Você está na página 1de 10

A natureza como espaço de experiência: historiografia e nacionalidade no Brasil do

século XIX
Vânia do Carmo
Mestranda em História Social pela UNIRIO
Orientador: Prof. Dr. Pedro Spinola Pereira Caldas
vaninhadocarmo@gmail.com

Resumo:
Durante o século XIX no continente americano, e, por conseguinte no Brasil, os múltiplos
discursos a respeito da natureza emergiram como argumento de afirmação das nacionalidades
e de projetos de Estado. Sendo assim, esse trabalho se propõe a discutir os usos políticos do
discurso sobre a natureza para a afirmação da nacionalidade brasileira no século XIX a partir
da historiografia, sobretudo em Varnhagen, por meio das categorias de “espaço de
experiência” e “horizonte de expectativa” de Koselleck.
Palavras-chaves: Natureza; historiografia; experiência.
Abstract:
During the nineteenth century in the American continent, and therefore in Brazil, the multiple
discourses about the nature emerged as argument assertion of nationalities and state
projects. Thus, this paper aims to discuss the political uses of the discourse on the nature as
the claim for the Brazilian nationality in the nineteenth century from the historiography,
especially in Varnhagen, through the categories of "space of experience" and "horizon of
expectation "of Koselleck.
Keywords: Nature; historiography; experience.

Pensar as categorias de “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa” para entender o


entrelaçamento do passado e do futuro nos discursos nacionalistas produzidos no continente
americano sobre o meio natural, forjados no século XIX, abre possibilidades para um debate
sobre dois dos elementos usados e manuseados para a constituição da identidade nacional
brasileira nos Oitocentos: a natureza e a história. Para tanto, exporemos as definições de
Reinhart Koselleck sobre experiência e expectativa, em seguida falaremos dos usos do
discurso sobre a natureza americana e brasileira no século XIX, e por fim faremos uma
análise da abordagem de Varnhagen sobre os aspectos naturais do Brasil.

O século XIX no continente americano, no contexto pós-independências, propiciou o emergir


de múltiplos discursos a respeito da natureza como argumento de afirmação das
nacionalidades e de projetos de Estado. Se por um lado os discursos de viajantes e naturalistas
foram usados, para além da real intenção de seus autores, como meio de afirmação e
integração nacional, por outro lado o empenho em novos estudos e viagens também se
efetivou para esse fim.

I. De acordo com Koselleck1, experiência e expectativa são duas categorias que podem
pretender estabelecer as condições das histórias possíveis. Todas as histórias carregam em si
experiências vividas e expectativas dos que atuam sobre determinados acontecimentos, ou os
sofrem. Não há expectativa sem experiência, e o inverso também procede. É pertinente falar
em “espaço de experiência”, pois reúne lembranças e recordações da própria vida e da vida
dos outros formando um todo no qual diversos “estratos de tempos anteriores estão
simultaneamente presentes, sem que haja referência a um antes e um depois” 2 . Do mesmo
modo pode se falar em “horizonte de expectativa”, pois horizonte se refere a “aquela linha por
trás da qual se abre no futuro um novo espaço de experiência, mas um espaço que ainda não
pode ser contemplado”3, a expectativa não pode ser experimentada, é um vislumbrar, um
devir tal qual o horizonte.

A experiência é o passado atual, onde o que aconteceu foi incorporado e pode ser lembrado. A
expectativa é o futuro presente, se volta para o que ainda não foi experimentado, para o que
apenas pode ser previsto. Passado e futuro nunca coincidem, tal qual uma expectativa nunca
pode se deduzida absolutamente da experiência. A presença do passado é diferente da
presença do futuro. Mas, a expectativa não pode ser adquirida sem a experiência, e o
rompimento do horizonte de expectativa cria uma experiência nova. As experiências orientam
as expectativas, sendo tais experiências cientificamente organizadas ou não. No entanto, o
espaço de experiência nunca determina o horizonte de expectativa. Por isso não há relação
estática entre espaço de experiência e horizonte de expectativa, eles entrelaçam passado e
futuro, no hoje, de maneira desigual.

O entrelaçar do passado e do futuro a partir da experiência e da expectativa são notórios nas


abordagens sobre a natureza na América e no Brasil oitocentista, já que dela se tiraria tanto
argumentos para a justificação da unidade nacional e do tom ufanista de grandeza e
peculiaridade nacional, quanto para guiar as nações a um futuro glorioso de superação.

II. Entre os séculos XVIII e XIX muitos naturalistas e/ou viajantes traçavam relações entre as
características naturais de uma região e a sua população local, o caráter dos indivíduos e as
características das nações4. Nos relatos os viajantes expressavam o deslumbramento e o poder
evocativo da exuberante natureza tropical americana; a particularidade natural provocava
encantamento e estranhamento. A magnitude da natureza impressionava vivamente os
viajantes e naturalistas. Mas se por um lado a natureza repercutia admiração, fruição e
estética, as análises a respeito do homem acenam para uma necessidade de mudança.
Enfatiza-se a força da natureza e fraqueza do homem, e por isso a natureza viria a configurar-
se como a principal razão do orgulho pátrio, perspectiva esta que tem origem desde os
primórdios da presença europeia5. A ideia de pátria no Brasil ligava-se diretamente a de
natureza, e se justificava pela natureza. A grandiosidade do país seria consequência da
exuberância de sua natureza. As visões desalentadas dos viajantes eram resultado do paradoxo
da debilidade e desorganização institucional frente ás condições naturais grandiosas. Essa
visão eufórica das condições naturais do Brasil foi absorvida durante a segunda metade do
Oitocentos pelos intelectuais brasileiros ao se empenharem na formulação da nacionalidade
do país recém-emancipado – a grandiosidade da natureza foi utilizada como recurso de
afirmação ideológica.

Maria Lígia Prado6, com a intenção de entender a relação entre natureza e identidade nacional
no continente americano, comparou o caso argentino com o caso norte-americano, utilizando-
se do pensamento de Jakson Turner e de Domingos Sarmiento. Para tanto ela inicia sua
reflexão abordando textos clássicos do século XVIII produzidos por naturalistas sobre a
América. Em Buffon vê-se a tese da debilidade ou imaturidade do continente americano, e
para De Pauw a América é degenerada, fruto da maldição de uma natureza fraca e
corrompida, decaída e decadente. Inaugurando a perspectiva positiva sobre o continente
americano, Alexander von Humbolt opôs-se duramente a ideia de imaturidade do continente
americano, e se dedicou a destacar as maravilhas de sua natureza.

Segundo Prado, os discursos científicos sobre a natureza foram carregados de ideias e noções
por vezes contraditórias, mas permitem possibilidades de usos para fins políticos e
ideológicos. Nos Estados Unidos do início do século XIX muitos se esforçaram para
comprovar que a natureza do Novo Mundo era superior à do Velho Mundo. Sustentava-se que
os Estados Unidos tinham recebido da Divina Providência uma missão civilizadora que
justificava a expansão para o Oeste – era o Destino Manifesto. O clima, os indígenas e a
natureza norte-americana eram superiores aos europeus. E esse discurso era muito repetido. A
wilderness7 era exaltada em contraposição ao velho e desgastado mundo europeu. A
wilderness era o verdadeiro caminho da revelação divina, e estava no centro da construção da
identidade e do nacionalismo norte-americanos. A visão da natureza privilegiada por Deus
alinhava-se com a ideia de começo para a nação norte-americana que a conectava com o
futuro, pois a estética, a grandeza, e as possibilidades econômicas de exploração de todas as
riquezas naturais confluíam para um futuro repleto de glórias.

Para o historiador Frederick Jackson Turner as relações entre o Leste e o Oeste foram
fundamentais para os Estados Unidos. Ele coloca a natureza estadunidense como inigualável,
e destaca a fronteira móvel que desde os tempos coloniais empurravam os norte-americanos
para o Oeste. Para Turner o contato com a wilderness promovia renascimento, regeneração e
rejuvenescimento. A fronteira promoveu a formação da nacionalidade do povo norte-
americano, produziu o individualismo e fortaleceu a democracia. A fronteira possibilitou a
confiança no futuro. Para esse historiador a democracia, o nacionalismo e as instituições
políticas dos Estados Unidos sempre estiveram dependentes do avanço da fronteira natural (e
muitos questionam se isso não é um convite a continuidade da expansão que justificaria as
futuras práticas imperialistas norte-americanas). No caso dos Estados Unidos, a partir de
Turner, o espaço de experiência engendrado pela wilderness e pela fronteira móvel aponta
para um horizonte de expectativa de superação, fortalecimento e sucessos.

A relação entre natureza e política é estabelecida também em Domingos Faustino Sarmiento


no livro Facundo ou Civilização e Barbárie, de 1845. Na dicotomia civilização e barbárie
Sarmiento coloca o campo (confundido com o pampa) como lugar de barbárie e a cidade
como lugar de civilização, e o gaúcho como protótipo de bárbaro (apesar de colocar o gaúcho
como forte, enérgico e altivo, ele é sem instrução, e, desta forma, limitado). Na obra de
Sarmiento a descrição da imensidão dos pampas apresenta-se negativamente, pois a
imensidão produz insegurança, conduz a uma vida sem política, na qual o gaúcho é incapaz de
se organizar em sociedade, e por isso o pampa é propicio ao despotismo. A existência do
pampa constitui-se, em Sarmiento, um obstáculo a ser superado – o atraso argentino é
resultado do pampa. A natureza é uma dificuldade a ser superada, condicionou uma gama de
experiências que resultaram em atraso e distanciamento da civilização, e por isso abre um
horizonte de expectativa dificultoso, de esforço e necessidade superação.

Assim, para Turner o contato com a natureza selvagem produz um futuro radioso,
democracia, força individual. Para Sarmiento esse contato produz despotismo, ausência da res
publica, a transformação do gaúcho em bárbaro. No contexto em que Sarmiento produz sua
obra a situação política da Argentina era difícil e repercutia no atraso da economia, ele não
reconhecia a civilização nos pampas, e por isso para que o país conseguisse superar suas
dificuldades e engendrasse um futuro melhor, Sarmiento defende o rompimento com o
passado, e o atraso também condicionado pelo meio natural, por meio de mudanças radicais
na condução política argentina.

E Maria Ligia Prado conclui sobre as perspectivas de Turner e Sarmiento que

[...] é preciso salientar que essas interpretações pesam sobre a sociedade e


contribuem para a configuração de uma autoimagem nacional mais positiva ou mais
negativa. As soluções políticas de uma sociedade estão ligadas a um espectro de
possibilidades dadas por sua história; nelas cabem as questões materiais, mas
também o repertório de ideias, imagens e símbolos de uma sociedade. 8

Outra análise enriquecedora sobre o papel da natureza como elemento constituinte da


nacionalidade foi feita por Maria Elisa Noronha de Sá9 quando destaca a importância do meio
natural na constituição das identidades nacionais, e como as representações espaciais
dicotômicas pampa/cidade e sertão/litoral são utilizadas como instrumentos de análise por
Sarmiento e pelo Visconde de Uruguai. Tanto para Sarmiento quanto para Uruguai a natureza
configura-se como elemento fundamental para a constituição da nacionalidade. Nas suas
elaborações de projetos de nação as ideias de civilização e barbárie aplicadas a natureza
aparecerão em imagens dicotômicas como pampa/cidade para a Argentina de Sarmiento, e
sertão/litoral para o Brasil de Uruguai.

De acordo com Sá, a ênfase á importância da natureza no processo de construção das


identidades nacionais nas Américas tem relação direta com a concepção de nação em que a
etnicidade é usada como fator de legitimação desses Estados em consolidação. Essa relação
entre o meio natural e a ideia de nação teve fundamento na constante referência a pujança da
natureza e a grandiosidade do território nas Américas, em termos ora positivos, ora negativos,
mas sempre singulares. A identificação entre nação e natureza conferia a singularidade à
realidade americana, o que já acontecia antes dos processos de independência. A partir da
natureza projetava-se um futuro glorioso, com infindáveis possibilidades ou um futuro
marcado por desafios ligados ás limitações impostas por essa natureza selvagem e bárbara. A
natureza foi recurso de afirmação americana, que no seio das formulações nacionais não se
voltava nem para o passado colonial, nem para o passado pré-colombiano, mas as qualidades
físicas do continente (vale lembrar que tal argumento se aplica a América ibérica, com
exceção das regiões onde houve a presença dos impérios asteca, incaico e maia, onde se
buscou nesse passado pré-colombiano argumentos para a afirmação de uma legitimidade). A
natureza americana integra e identifica as realidades nacionais.
Da análise de Sá percebe-se que o pampa e o sertão ao mesmo tempo em que eram vinculados
a ideia de barbárie, por Sarmiento e Uruguai respectivamente, dão especificidade á identidade
nacional argentina e brasileira. Do impasse entre a civilização e barbárie emergia a
singularidade, algo único e especifico ao povo e à realidade americana. A natureza, assim,
constrói e propicia um espaço de experiência que justifica e constitui a nacionalidade, e
vislumbra um horizonte de expectativa em que as dificuldades impostas, por essa mesma
natureza, precisam ser superadas.

Kaori Kodama10, ao discutir a questão da etnografia no Instituto Histórico e Geográfico do


Brasil (IHGB) no momento de afirmação dos projetos nacionais para o Brasil imperial, se
atém ao debate a respeito do papel do indígena neste ensejo nacionalista, considerando os
campos do conhecimento utilizados como recurso de construção de discursos específicos
sobre o “índio brasileiro” em meados do século XIX. Tal debate foi proferido por letrados
empenhados em articular uma alteridade peculiar nacional com “um ideal sobre a composição
dos futuros cidadãos do Império”. No transcorrer desse debate os índios foram destacados por
seu conhecimento da natureza do Brasil, e foram associados a ela. E tanto a natureza como os
índios foram enaltecidos como características próprias da identidade brasileira, como
elementos determinantes na reformulação dos sentidos de “brasileiro”. A paisagem natural
passou a ser utilizada pela elite letrada como elemento que desce base para a definição do que
de fato é nacional. A paisagem configurara como base para uma nação que ainda se definia e
por si só fornecia argumento para o discurso de grandeza e unidade nacionais – tal discurso se
valeu de inúmeras descrições de naturalistas e viajantes. Assim como o índio sustentava o
mito de origem da nação brasileira, o conhecimento geográfico dava força ao mito da unidade
do território nacional, de tal forma que a unidade territorial era tida como produto direto da
própria natureza.

III. Na “Descrição geral do Brasil”, feita por Francisco Adolfo de Varnhagen11 em sua
História geral do Brasil a exposição das condições naturais brasileiras são feitas de modo que
temas como unidade nacional, a singularidade brasileira frente a outras nações e a elevação
dessa natureza são colocados num tom ufanista de afirmação dos valores nacionais.

O tamanho do território nacional não deixa de ser destacado: “hoje em dia um dos Estados de
maior extensão no globo, de cuja superfície terrestre abrange proximamente a décima quinta
parte”12. A unidade territorial da antiga colônia é que assegura essa grande extensão, motivo
de destaque e força. Unidade que é tantas vezes apresentada como consequência das próprias
características naturais a partir das redes fluviais que ligam todo o império, a ausência de
vulcões e terremotos em toda a extensão do império mostram como se trata de um todo uno e
agraciado, diferente das nações limítrofes que sofrem de tais flagelos. Mesmo com uma breve
consideração da variedade climática, Varnhagen enfoca na visão geral do clima como “quente
e úmido” em todo o território, dando mais uma vez a ideia de unidade. Situa certas plantas,
frutas, animais e pássaros em determinadas regiões enaltecendo a originalidade, o exótico e o
potencial comercial de toda essa variedade.

O clima e as plantas são comparados aos da Europa, os animais são comparados aos da
África. Mas nunca de maneira a depreciar o que se acha no Brasil. O céu do Sul é mais
brilhante que o do Norte. A variedade de aves brasileiras é a maior da Terra – Varnhagen
menciona a crença em seis mil espécies. A natureza brasileira é singular, é diferente da
europeia e da africana, mas não é inferior a elas. Carece, segundo Varnhagem, da intervenção
da civilização.

A grandeza de uma natureza que ainda precisava ser “civilizada” é expressiva quando
Varnhagem em sua descrição fala da extensão territorial e da grande diversidade natural. As
limitações do homem diante de tão grandiosa natureza são evidenciadas na seguinte
passagem: “Apesar de tanta vida e variedade das matas-virgens, apresentam elas um aspecto
sombrio, ante o qual o homem se contrista, sentindo que o coração se lhe aperta, como no
meio dos mares, ante a imensidade do oceano”13. O aspecto sombrio das matas entristece tanto
o homem como a imensidão do mar, o faz se sentir limitado e frágil. Trata-se um ambiente
mais favorável aos animais selvagens do que ao homem. E mesmo se ele se esforçar para
dominar este espaço, o homem dificilmente conseguirá vencer empecilhos constantemente
impostos pela força da vegetação selvagem.

O exótico e a originalidade do Brasil por meio de suas plantas, animais e pássaros são
pontuados em todo o texto descritivo de Varnhagen, mas num parágrafo da parte final do
texto isso é exemplarmente colocado:

Para ser mais original, oferece o país vários contrastes originais. A par de plantas de
muita virtude medicinal, à frente das quais citaremos a copaíba, a ipecacuanha, o
mate e guaraná, produz, também venenos atrocíssimos. Ao perseguirdes a
inofensiva anta, a anfíbia paca, a meiga cutia, o corredor veado campeiro ou do
mato, estais em risco de encontrar um faminto jaguar, ou uma medonha canguçu
que poderíamos talvez chamar de hiena no Brasil. Ao apontardes à ágil sariema que
avulta no campo, ou ao gordo macuco que rastolha o mato, ou ao astuto jacu,
escondido na ramagem de ipeúva, podereis ver-vos surpreendido pela picada
peçonhenta do insidioso réptil que, num instante, decidirá do fio da vida que havíeis
recebido do Criador; e achando-vos à beira de um rio, não estais livre de que vos
esteja tocaiando algum traidor jacaré ou medonho sucuiú...14

Nesse trecho as propriedades medicinais das plantas brasileiras são inicialmente colocadas,
mas a peculiaridade natural brasileira é apresentada como uma narrativa que instiga o medo e
expressa a força da natureza brasileira. Diante de toda essa força e dos males dela recorrentes,
o que pode fazer o homem? Qual é o papel do homem que tende ser vítima dessa natureza
selvagem e bruta?

Na passagem seguinte vem alento como resposta:

Mas ânimo! Que doma a indústria humana! Cumpre à civilização aproveitar e ainda
aperfeiçoar o bom, e prevenir ou destruir o mau.Tempos houve em que nalgumas
das terras, hoje cultivadas ou povoadas de cidades na Europa o feroz urso se fazia
temer...E o lobo carniceiro surpreende e devora ainda ovelha descuidada pelo rafeiro
do pastor; e a peçonhenta víbora, e os lacraus e as tarântulas, e as nojentas osgas e
salamandras, ainda se não extirparam dos mais belos jardins das penínsulas pelas
águas do Mediterrâneo.15

O homem deve se empenhar em dominar esta natureza, prevenindo e destruindo o mau, e


aproveitando e aperfeiçoando o bom. Assim como os europeus conseguiram dominar a sua
realidade natural por meio de sua civilização, o mesmo acontecerá no Brasil. E conclui
Varnhagen sua descrição dizendo que mesmo sendo selvagem e cheio de contrastes, seu solo
é rico, sua paisagem natural é magnífica, e seus portos favoráveis ao comércio.

O autor faz uma descrição das condições naturais do Brasil usando corriqueiramente termos
indígenas e científicos. Exalta a originalidade e o exótico. Mostra a força da natureza
brasileira (dos rios, das plantas, dos animais). Exalta o tamanho continental do Brasil. Pontua
a diversidade e variedade das regiões, mas sempre converge para o geral. Compara as
condições naturais e climáticas brasileiras com a realidade da África e da Europa. Destaca o
potencial comercial da natureza brasílica. A grandeza da natureza e a pequenez do homem
mostra o quanto a cabe a civilização domar esta natureza. Assim como a Europa já foi
domada, agora era a hora do mesmo ocorrer no Brasil. A natureza, desta forma, figura-se
como espaço de experiência que forjou a nação e lhe dá características próprias, que transpõe
para a nação sua grandeza e exuberância, mas que também lhe outorga dificuldades a serem
superadas. E assim, abre um horizonte de expectativa onde as dificuldades impostas pelo
espaço natural deveriam ser suplantadas, e a possibilidade de um futuro grandioso se
descortina ante aos atributos e riquezas da natureza brasílica.

IV. Ao longo do século XIX o discurso sobre natureza do continente americano superou as
perspectivas negativas de Buffon e de De Pauw, e, a luz do contexto de formação dos Estados
Nacionais recém-emancipados e de afirmação de nacionalidades, assumiu-se como tanto
como uma dificuldade a ser superada quanto como um elemento de diferenciação. A
imensidão, o calor, a umidade, os perigos naturais e o vazio das instituições surgiram
enquanto principais dificuldades a serem superadas. Surge assim, a necessidade de civilizar,
do homem se impor a natureza. Mas mesmo essa natureza que precisa ser domada, ser
civilizada, expressa a singularidade do continente (ou das várias regiões do continente), é
veículo de afirmação da nacionalidade. A exuberância e a grandiosidade naturais constituem
características de força americana, força esta transferida também para o homem americano.

A natureza em Varnhagen aparece como elemento de constituição da identidade brasileira.


Assim como em Buffon, von Humbolt, Turner, Sarmiento e no Visconde de Uruguai, a
natureza para Varnhagen produziu sentidos que caracterizam e dão um perfil para a nação, e
continua a produzir sentidos. Trata-se de uma abordagem na qual o espaço natural figura-se
como espaço de experiência – por que dele vem o específico ao Brasil, foi o palco das
desventuras históricas que delinearam e conduziram a nação a ser o que era então. Ao passo
que, esta mesma natureza, impulsiona as esperanças e os medos – o horizonte de expectativa
onde as dificuldades devem ser superadas para que o Brasil se situe entre as nações gloriosas
e civilizadas.
1
KOSELLECK, Reinhart. “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”: duas categorias históricas. In: Futuro
passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006.

2
Ibdem, p 308.

3
Ibdem, p. 309.

4
KURY, Lorelai. “Viajantes-naturalista no Brasil oitocentista: experiência, relato e imagem”. História, Ciências, Saúde,
Manguinhos. Volume VIII (suplemento), pp. 863-80, 2001.

5
OLIVEIRA, Ana Rosa. “O Jardim Botânico do Rio de Janeiro e as paisagens da Corte”. In: KURY, Lorelai e GESTEIRA,
Heloísa. Ensaios de História das Ciências no Brasil. Rio de Janeiro: Eduerj, 2012.

6
PRADO, Maria Lígia. América Latina no sáculo XIX: tramas, telas e textos. São Paulo: Edusp, 2004.

7
Não há tradução exata em português para Wilderness; significa sertão, selva, lugar primitivo, natureza intocada. Mas
sem a precisão da palavra inglesa, de acordo com Maria Lígia Prado (2004, p. 187)

8
PRADO, 2004, p. 216.

9
SÁ, Maria Elisa Noronha. Civilização e Bárbarie: a construção da ideia de nação – Brasil e Argentina. Rio de Janeiro:
Garamond, 2012.

10
KODANA, Kaori. Os índios no Império do Brasil: a etnografia do IHGB entre as décadas de 1840 e 1860. Rio de Janeiro:
Editora Fiocruz; São Paulo: Edusp, 2009.

11
VARNHAGEN, Francisco Adolfo. História geral do Brasil: antes da sua separação e independência de Portugal. 10ª edição.
Rio de Janeiro: Melhoramentos, 1978.

12
Ibdem, p. 14.

13
Ibdem, p. 15

14
Ibdem, p. 16.

15
Ibdem, p. 19.

Você também pode gostar