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O CÉREBRO
À descoberta de quem somos
The Brain
The Story of You
NASCEMOS INACABADOS
BIOLOGICAMENTE DINÂMICO
A APOSTA DA NATUREZA
OS ORFANATOS DA ROMÉNIA
A ADOLESCÊNCIA
ALTERAÇÕES PATOLÓGICAS
A FALIBILIDADE DA MEMÓRIA
O trabalho pioneiro desenvolvido pela Professora Elizabeth Loftus, da
Universidade da Califórnia, em Irvine, dá-nos algumas pistas sobre a
maleabilidade da nossa memória. Ela transformou o campo da
investigação da memória demonstrando quão suscetíveis são as memórias.
Loftus concebeu uma experiência em que convidava voluntários para
verem filmes de acidentes rodoviários, a quem depois fazia uma série de
perguntas para testar o que recordavam. As perguntas que fazia
influenciavam as respostas que recebia. Ela explica: “Quando perguntava
a que velocidade iam os carros quando bateram um no outro, em vez de
perguntar a que velocidade iam os carros quando se enfaixaram um no
outro, os participantes faziam diferentes estimativas da velocidade. Eles
achavam que os carros iam mais depressa quando eu usava a palavra
enfaixar.” Intrigada pela forma como essas perguntas sugestivas podiam
contaminar a memória, decidiu ir mais longe.
Seria possível implantar memórias completamente falsas? Para o
descobrir, recrutou vários participantes cujas famílias foram
posteriormente contactadas pela equipa para obter informações sobre
acontecimentos do passado desses voluntários. Munidos dessas
informações, os investigadores montaram quatro histórias acerca da
infância de cada um dos participantes. Três delas eram verdadeiras, a
quarta continha informações plausíveis, mas era inteiramente falsa. Essa
quarta história era sobre uma vez em que a pessoa, em criança, se tinha
perdido num centro comercial e tinha sido encontrada por uma simpática
idosa que acabou por a entregar a um dos pais.
Numa série de entrevistas, os participantes ouviram as quatro histórias.
Pelo menos um quarto dos indivíduos afirmou lembrar-se do incidente de
se ter perdido no centro comercial, mesmo não tendo de facto acontecido.
E não se ficaram por aí. Loftus explica: “Eles podem começar por se
lembrar vagamente. Mas quando regressam, uma semana depois,
começam a lembrar-se de mais qualquer coisa. Podem mesmo falar da
senhora de idade que os salvou.” Com o tempo, mais e mais detalhes se
juntam à falsa memória: “a senhora idosa tinha um chapéu esquisito”, “eu
estava com o meu brinquedo preferido”, “a minha mãe estava furiosa”.
MEMÓRIA DO FUTURO
Henry Molaison sofreu o primeiro grande ataque epilético no dia em que fez
quinze anos. A partir daí, a frequência dos ataques aumentou. Confrontado com um
futuro de convulsões violentas, Henry foi submetido a uma cirurgia experimental, em
que lhe removeram a parte média do lobo temporal (incluindo o hipocampo) em
ambos os lados do cérebro. Henry curou-se dos ataques, mas com um efeito
secundário: perdeu a capacidade de criar novas memórias para o resto da vida.
A história não acaba aqui. Para além da incapacidade de criar novas memórias,
também deixou de ser capaz de imaginar o futuro.
Imaginem que iam à praia amanhã. Que imagens vos passam pela cabeça?
Surfistas e castelos de areia? Ondas a rebentar? Raios de sol a passar por entre as
nuvens? Se perguntássemos ao Henry que imagens lhe passavam pela cabeça,
uma das respostas típicas podia ser: “só consigo lembrar-me da cor azul.” O seu
infortúnio revela uma coisa acerca dos mecanismos cerebrais que estão
subjacentes à memória: o objetivo desses mecanismos não é simplesmente registar
o que aconteceu no passado mas permitir que nos projetemos no futuro. Para
antever a experiência na praia, o hipocampo, em particular, desempenha um papel
fundamental na construção de um futuro imaginado ao combinar informações do
passado.
O ENVELHECIMENTO DO CÉREBRO
EU SOU CONSCIENTE
Quando penso naquilo que sou, há um aspeto acima de tudo o resto que
não pode ser ignorado: sou um ser consciente. Experimento a minha
existência. Sinto que estou aqui, a olhar para o mundo com estes olhos, a
ter a perceção deste espetáculo colorido no centro do meu próprio palco.
Chamemos a esta sensação consciência ou perceção.
Os cientistas debatem muitas vezes a definição exata de consciência,
mas é bastante fácil de perceber do que estamos a falar recorrendo a uma
comparação simples: quando estamos acordados, temos consciência, e
quando estamos a dormir, não temos. Esta distinção permite-nos avançar
uma resposta a uma questão muito simples: qual é a diferença na atividade
cerebral entre esses dois estados?
Uma das maneiras de medir essa atividade é com a eletroencefalografia
(EEG), que capta um resumo de milhões de neurónios a disparar, através
da deteção de sinais elétricos de fraca intensidade no exterior do crânio. É
uma técnica um pouco grosseira, por vezes comparada com a tentativa de
compreender as regras do futebol através de um microfone encostado à
parede exterior de um estádio. Ainda assim, a EEG pode dar-nos
perspetivas imediatas sobre as diferenças entre os estados de vigília e de
sono.
Quando estamos acordados, as ondas cerebrais revelam que os nossos
neurónios estão envolvidos em trocas complexas entre si; imaginem
milhares de conversas entre os espectadores de um jogo de futebol.
Quando vamos dormir, o corpo parece que se desliga. Por isso é natural
pensarmos que o estádio neuronal se cala. Mas, em 1953, descobriu-se que
essa suposição é incorreta, pois o cérebro está tão ativo durante a noite
como durante o dia. Simplesmente, durante o sono, os neurónios
coordenam-se uns com os outros de maneira diferente, entrando num
estado rítmico mais sincronizado. Imaginem os espectadores num estádio
a fazer uma onda, sem parar.
Como é fácil de imaginar, a complexidade da discussão num estádio é
muito mais rica quando estão a ocorrer milhares de conversas discretas.
Pelo contrário, quando a multidão é arrastada para uma onda de gritaria,
esse é um momento menos intelectual.
O PROBLEMA CORPO/MENTE
Por isso, aquilo que somos num dado momento depende dos ritmos
detalhados da nossa atividade neuronal. Durante o dia, o nosso Eu
consciente emerge dessa complexidade neural integrada. À noite, quando
a interação dos nossos neurónios se altera um pouco, desaparecemos. Os
nossos entes queridos têm de esperar pela manhã seguinte, quando os
nossos neurónios deixam morrer a onda e retomam o seu ritmo complexo.
É só aí que regressamos.
Então, aquilo que somos depende do que os nossos neurónios estão a
fazer a cada momento.
A interpretação que fazemos dos objetos físicos tem tudo a ver com a trajetória
histórica do nosso cérebro e muito pouco com os próprios objetos. Estes dois
retângulos contêm apenas diferentes composições de cor. Um cão não faria
qualquer distinção entre ambos. As eventuais reações que possam desencadear
numa pessoa só têm a ver com ela e não com os retângulos.
1 Hardwired refere-se normalmente a um circuito com as ligações já definidas; qualquer coisa que
não se altera e se comporta sempre da mesma maneira. Neste caso significa que o cérebro nasce
como que “biologicamente configurado”, com características inatas e pré-determinadas. (N. do E.)
2 Livewired significa ligado à corrente, dinâmico; neste caso quererá dizer “biologicamente
aberto”, moldável. (N. do E.)
4 Wetware: Numa analogia ao jargão informático, o termo refere-se à matéria que constitui cérebro,
o sistema nervoso central, com as suas propriedades bioquímicas e bioelétricas, neurónios e
sinapses. (N. do E.)
A ILUSÃO DA REALIDADE
Parece que temos acesso direto ao mundo através dos nossos sentidos.
Podemos alcançar e tocar na matéria do mundo físico, como este livro ou
a cadeira onde estamos sentados. Mas essa sensação tátil não é uma
experiência direta. Apesar de termos a sensação de que o tato ocorre na
ponta dos dedos, de facto está tudo a ocorrer no centro de operações do
cérebro. E o mesmo se passa com todas as nossas experiências sensoriais.
A visão não ocorre nos olhos, a audição não ocorre nos ouvidos e o olfato
não ocorre no nariz. Todas as nossas experiências sensoriais têm lugar em
tempestades de atividade no seio da matéria computacional do nosso
cérebro.
Esta é a chave: o cérebro não tem acesso ao mundo exterior. Isolado
dentro da câmara escura e silenciosa do nosso crânio, o cérebro nunca
experienciou diretamente o mundo externo e nunca o experienciará.
Pelo contrário, só há uma maneira de fazer chegar essas informações ao
cérebro. Os nossos órgãos sensoriais – olhos, ouvidos, nariz, boca e pele –
funcionam como intérpretes, detetando uma diversidade de fontes de
informação (incluindo fotões, ondas de compressão do ar, concentrações
moleculares, pressão, textura e temperatura) e traduzindo-as para a moeda
corrente do cérebro: os sinais eletroquímicos.
Esses sinais eletroquímicos percorrem rapidamente densas redes de
neurónios, as principais células de sinalização do cérebro. O cérebro
humano tem 100 mil milhões de neurónios, e cada um deles envia dezenas
ou centenas de impulsos elétricos para milhares de outros neurónios a
cada segundo da nossa vida.
Tudo o que experienciamos – cada visão, som ou odor – não é uma
experiência direta, mas sim uma interpretação eletroquímica num
auditório às escuras.
Como é que o cérebro transforma esses imensos padrões eletroquímicos
num entendimento útil do mundo? Compara os sinais que recebe a partir
dos diferentes órgãos sensoriais, detetando padrões que lhe permitem fazer
as melhores suposições sobre o que se passa “lá fora”. O funcionamento
do cérebro é tão poderoso, que parece tratar-se de uma tarefa que não
exige esforço. Mas olhemos para este processo mais de perto.
Comecemos pelo nosso sentido mais dominante: a visão. O ato de ver
parece-nos tão natural que é difícil dar o devido valor aos imensos
mecanismos que o tornam possível. Cerca de um terço do cérebro humano
é dedicado à missão de ver, para transformar fotões de luz em bruto na
cara da nossa mãe, no animal de estimação que adoramos ou no sofá onde
estamos prestes a fazer uma sesta. Para percebermos como funciona,
vejamos o caso de um homem que perdeu a visão e teve a oportunidade de
a recuperar.
Mike May perdeu a visão aos três anos e meio de idade. Uma explosão
química afetou-lhe as córneas, deixando os olhos sem acesso aos fotões.
Como cego adulto, foi bem-sucedido profissionalmente e também se
tornou campeão paralímpico de esqui, orientando-se nas descidas através
de sinalizadores sonoros.
Após mais de quarenta anos de cegueira, Mike teve conhecimento de
um tratamento revolucionário com células estaminais que poderia reparar
os danos físicos que sofrera nos olhos. Decidiu submeter-se à cirurgia;
afinal, a sua cegueira resultava simplesmente das córneas opacas, e a
solução era simples.
Porém, aconteceu algo inesperado. Estavam câmaras de televisão
presentes para documentar o momento em que foram retiradas as
ligaduras. Mike descreve assim o que sentiu quando o médico lhe tirou a
gaze: “Há um jato de luz e um bombardeamento de imagens no meu olho.
De repente, liga-se uma torrente de informação visual. É avassalador.”
As novas córneas de Mike estavam a receber e a focar a luz, tal como
deviam, mas o cérebro não conseguia atribuir um sentido às informações
que recebia. Perante as câmaras, Mike olhou para os filhos e sorriu. Mas,
no seu íntimo, estava aterrado, porque não conseguia distinguir as feições
deles nem perceber quem era quem. “Não conseguia reconhecer nenhum
rosto”, recorda.
Do ponto de vista cirúrgico, o transplante fora um sucesso completo.
Mas do ponto de vista de Mike, aquilo que estava a experienciar não se
podia chamar visão. Tal como ele próprio resumiu, “o meu cérebro estava
«à toa»”.
Com a ajuda dos médicos e da família, saiu pelo próprio pé da sala de
recobro, e percorreu o corredor fixando o olhar, pasmado, na carpete, nos
quadros nas paredes e nas portas. Nada daquilo fazia sentido. Uma vez
dentro do carro, à ida para casa, Mike olhava para os carros, para os
edifícios e para as pessoas que passavam, apressadas, tentando, sem
conseguir, perceber o que estava a ver. Na autoestrada, encolheu-se
quando lhe pareceu que iam bater contra um grande retângulo que estava à
frente deles. Era, afinal, um sinal de trânsito. Não tinha noção do que eram
os objetos, nem da sua profundidade. Com efeito, após a operação, Mike
passou a ter mais dificuldade em esquiar do que quando estava cego.
Devido à falta de perceção da profundidade, tinha dificuldade em
distinguir pessoas, árvores, sombras e buracos. Todas essas coisas lhe
pareciam simplesmente formas escuras sobre o branco da neve.
TRANSDUÇÃO SENSORIAL
A lição que podemos retirar do caso de Mike é que o sistema visual não
funciona como uma câmara, não é como se bastasse tirar a tampa de uma
lente para ver. A visão exige mais do que ter os olhos a funcionar.
No caso de Mike, quarenta anos de cegueira fizeram com que o
território do sistema visual (aquilo a que normalmente chamaríamos o
córtex visual) fosse em grande medida ocupado pelos restantes sentidos,
como a audição e o tato, o que afetou a capacidade do cérebro para ligar
todos os sinais de que necessitava para ter visão. Como veremos, a visão
provém da coordenação de milhares de milhões de neurónios que
executam em conjunto uma sinfonia particular e complexa.
Hoje, quinze anos passados desde a intervenção cirúrgica, Mike
continua a ter dificuldade em ler palavras escritas no papel e as expressões
dos rostos das pessoas. Quando precisa de perceber melhor a sua perceção
visual imperfeita, recorre aos outros sentidos para cruzar as informações:
toca, pega, escuta. Esta comparação entre os vários sentidos é algo que
todos fizemos numa fase muito anterior da vida, quando o nosso cérebro
começou a compreender o mundo.
Quando os bebés tentam tocar numa coisa que têm à frente, não o fazem
só para perceber a respetiva textura e forma. Esse gesto também é
necessário para aprenderem a ver. A ideia de que o movimento do corpo é
necessário à visão pode parecer estranha, mas foi engenhosamente
demonstrada, em 1963, com a ajuda de dois gatinhos.
Richard Held e Alan Hein, dois investigadores do MIT, o Instituto de
Tecnologia de Massachusetts, nos Estados Unidos, puseram dois gatinhos
dentro de um cilindro com riscas verticais a toda a volta. Ambos os
gatinhos recebiam estímulo visual enquanto davam voltas no interior do
cilindro. Mas havia uma diferença fundamental: o primeiro gatinho
caminhava por vontade própria, ao passo que o segundo ia dentro de uma
caixa, mas os dois estavam fixados a um eixo central. Com essa
configuração, os gatos viam exatamente a mesma coisa: as riscas
deslocavam-se ao mesmo tempo e à mesma velocidade para ambos. Se a
visão dependesse apenas dos fotões que atingem os olhos, os sistemas
visuais de ambos os gatinhos deveriam ter-se desenvolvido de forma
idêntica, mas eis o surpreendente resultado: apenas o gatinho que se
deslocava a caminhar desenvolveu uma visão normal. O que ia dentro da
caixa nunca aprendeu a ver corretamente, pois o seu sistema visual nunca
atingiu o desenvolvimento normal.
A visão não tem a ver com os fotões que podem ser imediatamente
interpretados pelo córtex visual. Ela é uma experiência de todo o corpo.
Só com a prática é que o cérebro consegue atribuir um sentido aos sinais
que recebe, o que exige o cruzamento desses sinais com outras
informações resultantes das nossas ações e das consequências sensoriais.
Essa é a única maneira que o nosso cérebro tem de interpretar o
significado real dos dados visuais.
Se logo desde a nascença fôssemos de alguma forma impedidos de
interagir com o mundo, incapazes de interpretar, através do retorno, o
significado da informação sensorial, em teoria nunca conseguiríamos ver.
Quando os bebés batem nas grades do berço, chucham nos dedos dos pés
e brincam com os blocos, não estão apenas a explorar, mas sim a treinar o
seu sistema visual. Encerrado na escuridão, o cérebro deles está a aprender
de que forma as ações enviadas para o mundo exterior (virar a cabeça,
empurrar uma coisa, soltar outra) alteram as informações sensoriais que
recebem. Em resultado dessa vasta experimentação, a visão fica treinada.
Ver parece ser uma coisa tão fácil que é difícil ter noção do esforço que o
cérebro exerce para a construir. Para levantar um pouco da ponta do véu
em relação a esse processo, viajei até Irvine, na Califórnia, para ver o que
acontece quando o meu sistema visual não recebe os sinais esperados.
A Dr.a Alyssa Brewer, da Universidade da Califórnia procura
compreender até que ponto o cérebro é adaptável. Para isso, equipa os
participantes com óculos prismáticos que trocam o lado esquerdo e direito
do campo de visão e estuda como é que o sistema visual lida com a
situação.
Num belo dia de primavera, pus os óculos prismáticos. O mundo ficou
todo trocado, com os objetos que estavam à minha direita a aparecerem do
lado esquerdo e vice-versa. Quando tentei perceber de que lado estava a
Dr.a Alyssa, o meu sistema visual disse-me uma coisa, enquanto a minha
audição me dizia outra. Os meus sentidos não batiam certo. Quando
estiquei a mão para pegar num objeto, a visão da minha própria mão não
batia certo com a posição indicada pelos meus músculos. Ao cabo de dois
minutos com os óculos postos, estava a transpirar e com náuseas.
Apesar de os meus olhos estarem a funcionar e a captar as imagens do
mundo, as informações visuais não eram coerentes com as recebidas pelos
meus outros sentidos, o que representava um grande esforço para o meu
cérebro. Era como se estivesse a aprender a ver pela primeira vez.
Eu sabia que acabaria por me habituar a usar os óculos. Havia outro
participante, Brian Barton, que também estava a usar os óculos
prismáticos, só que já os trazia há uma semana. Brian não parecia estar na
iminência de vomitar, como eu estava. Para comparar os nossos níveis de
habituação, desafiei-o para um concurso de cupcakes, em que tínhamos de
partir ovos para uma tijela, bater a massa, despejá-la em tabuleiros com
formas e pô-los no forno.
O resultado é fácil de adivinhar: os cupcakes do Brian saíram do forno
com um aspeto normal, ao passo que a maior parte da minha massa
acabou ressequida na bancada ou cozida em pedaços espalhados pelo
tabuleiro. O Brian conseguia orientar-se no mundo dele sem grande
dificuldade, enquanto eu me tinha tornado num completo desajeitado.
Tinha de fazer um grande esforço, conscientemente, para cada
movimento.
Usar os óculos permitiu-me experimentar o esforço habitualmente
oculto por detrás do processamento visual. Nessa manhã, antes de pôr os
óculos, o meu cérebro conseguia explorar os anos de experiência que tinha
do mundo, mas, após uma simples inversão do estímulo sensorial, deixara
de conseguir.
Para atingir o nível de destreza do Brian, sabia que tinha de continuar a
interagir com o mundo durante muitos dias, a tocar nos objetos, a seguir a
direção dos sons, a prestar atenção à posição dos meus membros. Com a
prática suficiente, o meu cérebro ficaria treinado, graças a um cruzamento
contínuo entre os vários sentidos, tal como o cérebro do Brian estava a
fazer há sete dias. Com o treino, as minhas redes neurais conseguiriam
compreender a correspondência entre os vários fluxos de informação que
chegam ao cérebro.
A Dr.a Brewer relata que, após alguns dias a usar os óculos, as pessoas
desenvolvem um sentido interior de uma nova esquerda e uma antiga
esquerda, e de uma nova direita e uma antiga direita. Ao cabo de uma
semana conseguem mexer-se normalmente, como fazia o Brian, e perdem
a noção de qual das esquerdas e das direitas é a antiga e a nova. Nessas
pessoas, o mapa espacial do mundo altera-se. Após duas semanas de
participação na experiência conseguem ler e escrever bem, caminham e
pegam em objetos com a mesma destreza de quem não usa os óculos.
Nesse curto período conseguiram dominar os estímulos invertidos.
Na realidade, o cérebro não se preocupa com os pormenores dos
estímulos, só se preocupa em perceber como se deslocar pelo mundo e em
obter o que precisa de forma eficiente. Ele faz por nós o esforço
necessário para lidar com os sinais de baixa intensidade. Quem tiver
alguma vez a oportunidade de usar óculos prismáticos, deve fazer a
experiência; vão perceber o esforço que o cérebro faz para que a visão
pareça fácil.
SINCRONIZAR OS SENTIDOS
A nossa reação à luz foi mais lenta. À primeira vista, isto pode parecer
contraditório, dada a velocidade da luz no mundo exterior, mas para
compreender o que se passa, temos de olhar para a velocidade a que a
informação é processada no nosso interior. As informações visuais passam
por um processamento mais complexo do que as auditivas. É preciso mais
tempo para que os sinais que transportam a informação do flash percorram
o sistema visual do que para que os sinais do tiro percorram o sistema
auditivo. Conseguimos responder à luz em 190 milésimas de segundo,
mas só precisámos de 160 milésimas de segundo para reagir ao tiro. É por
isso que se usa uma pistola para dar a partida nas corridas.
Mas é aqui que alguma coisa não bate certo. Acabámos de ver que o
cérebro processa os sons mais rapidamente do que as imagens. Porém,
vejamos bem o que acontece quando batemos palmas à frente da cara.
Experimente. Parece estar tudo sincronizado. Como é isso possível se o
som é processado mais rapidamente? O que isto significa é que a nossa
perceção da realidade resulta de elaborados truques de edição: o cérebro
esconde a diferença dos tempos de chegada. Como? O que ele nos
apresenta como sendo a realidade é, afinal, uma versão retardada. O nosso
cérebro recolhe todas as informações provenientes dos sentidos antes de
decidir qual é a história do que se está a passar.
Essas dificuldades com os tempos não se limitam à audição e à visão,
pois cada tipo de informação sensorial leva um tempo diferente a ser
processada. Para complicar ainda mais as coisas, mesmo dentro de cada
sentido existem diferenças de tempo. Por exemplo, os sinais provenientes
do dedo grande do pé demoram mais tempo a chegar ao cérebro do que os
sinais que vão do nariz. Mas nada disto é evidente para a nossa perceção:
primeiro recolhemos todos os sinais, para que tudo pareça estar
sincronizado. A estranha consequência de tudo isto é vivermos no
passado. Quando pensamos que um determinado momento está a ocorrer,
há muito que ele já passou. Para sincronizar as informações que entram
através dos sentidos, o preço que pagamos é o de termos a nossa perceção
consciente atrasada em relação ao mundo físico. É o fosso inultrapassável
entre a ocorrência de um acontecimento e a perceção consciente que
temos dele.
Como seria ficar fechado naquele sítio durante umas horas ou uns dias?
Para descobrir, falei com um dos prisioneiros ainda vivos que por lá tinha
passado. Condenado por roubo à mão armada, Robert Luke – conhecido
como Cold Blue Luke – passou vinte e nove dias no Buraco por ter
destruído a sua cela. Luke descreveu assim a experiência: “O Buraco
escuro era um lugar terrível. Alguns tipos não conseguiam aguentar. Quer
dizer, ficavam ali, e passados dois dias, já estavam a bater com a cabeça
na parede. Ninguém sabia como iria reagir quando lá chegasse. Ninguém
queria descobrir.”
Estando completamente isolado do mundo exterior, sem som nem luz,
os olhos e os ouvidos de Luke ficaram sem qualquer estímulo. Mas a
mente dele não abandonou a noção de um mundo exterior, continuando
simplesmente a construir esse mundo. Luke descreve a experiência:
“Lembro-me de ter feito umas viagens. Uma de que me lembro era de
estar a lançar um papagaio de papel. Era bastante real. Mas era tudo só na
minha cabeça.” O cérebro de Luke continuava a ver.
Experiências como esta são comuns em reclusos sujeitos a prisão
solitária. Outro detido que passou pelo Buraco relatou ter visto um foco de
luz no olho da mente; ele expandia esse foco até se tornar num ecrã de
televisão, que depois visionava. Privados de novas informações sensoriais,
os reclusos diziam que essas experiências eram mais do que sonhar
acordado, falando antes de experiências que pareciam completamente
reais. Eles não imaginavam as imagens, eles viam-nas.
Este testemunho ilustra a relação entre o mundo exterior e o que
consideramos ser a realidade. Como podemos compreender o que se
passava com Luke? No modelo tradicional da visão, a perceção resulta de
um desfile de dados que começa nos olhos e acaba num qualquer ponto
misterioso do cérebro. Mas, apesar da simplicidade desse modelo da visão
como uma linha de montagem, ele está errado.
Com efeito, o cérebro gera a sua própria realidade antes ainda de
receber as informações provenientes dos olhos e dos outros sentidos, e isto
é conhecido como o modelo interno.
A base do modelo interno pode ser observada na anatomia do cérebro. O
tálamo fica entre os olhos, na parte da frente da cabeça, e o córtex visual,
na parte de trás da cabeça. A maioria da informação sensorial passa por aí,
a caminho da região adequada do córtex. A informação visual vai para o
córtex visual, pelo que existe uma enorme quantidade de ligações que vão
do tálamo para o córtex visual. Mas, eis a surpresa: há dez vezes mais
ligações na direção oposta.
Expetativas detalhadas acerca do mundo – por outras palavras, o que o
cérebro “supõe” que vai estar lá fora – são transmitidas pelo córtex visual
ao tálamo. Este compara então o que lhe chega dos olhos. Se isso
corresponder às expetativas (“quando virar a cabeça, devo ver ali uma
cadeira”), então é muito pouca a atividade que regressa ao sistema visual.
O tálamo limita-se a comunicar as diferenças entre o que os olhos estão a
registar e o que o modelo interno do cérebro previu. Por outras palavras, o
que é devolvido ao córtex visual é o que faltou na expetativa (também
conhecido como “erro”), ou seja, a parte que não estava prevista.
Por isso, a um dado momento, a nossa experiência da visão depende
menos do fluxo luminoso que chega aos olhos do que o que já temos na
nossa cabeça.
E é por isso que Cold Blue Luke tinha experiências visuais numa cela
completamente escura. Ali fechado no Buraco, os sentidos não
transmitiam novos estímulos ao cérebro, pelo que o modelo interno podia
funcionar livremente, e ele experimentava visões e sons vívidos. Mesmo
quando fica liberto das informações externas, o cérebro continua a gerar as
suas próprias imagens. Desliga-se o mundo, mas o espetáculo continua.
Não é preciso estar fechado no Buraco para experimentar o modelo
interno. Muita gente sente um grande prazer nas câmaras de privação
sensorial, tanques escuros em que ficam a flutuar em água salgada.
Eliminando a ligação ao mundo exterior, podem dar asas ao mundo
interior.
E é evidente que não é preciso ir tão longe para encontrar a nossa
própria câmara de privação sensorial. Todas as noites, quando
adormecemos, temos experiências visuais plenas e ricas. Temos os olhos
fechados, mas desfrutamos do mundo exuberante e colorido dos nossos
sonhos, acreditando piamente no realismo de todos eles.
Então, como é que o mundo nos parece estável quando olhamos para
ele? Porque não o vemos a abanar tanto e não nos dá náuseas como o
vídeo mal filmado? Eis porquê: o nosso modelo interno funciona a partir
do pressuposto de que o mundo exterior é estável. Os nossos olhos não
são como as câmaras de vídeo, simplesmente esforçam-se por encontrar
mais detalhes que alimentem o nosso modelo interno. Não são lentes de
uma câmara através das quais olhamos; eles estão a juntar pedaços de
informação para alimentar o mundo que temos dentro do crânio.
O CONTADOR DE HISTÓRIAS
Para quem não souber ler bengali, bielorusso ou coreano, estes carateres
vão parecer uns meros rabiscos esquisitos. Mas assim que passamos a
dominar a leitura de uma caligrafia (como esta), essa ação dá-nos a ilusão
de ser fácil: já não estamos conscientes de que estamos a desempenhar a
árdua tarefa de decifrar rabiscos. O nosso cérebro ocupa-se do trabalho de
bastidores.
Assim sendo, quem comanda? Seremos donos do nosso destino ou terão
as nossas decisões e ações mais a ver com os imensos mecanismos neurais
que funcionam longe da vista? Estará a qualidade da nossa vida diária
relacionada com a tomada de decisões acertadas ou, pelo contrário, com
densas selvas de neurónios e o zumbido contínuo de inumeráveis
transmissões químicas?
Neste capítulo, vamos descobrir que o nosso eu consciente é apenas a
ínfima parte da nossa atividade cerebral. As nossas ações, as crenças e os
preconceitos são todas comandadas por redes do nosso cérebro a que não
temos acesso consciente.
Vamos imaginar que nós estamos sentados lado a lado num café.
Enquanto conversamos, o leitor repara que eu pego na chávena para beber
um golo. É um gesto tão banal, que costuma dispensar qualquer menção, a
menos que o entorne para cima da minha camisa. Mas há que lhe dar o
devido mérito, pois levar a chávena à boca não é tarefa fácil. O campo da
robótica continua com dificuldades para fazer com que esse tipo de tarefa
seja executado de forma suave. Porquê? Porque este gesto simples se
baseia em biliões de impulsos elétricos, coordenados meticulosamente
pelo meu cérebro.
A FLORESTA CEREBRAL
PROPRIOCEÇÃO
Mesmo com os olhos fechados, sabemos onde estão os nossos membros: o braço
esquerdo está para cima ou para baixo? As pernas estão esticadas ou dobradas?
As costas estão direitas ou curvadas? Esta capacidade de reconhecer o estado dos
nossos próprios músculos é denominada proprioceção. Recetores nos músculos,
tendões e articulações transmitem informações acerca dos ângulos das
articulações, bem como da tensão e do comprimento dos músculos. Coletivamente,
isso dá ao cérebro uma imagem detalhada da posição do corpo e permite fazer
ajustes rápidos.
Podemos experimentar uma falha temporária da nossa proprioceção quando
tentamos andar depois de ficarmos com uma perna dormente. A pressão exercida
sobre os nervos sensoriais, apertando-os, impede o envio e a receção dos sinais
adequados. Sem o sentido de posicionamento dos nossos próprios membros,
gestos simples como cortar comida, escrever ao computador ou andar são
praticamente impossíveis.
Ian não estava disposto a deixar que o problema dele o obrigasse a viver
uma vida sem movimento, por isso levanta-se e caminha, mas cada passo
que dá obriga-o a pensar de forma consciente em cada movimento do seu
corpo. Sem a consciência de onde estão os membros, Ian tem de mover o
corpo com uma determinação consciente e muita concentração, utilizando
o sistema visual para monitorizar a posição dos membros. Enquanto
caminha, Ian inclina a cabeça para a frente, para ver os membros o melhor
possível. Para manter o equilíbrio, compensa essa postura certificando-se
de que os braços estão esticados para trás. Como não consegue sentir os
pés a tocar no chão, tem de antecipar a distância exata de cada passo e
pousar o pé com a perna bem apoiada. Cada passo que dá é calculado e
coordenado pela mente consciente.
Tendo perdido a capacidade de andar automaticamente, Ian está
perfeitamente ciente da miraculosa coordenação que a maioria de nós
toma como adquirida quando vai dar um passeio. Toda a gente que o
rodeia se move com tal fluidez e perfeição, como ele próprio salienta, que
as pessoas não têm a mínima consciência do incrível sistema que gere esse
processo por elas.
Se Ian se distrai momentaneamente ou se lhe vem outro pensamento
qualquer à cabeça, é provável que caia. Ele tem de afastar todas as
distrações para se concentrar nos mais ínfimos pormenores, como a
inclinação do terreno ou o balanço da perna.
Se passássemos algum tempo com Ian, nem que seja um minuto ou dois,
seria imediatamente evidente a enorme complexidade dos gestos do dia-a-
dia de que nunca nos lembramos sequer de falar: levantar-nos, atravessar
uma sala, abrir a porta, estender a mão para cumprimentar alguém. Apesar
das aparências, essas ações não são nada fáceis. Por isso, da próxima vez
que vir alguém a andar, a correr, a andar de skate ou de bicicleta, é melhor
parar para se maravilhar não apenas com a beleza do corpo humano, mas
também com o poder do cérebro inconsciente que o orquestra na
perfeição. Os intrincados pormenores dos nossos movimentos mais
básicos são animados por biliões de cálculos que pulsam velozmente
numa escala espacial mais pequena do que os nossos olhos conseguem ver
e com um nível de complexidade impossível de compreender. Ainda estão
por construir os robôs que cheguem aos calcanhares do desempenho
humano. E, enquanto um supercomputador obriga a contas astronómicas
de eletricidade, o nosso cérebro consegue funcionar com uma eficiência
desconcertante, consumindo aproximadamente o mesmo que uma lâmpada
de 60 W.
ONDAS CEREBRAIS
Um EEG, a sigla de eletroencefalograma, é um método para espiar a atividade
elétrica global gerada pela atividade dos neurónios. Pequenos elétrodos aplicados
na superfície do couro cabeludo captam as “ondas cerebrais”, o termo coloquial
utilizado para a média dos sinais elétricos produzidos pelas conversas
pormenorizadas entre os neurónios.
O primeiro EEG de um ser humano foi registado pelo fisiologista e psiquiatra
alemão Hans Berger, em 1924, e, nas duas décadas seguintes, os investigadores
identificaram tipos diferentes de ondas cerebrais: as ondas Delta (abaixo dos 4 Hz)
ocorrem durante o sono, as ondas Teta (entre os 4 e os 7 Hz) estão associadas ao
sono, ao relaxamento profundo e à visualização, as ondas Alfa (entre os 8 e os 13
Hz) ocorrem quando estamos relaxados e calmos, as ondas Beta (entre os 13 e os
38 Hz) registam-se quando estamos ativamente dedicados ao pensamento e à
resolução de problemas. Desde então, foram identificados outros tipos de ondas
igualmente importantes, nomeadamente as ondas Gama (entre os 39 e os 100 Hz),
que estão relacionadas com atividades de concentração mental, como o raciocínio e
o planeamento.
A nossa atividade cerebral total é uma mistura de todas estas frequências
diferentes, mas, consoante o que estamos a fazer, predominarão algumas delas.
AS SINAPSES E A APRENDIZAGEM
As ligações entre os neurónios são denominadas sinapses. É nessas ligações
que umas substâncias químicas, os neurotransmissores, transportam sinais entre os
neurónios. Mas as ligações sinápticas não têm todas a mesma força e podem
tornar-se, dependendo do histórico de atividade, mais fortes ou mais fracas. À
medida que a potência das sinapses se altera, a informação flui de forma diferente
pela rede. Se uma ligação fica suficientemente fraca, desvanece até desaparecer.
Se for reforçada, pode desenvolver novas ligações. Parte desta reconfiguração é
regida por sistemas de recompensa, que emitem globalmente um neurotransmissor
denominado dopamina quando alguma coisa corre bem. As redes cerebrais de
Austin foram reconfiguradas – muito lentamente, muito subtilmente – pelo sucesso
ou insucesso de cada tentativa de movimento, ao longo de centenas de horas de
prática.
AS PROFUNDEZAS DO INCONSCIENTE
INSTIGAR O INCONSCIENTE
No livro Nudge, Richard Thaler e Cass Sunstein propõem uma abordagem para
nos ajudar a tomar boas “decisões em relação à saúde, à riqueza e à felicidade”
recorrendo às redes inconscientes do cérebro. Um pequeno incentivo pode ajudar o
nosso comportamento e o nosso poder de decisão sem darmos conta disso.
Arrumar a fruta em prateleiras ao nível dos olhos, no supermercado, incentiva as
pessoas a fazerem opções mais saudáveis no que se refere à alimentação. Pôr a
fotografia de uma mosca doméstica nos urinóis dos aeroportos ajuda os homens a
apontarem melhor. Proporcionar aos funcionários a subscrição automática de planos
de reforma (com a opção de poderem desistir se assim desejarem) conduz a
melhores práticas de poupança. A esta visão de governação chamamos
paternalismo suave, e Thaler e Sunstein acreditam que influenciarmos de forma
subtil o nosso inconsciente resulta melhor do que a obrigatoriedade pura e simples.
É possível que tudo isto leve algumas pessoas a questionar-se que controlo
tem realmente a mente consciente. Será possível que vivamos as nossas
vidas como marionetas à mercê de um sistema que nos manipula e
determina os nossos passos seguintes? Há quem acredite que é de facto
assim e que as nossas mentes conscientes não têm qualquer controlo sobre
o que fazemos.
Vamos aprofundar esta questão através de um exemplo muito simples.
Vamos imaginar que conduzimos numa estrada e que nos deparamos com
uma bifurcação em que podemos seguir pela esquerda ou pela direita. Não
há qualquer obrigação de escolher um dos caminhos, mas hoje, neste
preciso momento, sentimos que queremos ir pela direita. Então, viramos à
direita. Mas porque é que virámos à direita e não à esquerda? Porque nos
apeteceu? Ou porque há mecanismos inacessíveis no cérebro que tomaram
a decisão por nós? Pensemos nisto: os sinais neurais que fazem com que
os braços rodem o volante provêm do córtex motor, mas não é aí que eles
têm origem. Eles são influenciados por outras regiões do lobo frontal, que
sofre, por seu turno, a influência de muitas outras partes do cérebro, e
assim sucessivamente, numa ligação em cadeia que cruza toda rede
cerebral. Não existe um momento zero em que decidimos fazer
determinada coisa, porque cada neurónio do cérebro é influenciado por
outros neurónios; parece não haver nenhuma parte do sistema que aja
independentemente, reagindo antes de forma dependente. A nossa decisão
de virar à direita – ou à esquerda – é uma decisão que tem raízes no
passado, seja há segundos, minutos ou dias, ou há uma vida. Mesmo
quando nos parecem espontâneas, as decisões não existem isoladamente.
Por isso, quando escolhemos uma direção naquela bifurcação,
transportando connosco toda a história da nossa vida, quem é exatamente
responsável por essa decisão? Estas considerações levam-nos à questão da
livre vontade. Se repetíssemos a história cem vezes, faríamos sempre a
mesma coisa?
5 Na língua inglesa, os termos dental (Medicina Dentária) e law (Direito) apresentam fortes
semelhanças fonéticas com os nomes referidos. (N. do T.)
6 Nestes dois exemplos, a analogia está nas iniciais dos nomes e das palavras roofing (telhados) e
hardware (ferragens). (N. do T.)
4
COMO DECIDO?
Devo ou não comer o gelado? Devo responder já a este email ou deixo para
mais tarde? Que sapatos vou usar? Os nossos dias são feitos de milhares de
pequenas decisões: o que fazer, que caminho seguir, como responder, em que
participar. As primeiras teorias acerca da tomada de decisão partiam do
princípio que o ser humano é um ator racional que pondera os prós e os
contras das suas opções para chegar à melhor decisão. Mas não é isso que
as observações científicas do processo de decisão mostram. O cérebro é
composto por várias redes concorrentes, cada uma com os seus objetivos e
desejos. Quando decidimos se devoramos ou não o gelado, algumas redes
cerebrais querem o açúcar, outras votam contra baseando-se em
preocupações com a imagem a longo prazo, outras ainda sugerem que talvez
possamos comer o gelado se prometermos ir ao ginásio no dia seguinte. O
nosso cérebro é como um parlamento neural, composto por partidos políticos
rivais que se debatem para conduzir os destinos do Estado. Às vezes,
decidimos de modo egoísta, outras, impulsivamente, e outras ainda, em
função de uma perspetiva de longo prazo. Somos criaturas complexas porque
somos compostos por muitos impulsos que desejam, todos eles, assumir o
comando.
O SOM DE UMA DECISÃO
Nesta figura, o leitor pode ver uma jovem de touca a olhar para trás. Tente
agora descobrir outra maneira de interpretar a mesma imagem: uma
mulher idosa a olhar para baixo e para a esquerda. Esta imagem pode ser
vista alternadamente de duas maneiras (um efeito denominado
biestabilidade percetiva), o que significa que as linhas da página são
consistentes com duas interpretações muito diferentes.
Quando olhamos para a figura, vemos uma versão, depois acabamos
eventualmente por ver a outra, depois outra vez a primeira e assim
sucessivamente. Eis a parte mais importante: não há qualquer alteração na
página, por isso, se o Jim diz que a imagem mudou, isso deve-se a
qualquer mudança no cérebro dele.
Assim que vê a jovem, ou a idosa, o cérebro dele tomou uma decisão,
que não tem de ser consciente; neste caso, é uma decisão percetual tomada
pelo sistema visual de Jim, e a mecânica da alternância está
completamente oculta. Em teoria, o cérebro deve ser capaz de ver tanto a
jovem como a mulher idosa ao mesmo tempo, mas, na realidade, não o
faz. Reflexivamente, ele pega em algo ambíguo e faz uma escolha.
Depois, acaba por refazer a escolha e pode alternar uma e outra vez. Mas o
nosso cérebro está sempre a desfazer a ambiguidade convertendo-a em
escolhas.
Então, quando o cérebro de Jim chega a uma interpretação da jovem –
ou da idosa – conseguimos ouvir as respostas de um pequeno número de
neurónios. Alguns passam a registar uma atividade mais acelerada
(poppop! pop!... pop!), ao passo que outros desaceleram (pop!... pop!...
pop!... pop!). Mas não é sempre uma questão de aceleração e
desaceleração, pois, por vezes, os neurónios alteram de forma mais subtil
o seu padrão de atividade, ficando sincronizados ou dessincronizados com
outros neurónios, mesmo mantendo o ritmo original.
Os neurónios que estivemos a espiar não são, por si só, responsáveis
pela alteração percetual, funcionando, pelo contrário, em sintonia com
milhares de milhões de outros neurónios, pelo que as mudanças que
podemos presenciar são apenas o reflexo de um padrão alterado a tomar
conta de grandes faixas do território cerebral. Quando um padrão
consegue triunfar sobre outro no cérebro de Jim, foi tomada uma decisão.
O nosso cérebro toma milhares de decisões todos os dias da nossa vida,
ditando a experiência que temos do mundo. Desde a decisão do que vestir,
a quem ligar, como interpretar um comentário espontâneo, responder ou
não a um email, a que horas sair – as decisões fundamentam todos os
nossos atos e pensamentos. Aquilo que somos resulta de inúmeras
batalhas pelo poder travadas no cérebro a cada momento da nossa vida.
É impossível não ficar impressionado ao escutar a atividade neural –
pop! pop! pop! – de Jim. Afinal, é este o som de todas as decisões
tomadas ao longo da história da nossa espécie. Cada pedido de casamento,
cada declaração de guerra, cada salto da imaginação, cada missão lançada
para o desconhecido, cada ato de bondade, cada mentira, cada avanço
eufórico, cada momento decisivo. Foi aqui que tudo aconteceu, na
escuridão do crânio, emergindo de padrões de atividade em redes de
células biológicas.
Vamos olhar mais de perto para o que acontece nos bastidores quando
tomamos uma decisão. Imaginemos alguém que está a tomar uma decisão
simples, na geladaria, a tentar decidir entre dois sabores de que gosta
igualmente. Imaginemos que são hortelã e limão. Vista de fora, parece que
essa pessoa não está a fazer grande coisa, limitando-se a ficar ali, de pé, a
olhar, ora para um, ora para o outro sabor. Mas no cérebro dela, uma
escolha tão simples como esta desencadeia um turbilhão de atividade.
Um neurónio sozinho não tem uma influência significativa, mas cada
um está ligado a milhares de outros, que estão, por seu turno, ligados a
milhares de outros neurónios, e assim sucessivamente, formando uma
densa rede, ininterrupta e interligada. Todos eles estão a libertar
substâncias químicas que excitam ou deprimem o neurónio seguinte.
Nessa teia, há uma constelação particular de neurónios que representa a
hortelã. Esse padrão é formado a partir de neurónios que se excitam
mutuamente. Não estão necessariamente ao lado uns dos outros, podendo
até espalhar-se por regiões do cérebro relacionadas com o olfato, o
paladar, a visão e a recordação pessoal de memórias relacionadas com
hortelã. Cada um desses neurónios, por si só, tem pouco a ver com a
hortelã; com efeito, cada neurónio desempenha muitos papéis, em
momentos diferentes, em coligações que são constantemente
reformuladas. Mas quando todos esses neurónios ficam coletivamente
ativos segundo esse padrão particular… eis a hortelã a surgir no cérebro
dessa pessoa. Enquanto ela está especada em frente aos gelados, essa
federação de neurónios comunica entre si como indivíduos dispersos que
se ligam online.
Esses neurónios não estão a agir isoladamente na propaganda que
fazem. Ao mesmo tempo, a possibilidade concorrente – o limão – é
representada pelo seu próprio partido neural. Cada coligação – a hortelã e
o limão – tenta ganhar a supremacia intensificando a sua atividade e
suprimindo a da outra. Elas competem até uma delas triunfar nessa
competição em que só uma pode sair vitoriosa. A rede vencedora define o
que a pessoa vai fazer a seguir.
O CÉREBRO DIVIDIDO: O CONFLITO POSTO A NU
Neste cenário, somos apanhados num conflito entre dois sistemas com
opiniões diferentes. As redes racionais dizem-nos que a morte de uma
pessoa é melhor do que a morte de quatro pessoas, mas as redes
emocionais desencadeiam o sentimento intuitivo de que matar o homem
do varadim está errado. Ficamos divididos entre dois impulsos contrários,
o que leva a que a nossa decisão provavelmente se altere relativamente ao
primeiro cenário.
Quando se considera a hipótese de empurrar um homem inocente para a morte,
as redes relacionadas com as emoções envolvem-se mais na tomada de decisão,
o que pode inverter o desfecho.
O PODER DO AGORA
Esse homem estava perante uma versão mais radical do que a do ginásio.
Havia uma coisa que ele queria fazer, mas sabia que não ia conseguir
resistir à tentação quando chegasse o momento. No caso dele não se
tratava de ter um físico melhor, mas sim de salvar a própria vida de um
grupo de senhoras encantadoras.
Esse homem era Ulisses, o herói lendário, que regressava, triunfante, da
Guerra de Troia. A determinada altura da longa viagem, percebeu que o
navio não tardaria a passar por uma ilha onde viviam as belas Sereias. As
Sereias eram famosas por cantarem canções tão melodiosas que os
marinheiros ficavam em êxtase e encantados. O problema era que os
marinheiros achavam as mulheres irresistíveis e ao tentarem ir ter com
elas, os navios naufragavam contra as rochas.
Ulisses queria desesperadamente ouvir as canções lendárias, mas não
queria morrer nem matar a tripulação. Então, engendrou um plano. Ele
sabia que, quando ouvisse a música, seria incapaz de resistir a seguir na
direção dos rochedos da ilha. O problema não era o Ulisses racional do
presente, mas sim o Ulisses ilógico do futuro, a pessoa em que se tornaria
assim que as Sereias ficassem ao alcance do ouvido. Então, Ulisses
ordenou aos seus homens que o amarrassem bem amarrado ao mastro do
navio. Eles taparam os ouvidos com cera de abelha, para não ouvirem as
Sereias, e continuaram a remar com ordens estritas para ignoraram todos
os apelos, gritos e contorções que ele fizesse.
Ulisses sabia que a pessoa em que se iria transformar, em breve, não ia
estar em condições de tomar boas decisões. Então, o Ulisses da mente sã
preparou as coisas de forma a não conseguir tomar a decisão errada. Este
tipo de acordo entre o nosso eu presente e o nosso eu futuro é conhecido
como um pacto de Ulisses.
No caso do ginásio, o meu pacto de Ulisses é simplesmente marcar um
encontro com um amigo lá: a pressão de respeitar o contrato social
amarra-me ao mastro. Quando começamos à procura deles, os pactos de
Ulisses estão por toda a parte. É o caso dos estudantes universitários que
alteram a palavra-passe do Facebook na semana dos exames finais; cada
estudante altera a senha do outro para nenhum deles conseguir ir ao
Facebook até ao fim dos exames. O primeiro passo dos programas de
reabilitação de alcoólicos é tirarem todo o álcool de casa para não terem a
tentação à sua frente nos momentos de fraqueza. As pessoas que têm
problemas de peso fazem cirurgias para reduzir o volume do estômago,
para ser fisicamente impossível comer em excesso. Numa versão diferente
do pacto de Ulisses, há quem prepare as coisas para, em caso de quebra de
uma promessa, ser desencadeado um donativo em dinheiro a uma
“instituição de não beneficência”. Por exemplo, uma mulher que toda a
vida lutou pela igualdade de direitos passou um cheque chorudo ao Ku
Klux Klan, com ordens estritas para o amigo o pôr no correio se ela
voltasse a fumar um cigarro.
Em todos estes casos, as pessoas estruturam as coisas no presente para
que o seu eu do futuro não faça asneiras. Atando-nos ao mastro,
conseguimos resistir à tentação do agora. É o truque que nos permite agir
mais de acordo com o tipo de pessoa que gostaríamos de ser. A chave para
o pacto de Ulisses está em reconhecer que somos pessoas diferentes em
contextos diferentes. Para tomarmos decisões melhores é importante não
só conhecermo-nos a nós próprios, mas também os nossos outros eus.
AS DECISÕES E A SOCIEDADE
AUTISMO
A uma certa hora do dia, o sol entrava pela janela num determinado ângulo. E todas
as pequenas partículas de pó da minha cela ficavam iluminadas pelo sol. Eu via
aquelas partículas todas como outros seres humanos que ocupavam o planeta. E
seguiam na corrente da vida, interagiam e iam uns contra os outros. Estavam a
fazer qualquer coisa coletivamente. Eu via-me isolada num canto, emparedada.
Fora da corrente da vida.
EXOGRUPOS
O que permite que haja uma fraca reação emocional ao provocar sofrimento noutra
pessoa? O neurocirurgião Itzhak Fried salienta que, quando observamos
acontecimentos violentos em qualquer parte do mundo, encontramos o mesmo
padrão de comportamento em todo o lado. É como se as pessoas alterassem o
funcionamento normal do cérebro e passassem a funcionar de uma maneira
específica. Tal como um médico pode procurar os sintomas de tosse e febre num
caso de pneumonia, ele sugeriu que é possível observar e identificar
comportamentos particulares que caracterizam os perpetradores em situações de
violência, e chamou a isso a “Síndrome de E”. Segundo Fried, a Síndrome de E é
caracterizada por uma fraca reatividade emocional, o que permite atos repetidos de
violência. Também inclui a hiperestimulação, ou Rausch, como lhe chamam os
alemães, uma sensação de júbilo ao cometer esses atos. E há o efeito de contágio
do grupo: está toda a gente a fazer o mesmo, os outros imitam e a situação alastra.
Há uma compartimentação em que uma pessoa pode proteger a sua própria família,
mas cometer atos violentos contra a família de outra pessoa.
Do ponto de vista da neurociência, a pista mais importante é ver que outras
funções cerebrais, como a linguagem, a memória e a resolução de problemas,
permanecem intactas, o que sugere que não se trata de uma alteração ao nível de
todo o cérebro, mas apenas em áreas relacionadas com a emoção e a empatia. É
como se entrassem, de facto, em curto-circuito, deixando de participar nas tomadas
de decisão. Pelo contrário, as escolhas do perpetrador passam a ser alimentadas
por partes do cérebro que suportam a lógica, a memória, o raciocínio e assim
sucessivamente, mas não pelas redes relacionadas com a consideração emocional
de como é ser outra pessoa. Na perspetiva de Fried, isto corresponde a uma
desobrigação moral. As pessoas deixam de usar os sistemas emocionais que, em
circunstâncias normais, guiam as tomadas de decisão de caráter social.
PERIFÉRICOS
AUMENTO SENSORIAL
O VEST
Eu e Scott Novich, meu aluno de pós-graduação, criámos o VEST para ajudar
pessoas surdas. Esta tecnologia que se veste capta o som do ambiente e mapeia-o
para pequenos motores vibratórios espalhados por todo o tronco. Os motores são
ativados com padrões que correspondem às frequências do som. Desta maneira, o
som é transformado em padrões de vibração que se vão alterando.
A princípio, esses sinais vibratórios não fazem sentido. Mas com prática
suficiente, o cérebro percebe o que fazer com a informação. Os surdos começam a
conseguir traduzir os padrões complicados que sentem no tronco para uma
linguagem inteligível. O cérebro aprende a decifrar os padrões inconscientemente,
tal como um cego que aprende a ler braile sem esforço.
O VEST tem o potencial de vir a alterar profundamente a vida dos surdos. Ao
contrário de um implante coclear, não exige qualquer intervenção cirúrgica invasiva.
E é pelo menos vinte vezes mais barato, o que faz dele uma solução que poderá
tornar-se global.
O grande potencial do VEST é este: além do som, também pode servir de
plataforma para fazer chegar qualquer tipo de informação ao cérebro.
Em eagleman.com encontrará vídeos do VEST em ação.
CONTINUAR VIVOS
Mas a questão não é essa. A esperança é que, um dia, haja tecnologia para
descongelar cuidadosamente – e depois devolver à vida – as pessoas dessa
comunidade. As civilizações de um futuro distante, presume-se, irão
dominar a tecnologia necessária para curar as doenças que atacaram esses
corpos e que os conduziram à morte.
Os clientes da Alcor sabem que a tecnologia necessária para os reanimar
poderá nunca chegar a existir. Cada pessoa conservada nos vasos de
Dewar da Alcor fez um ato de fé, esperando e sonhando que um dia se
materialize a tecnologia para os descongelar, reanimar e lhes dar uma
segunda oportunidade de vida. O projeto representa uma aposta na
possibilidade de a tecnologia necessária vir a ser desenvolvida no futuro.
Falei com um membro da comunidade (que aguarda para entrar nos vasos
de Dewar, chegado o momento), e ele admite que a ideia é um risco, mas
salientou que, pelo menos, é “melhor do que nada” para tentar enganar a
morte; as probabilidades são melhores de que as do resto das pessoas.
O Dr. Max More, que gere a fundação, não usa a palavra
“imortalidade”, preferindo dizer que a Alcor dá às pessoas uma segunda
oportunidade, com a possibilidade de viverem milhares de anos, ou mais.
Até esse momento chegar, a Alcor é a última morada para elas.
IMORTALIDADE DIGITAL
Nem toda a gente com inclinação para prolongar a vida tem preferência
pela criopreservação, e houve quem procurasse outra via: e se existissem
outras formas de aceder à informação que se encontra guardada no
cérebro? Não devolvendo à vida alguém que faleceu, mas procurando
antes uma maneira de ler diretamente a informação. Afinal, se a estrutura
do cérebro, com um nível de detalhe submicroscópico, contém todo o
conhecimento e as memórias dessa pessoa, então, porque não desencriptar
esse livro?
Vamos ver o que seria necessário para fazer isso. Para começar,
precisaríamos de computadores extraordinariamente potentes para
armazenar os dados detalhados do cérebro de um indivíduo. Felizmente, o
nosso poder computacional exponencialmente crescente aponta para
enormes possibilidades. Nos últimos vinte anos, o poder computacional
aumentou mil vezes. O poder de processamento dos chips dos
computadores tem vindo a duplicar a aproximadamente cada dezoito
meses, uma tendência que se mantém. As tecnologias da nossa era
moderna permitem-nos armazenar quantidades inimagináveis de dados e
executar simulações gigantescas.
Tem em conta o nosso potencial computacional, parece provável que um
dia seremos capazes de digitalizar uma cópia funcional do cérebro para o
substrato de um computador. Em teoria, não há nada que impeça essa
possibilidade. No entanto, o desafio tem de ser realisticamente avaliado.
O cérebro tem normalmente cerca de oitenta e seis mil milhões de
neurónios, com cerca de dez mil ligações cada. Eles ligam-se de uma
maneira muito específica, exclusiva de cada pessoa. As nossas
experiências, as nossas memórias, tudo o que nos define como pessoas
está representado no padrão único dos mil biliões de ligações entre as
células de cada um dos nossos cérebros. Esse padrão, demasiado grande
para ser compreendido, pode ser resumido como o nosso “conectoma”.
Num projeto ambicioso, o Dr. Sebastian Seung está a trabalhar com a sua
equipa da Universidade de Princeton no sentido de descobrir os
pormenores finos de um conectoma.
Com um sistema tão microscópico e complexo como este, é
extraordinariamente difícil mapear a rede de ligações. O Dr. Seung recorre
à microscopia eletrónica de varrimento, que envolve o corte de fatias
muito finas de tecido cerebral com uma lâmina extremamente precisa.
(Atualmente, são utilizados cérebros de rato, não humanos.) Cada fatia é
subdividida em áreas minúsculas, e cada uma delas é digitalizada através
de um microscópio eletrónico extremamente potente. O resultado de cada
digitalização é uma imagem denominada micrografia eletrónica, que
representa um segmento de cérebro aumentado cem mil vezes. Com uma
tal resolução, é possível distinguir características finas do cérebro.
Assim que as imagens dessas fatias são guardadas no computador,
começa o trabalho mais difícil. Analisada fatia a fatia, os limites das
células são traçados, geralmente à mão, mas cada vez mais com o recurso
a algoritmos de computador. Em seguida, as imagens são sobrepostas
umas às outras, e tenta-se ligar todo o conjunto das células individuais das
várias fatias para revelar a sua riqueza tridimensional. Desse processo
meticuloso surge um modelo que revela o que está ligado a quê.
O denso esparguete de ligações mede escassos milésimos de
milionésimo do metro, aproximadamente o tamanho da cabeça de um
alfinete. Não é difícil ver que a reconstrução da imagem completa de todas
as ligações de um cérebro humano é uma tarefa tão desafiante, que
ninguém tem verdadeiramente esperança de a concluir num futuro
próximo. A quantidade de informação necessária é colossal: para guardar
a arquitetura em alta resolução de um único cérebro humano seria
necessária a capacidade de um zetabyte, ou seja, um volume equivalente a
todos os atuais conteúdos digitais do planeta.
Projetando um futuro longínquo, imaginemos que conseguimos
digitalizar um conectoma. Seria essa informação suficiente para
representar uma pessoa? Poderia essa imagem de todos os circuitos do
cérebro ter a consciência de uma pessoa? Provavelmente, não. Afinal, o
esquema dos circuitos (que nos mostra o que está ligado a quê) é apenas
metade da magia de um cérebro funcional. A outra metade é toda a
atividade elétrica e química que ocorre nessas ligações. A alquimia do
pensamento, dos sentimentos, da consciência emerge, a cada segundo, de
milhares de biliões de interações entre as células cerebrais: a libertação de
substâncias químicas, as alterações nas formas das proteínas e as ondas de
atividade elétrica que percorrem os axónios dos neurónios.
Basta pensar na enormidade do conectoma e multiplicá-la pelo vasto
número de coisas que acontecem a cada segundo, em cada uma das
ligações, para termos ideia da magnitude do problema. Infelizmente para
nós, o cérebro humano não consegue compreender sistemas desta
magnitude. Felizmente para nós, o nosso poder computacional está a
evoluir na direção certa para acabar por nos abrir uma possibilidade: uma
simulação do sistema. O desafio seguinte é não apenas ler o cérebro, mas
sim fazê-lo funcionar.
É precisamente com o objetivo de realizar uma tal simulação que uma
equipa de investigadores da Escola Politécnica Federal de Lausanne
(EPFL), na Suíça, está a trabalhar. O objetivo é desenvolver até 2023 uma
infraestrutura de software e hardware capaz de fazer a simulação completa
de um cérebro humano. O Projeto do Cérebro Humano é uma ambiciosa
missão de investigação que recolhe dados junto de laboratórios de
neurociências de todo o mundo, o que inclui as informações de células
individuais (o respetivo conteúdo e estrutura), desde os dados relativos ao
conectoma até informações acerca dos padrões de atividade em larga
escala de grupos de neurónios. Lentamente, experiência a experiência,
cada nova descoberta acerca do planeta representa mais uma pequena peça
de um gigantesco puzzle. O objetivo do Projeto do Cérebro Humano é
conseguir fazer uma simulação de um cérebro com recurso a neurónios
detalhados, com uma estrutura e um comportamento realistas. Mesmo
com um tão ambicioso objetivo e mais de mil milhões de euros de
financiamento da União Europeia, o cérebro humano continua
completamente fora do nosso alcance. O objetivo atual é construir uma
simulação do cérebro de uma ratazana.
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
Há muito que as pessoas tentam criar máquinas que pensem. Essa linha de
investigação – a inteligência artificial – é seguida desde pelo menos a
década de cinquenta do século passado. Muito embora os pioneiros
transpirassem de otimismo, o problema revelou-se inesperadamente
difícil. Apesar de não tardarmos a ter carros que se conduzem sozinhos, e
de já terem passado duas décadas desde que um computador derrotou um
grande mestre do xadrez, o objetivo de criar uma máquina
verdadeiramente consciente continua por atingir. Quando eu era criança,
esperava que, por esta altura, já tivéssemos robôs a interagir connosco, a
cuidar de nós e a terem conversas inteligentes connosco. O facto de
continuarmos muito distantes dessa realidade diz bem do imenso enigma
que é o funcionamento do cérebro e do longo caminho que ainda temos de
percorrer para decifrar os segredos da mãe natureza.
Uma das mais recentes tentativas de criar uma inteligência artificial
pode ser encontrada na Universidade de Plymouth, em Inglaterra. Chama-
se iCub e é um robô humanoide concebido e desenvolvido para aprender
como uma criança humana. Tradicionalmente, os robôs são pré-
programados com o que têm de saber para realizarem as suas tarefas. Mas,
e se conseguissem desenvolver-se como os bebés humanos, interagindo
com o mundo, imitando e aprendendo através do exemplo? Afinal, os
bebés não vêm ao mundo a saber andar e falar, mas vêm com curiosidade,
prestam atenção e imitam. Os bebés usam o mundo que os rodeia como
um manual escolar para aprenderem pelo exemplo. Não poderia um robô
fazer o mesmo?
CÉREBROS DE RATAZANA
CONSCIÊNCIA E NEUROCIÊNCIA
Vamos pensar na experiência privada e subjetiva, no espetáculo que só acontece
dentro da cabeça de alguém. Por exemplo, quando trinco um pêssego enquanto
admiro um pôr-do-sol, é impossível para outra pessoa conhecer a experiência exata
que estou a viver dentro de mim, já que só podemos tentar adivinhar com base em
experiências por que já passámos. A minha experiência consciente é só minha, e a
da outra pessoa é só dela. Como é então possível estudá-la através do método
científico?
Nas últimas décadas, os investigadores procuraram trazer luz sobre os
“correlatos neurais” da consciência, ou seja, os padrões exatos de atividade cerebral
que estão presentes sempre que uma pessoa está a ter uma experiência particular e
só enquanto dura essa experiência.
Observemos a imagem ambígua de um pato/coelho. Tal como a imagem da
jovem/idosa do Capítulo 4, o que esta tem de interessante é o facto de só
conseguirmos ver uma interpretação de cada vez, nunca ambas em simultâneo. Por
isso, nos momentos em que estamos a ter a experiência de um coelho, o que define
exatamente a nossa atividade cerebral? Quando mudamos para o pato, o que é que
o nosso cérebro está a fazer de maneira diferente? Nada mudou na página, pelo
que a única coisa que está a mudar devem ser os detalhes da atividade cerebral
que produz a nossa experiência consciente.
Se esta teoria estiver certa, ela permitir-nos-á fazer uma avaliação não
invasiva do nível de consciência em doentes em coma. E também poderá
dar-nos os meios para sabermos se os sistemas inanimados têm
consciência. Logo, seria possível responder à questão de a cidade ter ou
não consciência, dependendo apenas do facto de o fluxo de informação
estar organizado da maneira correta, ou seja, com a quantidade certa de
diferenciação e integração.
A teoria do Professor Tononi é compatível com a ideia de que a
consciência humana pode libertar-se das suas origens biológicas. Na
opinião dele, apesar de a consciência ter evoluído numa determinada
direção que viria a resultar num cérebro, não tem de ter uma base
exclusivamente orgânica. Ela pode ser facilmente feita de silicone, desde
que as interações se organizem da forma correta.
O UPLOAD DA CONSCIÊNCIA
Se a parte importante que faz de nós aquilo que somos são os algoritmos
biológicos e não a matéria física, então é possível que consigamos um dia copiar o
nosso cérebro, fazer o seu upload e viver eternamente em sílica. Mas há aqui uma
questão muito importante: nessa altura seremos realmente nós próprios? Não
propriamente. A cópia que transferimos tem todas as nossas memórias e acredita
que eras tu que estavas ali, no teu corpo, ao lado do computador. E agora a parte
mais estranha: se morrermos e ligarem a nossa simulação um segundo depois,
seria uma transferência. Não seria diferente do teletransporte do Caminho das
Estrelas (“beam me up”), em que uma pessoa é desintegrada e uma nova versão da
mesma é reconstituída momentos depois. O upload pode não ser muito diferente do
que nos acontece todas as noites quando adormecemos: experimentamos uma
pequena morte da nossa consciência, e a pessoa que acorda na nossa almofada na
manhã seguinte herda todas as nossas memórias e acredita que somos nós.
O FUTURO
7 Ligar e usar, numa tradução literal. Dispositivo que basta ligar ao computador e começar a usar e
não é preciso configurar. (N. do E.)
8 A palavra que resulta das iniciais VEST significa colete, conferindo assim um duplo sentido ao
nome do equipamento. (N. do T.)
11 A teoria dos “buracos de verme ou de minhoca”, também conhecida como Pontes de Einstein-
Rosen, pressupõe a possibilidade de se realizarem viagens no espaço-tempo através de uma espécie
de portais, permitindo passar do passado para o futuro ou de um universo para outro. (N. do E.)
AGRADECIMENTOS