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Capítulo 4 – Coronavírus e Meio

Ambiente: Rupturas para um Direito


Ambiental em Metamorfose

José Rubens Morato Leite


Maria Leonor Paes Cavalcanti Ferreira Codonho
Bruno Teixeira Peixoto

4.1 Introdução
A pandemia causada pelo novo coronavírus é antes um problema ambien-
tal e ecológico que apenas epidemiológico e humano. Ao redor do mundo, au-
toridades científicas, de saúde pública e epidemiológicas, não por acaso vêm
ressaltando as origens ambientais que levaram à eclosão da poderosa zoonose
Covid-19 em nível alarmante pelo globo. Com esse pano de fundo, o presente
trabalho busca investigar o background da crise ecológica e sua responsabilida-
de pela crise do novo coronavírus, interpretando tal complexidade pelo vértice
da sociedade de risco mundial, que agora age como uma metamorfose para o
mundo, alterando certezas políticas, sociais e jurídicas, de modo a exigir ruptu-
ras cruciais no Direito Ambiental vigente para a prevenção de novas crises cujos
efeitos colaterais são cada vez mais complexos, como a pandemia em curso.
Com este contexto, a primeira parte do trabalho abordará a relação do meio
ambiente com a explosão da pandemia, os entrelaçamentos com a crise ecológica
mundial, mantida pelo paradigma desenvolvimentista degradador e amparada
pelo Direito Ambiental, destacando o relatório “Frontiers 2016 Report: Emerging
Issues of Environmental Concern”, do Programa das Nações Unidas para o Meio
Ambiente (PNUMA), publicado em 2016, que traçou premonitoriamente pers-
pectivas entre problemas ambientais e o surgimento de pandemias de zoonoses
pelo mundo, em paralelo introduzirá os contornos estruturais da sociedade de
risco hodierna, metamorfoseadora da noção de mundo, causadora de inédita
alteração da realidade política, social, econômica e sobretudo jurídica, marcada
pelo desafio da emergência climática e agora pelo novo coronavírus.

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A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

A fim de oferecer alternativas, o que cada vez mais exige uma ruptura
no Direito Ambiental vigente, alinhado a um viés ecologizado e sistematiza-
do de implementação das normas, suficiente aos efeitos das pandemias e da
emergência climática, na segunda e última parte do trabalho serão abordados
os principais instrumentos e definições previstos no recente relatório global
“Environmental Rule of Law First Global Report”, das Nações Unidas, deline-
ando uma perspectiva de inescapável transição para um Direito e também
um Estado de Direito ecologizados, precursores de um Green New Deal glo-
bal, capazes de atuar contra a emergência climática, proteger o meio ambien-
te, cumprir com os objetivos da Agenda 2030 Global e enfrentar pandemias
como as do novo coronavírus.

4.2 A pandemia do novo coronavírus


e a sua relação com o meio ambiente
No início de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) tomou
conhecimento de que, no mês de dezembro de 2019, foi registrado surto de cidadãos
chineses da província de Hubei infectados com sintomas de uma doença desconhe-
cida, transmitida por um tipo de vírus igualmente sem precedente.
A entidade, por meio de nota, afirmou que a evidência era altamente sugestiva
de que o surto se associava a exposições de animais em um mercado de frutos do
mar em Wuhan – maior cidade da referida província chinesa -, indicando se tra-
tar, em razão do sequenciamento genético do vírus, de uma Síndrome Respiratória
Aguda Grave (SARS-CoV), porém com novas características e sepas de seu vírus,
denominado como SARS-CoV 2, causador da doença posteriormente denominada
como “Corona Virus Disease 2019” ou Covid-19547.
Com a pujante eclosão de novos casos da doença em outros países, como
Estados Unidos e Irã, a OMS em 30 de janeiro de 2020 enquadrou o surto
primeiramente como uma emergência de saúde pública, vindo o órgão inter-
nacional a reconhecer apenas em 11 de março de 2020 como uma pandemia
global, face aos seus números à época: 118.000 casos, em 114 países e 4.291

547 OMS. Novo coronavírus – China, 2020. Disponível em: <https://www.who.int/csr/don/12-january-


2020-novel-coronavirus-china/en/> Acesso em 25 abr.2020.

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mortes548. No início do mês de maio de 2020, os números da pandemia da


Covid-19, causada pelo novo coronavírus, alcançaram números catastróficos:
4.413.597 infectados, 1.334.414 recuperados e 300.798 mortes549 .
Diante de tamanha força transmissória da doença, medidas de lockdown
e isolamento, com decretação de quarentena social e fechamento de frontei-
ras, foram tomadas pelas nações mais afetadas pela pandemia, de modo a atri-
buir ao episódio contornos de catástrofe paradigmática para a saúde humana
e para a ordem política, jurídica e econômica mundial. Surgiram inescapáveis
comparações com crises do passado, como a crise financeira de 2008, especu-
lando-se que a pandemia do novo coronavírus se caracterizará como a maior
crise social e econômica desde a grande depressão, gerada após a quebra da
bolsa de valores de Nova York em 1929550.
Como efeitos concretos das medidas exigidas pela pandemia, apenas nos
Estados Unidos está prevista a perda de cerca de 16 milhões de empregos des-
de 4 de abril de 2020551, vindo a China a registrar a primeira retração econô-
mica de seus últimos 50 anos552, condições agravadas com a crise no mercado
petrolífero gerada pelo governo da Arábia Saudita no início do mês de março.
Não obstante os seus efeitos econômicos, em razão das estruturais me-
didas de isolamento social em quase todo o planeta foram verificadas inéditas
reduções nos índices de poluição e degradação ambiental nos principais pólos
econômicos, sendo notificado pela Agência Espacial Americana (NASA) que,
somente nas regiões de cidades da China, as emissões de dióxido de carbono

548 BBC. Coronavírus: OMS declara pandemia. 2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/
portuguese/geral-51842518> . Acesso em: 17 abr. 2020.
549 THEGUARDIAN. Coronavirus world map: which countries have the most cases and deaths?,
2020. Disponível em: < https://www.theguardian.com/world/2020/may/13/coronavirus-world-
map-which-countries-have-the-most-cases-and-deaths>. Acesso em 14 maio 2020.
550 FMI, The Great Lockdown: Worst Economic Downturn Since the Great Depression, 2020. Disponível
em: <https://blogs.imf.org/2020/04/14/the-great-lockdown-worst-economic-downturn-since-the-
great-depression/>. Acesso em 25 abr. 2020.
551 THEGUARDIAN. US unemployment rises 6.6m in a week as coronavirus takes its toll, 2020.
Disponível em: <https://www.theguardian.com/business/2020/apr/09/us-unemployment-filings-
coronavirus> Acesso em 26 abr. 2020.
552 OGLOBO, Coronavírus derruba economia chinesa que caminha para primeira contração desde
1976. 2020. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/economia/coronavirus-derruba-economia-
chinesa-que-caminha-para-primeira-contracao-desde-1976-24308515> Acesso em 26 abr. 2020.

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(CO2) foram pelo menos 25% menores do que no início de 2019553, com desta-
que para a melhora da qualidade dos rios da cidade italiana de Veneza, algo
não visto em décadas.
Sem dúvidas, a pandemia do novo coronavírus está denotando uma ver-
dadeira mudança de época para a humanidade, com alterações abruptas nas
relações humanas em sentido amplo, como trabalho, ensino, pesquisa, logísti-
ca, produção e serviços, entre outros. Essa mudança traz a reboque constata-
ções muito caras à crise ecológica mundial. Por essa razão, na lição do filósofo
francês Bruno Latour, “ficou provado que é possível, em questão de semanas,
suspender, em todo o mundo e ao mesmo tempo, um sistema econômico que até
agora nos diziam ser impossível desacelerar ou redirecionar”554 , uma relação
peculiar com o meio ambiente planetário, o que por sua vez acende alerta para
a crise ecológica mundial – outra pandemia global que se aproxima - e suas
causas principais, ou seja, o modelo de desenvolvimento econômico e indus-
trial, além dos objetivos políticos e jurídicos alinhavados e estruturados pelas
nações mundiais555 .
Por esse vértice, ficam evidenciadas as estreitas relações entre o meio
ambiente e a pandemia do novo coronavírus, especialmente pelas falhas na
gestão da natureza nos âmbitos político, econômico e sobretudo jurídico, uma
vez que, embora sejam – por razões justas e necessárias – priorizados os fa-
tores de saúde humana e epidemiológica, vem crescendo consenso entre as
autoridades mundiais no sentido de que a pandemia da Covid-19 seja causada
por uma série de falhas e lacunas ligadas à atividade humana sobre o meio
ambiente e suas consequências, cujos contornos o direito ambiental vigente
não as combate e tampouco considera, muito em razão de suas próprias limi-
tações, que neste trabalho serão debatidas.
Diante de tal correlação de fatores, investigando a explosão da pandemia
em curso, autoridades públicas de saúde vêm alertando para as relações ori-

553 NASA, How the Coronavirus Is (and Is Not) Affecting the Environment, 2020. Disponível em:
<https://earthobservatory.nasa.gov/blogs/earthmatters/2020/03/05/how-the-coronavirus-is-and-
is-not-affecting-the-environment/> Acesso em 26 abr. 2020.
554 LATOUR, B. Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise. Tradução: Déborah
Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, 2020. Disponível em: <https://n-1edicoes.org/008-1>
Acesso em: 26 abr. 2020.
555 LATOUR, op. cit..

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A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

ginárias do novo coronavírus com o avanço do desmatamento, da exploração


ilegal de animais silvestres, além das mudanças climáticas, tudo aliado à ex-
pansão de atividades humanas sobre ecossistemas, em especial os florestais556.
As hipóteses aventadas convergem para a proliferação das zoonoses, que
são decorrentes do desmatamento das florestas, da perda da biodiversidade,
do transbordamento de ecossistemas e das mudanças climáticas, o que impli-
ca política e direito ambiental atentos a tal relação. O termo zoonose se refe-
re, segundo as Nações Unidas, a doenças que os animais vertebrados podem
transmitir para o homem. A AIDS, a gripe suína H1N1, a influenza aviária
H5N1 e o ebola são exemplos dessas patologias557.
O problema da expansão das zoonoses e o meio ambiente possuem rela-
ção conhecida nas pesquisas epidemiológicas pelo mundo, tendo em vista que
as doenças zoonóticas representam cerca de 75% das doenças que afetaram
humanos no último século558, e os fatores para a sua proliferação refletem o
modo como a população humana ocupa e explora o ambiente em que vive,
incluindo as migrações humanas não controladas, poluição e degradação am-
biental, agravada pela precariedade das condições socioeconômicas (habita-
ção, educação, saúde, entre outras).
E essa relação entre meio ambiente e pandemia foi previsto no relatório
produzido no ano de 2016 pelo Programa das Nações Unidas para o Meio
Ambiente – PNUMA, denominado “Frontiers 2016 Report: Emerging Issues
of Environmental Concern” ou Relatório Questões Emergentes de Preocupação
Ambiental, verdadeiro presságio de cenários que estão infelizmente se concre-
tizando com a vigente pandemia, exigindo novos rumos para a política e em
especial para o direito ambiental.

556 CNN, Bats are not to blame for coronavirus. Humans are, 2020. Disponível em: <https://edition.
cnn.com/2020/03/19/health/coronavirus-human-actions-intl/index.html>. Acesso em 26 abr. 2020.
557 ONU. Mais de 60% dos organismos causadores de doenças chegam aos humanos por animais
vertebrados, 2018. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/mais-de-60-dos-organismos-
causadores-de-doencas-chegam-aos-humanos-por-animais-vertebrados/>. Acesso em 25 abr. 2020.
558 TUMPEY, T.M.; GARCÍA-SASTRE, A.; MIKULASOVA, A.; TAUBENBERGER, J.K.; SWAYNE, D.E.;
PALESE, P.; BASLER, C.F. Existing antivirals are effective against influenza viruses with genes from
the 1918 pandemic virus. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of
America. Disponível em: <https://www.pnas.org/content/99/21/13849> Acesso em 26 abr. 2020.

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A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

Conforme o documento do PNUMA, cerca de 60% de todas as doenças


infecciosas em humanos são zoonóticas, assim como 75% de todas as doenças
infecciosas emergentes passadas aos seres humanos, o que demonstra a evidente
interligação das condições ambientais para a eclosão e proliferação das zoonoses,
gênero em que está situado o novo coronavírus. De acordo com o referido relató-
rio, estima-se que uma nova zoonose chegue até nós a cada 4 meses, o que eviden-
cia uma realidade metamorfoseada do mundo em que vivemos559. O surgimento
de doenças zoonóticas é frequentemente associado às mudanças ambientais ou a
distúrbios ecológicos, como intensificação agrícola e assentamento humano, ou
invasões em florestas e outros habitats, visto que as zoonoses epidêmicas são fre-
quentemente desencadeadas por eventos como mudanças climáticas, inundações
e outros eventos climáticos560. Além disso, as condições apontadas pelo relatório
ligadas à expansão das epidemias zoonóticas se devem principalmente às mudan-
ças no ambiente, que são geralmente o resultado de atividades humanas, desde a
mudança no uso da terra até a mudança climática561.
Nessa linha de causas para as zoonoses, a ONG EcoHealth Ecohealth
Alliance destaca que existem 1,67 milhão de vírus desconhecidos no plane-
ta, e pelas melhores estimativas, entre 631.000 e 827.000 desses vírus têm a
capacidade de infectar pessoas. Porém, cientificamente há apenas 263 vírus
identificados, o que significa que não sabemos quase nada sobre 99,96% das
possíveis ameaças de pandemia zoonótica.562, a bem da verdade estamos en-
trando em contato crescente com a vida selvagem através da expansão urbana,
da agricultura industrializada e do comércio de vida selvagem563 .
É o que aponta o relatório “A Survey of Zoonoses Programmes in the
Americas”564 , elaborado em parceria da Organização Pan-americana da Saú-

559 UNEP, Frontiers 2016 Report: Emerging Issues of Environmental Concern, 2016, p. 18,
tradução livre. Disponível em: <http://wedocs.unep.org/bitstream/handle/20.500.11822/7664/
Frontiers_2016.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em 25. abr. 2020.
560 UNEP, op. cit., p. 18.
561 Idem. p. 22.
562 ECOHEALTHALLIANCE, Disease X: The Next Pandemic. 2020. Tradução livre. Disponível em:
<https://www.ecohealthalliance.org/2018/03/disease-x>. Acesso em 26 abr.2020.
563 ECOHEALTHALLIANCE, op. cit.
564 PANAFTOSA, Preliminary Report A Survey of Zoonoses Programmes in the Americas, 2016.
Disponível em: <https://www.paho.org/panaftosa/index.php?option=com_docman&view=downl
oad&slug=preliminar-report-zoonosis-080716-8&Itemid=518> Acesso em 26 abr. 2020.

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de (OPAS) com o Centro Pan-Americano de Febre Aftosa (PANAFTOSA),


no qual se destaca que o crescente número de zoonoses emergentes pode ser
causado pela modernização das práticas agrícolas, particularmente nos países
em desenvolvimento, com destruição e invasão de habitats, e também pela
mudança climática, contexto pressionado por uma população crescente.
O segundo ponto estrutural que o PNUMA levanta, o qual faz estreita
relação com os fatores do novo coronavírus, é o comércio ilegal de animais
vivos, que se sobressai como a principal causa investigada para o surgimento
da pandemia. Por essas razões, a comunidade de cientistas e epidemiologis-
tas pelo mundo trabalham com a hipótese da eclosão do vírus a partir de
morcegos da região da cidade de Wuhan na China. Aqui, cabe salientar que
eventuais doenças associadas aos morcegos surgem devido à perda de habitat
por conta do desmatamento e da expansão agrícola, na medida em que tais
mamíferos desempenham papéis importantes nos ecossistemas, sendo poli-
nizadores noturnos e predadores de insetos. A integridade do ecossistema,
portanto, evidencia a saúde e o desenvolvimento humano565 .
Dessa forma, as mudanças ambientais induzidas pelo homem modificam
a estrutura populacional da vida selvagem e reduzem a biodiversidade, resul-
tando em condições ambientais que favorecem determinados hospedeiros,
vetores e/ou patógen os. É por isso que a integridade do ecossistema também
ajuda a controlar as doenças, apoiando a diversidade biológica e dificultando a
disseminação, a ampliação e a dominação dos patógenos (vetores de doenças).
Assim, mais do que qualquer outro momento da história, “a humanidade de-
pende de ações a serem tomadas agora para um futuro resiliente e sustentável”
566
, indene de pandemias e ambientalmente seguro.
Evidentes as interconexões entre meio ambiente e sua gestão ineficiente
e desamparada de um direito ambiental eficaz e sistêmico, coerentes com as
causas para a expansão de epidemias zoonóticas, como a do novo coronaví-
rus, como aponta o PNUMA. E diante do potencial de novas pandemias pelo
mundo, como a do novo coronavírus, é evidente a necessidade de um controle
bem sucedido de transbordamentos de habitats e das consequentes zoonoses,

565 ONU. PNUMA lista 6 fatos sobre coronavírus e meio ambiente. 2020. Disponível em: <https://
nacoesunidas.org/pnuma-lista-6-fatos-sobre-coronavirus-e-meio-ambiente/>. Acesso em 26 abr. 2020.
566 ONU, 2020, op. cit.

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requerendo um arcabouço legal e político criterioso, que funcione bem com


instituições, com financiamento adequado, com detecção rápida e com um
plano de implementação das intervenções, assim como com a colaboração da
pesquisa multidisciplinar e multinacional, também sendo necessário explo-
rar as ligações entre as questões ambientais dinâmicas, os vetores de doenças
(patógenos) e a suscetibilidade de doenças567, exigindo a revisitação de instru-
mentos e conceitos do direito ambiental vigente.
Não bastassem as consequências ecológicas, a grande zoonose da Co-
vid-19, oriunda da pandemia do novo coronavírus, vem confirmando uma
tragédia de saúde humana, pois, como visto, são mais de 4 milhões de pessoas
infectadas e cerca de 300 mil vítimas pelo mundo, incluindo reflexos sociais e
econômicos causados, uma vez que o Fundo Monetário Internacional (FMI)
prevê consequências negativas para a política, economia e sociedade em geral
em escala pior do que a grande depressão ocorrida na década de 1930, com
queda brusca do Produto Interno Bruto (PIB) global em 3%, refletindo preca-
riedade nas principais políticas públicas568.
Como sinal lógico de consequência para a política, o Banco Mundial
anunciou que, em razão da pandemia, prevê um aumento nas intervenções
econômicas de 14 bilhões de dólares em financiamento acelerado para ajudar
empresas e países em seus esforços para prevenir, detectar e responder à rá-
pida disseminação do COVID-19. O pacote fortalecerá os sistemas nacionais
de preparação para a saúde pública, inclusive para contenção, diagnóstico e
tratamento de doenças, e apoiará o setor privado569.
Toda essa conjuntura vem demonstrando a falência da sociedade or-
ganizada até então, porquanto justamente seus avanços de crescimento vêm
causando mais riscos do que benefícios, isso porque o paradigma de desen-
volvimento das principais nações mundiais está entre as mais cruciais causas

567 UNEP, 2016, op cit., p. 26.


568 FMI, The Great Lockdown: Worst Economic Downturn Since the Great Depression, 2020. Disponível
em: <https://blogs.imf.org/2020/04/14/the-great-lockdown-worst-economic-downturn-since-the-
great-depression/>. Acesso em 25 abr. 2020.
569 WORLDBANK, Grupo Banco Mundial aumenta a resposta do COVID-19 para US $ 14 bilhões
para ajudar a sustentar economias e proteger empregos, 2020, tradução livre. Disponível em:
<https://www.worldbank.org/en/news/press-release/2020/03/17/world-bank-group-increases-
covid-19-response-to-14-billion-to-help-sustain-economies-protect-jobs>. Acesso em 25 abr..2020.

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A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

para a crise ecológica, a qual, por sua vez, como visto, possui estreita relação
na expansão das zoonoses, como a do novo coronavírus.
Como antípoda dessas catástrofes está o direito ambiental vigente, instru-
mento da sociedade e do Estado democrático de direito, incumbido de regular
comportamentos ecologicamente prejudiciais e ilegais, punindo as ações ou
omissões degradadoras. Todavia, por um olhar retroativo da história moder-
na, segundo Fritjof Capra e Ugo Mattei, a Ciência Jurídica mostrou-se eminen-
temente linear, mecanicista, distante das relações complexas do meio natural,
com o afã intuito de instrumentalizar a natureza e seus recursos, considerando-
-a como uma máquina, paradigma que precisa ser superado por uma ordem
sistêmica e holística, em harmonia com a natureza e com a vida na Terra570.
É chegado o momento para um direito ambiental desafiado em suas ba-
ses hermenêuticas e epistemológicas, como assevera Germana Belchior571, em
que a tutela jurídica da natureza e dos seres não-humanos esteja alçada ao
nível dos direitos dos seres humanos, confirmando um fundo ético da respon-
sabilidade como um princípio, como denota Hans Jonas572, uma vez que, se o
dever em relação ao homem se apresenta como prioritário, ele deve incluir o
dever em relação à natureza, como condição da sua própria continuidade e
como um dos elementos da sua própria integridade existencial, alcançando a
proteção dos direitos das gerações futuras573.
Com efeito, os reflexos desastrosos sobre o mundo natural de nossas leis
e nossa economia restam bastante evidentes a esta altura, e tal entendimento,
contudo, não exerceu até o momento influência sobre a formulação de políticas
públicas pelo mundo, de modo que o desenvolvimento não reconhece – mesmo
face à catástrofe - que o extrativismo do modelo capitalista entre em conflito
com os princípios fundamentais da ecologia, e a violação desses princípios é tão
letal quanto ignorar a lei da gravidade no escalar de uma montanha574.

570 CAPRA, F; MATTEI, U. A Revolução ecojurídica: O direito sistêmico em sintonia com a natureza
e a comunidade. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. 1 ed. São Paulo: Cultrix, 2018.
571 BELCHIOR, G. Fundamentos epistemológicos do direito ambiental. 1 ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2017.
572 JONAS, H. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica.
Tradução: Marijane Lisboa e Luiz Barros Montez. 2 ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015.
573 JONAS, op. cit., 2015, p. 230.
574 CAPRA, F.; MATTEI, U., op. cit., p. 37.

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A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

A Ciência Jurídica, tradicionalmente desenvolvida, que fundamenta


grande parte do direito ambiental ainda vigente, permanece presa ao pensa-
mento simplista, moderno e cartesiano, que não se mostrou suficiente para
atender aos novos problemas do mundo, o que leva à necessidade de se inves-
tigar um novo paradigma de conhecimento do direito575 .
Exatamente por não se constituir em um método pronto, a complexidade
dos desafios atuais causa dificuldades em sua compreensão, de modo que o
Direito não pode mais ser compreendido como algo total e previamente pos-
to, por meio de um método discursivo, meramente descrito pelo intérprete,
a Epistemologia Jurídica precisa refletir acerca de categorias e institutos que
foram pensados e estruturados a partir de um modelo jurídico-ambiental que
se demonstra inadequado e insuficiente576.
Dessa forma, a relação entre coronavírus e crise ecológica denota a ne-
cessária revisão de conceitos e instrumentos do direito ambiental, protegendo
efetivamente a integridade ecológica do planeta e da vida em todas as suas
formas, exigindo inclusive um Estado de Direito ecologicamente pensado e
preocupado. É preciso desenvolver uma ordem jurídica de caráter ecológico, é
preciso repensar as leis humanas e sua relação com as leis que regem a ecologia
de um planeta vivo, uma espécie de revolução copernicana no direito, devendo-
-se usar a natureza como mentora e modelo, passando-se para uma ecologia do
direito ou um direito ecológico577.
Dessa maneira, a lição fundamental, tendo-se em conta a similitude de cau-
sa e efeito entre a pandemia do novo coronavírus e a crise ecológica, é que o di-
reito ambiental como posto em vigor não responde a tais problemas de forma
sistêmica, sendo exigida uma ecologização do direito, que busca uma qualidade
de vida econômica que vise o fomento e à preservação da natureza, em benefício
das gerações futuras e da sobrevivência humana em geral578, por meio de um novo
compromisso de implementação efetiva e sistêmica do direito ambiental.
Um desafio abrangente em face do Direito Ambiental vigente, que o exige
uma ressignificação de suas bases como precursoras para um Green New Deal

575 BELCHIOR, op. cit., p. 224.


576 Idem, p. 225.
577 CAPRA, F.; MATTEI, U., op. cit., p. 41.
578 Idem, p. 41.

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A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

global579, movimento mundial por política, economia e leis fundamentado na bus-


ca por respostas à emergência climática e agora à crise da pandemia da Covid-19,
derrubando as narrativas, ideologias e interesses econômicos antropocêntricos,
para dar respostas a crises aparentemente díspares (econômicas, sociais, ecológi-
cas e democráticas) em uma história comum de transformação civilizacional580.
No entanto, antes de adentrar no debate estritamente jurídico da relação
entre crise ecológica e novo coronavírus, é preciso definir um aporte teórico
sociológico e político perpassante por todo esse contexto de crises, de novos
rumos à humanidade. Com esse viés, a leitura de Ulrich Beck com a sociedade
de risco é fundamental para a compreensão da realidade mundial atual.
Os problemas causados pela pandemia do novo coronavírus são sistêmi-
cos e de hipercomplexidade, pois são desafios estruturais agravados pelo pa-
radigma de riscos incertos e globais da sociedade de risco de Beck581. Os riscos
globais atingem estruturas da humanidade as quais há muito pouco tempo
eram dadas como evoluídas ou capazes de atender o bem-estar social e am-
biental, assim como ocorre com os problemas ligados às mudanças climáticas,
fenômeno global que fulmina com as certezas defendidas pelo atual modelo
de desenvolvimento mundial.
Por se tratarem de desafios com consequências inéditas e catastróficas
para a vida humana na Terra, a pandemia da Covid-19 e a crise ecológica
mundial confirmam seminais características da sociedade de risco de Ulrich
Beck582, especialmente pela sua recente transmutação para a metamorfose do
mundo583, ambas de autoria do referido sociólogo, que merecem ser aportadas
para os fins do presente trabalho.

579 KLEIN, N.. On fire: the burning case for a green new deal. New York: Simon & Schuster, 2019.
580 KLEIN; op.cit., p. 22.
581 BECK, U., Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Tradução: Sebastião Nascimento.
São Paulo: Editora 34, 2010.
582 BECK, op. cit.
583 BECK, U. A metamorfose do mundo: novos conceitos para uma nova realidade. Tradução Maria
Luiza X. de A. Borges; revisão técnica Maria Claudia Coelho. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

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A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

4.3 Sociedade de Risco e a Metamorfose do Mundo


A pandemia do novo coronavírus reforça os ensinamentos de Ulrich Beck
que ao trazer o exemplo de eventos globais significativos e paradigmáticos,
como sobretudo a mudança climática, assinala que “vivemos num mundo que
não está apenas mudando, mas está se metamorfoseando” , no sentido de que
a transformação atualmente vivenciada é radical, pois as velhas certezas da
sociedade moderna estão desaparecendo e algo inteiramente novo emerge”584 .
A humanidade emerge em um cenário inédito com o novo coronaví-
rus, já demarcado pelas mudanças climáticas e a crise ecológica galopante, no
qual, mesmo diante de todo o avanço dos conhecimentos técnico-científicos,
não é possível prever qual será o impacto dessa crise inédita e assustadora que
hoje atinge a todos e ressalta a fragilidade do ser humano diante dos efeitos
colaterais do mundo moderno. O que fomenta essa metamorfose do mundo
está diretamente ligada aos fracassos e sucessos da humanidade, que impli-
cam uma nova forma de ver a ordem mundial, dando uma “consciência do
mundo” 585. Essa metamorfose do mundo para o autor não representa pior ou
melhor situação, apenas de que há exigência de novas decisões políticas mun-
diais, pois deixa tudo em aberto e nos orienta para a importância das decisões
políticas, realça o potencial da sociedade de risco mundial para levar à catás-
trofe, mas também a possibilidade de um “catastrofismo emancipatório”.
Nesse ponto, há um olhar de esperança do autor e é possível constatar
essa catástrofe com a recente pandemia do novo coronavírus e seus efeitos
colaterais. Para Beck, a metamorfose do mundo significa a era dos efeitos co-
laterais e desafia o modo de estar no mundo, de pensar sobre o mundo, de
imaginar e fazer política”586 .
Atualmente, percebe-se o papel de destaque da Organização Mundial da
Saúde (OMS), a qual tem estabelecido diretrizes importantes para reduzir o
risco de contaminação e evitar o colapso dos sistemas de saúde mundo afo-
ra. Nesse sentido, no Brasil, a União, os Estados e os Municípios, por exem-
plo, têm procurado seguir essas diretrizes, muito embora haja certa restrição

584 Op. cit. p. 15.


585 Idem. p. 32.
586 Ibidem p. 54.

152
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

por parte do Presidente da República que adota uma postura pouca cautelosa
quando o assunto é novo coronavírus587.
Não bastassem os retrocessos em áreas sociais e na política ambiental,
o atual governo brasileiro alça o país a um nível vulnerável sem precedentes,
de obscurantismo frente à ciência e às medidas indicadas pelas autoridades
de saúde pública, vindo a ser considerado o país do mundo que demonstrou a
pior resposta política e institucional à pandemia entre os 53 países mais afe-
tados pela Covid-19588.
Somada à crise da pandemia no Brasil, outro fator que acelera a meta-
morfose política no exemplo brasileiro está na crise democrática e política no
país causada pelo governo vigente, que vem sendo destacada com similitudes
a episódios históricos de autoritarismo589, de modo a ser observada corrosão de
instituições e de valores democráticos, em direção a uma ditadura em pleno
século XXI, exigindo, como nunca, o papel de efetividade do Estado de direito
como pilar da democracia.
Para além das evidentes afrontas ao regime democrático e constitucio-
nal brasileiro, o governo atual subverte a ordem institucional da política am-
biental, cenário exposto pelas intenções nada republicanas do Ministério do
Meio Ambiente pela utilização do momentum crítico da pandemia a fim de
dar cabo a retrocessos e desenhos normativos nocivos e desregulamentadores
da ordem político-jurídica ambiental brasileira590.

587 VEJA. OMS dá recado a Bolsonaro: ‘Esta é uma doença muito séria’, 2020. Disponível em:
<https://veja.abril.com.br/mundo/oms-da-recado-a-bolsonaro-esta-e-uma-doenca-muito-seria/>
Acesso em 20 abr. 2020.
588 ESTADÃO, Brasileiros consideram que país tem a pior resposta à pandemia, diz pesquisa. 2020.
Disponível em: <https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,brasileiros-consideram-que-pais-
tem-a-pior-resposta-a-pandemia-diz-pesquisa,70003335740>.Acesso em 20 jun. 2020;
589 FINANCIALTIMES, Jair Bolsonaro’s populism is leading Brazil to disaster. 2020. Disponível em:
<https://www.ft.com/content/c39fadfe-9e60-11ea-b65d-489c67b0d85d >.Acesso em 20 jun. 2020;
590 Durante a reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020, o Ministro do Meio Ambiente, Ricardo
Salles, alertou os ministros sobre o que considerava ser uma oportunidade trazida pela pandemia da
Covid-19: para ele, o governo deveria aproveitar o momento em que o foco da sociedade e da mídia
está voltada para o novo coronavírus para passar “a boiada” e “mudar” regras enquanto atenção
da mídia está voltada para Covid-19. G1. Ministro do Meio Ambiente defende passar ‘a boiada’
e ‘mudar’ regras enquanto atenção da mídia está voltada para a Covid-19. Disponível em: <
<https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/22/ministro-do-meio-ambiente-defende-passar-a-
boiada-e-mudar-regramento-e-simplificar-normas.ghtml>. Acesso em: 1 jul. 2020.

153
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

Por essas razões, as crises democrática, ecológica e pandêmica corrobo-


ram para uma alteração profunda na realidade política e jurídica mundial, o
que antes era impossível ou limitado aos Estado-nação, torna-se real, global e
urgente, como destaca Ulrich Beck591.
Como motor principal da metamorfose do mundo, Beck destaca que a
mudança climática é a corporificação dos erros de toda uma época de indus-
trialização contínua, e os riscos climáticos perseguem o seu reconhecimento
e correção, em que a autoconfiança do capitalismo industrial é confrontada
com seus próprios erros transmutados numa ameaça objetificada à sua pró-
pria existência592. Para o autor, a mudança climática acarreta novas formas
de poder, desigualdade e insegurança, bem como novas formas de coopera-
ção, certezas e solidariedade através das fronteiras e segue com três fatos ilus-
tradores: a) o nível do mar em elevação; b) a criação de novas normas, leis,
mercados, tecnologias, compreensões da nação e do Estado; formas urbanas e
cooperações internacionais; e c) a compreensão de que nenhum Estado-nação
pode fazer frente sozinho593.
Nesse caso, parece evidente lembrar que diante da potencialidade dos efeitos
dos riscos de um mundo em metamorfose, como é o caso dos efeitos do novo co-
ronavírus, há necessidade premente de transparência já que se está diante de um
risco que tem ultrapassado as fronteiras geográficas entre países e demandando
medidas precaucionais que envolvam uma maior cooperação internacional.
Paradoxalmente, reiterando o potencial de emancipação da humanida-
de, Beck destaca que o risco global traz esperança, nos obrigando a nos lem-
brarmos de nossa própria sobrevivência 594. Em momentos de pandemia do
novo coronavírus vivemos momentos mais reflexivos e diante do tempo que
acabamos dispondo para essa reflexão há um evidente despertar para a fragi-
lidade do ser humano e para a necessidade de se buscar novos caminhos em
que a solidariedade esteja presente.
O planeta, nesse delinear, sofre uma metamorfose diante de caracterís-
ticas inéditas dos efeitos colaterais dessa sociedade em metamorfose. Nesse

591 BECK, 2010, op. cit.


592 BECK, 2018, op. cit., p. 55.
593 Idem, p. 56-57.
594 Ibidem p. 56-57.

154
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

sentido, convém pensar na potencialidade do novo coronavírus que alcançou


pessoas nas mais variadas partes do mundo, tendo sido declarada conforme
já mencionado anteriormente595 como pandemia em 11 de março de 2020 pela
Organização Mundial de Saúde596.
Assim como descreveu a fase da humanidade atual como Sociedade de
Risco, Beck reafirma que as causas para a metamorfose estão ligadas ao pro-
gresso da humanidade e os riscos que ele produz, o descontrole do que não é
controlado define a causa maior da metamorfose. Assim a humanidade está
diante do novo coronavírus: como controlar o que não pode ser controlado?
Basta salientar as inúmeras vidas perdidas seja na Itália, Estados Unidos, Rei-
no Unido, Brasil, entre muitas.
A metamorfose do mundo implica um destino compartilhado, um novo
horizonte normativo internacional, a fim de superar uma desigualdade en-
tre os colonizados e os colonizadores, por exemplo, que ainda é a marca da
política mundial. Nesse ponto, parece chave novamente lembrar o papel que
a Organização Mundial de Saúde vem recebendo ao orientar e informar de
forma contínua os países diante da complexidade dos riscos decorrentes da
pandemia. Da mesma forma, é nítida a necessidade de cooperação entre os
países, com um dever reforçado de se divulgar informações oficiais e precisas,
que auxiliem essa sociedade em metamorfose a tomar as melhores decisões597.
Uma metamorfose causada por uma visão de mundo, que se vê confron-
tado por uma crença de inexauribilidade dos recursos naturais, no crescimen-
to econômico infinito e na supremacia da política nacional do Estado-nação598.
A metamorfose gera o compromisso para uma ação cosmopolita, universalis-
ta e intervencionista-cooperativa. De fato, a palavra do momento parece ser
solidariedade na medida em que os riscos hoje vivenciados pela humanidade
diante do novo coronavírus destacam a natureza frágil dos seres humanos e a

595 De acordo com a descrição da OMS, uma pandemia se caracteriza quando está se espalhando uma
doença entre seres humanos em uma série de países. Ela acontece quando há o aparecimento de
surtos localizados em diversas regiões do mundo ao mesmo tempo (BBC, 2020).
596 BBC. Coronavírus: OMS declara pandemia. 2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/
portuguese/geral-51842518> . Acesso em: 17 abr. 2020.
597 BECK, Ulrich. op. cit., 2018. p. 57.
598 Idem. p. 84.

155
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

necessidade de união da humanidade diante da ameaça do bem mais precioso


de qualquer ser humano: a vida.
Beck ressalta que uma teorização da metamorfose, impreterivelmente,
deve considerar que sua característica basilar é de que sua ascensão afeta não
só um regime político, mas também a compreensão, o conceito do político e da
própria sociedade, pois seus efeitos são não intencionais, não emergem dos
centros da política democraticamente legitimada, porém, em vez disso, pro-
vêm - como um ‘efeito colateral’ social e legalmente construído – dos cálculos
econômicos, dos laboratórios de tecnologia e ciência599.
A palavra-chave, portanto, dessa sociedade em metamorfose consiste
nos efeitos colaterais incontroláveis e produzidos de maneira não intencional
e que o direito vigente, sobretudo o ambiental, não as compreende e tampouco
regula satisfatoriamente. Além disso, a sociedade de risco e suas repercussões
para o desenvolvimento dos riscos globais é, assim, o agente da metamorfose
do mundo, porquanto só pode ser compreendida pela soma dos problemas
para os quais não há resposta institucional600. É o que se observa no caso do
novo coronavírus, já que os efeitos adversos da doença em muitos casos não
podem ser controlados, gerando perdas irreparáveis para toda a sociedade.
A metamorfose do mundo, define Beck, acontece em segundos, solapa
pessoas, teorias e instituições, forte pelas suas transformações profundas, im-
pulsionadas pela emergência climática, pelos riscos globais e pela cosmopoli-
zação da ação política necessária. Neste contexto de alterações paradigmáticas,
a desigualdade social é metamorfoseada e não transformada, pois a nova de-
sigualdade mundial não está adstrita a bens materiais, tampouco por questão
de nação, mas, sim, definida nos riscos globais gerados e não controlados (e até
invisibilizados pela trama do poder mundial). Nesse ponto, novamente destaca-
-se que não importa a riqueza das pessoas, a riqueza das nações, já que o vírus
tem esse alto poder de contaminar a todos indistintamente. Daí a importância
das informações precaucionais serem divulgadas para toda a coletividade e da
necessidade de informações verídicas, precisas e fundamentadas na ciência.
Isso porque, explica Beck a sociedade de risco mundial (agente da meta-
morfose do mundo) se baseia na distribuição de males (risco climático, risco

599 Ibidem. p. 78.


600 Ibidem. p. 93.

156
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

financeiro, radiação nuclear), que não estão confinados no tempo nem por
fronteiras territoriais de uma única sociedade601. Quanto maior o sucesso do
desenvolvimento na sociedade de risco mundial, maiores os males comuns
criados por tal evolução, que atingem cada vez mais níveis desiguais.
Assim, Beck indica que “na era da mudança climática, a noção de ‘classe
social’ torna-se classe antropocena, isto é, os riscos dessa nova condição huma-
na indiferem os conceitos de bens materiais ou nacionalidades. Há a distribui-
ção desigual de bens, mas em contramão há a geração igualitária dos males
incutidos na produção de tais bens602. É o que Beck chama de efeito bumeran-
gue, em sua obra “Sociedade de Risco”, ao mencionar que os riscos da segunda
modernidade afetam, mais cedo ou mais tarde, também aqueles que o produ-
ziram ou se beneficiaram deles, ou seja, contêm um efeito bumerangue que
rompe o esquema da sociedade de classes. Isso significa que nem mesmo os
ricos e poderosos estão fora de perigo603. Entretanto, é necessário lembrar que
os mais vulneráveis acabam sendo atingidos com maior intensidade604, como
se verificou em Nova York, cidade em que se constatou que o vírus é duas ve-
zes mais mortal para pessoas negras e latinas do que brancos605.
No Brasil, de acordo come estudo feito por pesquisadores de uma rede
articulada por várias instituições acadêmicas para monitorar o impacto da
pandemia no país, a crise provocada pelo coronavírus deverá acentuar as
desigualdades existentes no mercado de trabalho brasileiro, entre homens e
mulheres, brancos e negros606. Ainda pensando nas populações mais vulne-
ráveis, é possível verificar essa questão quando se pensa nas favelas é possível

601 Ibidem. p. 107.


602 Ibidem, p. 115.
603 Ibidem, p. 28.
604 ARAGÃO, Alexandra. Projeções ambientais sobre o Mundo Pós-Covid e a possibilidade de uma
nova ordem ecológica internacional. Disponível em: <https://www.uc.pt/covid19/documentos/
artigoalexandraaragao_140420.> Acesso em: 24 abr. 2020.
605 MAYS, Jeffery C. and NEWMAN, Andy. Virus Is Twice as Deadly for Black and Latino People
Than Whites in N.Y.C., New York Times, 8 de abril,
Disponível em: <https://www.nytimes.com/2020/04/08/nyregion/coronavirus‐race‐deaths.html.>
Acesso em: 24. abr. 2020.
606 FOLHA DE S. PAULO. Crise do coronavírus acentua desigualdade de gênero e cor, diz estudo.
2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/04/crise-do-coronavirus-
expoe-81-da-forca-de-trabalho-a-risco-de-perda-de-renda.shtml>. Acesso em: 2 maio 2020.

157
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

verificar essa questão quando se pensa nas favelas, locais em que muitas vezes
não há água potável, impedindo que uma medida precaucional tão simples
consistente no ato de lavar as mãos se torne inviável. Nesse sentido, Pinho,
ensina que a falta de água é uma preocupação constante, que também dificulta
o trabalho de conscientização da população – como convencer pessoas de que
suas vidas importam se elas não podem sequer lavar as mãos frequentemente 607.
Riscos da mudança climática, Organismos Geneticamente Modificados
(OGMs), nanotecnologia, entre outros, são cada vez mais complexos e o que
agrava a situação, segundo BECK, está na ocultação de informação estrutu-
rada, como no choque antropológico de Chernobyl em 1986. Mesmo após tal
acidente e outros, permanece, contudo, uma política de invisibilidade na me-
tamorfose mundial, cuja estratégia “é importante para estabilizar a autoridade
do Estado e a reprodução da ordem social e política pela negação da existência
de riscos globais e seus efeitos de ‘apropriação ecológica e de risco’”608 .
Tal invisibilidade dos riscos globais se dá principalmente em razão do
desvio dos custos, da saúde social e do planeta, para os custos econômicos e
problemas econômicos-administrativos. Por essa razão, a partir da metamor-
fose, surge o conceito das relações de dominação no poder político, de modo
a evitar a “racionalidade superficial da avaliação e determinação do risco e
incluir em sua perspectiva as estruturas e agências de poder subjacentes à defi-
nição social de risco global”.609
Para Beck, nesse sentido, as relações de produção devem ser lidas pelo
espectro da definição e domínio na política atual, pois padrões e regras de-
terminam a construção social e a avaliação do que é um risco global e do que
não é, o poder político ligado aos riscos é metamorfoseado pelas relações de
domínio no conhecimento sobre os riscos e seus desdobramentos, pois o po-
der de “definição interliga-se ao de produção dos riscos”610.

607 PINHO, J. É difícil falar sobre perigo quando há naturalização do risco de vida. Disponível em:
<https://www.abrasco.org.br/site/noticias/saude-da-populacao/coronavirus-nas-favelas-e-dificil-
falar-sobre-perigo-quando-ha-naturalizacao-do-risco-de-vida/46098/> . Acesso em: 27 abr..2020.
608 BECK, op. cit., 2018. p. 133.
609 Op. cit. p. 129.
610 Idem. p. 130.

158
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

Novamente ressaltando o efeito de choques antropológicos, Beck repisa a


tragédia de Chernobyl em 1986, que, apenas com sua ocorrência global, riscos
graves foram difundidos, ou seja, sem a informação, não há consciência glo-
bal dos riscos, e isso é a base da política da invisibilidade, haja vista que, se o
risco não é cientificamente observado e considerado, também inexistirá para
a regulação e para a prevenção institucional e política.
Beck reitera, por meio de um conceito seu já difundido da irresponsabi-
lidade organizada, alerta para as relações de definição dos riscos globais, com
a qual os responsáveis escapam das punições por desastres e danos causados,
de forma que as antigas relações de poder de definição e produção tornam-se
relações de poder de dominação, pois a práxis política da metamorfose, além
de produzir os riscos, dão conta de sua definição e ainda de sua invisibilidade.
Na busca por demonstrar razões estruturais capazes de alterar e criar
novas definições, como a metamorfose do mundo, Beck apresenta a teoria de
um catastrofismo emancipatório, o autor indica que a própria Segunda Guer-
ra Mundial representou uma inovação mundial, apesar de todo o seu desastre,
vez que implicou na criação da ONU, FMI, União Europeia, entre outros. Ci-
tando a Segunda Guerra Mundial, Beck ressalta que há situações na humani-
dade que trazem disrupções. São efeitos colaterais positivos de males, os quais
“produzem horizontes normativos de bens comuns e substituem a perspectiva
nacional por uma perspectiva cosmopolita” 611.
A comunicação da sociedade, segundo Beck, é elemento de constituição
da metamorfose do mundo, pois proporciona a consciência de quais são os
riscos e quem está vulnerável, tornando os efeitos colaterais dos bens comuns
males públicos. Para Beck, os riscos globais passaram a definir públicos afeta-
dos pelo mundo, globalizando sua visibilidade, difundida pela comunicação
amplamente evoluída atualmente. O choque antropológico e a emancipação
pela catástrofe exigem uma comunicação global das tragédias geradas e dos
riscos cada vez mais globais, ressalta Beck. Dessa forma, gera-se uma identi-
ficação pela consciência mundial e não mais nacional da catástrofe, o que é
impulsionado com as mídias sociais e internet.
Em suma, evidentes os contornos da sociedade de risco mundial e agora
da metamorfose do mundo na leitura dos desafios da atualidade: crise am-

611 Ibidem. p. 153.

159
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

biental climática e agora pandemias globais como a do novo coronavírus. Há


uma metamorfose planetária em curso, que também implica uma política,
economia, cultura e, em especial um direito, todos em metamorfose.
Todas as características da leitura sociológica de Beck apontam para um
caminho de maior entendimento entre humanidade e meio ambiente, neces-
sária para ambas as catástrofes da emergência climática e do novo coronaví-
rus, cujos diagnósticos já haviam sido levantados em 2016 pelas Nações Uni-
das, conforme será destacado no próximo tópico.

4.4 Novas Perspectivas com o Environmental Rule of Law,


First Global Report – ONU
Diante dessa grave crise ambiental atualmente vivenciada, a qual con-
forme se delineou tem correlação com a pandemia do coronavírus, fica a per-
gunta: É possível um novo caminho que leve a um nível mais elevado de pro-
teção ambiental e que, portanto, proteja o equilíbrio ecológico e consequente-
mente a saúde de todos os seres vivos? Com as crises ambiental e da Covid-19,
o desafio ao Direito Ambiental torna-se cada mais claro: implementar efetiva
e sistematicamente a proteção ambiental.
Neste contexto, vários fatores estão conectados com a fraca implemen-
tação do Estado de Direito Ambiental, mais deixam expressos a falta de coor-
denação entre as agências ambientais, a baixa capacidade institucional, falta
de acesso à informação, a corrupção e o sufocamento do engajamento civil612.
É urgente a superação do modelo tradicional de Estado ambiental ape-
nas regulador, a ser substituído por um Estado ambiental implementador, pois
historicamente a atuação estatal nas questões ambientais foi entendida como
sinônimo de legislar para tutelá-lo, destaca Herman Benjamin613. Por evidente

612 PNUMA - PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE MEIO AMBIENTE. Environmental
Rule of Law. First Global Report, 2019. Disponível em:< https://wedocs.unep.org/bitstream/
handle/20.500.11822/27279/Environmental_rule_of_law.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso
em: 27 de abr. 2020.
613 BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e. O Estado teatral e a implementação do Direito
Ambiental. In: Congresso Internacional de Direito Ambiental, 7., 2003, Direito, água e vida, Anais.
São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2003. v. 1. p. 335-366. Disponível em: <https://
bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/30604> . Acesso em: 17 de ago. 2020.

160
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

recorte histórico, a promulgação de leis, decretos, portarias e uma série de


outros atos normativos foi a resposta e encontrada pelo Poder Público para
redimir sua omissão ambiental centenária.614
No entanto, dada a dimensão das crises pandêmica e ecológica vigentes,
torna-se evidente que a produção legislativa, como fato solitário, não bastará.
O Direito Ambiental haverá de ser algo mais que a disposição metódica de
normas e padrões de comando e controle inaplicáveis ou inaplicados (= law on
the books), ou, noutra perspectiva, deverá ir além da asséptica análise teórica
que daí se construa (= law in action) 615, esse, inclusive, é o mister do Direito
Ambiental, ultrapassar os confins da norma, dela se utilizando como ponto de
partida para um exame mais amplo dos complexos fenômenos jurídicos, so-
ciais, políticos, econômicos e científicos que lhe deram origem, são sua razão
de ser e podem, afinal, determinar sua viabilidade e utilidade social616.
Ademais, ficam claros, conforme mencionado pelo PNUMA, os proble-
mas de ineficiência e ineficácia da norma ambiental, verificando necessidades
de mudanças em busca de uma maior juridicidade do direito ambiental, evi-
tando sua função meramente simbólica.
Sabe-se que no Brasil o sistema normativo que protege o meio ambiente é
bastante robusto, possuindo normas sobre os mais variados aspectos relacionados
ao equilíbrio ecológico, delineado pela ordem constitucional brasileira esculpida
pelo art. 225 da Carta Maior. Do mesmo jaez são os desafios para a efetividade
dessas normas. Na realidade, muito embora todos os países tenham atualmente
ao menos uma lei ambiental ou uma regulação ambiental617 , o desafio consiste no
cumprimento e eficácia dessas normas. Nesse sentido, Bobbio já destacava, em
sua clássica obra “A era dos Direitos”, que “o problema fundamental dos direitos
do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los”, não se tra-
tando, segundo o autor, de um problema filosófico, mas político618.

614 BENJAMIN, op. cit., p. 5.


615 Idem p. 4.
616 Ibidem, p. 5.
617 PNUMA - PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE MEIO AMBIENTE. Environmental
Rule of Law. First Global Report, 2019, p. 1. Disponível em:< https://wedocs.unep.org/bitstream/
handle/20.500.11822/27279/Environmental_rule_of_law.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso
em: 27 abr. 2020.
618 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 24.

161
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

No que se refere ao meio ambiente especificamente, o Documento Pers-


pectiva Global do Meio Ambiente, elaborado em 2012, pelo Programa das
Nações Unidas para o Meio Ambiente destacou que foram feitos progressos
consideráveis no sentido de cumprir apenas 4 dos 90 objetivos ambientais
mais importantes619, destacando que os limites ecológicos críticos dos quais
o bem-estar humano depende em breve será ultrapassado620. Nesse sentido,
atualmente a humanidade já está utilizando 25% a mais recursos naturais do
que o Planeta é capaz de fornecer621.
Diante desse cenário, relevante expor quais as experiências que têm con-
tribuído para uma proteção do meio ambiente. Essa tarefa foi bem cumprida
pelas Nações Unidas, que, em 2019, publicou relatório intitulado Estado de
Direito Ambiental, Primeiro Relatório Global, no qual reúne uma série de ins-
trumentos que obtiveram êxito no seu objetivo de implementar melhorias na
proteção do meio ambiente, cumprindo, portanto, elencá-los de maneira sin-
tética e didática a fim de servir de exemplo para outros cenários jurídicos622 .
Entre os instrumentos utilizados deve-se mencionar os mecanismos
de resolução de disputas. Para alcançar a proteção do meio ambiente é ne-
cessário que seja acessível, justo, rápido e oportuno o mecanismo de reso-
lução de disputa, sendo que mais de 50 países já têm estabelecido tribunais
ambientais e muitos mecanismos alternativos de disputa623. Para além dos
tribunais especializados em matéria ambiental e das formas alternativas de
resolução de litígio, critérios interpretativos claros são importantes parâ-
metros para os julgados, de maneira que se faz necessária a publicização

619 Os quatro objetivos atingidos consistem na supressão de chumbo na gasolina, na melhoria do acesso
ao abastecimento de água; na eliminação de substâncias que prejudiquem a camada de ozônio e na
promoção de pesquisas para reduzir a contaminação do ecossistema marinho (PNUMA, 2012).
620 PNUMA. GEO5: Global Environment Outlook. Nairobi, Kenya, 2012. Disponível em:
<ht t ps://wedoc s.u nep.org / bit st rea m / ha nd le/20. 50 0.11822/8 021/GEO5 _ repor t _ f u l l _
en.pdf?sequence=5&isAllowed=y>. Acesso em: 27 de ab. 2020.
621 WWF, World Wild Found. Como a biodiversidade afeta a mim e as outras pessoas? Disponível
em: <https://www.wwf.org.br/natureza_brasileira/especiais/biodiversidade/consequencias_perda_
biodiversidade/.> Acesso em: 27 abr. 2020.
622 PNUMA - PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE MEIO AMBIENTE. Environmental
Rule of Law. First Global Report, 2019. Disponível em:< https://wedocs.unep.org/bitstream/
handle/20.500.11822/27279/Environmental_rule_of_law.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso
em: 27 abr. 2020.
623 Op. cit. p. 25.

162
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

das decisões judiciais para informar a população sobre os casos já julgados,


servindo de paradigma para casos semelhantes624 .
Mencione-se ainda a necessidade de se criar uma cultura de complian-
ce, de conformidade ambiental, destacando-se algumas estratégias para es-
timular a sua adesão: a) criação de incentivos, prioridades na licitação de
compras e benefícios fiscais para aqueles que cumprem ou vão além da con-
formidade; b) ministérios do meio ambiente podem visar violadores persis-
tentes para inspeção mais frequente e penalidades mais altas; c) ministérios
também podem divulgar amplamente os vários incentivos, prêmios, pro-
cessos e multas para informar aqueles que estão decidindo quanto esforço
desejam investir em conformidade ambiental625.
Nesta missão, cumpre destacar o papel fundamental dos programas de
conformidade ou compliance ambiental, sobretudo porque há muito a função
Estatal ambiental é muitas das vezes confundida com simbolismo legal, fru-
to de uma implementação deficiente ou inexistente626. Para que, na concep-
ção e na prática, tenha-se um Estado regulador e implementador das normas
ambientais, são exigidos meios eficazes para a implementação legal (= enfor-
cement), que visa assegurar o respeito, obediência ou cumprimento legal (=
compliance), o respeito ou cumprimento da lei (compliance), completando e
integralizando o quadro da Ordem Jurídica Ambiental, que transita entre o
paradigma da normatividade formal e o paradigma da normatividade efeti-
va627, pois a legislação ambiental é um nada quando não cumpre seus objetivos
através de um programa eficiente de implementação.628
Um outro instrumento eficiente é o ato de exigir informações sobre
questões ambientais. Muitas vezes, o próprio ato de coletar informações sobre
uma questão ambiental pode mudar o comportamento. Quando os regula-
dores exigiram que aqueles que emitem ou descartam poluentes relatassem
seus dados de emissões e descarte, foram registradas reduções drásticas de

624 Idem. p. 26.


625 Ibidem. p. 32.
626 BENJAMIN, op. cit., p. 7.
627 Idem, p. 12.
628 Ibidem, p. 12.

163
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

emissões e descarte629. Além dessa estratégia, faz-se necessário fortalecer as


instituições ambientais, pois são elas que promovem o progresso ambiental,
a boa governança e a inclusão social630, sendo que sem o aprimoramento das
instituições, em 2030 é esperado um aumento de 20% para 50% de pessoas
pobres do mundo vivendo em nações ricas em recursos ambientais 631. Dessa
forma, não basta ser rico em recursos naturais se esses não são bem geridos.
Para aprimorar as instituições ambientais, deve-se: a) criar grupos de
trabalhos para examinar áreas comuns de preocupação, criando troca de ha-
bilidades e conhecimentos e resultando em melhor coordenação; b) investir
em formação ambiental para juízes632 ; c) garantir a transparência institucio-
nal e a prestação de contas como forma de prevenir e punir corrupção633; d)
remunerar os profissionais com base em desempenho634; e) usar processos
competitivos e transparentes para preencher posições635. Dessa forma, os pro-
fissionais se sentem estimulados a trabalhar com seriedade e com afinco, uma
vez que a recompensa lhes é conferida, mediante aumento por produtividade
e/ou preenchimento de posições por conta do desempenho.
Para além disso, no recente relatório da ONU, o engajamento civil possui
3 pilares: a) amplo acesso à informação ambiental; b) oportunidades realistas e
significativas de participar dos processos decisórios relativos ao meio ambiente
e c) acesso efetivo aos procedimentos judiciais e administrativos para reparar e
remediar os danos ambientais636. O amplo acesso à informação ambiental pode
se dar através de: sites com informações atualizadas sobre o estado do meio am-

629 PNUMA, op. cit. p. 65.


630 Idem, p. 37.
631 KAUFMANN, Daniel. 2015. “Evidence-Based Reflections on Natural Resource Governance and
Corruption in Africa.” In Africa at a fork in the road: Taking Off or Disappointment Once Again
edited by Ernesto Zedillo, Olivier Cattaneo, and Haynie Wheeler, 239–260. New Haven, CT: Yale
Center for the Study of Globalization. Disponível em: <https://ycsg.yale.edu/sites/default/files/files/
africa.pdf>. Acesso em: 31 de ago. 2020. p. 29.
632 PNUMA op. cit., p. 64.
633 PNUMA, op. cit., p. 82.
634 Idem, p. 85.
635 Ibidem, p. 85.
636 Ibidem, p. 89.

164
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

biente e fontes de poluição; repositórios de informações; linhas diretas; briefings;


e uso da imprensa e da mídia para se comunicar com o público637.
De acordo com os estudos documentados pelo Programa das Nações
Unidas para o Meio Ambiente, o engajamento civil traz inúmeros benefícios
para a sociedade, entre eles: a) estímulo ao monitoramento pelo público das
questões ambientais, b) melhoria da qualidade e legimitidade do processo po-
lítico; c) emponderamento do público638 .
A forma mais substancial de engajamento civil - tanto em termos de
impacto e custo - é um envolvimento ativo. Além de apresentar opções à so-
ciedade civil e buscar feedback, o engajamento ativo envolve as pessoas muito
mais cedo e continua ao longo do processo. As pessoas podem ser solicitadas
a ajudar a identificar problemas de compliance e enforcement ambiental ou a
auxiliar no monitoramento e enforcement. Isso pode envolver discussões for-
mais ou informais com grupos de partes interessadas. Nesse nível mais alto de
participação, as partes interessadas se tornam ativas na tomada, implementa-
ção, monitoramento e aplicação de decisões ambientais639.
Nessa perspectiva, é fundamental o respeito à lei (= compliance), que
significa, sinteticamente, o cumprimento integral das exigências legais, vale
dizer, a adequação dos sujeitos-destinatários aos comportamentos e padrões
estatuídos. Tal concepção é frequentemente tratada como se fosse um estado,
objetivamente definido e não-problemático. Muito ao contrário, o respeito à
lei é um processo complexo e fluido640 (BENJAMIN, 2006, p. 25), que, diante
das crises atuais, confirma uma análise reflexiva do direito ambiental, uma
crítica ao modelo tradicional de command and control, caracterizado sempre
pela “excessiva poluição normativa” ineficaz e pela complexidade da regula-
ção ambiental, vindo o compliance para a área ambiental a desempenhar de
relevo no reforço das políticas públicas de tutela ambiental641.

637 Ibidem, p. 90.


638 Ibidem, p. 94.
639 Ibidem, p. 90.
640 BENJAMIN, Antonio H., op. cit., p. 25.
641 SARAIVA, Renato Machado. Criminal compliance como instrumento de tutela ambiental: a
propósito da responsabilidade penal de empresas. 1.ed. São Paulo: LiberArs, 2018. p. 163.

165
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

Com esse viés, a IUCN pela “World Declaration on the Environmental


Rule of Law”, publicada em 2016, dispõe que, dentre os meios de implemen-
tação de um Estado de Direito Ambiental efetivo, cumprem serem observa-
dos os seguintes instrumentos: a) Sistemas de monitoramento e relatórios que
permitem avaliações precisas do estado da ambiente e as pressões sobre ele,
b) Medidas anticorrupção, incluindo aquelas que tratam de conduta antiética
e supervisão, c) Sistemas de gestão ambiental com suporte legal e que levem
em consideração risco ambiental e a vulnerabilidade dos sistemas sociais e
econômicos em face da deterioração ecológica”642.
Inclusive, na mesma declaração, a IUCN afirma que, como bases de um
efetivo Estado de Direito Ambiental estão “as medidas para garantir o cum-
primento efetivo de leis, regulamentos e políticas, incluindo aplicação cri-
minal, civil e administrativa adequada, responsabilidade ambiental danos e
mecanismos para a solução oportuna, imparcial e independente de disputas,
além de regras eficazes sobre igualdade de acesso à informação, participação
do público na tomada de decisões, e acesso à justiça643.
Há, entretanto, desafios para que o engajamento civil possa ser concreti-
zado, entre eles mencione-se a ausência de informações relevantes sobre ques-
tões ambientais. Nesse caso, pesquisa realizada por Worker e Silva644, através
do World Resources Institute, constatou que informações sobre ar e água para
consumo são publicizadas em apenas 50% dos países pesquisados. Assim, in-
formações relacionadas a recursos naturais indispensáveis a uma sadia quali-
dade de vida têm sido pouco divulgadas para a coletividade, o que obstaculiza
o engajamento civil, uma vez que sem informação a participação se fragiliza.
Ademais, são ainda desafios para o engajamento civil em matéria am-
biental: cultura de decisões realizadas de forma centralizada; falta de capaci-
dade dos governos; poucos funcionários das agências; dificuldade de se con-

642 IUCN, World Declaration on the Environmental Rule of Law. World Congress on Environmental
Law, having met in Rio de Janeiro (Brazil). 2016. Disponível em: <https://www.iucn.org/sites/dev/
files/content/documents/english_world_declaration_on_the_environmental_rule_of_law_final.
pdf>. Acesso em 13 jul. 2020. p. 4.
643 IUCN, op. cit., p. 5.
644 WORKER, J. and Lalanath De Silva. 2015. “The Environmental Democracy Index.” Technical Note.
Washington, D.C.: World Resources Institute. Disponível em: <www.environmentaldemocracyindex.
org.>.Acesso em: 5 mai. 2020.

166
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

tactar com os segmentos marginalizados e fragilizados da sociedade; necessi-


dade de tornar as traduções disponíveis para populações indígenas ou outras
645
. Um aspecto importante consiste também na necessidade também de se
avançar a fim de garantir que o acesso à informação não seja apenas passivo,
ou seja, em que o Poder Público fornece informação somente quando instado
a fazê-lo. É necessária maior transparência em matéria ambiental efetivando-
-se, por conseguinte, o acesso ativo que ocorre quando o governo torna a in-
formação disponível por sua própria iniciativa ou por mandamento legal646 .
O Relatório sobre o Estado de Direito Ambiental menciona ainda a ne-
cessidade de se efetivar o princípio da não-regressão, lembrando da interde-
pendência existente entre Estado de Direito Ambiental e os Direitos Huma-
nos, como o direito à saúde, à água, à alimentação e ao saneamento647. Para
além de não retroceder, a ordem constitucional brasileira abarca a ideia do
princípio da melhoria ambiental que pode ser compreendido a partir da ideia
do progresso da humanidade, um dos objetivos fundamentais do modelo po-
lítico instituído no Brasil, a ser atingido através da cooperação com outras
nações, nos termos do artigo 4o, inc. IX, da Constituição Federal.
Nesse ponto, merecem destaque as considerações elaboradas pelo Ministro
do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Antônio Herman Benjamin, segundo o
qual ao abraçar o ‘progresso da humanidade’ na forma de conceito informador
de seu sistema, o texto constitucional mostra-se triplamente propositivo. De um
lado, porque se aponta de maneira inequívoca, que o País buscará avançar na-
quilo que o constituinte referiu, sem explicar, como ‘progresso’. De outro, por-
quanto não se trata apenas de objetivo de concretização nacional, mas de pro-
gresso da e para a humanidade, uma aspiração constitucionalizada de melhoria
universal: progresso planetário, de modo a incluir os seres humanos e todas as
bases da vida na terra, das quais nossa sobrevivência e bem-estar dependem.
Finalmente, porque progresso haverá de se entender não apenas como prospe-
ridade material, pois ao certo inclui a ampliação e fortalecimento permanente
do arcabouço de velhos (liberdade, p. ex.) e novos (qualidade ambiental, p. ex.)
valores intangíveis, muitos deles coletivos por excelência e subprodutos da ética

645 PNUMA, op. cit., p. 99.


646 Idem. p. 117.
647 Ibidem. p. 137.

167
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

da solidariedade e da responsabilidade: a prosperidade imaterial, patrimônio


que, embora etéreo e impável, configura indiscutível realidade648.
Em tempos de coronavírus, essa necessidade de implementar os princí-
pios da não-regressão e da melhoria ambiental parece evidente, haja vista a
interrelação existente entre a proteção ambiental e a saúde humana. Por esse
motivo, o relatório da ONU lembra que: a) em 2015, a poluição causou cerca
de 9 milhões de mortes prematuras, o que implica diretamente o direito à
vida, b) as mudanças climáticas representam um risco direto para a identi-
dade de muitas nações insulares que podem ser destruídas pelo aumento do
mar; c) a exploração excessiva e injusta de recursos prejudica os direitos indí-
genas e as gerações futuras649.
Foram mencionados avanços na jurisprudência, na legislação e em
Constituições. Como precedente relevante em termos de proteção ambiental,
foi trazido o caso de uma organização não governamental, Urgenda, que pro-
cessou o governo holandês por não tomar ações suficientemente fortes para
reduzir as emissões de gases de efeito estufa para combater as mudanças cli-
máticas. O Tribunal Distrital de Haia concluiu que as ações do governo eram
insuficientes e, portanto, havia violado o dever de cuidado devido aos cida-
dãos holandeses. Ao decidir, o Tribunal examinou os artigos 2 (direito à vida)
e 8 (respeito à vida privada e familiar) da Convenção Europeia de Direitos Hu-
manos, entre outras disposições de acordos internacionais. O tribunal orde-
nou que o governo reduzisse as emissões de efeito estufa em pelo menos 25%
até 2020, em vez dos níveis de 14 a 17% que o governo havia planejado. Em
outubro de 2018, um tribunal de apelações confirmou e reforçou a decisão650.
Mencionou-se legislação avançada da África do Sul que permite expli-
citamente que os cidadãos processem em seu próprio interesse, em virtude
de interesse público ou como membro de um grupo ou classe por violações
do direito constitucional a um ambiente saudável651. A Constituição da Costa
Rica, por sua vez, consagra o princípio dos interesses difusos, que permite que

648 BENJAMIN, A. Herman. Princípio da proibição de retrocesso ambiental. In: SENADO FEDERAL.
O princípio da proibição de retrocesso ambiental. Brasília: Senado Federal, 2011. p. 56.
649 PNUMA, op. cit., p. 143.
650 Idem. p. 152.
651 Ibidem. p. 154.

168
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

indivíduos ajuizem ação em nome do interesse público, inclusive no interesse


da proteção ambiental652. Também a África do Sul em 1996 adotou uma nova
constituição que inclui o direito constitucional à água e requer que o Estado
adote medidas legislativas razoáveis e outras medidas a partir de seus recursos
disponíveis para alcançar o progresso na realização desse direito653.
Houve ainda significativo progresso da proteção ambiental a partir da
perspectiva do reconhecimento do valor intrínseco da natureza. Dessa for-
ma, a Constituição do Equador reconhece os direitos da Natureza, ou “Pacha
Mama” e um Estatuto boliviano exige que o Estado e os indivíduos respeitem
os direitos da Mãe Terra. Ademais, na Nova Zelândia, “Te Urewera”, um anti-
go parque nacional, foi declarado “uma entidade legal e tem todos os direitos,
poderes, deveres, e passivos de uma pessoa coletiva ”exercidos por um conse-
lho designado em seu nome. Ainda na Nova Zelândia, um Tribunal declarou
um rio como uma entidade legal com direitos legais, e um tribunal superior
indiano declarou o Rio Ganges e o Rio Yamuna (um afluente do Ganges), bem
como as geleiras e florestas do Himalaia nas cabeceiras desses rios, como en-
tidades vivas com direitos legais654.
O Relatório em comento aponta ainda a necessidade de que as multas e pe-
nalidades devem não apenas punir o comportamento ilegal passado, mas tam-
bém impedir o comportamento ilegal futuro. Nos Estados Unidos, por exemplo,
as penalidades federais por violações de água e resíduos podem chegar a US $
250.000 por dia e 15 anos de prisão, enquanto as violações ao ar podem chegar
a US $ 1 milhão por dia655. De acordo com o PNUMA, um método eficaz para
combater esse problema é que a sanção em dinheiro seja quantificada de modo
a recuperar o benefício econômico ou o lucro obtido a partir de qualquer vio-
lação. Dessa forma, as empresas que se esforçam para cumprir a lei não devem
estar em desvantagem competitiva com aquelas que não cumprem a norma656.
Ademais, o PNUMA destaca que, por lesões a recursos naturais públi-
cos, os Estados Unidos e a União Europeia enquadraram pedidos de compen-

652 Ibidem. p. 193.


653 Ibidem. p. 155.
654 Ibidem. p. 195.
655 Ibidem. p. 215.
656 Ibidem. p. 216.

169
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

sação como planos de restauração, com componentes separados para restau-


rar ou substituir os recursos e serviços ecossistêmicos feridos ou destruídos e
para compensar as perdas intermediárias desde o momento da lesão até que os
recursos e serviços ecossistêmicos retornem aos seus níveis de linha de base657.
Como solução inovadora, o PNUMA traz, por exemplo, após a tragédia de
Bhopal, na Índia, o caso em que o tribunal indiano ordenou ao governo que use
os recursos da liquidação para comprar seguro médico para 100.000 pessoas
que possam desenvolver sintomas no futuro e encorajou a empresa responsável
a financiar a construção de um hospital local, o que foi feito. Foi ainda relatado
que a compensação pode ser combinada com ordens de reparação; por exemplo,
os tribunais ordenaram o monitoramento médico das comunidades expostas a
produtos químicos potencialmente tóxicos e a divulgação obrigatória de quais-
quer impactos à saúde atribuíveis à exposição a produtos químicos658.
Enfim, percebe-se a partir da compilação elaborada por ocasião da pro-
dução do Relatório Estado de Direito Ambiental, Primeiro Relatório Global
em 2019, pelo Programa das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, que
grandes foram os esforços no sentido de se avançar tanto constiticionalmente
quanto infra-constitucionalmente na proteção do meio ambiente, entretan-
to permanecem os desafios no que se refere à efetividade dessas normas. O
novo coronavírus reforça a era das incertezas, pois grandes são as dúvidas
sobre quais serão os próximos acontecimentos para a humanidade e o planeta,
havendo inclusive previsões bastante catastróficas sobre o futuro, exemplifi-
cando-se com a possibilidade da ocorrência de uma nova zoonose a cada 4
meses, o que evidencia uma realidade em metamorfose do mundo em que
vivemos e nos reforça um sentimento de insegurança com relação a nossa
própria vida659. Para além dessa previsão, já se afirma que a pandemia do novo
coronavírus está mais para um ensaio geral da big one (a maior, ou a grande
pandemia), essa sim uma pandemia que pode matar bilhões660.

657 Ibidem. p. 217.


658 Ibidem. p. 217.
659 UNEP, 2016, op. cit., p. 18.
660 BBC. Coronavírus: OMS declara pandemia. 2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/
portuguese/geral-51842518> Acesso em: 17 abr. 2020.

170
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

Esse cenário delineado a partir da pandemia do novo coronavírus reforça


o dever de redobrar a atenção para a questão ambiental, disseminando as boas
estratégias já implementadas a fim de que os bons exemplos possam ser segui-
dos. Nesse sentido, o Relatório o Estado de Direito Ambiental, diante da sua
atualidade e da grande compilação de informações e instrumentos destinados
à proteção do meio ambiente merece a atenção da comunidade acadêmica, dos
gestores públicos, bem como de todos aqueles que operam o Direito Ambiental,
sem esquecer que o conteúdo desse relatório interessa a todo cidadão.
O meio ambiente é um bem que pertence a toda a coletividade e a sua
proteção requer uma atuação do Poder Público e da coletividade, na medida em
que parece evidente que está mais do que na hora de assumirmos o dever que
nos foi imposto constitucionalmente de proteger o bem intergeracional ambien-
tal. Dessa forma, apesar de todas as perdas que o coronavírus têm trazido para
a humanidade, ele pode servir como propulsor de um catastrofismo emancipa-
tório sugerido por Ulrich Beck, somente se soubermos utilizar a informação,
os instrumentos e especialmente o direito em harmonia com a natureza e o
equilíbrio ambiental, fatores que estão ao nosso dispor, confirmando a missão
emancipatória do direito com a qual o presente artigo pretende contribuir.
E para a melhor compreensão política e jurídica dos desafios da crise
ecológica e da pandemia global, cumpre redimensionar o fundamento da tu-
tela do Direito Ambiental vigente e, sobretudo, do Estado de Direito tradi-
cionalmente desenvolvido, a fim de implementá-los efetivamente de modo a
repercutiram em movimentos atuais por um Green New Deal, aproximando
o paradigma de desenvolvimento do Estado, da política, da economia, mas
sobretudo do direito da natureza e das bases biofísicas do planeta, de modo
a garantir a dignidade e integralidade de uma Justiça ecologicamente almeja,
para garantir a vida em todas as suas formas.

4.5 Para um Direito Ambiental Ecologizado, Emancipado,


Pós-Pandêmico e Precursor de um Green New Deal Global
Dados os contornos da crise humana e ecológica vivenciada, nota-se
que o momento por que passam a humanidade e o planeta - delineado pela
sociedade de risco e agora pela metamorfose mundial - confirma a falência e

171
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

ineficácia do paradigma jurídico e político de desenvolvimento aplicados até


então, o que faz exigir uma implementação da proteção ambiental efetiva e
sistêmica nas ordens política, jurídica e econômica, no horizonte de uma Jus-
tiça ecologizada, holística, que considere direitos da própria natureza e dos se-
res não-humanos, que, ao fim, concretize materialmente um desenvolvimento
sustentável por um Green New Deal global.
Com a pressão evolucionária gerada pela pandemia, a qual se correlaciona,
como visto, com a sua antecessora e conhecida crise ecológica, é chegado mo-
mento de imaginar, conceituar e concretizar “gestos barreira”, não apenas contra
o vírus da Covid-19, mas sim contra cada elemento de um modo de desenvol-
vimento econômico e político que não se deseja a retomada661. O gesto jurídico,
aqui proposto, gira em torno de uma virada copernicana de matriz ecocêntrica no
direito ambiental, objetivando uma política, economia e, especialmente, uma Jus-
tiça pensada ecologicamente. No tópico anterior foram mencionadas as mudan-
ças ecológicas nas dimensões de direitos constitucionais ambientais pelo mundo,
ressignificando o direito constitucional e o ambiental para uma ordem ecológica,
que faça frente a um direito vigente que ainda mantêm o desenvolvimento causa-
dor da berlinda civilizacional atual da humanidade e do planeta.
Antes da pandemia do novo coronavírus, já se previa a sexta extinção
em massa, nos dizeres de Elizabeth Kolberth662, agravada pela pujante Épo-
ca do Antropoceno, alertada pelo Nobel de química Paul J. Crutzen e Eugene
F. Stoermer, pois desenvolver uma estratégia mundialmente aceita que leve à
sustentabilidade dos ecossistemas contra o estresse induzido pelo homem será
uma das grandes tarefas futuras da humanidade663.
Pela primeira vez na história não se pode mais confiar na salvaguarda
do alcance limitado dos atos humanos, não é mais válido sentenciar que, seja
o que for que se faça, a história continuará664. O cenário é de confronto com
as certezas que outrora pavimentaram as ciências, a economia, a política e,
em especial, o direito, não restando mais do que o reino da incerteza dos ca-

661 LATOUR, B., op. cit.


662 KOLBERTH, Elizabeth. A sexta extinção: uma história não natural. Tradução: Mauro Pinheiro. 1
ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015.
663 CRUTZEN, P. J.; STOERMER, E. F. The Anthropocene. Global Change Newsletter, v. 41, 2000.
664 ZIZEK, S. Em defesa das causas perdidas. Tradução: Maria Beatriz de Medina. São Paulo:
Boitempo, 2011. p. 341.

172
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

minhos para o futuro do planeta, pois se chega ao fim das certezas, restando
o império das probabilidades, no qual a incerteza prevalece, como delineou
outro Nobel de química Ilya Prigogine665.
Por essas razões, falar na extinção do mundo é falar da necessidade de
imaginar, antes que um novo mundo em lugar deste mundo presente, um
novo povo, o povo que falta, um povo que creia no mundo que ele deverá criar
com o que de mundo seja deixado para ele666 , um novo povo com um novo
Estado, política e direito, pensados ecologicamente, conexos com a natureza,
mantendo-se um mundo com um povo existente.
O mundo presente, que agoniza existência, agora está em metamorfo-
se, consistente nos efeitos colaterais incontroláveis do alegado progresso da
humanidade, produzidos de maneira não intencional e que o conceito de Es-
tados-nação e do próprio direito vigente não os compreende e tampouco as re-
gula satisfatoriamente667. Os riscos globais são, assim, o agente da metamorfose
do mundo, porquanto só podem ser compreendidos pela soma dos problemas
para os quais não há resposta institucional668. É o que se observa no caso do
novo coronavírus e da crise ecológica e climática mundial, cujos efeitos adver-
sos cada vez mais são descontrolados, gerando perdas irreparáveis para toda a
sociedade, senão sua extinção.
Com tais elementos postos, o desafio que se sobressalta exige a redefini-
ção das estratégias políticas e econômicas de Estado e o seu fundamento no
direito e nas leis, que, face à crise ecológica e climática, deverão ser considera-
dos pelo critério sustentável e ecológico, como no caso do Green New Deal em
vários países, em especial Coreia do Sul e a União Europeia. É momento em
que o Direito Ambiental vigente necessita ser revisto sob pena de não atingi-
mento dos objetivos almejados e agravamento das crises vivenciadas.
As crises ecológica e pandêmica definem o desafio para o Direito Am-
biental vigente, qual seja, possibilitar a efetiva regulação e tutela de um desen-

665 PRIGOGINE, I. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. São Paulo: Edunesp, 1999.
666 DANOWSKI, Deborah. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins / Deborah Danowski, Eduardo
Viveiros de Castro. – Florianópolis: Cultura e Barbárie: Instituto Socioambiental, 2014. p. 159.
667 BECK, U. A metamorfose do mundo: novos conceitos para uma nova realidade. Tradução Maria
Luiza X. de A. Borges; revisão técnica Maria Claudia Coelho. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
668 Op. cit. p. 93.

173
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

volvimento que considere a integridade ecológica do planeta, que parametrize


a política e a economia em projeções ecológicas, nos limites biofísicos da na-
tureza, observando uma justiça capaz de enfrentar os desafios da emergência
climática, como assim postulam movimentos de Green New Deal ou Novo
Acordo Verde pelo mundo.
Considerando o manifesto consenso científico mundial acerca da emer-
gência climática, Naomi Klein afirma que, diante de tais cenários desenhados
pela ciência, a política e as leis devem ser reinterpretadas pelas principais na-
ções mundiais a darem respostas à crise climática incontroversa, e uma medi-
da estrutural com esse sentido é o Green New Deal669.
Pelo vértice político e econômico, não apenas jurídico, a proposta Green
New Deal se inspira no New Deal original de Franklin Delano Roosevelt na déca-
da de 1930, que respondeu a uma crise paradigmática marcada pela miséria após
colapso da Grande Depressão com uma enxurrada de revisitação de leis, políticas
e investimentos públicos, desde a introdução da Previdência Social e salário míni-
mo, a regulação dos bancos, a eletrificação da América rural e construção de uma
onda de moradias de baixo custo nas cidades, para plantar mais de dois bilhões de
árvores670 , momento consequências semelhantes ao pós-Covid-19.
A autora e ativista canadense ressalta que, face a pujante emergência cli-
mática posta, a humanidade tem uma chance única neste século de reconfigu-
rar um modelo que está falhando com a sociedade e com o planeta em várias
frentes671. O paradigma político, jurídico e econômico atual está destruindo
nosso planeta também, está destruindo a qualidade de vida humana de mui-
tas outras maneiras, desde a estagnação salarial às desigualdades em serviços
desmoronando, à custa da quebra de qualquer aparência de coesão social672,
fatores tais agravados pela pandemia do novo coronavírus. Um movimento
por um Green New Deal político, jurídico e econômico representa desafiar
essas forças subjacentes, significa a oportunidade para resolver várias crises
interligadas de uma só vez 673.

669 KLEIN, N. On fire: the burning case for a green new deal. New York: Simon & Schuster, 2019. p. 29.
670 KLEIN, N. op. cit., p. 31.
671 Idem. p. 29.
672 Ibidem. p. 29.
673 Ibidem. p. 30.

174
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

Dentro dessa ressignificação do modelo desenvolvimentista das leis e


da política, ao enfrentar a crise climática por meio de um Green New Deal,
o resultado dessas transformações seriam modelos de sociedade construídas
tanto para proteger e regenerar os sistemas de suporte à vida do planeta como
para respeitar e sustentar as pessoas que deles dependem674.
Para Jeremy Rikfin, felizmente um New Deal Verde espalha-se pelo
mundo com regulamentações pela União Europeia e Estados Unidos, reafir-
mando a história humana baseada em narrativas na história compartilhada e,
ao fazê-lo, confirma o ser social coletivo humano675. O Green New Deal é um
“enredo” que evoluiu e amadureceu ao longo anos, assumindo significados
cada vez mais sofisticados e diferenciados. E agora a humanidade encontra
no meio de um potencial fim de jogo676, ou, esperançosamente, de um novo
começo, para um catastrofismo emancipatório como denota Ulrich Beck677.
O Green New Deal dá voz coletiva a um senso compartilhado de nossa mis-
são comum, desvenda tão desesperadamente necessário o dever humano de
transformar a história em uma narrativa política e jurídica poderosa que pode
levar a história humana a frente678.
Com a pandemia mundial e a elevação do debate acerca de um retomada
sustentável pós-Covid-19 dos países mais afetados, irrompe momento de lutar
para que, uma vez controlada a crise pandêmica, a reativação do novo “nor-
mal” da sociedade não traga de volta o mesmo velho regime climático (man-
tido pelo Direito vigente) tão combatido, até hoje em vão, pois, de fato, a crise
sanitária está embutida em algo que é, não uma crise – uma crise é sempre
passageira -, mas uma mutação ecológica duradoura e irreversível679.
Dentro deste contexto de reconceituações e redefinições, o Direito Am-
biental vigente necessita ser revisto justamente sob a perspectiva ecológica e
social de um movimento como o Green New Deal, o qual não se destina ape-

674 Ibidem. p. 30/31.


675 RIFKIN, J.. The Green New Deal: Why the fossil fuel civilization will collapse by 2028, and the bold
economic plan to save life on Earth. New York: St. Martin´s Press, 2019. p. 65
676 RIFKIN, J., op. cit., p. 65.
677 BECK, U., 2018, op. cit.
678 RIFKIN, op. cit., p. 65.
679 LATOUR, op. cit.

175
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

nas a mobilizar o público para pressionar os governos a aprovar nova legisla-


ção e subsidiar iniciativas verdes. Pelo contrário, é a primeira chamada para
um novo tipo de movimento político-jurídico de pares e governança comum
que pode capacitar toda comunidades a assumirem o controle direto de seus
futuros em um momento muito sombrio da história da vida na terra680.
É com este viés que a União Europeia, no fim de 2019, deu início ao Euro-
pean Green Deal, em que declarou expressamente que o movimento político-
-jurídico apoiará a transição ecológica do modelo de Estado da EU, afim de
envolver-se com parceiros em ações climáticas e ambientais, exigir compro-
missos com a sustentabilidade continuamente nos acordos comerciais da UE,
em particular no que diz respeito ao aprimoramento das ações de mudança
climática, também intensificar os esforços para implementar e fazer cumprir
os compromissos de desenvolvimento sustentável681.
A União Europeia, desse modo, deflagra novo patamar ao Dreito Ambiental,
tanto em seu nível nacional como internacional, posto que a entidade de países
europeus manifesta que o European Green Deal tratará da coordenação político-
-jurídica e macroeconômica para integrar o desenvolvimento sustentável das Na-
ções Unidas objetivos, colocar a sustentabilidade e o bem-estar dos cidadãos no
centro da economia política e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da
ONU no centro da formulação de políticas e ações da UE682.
Para tanto, declara-se com o European Green Deal que a Comissão Euro-
peia e os Estados-Membros devem também garantir que as políticas e a legislação
sejam aplicadas e cumpridas de forma eficaz, tendo a implementação ambiental
um papel crítico no mapeamento da situação em cada Estado-Membro683.
Com esses desafios estruturais expostos que o Direito Ambiental deve
ser observado em sua implementação efetiva, embasando ações políticas
e econômicas, pois tal ramo do direito possui características peculiares na
complexa compreensão dos desafios políticos, econômicos e jurídicos alçados
pelo Green New Deal. Esses desafios em face do Direito Ambiental agora são

680 RIFKIN, op. cit., p. 91/92.


681 EUROPEAN COMISSION. European green deal. 2019. Disponível em: <https://ec.europa.eu/info/
strategy/priorities-2019-2024/european-green-deal_pt> Acesso em 20 jun. 2020.
682 EUROPEAN COMISSION. op. cit.
683 Idem.

176
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

agravados pelos reflexos da pandemia do novo coronavírus à sociedade mun-


dial, uma vez que sua função primordial está orientada para tutelar e regular
um bem jurídico globalizado que é a natureza e seu equilíbrio, o que envolve
dilemas complexos. Um desses dilemas está na questão vulnerável entre gera-
ções presentes e futuras, pois os riscos ecológicos, assim como os da Covid-19,
atingem a todos, embora não da mesma forma, o que impõe mecanismos jurí-
dicos de correção das injustiças entre estados, gerações e entre espécies, o que
ressalta a evolução para uma justiça ecológica684.
Um Estado de Direito Ambiental efetivo, que busca implementar repos-
tas às complexidades da pandemia e da crise ecológica e climática, está no
centro da retomada pós-Covid-19, já que essas crises não podem mais ser ne-
gadas pelo Poder Público e pela própria sociedade, surgindo a oportunidade
em que tudo pode ser realocado, infletido, selecionado, triado, interrompido
de vez, ou, pelo contrário, acelerado685, começando pela metamorfose do Direi-
to Ambiental, implementador da mudança ecológica mundial.
Nesse caminho por um Direito Ambiental precursor do Green New Deal
global, não se pode ignorar uma justiça do ponto de vista ecológico, pois de-
fender a aplicação da justiça para o mundo natural é garantir tutela jurídica
das bases que sustentam a vida, para que recebam a sua parcela equitativa de
amparo do direito e do Estado686.
Isso importa dizer que o direito ambiental tradicionalmente aplicado care-
ceu até então de uma abordagem holística para a concretização do justo e do equâ-
nime, que considere as questões complexas geradas pela emergência climática,
devendo ser incluída a natureza e suas qualidades compartilhadas no espectro
de amparo do conceito tradicional de justiça687. Sem o reconhecimento da natu-

684 LEITE, J. R. M.; SILVEIRA, P. G. A ecologização do Estado de Direito: uma ruptura ao Direito
Ambiental e ao Antropocentrismo vigentes. In: A Ecologização do Direito Ambiental vigente:
rupturas necessárias. Orgs. CAVEDON-CAPEDEVILLE, F.; LEITE, J. R. M. 1. Ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2018. p. 101.
685 LATOUR, op. cit.
686 DAROS, L F. Delineando uma compreensão da Justiça Ecológica para perspectiva do direito
ambiental ecologizado. p. 67-100. In: A Ecologização do Direito Ambiental vigente: rupturas
necessárias. Orgs. CAVEDON-CAPEDEVILLE, F.. LEITE, J. R. M. 1. Ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2018. p. 89.
687 DAROS, op. cit., p. 93.

177
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

reza no farol do justo pelo direito, permanecerá permitida a ameaça histórica do


modelo desenvolvimentista humano sobre a integridade dos sistemas naturais688.
Uma reconfiguração das bases do Direito Ambiental vigente, capaz de
possibilitar e também concretizar um Green New Deal global deve responder
às mudanças climáticas (agora também à pandemia), o que exige a releitura pro-
funda das regras do manual de livre mercado, a reconstrução da esfera pública,
revisão do foco em privatizações, realocação de grandes partes das economias,
redução da produção e consumo excessivos, recuperação e planejamento de
longo prazo, regulamentação e tributação verde das empresas, cortes de gastos
militares e reconhecimento das dívidas das grandes nações com o sul global689.
Medidas que devem ser acompanhadas por um esforço massivo e am-
plo para radicalmente reduzir a influência que as empresas exercem sobre o
processo político. Em resumo, as mudanças climáticas desafiam a ordem pré-
-existente, vinculando-os a uma agenda coerente baseada em um claro impe-
rativo ambiental mundial690 .
Soma-se à necessária reformulação ecológica do direito a refundação da
dimensão da justiça, para um conceito de justiça ecologizado, distante da jus-
tiça como construção exclusivamente humana e abstrata, fundada em uma
estrutura ética e filosófica de comportamentos dos seres humanos, uma justi-
ça imune à ideia controversa liberal, de matriz antropocêntrica, embasada na
excepcionalíssima espécie humana691.
Não resta dúvida sobre a direta relação existente entre desenvolvimento
agressor dos limites biofísicos e ecológicos do planeta e o sistema jurídico e
leis falhos, incapazes de oferecer mecanismos e de protegerem eficazmente a
vida na Terra e a integridade ecológica, razões tais que apoiam à reforma da lei
e à criação de um novo paradigma jurídico orientado para o sistema terrestre
adequado à finalidade na época do Antropoceno692.

688 SCHLOSBERG, D. Defining Environmental Justice: Theories, movements and Nature. United
Kingdom: Oxford University Press, 2007. p. 142.
689 KLEIN, op. cit., p. 80.
690 Idem. p. 80.
691 SCHLOSBERG, op. cit., p. 75.
692 KOTZÉ, Louis J. Earth System Law for the Anthropocene. In: Sustainability, 2019. Disponível em:
<https://www.mdpi.com/2071-1050/11/23/6796#cite>. Acesso em 20 jun. 2020.

178
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

Cumpre ser promovida uma reconfiguração ecológica de direito am-


biental posto e de Estado de direito vigente, pautada por um sistema político-
-jurídico que reconheça sistemas social e ecológico como inseparáveis, que
preveja mudança de intervenções locais destinadas e em conformidade com
intervenções globais multi-escalares, que operam em diferentes regiões e es-
calas de tempo em um ambiente dinâmico, de modo a descartar suposições
de linearidade, previsibilidade e incrementalidade, para uma abordagem que
abrace a complexidade e a possibilidade de pontos de inflexão sistêmicos não
lineares, como o do direito tradicional 693.
A pandemia do Covid-19 (cujas raízes estão firmadas na crise entre ho-
mem e ambiente) e as crises ecológica e climática mundial confirmam que o
grande esforço legislativo dos últimos anos (trabalho fundamentalmente de
regulação) não se tem mostrado capaz de estancar a devastação ecológica, o
mal funcionamento maior está na implementação, no fomento, na vontade
política e social, inclusive na inadequação de seus meios jurídicos694. Precisa-
mos, sem dúvida, de melhor implementação, mas, até com mais urgência, de
um novo modelo de Estado de Direito Ambiental, no qual o Poder Público e a
sociedade entendam que, um Direito que permite a descontrolada transgres-
são das normas ambientais, impede o desenvolvimento da vida humana, se o
queremos fazer em bases sustentáveis695.
Dadas as dimensões catastróficas da crise ecológica e da emergência cli-
mática, agora agravadas e interconectadas com a pandemia da Covid-19, é
preciso primordialmente a superação pelo Direito Ambiental vigente de suas
limitações, para um Direito Ecológico, emancipado, metamorfoseado pelas
transformações mundiais, pois, como visto, o combate das causas da pande-
mia e da crises ecológica e climática mundial perpassam, impreterivelmente,
por um Estado de Direito ambiental efetivo, de modo a gerar bases e mecanis-
mos para um Green New Deal global, derrubando as narrativas, ideologias e
interesses econômicos antropocêntricos, para dar respostas a crises aparente-

693 KOTZÉ, op. cit.


694 BENJAMIN, op. cit., 2003, p. 51.
695 Idem, p. 52.

179
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

mente díspares (econômicas, sociais, ecológicas e democráticas) em uma his-


tória comum de transformação civilizacional696.
Embora possível a retomada da vida humana pós-pandemia, o problema
seguirá face à “segunda” grande crise civilizacional, a crise ecológica e climá-
tica contra a vida na Terra. As condições mínimas de bem-estar humano, não-
-humano e da própria natureza, as crises da Covid-19 e a ecológica-climática
mundial não estão na mesma escala, porém é necessário relacioná-las, caso
não haja tal movimento, impossível a humanidade descobrir como adentrar à
mutação ecológica, que não seja às cegas697 .
O cenário exige mais do que nunca um direito ambiental em metamorfose,
pois o desenvolvimento (e a não regulação) dos efeitos colaterais do modelo vigen-
te de Estado-nação, da política e das leis reconfigura o mundo698. O Direito precisa
tutelar as injustiças atuais, que não se limitam apenas à redistribuição dos frutos
do progresso, mas à própria maneira de fazer o planeta produzir frutos, cumprin-
do a revisão de cada uma das conexões supostamente indispensáveis, experimen-
tando o que é desejável e o que deixou de sê-lo para a humanidade699.
Como Gregor Samsa, de “A Metamorfose” de Franz Kafka, metamor-
foseado para a figura de um inseto, o direito ambiental está diante de uma
alteração e disrupção inéditas, consequência da catástrofe humana e ecológi-
ca em curso, desafios para uma ruptura necessária: metamorfosear o direito
ambiental vigente.

4.6 Considerações Finais


Com todo o exposto, conclui-se evidente a relação existente entre as ori-
gens ambientais da pandemia do novo coronavírus e a crise ecológica mun-
dial, cujos agravamentos exigem fundamental ruptura das bases epistemoló-
gicas e regulatórias do Direito Ambiental vigente, implicada pela sociedade de

696 KLEIN, op. cit., p. 22.


697 LATOUR, op. cit.
698 BECK, 2018, op. cit.
699 LATOUR, op. cit.

180
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

risco mundial e pela metamorfose do mundo, para o enfrentamento de toda a


complexidade do novo coronavírus e da emergência climática.
As características que marcam a fase catastrófica por que passa a hu-
manidade e o planeta revigoram a teoria da sociedade de risco de Beck, que
agora está representada pela metamorfose do mundo, uma vez que as certe-
zas de outrora acabam por desaparecer, frente aos choques antropológicos em
ascensão, como a pandemia do novo coronavírus e as mudanças climáticas,
exigindo revoluções no pensar político, econômico e sobretudo o jurídico,
surgindo um catastrofismo capaz de emancipar o direito para a ecologização
e o equilíbrio planetário.
Em busca da compreensão de tais alterações, como um presságio cien-
tífico da crise do novo coronavírus, foram lançadas as evidências registradas
no relatório do PNUMA, publicado em 2016, as quais confirmam as causas
principais para a eclosão das pandemias zoonóticas – como a da Covid-19 –,
que têm eminentemente fatores ecológicos e ambientais, gerados pelo avanço
do desenvolvimento econômico sobre a natureza, o que reforça ainda mais o
papel do direito ambiental na busca por instrumentos e revisão de seus con-
ceitos jurídicos e objetos de tutela.
Verificou-se neste trabalho que há meios para a ruptura exigida ao direito
ambiental tradicionalmente posto, como se expôs no recente relatório Environ-
mental Rule of Law First Global Report, publicado em 2019, das Nações Unidas,
em que estão dispostas conceituações que devem figurar na pauta do dia do
direito ambiental mundial, tais como o acesso à informação ambiental e ecoló-
gica, o engajamento da sociedade civil nos atos ambientais, o fomento ao com-
pliance ambiental e a participação no enforcement das leis e normas ecológicas
e em favor da natureza e seres não-humanos, fundamentos essenciais para um
Estado de Direito voltado para à natureza e em harmonia com a vida na Terra.
Evidenciou-se que, juntamente com crises como a do novo coronaví-
rus e a ecológica, surgem novos desafios ao direito ambiental, causados pelos
efeitos da sociedade de risco e da metamorfose mundial, gerando horizontes
para uma Justiça social e também ecológica, que proporcionem políticas de
equidade, amparadas pelo Direito, garantindo a universalidade do gozo do
direito fundamental ao meio ambiente equilibrado, para as presentes e futuras
gerações, sem excluir a proteção efetiva da natureza, ressignificação que exige,

181
A Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias

assim, um Direito Ambiental em metamorfose ecológica, para um Direito e


um Estado de Direito ecologizados.
Com essa perspectiva, buscou-se lançar luzes à revisitação do direito am-
biental em vigor, em razão da necessária ecologização das bases epistemológi-
cas, instrumentais e regulatórias do direito ambiental, cabendo ser fomentada
a sua orientação com base na natureza e na ecologia, no equilíbrio planetário,
que passa pela metamorfose, um direito, portanto, ecológico e emancipatório
diante das catástrofes vivenciadas.
Em conclusão, confirmou-se que a crise do novo coronavírus e a crise
ecológica mundial estão, portanto, interligadas em suas causas e consequên-
cias, e tal interconexão implica a ruptura da estrutura tradicional do direito,
uma metamorfose no direito ambiental hodierno, uma vez que, para a con-
tenção de ambas as crises, exige-se inevitável revolução de instrumentos e de
conceitos em direção a um direito ecológico, precursor e fundamento para
um Green New Deal Global

182

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