.29- 31).

Entretanto, Bourdieu coloca que é impossível imputar unicamente ao sistema escolar a


forte correlação entre competência em domínios como música e pintura e capital
cultural. Ele observa que, entre pessoas de capital escolar equivalente, as diferenças
relevantes na competência cultural estão associadas a diferenças de origem social,
sobretudo em casos de familiaridade com a cultura e de competência em universos da
cultura livre valorizados pela escola, mas não ensinados por ela. A capacitação estética
é, assim, produto também da transmissão familiar. Diferenças de origem social são
marcantes, por exemplo, no conhecimento de diretores de filmes e na inclinação a se
reconhecer como belas fotos de objetos feios ou insignificantes. As diferenças
relacionadas à origem social também tendem a crescer quando se afasta de domínios
culturais afastados do centro do alvo da ação escolar. Desta forma, entre a classe
dominante, aqueles que adquirem o essencial de seu capital cultural através da escola,
tendem a fazer escolhas mais clássicas, e os que receberam importante herança cultural
tendem às escolhas mais “arriscadas”. Escola e família funcionam, assim, como
mercados que valorizam e, desta forma, favorecem a aquisição de certas competências
culturais e um gosto dirigido predominantemente às obras e costumes legítimos. Em
outras palavras, escola e família são, nas classes dominantes, instâncias de formação de
um olhar essencialmente estético, inerente a esta classe, sobre obras e objetos. Esta
estética pura exclusiva – e, portanto, distintiva desses segmentos – caracteriza-se pela
recusa, pelo apreciador, de envolvimento passional com as artes ou de uma fruição
ingênua e emotiva das mesmas. A apreciação da arte ou do objeto determinado não se
dá segundo critérios éticos ou adequação a uma função, mas conforme seu valor estético
intrínseco. A representação é autônoma em relação à coisa representada11.

11
Bourdieu (1983, 2008) distingue, no âmago da classe dominante, duas maneiras de aquisição da
capacitação cultural que revelam relações diferentes com a legitimidade: há a aquisição pelo aprendizado
total, precoce e insensível, efetuado desde a infância pela família e prolongado pela aprendizagem escolar
que o pressupõe e o completa. Seus efeitos são a familiaridade e a desenvoltura com as obras artísticas e
com as pessoas cultas em função da posse inconsciente das regras da arte. A esta forma de obtenção de
saber opõe-se outra, tardia, metódica e acelerada. Os julgamentos artísticos são baseados em princípios e
critérios de apreciação explícitos. A aprendizagem é institucionalizada, envolvendo racionalização e
conceituação, assimilação formal dos códigos e das regras. Geralmente envolve desculturação (sic) e
correção de aprendizagens inconvenientes ou indesejáveis. “[...] o ensino racional da arte proporciona
substitutos à experiência direta, oferece atalhos ao longo trajeto da familiarização, torna possíveis práticas
que são o produto do conceito e da regra, em vez de surgir da pretensa espontaneidade do gosto,
oferecendo assim um recurso a quem espera recuperar o tempo perdido.” (BOURDIEU, 2008, p. 66).

46
Indivíduos de posições medianas do espaço social também tendem a reconhecer
a cultura legítima, conquanto muitas vezes não a conheçam. Nas situações de pesquisa,
Bourdieu (2008) relata que o reconhecimento de superioridade de uma cultura legítima
por indivíduos de camadas médias está na declaração de boa vontade “eu gostaria de
conhecer”, em alegações como “gosto muito”, na declaração de gosto por formas
menores ou pretensamente legítimas (música clássica popularizada, visitas a
monumentos, algum conhecimento em cinema, revistas de vulgarização científica) que
eles acreditam nobres, nas demonstrações de docilidade cultural (empenho em
aprendizagens e entretenimentos mais “instrutivos”) e no sentimento de indignidade.
Atitudes como estas, de reverência diante da cultura, atestam o poder de imposição
exercido pela cultura dominante e pelas instituições que a concentram. Bourdieu relata
também que é muito comum nestes estratos uma postura autodidata, de aquisição
cultural fora de processos educativos. Fruto de uma trajetória escolar interrompida, o
autodidata vive um entesouramento sem fim de saberes desconexos, sentindo
dificuldade em manter com a cultura a relação de familiaridade e liberdade daqueles que
estão vinculados a ela pelo nascimento. Para o pequeno-burguês, cultura é coisa séria:
zeloso, ele prima pela hipercorreção, não tem desenvoltura, além da ansiedade
permanente da ignorância, da qual se defende através do rigorismo, do ascetismo, do
juridicismo e da propensão ao acúmulo de informações. Inseguro das classificações que
faz e dividido entre o gosto de tendência e o gosto de vontade, procede a escolhas
disparatadas, consumos heterodoxos, conhecimento fragmentado e tendência ao já
desclassificado e fora de moda. Distante da cultura legítima propriamente dita, consume
uma imitação desta, uma cultura média que é uma representação vulgarizada, uma
adaptação da cultura legítima. As preferências direcionam-se a arranjos populares de
música erudita, adaptações para cinema e outras coisas populares ditas “de qualidade”
que oferecem o sentimento de se estar à altura. “A cultura média, não nos deixemos
induzir ao erro, pensa-se por oposição à vulgaridade” (BOURDIEU, 2008, p. 306), mas
remanesce nela. Conforme Bourdieu,

[...] a cultura legítima não é feita para ele, quando não é feita contra
ele, e que, portanto, ele não é feito para ela que, por sua vez, deixa de
ser o que é, desde que é apropriada por ele [...] (BOURDIEU, 2008, p.
307).

47
Nesta contraposição de tomadas de posição estéticas, cujo efeito é a revelação de
diferenças sociais, a função das classes populares, finalmente, é a de contraste e
referência negativa, pela sua estética vulgar. A “estética popular” é funcionalista e
pragmática, pois privilegia a maximização do uso pelo menor custo, o aproveitamento
do espaço e a durabilidade, recusando a contemplação gratuita de uma obra de arte, de
um objeto, de uma refeição, do vestuário ou do mobiliário. Na ótica das classes
populares, a estética pura, que percebe os quadros ou as fotografias desprovidos de uma
função prática (como enfeite ou registro de festividades) é fútil. As necessidades
materiais que caracterizam as classes populares impõem um gosto de necessidade
focado no prático e menos custoso, revelando que o gosto popular exemplifica o ajuste
do comportamento social dos seus representantes a essa posição. A propensão a apreciar
uma obra independentemente de seu conteúdo, de forma gratuita e desinteressada está
submetida ao conforto material, à distância das urgências financeiras. A capacitação
para a experiência estética de apreciar a arte conforme seus próprios fins requer que as
necessidades econômicas estejam sanadas.

A disposição estética – que tende a deixar de lado a natureza e a


função do objeto representado, além de excluir qualquer reação
“ingênua” [...] é uma dimensão da relação global com o mundo e com
os outros, de um estilo de vida, em que se exprimem, sob uma forma
incognoscível, os efeitos de condições particulares de existência:
condição de qualquer aprendizado da cultura legítima [...] estas
condições de existência caracterizam-se pela suspensão e pelo sursis
da necessidade econômica, assim como pelo distanciamento objetivo e
subjetivo em relação à urgência prática [...] a disposição estética
consegue constituir-se apenas em uma experiência do mundo
desembaraçada da urgência [...] (BOURDIEU, 2008, p. 54-55)

A adaptação a essa posição dominada implica aceitação da dominação. A auto-estima


desses indivíduos é submetida aos valores sociais legitimados e as consequências desta
distância da cultura legítima e da ignorância dos meios de se apreciá-la são, como
aponta Bourdieu, o sentimento de incompetência, de fracasso ou indignidade culturais, e
a imitação e busca constante de produtos substitutos comprovam, mais uma vez,
reconhecimento dos valores dominantes.
O consumo cultural, portanto, marca oposições entre grupos. A assimetria das
classes em relação à cultura dominante é a expressão simbólica da distância social entre
ambas. No topo da hierarquia social predomina o consumo distinto, raro e qualificado
pelas frações mais bem providas em capital econômico e cultural; nas camadas
intermediárias, as práticas ambiciosas culturalmente, caracterizadas pelo descompasso
48
entre a ambição e as possibilidades de sua realização. As classes populares, por sua vez,
se identificam pelo consumo socialmente considerado vulgar, fácil e comum. Logo, o
gosto que classifica as artes e os bens de consumo, dado que é socialmente situado, é
indicador de posição social. Portanto, a partir dele também se é classificado. O gosto
une e separa, pois é produto de condicionamentos da posição social, unindo todos
aqueles que compartilham de condições sociais semelhantes, ao mesmo tempo que
distingue-se de todos os outros.
De acordo com Bourdieu, esta correspondência entre gosto cultural e estrutura
social se explica porque as classes sociais são conjuntos de indivíduos situados em
condições de existência homogêneas as quais, por sua vez, impõem aos indivíduos
condicionamentos e sistemas de disposições também homogêneos. As conseqüências
dessa inculcação de parâmetros, regras e esquemas de percepção são as práticas e a
consolidação do habitus de classe, princípio unificador e gerador das práticas
responsável por propriedades culturais comuns a indivíduos de uma mesma posição. Por
esta razão, a competência estética é desigualmente distribuída, marcando uniformidades
dentro de uma classe e estabelecendo distinções entre elas. O habitus, uma vez
internalizado nos indivíduos por processos de socialização, garante a sistematicidade e
coerência entre as ações individuais e entre representantes de mesma localização no
espaço social. Os esquemas do habitus aplicam-se, por transferência, a diferentes
domínios culturais de forma homóloga, isto é, escolhas elitizadas em música ou cinema
são mais estatisticamente associadas a escolhas de mesmo nível em pintura ou literatura.
Pela ação do habitus é que as classes se diferenciam, através das ações de seus
representantes, em conjuntos coerentes de preferências.

Enquanto produtos estruturados (opus operatum) que a mesma


estrutura estruturante (modus operandi) produz, mediante retraduções
impostas pela lógica própria aos diferentes campos, todas as práticas e
as obras do mesmo agente são por um lado, objetivamente
harmonizadas entre si, fora de qualquer busca intencional da
coerência, e, por outro, objetivamente orquestradas, fora de qualquer
concertação (sic) consciente, com as de todos os membros da mesma
classe [...] (BOURDIEU, 2008, p. 165).

O habitus confere identidade a uma classe porque garante harmonia e coerência nas
ações individuais de seus integrantes, e tal homogeneidade no comportamento deles se
dá em função da transferência generalizada de competências e disposições incorporadas
por um indivíduo de um âmbito de ação para outro.
49
[O] habitus engendra continuamente metáforas práticas, isto é, em
uma outra linguagem, transferências – a transferência de hábitos
motores é apenas um exemplo particular – ou, melhor, transposições
sistemáticas impostas pelas condições particulares de sua aplicação
prática [...] As práticas do mesmo agente e, mais amplamente, as
práticas de todos os agentes da mesma classe, devem a afinidade de
estilo que transforma cada uma delas em uma metáfora de qualquer
uma das outras ao fato de serem o produto das transferências de um
campo para outro dos mesmos esquemas de ação [...] (BOURDEU,
Loc cit).

Para Bourdieu, o habitus rege a conduta dos indivíduos, assegurando relativa


padronização nos comportamentos e nas preferências de indivíduos de mesma posição,
o que permite que as classes se distingam umas das outras.

A sistematicidade [...] encontra-se no conjunto das “propriedades”, no


duplo sentido do termo [...] e nas práticas em que eles manifestam sua
distinção [...] apenas porque ela está na unidade originariamente
sintética do habitus, princípio unificador e gerador de todas as práticas
(BOURDEU, Loc cit).

Neste sentido, o gosto de classe, enquanto disposição estética incorporada, é a expressão


de uma posição privilegiada no espaço social, cujo valor distintivo se afirma na relação
com expressões de outras posições, de condições de existência diferentes.

O gosto, propensão e aptidão para a apropriação – material e/ou


simbólica – de determinada classe de objetos ou de práticas [...] é a
fórmula geradora que se encontra na origem do estilo de vida,
conjunto unitário de preferências distintivas que exprimem, na lógica
específica de cada um dos subespaços simbólicos – mobiliário,
vestuário, linguagem ou hexis corporal – a mesma intenção
expressiva. Cada dimensão do estilo de vida „simboliza com‟ os outros
[...]. O gosto está na origem do ajuste mútuo de todos os traços
associados a uma pessoa e recomendados pela antiga estética para o
fortalecimento mútuo fornecido por cada um: as inúmeras informações
produzidas [...] por uma pessoa reduplicam-se e confirmam-se
indefinidamente, oferecendo [...] uma distribuição harmoniosa das
redundâncias [...](BOURDEU, Loc cit).

Assim, para Bourdieu, nada determina mais a classe do que a capacidade de


constituir esteticamente objetos quaisquer, que a aptidão para aplicar princípios de uma
estética pura nas escolhas cotidianas mais comuns (cardápio, vestuário ou decoração)
inversa à disposição popular, que anexa a estética à ética. Os gostos dirigidos para a

50
cultura legítima não são um dom, conforme reza a ideologia do gosto natural que, na
luta simbólica entre as classes, procura naturalizar diferenças reais, transformando as
diferenças no modo de aquisição da cultura em diferenças substanciais entre os
indivíduos, como se saber fosse intrínseco à pessoa erudita. Pelo contrário, são
adquiridos por processos de socialização no seio de uma classe próxima à cultura
dominante.
A estética pura é localizada socialmente, sendo prerrogativa de segmentos
hegemônicos. A obra de arte, deste modo, só interessa e só tem sentido para quem
detém os códigos para sua decodificação. O espectador desprovido sente-se “afogado”
na confusão de sons e cores, captando somente propriedades sensíveis, sensoriais
(como cores e textura) e superficiais. Os significados estão acessíveis apenas para quem
tem os conceitos, o patrimônio cognitivo, ou melhor, a competência cultural. A “estética
popular”, desprovida desse arcabouço de conceitos e modos qualificados percepção,
aprecia as obras de arte, as manifestações culturais e o consumo de bens simbólicos a
partir de normas da moral e do decoro (uma canção ou uma fotografia devem conter
alguma mensagem que remeta àquilo que é moralmente aceito, aos valores sociais mais
gerais) e da conformidade com julgamentos populares sobre o belo e o feio, o louvável e
o sórdido, etc. A estética popular subordina a forma à função: um quadro só é digno de
ser colocado na parede se enfeitar bem; uma música só deve ser ouvida se servir para
dançar, ou um filme só é bom se fizer a platéia rir, recusando uma experimentação da
forma da arte (as músicas, os filmes, as peças teatrais têm formatos padronizados e
qualquer fuga a estas convenções não é bem recebida).
A cultura é, como se vê, a expressão simbólica das relações de dominação. Uma
elite detém a competência legítima e através dela se prova distinta e se configura como
referência para os demais estratos sociais. Estes, aceitando a cultura dominante como a
legítima, procedem a imitações dos costumes elevados. À medida que têm seus modos
culturais de distinção apropriados, as classes mais elevadas abandonam-nos em proveito
de outros, inacessíveis, que mantenham a expressão da distinção. A cultura popular na
obra de Bourdieu, deste modo, nada mais é que uma versão empobrecida da cultura
dominante, dado que não engendra produtos próprios e se direciona para a cultura
legítima.
É possível esboçar alguns aspectos comuns entre autores acima citados.
Primeiramente, todos concordam a respeito das funções da cultura numa sociedade
hierarquizada, a saber, diferenciar e classificar pessoas e grupos a partir do cultivo do

51
gosto que é expressão de pertencimento elitista e demarcador de estratos sociais.
(LAHIRE, 2006, p. 37)
Peterson (1992, 1997) diz que estas perspectivas teóricas elite/massa procuram
fazer predições sobre as escolhas dos diferentes grupos de status hierarquicamente
distribuído em matéria de consumo, apreciação artística e hábitos culturais e de lazer.
São identificados três segmentos cuja relação com a cultura é mais tipificada: classes
dominantes (“highbrow”), cuja atitude comum é a sua contenção moralista e os
distanciamento de todas as manifestações culturais tidas como impróprias, indignas,
inferiores ou inadequadas; as camadas médias (“middlebrow”), que tendem a imitar os
segmentos superiores, embora sem o conhecimento necessário, a devida desenvoltura, o
cultivo sedimentado do gosto e o investimento de tempo e dinheiro e, finalmente, o
gosto cultural dos agrupamentos baixos, marcado pela preferência de música clássica
“light”, literatura e pintura românticas, imitações industrializadas da alta costura da
estação passada, além de uma etiqueta simplificada, sendo visto como massa
homogênea que busca elementos facilmente compreensíveis e que estimule as emoções,
evitando as formas de cultura ditas mais elevadas e tendo acesso somente aos produtos
da mídia de massa. Nas palavras de Peterson,

A teoria elite/massa aceita, assim, faz predições claras sobre as


escolhas artísticas e de lazer de grupos de diferentes níveis da
hierarquia de status. Aqueles no topo escolherão as artes refinadas e
atividades de lazer correspondentes, enquanto evitam todas as outras.
Aqueles próximos do meio [da pirâmide social] escolherão trabalhos e
atividades derivados [de formas de nível de legitimidade mais nobre]
enquanto aqueles grupos na base evitarão as artes refinadas e
escolherão, indiscriminadamente, entretenimentos sensacionalistas e
veiculados pela mídia de massa (PETERSON, 1992, p. 246).12

É recorrente também a constatação de que as artes, os ritmos musicais, as opções de


leitura, as formas de entretenimento e os bens de consumo ordenam a realidade social
em categorias de pessoas sempre segundo a seguinte dualidade: complexo/simplório,
refinado/grosseiro, enobrecedor/degradante, contemplação/diversão, culto da
forma/fruição do conteúdo, etc., cabendo os hábitos e manifestações culturais distintos

12 Traduzido livremente de: “The received elite-to-mass theory thus makes clear predictions about the
arts and leisure choices of groups at different levels of the status hierarchy. Those at the top will choose
the fine arts and related leisure activities while shunning all others. Those near the middle will choose
derivative works and activities, while those groups at the bottom will shun the fine arts and
indiscriminately choose sensational and mass-mediated entertainments” (PETERSON, 1992, p. 246).

52
aos segmentos hegemônicos e os vulgares às classes populares, não sendo provável,
empiricamente, tendências inversas.
Estes autores concordam também que as classes são nitidamente demarcadas
pelas preferências de seus membros porque elas são coesas. Cada indivíduo é um
representante de sua classe, agindo, em grande medida, conforme seus semelhantes,
operando escolhas análogas e coerentes segundo o nível de legitimidade. Dado que a
classe é identificada pela homogeneidade do comportamento cultural de seus membros,
as preferências culturais constituem semelhança interna ao mesmo tempo que distinção
dos demais segmentos sociais.
Todos os autores também constatam que a classe dominante é referência geral a
ser observada. A cultura legítima, que é a cultura dos segmentos de alto status,
prescreve os padrões culturais vigentes, impondo um modo de vida no qual o “digno” e
o “belo” é hegemonicamente instituído, donde se conclui que a apropriação cultural
entre as classes tem um único fluxo: os de baixo miram-se nos de cima em seu
comportamento cultural.
Outro apontamento comum a estes autores é a assim chamada “trickle down
theory”, inaugurada nos estudos culturais por Simmel (McCRACKEN, 2003) para
explicar a mudança da moda.13 Nas perspectivas teóricas aqui descritas, seus autores
mencionam um mecanismo sociológico da inovação que, segundo Grant McCracken
(2003) é o efeito da atuação de dois princípios conflitantes: a imitação e a diferenciação.
Grupos sociais subordinados, observadores dos valores de segmentos dominantes,
prestam-se à imitação de seu consumo e de seus costumes, reivindicando um status
reconhecido nesses bens e hábitos, notadamente no vestuário. Estes, por sua vez,
buscam a diferenciação, adotando novos indicadores de status que expressem distinção
e distância social, abandonando aqueles já popularizados, preservando simbolicamente,
portanto, a diferença de status. Estes processos de imitação e de diferenciação estão
mutuamente relacionados e têm caráter progressivo. Havendo imitação, haverá
diferenciação e vice-versa. Novos marcadores de distinção adotados pelas camadas mais
altas estão também são sujeitos à imitação. Logo, serão abandonados em proveito de
outros que promovam a diferenciação, estabelecendo um ciclo contínuo de mudanças na

13
McCracken parece estar enganado sobre ao pioneirismo de Simmel quanto a teoria “trickle down”.
Veblen, em 1899, em A Teoria da Classe Ociosa, já relatara esse mecanismo de mudança de
comportamento dos grupos mais elevados quando se vêem imitados pelos agrupamentos sociais
imediatamente inferiores, que, por sua vez, procedem a novas imitações quando novos costumes
elitizados se constituem.

53
moda. Esse movimento contínuo da moda se deve à natureza hierárquica das relações
sociais, pois só se dá em função da estratificação dos grupos e, consequentemente, da
distribuição desigual de status entre eles, acontecendo somente numa direção: “de cima”
para “baixo”.

Tirando o „tempo de defasagem‟, a motivação para que um grupo


mude sua moda devirá diretamente da mudança levada a efeito por um
outro grupo em seu comportamento. O observador da moda pode,
então, „ler‟ o comportamento futuro de um grupo no comportamento
presente de outro. (McCRACKEN, 2003, p. 125)

Foram apontadas aqui as principais tendências teóricas dentro da sociologia da


cultura que se interessaram, ao longo do século XX, pelas relações entre consumo
cultural e estratificação. Foram elucidados também os principais pontos de
convergência entre eles. No capítulo seguinte, serão apresentadas perspectivas
alternativas, que evitam focar a adesão cultural de forma compartimentada e
unidirecional, apontando as possibilidades de escolhas plurais e da quebra de homologia
entre legitimidade cultural e hierarquização.

54
5 Abordagens da pluralidade

Assim como todo um conjunto de enfoques, aqui denominados “teorias da


legitimidade cultural” se empenharam em desvelar os efeitos nas classificações culturais
no gosto de classe, na explicitação de diferenças de grupos hierarquicamente desiguais e
na instituição de uma cultura dominante, outros procuraram compreender uma forma de
comportamento social que coloca questões para aquela forma de interpretação
sociológica: o gosto plural dos indivíduos, apesar das posições sociais ocupadas por
eles. O comportamento casual diante da oferta cultural, de consumo eclético, cujo efeito
são as preferências dispersas pelos diversos níveis de legitimidade das obras
consumidas, das leituras preferidas, dos espetáculos freqüentados e das produções
visuais assistidas, faz com que as classificações culturais, em termos de alta e baixa
cultura, devam ser reconsideradas, bem como o papel que desempenham na projeção de
diferenças entre grupos e entre indivíduos.
Sobre essa atitude dos consumidores diante das artes, Herbert Gans (1992)
observa que

[u]ma nova geração de profissionais, gerentes e técnicos [...]


decidiram que eles não tinham que imitar o gosto de suas gerações
anteriores e que eles podiam ser, para usar uma palavra corrente num
sentido diferente, multicultural. Isto é, as pessoas podiam escolher
tanto dentro da alta quanto da baixa cultura, desde museus e pinturas,
desde música clássica e jazz até o rock – e sem qualquer perda de
status cultural ou social. Tal análise teórica e empírica produzida
indica que velhas diferenças entre alta cultura e cultura popular têm
reduzido consideravelmente (GANS, 1992, viii). 14

Em sua análise, Gans considera que as diferenças culturais sobrevivem, e que seria uma
extrapolação das evidências empíricas se afirmar que as diferenças entre alta e baixa
cultura desapareceram completamente. Portanto, para ele, embora não se possa alegar,
pelo menos ainda, o fim da distinção cultural entre alta e baixa cultura e nem que as
diferenças de classes estão desaparecendo na América, uma maior liberdade nas
escolhas artísticas frente aos ditames da posição social é verificada.

14
Traduzido livremente de “A new generation of professionals, managers, and technicians [...] decided
that they did not have to imitate the tastes of their elders and that they could be, to use a corrent phrase in
a different sense, multicultural. That is, people could choose from both popular and high culture, from
museum and poster art, from classical music and jazz and rock – and without any loss of cultural or social
status. This produced theoretical and empirical analyses (…) [indicates] that the old differences between
high and popular culture [has] been considerably reduced.” (GANS, 1992, p. viii)

55
Para Gans, ademais, o conceito de legitimidade cultural é problemático porque
“alta” e “baixa” cultura são noções relativas. O que pode ser de sublimação cultural para
algumas pessoas, pode ser entretenimento para outras, e vice versa. Gans destaca que
falta aos teóricos culturais prestar mais atenção aos modos empíricos como os
indivíduos de gosto intelectualizado se divertem e como os de baixa renda procuram se
enobrecer esteticamente.
Em seu estudo sobre o público apreciador de arte abstrata, David Halle (1992)
ressalva que, embora as elites estejam mais associadas à cultura dominante, porque
predominam entre os admiradores de produções artísticas mais sofisticadas e
complexas, em termos de elaboração estética e experimentação formal, elas não são
uma audiência leal, pois também consomem a cultura média, ou apropriando-se de
obras legítimas de uma forma sensorial, ingênua ou mesmo desqualificada
artisticamente.
Diante deste cenário de pluralidade nas escolhas artísticas, a despeito da
dicotomia alta/baixa cultura e das determinações de classe, os dois enfoques teóricos
apresentados abaixo problematizam a intensidade da segmentação no consumo cultural
e, conseqüentemente, a sua capacidade de legitimar e de refletir a segregação social.
Richard Peterson elucida o gosto eclético como nova forma de comportamento
ostentatório, identificando duas modalidades de consumo: o onívoro e o unívoro.
Bernard Lahire trata das disposições e competências múltiplas e até mesmo
contraditórias adquiridas pelos indivíduos, cujo efeito é a variedade nos gostos
individuais, em relação ao nível de legitimidades das preferências declaradas por eles.
A obra de Peterson (1992, 1997) sobre o consumo cultural, especialmente a
apreciação musical, e que orienta trabalhos como os de Bryson (1996, 1997) e de Chan
& Goldthorpe (2004), assenta-se em dois argumentos centrais desse autor. O primeiro
deles é que os símbolos e hábitos cultivados pelos indivíduos para projeção da condição
social, em qualquer sociedade moderna, embora pareçam evidentes e estáveis, tendem a
mudar com o tempo. Prova disso – e este é seu segundo argumento – é a perda de poder
expressivo do esnobismo como comportamento cultural típico das elites em favor de
uma postura mais eclética, pelo menos nos Estados Unidos no final do século XX.
No artigo The rise and fall of highbrow snobbery as a status marker, Peterson
(1997) aponta, na história norte-americana, a ascensão e a queda do esnobismo
intelectualizado na apreciação das artes enquanto atitude distinta e demarcadora de
notabilidade social. Peterson observa na dinâmica cultural dos Estados Unidos desde o

56
final do século XVIII (contexto da Guerra da Independência) que os sistemas de status
vem se sobrepondo historicamente.15 Empiricamente, isto significa que os costumes e as
atitudes dos indivíduos de classes hegemônicas, enquanto sinais de ocupação de
posições sociais de status, são datados historicamente e têm significado instável. A
apreciação qualificada das artes, enquanto sinal de alto status, de dignidade e
refinamento de membros das elites é relativamente recente na história americana, se
consolidando à medida que o domínio da etiqueta e do pertencimento associativo
perdiam essa significação.

Como a etiqueta perdeu sua utilidade e o pertencimento associativo se


provou inadequado para a crescente elite nacional, houve abertura
para um critério de status que era difícil de se adquirir e era aplicável
a todas as situações. No último quarto do século XIX, a apreciação
artística tornou-se proeminente como parte de uma nova ênfase no
gosto distintivo (PETERSON, 1997, p. 81).16

Obviamente – pondera Peterson (1997) – música, poesia, literatura, teatro e artes


plásticas já eram práticas das “melhores classes”. Entretanto, até então não havia uma
linha estabelecida entre as artes finas e elevadas e as artes populares, de entretenimento.
Até aproximadamente a década de 1870, a função da arte era outra. As apresentações
artísticas que havia eram ocasiões de ostentação e de sociabilidade. O que era executado
no palco era menos importante que a observância aos comportamentos e vestuários
alheios. Essa função das artes muda e sua apreciação torna-se fator demarcador de
status, expressado não só pelas artes apreciadas, mas também pelas repudiadas. Daí, o
surgimento da admiração “highbrow”, do gosto intelectualizado, cultivado e oposto ao
gosto das massas, estigmatizado como “lowbrow”, bruto, simplório e inculto. Desta
forma, a apreciação das artes se tornou marca de pertencimento a segmentos de alto
status, associada à proibição de gosto por qualquer manifestação cultural popular.

15
Peterson recupera os sistemas de status desde antes mesmo da Guerra de Independência dos Estados
Unidos: por volta de 1776, por exemplo, os privilégios cedidos pela realeza inglesa e o pertencimento a
linhagens aristocráticas eram sinais de status. Após a independência, o pertencimento às “grandes”
famílias tradicionais passa, cada vez mais, a ser critério de notoriedade. Ao final do século XIX as
numerosas famílias afortunadas pela indústria não se faziam reconhecer pelo sobrenome, recorrendo ao
domínio da etiqueta que, se popularizando, também perdeu capacidade expressiva. Por volta de 1880, o
acesso a grupos de acesso restrito ganhava poder distintivo para posteriormente o perder, pois as elites
podiam comprar este pertencimento. A apreciação artística qualificada surge, então, como hábito raro,
distinto e atribuidor de prestígio a seus praticantes.
16
Traduzido livremente de “As etiquette lost its utility and associational membership proved inadequate
for the increasingly national elite, there was an opening for a criterion of status that was both difficult to
acquire and applicable in all situations. In the latter quarter of the nineteenth century, arts appreciation
came to the fore as part of a new emphasis on discriminating taste.” (PETERSON, 1997, p. 81).

57
Apesar dessa hierarquia cultural se encontrar claramente estabelecida em
meados do século XX na cultura americana, o esnobismo, seu principio sustentador, se
encontrava sob ameaça desde os anos 20 daquele século em atitudes como o gosto de
indivíduos “highbrow” pelo jazz, ou seja, membros das elites simpatizantes das formas
culturais populares e das classes trabalhadoras. O autor concebe essa incapacidade da
fronteira entre a alta e a baixa cultura de constranger esses comportamentos
contraditórios e essa fluidez das camadas dominantes por variados estilos musicais, de
níveis de distinção heterogêneos, como uma nova atitude coletiva perante os produtos
culturais, como um novo olhar sobre essas manifestações simbólicas; uma nova maneira
de expressar dignidade e status, apesar de forças sociais contrárias empenhadas, mesmo
nos dias de hoje, no restabelecimento da vigência do cultivo do gosto refinado e restrito
como atributo de status. (PETERSON, 1992, 1997)

Tal incorporação de alguns dos elementos „mais baixos‟ da cultura


popular pela arte intelectualizada era vista com alerta por intelectuais
mais conservadores e radicais. A defesa da distinção entre alta e baixa
cultura e a preocupação com a natureza degradante desta última
continua até hoje. (PETERSON, 1997, p. 86).17

Essa mesma tendência de transição de forma de comportamento cultural, em que


a apreciação das artes finas como atributo de status também vem perdendo força em
favor de um novo critério de expressão de distinção e prestígio é estatisticamente
provada a partir dos resultados de um survey americano de 1982 18 analisados por
Peterson (1992). Através desta pesquisa, o autor conclui que o padrão de
comportamento cultural predominante entre as elites norte-americanas no final do
século XX é o ecletismo. Grupos profissionais de alto status são mais propensos a
gostar de música “artística” e de gostar de uma variedade maior de estilos musicais,
além de mais propícios a se integrarem em atividades culturais. Indivíduos de setores
ocupacionais de baixo ou nenhum status tendem a concentrar suas preferências musicais
em alguns poucos ritmos, todos populares, pouco legítimos. Destas constatações o autor
conclui que é o caráter onívoro das escolhas musicais destas elites, e não mais o
esnobismo a conduta de status predominante. Nas palavras do próprio, “em resumo, [...]

17
Traduzido livremente de “This incorporation of some of the “lowest” elements of popular culture into
highbrow art was looked at with alarm by most conservative and radical intellectuals. […] The defense of
the distinction between high and low culture, and the concern over the degrading nature of the latter,
continue to this day.” (PETERSON, 1997, p. 86).
18
Trata-se de um survey de participação pública nas artes de 1992, um estudo por amostragem conduzido
nos Estados Unidos pelo U.S. Bureau of the Census for the National Endowment for the Arts.

58
ser de alto status agora não requer que se seja esnobe, mas significa ter gostos
„onívoros‟ cosmopolitas” (PETERSON, 1997, p. 87).19 Ou seja: o “onivorismo”
cosmopolita parece ser então o princípio contemporâneo de identificação de status nos
Estados Unidos.

O código de gosto musical elaborado do membro onívoro da elite


pode aclamar a música clássica e, ainda, no contexto apropriado,
demonstrar algum conhecimento de uma ampla variedade de formas
musicais. Ao mesmo tempo, pessoas próximas da base da pirâmide
são mais propensas a defender veementemente sua preferência de
gosto restrita, seja ela música religiosa, música country, blues, rap ou
outra música regional, contra pessoas que simpatizem com outras
formas musicais de status mais baixo (PETERSON, 1992, p. 255). 20

Diante desta nova estratificação do consumo cultural detectada por ele, Peterson
acredita que categorias de análise organizadas em pares de opostos como “highbrow”
versus “lowbrow”, “snob” versus “slob” ou “superior” versus “brutal” não refletem essa
nova postura através da qual as elites expõem sua proeminência através da cultura. Uma
conceituação em que os “onívoros” – grupos de alto prestígio – se contrapõem aos
“unívoros” – grupos da base da pirâmide – é mais adequada à interpretação do consumo
cultural21 dos diferentes grupos ocupacionais distribuídos conforme seu nível de status
hoje, nos Estados Unidos.
Portanto, o estudo da projeção de diferenças de honra e de prestígio entre grupos
de posição hierárquica desiguais, que tem início nos apontamentos de Max Weber
(1982), mas que é aplicado especificamente ao consumo cultural a partir de Veblen
(1988) e cujo maior expoente é Pierre Bourdieu (1983, 1996, 2002, 2008), chamada
aqui de Teoria da Legitimidade Cultural e à qual Peterson se refere como “teoria
elite/massa”, resulta obsoleta para a análise da adesão cultural. O argumento geral de
todos que escrevem sob tal orientação teórica é de que os indivíduos localizados nos

19
Traduzido livremente de “...in summary, [...] being high status now does not require being snobbish,
but means having cosmopolitan „omnivorous‟ tastes.” (PETERSON, 1997, p. 87).
20
Traduzido livremente de “[T]he elaborated musical taste code of the omnivore member of the elite can
acclaim classical music and yet, in the proper context, show passing knowledge of a wide range of
musical forms. At the same time persons near the bottom of the pyramid are more likely to stoutly defend
their restricted taste preference, be it religious music, country music, the blues, rap, or some other
vernacular music, against persons espousing other lower status musical forms.” (PETERSON, 1992, p.
255).
21
Lahire (2006) critica este ponto da argumentação de Peterson, em que este estende as conclusões do
estudo das preferências musicais aos demais âmbitos culturais, como filmes, literatura, etc. Compreender
o gosto cultural geral a partir dos dados do gosto musical (“estas descobertas mostram que o tipo de
música preferido é um é um bom representante do gosto geral” (PETERSON, 1992, p. 248, tradução
livre)), para Lahire (2006), é extrapolação.

59
estratos mais altos da hierarquia social tendem a caracterizar-se pelo cultivo do gosto
refinado pelas artes, pelas boas maneiras, pelo domínio da linguagem, pelo
pertencimento a grupos notáveis, a clubes e a entidades filantrópicas. O termo “esnobe”,
embora pejorativo, descreve o comportamento freqüente de segmentos dominantes cuja
atitude comum é a sua contenção moralista e o distanciamento de todas as
manifestações culturais tidas como impróprias, indignas, inferiores ou inadequadas. Os
segmentos médios, por sua vez, tendem a imitar os segmentos superiores, embora sem o
conhecimento necessário, a devida desenvoltura, o cultivo sedimentado do gosto e o
investimento de tempo e de dinheiro. Os segmentos mais baixos, segundo esta teoria
elite/massa, se guiam pelo gosto tradicional, étnico e popular. Enfim, tal teoria procura
fazer predições sobre as escolhas dos diferentes grupos de status hierarquicamente
distribuído em matéria de consumo, apreciação artística e hábitos culturais e de lazer.
Peterson (1997) reconhece que estes sociólogos perceberam que a hierarquização dos
diversos grupos de status se expressa pela apreciação da literatura, das artes, do
vestuário, pela destreza na linguagem e pela maneira como o tempo livre é ocupado.
Seu estudo quantitativo (PETERSON, 1992), contudo, aponta uma configuração da
adesão cultural para a análise da qual a teoria elite-massa é inadequada. O autor conclui
que, se alguma vez tal teoria descreveu precisamente a realidade social dos fenômenos
de consumo cultural, ela não mais o faz em função das mudanças pelas quais tem
passado a sociedade americana em sua história. O gosto das elites americanas já não é
predominante aquele restrito, educado e oposto ao das massas.

De fato, o gosto da elite não é mais definido simplesmente como a


apreciação expressa das formas de arte elevadas e de um desdém
moral correspondente das, ou de uma tolerância arrogante de todas
outras expressões estéticas. Até onde esta visão estiver correta, a
estética do status de elite está sendo redefinida como a apreciação de
todas as atividades de lazer distintivas e formas criativas junto da
apreciação de artes elevadas clássicas (PETERSON, 1992, p. 252).22

Hábitos e símbolos marcadores de status podem parecer eternos, naturais e


evidentes, mas seu poder expressivo é provisório, pois, além da moda ser passageira, os
princípios que regem a atribuição de significados notáveis aos indivíduos também

22
Traduzido livremente de: “In effect, elite taste is no longer defined simply as the expressed
appreciation of the high art forms and a corresponding moral disdain of, or patronizing tolerance for, all
other aesthetic expressions. In so far as this view is correct, the aesthetics of elite status are being
redefined as the appreciation of all distinctive leisure activities and creative forms along with the
appreciation of the classic fine arts.” (PETERSON, 1992, p. 252).

60
mudam. Diante da mudança nos parâmetros de atribuição de status que a adesão cultural
(especialmente a musical) oferece, o gosto distinto como atitude de afirmação de
hierarquia não parece se apresentar empiricamente como o comportamento
estatisticamente predominante. Logo, a Teoria da Legitimidade Cultural (ou teoria
“elite/massa”, conforme nomeia Peterson) perde seu poder explicativo. Para Peterson, a
classificação “snob/slob”, assim como a idéia do gosto exclusivo e estritamente
intelectualizado, é ultrapassada.
Bernard Lahire (2005, 2006, 2008) propõe outra abordagem metodológica para a
análise das diferenças culturais: a escala individual. Ao invés de se comparar os dados
de consumo cultural agregados por classe, Lahire desenvolve uma análise à escala
individual, considerando os perfis culturais de cada consumidor participante de um
survey. Nesta mudança de perspectiva, ele constata

que a fronteira entre a legitimidade cultural (a „alta cultura‟) e a


ilegitimidade cultural (a „subcultura‟, a „simples diversão‟) não separa
apenas as classes, mas partilha as diferentes práticas e preferências
culturais dos mesmos indivíduos, em todas as classes da sociedade
(LAHIRE, 2006, p. 17).

Suas constatações estatísticas revelam que perfis individuais que apresentam escolhas
distintas ao lado de gostos populares têm maior freqüência do que perfis homogêneos
quanto ao nível de legitimidade das preferências. Essa heterogeneidade no nível de
prestígio das práticas culturais predomina em todas as classes e na maioria da
população. Baseado em dados de survey, Lahire verificou que: (1) perfis culturais
individuais compostos de elementos dissonantes, do ponto de vista da legitimidade
cultural, são estatisticamente majoritários em todos os grupos sociais; (2) tais perfis de
indivíduos são mais prováveis nas classes médias e altas que nas populares; (3) são
também majoritários em todos os níveis de formação escolar; (4) são mais prováveis
entres os que concluíram, no mínimo, o ensino médio do que os não formados; (5) em
todas as faixas etárias estes perfis são também os mais prováveis; (6) eles só são menos
prováveis quando se sobe a faixa etária; (7) a probabilidade dos entrevistados terem um
perfil cultural convergente “por baixo”, com fraca legitimidade, é maior do que “por
cima”.
Os retratos individuais obtidos mostram a ambivalência, a alternância entre
domínios mais e menos legítimos dos diferentes campos culturais (leitura, música, TV,
saídas culturais) e dentro de cada campo (preferência por música clássica e música pop,

61
consumo de literatura clássica e de folhetinesca). O comportamento cultural mais
freqüente é o do trânsito por diversos níveis de legitimidade, em que os indivíduos se
interessam, por exemplo, por arte contemporânea, mas também assistam a novelas na
TV, ou gostem de literatura comercial, mas também de cinema de vanguarda. O que
Lahire destaca é que, quando se deixa de agregar os dados quantitativos para se analisá-
los à escala individual, percebe-se que o perfil de indivíduos que circulam pelos
diferentes níveis de elaboração artística não são exceção estatística, pois predominam
em relação a aqueles de perfil mais homogêneo, que ou só consomem arte legítima e
cultivam hábitos culturais elevados ou preferem somente as artes menores e os lazeres
populares. Para Lahire, a contradição nas escolhas dos atores é muito clara, já que se
mostra estatisticamente provável.

[N]ão há nada de mais ordinário e central que as margens estatísticas,


nada mais normal estatisticamente para os membros de diferentes
grupos sociais que ter uma parte de suas práticas e de suas
preferências culturais fora dos registros mais frequentemente
associados a seus grupos”. (LAHIRE, 2006, p. 216).

As explicações para essa variância nas escolhas culturais individuais estão nas
redes sociais e nas ocasiões de consumo ou entretenimento. As diversas experiências
socializadoras heterogêneas dos indivíduos, as mudanças nas condições materiais,
culturais e de renda, os efeitos localizados de formações escolares muito especializadas,
as relações ambivalentes com a cultura familiar, as influências conjugais, de amizade,
etc. são responsáveis pela posse de competências culturais múltiplas e até díspares por
um mesmo indivíduo, ou seja, as diferentes experiências e competências culturais
devem-se ao contato regular com outros indivíduos com propriedades e costumes
culturais diferentes.
Lahire destaca também a importância dos contextos temporais ou espaciais que
favorecem o engajamento em diferentes níveis de legitimidade: práticas menos
legítimas como ir a shows populares, assistir a filmes de comédia romântica, ler
publicações pouco pretensiosas ou ouvir músicas dançantes e eminentemente
comerciais tendem a se realizar predominantemente em função do lazer, da
sociabilidade e do relaxamento, em ocasiões festivas, férias ou após pressão
profissional, enquanto as formas culturais ditas mais elevadas devem-se a anseios de
gozo estético, instrução, cultivo intelectual ou mesmo distinção. Por essas razões,
Lahire coloca que o modelo de consumidor de cultura da Teoria da Legitimidade

62
Cultural, orientado estritamente pelos seus gostos pessoais, não se sustenta
empiricamente. Práticas e consumos culturais muitas vezes não estão ligados a gostos,
mas, antes, a circunstâncias com as quais os indivíduos se deparam. A adesão relaciona-
se mais com a ocasião do que com as preferências pessoais.
O autor conclui, portanto, que as variações individuais de comportamento têm
origens essencialmente sociais, sendo produto da interação entre a pluralidade de
disposições e competências culturais incorporadas (em função da pluralidade de
experiências socializadoras) e a diversidade de contextos com os quais os indivíduos
deparam-se. Assim, neste aspecto também Lahire discorda da Teoria da Legitimidade
Cultural, porque, segundo esta, as disposições plurais portadas por um indivíduo
geralmente se devem a deslocamentos hierárquicos significativos. O que está
pressuposto é a passagem de uma posição social em que as disposições culturais são
homogêneas para outra, em que disposições a serem incorporadas apresentam
homogeneidade equivalente, mas com outro nível de prestígio. Lahire, entretanto,
mostra que a pluralidade de disposições se deve a quaisquer deslocamentos, não
somente às trânsfugas de classe. Qualquer transição de posição no espaço social que
ofereça aos indivíduos a possibilidade de contato com propriedades culturais peculiares
é responsável pela dissonância em seu comportamento relacionado à cultura.
O correr da vida cultural, segundo este autor, não é submetido a um princípio
único que ordena escolhas sistemáticas; ao invés de se pressupor a atuação homogênea,
coerente, efetiva e homóloga das disposições incorporadas ao longo do processo de
socialização, ou seja, o habitus, ele acredita que o desenvolvimento (ou não) dessas
competências adquiridas não se dá indiferentemente do contexto de ação; tanto as
disposições e as competências quanto os contextos são plurais. Tal variedade explica a
variação de comportamento de um mesmo indivíduo ou grupo de indivíduos. Assim
coloca ele:

Em vez de pressupor a influência sistemática de um passado


incorporado necessariamente coerente sobre os comportamentos
individuais presentes, mais do que imaginar que todo nosso passado,
como um bloco ou uma síntese homogênea (sob a forma de um
sistema de disposições ou de valores), pesa a todo momento sobre
todas as nossas situações vividas, o sociólogo pode indagar-se sobre o
desencadeamento ou o não-desencadeamento, a implementação ou a
estagnação, pelos diversos contextos de ação, de disposições e de
competências incorporadas. A pluralidade de disposições e de
competências, por um lado, a variedade de contextos de sua
efetivação, por outro, é que podem explicar sociologicamente a
variação de comportamentos de um mesmo indivíduo, ou de um

63
mesmo grupo de indivíduos, em função de campos de práticas, de
propriedades do contexto de ação ou de circunstâncias mais singulares
da prática. (LAHIRE, 2006, p. 18, ênfases do autor).

Assim, sua crítica à Teoria da Legitimidade Cultural está no fato dela não
conceber a possibilidade dos atores fazerem escolhas aparentemente antagônicas, como
freqüentar um museu e também um parque de diversões ou ouvir música clássica e
modas sertanejas. Autores alinhados sob esse enfoque teórico enfatizam em suas
análises as escolhas análogas feitas pelos indivíduos nos diversos campos de arte,
leitura, etc. através da transferência generalizada de disposições e competências
evidenciadas numa área para as demais. Por exemplo, indivíduos de classes superiores,
independentemente do contexto no qual se encontrem e do hábito ou consumo cultural
em questão, tenderiam a dirigir suas preferências para tudo que remetesse à distinção, à
legitimidade e à dignidade culturais, “como verdadeiras maquininhas de perpétua
triagem do trigo cultural e do joio vulgar” (2006, p. 22). É como se as situações com as
quais os atores se deparam com alguma atividade como um show, um espetáculo ou
coisas do gênero fossem estáveis ou uniformes e, portanto, os indivíduos nela
envolvidos mobilizassem sempre e incessantemente suas disposições culturais,
independentemente de com quem estivessem ou por que se engajaram naquela situação.

[A] Teoria da Legitimidade Cultural apóia-se implicitamente numa


teoria do ator que pressupõe a sua monocoerência, a sua
homogeneidade disposicional, e negligencia a variação dos contextos.
Ora, o estudo empírico vem destruir essas evidências eruditas, fazendo
aparecer a possível (e mesmo freqüente) variação das disposições, das
atitudes, dos gostos ou dos interesses culturais, em função
nomeadamente do domínio da prática considerada, do seu estatuto e
das circunstâncias da prática. (LAHIRE, 2008, p. 20).

O modelo de ator social que ele propõe para os estudos culturais é, portanto, plural, em
função de seus diversos pertencimentos e socializações por que passa e as circunstâncias
contextuais sob as quais consome e é levado a agir de uma ou outra forma, fazendo uso,
portanto, de diferentes disposições.

Cada indivíduo [é] portador de uma pluralidade de disposições e


atravessa uma pluralidade de contextos sociais. O que determina a
ativação de tal disposição em tal contexto resulta, portanto, da
interação entre relações de força interna e externa: relação de força
entre disposições mais ou menos solidamente constituídas ao longo da
socialização passada (interna) e relações de força entre elementos
(características objetivas da situação, que podem ser associadas a

64
pessoas diferentes) do contexto que pesam mais ou menos sobre o ator
(externa) (LAHIRE, 2008, p. 31).

Contra a idéia da transferência generalizada de esquemas de apreciação, de


avaliação e de percepção, de gostos e de atitudes que um indivíduo efetua de um
domínio de arte para o outro, Lahire alerta que a mesma, embora se apóie em
probabilidade estatística, incorre em tipificações caricaturais. De fato, diz ele, uma
escolha legítima num campo cultural ou artístico atrai estatisticamente a legitimidade
em outro, assim como uma escolha pouco legítima também tem efeito homólogo. A
tendência, porém, não se verifica em considerável número de casos em pesquisas
quantitativas. Constata-se que o número de indivíduos que acumulam práticas
dissonantes – pouco legítimas junto de outras legítimas – é significativo. Esse modelo
da transferência generalizada supõe homogeneidade das múltiplas situações culturais
vividas pelos atores. Está pressuposto no modelo que o que é admirável ou legítimo
num dado contexto vivido pelo consumidor de cultura será também em outros com os
quais ele se deparará. Além do mais, os indivíduos agiriam compulsivamente através
das mesmas disposições interiorizadas indiferentemente das propriedades da situação a
qual eles estivessem vivenciando: se formal ou não, se para divertimento ou
contemplação, etc.. Para Lahire, as escolhas dissonantes de parcela majoritária da
população refletem exatamente o contrário, isto é, a capacidade adaptativa diante da
heterogeneidade das situações de consumo e vivência cultural.

A homogeneidade de práticas e de preferências culturais tem


condições sociais de possibilidade. E vimos que, tanto no registro
legítimo como no registro pouco legítimo, a coerência dos perfis
culturais, que indicaria a existência de habitus culturais enquanto
sistemas coerentes de disposições, não é o que há de mais freqüente
estatisticamente (3,8% da população total no registro legítimo; 17,9%
no registro pouco legítimo). Assim, a fraca probabilidade estatística de
perfis consonantes explica-se, em grande medida, pelas condições de
socialização e de ação em sociedades altamente diferenciadas,
caracterizadas por uma forte concorrência entre as diferentes
instâncias socializadoras, pelas múltiplas pequenas mobilidades
sociais e culturais entre gerações e por múltiplos contatos e atritos de
membros dessas sociedades com contextos, normas ou princípios
socializadores culturalmente heterogêneos (LAHIRE, 2006, p. 181,
ênfases do autor).

Assim, em função dessa diversidade que caracteriza os comportamentos


individuais da maioria da população estudada, o uso pleno das categorias resulta
ineficaz, dado que descreve fielmente apenas uma pequena parcela da população que

65
apresenta um perfil mais homogêneo, pois a maioria se encontra em situações mistas,
ambivalentes. Poucos são os que consomem só cultura legítima ou só cultura popular,
de entretenimento. Os perfis culturais dos indivíduos compostos de combinações mais
complexas de características, casos médios e ambivalências, raramente se permitem
descrever rotuladamente. O uso de categorias binárias extremas, portanto, exclui a
maioria da população estudada, dado que os tipos que se encaixam perfeitamente nas
categorias de análise são minoria.

[A]s maiores vítimas desse procedimento são todas as combinações


culturais complexas, todas as situações intermediárias, médias ou
contraditórias, todos os casos mais atípicos (levando em conta as
tipificações utilizadas), para os quais nem sempre dispomos de
palavras para nomear, de imagens para evocar ou de exemplos
célebres para ilustrar (LAHIRE, 2006, p.108)

Situar todos os entrevistados em um pólo ou outro, associando com outro aspecto social
(como classe, por exemplo), contribui para a caricaturização de grupos e de padrões de
comportamento. Se a sociologia fornecer quadros coerentes de um dado aspecto do
mundo social sem mencionar os casos menos nítidos, heterogêneos, apresentará ao
leitor uma realidade social artificialmente homogênea, inexistente sob essa forma.

As exceções estatísticas não têm nada de excepcional: elas são o que


há de mais comum e, no fim das contas, afetam a quase totalidade dos
indivíduos que compõem os diferentes grupos. Ao constatar
estatisticamente o caráter geral da singularidade cultural (relativa) de
casos individuais, o sociólogo pode afirmar que essa singularidade
possui pelo menos uma das grandes propriedades do fato social
segundo Durkheim, isto é, o fato de ser „geral em toda a extensão de
uma sociedade dada‟” (LAHIRE, 2006, p.119).

Lahire, contudo, reconhece a vigência de uma cultura oficial, tida como superior,
reverenciada como ideal e que encontra, inclusive, amparo institucional, como museus,
galerias, o sistema educacional e o Estado. Atitudes de alguns entrevistados por survey,
como reconhecer o valor artístico de uma obra sem de fato conhecê-la23, sentir vergonha
pela ignorância musical ou cinematográfica ou superestimar suas práticas mais legítimas
enquanto subestimam as mais vulgares atestam a dominação de algumas formas de
cultura sobre outras. Entretanto, o autor duvida de que só haja esta ordem legítima de
cultura a ordenar a conduta e as preferências dos indivíduos, como imperativo
inescapável. Os muitos agrupamentos de que se compõe a realidade social engendram

23
O que Bourdieu (2008) denomina “conhecimento sem reconhecimento.”

66
hierarquizações próprias, independentemente do quão poderosas ou duradouras sejam.
Há consumidores de cultura que crêem em outra ordem, legitimada por outros
princípios, como os imigrantes que apreciam seus hábitos e manifestações de origem, os
fiéis ouvintes de música e demais expressões artísticas de cunho religioso, os
integrantes de fãs-clubes admiradores de artistas pop, os ouvintes de música popular que
rejeitam composições mais sofisticadas por considerá-las enfadonhas ou famílias que
buscam entretenimento de forma antiintelectualista, além de grupos de iguais que
formam instâncias relativamente autônomas de consagração cultural. Exemplos
empíricos que atestam a existência de contestações à dominação não faltam. Todos eles
mostram que, em matéria de cultura, existem várias legitimidades competindo com a
dominante, relativas a cada pertencimento que se tenha. Para Lahire, só existiria uma
única legitimidade cultural única caso todos os indivíduos ou grupos cressem na
superioridade de uma forma de cultura em relação às outras. O que se observa, ao
contrário, são ordens de consagração cultural concorrentes entre as quais os indivíduos
circulam no decorrer de suas socializações e que cujas marcas na conduta desses
indivíduos são as preferências heterogêneas e até contraditórias, as variações intra-
individuais. Cada forma de convívio ou pertencimento em esferas com valores próprios
empresta aos indivíduos capacidades de apreciação distintas que convivem dentro deles,
umas mais sofisticadas, outras mais voltadas ao entretenimento.

A variação intra-individual das práticas e das preferências culturais


não é mais do que a marca e o sintoma, à escala do social incorporado,
da pluralidade da oferta cultural, por um lado, e, por outro, da
pluralidade dos grupos sociais (dos mais micro aos mais macro)
suscetíveis de sustentar (suportar) estas diferentes ofertas culturais e
de difundir as hierarquias culturais específicas que compõem as nossas
formações sociais fortemente diferenciadas. A pluralidade dos grupos
(ou das instituições) e a multiplicidade dos quadros de vida social que
cada indivíduo é suscetível de freqüentar simultaneamente
(alternativamente, na verdade) ou sucessivamente (ao longo da sua
vida) estão ligadas à forte diferenciação social das funções
características das nossas sociedades. A realidade social é portanto
mais compósita do que a Teoria da Legitimidade Cultural nos poderia
levar a pensar. (LAHIRE, 2008, p. 14-15).

Diferentemente da Teoria da Legitimidade Cultural, que concebe uma legitimidade


única, venerada por todas as posições do espaço social, mas que cuja proximidade à
qual se dá em função do pertencimento de classe, Lahire acredita, baseado em
entrevistas em profundidade sobre o comportamento cultural, que os indivíduos
concebem e integram, através de sua rede social, diversas legitimidades, cada uma delas

67
com valores relativamente próprios e que compõem em cada indivíduo um repertório
heterogêneo de disposições. A multiplicidade de pertencimentos, responsável pela
variedade e pela dissonância na relação dos consumidores com a cultura é que parece
ser ignorada pela Teoria da Legitimidade Cultural. (LAHIRE, 2008, 2006).

68
69
6 O consumo de samba

Para os autores da assim chamada Teoria da Legitimidade Cultural, os costumes


culturais dos indivíduos expressam diferenças sociais e demarcam a oposição entre
grupos. Os bens e os costumes são símbolos cujos significados transmitem status e, por
isso, são empregados na projeção da posição de classe. Neste sentido, há certas formas
de produção artística e, dentro delas, estilos, escolas e tendências cuja apreciação
imediatamente remete a agrupamentos específicos. Percebe-se que este princípio teórico
não se aplica ao samba porque o gosto por ele, por si só, não discrimina nenhum
agrupamento, classe ou parcela da população. Embora nos primeiros anos do século XX
fosse uma arte e um costume prontamente associados aos negros cariocas, à medida que
foi ascendendo socialmente e ganhando prestígio por toda a estrutura social, o samba foi
deixando de ser referência identitária, dado que foi se sagrando como preferência
comum.
O samba também ofusca a diferenciação que a divisão alta/baixa cultura
estabelece entre os indivíduos, diferenciação essa também detectada por esse
alinhamento teórico. Segundo Veblen, Simmel, Goffman, Elias e Bourdieu, classes
sociais diferentes tendem, conforme já se falou, a engendrar gostos característicos, o
que lhes permite projetar a posição ocupada. As elites, segundo eles, tendem a restringir
seu gosto à alta cultura refinada e sofisticada, sendo avessas a elementos da cultura
popular. Sua origem social lhes assegura, para isso, uma capacitação estética prévia,
(potencializada posteriormente por uma escolarização mais elevada), responsável pela
destreza cultural que garante desenvoltura na apreciação das artes mais requintadas.
Segmentos sociais inferiores na hierarquia social, por sua vez, desprovidos desse olhar
qualificado para obras que demandam uma verdadeira decodificação, tendem a preferir
formas e estilos artísticos ditos medíocres e comerciais, de propriedades mais
imediatamente sensíveis, submetidas a uma finalidade prática, sem elaborações formais
e veiculadas pela grande mídia. Tal exclusivismo cultural, em que cada segmento social
torna-se identificável e classificável pelas suas preferências típicas, embora se prove
empiricamente observável numa série de casos, não o é quando se trata do samba,
porque o gosto por ele foi se generalizando por todas as camadas sociais ao longo do
tempo. Embora em seus primórdios sua localização social seja nítida, e em função disso
vinculado à baixa cultura, à medida que ganha visibilidade na sociedade brasileira, o
samba vai sendo incorporado por toda a estrutura social das mais diversas formas,

70
firmando-se como preferência geral da sociedade brasileira, adotado com os mais
diversos fins e sendo produzido por compositores de diferentes localizações no espaço
social. Este gosto das elites por um ritmo eminentemente popular revela que a relação
dessas posições sociais eminentes com a música nem sempre requer certos cultivos e
restrições, podendo ser de descontração e de envolvimento sensorial. Se o consumo
cultural ordena os indivíduos em duas categorias opostas de pessoas, o samba é uma
manifestação através da qual esta segmentação do gosto não ocorre, pois ouvintes de
música de vários estratos sociais apreciam-no.
Este nivelamento do gosto já foi observado por Richard Peterson. Analisando a
história cultural americana, ele observa uma tendência de queda da importância daquilo
que ele denomina “esnobismo intelectualizado” como comportamento expressivo das
elites americanas em favor de uma postura mais eclética. A adesão exclusiva à alta
cultura (“highbrow”), associada à proibição do gosto por quaisquer manifestações
culturais populares (“lowbrow”) e à apreciação das artes qualificadas como sinal de
status e marca de pertencimento aos grupos sociais proeminentes, é relativamente
recente na história americana, surgindo nos Estados Unidos no último quarto do século
XIX. Contudo, este esnobismo, que se baseia na fixidez da hierarquia cultural, vem
sendo ameaçado pelo interesse das elites americanas por ritmos populares e das classes
trabalhadoras, como o jazz. Peterson coloca que, no final do século XX, o ecletismo
vem ser firmando como padrão de comportamento cultural predominante entre elites
americanas. Nesta transição na forma do comportamento cultural, status e dignidade
cultural se expressam por um gosto musical plural, o que implica, curiosamente,
também a incorporação de formas “baixas” de música. Grupos de alto status, de
“tendência onívora”, apreciam majoritariamente uma variedade maior de estilos
musicais, enquanto populações de status ocupacional mais baixo, “unívoros”, tendem a
se concentrar em poucos estilos, todos eles pouco legítimos. No Brasil, o samba se
beneficiou de tendência semelhante comportamento cultural das elites nacionais,
enraizando-se no gosto geral dos brasileiros e não só das classes mais baixas. Nos
primeiros anos do século XX, o samba, assim com as condições sociais de onde se
realizava e os atores envolvidos com sua prática e produção, era desdenhado e
discriminado pelos grupos dominantes da sociedade carioca, sendo perseguido e
percebido como atraso e como cultura inferior pelos setores mais conservadores. Porém,
uma postura mais eclética desses grupos possibilitou ao samba penetrar na sociedade
brasileira. Ao longo do século XX, o samba foi ganhando aceitação, o que revela, no

71
Brasil também, perda de poder do esnobismo. Assim, como coloca Peterson sobre a
sociedade americana, o samba não se permite analisar pela dicotomia alta/baixa cultura,
pois são categorias obsoletas para se mapear o circulação dos indivíduos pela oferta
musical hoje em dia. A hierarquização cultural não impede indivíduos de estratos
superiores de apreciarem manifestações culturais de vários estilos e níveis de
legitimidade. No Brasil, o gosto generalizado pelo samba atesta que uma abertura maior
ao consumo cultural tem se firmado como postura característica de estratos mais altos
da sociedade. Por estas razões, o samba não pode ser empregado como referência
simbólica do status, pois sua aceitação perpassa fronteiras de classe, ouvido de forma
eclética.
Do mesmo modo que Richard Peterson, Bernard Lahire também questiona a
correspondência entre a dicotomia alta/baixa e as hierarquias sociais das quais fala a
Teoria da Legitimidade Cultural. Para ele, a idéia de que as classes superiores
distinguem-se pela legitimidade de suas escolhas é falsa. Analisando dados estatísticos
da sociedade francesa à escala individual ao invés agregá-los por classe, Bernard Lahire
descobriu que a dicotomia alta/baixa cultura que separa classes também separa práticas
dos mesmos indivíduos. Perfis individuais cujas preferências culturais contêm gostos
distintos ao lado de gostos populares predominam em todas as classes, isto é, do ponto
de vista da legitimidade cultural, elementos dissonantes nas preferências artísticas das
mesmas pessoas são comuns. Esta alta freqüência da alternância entre níveis de
legitimidade pelos indivíduos mostra que o trânsito entre a alta e a baixa cultura é o
comportamento predominante e não exceção estatística, e esta tendência de variação
intra-individual é observada no samba. Música popular por essência, não se restringiu às
camadas populares, agradando a indivíduos de todas as outras camadas sociais,
constando no quadro de gostos dos indivíduos ao lado de preferências distintas.
Apreciado, consumido e até produzido pelas classes médias e pelos segmentos
dominantes, foi o responsável pela heterogeneidade no nível de legitimidade dos mais
escolarizados e exigentes ouvintes. O samba demonstra que a música produzida pelas
classes populares não se faz ouvida somente por elas. Ao longo de sua história, o samba
foi a prática cultural dissonante, fora dos registros típicos de certos grupos. Para
Bernard Lahire, pessoas de perfis homogêneos são pouco freqüentes, e o samba, no caso
brasileiro, é um dos atrativos através dos quais a homogeneidade no gosto de camadas
dominantes é quebrada. A situação de classe não foi suficiente para constranger o

72
interesse pelas coisas do morro, pela batida do samba, pelo espetáculo das escolas, pelo
envolvimento da dança, etc.
Assim, o estudo do samba também mostra que a Teoria da Legitimidade Cultural
pode incorrer em estereotipação das classes (LAHIRE, 2006), ao supor uma coerência
interna nos costumes culturais de indivíduos de posição semelhante. Ao supor a
influência sistemática e eficaz do habitus como princípio gerador de práticas análogas e
definidor do gosto, seria impensável que indivíduos de maior capital cultural e, em
segundo plano, de maior capital econômico, se interessassem pelo samba da mesma
forma como também se interessam por outras criações artísticas mais elaboradas e,
portanto, distintas. O gosto pelo samba mostra que as classes não podem, como quer a
Teoria da Legitimidade Cultural, ser identificadas pela homogeneidade de seus
membros quanto a seus gostos, hábitos e preferências porque o samba desconstrói essa
homogeneidade. O habitus de classe, enquanto conjunto de disposições incorporadas, é
incapaz de engendrar práticas e gostos consensuais e coerentes. No curso de sua
história, o samba, ao “ascender socialmente” e agradar aos indivíduos de posição
superior, representa a heterogeneidade, a desarmonia na conduta cultural dessa faixa do
espaço social. Se o habitus rege a conduta dos indivíduos de mesma posição no espaço
social pela padronização do comportamento, permitindo que as classes se distingam
umas das outras, não o faz quando se aborda o gosto por este ritmo, que é de aceitação
universal pelas faixas de status. Os usos que se faz do samba e as ocasiões em que ele é
consumido mostram que as escolhas culturais, assim como aponta Bernard Lahire, não
são homólogas ou sistemáticas, não são inconscientemente articuladas e nem estão
necessariamente associadas ao gosto de seus praticantes. Este autor desacredita o
modelo do consumidor de cultura proposto pela teoria elite/massa, orientado
estritamente pelas suas preferências musicais, cinéfilas, etc. Para ele, as práticas estão
associadas às circunstâncias em que os atores se encontram e com o conjunto eclético de
disposições que eles incorporaram ao longo de suas vidas – e é assim que a aceitação do
samba tornou-se ampla. O comportamento de consumo de cultura não é submetido a um
princípio determinante – o habitus – que assegure pureza no conjunto dos gostos e
equivalência no nível das escolhas; por isso os perfis individuais de preferências
discrepantes predominam na população. Pela constatação da alta freqüência das
variações individuais, Lahire não acredita na força coercitiva do habitus, com sua
atuação em todos os âmbitos da vida social dos indivíduos, abrangente, ordenadora e
efetiva das disposições incorporadas. A ampla adesão ao samba mostra essa tendência

73
dos indivíduos se interessarem por criações culturais destoantes em relação às suas
posições no espaço social. Para ele, a pluralidade de disposições incorporadas pelos
atores e o contexto de consumo são responsáveis por tal conduta dispersa em matéria de
legitimidade cultural, da qual o samba é exemplo. Os indivíduos, ao longo de sua
existência, envolvem-se em processos de socialização heterogêneos, onde são
influenciados pelas pessoas com as quais mantêm alguma espécie de vínculo. Nestas
interações, os gostos e competências culturais vão sendo construídas, e a variedade das
disposições internalizadas se deve a esse contato contínuo com a alteridade. Não se
pode esquecer também, aponta ele, de que o consumo cultural está associado às
motivações e ocasiões que o favorecem. As práticas culturais menos legítimas estão
associadas ao lazer, à sociabilidade, ao relaxamento e a festividades. As mais legítimas,
ao gozo estético, à instrução, ao cultivo de conhecimento, à projeção de distinção e à
obrigação cultural. Conforme se vê, para Bernard Lahire a assimilação de competências
culturais múltiplas e até contraditórias é possível, e é graças a elas que as pessoas “mais
improváveis”, gostaram de samba no curso de sua trajetória social. A ascensão social do
samba a partir dos guetos cariocas revela a propriedade do argumento de Lahire de que
não se vive numa redoma de purezas ou só imerso no “lixo” cultural. O contato das
pessoas umas com as outras, cada qual com suas propriedades, propicia a aprendizagem
e a troca. As oportunidades de consumo favorecem o trânsito por obras, apresentações e
produtos dos diferentes níveis de legitimidade, e o efeito de isso tudo é a dissonância no
nível de legitimidade das práticas culturais dos indivíduos. Por isso é que o morro, as
escolas, as rodas, os instrumentos de percussão, a batida, as letras, o ritmo, o disco e a
dança do samba agradam até mesmo a quem, aparentemente, não tem qualquer relação
com eles. O samba mostra que é sociologicamente compreensível a possibilidade de
escolhas antagônicas. Os atores sociais não agem compulsivamente em função das
orientações de classe prescritas pelo habitus. Pelo contrário, munidos das mais adversas
disposições culturais, os consumidores de cultura – de qualquer posição social – têm
uma relação com a música cuja finalidade também pode ser o entretenimento, o desejo
de dançar e de cantar ou assistir à performance das passistas e dos sambistas. O modelo
do consumidor proposto por Bourdieu, o qual agiria compulsivamente em função das
suas preferências mais arraigadas, não se confirma na prática (LAHIRE, 2006). Os
indivíduos mantêm relações múltiplas com os produtos culturais que variam conforme a
ocasião de consumo, conforme as circunstâncias práticas da ação. Os atores não são â

74
prova do contexto em que se encontram, e nem são árduos representantes do gosto da
classe que ocupam.
Outra constatação da Teoria da Legitimidade Cultural não verificada na
ascensão social do samba diz respeito aos sentidos tomados pela apropriação cultural na
estrutura social. Aqueles autores verificaram que as classes altas costumam ser
referência cultural e assim projetam sua hegemonia. As classes inferiores caracterizam-
se por observar (e legitimar) a cultura dominante que, para se manter como tal, deve ser
restrita aos segmentos mais altos. Portanto, de acordo com esta perspectiva, a difusão
cultural é hierárquica, pois as classes inferiores imitam os costumes, gostos e hábitos
culturais das classes superiores que, para restituir o contraste social que as dignifica,
reinventam outras modas e práticas, inacessíveis.
O gosto pelo samba evidencia que agrupamentos populares podem ser referência
cultural e que as classes dominantes e médias também se apropriam das produções de
estratos inferiores. O samba, ritmo originário dos guetos cariocas, comprova que as
classes populares não cumprem somente a função de ser o contraste, a referência
negativa, o modelo a evitar; no caso do samba, elas são a fonte onde a sociedade foi
buscar o samba para ouvi-lo, para gravá-lo, para comprá-lo ou para dançá-lo, conforme
atestam os dados históricos. Além disso, se a conservação da distância dos segmentos
subalternos por meio do gosto fosse meta suprema e inexorável do comportamento das
elites, ir a shows, freqüentar os ensaios das escolas, se divertir nas rodas da periferia,
assistir aos desfiles, enfim, gostar de samba, seria impensável nestas posições do espaço
social.
O gosto pelo samba também não se permite analisar sociologicamente conforme
o conceito de cultura popular proposto por Pierre Bourdieu. Em função de suas
peculiaridades morfológicas, de sua dinâmica própria e de sua origem social específica,
o samba não se enquadra no conceito de cultura popular proposto por este autor porque,
segundo ele, as classes populares legitimam uma cultura “oficial” e, diante dela, seus
membros sentem-se incapazes, incompetentes, fracassados e culturalmente indignos, o
que é uma forma de reconhecimento dos valores dominantes. (BOURDIEU, 2008).
Como solução para a inferioridade, conseguem “substitutos” para os itens de consumo
tidos como dignos. Segundo Bourdieu, portanto não há um estilo de vida próprio da
classe popular; o que se tem é uma versão empobrecida dos hábitos culturais elitizados
adaptados às suas condições sócio-financeiras. A chamada cultura popular nada mais
designa que uma forma mutilada e empobrecida da cultura dominante. A incapacidade

75
dessa classe de formular seus próprios fins é, para este autor, a forma mais sutil da
alienação (BOURDIEU, 2008).
O reconhecimento de uma cultura dominante está também na imitação e no
aprendizado (muitas vezes tardio) dos hábitos, valores e esquemas de apreciação dessa
cultura por aqueles que não são membros legítimos dela. (BOURDIEU, 2008). Essa
postura consiste, de acordo com Pierre Bourdieu, num abandono de uma cultura
popularesca em proveito de um refinamento que é aprendido às pressas. Como este
processo de apreensão cultural costuma ser extemporâneo, desconexo e incompleto, os
indivíduos interessados em viver acima de suas próprias condições muitas vezes
enfrentam situações adversas, cometendo uma confusão de gêneros e hierarquias
quando falam de cinema ou pintura ou vulgarizando a noção de ciência em função do
material de leitura a que têm acesso. O autor aponta que esta cultura média constitui um
acervo de saberes disparatados, desconjuntados, obsoletos e quase sempre
desclassificados que, mesmo se pensando em oposição à vulgaridade, remanesce nela,
pois nada mais é que uma “cultura em miniatura” da cultura dominante (BOURDIEU,
2008). Ele vê na cultura popular um reflexo depauperado de uma cultura hegemônica,
um conjunto de usos e costumes que só demonstram reconhecimento de uma
legitimidade única e desigualmente acessível. Há uma cultura distinta, cultivada e
pautada por normas dominantes do gosto; a esta se opõe uma forma caricata,
despropositada e genérica, a popular.

Aqueles que acreditam na existência de uma “cultura popular”,


verdadeira aliança de palavras através da qual se impõe,
independentemente de nossa vontade, a definição dominante da
cultura, devem perder a esperança de encontrar, se procederem a uma
verificação mais sutil, algo além dos fragmentos dispersos de uma
cultura erudita, mais ou menos antiga (à semelhança dos saberes “na
área da medicina”), selecionados e reinterpretados, evidentemente, em
função dos princípios fundamentais do habitus de classes e integrados
na visão unitária do mundo que ele engendra e não a contracultura
invocada por eles, cultura realmente erguida contra a cultura
dominante, cientemente reivindicada como símbolo de estatuto ou
profissão de existência separada. (BOURDIEU, 2008, p. 369).

De acordo com esta concepção, os indivíduos de classes inferiores são apenas


receptores dos costumes e dos valores a eles transmitidos por camadas superiores,
reproduzindo-os conforme suas condições de existência, valorizando as práticas
culturais de camadas superiores, atestando a vigência de uma estética, de um sistema de
hábitos e de representações e, desta forma, confirmando o reconhecimento, da

76
superioridade de uma forma de cultura sobre outra. No enfoque de Bourdieu, as
camadas desprovidas de capital cultural são incapazes de serem produtores de cultura e
se percebem baseados na distância em que se situam em relação à cultura legítima.
Bridget Fowler (1998) discorda de Bourdieu quando este afirma que, em
sociedades capitalistas, não há arte popular enquanto uma instância de produção original
de cultura. Fowler coloca que, “retratando a cultura popular de maneira hiper-
simplificada, extremamente constrangida pelo „gosto da necessidade‟” (FOWLER,
1998: 4)24, Bourdieu é passível de críticas porque desconsidera que segmentos
dominados da sociedade sejam capazes de elaborações artísticas e culturais
independentes, que não encerrem substituições ou imitações que impliquem
reconhecimento de uma cultura legítima a ser perseguida. Focando em canções
popularescas, comédias stand-up, circos e fotografias de paisagens, Bourdieu não se
depara com produções culturais independentes, como o Jazz, por exemplo, manifestação
artística popular moderna por excelência. Além deste ritmo musical, ela cita que
“[e]studos históricos britânicos têm mostrado como culturas independentes surgiram em
fábricas e minas, particularmente quando estas se localizam numa comunidade
homogênea [...]”25 (FOWLER, 1998: 154).
Diante desta divergência com Bourdieu, Fowler recomenda que se entenda o
campo cultural diferentemente, reconhecendo a possibilidade de que trabalhos de teor
artístico possam se desenvolver fora de seus espaços consagrados de produção: autores
da classe trabalhadora, artes de minorias étnicas, romancistas pós-coloniais, etc.
Neste sentido, o samba é mais um destes exemplos de invenção artística nas
classes inferiores. O núcleo comunitário negro que engendrou uma musicalidade
própria, original e autônoma revela o quanto aqueles indivíduos se mostraram astutos e
resilientes quanto à opressão sofrida e à repressão cultural das autoridades da época. O
gênero que desenvolveram não remete a nenhuma forma dominante de cultura vigente
no contexto, e nem se pautava pelos critérios desta. Era, de fato, uma elaboração
cultural própria a uma população que, submetida a toda sorte de dominação no período
imediatamente após a abolição, não encontrava canais de expressão de suas tradições e
de seus costumes. O samba é uma invenção dos morros e de outros redutos
24
Traduzido livremente de : “[…] portraying an oversimplified working-class culture, so constrained by
the „taste for necessity‟ […] (FOWLER, 1998: 4).
25
Traduzido livremente de : “British historical studies have shown how independent cultures emerged in
factories and mines, particularly where these have been located within a homogeneous community […]”
(Fowler, 1998: 154).

77
marginalizados, não aderindo, neste momento de sua formação, a nenhum imperativo
dominante. Logo, não se pode conceber estes atores culturais populares tal como
Bourdieu: passivos, omissos, imitadores e inconscientes da própria violência simbólica
da qual eram vítima. Pelo contrário, confirmam empiricamente que há elaboração
cultural própria nas camadas populares e, portanto, autonomia na cultura popular. O
samba surge no começo do século XX como expressão periférica que adentrou
progressivamente a sociedade brasileira, tornando-se símbolo da autenticidade nacional,
síntese da cultura brasileira, lugar comum no consumo cultural de todas as classes e
opção de entretenimento das elites urbanas.
Por estas razões, o samba presta-se mais à análise segundo a noção de cultura
popular de Michel de Certeau (1994), embora não se permita interpretar inteiramente
por esta, em função de seu próprio ineditismo no cenário musical brasileiro à época.
Para Certeau, a cultura popular configura uma forma de resistência perante a dominação
da qual uma coletividade seja vítima. Entretanto, para este autor, assim como para
Bourdieu, a cultura popular não engendra produtos próprios; somente inventa usos,
significados e costumes específicos ao que é colocado, que é uma maneira encontrada
por aqueles submissos de utilizar os sistemas impostos, sendo uma resistência a
legitimações dogmáticas. A cultura popular, para Certeau, é a subversão da ordem que
se tentou implantar, um rearranjo dos códigos impostos, embora não seja uma superação
ou autonomia perante tais códigos. Não é o caso do samba, pois este não consiste numa
releitura ou numa reapropriação inovadora de uma musicalidade já estabelecida; pelo
contrário, é uma prática cultural nova e genuína. O samba é uma forma de cultura
popular independente e inovadora tanto na forma, no conteúdo, na produção quanto na
divulgação, enquanto para este autor a autonomia da cultura popular está na arte de se
utilizar aqueles produtos que não são próprios das camadas populares, mas colocados
para estas. O samba foi a autenticidade cultural que proliferou socialmente a partir do
morro.
A análise do gosto pelo samba na sociedade brasileira possibilita averiguar que,
mesmo que as influências de classe nas escolhas musicais sejam inegáveis, a fluidez
também é um fenômeno inerente ao consumo cultural. A trajetória social descrita pelo
samba ao longo de sua história mostra a movimentação de pessoas de classes altas e
médias por ritmos dos mais variados graus de legitimidade, forma de comportamento
que as determinações da posição ocupada no espaço social não são capazes de apartar.
Do mesmo modo, as maneiras como os indivíduos se apropriam das criações musicais

78
são diversas, podendo ser as mais casuais e despretensiosas possíveis, o que favorece
ainda mais o trânsito pela hierarquia cultural. Com o samba, se vê também que as
possibilidades de adesão cultural não são unidirecionais; assim como as classes altas são
o modelo a ser copiado, seus representantes também se encantam pela cultura popular,
das camadas baixas. Os focos de criação autêntica também são variados, e não restritos
aos setores proeminentes hierarquicamente da sociedade, haja vistas a origem social
deste estilo musical. Toda essa fluidez verificada na apreciação do samba comprova que
o gosto cultural não se presta a correspondências precisas e infalíveis, em que as elites
se restringem à alta cultura, as camadas médias preferem as artes médias e, os
segmentos populares, os produtos culturais pouco legítimos. O gosto pelo samba é um
desses exemplos de que as relações das camadas sociais com a cultura não são exatas;
pelo contrário, são complexas, volúveis, multidirecionais, ambivalentes e até
contraditórias, mas com causalidades sociais nítidas.

79
80
7 Conclusão

A realização deste trabalho permitiu concluir que, se as preferências musicais


são referências de posição dos indivíduos no espaço social, o samba não é bom
indicador, dado que é preferência comum. Embora sua origem social seja muito
especificamente situada na realidade social brasileira (e, especialmente, a carioca), ele
foi gradativamente ganhando espaço no quadro de preferências de diversas camadas
sociais, revelando que classes subalternas também engendram processos de criação e de
divulgação cultural criativos e autônomos, invertendo a direção da imitação que grupos
hierarquicamente dispostos fazem da cultura uns dos outros e embaçando fronteiras do
gosto de classes.
A partir desta análise do samba constatou-se que a cultura popular não é só um
acúmulo de imitações por parte das camadas baixas, cujo propósito é tentar conseguir
uma igualdade momentânea de status, desconstruída a cada moda inventada pelas
classes mais elevadas. O samba, assim como o jazz, o maracatu, o forró ou o funk
carioca, são invenções de membros desses estratos. O samba não remete a nenhum
ritmo legítimo vigente à época de sua origem e nem se guiou, em seus primórdios, por
referências e ditames da cultura dominante, resultando numa invenção independente
duma parcela da população do Rio de Janeiro marginalizada em vários aspectos.
Este estudo do samba revelou também que o movimento de apropriação nem
sempre é hegemônico, e que a dominação cultural, cuja inexistência é inegável, não
aparta a possibilidade das elites e classes médias de se interessarem pela cultura das
classes populares. Freqüentemente, se considera que estes agrupamentos subalternos se
prestam à cópia, à aceitação passiva dos valores, das preferências e dos costumes
culturais de agrupamentos imediatamente acima deles na pirâmide social, cujo efeito é
criação de novas modas e gostos como recurso de restauração da distinção em relação
aos estratos mais baixos. O samba, no entanto, comprova que o movimento contrário
também é possível: produto das populações marginalizadas, agradou a ouvintes de todas
as classes sociais, experimentando, conforme se detalhou aqui, uma ascensão social ao
longo do século XX.
Observou-se, também, através de tal subversão na direção do fluxo da
apropriação cultural, que os determinantes da posição de classe no gosto cultural,
embora existam, não impedem que as preferências artísticas de diferentes segmentos
sociais sejam “impuras”, heterogêneas segundo seu nível de legitimidade. Extrapolando

81
as camadas populares, o samba tornou-se fator comum de preferência musical de toda a
estrutura social, o que lhe impede de ser uma manifestação cultural cujo gosto por ela
expresse distinção. Popular que é, contribuiu, em suas origens, para a construção de
uma identidade negra e marginalizada e, ao longo de sua história, para a dissonância no
conjunto das apreciações musicais das camadas médias e elites brasileiras. O gosto por
este ritmo dissipa a idéia de que, quanto às preferências artísticas, as classes sociais são
grupos fechados, estanques, de costumes e hábitos culturais nitidamente reservados e
que posições eminentes expressam sua hegemonia através desse exclusivismo na fruição
das artes mais elevadas. O samba representa a ambivalência, sendo um embaçamento de
fronteiras no consumo cultural, sendo muitas vezes a quebra de homogeneidade no nível
do gosto dos indivíduos.
Sua ampla aceitação pelos demais estratos sociais não significa, contudo, que
não haja estratificação nas ocasiões de seu consumo, que as distâncias sociais sejam
esquecidas, que se vive uma época de maior tolerância cultural ou que as formas de
apropriação que dele são feitas não sejam segmentadas. Mesmo que o gosto pelo samba
perpasse diferentes classes, as formas nas quais este consumo cultural é perpetrado são
notadamente diferentes. É nítido e corriqueiro nas grandes cidades a diferenciação entre
quem freqüenta casas noturnas onde, entre outros ritmos, se toca samba, e aqueles que
freqüentam rodas e quadras de samba nos subúrbios. Mesmo a significação dada ao
samba remete a posições desiguais no espaço social, haja vistas a separação que o
"sambista de zona sul" faz entre samba e pagode – por detestar este último – atitude
menos freqüente nos estratos mais populares.

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