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Formação Continuada
UNIDADE I
INSTRUÇÕES PARA AS ATIVIDADES PASSO A PASSO
A S C AT E G O R I A S G Ê N E R O E R A Ç A N A E D U C A Ç ÃO : U M A
I N T R O D U Ç ÃO AO S D E S AF I O S D A I N T E R S E C C I O N A L I D AD E
Giselle dos Anjos Santos.1
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Giselle dos Anjos Santos atua no Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT)
nas áreas de Gênero e Raça, com ênfase na educação e no mercado de trabalho. Possui bacharelado em
História pela PUC-SP; mestrado em Estudos de Gênero e Teoria Feminista pela UFBA, e atualmente cursa
o doutorado em História Social na USP. Além disso, é autora do livro “Somos todas rainhas” (2012), sobre
a história das mulheres negras no Brasil e coautora do livro “Mulheres afrodescendentes na América Latina
e no Caribe: Dívidas de igualdade” (2018). A mesma foi a responsável pela estruturação da categoria
“Abordagem de Gênero” na 7ª edição do Prêmio Educar para a Igualdade Racial e de Gênero, promovido
pelo CEERT.
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Para a filósofa Simone de Beauvoir (2009), oposições cristalinas que associaram historicamente as
mulheres à natureza e não a cultura, edificaram a representação de que as mulheres são apenas aquilo o que
os homens não são, configurando a figura da mulher como símbolo de imanência e a imagem do homem
como sinônimo de transcendência. Neste sentido, de acordo com Beauvoir, nas sociedades ocidentais o
homem é o Ser, e a mulher ocupa a posição do Outro, “o segundo sexo”.
mínimo três eixos: classe, raça e gênero (SCOTT, 1995). A partir de uma análise
mais detida sobre esta correlação, a antropóloga colombiana Mara Viveros
Vigoya (2009) afirma que, na base da opressão de gênero e da opressão racial,
se encontram as mesmas estruturas de pensamento e de discurso.
Segundo Viveros (2009, p. 3) existem ao menos três aspectos
semelhantes na forma de naturalizar e associar essas desigualdades: 1- os
sistemas de opressão de gênero e raça foram embasados em argumentos sobre
a natureza para justificar e reproduzir relações de poder, fundamentadas sobre
diferenças fenotípicas; 2- o racismo e a opressão de gênero vinculam
estreitamente a realidade “corporal” com a realidade social, ancorando seus
significados no corpo, lugar privilegiado da classificação e hierarquização
simbólica; e 3- como a opressão de gênero, o racismo se estabelece como uma
representação efetiva na estrutura social, política e cultural. Assim,
fundamentadas em termos biológicos, a partir de características corporais, as
representações do imaginário racista estão sobrepostas e determinadas por
símbolos sexuais.
Desta forma, tanto os fundamentos ideológicos como as consequências
sócio-políticas desses dois sistemas de opressão, estruturantes das relações de
poder, possuem bases comuns. Contudo, é necessário destacar que a
articulação entre o racismo e a opressão de gênero, deixa mais complexa a
experiência dos grupos que são alvo desses diferentes sistemas de dominação
conjuntamente. Pois, tal articulação constrói tensões e dilemas que invisibilizam
e afastam ainda mais os integrantes desses grupos, como as mulheres negras,
dos recursos econômicos e políticos para o enfrentamento da violência estrutural
sofrida, fragilizando as tentativas de resistência.
Logo, o conceito de interseccionalidade demonstra-se relevante para esta
análise, pois “busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da
interação entre dois ou mais eixos da subordinação” (CRENSHAW, 2002, p.
177). Proposto pela professora de Direito Kimberlé Crenshaw, a categoria
interseccional não busca analisar de forma aritmética a articulação entre
diferentes sistemas de opressão, mas objetiva compreender como sua interação
particulariza e torna mais complexo o modo pelo qual, determinados grupos
sociais vivenciam a desigualdade. Assim, ao contrapor as generalizações
presentes em estudos sobre a experiência feminina, este conceito possibilita
apreender as especificidades existentes entre os diferentes subgrupos de
mulheres.
Neste sentido, em diálogo com as proposições de Crenshaw (2002),
Viveros (2009) e a própria Scott (1995), questionamos: qual o sujeito visibilizado
pelos estudos de gênero produzidos no Brasil?
Ao realizar uma análise sobre a abrangência da categoria raça no campo
de estudos da mulher no Brasil, a antropóloga Kia Lily Caldwell (2000) enfatiza
que a maior parte das pesquisas brasileiras ignoram o marcador racial e suas
hierarquias. Segundo esta autora, as investigações utilizam a figura de mulheres
brancas heterossexuais e de classe média como se esta fosse a experiência da
“mulher universal”, o que condiciona a invisibilidade das mulheres não-brancas
e pobres nesta produção. Por este motivo, Caldwell defende a construção de
enfoques sobre a diferença racial e as interações entre gênero e raça para a
elaboração de compreensões mais aprofundadas sobre a diversidade de
experiências das mulheres no Brasil. Fica latente que se a imagem da mulher
negra é invisibilizada, inclusive no interior dos espaços da luta feminista e
antirracista que constitui, tanto na mobilização política como na produção
intelectual, significa que sua experiência nos âmbitos políticos, teóricos e
subjetivos a condicionam na posição da periferia dentro da periferia e na
categoria de “não-lugar”3.
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A respeito da invisibilidade das mulheres negras nos estudos sobre gênero e raça, bell hooks (pseudônimo
grafado em letras minúsculas, utilizado pela intelectual negra Gloria Jean Watkins) traça a seguinte crítica:
“Os acadêmicos geralmente falavam da experiência negra quando na verdade estavam se referindo
somente à experiência dos homens negros. Significativamente, descobri que, quando se falava das
‘mulheres’, a experiência das brancas era universalizada como representação da experiência de todo o
sexo feminino; e que, quando se mencionava os ‘negros’, o ponto de referência eram os negros do sexo
masculino. “ (hooks, 2013, p. 163).
negra. As desigualdades constroem uma experiência hostil para este grupo no
ambiente escolar4.
O estudo desenvolvido por Alceu Ravanello Ferraro (2010), que se propõe
a discutir a escolarização no Brasil articulando as dimensões de gênero, raça e
classe social, demonstra que a histórica desigualdade existente em desfavor da
população negra quanto à escolarização, avaliada pela média de anos de
estudo, se mantém tanto para os homens como para as mulheres negras, em
comparação a população branca. Segundo este autor, os dados do Censo 2000
e os resultados obtidos na PNAD/2008 para a geração 1978/1988, indicam a
seguinte ordem de ganhos no período 2000/2008 em termos de média de anos
de estudo: 1º lugar-mulheres brancas: aumento de 8,6 para 11,5 anos de estudo
(+ 2,9); 2º lugar-homens brancos: aumento de 8,0 para 10,9 anos de estudo (+
2,9); 3º lugar-mulheres negras: aumento de 6,7 para 9,9 anos de estudo (+ 3,2);
4º lugar-homens negros: aumento de 5,9 para 9,2 anos de estudos (+ 3,3)
(FERRARO, 2010, p. 523). Ou seja, mesmo que durante os anos avaliados
(2000-2008) o ganho na média tenha sido proporcionalmente maior para
mulheres e homens negros do que para homens brancos e mulheres brancas,
tais avanços não foram suficientes para que ao menos as mulheres negras
obtivessem paridade com os homens brancos, e muito menos para que fosse
possível a equiparação na média de anos de estudos entre os dois subgrupos
de mulheres.
Os índices da PNAD mencionados acima evidenciam que os homens
negros possuem a maior desvantagem na esfera da educação 5, com relação à
média de anos estudados (9,2 anos de estudos). Denise Ziviani (2010) destaca
que os meninos negros tenham três vezes mais chances de frequentar classes
especiais e projetos de recuperação do que as meninas negras. Tais dados
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A pesquisa “Preconceito e Discriminação no Ambiente Escolar” (FIPE, INEP, 2009) aponta que as
principais vítimas de práticas discriminatórias na escola, são os(as) estudantes(as) negros(as) (19%), pobres
(18%) e homossexuais (17%). Portanto, ser aluna ou aluno negro é o principal sinônimo de desvantagem
no ambiente escolar. Ao considerar a experiência de estudantes que interseccionam esses três marcadores
sociais (negritude, pobreza e homossexualidade) fica evidente a condição de vulnerabilidade e a grande
probabilidade de evasão escolar.
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Os homens negros possuem a maior desvantagem nas diferentes esferas da educação, incluindo
problemáticas, como: a média de anos de estudos; dificuldade de acesso e evasão escolar; risco de
repetência; distorção idade-série, entre outros aspectos (ALVES, ORTIGÃO, FRANCO, 2007; MADSEN;
ROSEMBERG, 2011).
descortinam a constituição de uma intersecção entre as dimensões de gênero,
classe e raça, na definição das nuances da evasão escolar no Brasil.
Rosemeire Brito (2008) defende que o constatado insucesso do alunado
masculino na educação básica precisa ser observado como resultado de
dinâmicas de gênero e construções acerca das masculinidades. Já Marília Pinto
de Carvalho (2007) aponta para a necessidade de considerar a interação de
gênero, status social e raça/cor, como variáveis preponderantes para
compreender o processo de desempenho escolar no sistema educacional
brasileiro. Pois, segundo Carvalho faz parte da composição do imaginário social,
e consequentemente da concepção dos profissionais que atuam na educação, a
frequente associação entre masculinidade negra e baixo desempenho escolar.
A vigência desta leitura complexifica a experiência dos alunos negros do sexo
masculino neste ambiente. Ou seja, existem complexas disputas de poder no
interior do ambiente escolar. Mas, para além de considerar a influência de
representações sociais na escola, é necessário reconhecer e destacar que o
espaço escolar também formula discursos e práticas hierárquicas sobre noções
de feminilidades e masculinidades, tal como de negritude e branquidade.
Portanto, mais do que questionar quais os papéis são atribuídos a
meninas e meninos ou aos alunos negros e brancos no ambiente escolar, de
modo dicotômico, demonstra-se necessário estimular reflexões sobre qual o
lugar social e simbólico é construído na escola para meninas negras e meninos
negros, meninas brancas e meninos brancos, a partir de uma perspectiva
interseccional. A necessidade da implementação efetiva da LDB alterada pela lei
10.639/03 precisa estar em diálogo com tal concepção relacional para a garantia
de que o espaço escolar observe a existência da diversidade dentro da
diversidade e se torne verdadeiramente, cada vez mais equitativo e plural.
Referências
Para Refletir
“minha filha chegou dizendo que a professora perguntou se ela não lavava o cabelo, e muito
triste me perguntou se ela podia nunca mais usar o cabelo solto, eu fui ate a escola tentei
dialogar com a direção e não obtive sucesso nenhum ... Na quarta feira minha filha chegou e
disse que a diretora puxou os cabelos dela que estavam trançados na tentativa de fazer um
coque e que doeu e ela só parou quando viu q ela ia chorar ..., e ela só tem 10 anos ...não merece
passar por tanta humilhação, ela é só uma criança”. (Trecho do depoimento de E.L. no
Facebook em 20/10/2017)
In: Rodrigo Salgado https://bhaz.com.br/2017/06/23/denuncia-racismo-escola-bh/