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Ficha Técnica

Título original: The Brain – The Story of You


Título: O Cérebro – À Descoberta de Quem Somos
Autor: David Eagleman
Traduzido do inglês por Jorge Nunes
Revisão: Manuel Salema
Capa: Joana Tordo
ISBN: 9789892338378
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p. 14 © Corel, J. L.; p. 39 © Akiyoshi Kitaoka; p. 40 © Edward Adelson, 1995; p. 49 © Blink Films, 2015; p. 55 © Science
Museum/Science & Society Picture Library; p. 57 © Springer; p. 65 © David Eagleman; p. 79 © CanStockPhoto; p. 118 © Fritz
Heider and Marianne Simmel, 1944; p. 134 © Simon Baron-Cohen et al.; p. 138 © 5W Infographics; p. 154 © David
Eagleman; p. 159 © Bret Hartman/TED.
Imagens das páginas 45, 81, 100, 101, 167 e 169 © Ciléin Kearns.
Imagens das páginas 102, 110, 116 e 143 © Dragonfly Media.
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DAVID EAGLEMAN

O CÉREBRO
À descoberta de quem somos

The Brain
The Story of You

Traduzido do inglês por


Jorge Nunes
Introdução

Sendo a neurociência uma área em rápida evolução, raras são as vezes em


que nos distanciamos para termos uma visão do todo, para percebermos
que importância têm para a nossa vida os estudos que fazemos, para
discutirmos de um modo simples o significado de sermos criaturas
biológicas. É precisamente isso o que este livro se propõe fazer.
A neurociência é importante. A estranha matéria computacional que
temos dentro do crânio é a máquina percetual com que navegamos pelo
mundo, a matéria de onde saem as decisões e onde a imaginação é forjada.
Os nossos sonhos e as nossas ações resultam da atividade dos milhares de
milhões de células que essa matéria contém. Uma melhor compreensão do
cérebro vem trazer luz sobre aquilo que julgamos ser real nas nossas
relações pessoais e o que julgamos ser necessário na nossa política social:
como lutamos, porque amamos, o que aceitamos como verdade, como
devemos educar, como podemos criar uma política social melhor e como
podemos moldar o nosso corpo para os séculos vindouros. Nos circuitos
microscópicos do cérebro está gravada a história e o futuro da nossa
espécie.
Dado o papel central que o cérebro ocupa nas nossas vidas, costumava
questionar-me por que motivo a nossa sociedade raramente fala sobre ele,
preferindo encher as ondas hertzianas com intrigas sobre celebridades e
reality shows. Mas eu sei que esta falta de atenção ao cérebro pode ser
vista não como uma falha, mas antes como uma pista: estamos tão presos
dentro da nossa realidade, que nos é extremamente difícil perceber sequer
que estamos presos dentro de alguma coisa. À primeira vista, parece que
talvez não haja nada para dizer. É evidente que as cores existem no mundo
exterior. É evidente que a minha memória é como uma câmara de vídeo. É
evidente que conheço os verdadeiros motivos para as minhas crenças.
As páginas deste livro vão trazer à ribalta todas as nossas suposições.
Ao escrevê-lo, quis afastar-me do modelo de manual, optando antes por
esclarecer questões mais profundas: como tomamos decisões, como
percecionamos a realidade, quem somos, como são conduzidas as nossas
vidas, porque precisamos dos outros e para onde estamos a caminhar
enquanto espécie que começa a tomar as suas próprias rédeas. Este projeto
procura colmatar o fosso entre o que se publica a nível científico e a vida
que levamos enquanto donos de um cérebro. Neste livro, a minha
abordagem diverge da dos artigos científicos que escrevo e até dos meus
outros livros de neurociência. Este projeto é dirigido a um público
diferente e não pressupõe qualquer conhecimento especializado, apenas
curiosidade e desejo de autoconhecimento.
Por isso, vamos pôr o cinto e preparar-nos para uma viagem ao cosmos
interior. No emaranhado infinitamente denso de milhões e milhões de
células cerebrais e dos milhões e milhões de ligações entre elas, espero
que consigamos semicerrar os olhos e distinguir algo que talvez não
esperássemos lá encontrar: nós mesmos.
1
QUEM SOU EU?
Todas as experiências da nossa vida – das simples conversas à nossa cultura
em geral – moldam os detalhes microscópicos do nosso cérebro. Em termos
neurais, quem somos depende de por onde andámos. O nosso cérebro é um
mutante implacável que reescreve constantemente os seus circuitos e, como
as experiências de cada pessoa são únicas, são também únicos os padrões
vastos e detalhados das nossas redes neurais. Como continuam a mudar ao
longo de toda a vida, a nossa identidade é um alvo em movimento, sem nunca
atingir um ponto final.
Apesar de a neurociência fazer parte da minha rotina diária, continuo a
sentir uma profunda admiração sempre que pego num cérebro humano.
Depois de termos em conta o peso substancial (um cérebro adulto pesa um
pouco menos de um quilo e meio), a consistência estranha (como uma
geleia firme) e o aspeto enrugado (vales profundos lavrados numa
paisagem que parece ter sido insuflada), o que é impressionante é a pura
fisicalidade do cérebro: este pedaço de matéria banal parece tão desfasado
do processo mental que ele próprio cria.
Os nossos pensamentos e os nossos sonhos, as nossas memórias e
experiências provêm, todos eles, dessa estranha matéria neuronal. Aquilo
que somos está naqueles intrincados padrões de disparo de impulsos
eletroquímicos. Quando essa atividade para, também nós paramos.
Quando essa atividade muda de caráter, devido a lesões ou à ação de
drogas, mudamos de caráter em sintonia com ela. Ao contrário de
qualquer outra parte do corpo, se uma pequena parte do cérebro sofrer
danos, é provável que isso nos transforme radicalmente. Para compreender
como é que isso é possível, vamos começar pelo princípio.

NASCEMOS INACABADOS

À nascença, nós, seres humanos, somos seres indefesos. Passamos cerca


de um ano sem conseguir andar, mais dois, aproximadamente, até
conseguirmos articular pensamentos completos e muitos mais anos até
sermos capazes de cuidar de nós mesmos. Dependemos completamente de
quem nos rodeia para sobrevivermos. Façamos agora a comparação com
muitos outros mamíferos. Os golfinhos, por exemplo, nascem logo a saber
nadar; as girafas aprendem a pôr-se de pé em poucas horas; uma cria de
zebra consegue correr quarenta e cinco minutos depois de nascer. Em todo
o reino animal, os nossos primos são incrivelmente independentes logo a
seguir ao nascimento.
Aparentemente, parece tratar-se de uma grande vantagem para as outras
espécies, mas, na realidade, representa uma limitação. As crias dos
animais desenvolvem-se rapidamente porque têm cérebros onde se estão a
formar ligações segundo uma rotina em grande medida pré-programada.
Mas essa prontidão acontece em detrimento da flexibilidade. Basta
imaginar um pobre rinoceronte que se visse na tundra ártica, no cimo dos
Himalaias ou no meio da cidade de Tóquio. O animal não teria a
capacidade de se adaptar (motivo pelo qual não encontramos rinocerontes
nesses sítios). Esta estratégia de vir ao mundo com um cérebro pré-
configurado funciona bem num nicho particular do ecossistema, mas se
tirarmos o animal desse nicho, poucas hipóteses terá de prosperar.
Os seres humanos, pelo contrário, conseguem prosperar em ambientes
muito diferentes, da tundra gelada às altas montanhas e aos fervilhantes
centros urbanos. Isso é possível porque o cérebro humano nasce
consideravelmente inacabado. Em vez de nascer já equipado com todas as
ligações – chamemos-lhe “hardwired”1 –, o cérebro humano deixa-se
moldar pelas experiências da vida, o que origina longos períodos de
imprevisibilidade enquanto o jovem cérebro se vai adaptando ao ambiente.
Ou seja, é “livewired”2.

PODA NEURONAL NA INFÂNCIA: O LAPIDAR DE UM


DIAMANTE EM BRUTO

Qual é o segredo por detrás do nosso jovem cérebro? Não é o nascimento


de novas células, já que o número de células cerebrais é o mesmo nas
crianças e nos adultos. O segredo está antes no modo como essas células
estão ligadas.

BIOLOGICAMENTE DINÂMICO

Muitos animais nascem geneticamente pré-programados, ou seja com determinados


instintos e comportamentos instalados no seu hardware3. São os genes que
orientam a construção do corpo e cérebro dando-lhes determinadas especificidades
que vão definir o seu comportamento e fisionomia. O reflexo da mosca para fugir de
uma sombra em movimento, o instinto pré-programado do pisco para voar para sul
no inverno, a necessidade de hibernar do urso, o impulso do cão para proteger o
dono são exemplos de instintos e comportamentos inatos, biologicamente
configurados, e que permitem a essas criaturas repetir o comportamento dos pais
desde que nascem e, em alguns casos, alimentarem-se e sobreviverem de forma
independente.
No caso dos seres humanos, a situação é ligeiramente diferente. O cérebro
humano vem ao mundo com algum hardware genético instalado (para, por exemplo,
poder respirar, chorar, mamar, reconhecer rostos e ter a capacidade de aprender a
língua materna). Mas em comparação com o resto do reino animal, o cérebro
humano nasce bastante incompleto. O esquema das ligações do cérebro humano
não vem pré-programado; os genes colaboram nos projetos das redes neurais
dando indicações muito genéricas e depois a experiência de vida ajusta o resto das
ligações, permitindo ao cérebro adaptar-se às exigências locais.
A capacidade de o cérebro humano se moldar ao mundo em que nasceu permitiu
à nossa espécie dominar os ecossistemas do planeta e aventurar-se na exploração
do sistema solar.

No cérebro de um recém-nascido, os neurónios estão relativamente desligados


uns dos outros. Durante os primeiros dois ou três anos, as ramificações
desenvolvem-se e as células ficam cada vez mais interligadas. Após esse período,
as ligações são “podadas”, tornando-se menos abundantes e mais fortes na idade
adulta.

À nascença, os neurónios do bebé estão dispersos e desligados e


começam a ligar-se durante os primeiros dois anos de vida, de forma
extremamente rápida, à medida que vão recebendo informação sensorial.
No cérebro de um bebé, chegam a formar-se dois milhões de ligações, ou
sinapses, por segundo. Aos dois anos de idade, a criança possui mais de
cem biliões de sinapses, o dobro das que tem um adulto.
Aos dois anos de idade, a criança atingiu um pico e possui muito
mais ligações do que precisa. Nesse momento, a formação de novas
ligações é suplantada por uma estratégia de “poda” neuronal. À medida
que amadurecemos, as nossas sinapses diminuem para metade.
Quais são as sinapses que ficam e as que desaparecem? Quando uma
sinapse participa com sucesso num circuito, é reforçada; as sinapses que
não têm utilidade, pelo contrário, enfraquecem e acabam por ser
eliminadas. Tal como acontece aos trilhos de uma floresta, as ligações que
não usamos perdem-se.
De certo modo, o processo de nos tornarmos quem somos é definido
lapidando as possibilidades que já se encontravam presentes. Tornamo-nos
quem somos não por causa do que se desenvolve no nosso cérebro mas
por causa do que é eliminado.
Ao longo da infância, o ambiente onde vivemos refina o nosso cérebro,
partindo da selva de possibilidades e moldando-a para corresponder àquilo
a que estamos expostos. O nosso cérebro forma ligações menos numerosas
mas mais fortes.
A título de exemplo, a língua a que somos expostos na primeira infância
(por exemplo, português em comparação com o japonês) refina a nossa
capacidade de ouvir os sons particulares da nossa língua e piora a
capacidade de ouvir os sons de outras línguas. Ou seja, dois bebés, um
nascido no Japão e outro nascido em Portugal, conseguem ouvir e
responder a todos os sons de ambas as línguas. Com o tempo, o bebé que
cresce no Japão vai perder a capacidade de distinguir, por exemplo, os
sons R e L, que são indistintos em japonês. Somos moldados pelo local
onde calhou nascermos.

A APOSTA DA NATUREZA

Ao longo de toda a infância, o cérebro vai reduzindo o número de


ligações, moldando-se às particularidades do ambiente em que vivemos.
Trata-se de uma estratégia inteligente para adaptar cada cérebro ao
respetivo ambiente, mas que apresenta, ainda assim, alguns riscos.
Se o cérebro em desenvolvimento não tiver o ambiente adequado,
“esperado”, em que a criança recebe atenção e cuidados, vai ter
dificuldade em desenvolver-se normalmente. Foi precisamente o que
sucedeu à família Jensen, originária de Wisconsin, nos Estados Unidos.
Carol e Bill Jensen adotaram Tom, John e Victoria, todos com quatro anos
de idade. As três crianças eram órfãs que tinham vivido até à adoção em
condições deploráveis, nos orfanatos estatais da Roménia, o que teve
consequências no seu desenvolvimento cerebral.
Quando os Jensen foram buscar as crianças e apanharam um táxi para
saírem da Roménia, Carol pediu ao taxista para traduzir o que elas
estavam a dizer. Ele explicou-lhe que era uma algaraviada. Não era
nenhuma língua conhecida, pois, desprovidas da interação normal, as
crianças tinham desenvolvido uma estranha linguagem própria. À medida
que iam crescendo, tiveram de lidar com distúrbios de aprendizagem
resultantes das privações que sofreram durante a infância.
Tom, John e Victoria não têm grandes recordações do tempo em que
viveram na Roménia. Quem, pelo contrário, se recorda nitidamente dessas
instituições é o Dr. Charles Nelson, professor de Pediatria no Hospital
Pediátrico de Boston, que as visitou pela primeira vez em 1999.
O que viu deixou-o horrorizado. Os bebés ficavam nos berços sem
qualquer estímulo sensorial. Havia apenas um funcionário por cada quinze
crianças e todos eles tinham instruções para não pegarem nelas ao colo
nem demonstrar qualquer tipo de afeto, mesmo que chorassem, com a
preocupação de que tais demonstrações de afeto pudessem levar a criança
a querer mais – uma impossibilidade devido à escassez de pessoal. Num
tal contexto, as coisas eram o mais arregimentadas possível. Alinhavam as
crianças nos bacios para fazerem as necessidades. Todas tinham o mesmo
corte de cabelo, independentemente do sexo. Vestiam-nas de igual e
comiam às mesmas horas. Tudo era mecanizado.
As crianças cujo choro ficava sem resposta depressa aprendiam a não
chorar. Ninguém lhes pegava ao colo nem brincava com elas. Apesar de
verem as suas necessidades básicas satisfeitas (alimentavam-nas, lavavam-
nas e vestiam-nas), eram crianças privadas de cuidados emocionais, de
apoio e qualquer tipo de estimulação. Em virtude disso, desenvolviam
“amizade indiscriminada”. O Dr. Nelson explica que entrava numa sala e
via-se rodeado de miúdos que nunca tinha visto, e eles queriam saltar-lhe
para os braços e sentar-se ao colo dele, dar-lhe a mão ou vir-se embora
com ele. Apesar de este tipo de comportamento indiscriminado parecer, à
primeira vista, encantador, é uma estratégia de enfrentamento das crianças
negligenciadas e anda a par dos problemas de vínculo de longa duração. É
um comportamento característico das crianças que crescem em
instituições.
Abalados pelas condições que presenciaram, o Dr. Nelson e a respetiva
equipa criaram o Programa de Intervenção Precoce de Bucareste.
Avaliaram 136 crianças, com idades entre os seis meses e os três anos, que
tinham vivido em instituições desde a nascença. A primeira coisa a tornar-
se evidente foi que essas crianças tinham um QI de sessenta ou setenta, em
comparação com a média normal de cem. Apresentavam sinais de
subdesenvolvimento no cérebro e grandes atrasos na linguagem. Quando o
Dr. Nelson recorreu à eletroencefalografia (EEG) para medir a atividade
elétrica nos cérebros dessas crianças, descobriu que possuíam uma
atividade neuronal drasticamente reduzida.

OS ORFANATOS DA ROMÉNIA

Em 1966, para aumentar a população e a mão-de-obra, o Presidente romeno


Nicolae Ceauşescu proibiu a contraceção e o aborto. Os ginecologistas estatais,
conhecidos como “polícia menstrual” examinavam as mulheres em idade fértil para
assegurarem que estavam a gerar descendência suficiente. Foi aplicado um
“imposto de celibato” às famílias com menos de cinco filhos. A taxa de natalidade
disparou.
Muitas famílias pobres não tinham condições para criar os filhos, pelo que os
entregaram a instituições estatais. O Estado, por seu turno, abriu mais instituições
para dar resposta ao número crescente de crianças. Em 1989, ano em que
Ceauşescu foi deposto, 170 mil crianças abandonadas viviam em instituições.
Os cientistas depressa divulgaram que crescer numa instituição afeta o
desenvolvimento cerebral. Com o decorrer dos anos, a maioria dos órfãos romenos
foi devolvida aos pais ou retirada para adoção sob a alçada do Estado. Em 2005, a
Roménia tornou ilegal a institucionalização de crianças com menos de dois anos de
idade, exceto as gravemente incapacitadas.
Milhões de órfãos continuam a viver em instituições estatais em todo o mundo.
Dada a necessidade de um ambiente estimulante para o desenvolvimento do
cérebro da criança, é imperativo que os governos encontrem formas de dar às
crianças condições que permitam um desenvolvimento cerebral adequado.

Num ambiente sem cuidados emocionais e sem estimulação cognitiva, o


cérebro humano não se consegue desenvolver normalmente.
Felizmente, o estudo do Dr. Nelson também revelou uma outra faceta: o
cérebro consegue recuperar, em graus variáveis, assim que as crianças são
retiradas para um ambiente seguro e carinhoso.
Quanto mais nova for a criança, maior a recuperação. Crianças que
foram levadas para lares de adoção antes de completarem os dois anos
recuperavam geralmente bem. Depois dos dois anos, registavam melhoras,
mas, dependendo da idade, ficavam com níveis variáveis de problemas de
desenvolvimento.
Os resultados obtidos pelo Dr. Nelson vêm destacar o papel fundamental
de um ambiente estimulante e carinhoso para o cérebro em
desenvolvimento de uma criança. E isto ilustra a enorme importância do
ambiente que nos rodeia para moldar aquilo em que nos tornamos. Somos
extremamente sensíveis ao nosso meio. Por causa da estratégia adotada
pelo nosso cérebro de ir estabelecendo ligações constantemente, aquilo
que somos depende em grande medida dos sítios por onde passámos.

A ADOLESCÊNCIA

Há duas décadas apenas, ainda se pensava que o desenvolvimento do


cérebro estava praticamente concluído no final da infância, mas hoje
sabemos que o processo de construção de um cérebro humano pode levar
até vinte e cinco anos. A adolescência é um período de uma tão importante
reorganização e mudança neuronal, que afeta drasticamente aquilo que
aparentamos ser. As hormonas que circulam no nosso corpo provocam
modificações físicas evidentes à medida que vamos ganhando a aparência
de adultos; de forma menos percetível, o nosso cérebro sofre mudanças
igualmente monumentais e que vão afetar profundamente o modo como
nos comportamos e como reagimos ao mundo que nos rodeia.
Uma dessas mudanças está relacionada com o aparecimento do sentido
do eu e, com ele, da autoconsciência.
Para termos uma ideia de como é o cérebro do adolescente, fizemos uma
pequena experiência. Com a ajuda do meu aluno de mestrado Ricky
Savjani, pedimos a voluntários que se sentassem num banco dentro da
montra de uma loja. De seguida, abrimos a cortina para os expor ao
mundo lá de fora e ao espanto dos transeuntes.

LAPIDAR O CÉREBRO ADOLESCENTE

A seguir à infância, imediatamente antes da puberdade, há um segundo período de


sobreprodução em que o córtex pré-frontal desenvolve novas células e ligações
(sinapses), criando assim novas vias para moldar o cérebro. A este excesso segue-
se aproximadamente uma década de poda: ao longo da adolescência, as ligações
mais fracas são eliminadas, ao passo que as ligações mais fortes são reforçadas.
Como resultado dessa redução, o volume do córtex pré-frontal diminui cerca de 1%
por ano durante a adolescência. A formação de circuitos durante esse período
prepara-nos para as lições que aprendemos no percurso até nos tornarmos adultos.
Uma vez que essas enormes alterações ocorrem em regiões do cérebro
necessárias para um raciocínio complexo e para controlar os impulsos, a
adolescência é um período de acentuada mudança cognitiva. O córtex pré-frontal
dorsolateral, muito importante para controlar os impulsos, é das regiões cerebrais
que amadurecem mais tarde, atingindo o estado adulto apenas aos vinte e poucos
anos. Muito antes de os neurocientistas terem compreendido os pormenores deste
processo, já as companhias de seguros tinham reparado nas consequências da
imaturidade do cérebro, impondo prémios mais elevados aos condutores
adolescentes. Da mesma forma, o sistema de justiça penal há muito que tem esta
mesma intuição, pelo que os infratores juvenis merecem um tratamento diferente do
dos adultos.

Antes de os pormos nessa situação socialmente desconfortável,


preparámos os voluntários para conseguirmos medir a resposta emocional
de cada um. Ligámo-los a um aparelho que mede a resposta galvânica da
pele (RGP), um bom indicador de ansiedade: quanto mais as nossas
glândulas sudoríparas se abrem, maior é a condutividade da pele. (Esta é,
por sinal, a mesma tecnologia utilizada nos detetores de mentiras, ou
polígrafos.)
Na nossa experiência, participaram tanto adultos como adolescentes.
Nos adultos, observámos uma resposta de stress ao facto de estarem
expostos ao olhar de estranhos, exatamente como esperávamos. Mas, nos
adolescentes, a mesma experiência causou emoções sociais mais extremas,
deixando-os muito mais ansiosos – alguns ao ponto de tremerem –
enquanto estavam a ser observados.
Porquê esta diferença entre os adultos e os adolescentes? A resposta está
relacionada com uma área do cérebro denominada córtex pré-frontal
medial (CPFm). Esta região entra em atividade quando pensamos em nós
próprios e, sobretudo, no significado emocional que determinada situação
tem para nós. A Dr.a Leah Somerville e os seus colegas da Universidade
de Harvard descobriram que, à medida que a pessoa passa da infância à
adolescência, o CPFm fica mais ativo em situações sociais, atingindo um
pico por volta dos quinze anos de idade. Nessa fase da vida, as situações
sociais acarretam um grande peso emocional, resultando numa resposta de
stress autoconsciente muito intensa. Ou seja, na adolescência, pensar em
nós próprios – a chamada “autoavaliação” – é uma grande prioridade. O
cérebro adulto, pelo contrário, já se acostumou ao sentido do eu – como
um par de sapatos novos que já se tornaram confortáveis – e, em virtude
disso, um adulto não fica tão incomodado por estar sentado na montra de
uma loja.
Para além do desconforto social e da hipersensibilidade emocional, o
cérebro adolescente está configurado para correr riscos. Seja conduzir a
alta velocidade ou enviar mensagens com fotos de nus, os
comportamentos de risco são mais tentadores para o cérebro adolescente
do que para o cérebro adulto. Em grande medida, isso relaciona-se com o
modo como respondemos às recompensas e aos incentivos. À medida que
passamos da infância à adolescência, o cérebro vai apresentando uma
maior resposta às recompensas em regiões relacionadas com a busca do
prazer (uma delas é o denominado núcleo accumbens). Nos adolescentes,
a atividade nessa região é tão elevada como nos adultos. Mas há outro
facto importante: a atividade no córtex orbitofrontal – relacionado com a
tomada de decisões executivas, a atenção e a simulação de consequências
futuras – continua a ser mais ou menos a mesma que se regista nas
crianças. Um sistema de busca do prazer já maduro conjugado com um
córtex orbitofrontal imaturo significa que os adolescentes são não apenas
hipersensíveis emocionalmente, mas também são menos capazes de
controlar as emoções do que os adultos.
Além disso, a equipa da Dr.a Somerville tem uma ideia sobre o motivo
pelo qual a pressão dos pares condiciona fortemente o comportamento dos
adolescentes: as áreas relacionadas com as considerações sociais (como o
CPFm) estão mais fortemente associadas a outras regiões do cérebro que
traduzem as motivações em ações (o corpo estriado e respetiva rede de
ligações). Segundo eles, isto poderá explicar por que motivo os
adolescentes são mais propensos a correr riscos quando estão na
companhia de amigos.
A forma como vemos o mundo na adolescência é consequência de um
cérebro em mutação programada. Essas mudanças levam a que nos
tornemos mais autoconscientes, mais dispostos a correr riscos e mais
propensos a comportamentos motivados pelos pares. Para todos os pais
frustrados por esse mundo fora, aqui fica uma mensagem importante: na
adolescência, aquilo que somos não é apenas o resultado de uma escolha
ou uma atitude, mas é antes fruto de um período de intensas e inevitáveis
alterações neurais.

A PLASTICIDADE NA IDADE ADULTA

Aos vinte anos, as transformações por que o cérebro passou na infância e


adolescência estão finalmente concluídas. Acabaram por fim as profundas
alterações de identidade e personalidade, e o nosso cérebro parece ter
atingido o seu pleno desenvolvimento. Poder-se-ia pensar que aquilo que
somos na idade adulta já se encontra fixado de forma permanente. Mas
não está, pois, na idade adulta, o nosso cérebro continua a mudar. Quando
uma coisa pode ser moldada – e consegue manter essa forma – dizemos
que é plástica. E é isso o que se passa com o cérebro, mesmo na idade
adulta: a experiência modifica-o, e ele conserva a modificação.
Para termos uma ideia da impressionante dimensão que essas mudanças
físicas podem atingir, basta pensar no cérebro de um grupo particular de
pessoas que trabalham em Londres: os taxistas. Eles têm quatro anos de
formação intensiva para passarem no “Conhecimento de Londres”, um dos
exames de memória mais difíceis. O exame exige dos candidatos a taxistas
a memorização da extensa rede viária londrina, com todas as suas
combinações e alterações, o que representa uma tarefa extremamente
árdua. Cobre 320 percursos diferentes pela cidade, 25 mil ruas e 20 mil
monumentos e pontos de interesse, como hotéis, cinemas e teatros,
restaurantes, embaixadas, esquadras de polícia, recintos desportivos e
qualquer outro destino provável de um passageiro. Os alunos costumam
passar três a quatro horas por dia a recitar percursos possíveis.
Os desafios mentais únicos colocados por este exame motivaram o
interesse de um grupo de neurocientistas da University College London,
que realizou exames imagiológicos ao cérebro de vários taxistas. Os
cientistas estavam interessados sobretudo numa pequena área do cérebro
denominada hipocampo, vital para a memória, particularmente para a
memória espacial.
Os investigadores descobriram diferenças visíveis nos cérebros dos
taxistas: a parte posterior do hipocampo dos taxistas tinha crescido
fisicamente, o que presumivelmente aumentava a sua memória espacial,
sendo maior do que a dos indivíduos do grupo de controlo. Os cientistas
também descobriram que essa região do cérebro era tanto maior quanto há
mais tempo a pessoa fosse taxista, o que sugeria que o resultado não
refletia simplesmente uma condição pré-existente nas pessoas que
seguiam a profissão, sendo sim um efeito da prática.
O estudo dos taxistas demonstra que o cérebro adulto não é imutável,
podendo reconfigurar-se de tal modo que a transformação se torna visível
a olhos treinados.
E não é só o cérebro dos taxistas que se molda a si mesmo. Quando um
dos cérebros mais famosos do século XX, o de Albert Einstein, foi
examinado, não revelou o segredo do seu génio, mas mostrou que a região
do cérebro dedicada aos dedos da mão esquerda se tinha expandido –
formando uma dobra gigante no córtex, denominada símbolo Ómega, com
a forma da letra grega Ω – graças à paixão, menos conhecida, que tinha
por tocar violino. Essa dobra aumenta de tamanho nos violinistas
experientes, que desenvolvem uma destreza fina nos dedos da mão
esquerda. Já os pianistas desenvolvem um símbolo Ómega em ambos os
hemisférios, uma vez que utilizam as duas mãos para fazerem movimentos
finos detalhados.
A forma do relevo do cérebro é coincidente na maioria das pessoas, mas
os detalhes mais finos são um reflexo pessoal e único do que fomos no
passado e do que somos no presente. Apesar de a maioria das
modificações ser demasiado pequena para ser detetável a olho nu, todas as
experiências por que passámos alteraram a estrutura do nosso cérebro,
desde a expressão dos genes à posição das moléculas e à arquitetura dos
neurónios. A nossa família de origem, a cultura, os amigos, o trabalho,
todos os filmes que vimos e todas as conversas que tivemos deixaram a
sua pegada no nosso sistema nervoso. Essas marcas microscópicas e
indeléveis acumulam-se e fazem de nós aquilo que somos e condicionam
o que podemos vir a ser.

ALTERAÇÕES PATOLÓGICAS

As alterações por que passa o nosso cérebro representam o que fizemos e


quem somos. Mas, o que acontece se o cérebro sofre modificações
causadas por uma doença ou por uma lesão? Será que isso altera o que
somos, a nossa personalidade e as nossas ações?
No dia 1 de agosto de 1966, Charles Whitman apanhou um elevador
para o varandim da torre da Universidade do Texas, em Austin. O então
jovem de vinte e cinco anos começou a disparar indiscriminadamente
contra as pessoas que estavam lá em baixo. Treze pessoas foram mortas e
trinta e três ficaram feridas até Whitman ter sido finalmente abatido pela
polícia. Quando foram a casa dele, descobriram que matara a mulher e a
mãe na noite anterior.
Só havia uma coisa ainda mais surpreendente do que aquele ato de
violência indiscriminada, que era o facto de não haver nada que indicasse
que Charles Whitman pudesse praticar tal ato. Era escuteiro, trabalhava ao
balcão de um banco e era estudante de engenharia.
Pouco após ter matado a mulher e a mãe, sentara-se a redigir o
equivalente a uma nota de suicídio:

Não me consigo compreender nestes últimos tempos. Supostamente, sou um jovem


normal, razoável e inteligente. No entanto, ultimamente (não me consigo lembrar de
quando isto começou), tenho sido vítima de muitos pensamentos estranhos e
irracionais (…) Depois da minha morte, desejo que me façam uma autópsia para ver
se detetam algum distúrbio físico.

O pedido de Whitman foi concedido. Após uma autópsia, o patologista


verificou que Whitman tinha um pequeno tumor cerebral, com o tamanho
aproximado de uma moeda de cinco cêntimos, que estava a exercer
pressão sobre uma parte do cérebro denominada amígdala, relacionada
com o medo e a agressividade. Essa pequena pressão sobre a amígdala
desencadeou uma série de consequências no cérebro de Whitman,
levando-o a cometer atos que, de outra forma, lhe seriam completamente
impensáveis. A sua massa encefálica tinha-se transformado e, com isso,
mudou também a pessoa que ele era.
Este é um exemplo extremo, mas há outras alterações menos drásticas
no cérebro que podem mudar aquilo que somos. Pensemos na ingestão de
drogas ou de álcool. Determinados tipos de epilepsia fazem com que as
pessoas se tornem mais religiosas. A doença de Parkinson leva a que
muitas vezes as pessoas percam a sua fé, ao passo que a medicação para a
doença pode, muitas vezes, transformá-las em jogadoras compulsivas.
Não é apenas a doença ou os químicos que nos alteram; dos filmes que
vemos aos trabalhos que temos, tudo contribui para uma contínua
reformulação das redes neuronais que sumariamente nos definem. Então,
quem somos exatamente? Haverá uma pessoa, lá bem no âmago?

SEREI EU A SOMA DAS MINHAS MEMÓRIAS?

Tanto o cérebro como o corpo sofrem tantas mudanças ao longo da vida,


que – tal como acontece com o ponteiro das horas num relógio – é difícil
detetá-las. Em quatro meses, os nossos glóbulos vermelhos são
completamente substituídos, por exemplo, e as células da pele são
renovadas em poucas semanas. Ao longo de cerca de sete anos, todos os
átomos do nosso corpo são substituídos por novos átomos. Em termos
físicos, estamos sempre a ser novas pessoas. Felizmente, pode haver uma
constante que liga todas essas versões diferentes de nós mesmos: a
memória. Talvez a memória seja o fio condutor daquilo que somos. Ela é a
base da nossa identidade, garantindo um sentido único e contínuo do eu.
Mas pode haver aqui um problema. Será a continuidade uma ilusão?
Imaginemos que seria possível irmos até um parque e conhecermo-nos a
nós mesmos em diferentes idades. Ali estávamos nós com seis anos, perto
dos trinta, nos cinquenta, depois dos setenta, até aos últimos anos da nossa
vida. Neste cenário, poderíamos sentar-nos todos juntos e partilhar as
mesmas histórias da nossa vida, desfiando o único fio condutor da nossa
identidade.
Será? Todas essas pessoas têm o mesmo nome e a mesma história, mas
a verdade é que todas elas são um pouco diferentes, com diferentes
valores e objetivos. E as memórias da nossa vida poderiam ter menos em
comum do que esperaríamos. A memória que temos de quem éramos aos
quinze anos é diferente do que éramos realmente aos quinze anos; além do
mais, temos memórias diferentes em relação aos mesmos acontecimentos.
Porquê? Por causa daquilo que uma memória é, e também do que não é.
Mais do que uma gravação em vídeo de um momento da nossa vida, a
memória é um estado cerebral frágil de um tempo passado que tem de ser
ressuscitado para nos recordarmos.
Eis um exemplo: estamos num restaurante para a festa de anos de um
amigo. Tudo o que experienciamos desencadeia padrões de atividade
particulares no nosso cérebro. Por exemplo, há um padrão de atividade
que é desencadeado pela conversa entre os nossos amigos. Outro padrão é
ativado pelo cheiro do café, outro ainda, pelo sabor de um delicioso bolo
com creme. O facto de o empregado de mesa pôr o polegar na nossa
chávena é outro detalhe memorável, representado por uma configuração
diferente de neurónios excitados. Todas essas constelações ficam
interligadas numa vasta rede de neurónios que o hipocampo reproduz,
várias vezes, até as associações se tornarem fixas. Os neurónios que estão
ativos em simultâneo vão estabelecer ligações mais fortes entre si: as
células que se excitam em conjunto, ligam-se umas às outras. A rede que
daí resulta é a assinatura única do acontecimento e representa a nossa
memória do jantar de aniversário.
Imaginemos agora que, passados seis meses, comemos um daqueles
bolos com creme, igual ao que tínhamos provado na festa de aniversário.
Esta pode ser a chave específica que vai abrir toda uma rede de
associações. A constelação original acende-se, como as luzes de uma
cidade a acenderem-se ao fim do dia. E, de súbito, voltámos a essa
memória.
Apesar de nem sempre nos apercebermos, a memória não é tão rica
como poderíamos esperar. Sabemos que estavam lá os amigos. Ele devia
estar de fato, porque anda sempre de fato. E ela tinha uma blusa azul. Ou
seria roxa? Também podia ser verde. Se sondarmos verdadeiramente a
memória, percebemos que não nos conseguimos lembrar de pormenores
de mais nenhuma das outras pessoas que havia no restaurante, apesar de
ele estar cheio.
Ou seja, a memória do jantar de aniversário começou a desvanecer-se.
Porquê? Para começar, temos um número finito de neurónios, e todos têm
de realizar diversas funções. Cada neurónio faz parte de diferentes
constelações em momentos diferentes. Os nossos neurónios funcionam
segundo uma matriz dinâmica de relações, que vão alternando, e estão
constantemente a ser procurados para se ligarem a outros neurónios. Por
isso, a nossa memória do jantar de aniversário ficou turva, pois os
neurónios “do aniversário” foram associados a outras redes de memória. O
inimigo da memória não é o tempo, são outras memórias. Cada
acontecimento novo tem de estabelecer novas relações entre um número
finito de neurónios. A surpresa é que uma memória desvanecida não nos
parece desvanecida. Nós achamos, ou pelo menos assumimos, que está lá
a imagem completa.
E a nossa memória do acontecimento é ainda mais duvidosa. Digamos
que, durante o ano que passou desde esse jantar, os nossos amigos se
separaram. Quando voltamos a pensar no jantar, é possível que nos
recordemos erradamente de ter pressentido sinais de alerta. Ele não estava
mais calado do que o costume, nessa noite? Não terá havido momentos de
silêncio desconfortáveis entre os dois? Bem, será difícil saber ao certo,
porque o conhecimento que temos agora está a alterar a memória desse
momento. Não conseguimos impedir que o presente matize o passado. Por
isso, podemos ter uma perceção do mesmo acontecimento ligeiramente
diferente em fases distintas da nossa vida.

A FALIBILIDADE DA MEMÓRIA
O trabalho pioneiro desenvolvido pela Professora Elizabeth Loftus, da
Universidade da Califórnia, em Irvine, dá-nos algumas pistas sobre a
maleabilidade da nossa memória. Ela transformou o campo da
investigação da memória demonstrando quão suscetíveis são as memórias.
Loftus concebeu uma experiência em que convidava voluntários para
verem filmes de acidentes rodoviários, a quem depois fazia uma série de
perguntas para testar o que recordavam. As perguntas que fazia
influenciavam as respostas que recebia. Ela explica: “Quando perguntava
a que velocidade iam os carros quando bateram um no outro, em vez de
perguntar a que velocidade iam os carros quando se enfaixaram um no
outro, os participantes faziam diferentes estimativas da velocidade. Eles
achavam que os carros iam mais depressa quando eu usava a palavra
enfaixar.” Intrigada pela forma como essas perguntas sugestivas podiam
contaminar a memória, decidiu ir mais longe.
Seria possível implantar memórias completamente falsas? Para o
descobrir, recrutou vários participantes cujas famílias foram
posteriormente contactadas pela equipa para obter informações sobre
acontecimentos do passado desses voluntários. Munidos dessas
informações, os investigadores montaram quatro histórias acerca da
infância de cada um dos participantes. Três delas eram verdadeiras, a
quarta continha informações plausíveis, mas era inteiramente falsa. Essa
quarta história era sobre uma vez em que a pessoa, em criança, se tinha
perdido num centro comercial e tinha sido encontrada por uma simpática
idosa que acabou por a entregar a um dos pais.
Numa série de entrevistas, os participantes ouviram as quatro histórias.
Pelo menos um quarto dos indivíduos afirmou lembrar-se do incidente de
se ter perdido no centro comercial, mesmo não tendo de facto acontecido.
E não se ficaram por aí. Loftus explica: “Eles podem começar por se
lembrar vagamente. Mas quando regressam, uma semana depois,
começam a lembrar-se de mais qualquer coisa. Podem mesmo falar da
senhora de idade que os salvou.” Com o tempo, mais e mais detalhes se
juntam à falsa memória: “a senhora idosa tinha um chapéu esquisito”, “eu
estava com o meu brinquedo preferido”, “a minha mãe estava furiosa”.
MEMÓRIA DO FUTURO

Henry Molaison sofreu o primeiro grande ataque epilético no dia em que fez
quinze anos. A partir daí, a frequência dos ataques aumentou. Confrontado com um
futuro de convulsões violentas, Henry foi submetido a uma cirurgia experimental, em
que lhe removeram a parte média do lobo temporal (incluindo o hipocampo) em
ambos os lados do cérebro. Henry curou-se dos ataques, mas com um efeito
secundário: perdeu a capacidade de criar novas memórias para o resto da vida.
A história não acaba aqui. Para além da incapacidade de criar novas memórias,
também deixou de ser capaz de imaginar o futuro.
Imaginem que iam à praia amanhã. Que imagens vos passam pela cabeça?
Surfistas e castelos de areia? Ondas a rebentar? Raios de sol a passar por entre as
nuvens? Se perguntássemos ao Henry que imagens lhe passavam pela cabeça,
uma das respostas típicas podia ser: “só consigo lembrar-me da cor azul.” O seu
infortúnio revela uma coisa acerca dos mecanismos cerebrais que estão
subjacentes à memória: o objetivo desses mecanismos não é simplesmente registar
o que aconteceu no passado mas permitir que nos projetemos no futuro. Para
antever a experiência na praia, o hipocampo, em particular, desempenha um papel
fundamental na construção de um futuro imaginado ao combinar informações do
passado.

Portanto, não só foi possível implantar memórias novas e falsas no


cérebro, como as pessoas as acolheram e embelezaram, acrescentando
inconscientemente fantasias à sua identidade.
Todos somos suscetíveis a esta manipulação de memórias, até a própria
professora Elizabeth Loftus. Quando ela era criança, a mãe afogou-se
numa piscina. Alguns anos mais tarde, numa festa de aniversário, uma
conversa com um familiar revelou-lhe um facto extraordinário: fora ela
quem descobrira o corpo da mãe na piscina. A notícia foi um choque, pois
ela não sabia disso e, na realidade, nem acreditou. Mas, tal como conta,
“fui para casa a seguir a essa festa e comecei a pensar que talvez tivesse
sido eu a encontrá-la. Comecei a pensar noutras coisas de que me
recordava, como quando os bombeiros chegaram e me deram oxigénio.
Será que eu precisava de oxigénio porque estava abalada por ter
encontrado o corpo?” Não tardou até conseguir visualizar a mãe na
piscina.
Só que o familiar, mais tarde, ligou-lhe a dizer que se tinha enganado.
Afinal, não tinha sido a pequena Elizabeth a encontrar o corpo. Tinha sido
a tia dela. E foi assim que a professora Loftus teve a oportunidade de
experimentar a sensação de ter a sua própria memória falsa, bem
pormenorizada e profundamente sentida.
O nosso passado não é um registo fiel, mas antes uma reconstrução que
pode, por vezes, estar no limiar da mitologia. Quando recordamos as
memórias da nossa vida, devemos fazê-lo com a consciência de que nem
todos os pormenores são exatos. Alguns provêm de histórias que nos
contaram sobre a nossa vida, outros foram acrescentados a partir do que
achamos que deve ter acontecido. Por isso, se a resposta à questão de
sabermos quem somos se basear unicamente nas nossas memórias, isso
faz da nossa identidade uma espécie de narrativa estranha, contínua e
mutável.

O ENVELHECIMENTO DO CÉREBRO

Atualmente vivemos mais anos do que nunca na história da humanidade, o


que coloca vários desafios à manutenção da saúde cerebral. Doenças como
a doença de Alzheimer e a doença de Parkinson atacam o nosso tecido
cerebral e, com isso, alteram a essência de quem somos.
Mas há boas notícias: da mesma forma que o ambiente que nos rodeia e
o nosso comportamento moldam o cérebro quando somos mais jovens,
nos últimos anos de vida esses fatores continuam a ser igualmente
importantes.
Nos Estados Unidos, mais de 1100 freiras, padres e frades têm vindo a
participar num projeto experimental único – o Estudo das Ordens
Religiosas – que visa explorar os efeitos do envelhecimento sobre o
cérebro. O estudo pretende, especificamente, desvendar os fatores de risco
da doença de Alzheimer e inclui participantes acima dos sessenta e cinco
anos de idade que não têm sintomas e que não apresentam quaisquer sinais
mensuráveis de doença.
Além de representarem um grupo estável, que pode ser facilmente
seguido para realizar testes regulares todos os anos, as ordens religiosas
partilham um estilo de vida semelhante, nomeadamente em relação aos
padrões alimentares e de vida, o que permite a menor ocorrência dos
chamados “fatores de confusão”, ou diferenças, como a dieta, o nível
socioeconómico ou de escolaridade, que poderiam surgir numa população
mais generalista e interferir nos resultados do estudo.
A recolha dos dados teve início em 1994. Até agora, a equipa do
Dr. David Bennet, da Universidade Rush de Chicago, recolheu mais de
350 cérebros. Cada um deles é cuidadosamente preservado e examinado
ao microscópio para detetar evidências de doenças relacionadas com a
idade. E isso é apenas metade do estudo; a outra metade consiste na
recolha exaustiva de dados sobre cada participante ainda em vida. Todos
os envolvidos no estudo são submetidos, anualmente, a uma bateria de
exames, que incluem desde avaliações psicológicas e cognitivas a exames
médicos, físicos e genéticos.
Quando a equipa iniciou a pesquisa, esperava encontrar uma ligação
evidente entre o declínio cognitivo e as três doenças que representam as
causas mais comuns de demência: doença de Alzheimer, acidente vascular
cerebral (AVC) e doença de Parkinson. Em vez disso, eis o que
descobriram: a existência de tecido cerebral afetado pela doença de
Alzheimer não significava necessariamente que essa pessoa sofresse de
problemas cognitivos. Algumas pessoas estavam a morrer com a doença
de Alzheimer diagnosticada sem registarem perdas cognitivas. O que
estava a acontecer?
A equipa voltou a analisar os vastos conjuntos de dados de que
dispunha, em busca de pistas. Dr. Bennet descobriu que a perda de
cognição era determinada por fatores psicológicos e experienciais. Mais
especificamente, descobriu que o exercício cognitivo – ou seja, atividades
que mantêm o cérebro ativo, como fazer palavras cruzadas, ler, conduzir,
aprender novas competências e ter responsabilidades – representava uma
proteção. A atividade social, as redes e interações sociais e a atividade
física também.
Em contrapartida, descobriram que os fatores psicológicos negativos,
como a solidão, a ansiedade, a depressão e a propensão para distúrbios
psicológicos, estavam relacionados com um declínio cognitivo mais
rápido, ao passo que traços positivos como a consciencialização, a
existência de um propósito na vida e uma vida ativa eram fatores
protetores.
Os participantes com tecido nervoso afetado, mas sem sintomas
cognitivos, desenvolveram aquilo a que chamamos uma “reserva
cognitiva”. À medida que umas áreas do cérebro se foram degenerando,
outras estavam bem exercitadas, pelo que tinham compensado ou
assumido as funções perdidas. Quanto melhor for a forma cognitiva do
nosso cérebro – tipicamente desafiando-o com tarefas novas e difíceis,
incluindo a interação social –, mais vias novas são construídas pelas redes
neuronais para atingirem os seus objetivos.
Podemos olhar para o cérebro como uma caixa de ferramentas. Se for
boa, contém as ferramentas de que necessitamos para fazer um
determinado trabalho. Se precisarmos de desapertar um parafuso,
podemos tirar de lá uma chave de roquete; se não tivermos uma chave de
roquete, podemos tirar uma chave inglesa; se não houver uma chave
inglesa, podemos tentar com um alicate. Num cérebro em boa forma
cognitiva, o conceito é o mesmo: mesmo que muitas vias se degenerem
devido à doença, o cérebro pode recorrer a outras soluções.
Os cérebros das freiras demonstram que é possível proteger o nosso
cérebro e ajudar a preservar quem somos durante o maior tempo possível.
Não conseguimos impedir o processo de envelhecimento, mas, ao
utilizarmos todas as competências da nossa caixa de ferramentas
cognitiva, podemos retardá-lo.

EU SOU CONSCIENTE

Quando penso naquilo que sou, há um aspeto acima de tudo o resto que
não pode ser ignorado: sou um ser consciente. Experimento a minha
existência. Sinto que estou aqui, a olhar para o mundo com estes olhos, a
ter a perceção deste espetáculo colorido no centro do meu próprio palco.
Chamemos a esta sensação consciência ou perceção.
Os cientistas debatem muitas vezes a definição exata de consciência,
mas é bastante fácil de perceber do que estamos a falar recorrendo a uma
comparação simples: quando estamos acordados, temos consciência, e
quando estamos a dormir, não temos. Esta distinção permite-nos avançar
uma resposta a uma questão muito simples: qual é a diferença na atividade
cerebral entre esses dois estados?
Uma das maneiras de medir essa atividade é com a eletroencefalografia
(EEG), que capta um resumo de milhões de neurónios a disparar, através
da deteção de sinais elétricos de fraca intensidade no exterior do crânio. É
uma técnica um pouco grosseira, por vezes comparada com a tentativa de
compreender as regras do futebol através de um microfone encostado à
parede exterior de um estádio. Ainda assim, a EEG pode dar-nos
perspetivas imediatas sobre as diferenças entre os estados de vigília e de
sono.
Quando estamos acordados, as ondas cerebrais revelam que os nossos
neurónios estão envolvidos em trocas complexas entre si; imaginem
milhares de conversas entre os espectadores de um jogo de futebol.
Quando vamos dormir, o corpo parece que se desliga. Por isso é natural
pensarmos que o estádio neuronal se cala. Mas, em 1953, descobriu-se que
essa suposição é incorreta, pois o cérebro está tão ativo durante a noite
como durante o dia. Simplesmente, durante o sono, os neurónios
coordenam-se uns com os outros de maneira diferente, entrando num
estado rítmico mais sincronizado. Imaginem os espectadores num estádio
a fazer uma onda, sem parar.
Como é fácil de imaginar, a complexidade da discussão num estádio é
muito mais rica quando estão a ocorrer milhares de conversas discretas.
Pelo contrário, quando a multidão é arrastada para uma onda de gritaria,
esse é um momento menos intelectual.

O PROBLEMA CORPO/MENTE

A perceção consciente é um dos enigmas mais desconcertantes da neurociência


moderna. Qual é a relação entre a nossa experiência mental e o nosso cérebro
físico?
O filósofo René Descartes assumiu que existe uma alma imaterial separada do
cérebro. Segundo a teoria dele, os estímulos sensoriais chegam à glândula pineal,
que é a porta de entrada para o espírito imaterial. (É provável que tenha escolhido a
glândula pineal pelo simples facto de ela se encontrar na linha divisória do cérebro,
ao passo que a maioria das outras estruturas do cérebro existe em duplicado, uma
em cada hemisfério.)
A ideia de uma alma imaterial é fácil de imaginar; contudo, é difícil de conciliar
com as provas neurocientíficas. Descartes nunca se passeou pelo serviço de
neurologia de um hospital. Se o tivesse feito, teria visto que, quando o cérebro
muda, a personalidade da pessoa também muda. Alguns tipos de danos cerebrais
deprimem as pessoas. Outras alterações tornam-nas maníacas. Outras afetam a
religiosidade da pessoa, o sentido de humor ou a vontade de jogar. Outras ainda
tornam a pessoa indecisa, delirante ou agressiva. Daí a dificuldade de conceber que
o mental está separado do físico.
Como iremos ver, a neurociência moderna trabalha para deslindar a relação entre
uma atividade neural detalhada e estados de consciência específicos. É provável
que, para compreender plenamente a consciência, sejam necessárias novas
descobertas e teorias, uma vez que o nosso campo de pesquisa é ainda bastante
recente.

Por isso, aquilo que somos num dado momento depende dos ritmos
detalhados da nossa atividade neuronal. Durante o dia, o nosso Eu
consciente emerge dessa complexidade neural integrada. À noite, quando
a interação dos nossos neurónios se altera um pouco, desaparecemos. Os
nossos entes queridos têm de esperar pela manhã seguinte, quando os
nossos neurónios deixam morrer a onda e retomam o seu ritmo complexo.
É só aí que regressamos.
Então, aquilo que somos depende do que os nossos neurónios estão a
fazer a cada momento.

OS CÉREBROS SÃO COMO FLOCOS DE NEVE

Após concluir a minha pós-graduação, tive a oportunidade de trabalhar


com Francis Crick, um dos meus heróis da ciência. Quando o conheci, ele
dedicava-se ao estudo dos problemas da consciência. O quadro preto do
seu gabinete estava todo escrito, e o que sempre me impressionou foi uma
palavra que estava no meio do quadro, muito maior do que as outras. Essa
palavra era “significado”. Sabemos muito sobre a mecânica dos neurónios,
das redes e das regiões do cérebro, mas não sabemos porque é que todos
aqueles sinais que o percorrem têm algum significado para nós. Como
pode a matéria do nosso cérebro fazer com que nos preocupemos com o
quer que seja?
O problema do significado continua por resolver, mas acho que é
possível afirmar o seguinte: para cada um de nós, o significado de
qualquer coisa está relacionado com as nossas redes de associações,
baseadas em toda a história das nossas experiências de vida.
Imaginemos que eu pegava num pedaço de tecido, que lhe aplicava
pigmentos coloridos e o apresentava ao sistema visual de uma pessoa.
Será que iria desencadear memórias e despertar a imaginação dessa
pessoa? Bem, provavelmente não, porque é só um pedaço de tecido, certo?
Mas agora imaginemos que esses pigmentos no tecido formam o padrão
de uma bandeira nacional. É quase certo que essa visão lhe irá provocar
alguma coisa, muito embora o significado específico seja exclusivo da
história e das experiências dessa pessoa. Nós não percecionamos os
objetos como eles são, mas sim como nós somos.
Cada um de nós tem o seu próprio trajeto – determinado pelos genes e
pelas experiências de cada um – e, em virtude disso, cada cérebro tem
uma vida interior diferente. Os cérebros são tão únicos como os flocos de
neve.

A interpretação que fazemos dos objetos físicos tem tudo a ver com a trajetória
histórica do nosso cérebro e muito pouco com os próprios objetos. Estes dois
retângulos contêm apenas diferentes composições de cor. Um cão não faria
qualquer distinção entre ambos. As eventuais reações que possam desencadear
numa pessoa só têm a ver com ela e não com os retângulos.

À medida que os nossos biliões de novas ligações se vão continuamente


formando e reformulando, o padrão distintivo que daí resulta significa que
nunca existiu, nem existirá, ninguém igual a nós. A experiência da nossa
perceção consciente, neste preciso instante, é exclusiva de cada um de nós.
E como a matéria física está em constante mutação, nós também
estamos. Não temos um caráter fixo. Desde o berço até à morte, somos
projetos em curso.

1 Hardwired refere-se normalmente a um circuito com as ligações já definidas; qualquer coisa que
não se altera e se comporta sempre da mesma maneira. Neste caso significa que o cérebro nasce
como que “biologicamente configurado”, com características inatas e pré-determinadas. (N. do E.)

2 Livewired significa ligado à corrente, dinâmico; neste caso quererá dizer “biologicamente
aberto”, moldável. (N. do E.)

3 * Analogia aos computadores e respetivos componentes e circuitos eletrónicos (o hardware),


onde corre o software, ou seja, os programas e dados que permitem a execução de tarefas. (N. do
E.)
2
O QUE É A REALIDADE?
Como é que o wetware4 biológico do cérebro dá origem à nossa experiência: a
visão do verde-esmeralda, o sabor da canela, o cheiro da terra húmida? E se
eu dissesse que o mundo que nos rodeia, com a sua riqueza de cores,
texturas, sons e aromas é uma ilusão, um espetáculo que o cérebro monta
para cada um de nós? Se conseguíssemos ter a perceção da realidade tal
como ela é, ficaríamos chocados pelo seu silêncio incolor, inodoro e insípido.
Fora do nosso cérebro, só existe energia e matéria. Ao longo de milhões de
anos de evolução, o cérebro humano especializou-se em transformar essa
energia e matéria numa rica experiência sensorial que é a de se estar no
mundo. Como?

4 Wetware: Numa analogia ao jargão informático, o termo refere-se à matéria que constitui cérebro,
o sistema nervoso central, com as suas propriedades bioquímicas e bioelétricas, neurónios e
sinapses. (N. do E.)
A ILUSÃO DA REALIDADE

A partir do momento em que acordamos de manhã vemo-nos rodeados de


uma onda de luzes, cores e cheiros. Os nossos sentidos são inundados.
Basta acordarmos todos os dias para, sem qualquer pensamento ou
esforço, ficarmos submersos na irrefutável realidade do mundo.
Mas até que ponto essa realidade é uma construção do nosso cérebro,
que ocorre apenas na nossa cabeça? Consideremos as cobras giratórias na
imagem. Apesar de na realidade nada estar em movimento, as cobras
parecem estar a deslizar. Como pode o nosso cérebro ter a perceção de
movimento quando sabemos que se trata de uma figura estática?

Nesta página, não há qualquer movimento, mas nós temos a perceção de


movimento. As cobras giratórias são uma ilusão ótica da autoria de Akiyoshi
Kitaoka.
Compare a cor dos quadrados A e B. O tabuleiro de xadrez é uma ilusão ótica da
autoria de Edward Adelson.

Ou consideremos o tabuleiro de xadrez, na imagem. Apesar de não


parecer, o quadrado A é exatamente da mesma cor que o quadrado B, o
que pode ser facilmente comprovado tapando o resto da imagem. Como
podem os quadrados parecer tão diferentes, apesar de serem fisicamente
idênticos?
Ilusões como estas indiciam que a imagem que temos do mundo exterior
não é necessariamente uma representação fiel. A nossa perceção da
realidade não tem tanto a ver com o que acontece no mundo exterior, mas,
sim, com o que está a acontecer no cérebro.

A NOSSA EXPERIÊNCIA DA REALIDADE

Parece que temos acesso direto ao mundo através dos nossos sentidos.
Podemos alcançar e tocar na matéria do mundo físico, como este livro ou
a cadeira onde estamos sentados. Mas essa sensação tátil não é uma
experiência direta. Apesar de termos a sensação de que o tato ocorre na
ponta dos dedos, de facto está tudo a ocorrer no centro de operações do
cérebro. E o mesmo se passa com todas as nossas experiências sensoriais.
A visão não ocorre nos olhos, a audição não ocorre nos ouvidos e o olfato
não ocorre no nariz. Todas as nossas experiências sensoriais têm lugar em
tempestades de atividade no seio da matéria computacional do nosso
cérebro.
Esta é a chave: o cérebro não tem acesso ao mundo exterior. Isolado
dentro da câmara escura e silenciosa do nosso crânio, o cérebro nunca
experienciou diretamente o mundo externo e nunca o experienciará.
Pelo contrário, só há uma maneira de fazer chegar essas informações ao
cérebro. Os nossos órgãos sensoriais – olhos, ouvidos, nariz, boca e pele –
funcionam como intérpretes, detetando uma diversidade de fontes de
informação (incluindo fotões, ondas de compressão do ar, concentrações
moleculares, pressão, textura e temperatura) e traduzindo-as para a moeda
corrente do cérebro: os sinais eletroquímicos.
Esses sinais eletroquímicos percorrem rapidamente densas redes de
neurónios, as principais células de sinalização do cérebro. O cérebro
humano tem 100 mil milhões de neurónios, e cada um deles envia dezenas
ou centenas de impulsos elétricos para milhares de outros neurónios a
cada segundo da nossa vida.
Tudo o que experienciamos – cada visão, som ou odor – não é uma
experiência direta, mas sim uma interpretação eletroquímica num
auditório às escuras.
Como é que o cérebro transforma esses imensos padrões eletroquímicos
num entendimento útil do mundo? Compara os sinais que recebe a partir
dos diferentes órgãos sensoriais, detetando padrões que lhe permitem fazer
as melhores suposições sobre o que se passa “lá fora”. O funcionamento
do cérebro é tão poderoso, que parece tratar-se de uma tarefa que não
exige esforço. Mas olhemos para este processo mais de perto.
Comecemos pelo nosso sentido mais dominante: a visão. O ato de ver
parece-nos tão natural que é difícil dar o devido valor aos imensos
mecanismos que o tornam possível. Cerca de um terço do cérebro humano
é dedicado à missão de ver, para transformar fotões de luz em bruto na
cara da nossa mãe, no animal de estimação que adoramos ou no sofá onde
estamos prestes a fazer uma sesta. Para percebermos como funciona,
vejamos o caso de um homem que perdeu a visão e teve a oportunidade de
a recuperar.

EU ERA CEGO, MAS AGORA VEJO

Mike May perdeu a visão aos três anos e meio de idade. Uma explosão
química afetou-lhe as córneas, deixando os olhos sem acesso aos fotões.
Como cego adulto, foi bem-sucedido profissionalmente e também se
tornou campeão paralímpico de esqui, orientando-se nas descidas através
de sinalizadores sonoros.
Após mais de quarenta anos de cegueira, Mike teve conhecimento de
um tratamento revolucionário com células estaminais que poderia reparar
os danos físicos que sofrera nos olhos. Decidiu submeter-se à cirurgia;
afinal, a sua cegueira resultava simplesmente das córneas opacas, e a
solução era simples.
Porém, aconteceu algo inesperado. Estavam câmaras de televisão
presentes para documentar o momento em que foram retiradas as
ligaduras. Mike descreve assim o que sentiu quando o médico lhe tirou a
gaze: “Há um jato de luz e um bombardeamento de imagens no meu olho.
De repente, liga-se uma torrente de informação visual. É avassalador.”
As novas córneas de Mike estavam a receber e a focar a luz, tal como
deviam, mas o cérebro não conseguia atribuir um sentido às informações
que recebia. Perante as câmaras, Mike olhou para os filhos e sorriu. Mas,
no seu íntimo, estava aterrado, porque não conseguia distinguir as feições
deles nem perceber quem era quem. “Não conseguia reconhecer nenhum
rosto”, recorda.
Do ponto de vista cirúrgico, o transplante fora um sucesso completo.
Mas do ponto de vista de Mike, aquilo que estava a experienciar não se
podia chamar visão. Tal como ele próprio resumiu, “o meu cérebro estava
«à toa»”.
Com a ajuda dos médicos e da família, saiu pelo próprio pé da sala de
recobro, e percorreu o corredor fixando o olhar, pasmado, na carpete, nos
quadros nas paredes e nas portas. Nada daquilo fazia sentido. Uma vez
dentro do carro, à ida para casa, Mike olhava para os carros, para os
edifícios e para as pessoas que passavam, apressadas, tentando, sem
conseguir, perceber o que estava a ver. Na autoestrada, encolheu-se
quando lhe pareceu que iam bater contra um grande retângulo que estava à
frente deles. Era, afinal, um sinal de trânsito. Não tinha noção do que eram
os objetos, nem da sua profundidade. Com efeito, após a operação, Mike
passou a ter mais dificuldade em esquiar do que quando estava cego.
Devido à falta de perceção da profundidade, tinha dificuldade em
distinguir pessoas, árvores, sombras e buracos. Todas essas coisas lhe
pareciam simplesmente formas escuras sobre o branco da neve.

TRANSDUÇÃO SENSORIAL

A biologia descobriu muitas maneiras de converter as informações do mundo


exterior em sinais eletroquímicos. Eis alguns dos mecanismos de tradução que
temos no nosso corpo: células ciliadas no ouvido interno, diversos tipos de recetores
táteis na pele, papilas gustativas na língua, recetores moleculares no bolbo olfativo e
fotorrecetores na parte posterior do olho.
Os sinais provenientes do meio são traduzidos para sinais eletroquímicos,
transmitidos pelas células cerebrais. Este é o primeiro passo que permite ao cérebro
ter acesso a informações do mundo exterior. Os olhos convertem (ou transduzem)
os fotões em sinais elétricos. Os mecanismos do ouvido interno convertem as
vibrações na densidade do ar em sinais elétricos. Os recetores da pele (e também
no interior do corpo) convertem a pressão, a elasticidade, a temperatura e as
substâncias químicas nocivas em sinais elétricos. O nariz converte moléculas
odoríferas à deriva no ar, e a língua converte moléculas gustativas, ambos em sinais
elétricos. Numa cidade que recebe visitantes de todo o mundo, as várias moedas
estrangeiras têm de ser cambiadas para uma moeda corrente antes que possam ser
realizadas transações significativas. O mesmo se passa com o cérebro, que é
essencialmente cosmopolita, acolhendo viajantes de muitas origens distintas.
Um dos enigmas que a neurociência ainda não conseguiu resolver é conhecido
como o “problema da ligação”: como é que o cérebro consegue produzir uma só
imagem, unificada, do mundo, dado que a visão é processada numa região, a
audição, noutra, o tato, noutra, e assim sucessivamente? Apesar de o problema
continuar por resolver, parece que o cerne da solução está na moeda comum usada
pelos neurónios – bem como na sua imensa interconetividade.

A lição que podemos retirar do caso de Mike é que o sistema visual não
funciona como uma câmara, não é como se bastasse tirar a tampa de uma
lente para ver. A visão exige mais do que ter os olhos a funcionar.
No caso de Mike, quarenta anos de cegueira fizeram com que o
território do sistema visual (aquilo a que normalmente chamaríamos o
córtex visual) fosse em grande medida ocupado pelos restantes sentidos,
como a audição e o tato, o que afetou a capacidade do cérebro para ligar
todos os sinais de que necessitava para ter visão. Como veremos, a visão
provém da coordenação de milhares de milhões de neurónios que
executam em conjunto uma sinfonia particular e complexa.
Hoje, quinze anos passados desde a intervenção cirúrgica, Mike
continua a ter dificuldade em ler palavras escritas no papel e as expressões
dos rostos das pessoas. Quando precisa de perceber melhor a sua perceção
visual imperfeita, recorre aos outros sentidos para cruzar as informações:
toca, pega, escuta. Esta comparação entre os vários sentidos é algo que
todos fizemos numa fase muito anterior da vida, quando o nosso cérebro
começou a compreender o mundo.

PARA VER, NÃO BASTA TER OLHOS

Quando os bebés tentam tocar numa coisa que têm à frente, não o fazem
só para perceber a respetiva textura e forma. Esse gesto também é
necessário para aprenderem a ver. A ideia de que o movimento do corpo é
necessário à visão pode parecer estranha, mas foi engenhosamente
demonstrada, em 1963, com a ajuda de dois gatinhos.
Richard Held e Alan Hein, dois investigadores do MIT, o Instituto de
Tecnologia de Massachusetts, nos Estados Unidos, puseram dois gatinhos
dentro de um cilindro com riscas verticais a toda a volta. Ambos os
gatinhos recebiam estímulo visual enquanto davam voltas no interior do
cilindro. Mas havia uma diferença fundamental: o primeiro gatinho
caminhava por vontade própria, ao passo que o segundo ia dentro de uma
caixa, mas os dois estavam fixados a um eixo central. Com essa
configuração, os gatos viam exatamente a mesma coisa: as riscas
deslocavam-se ao mesmo tempo e à mesma velocidade para ambos. Se a
visão dependesse apenas dos fotões que atingem os olhos, os sistemas
visuais de ambos os gatinhos deveriam ter-se desenvolvido de forma
idêntica, mas eis o surpreendente resultado: apenas o gatinho que se
deslocava a caminhar desenvolveu uma visão normal. O que ia dentro da
caixa nunca aprendeu a ver corretamente, pois o seu sistema visual nunca
atingiu o desenvolvimento normal.

No interior de um cilindro com riscas verticais, um gatinho caminhava, enquanto o


outro era transportado. Ambos recebiam exatamente o mesmo estímulo visual,
mas só o que caminhava – o que conseguia fazer corresponder os seus
movimentos às alterações no estímulo visual – aprendeu a ver corretamente.

A visão não tem a ver com os fotões que podem ser imediatamente
interpretados pelo córtex visual. Ela é uma experiência de todo o corpo.
Só com a prática é que o cérebro consegue atribuir um sentido aos sinais
que recebe, o que exige o cruzamento desses sinais com outras
informações resultantes das nossas ações e das consequências sensoriais.
Essa é a única maneira que o nosso cérebro tem de interpretar o
significado real dos dados visuais.
Se logo desde a nascença fôssemos de alguma forma impedidos de
interagir com o mundo, incapazes de interpretar, através do retorno, o
significado da informação sensorial, em teoria nunca conseguiríamos ver.
Quando os bebés batem nas grades do berço, chucham nos dedos dos pés
e brincam com os blocos, não estão apenas a explorar, mas sim a treinar o
seu sistema visual. Encerrado na escuridão, o cérebro deles está a aprender
de que forma as ações enviadas para o mundo exterior (virar a cabeça,
empurrar uma coisa, soltar outra) alteram as informações sensoriais que
recebem. Em resultado dessa vasta experimentação, a visão fica treinada.

A VISÃO PARECE FÁCIL, MAS NÃO É

Ver parece ser uma coisa tão fácil que é difícil ter noção do esforço que o
cérebro exerce para a construir. Para levantar um pouco da ponta do véu
em relação a esse processo, viajei até Irvine, na Califórnia, para ver o que
acontece quando o meu sistema visual não recebe os sinais esperados.
A Dr.a Alyssa Brewer, da Universidade da Califórnia procura
compreender até que ponto o cérebro é adaptável. Para isso, equipa os
participantes com óculos prismáticos que trocam o lado esquerdo e direito
do campo de visão e estuda como é que o sistema visual lida com a
situação.
Num belo dia de primavera, pus os óculos prismáticos. O mundo ficou
todo trocado, com os objetos que estavam à minha direita a aparecerem do
lado esquerdo e vice-versa. Quando tentei perceber de que lado estava a
Dr.a Alyssa, o meu sistema visual disse-me uma coisa, enquanto a minha
audição me dizia outra. Os meus sentidos não batiam certo. Quando
estiquei a mão para pegar num objeto, a visão da minha própria mão não
batia certo com a posição indicada pelos meus músculos. Ao cabo de dois
minutos com os óculos postos, estava a transpirar e com náuseas.
Apesar de os meus olhos estarem a funcionar e a captar as imagens do
mundo, as informações visuais não eram coerentes com as recebidas pelos
meus outros sentidos, o que representava um grande esforço para o meu
cérebro. Era como se estivesse a aprender a ver pela primeira vez.
Eu sabia que acabaria por me habituar a usar os óculos. Havia outro
participante, Brian Barton, que também estava a usar os óculos
prismáticos, só que já os trazia há uma semana. Brian não parecia estar na
iminência de vomitar, como eu estava. Para comparar os nossos níveis de
habituação, desafiei-o para um concurso de cupcakes, em que tínhamos de
partir ovos para uma tijela, bater a massa, despejá-la em tabuleiros com
formas e pô-los no forno.
O resultado é fácil de adivinhar: os cupcakes do Brian saíram do forno
com um aspeto normal, ao passo que a maior parte da minha massa
acabou ressequida na bancada ou cozida em pedaços espalhados pelo
tabuleiro. O Brian conseguia orientar-se no mundo dele sem grande
dificuldade, enquanto eu me tinha tornado num completo desajeitado.
Tinha de fazer um grande esforço, conscientemente, para cada
movimento.
Usar os óculos permitiu-me experimentar o esforço habitualmente
oculto por detrás do processamento visual. Nessa manhã, antes de pôr os
óculos, o meu cérebro conseguia explorar os anos de experiência que tinha
do mundo, mas, após uma simples inversão do estímulo sensorial, deixara
de conseguir.
Para atingir o nível de destreza do Brian, sabia que tinha de continuar a
interagir com o mundo durante muitos dias, a tocar nos objetos, a seguir a
direção dos sons, a prestar atenção à posição dos meus membros. Com a
prática suficiente, o meu cérebro ficaria treinado, graças a um cruzamento
contínuo entre os vários sentidos, tal como o cérebro do Brian estava a
fazer há sete dias. Com o treino, as minhas redes neurais conseguiriam
compreender a correspondência entre os vários fluxos de informação que
chegam ao cérebro.
A Dr.a Brewer relata que, após alguns dias a usar os óculos, as pessoas
desenvolvem um sentido interior de uma nova esquerda e uma antiga
esquerda, e de uma nova direita e uma antiga direita. Ao cabo de uma
semana conseguem mexer-se normalmente, como fazia o Brian, e perdem
a noção de qual das esquerdas e das direitas é a antiga e a nova. Nessas
pessoas, o mapa espacial do mundo altera-se. Após duas semanas de
participação na experiência conseguem ler e escrever bem, caminham e
pegam em objetos com a mesma destreza de quem não usa os óculos.
Nesse curto período conseguiram dominar os estímulos invertidos.
Na realidade, o cérebro não se preocupa com os pormenores dos
estímulos, só se preocupa em perceber como se deslocar pelo mundo e em
obter o que precisa de forma eficiente. Ele faz por nós o esforço
necessário para lidar com os sinais de baixa intensidade. Quem tiver
alguma vez a oportunidade de usar óculos prismáticos, deve fazer a
experiência; vão perceber o esforço que o cérebro faz para que a visão
pareça fácil.

SINCRONIZAR OS SENTIDOS

Então, já vimos que a nossa perceção exige que o cérebro compare


diferentes fluxos de informações sensoriais. Mas há uma coisa que faz
dessa comparação um verdadeiro desafio: o problema do tempo. Todos os
fluxos de informações sensoriais – a visão, a audição, o tato e assim
sucessivamente – são processados pelo cérebro a velocidades diferentes.
Vejamos o exemplo dos corredores numa pista. Parece que saltam dos
blocos de partida assim que a arma dispara, mas essa reação não é
instantânea. Em câmara lenta, vemos um intervalo bem percetível, de
quase duas décimas de segundo, entre o disparo e o início do movimento.
(Com efeito, se se tivessem mexido durante esse intervalo, teriam sido
desclassificados, pois seria considerada “falsa partida”.) Os atletas
treinam-se para tornar esse intervalo o mais curto possível, mas a biologia
impõe limites fundamentais: o cérebro tem de registar o som, enviar sinais
ao córtex motor e depois pela espinal medula abaixo até aos músculos do
corpo. Num desporto em que a diferença entre perder ou ganhar pode ser
uma questão de milésimas de segundo, uma tal reação parece
surpreendentemente lenta.
Seria possível encurtar o atraso se usássemos, por exemplo, um flash em
vez de uma pistola para dar a partida? Afinal, se a luz se desloca a uma
velocidade muito superior à do som, isso não permitiria que saltassem
mais depressa dos blocos?
Reuni alguns corredores para fazerem o teste comigo. Na fotografia de
cima, a partida foi dada por um flash, ao passo que na de baixo, a partida
foi dada pela pistola.
Os atletas conseguem sair mais depressa dos blocos de partida com um tiro
(imagem de baixo) do que com um flash (imagem de cima).

A nossa reação à luz foi mais lenta. À primeira vista, isto pode parecer
contraditório, dada a velocidade da luz no mundo exterior, mas para
compreender o que se passa, temos de olhar para a velocidade a que a
informação é processada no nosso interior. As informações visuais passam
por um processamento mais complexo do que as auditivas. É preciso mais
tempo para que os sinais que transportam a informação do flash percorram
o sistema visual do que para que os sinais do tiro percorram o sistema
auditivo. Conseguimos responder à luz em 190 milésimas de segundo,
mas só precisámos de 160 milésimas de segundo para reagir ao tiro. É por
isso que se usa uma pistola para dar a partida nas corridas.
Mas é aqui que alguma coisa não bate certo. Acabámos de ver que o
cérebro processa os sons mais rapidamente do que as imagens. Porém,
vejamos bem o que acontece quando batemos palmas à frente da cara.
Experimente. Parece estar tudo sincronizado. Como é isso possível se o
som é processado mais rapidamente? O que isto significa é que a nossa
perceção da realidade resulta de elaborados truques de edição: o cérebro
esconde a diferença dos tempos de chegada. Como? O que ele nos
apresenta como sendo a realidade é, afinal, uma versão retardada. O nosso
cérebro recolhe todas as informações provenientes dos sentidos antes de
decidir qual é a história do que se está a passar.
Essas dificuldades com os tempos não se limitam à audição e à visão,
pois cada tipo de informação sensorial leva um tempo diferente a ser
processada. Para complicar ainda mais as coisas, mesmo dentro de cada
sentido existem diferenças de tempo. Por exemplo, os sinais provenientes
do dedo grande do pé demoram mais tempo a chegar ao cérebro do que os
sinais que vão do nariz. Mas nada disto é evidente para a nossa perceção:
primeiro recolhemos todos os sinais, para que tudo pareça estar
sincronizado. A estranha consequência de tudo isto é vivermos no
passado. Quando pensamos que um determinado momento está a ocorrer,
há muito que ele já passou. Para sincronizar as informações que entram
através dos sentidos, o preço que pagamos é o de termos a nossa perceção
consciente atrasada em relação ao mundo físico. É o fosso inultrapassável
entre a ocorrência de um acontecimento e a perceção consciente que
temos dele.

QUANDO SE DESLIGAM OS SENTIDOS, O ESPETÁCULO


ACABA?

A nossa experiência da realidade é a criação suprema do cérebro. Apesar


de se basear em todos os fluxos de informação provenientes dos sentidos,
não depende deles. Como é que sabemos? Porque, quando desaparecem
todos, a realidade não acaba. Apenas fica mais estranha.
Num dia ensolarado, em São Francisco, apanhei um barco e atravessei
as águas geladas até Alcatraz, a célebre ilha-prisão. Ia ver uma cela em
particular, conhecida como o Buraco. Quem quebrasse as regras cá fora, ia
parar a Alcatraz. Quem quebrasse as regras em Alcatraz, ia parar ao
Buraco.
Entrei no Buraco e fechei a porta. Tem cerca de três metros por três
metros. É escuro como breu, nem um único fotão de luz consegue entrar.
Está completamente isolado de sons. Ali, uma pessoa fica completamente
sozinha, entregue a si própria.
O CÉREBRO É COMO UMA CIDADE

Tal como uma cidade, o funcionamento geral do cérebro resulta da interação em


rede das inúmeras partes que o compõem. Existe muitas vezes a tentação de
atribuir uma função a cada região do cérebro, do género “esta parte faz isto”. Mas,
apesar de uma longa história de tentativas, a função cerebral não pode ser
entendida como o somatório das atividades de um conjunto de módulos bem
definidos.
Pensemos antes no cérebro como uma cidade. Se olhássemos para uma cidade
e perguntássemos “onde é que está localizada a economia”, perceberíamos que não
há resposta válida para essa pergunta. Bem pelo contrário, a economia resulta da
interação de muitos elementos, desde as lojas e os bancos aos comerciantes e
clientes.
E o mesmo se passa com o funcionamento do cérebro: não tem lugar num único
ponto. Tal como numa cidade, nenhum bairro do cérebro funciona isoladamente.
Nos cérebros e nas cidades, tudo resulta da interação entre residentes, a todas as
escalas, localmente e à distância. Assim como os comboios transportam materiais e
têxteis para uma cidade, onde são processados pela economia, também os sinais
eletroquímicos iniciados nos órgãos sensoriais são transportados ao longo de
superautoestradas de neurónios, sendo depois processados e transformados na
nossa realidade consciente.

Como seria ficar fechado naquele sítio durante umas horas ou uns dias?
Para descobrir, falei com um dos prisioneiros ainda vivos que por lá tinha
passado. Condenado por roubo à mão armada, Robert Luke – conhecido
como Cold Blue Luke – passou vinte e nove dias no Buraco por ter
destruído a sua cela. Luke descreveu assim a experiência: “O Buraco
escuro era um lugar terrível. Alguns tipos não conseguiam aguentar. Quer
dizer, ficavam ali, e passados dois dias, já estavam a bater com a cabeça
na parede. Ninguém sabia como iria reagir quando lá chegasse. Ninguém
queria descobrir.”
Estando completamente isolado do mundo exterior, sem som nem luz,
os olhos e os ouvidos de Luke ficaram sem qualquer estímulo. Mas a
mente dele não abandonou a noção de um mundo exterior, continuando
simplesmente a construir esse mundo. Luke descreve a experiência:
“Lembro-me de ter feito umas viagens. Uma de que me lembro era de
estar a lançar um papagaio de papel. Era bastante real. Mas era tudo só na
minha cabeça.” O cérebro de Luke continuava a ver.
Experiências como esta são comuns em reclusos sujeitos a prisão
solitária. Outro detido que passou pelo Buraco relatou ter visto um foco de
luz no olho da mente; ele expandia esse foco até se tornar num ecrã de
televisão, que depois visionava. Privados de novas informações sensoriais,
os reclusos diziam que essas experiências eram mais do que sonhar
acordado, falando antes de experiências que pareciam completamente
reais. Eles não imaginavam as imagens, eles viam-nas.
Este testemunho ilustra a relação entre o mundo exterior e o que
consideramos ser a realidade. Como podemos compreender o que se
passava com Luke? No modelo tradicional da visão, a perceção resulta de
um desfile de dados que começa nos olhos e acaba num qualquer ponto
misterioso do cérebro. Mas, apesar da simplicidade desse modelo da visão
como uma linha de montagem, ele está errado.
Com efeito, o cérebro gera a sua própria realidade antes ainda de
receber as informações provenientes dos olhos e dos outros sentidos, e isto
é conhecido como o modelo interno.
A base do modelo interno pode ser observada na anatomia do cérebro. O
tálamo fica entre os olhos, na parte da frente da cabeça, e o córtex visual,
na parte de trás da cabeça. A maioria da informação sensorial passa por aí,
a caminho da região adequada do córtex. A informação visual vai para o
córtex visual, pelo que existe uma enorme quantidade de ligações que vão
do tálamo para o córtex visual. Mas, eis a surpresa: há dez vezes mais
ligações na direção oposta.
Expetativas detalhadas acerca do mundo – por outras palavras, o que o
cérebro “supõe” que vai estar lá fora – são transmitidas pelo córtex visual
ao tálamo. Este compara então o que lhe chega dos olhos. Se isso
corresponder às expetativas (“quando virar a cabeça, devo ver ali uma
cadeira”), então é muito pouca a atividade que regressa ao sistema visual.
O tálamo limita-se a comunicar as diferenças entre o que os olhos estão a
registar e o que o modelo interno do cérebro previu. Por outras palavras, o
que é devolvido ao córtex visual é o que faltou na expetativa (também
conhecido como “erro”), ou seja, a parte que não estava prevista.
Por isso, a um dado momento, a nossa experiência da visão depende
menos do fluxo luminoso que chega aos olhos do que o que já temos na
nossa cabeça.
E é por isso que Cold Blue Luke tinha experiências visuais numa cela
completamente escura. Ali fechado no Buraco, os sentidos não
transmitiam novos estímulos ao cérebro, pelo que o modelo interno podia
funcionar livremente, e ele experimentava visões e sons vívidos. Mesmo
quando fica liberto das informações externas, o cérebro continua a gerar as
suas próprias imagens. Desliga-se o mundo, mas o espetáculo continua.
Não é preciso estar fechado no Buraco para experimentar o modelo
interno. Muita gente sente um grande prazer nas câmaras de privação
sensorial, tanques escuros em que ficam a flutuar em água salgada.
Eliminando a ligação ao mundo exterior, podem dar asas ao mundo
interior.
E é evidente que não é preciso ir tão longe para encontrar a nossa
própria câmara de privação sensorial. Todas as noites, quando
adormecemos, temos experiências visuais plenas e ricas. Temos os olhos
fechados, mas desfrutamos do mundo exuberante e colorido dos nossos
sonhos, acreditando piamente no realismo de todos eles.

VER AS NOSSAS EXPETATIVAS

Quando andamos pela rua de uma cidade, parece que conhecemos


automaticamente as coisas sem termos de perceber os detalhes. O nosso
cérebro faz suposições acerca do que estamos a ver, com base no nosso
modelo interno, construído a partir de anos de experiência a percorrer
outras ruas. Todas as nossas experiências anteriores contribuem para o
modelo interno do nosso cérebro.
Em vez de usarmos os nossos sentidos para reconstruirmos
constantemente a nossa realidade a partir do zero a cada momento,
estamos a comparar a informação sensorial com um modelo que o nosso
cérebro já construiu, a atualizá-lo, a aperfeiçoá-lo e a corrigi-lo. O nosso
cérebro é tão especializado nessa tarefa que normalmente nem damos por
ela. Mas, por vezes, em determinadas condições, podemos ver o processo
em funcionamento.
Experimente pegar numa máscara de plástico, daquelas que se usam no
Carnaval. Agora, rode-a para ver a parte de trás, oca. Sabe que é oca. Mas,
apesar desse conhecimento, muitas vezes é impossível não ver a cara
como se estivesse saliente. Essa experiência não provém das informações
em bruto que chegam aos olhos, mas sim do modelo interno que se
formou ao longo de anos a ver caras salientes. A ilusão da máscara oca
revela o poder das nossas expetativas sobre aquilo que vemos. (Quem
quiser experimentar a ilusão da máscara oca pode fazê-lo de uma maneira
muito simples: basta enterrar a cara na neve e tirar uma foto da marca que
fica. O cérebro vai interpretar essa imagem como uma escultura de neve
em 3D, saliente.)
É também o nosso modelo interno que permite manter a estabilidade do
mundo exterior, mesmo quando nos movimentamos. Imaginemos que
alguém via uma paisagem urbana que queria mesmo guardar para
recordação. Essa pessoa, então, pegava no telemóvel para fazer um vídeo,
mas, em vez de fazer uma panorâmica suave do cenário, decidia mover a
câmara exatamente da mesma maneira que os olhos se movimentam.
Apesar de, geralmente, não termos consciência disso, os nossos olhos
deslocam-se com movimentos bruscos, conhecidos como sacadas, quatro
vezes por segundo. Se tentássemos filmar assim, não tardaríamos muito a
descobrir que não é maneira de fazer um vídeo: ao reproduzi-lo, iríamos
ficar enjoados só de olhar para aqueles movimentos rápidos e abruptos.
Quando somos confrontados com o lado oco de uma máscara (à direita), continua
a parecer-nos que está saliente. Aquilo que vemos é muito influenciado pelas
nossas expetativas.

Então, como é que o mundo nos parece estável quando olhamos para
ele? Porque não o vemos a abanar tanto e não nos dá náuseas como o
vídeo mal filmado? Eis porquê: o nosso modelo interno funciona a partir
do pressuposto de que o mundo exterior é estável. Os nossos olhos não
são como as câmaras de vídeo, simplesmente esforçam-se por encontrar
mais detalhes que alimentem o nosso modelo interno. Não são lentes de
uma câmara através das quais olhamos; eles estão a juntar pedaços de
informação para alimentar o mundo que temos dentro do crânio.

O NOSSO MODELO INTERNO É DE BAIXA RESOLUÇÃO, MAS


PODE SER ATUALIZADO

O nosso modelo interno do mundo exterior permite-nos ter uma perceção


imediata do nosso ambiente. E é essa a sua função principal, a de se
orientar no mundo. O que nem sempre é óbvio é a quantidade de
pormenores finos que o cérebro deixa de fora. Temos a ilusão de que
estamos a absorver o mundo que nos rodeia com grande pormenor, mas
não estamos, tal como ficou demonstrado por uma experiência realizada
nos anos sessenta.
O psicólogo russo Paul Yarbus desenvolveu uma maneira de
acompanhar os olhos das pessoas ao observarem uma cena pela primeira
vez. Recorrendo à pintura O Visitante Inesperado, de Ilya Repin, pediu
aos participantes que observassem os detalhes durante três minutos e
depois descrevessem o que tinham visto, após o quadro ter sido tirado da
vista deles.
Numa repetição dessa experiência, dei aos participantes tempo para
estudarem o quadro, tempo para o cérebro deles construir um modelo
interno da cena. Mas, qual era o nível de detalhe do modelo? Quando fiz
perguntas aos participantes, todos os que tinham visto o quadro achavam
que sabiam o que lá estava. Mas quando lhes fiz perguntas mais
específicas, deu para perceber que o cérebro deles não tinha registado a
maior parte dos detalhes. Quantos quadros havia nas paredes? Qual era o
mobiliário da divisão? Quantas crianças havia no quadro? O chão era de
madeira ou tinha uma carpete? Que expressão tinha a cara do visitante
inesperado? A falta de respostas revelou que as pessoas só tinham retido
uma noção muito superficial da cena. Ficaram surpreendidas por
descobrirem que, mesmo com um modelo interno de baixa resolução,
continuavam a ter a impressão de que tinham visto tudo. Mais tarde, após
as perguntas, dei-lhes a possibilidade de olharem novamente para o
quadro, para procurarem algumas das respostas. Os olhos dos
participantes percorreram o quadro em busca das informações e
incorporaram-nas num novo modelo interno atualizado.
Isto não significa que seja uma falha do cérebro, pois ele não tenta
produzir uma simulação perfeita do mundo. O modelo interno é antes uma
aproximação criada à pressa, e desde que o cérebro saiba onde ir à procura
dos aspetos mais pormenorizados, mais detalhes vão sendo acrescentados
à medida das necessidades.
Então, porque é que o cérebro não nos dá a imagem completa? Porque
os cérebros consomem muita energia. Vinte por cento das calorias que
ingerimos são utilizadas para alimentar o cérebro. Por isso é que ele tenta
funcionar da maneira mais eficiente possível em termos energéticos, o que
significa que processa apenas a quantidade mínima de informações
provenientes dos nossos sentidos, a que é necessária para nos orientarmos
no mundo.

Registámos os movimentos oculares dos voluntários enquanto observavam O


Visitante Inesperado, um quadro de Ilya Repin. Os rastos brancos mostram os
pontos onde os olhos se fixaram. Apesar da cobertura feita através dos
movimentos oculares, os participantes não registaram praticamente nenhum
detalhe.

Os neurocientistas não foram os primeiros a descobrir que o facto de


fixar o olhar numa coisa não é garantia de ver essa coisa. Os ilusionistas
há muito que perceberam isso mesmo. Ao dirigirem a atenção dos
espectadores, os ilusionistas fazem passes de magia à vista de todos. Os
seus gestos deveriam denunciar o truque, mas eles podem ficar
descansados, pois o nosso cérebro apenas processa pequenas partes da
cena visual.
Tudo isto ajuda a explicar a existência de acidentes rodoviários em que
os condutores atropelam peões que estão completamente à vista ou
chocam com outros carros que estão mesmo à sua frente. Em muitos
desses casos, os olhos estão apontados na direção certa, mas o cérebro não
está a ver o que realmente lá está.

ESTAMOS LIMITADOS A UMA PEQUENA FAIXA DA


REALIDADE

Nós consideramos a cor uma qualidade fundamental do mundo que nos


rodeia. Mas, na realidade, no mundo exterior a cor não existe.
Quando um objeto é atingido por radiação eletromagnética, parte dela é
refletida e é captada pelos nossos olhos. Conseguimos distinguir milhões
de combinações de comprimentos de onda, mas é apenas dentro da nossa
cabeça que parte deles se transforma em cor. A cor é uma interpretação
dos comprimentos de onda e só existe interiormente.
E isto é ainda mais estranho porque os comprimentos de onda de que
falamos dizem apenas respeito àquilo a que chamamos a “luz visível”, um
espetro de comprimentos de onda que vai do vermelho ao violeta. Só que
a luz visível constitui apenas uma ínfima fração, menos de um décimo de
trilionésimo, de todo o espetro eletromagnético. Todos os restantes
componentes do espetro – incluindo as ondas de rádio, as micro-ondas, os
raios X, os raios gama, as conversas por telemóvel, as redes wi-fi e por aí
fora – estão neste momento a atravessar-nos sem sequer nos darmos conta.
Isto acontece porque não temos recetores biológicos especializados para
captar esses sinais provenientes de outras zonas do espetro. A faixa da
realidade que conseguimos ver é limitada pela nossa biologia.
Cada criatura escolhe a sua própria faixa da realidade. No mundo cego e
surdo da carraça, os sinais provenientes do ambiente que ela deteta são a
temperatura e o odor corporal. Para os morcegos, é a ecolocalização das
ondas de compressão do ar. Para o peixe-fantasma-negro, a experiência
que tem do mundo é definida por perturbações nos campos elétricos. Estas
são faixas dos respetivos ecossistemas que estes animais conseguem
detetar. Ninguém tem uma experiência da realidade objetiva que exista
mesmo, pois cada criatura apenas tem a perceção daquilo que a sua
evolução lhe permite ter. Mas, presumivelmente, todas as criaturas
assumem que a sua faixa de realidade corresponde à totalidade do mundo
objetivo. Porque haveríamos nós de imaginar que há mais alguma coisa
para além daquilo que percecionamos?
Então, qual é o verdadeiro “aspeto” do mundo que está fora da nossa
cabeça? Para além de não ter cor, também não tem som, pois a
compressão e expansão do ar é captada pelos ouvidos e é transformada em
sinais elétricos. O cérebro apresenta-nos então esses sinais na forma de
sons melodiosos, silvos, estrépitos e zunidos. A realidade também não tem
cheiro, já que isso é coisa que não existe fora do nosso cérebro. As
moléculas que pairam no ar aderem a recetores existentes no nosso nariz e
são interpretadas como vários cheiros pelo nosso cérebro. O mundo real
não está cheio de eventos sensoriais, é antes o nosso cérebro que
abrilhanta o mundo com a sua própria sensualidade.

A REALIDADE DOS OUTROS E A MINHA REALIDADE

Como é que eu sei se a minha realidade é igual à dos outros? Em relação à


maioria das pessoas, é impossível saber, mas há uma pequena franja da
população cuja perceção da realidade é comprovadamente diferente da
nossa.
Vejamos o caso de Hannah Bosley. Quando olha para as letras do
alfabeto, tem uma experiência interna de cor. Para ela, é uma verdade
evidente que o J é roxo ou que o T é vermelho. As letras desencadeiam, de
forma automática e involuntária, experiências de cor, e as associações
nunca se alteram. O nome próprio dela parece-lhe um pôr-do-sol,
começando pelo amarelo, desvanecendo para vermelho, depois uma cor
semelhante à das nuvens, passando novamente a vermelho e depois
amarelo. Já o nome “Iain”, por seu lado, tem para ela o aspeto de um
vómito, apesar de ser perfeitamente simpática para quem tem esse nome.
Hannah não está a ser poética ou metafórica, tem é uma experiência
percetual conhecida como sinestesia. A sinestesia é uma condição em que
os sentidos (ou, em alguns casos, os conceitos) se misturam. Há muitos
tipos de sinestesia diferentes. Há quem saboreie palavras. Há quem veja os
sons como cores. Há quem ouça movimentos visuais. Cerca de 3% da
população tem um tipo de sinestesia qualquer.
Hannah é apenas uma entre os mais de 6 mil sinestésicos que estudei no
meu laboratório, onde, aliás, Hannah trabalhou durante dois anos.
Dediquei-me ao estudo da sinestesia porque é uma das poucas condições
em que é claro que a experiência que alguém tem da realidade é
comprovadamente diferente da minha. E isso torna evidente que o modo
como percecionamos o mundo não é igual para todos.
A sinestesia é o resultado das conversas cruzadas das áreas sensoriais do
cérebro, à semelhança de regiões vizinhas com fronteiras porosas. A
sinestesia mostra-nos que mesmo alterações microscópicas nas ligações do
cérebro podem dar origem a realidades diversas.
Sempre que conheço alguém com este tipo de experiência, recordo-me
de que a nossa experiência interna da realidade pode ser ligeiramente
diferente de pessoa para pessoa e de cérebro para cérebro.

ACREDITAR NO QUE O CÉREBRO NOS DIZ

Todos sabemos como é ter sonhos durante a noite, esses pensamentos


espontâneos e bizarros que nos fazem viajar. Por vezes, são viagens
perturbantes em que temos de sofrer. O lado bom é que, quando
acordamos, conseguimos compartimentar as coisas: aquilo foi um sonho,
isto é a minha vida quando estou acordado.
Imagine-se o que seria se esses estados da nossa realidade estivessem
mais interligados e se fosse mais difícil – ou impossível – distinguir um do
outro. Para cerca de 1% da população, essa distinção pode ser complicada,
e as realidades dessas pessoas podem ser avassaladoras e aterrorizantes.
Elyn Saks é professora de Direito na USC, a Universidade da Califórnia
do Sul. É uma pessoa inteligente e amável, e sofre de episódios de
esquizofrenia esporádicos desde os dezasseis anos. A esquizofrenia é uma
perturbação no funcionamento do seu cérebro que a faz ouvir vozes ou ver
coisas que mais ninguém vê, ou então acreditar que as outras pessoas
estão a ler-lhe os pensamentos. Felizmente, graças à medicação e a
sessões de terapia semanais, Elyn consegue fazer palestras e dar aulas na
faculdade de Direito há mais de vinte e cinco anos.
Conversei com ela na USC, e deu-me exemplos de episódios de
esquizofrenia que viveu no passado. “Sentia que as casas estavam a
comunicar comigo: Tu és especial. Tu és mesmo má. Arrepende-te. Para.
Vai. Eu não ouvia essas palavras, ouvia-as como se fossem pensamentos
que me punham na cabeça. Mas sabia que eram pensamentos das casas,
não meus.” Durante um incidente, acreditou que tinha explosões a detonar
no cérebro e teve medo de que isso pudesse ferir outras pessoas para além
dela. Noutro momento da vida, acreditou que o cérebro dela se ia derramar
pelas orelhas e afogar as outras pessoas.
Agora que se viu livre desses alucinações, ri-se e encolhe os ombros,
questionando-se sobre o que as motivava.
Tudo não passava de desequilíbrios químicos no cérebro que
provocavam alterações subtis no padrão dos sinais. Basta um padrão
ligeiramente diferente para a pessoa se ver subitamente encurralada numa
realidade em que acontecem coisas estranhas e impossíveis. Quando Elyn
estava num episódio esquizofrénico, nunca lhe passou pela cabeça que
houvesse ali alguma coisa estranha. Porquê? Porque acreditava na
narrativa contada pela soma da sua química cerebral.
Li certa vez um velho texto médico em que a esquizofrenia era descrita
como uma intrusão do estado de sono no estado desperto. Apesar de já
não ser frequente ver essa perturbação descrita dessa forma, é uma
maneira esclarecedora de perceber como seria a experiência a partir do
interior. Da próxima vez que o leitor vir alguém numa esquina a falar
sozinho ou a representar uma narrativa, é melhor recordar-se de como
seria se não conseguisse distinguir o estado de sono do estado desperto.
A experiência de Elyn permite-nos compreender as nossas próprias
realidades. Quando estamos a meio de um sonho, ele parece-nos real.
Quando interpretamos mal alguma coisa que vimos de relance, é difícil
evitar a sensação de que conhecemos a realidade daquilo que vimos.
Quando recordamos uma memória que é, na realidade, falsa, é difícil
aceitar que nos digam que não aconteceu de facto. Apesar de impossíveis
de quantificar, são muitas as falsas realidades deste tipo que influenciam
as nossas crenças e atos, de maneiras para as quais podemos nem ter
consciência.
Quer estivesse em plena alucinação ou em sintonia com a realidade da
maioria da população, Elyn acreditava que aquilo que estava a
experienciar estava realmente a acontecer. Para ela, tal como para todos
nós, a realidade é uma narrativa levada à cena no interior do auditório
selado do crânio.
O TEMPO DISTORCIDO

Há outra faceta da realidade na qual raramente paramos para pensar: a


experiência do tempo para o nosso cérebro pode, muitas vezes, ser
bastante estranha. Em determinadas situações, a nossa realidade pode
parecer-nos mais lenta ou mais rápida.
Quando tinha oito anos, caí do telhado de uma casa, e a queda pareceu
durar uma eternidade. Quando fui para o liceu, aprendi Física e calculei o
tempo real da queda. Acontece que durou oito décimas de segundo. Esse
foi o ponto de partida para tentar compreender uma coisa: porque é que a
queda me pareceu durar tanto tempo, e o que poderia isso dizer-me acerca
da nossa perceção da realidade?
Lá no alto, sobre as montanhas, Jeb Corliss, praticante profissional de
wingsuit viveu uma experiência de distorção do tempo. Tudo começou
com um determinado salto que já tinha experimentado fazer. Mas, nesse
dia, tinha um alvo – um conjunto de balões – e a ideia era que rebentassem
à sua passagem. Jeb recorda: “Os balões estavam presos a uma plataforma
de granito e, quando fui direto a um dos balões, calculei mal a trajetória”.
Fez ricochete no granito a uma velocidade que calcula ter sido de quase
200 quilómetros por hora.
Como é profissional do wingsuit, os acontecimentos desse dia foram
registados por várias câmaras instaladas nos penhascos e no corpo dele.
No vídeo, é possível ouvir o baque no momento em que Jeb bate no
granito. Passa disparado pelas câmaras e voa por sobre a borda do
penhasco onde tinha acabado de bater de raspão.
Foi então que o sentido de tempo de Jeb ficou distorcido. Segundo
recorda: “o cérebro dividiu-se em dois processos de raciocínio. Um dos
raciocínios era só considerações técnicas. Há duas opções: não se
consegue puxar o cordão, o voo continua, embatemos e basicamente
morremos. Ou consegue-se puxar o cordão, o paraquedas abre-se e
ficamos a esvair-nos em sangue enquanto esperamos por socorro.”
Para Jeb, esses dois processos de raciocínio pareceram levar minutos:
“Sentimos que estamos a funcionar tão rapidamente, que a nossa perceção
de tudo o resto parece ficar mais lenta, e tudo demora mais tempo. O
tempo dilata-se, e a pessoa fica com aquela sensação de câmara lenta.”
Ele puxou o cordão para abrir o paraquedas e pairou, oscilando, até ao
solo, com uma perna, os tornozelos e três dedos do pé partidos. Passaram
seis segundos entre o instante em que bateu na rocha e o momento em que
puxou o cordão. Mas, tal como aconteceu quando caí do telhado, esse
período de tempo pareceu-lhe muito maior.
A experiência subjetiva do tempo a desacelerar foi relatada em várias
experiências em que a vida esteve em risco – por exemplo, acidentes
rodoviários ou assaltos – bem como em acontecimentos em que alguém
querido corria perigo, como uma criança a cair num lago. Todos esses
relatos se caracterizam por uma sensação de que os acontecimentos se
desenrolaram mais lentamente do que o normal, acompanhada de uma
grande riqueza de pormenores.
Quando caí do telhado ou quando Jeb bateu na borda do penhasco, o
que se passou nos nossos cérebros? Será que o tempo fica realmente mais
lento em situações de medo?
Há alguns anos, concebi uma experiência com os meus alunos para
tentar dar resposta a esta questão em aberto. Induzíamos um medo
extremo nas pessoas deixando-as cair de uma altura de 45 metros. Em
queda livre. De costas.
Nessa experiência, os participantes usavam um mostrador digital
amarrado ao pulso, um aparelho que inventámos, chamado cronómetro
percetual. As pessoas indicavam os números que conseguiam ler no
aparelho que levavam ao pulso. Se conseguissem realmente ver o tempo
em câmara lenta, conseguiam ler os números. Mas ninguém conseguiu.
Então, porque é que eu e o Jeb recordamos os nossos acidentes como se
tivessem acontecido em câmara lenta? As respostas parecem estar no
modo como as memórias são armazenadas.
Em situações ameaçadoras, uma área do cérebro denominada amígdala
fica muito ativa, comandando os recursos do resto do cérebro e obrigando
todos a dedicarem-se à situação em causa. Quando a amígdala está em
ação, as memórias são registadas com uma riqueza de pormenores muito
maior do que em circunstâncias normais; foi ativado um sistema de
memória secundário. Afinal, é para isso que serve a memória, para manter
um registo dos acontecimentos importantes de maneira a que, numa
situação semelhante, o nosso cérebro disponha de mais informação para
tentar sobreviver. Por outras palavras, quando as coisas se tornam
assustadoramente perigosas, é boa altura para tirar notas.

MEDIR A VELOCIDADE DA VISÃO: O CRONÓMETRO


PERCETUAL

Para testar a perceção do tempo em situações de medo, lançámos voluntários de


uma altura de 45 metros. Eu lancei-me três vezes; foram todas igualmente
aterrorizantes. No mostrador, os números são gerados por luzes LED. A cada
momento, as luzes que estão acesas apagam-se, e as que estão apagadas
acendem-se. Quando a alternância é feita a um ritmo lento, os participantes não têm
qualquer problema em dizer os números. Mas a uma velocidade ligeiramente mais
rápida, a imagem positiva e a negativa fundem-se, impossibilitando-os de distinguir
os números. Para determinar se os participantes conseguiam realmente ver em
câmara lenta, lançávamos as pessoas com o cronómetro regulado para uma
velocidade de alternância ligeiramente superior à que elas conseguiriam ver
normalmente. Se estivessem realmente a ver em câmara lenta – como Neo no filme
Matrix – não teriam dificuldade em distinguir os números. Caso contrário, a
velocidade a que conseguiam perceber os números não deveria ser diferente do que
quando estavam com os pés assentes na terra. O resultado? Foram lançados vinte
e três voluntários, incluindo eu próprio. Nenhum de nós teve melhor desempenho
em queda do que no solo. Apesar das expetativas iniciais, não éramos como o Neo.

Quando o cronómetro percetual alterna lentamente os números, é possível lê-los.


Com uma alternância ligeiramente mais rápida, torna-se impossível distingui-los.
Eis o interessante efeito colateral: o nosso cérebro não está acostumado
a esse tipo de densidade de memórias (o capô estava amassado, o
retrovisor estava a cair, o outro condutor era parecido com o meu vizinho
do lado), pelo que, quando os acontecimentos são reproduzidos na nossa
memória, a interpretação que deles fazemos é que devem ter demorado
mais tempo. Por outras palavras, parece que, na realidade, não vivemos os
acidentes terríveis em câmara lenta e que, pelo contrário, essa impressão
resulta da maneira como as memórias são lidas. Quando nos questionamos
sobre o que aconteceu, o detalhe da memória diz-nos que se deve ter
passado em câmara lenta, mesmo não tendo sido. A nossa distorção do
tempo é algo que acontece em retrospetiva, um truque da memória que
escreve a história da nossa realidade.
Então, quem passou por um acidente que pôs a vida em risco, poderá
insistir que estava consciente do desenrolar dos acontecimentos em
câmara lenta no momento em que estavam a ocorrer. Mas, atenção, esse é
outro truque em relação à nossa realidade consciente. Como vimos
anteriormente em relação à sincronização dos sentidos, nunca estamos
realmente presentes no momento. Alguns filósofos sugerem que a
perceção consciente não passa de uma grande sucessão de consultas à
memória, ou seja, o nosso cérebro está sempre a perguntar: “O que
aconteceu? O que aconteceu?” Logo, a experiência consciente é, na
realidade, apenas a memória imediata.
Em jeito de nota, mesmo após termos publicado a nossa investigação
sobre esta matéria, algumas pessoas continuaram a dizer-me que sabiam
que o acontecimento se tinha de facto desenrolado como um filme em
câmara lenta. Por isso, costumo perguntar-lhes se quem ia ao lado delas no
carro estava a gritar “naaaaaaaaão!” num tom muito grave, como fazem as
pessoas nos filmes em câmara lenta. Elas têm de aceitar que isso não
aconteceu. E, em parte, é por isso que achamos que o tempo percetual não
se dilata, não obstante a realidade interna da pessoa.

O CONTADOR DE HISTÓRIAS

O nosso cérebro apresenta-nos uma narrativa, e cada um de nós acredita


na história que ele contar. Quer estejamos a ser vítimas de uma ilusão
visual, a acreditar no sonho que estávamos a ter, a ver cores nas letras, a
julgar uma alucinação como verdadeira durante um episódio de
esquizofrenia, todos nós aceitamos as nossas realidades tal como o cérebro
as cria.
Apesar da sensação de estarmos a viver o mundo exterior, a nossa
realidade é, em última análise, construída no escuro, numa estranha língua
de sinais eletroquímicos. A atividade que agita vastas redes neurais é
transformada na nossa história, na nossa experiência privada do mundo: a
sensação de ter este livro nas mãos, a luz da sala, o cheiro das rosas e o
som das conversas dos outros.
Mais estranho ainda, é provável que cada cérebro conte uma narrativa
ligeiramente diferente. Para cada situação em que há várias testemunhas,
os vários cérebros estão a ter experiências privadas subjetivas diferentes.
Com mais de sete mil milhões de cérebros humanos a vaguear pelo
planeta (e triliões de cérebros animais), não existe uma versão única da
realidade. Cada cérebro transporta a sua própria verdade.
Então, o que é a realidade? É como um programa de televisão que só
nós próprios conseguimos ver e que não podemos desligar. E o melhor é
que está a dar o espetáculo mais interessante que poderíamos desejar:
editado, personalizado e exibido exclusivamente para cada um de nós.
3
QUEM COMANDA?
O cosmos revelou-se maior do que poderíamos imaginar ao contemplarmos o
céu à noite. Da mesma forma, o universo que está dentro da nossa cabeça
estende-se muito para lá do alcance da nossa experiência consciente.
Estamos agora a conseguir vislumbrar pela primeira vez a enormidade desse
espaço interior. Parece não ser preciso um grande esforço para conseguirmos
reconhecer o rosto de um amigo, conduzir um carro, perceber uma piada ou
decidir o que ir buscar ao frigorífico, mas, na realidade, isso só é possível
graças a computações imensas que ocorrem sob a nossa perceção
consciente. Neste preciso momento, como em cada momento da nossa vida,
as redes no nosso cérebro fervilham de atividade: milhões de sinais elétricos
percorrem velozmente as células, desencadeando impulsos químicos em
biliões de ligações entre os neurónios. Ações simples assentam numa imensa
força de trabalho dos neurónios. Vivemos bem ignorando toda essa atividade,
mas a nossa vida é moldada e matizada pelo que acontece no interior do
crânio: o modo como agimos, o que consideramos importante, as nossas
reações, os nossos amores e desejos e aquilo que acreditamos ser verdadeiro
ou falso. A nossa experiência é o resultado dessas redes ocultas. Então,
quem é que está, de facto, ao leme?
A CONSCIÊNCIA

É de manhã. As ruas do bairro estão tranquilas à medida que o sol sobe no


horizonte. Nos quartos de toda a cidade, um por um, está a dar-se um
acontecimento espantoso: a consciência humana desperta para a vida. O
objeto mais complexo no nosso planeta está a tomar consciência de que
existe.
Ainda há bem pouco tempo, também nós estávamos num sono
profundo. A matéria biológica do nosso cérebro era a mesma de agora,
mas os padrões de atividade mudaram ligeiramente, pelo que, neste
momento, estamos a viver experiências. Estamos a ler rabiscos numa
página e a retirar o respetivo significado. Talvez estejamos a sentir o sol
na pele e uma brisa no cabelo. É possível pensarmos na posição da língua
dentro da boca ou na sensação do sapato no pé esquerdo. Estando
acordados, temos consciência de uma identidade, de uma vida, de
necessidades, desejos, planos. Agora que o dia começou, estamos prontos
para refletir sobre os nossos relacionamentos e objetivos e para agir em
sintonia com eles.
Mas que grau de controlo exerce a nossa perceção consciente sobre o
nosso funcionamento quotidiano?
Pensemos no modo como lemos estas frases. Quando passamos a vista
por esta página, não temos praticamente consciência dos rápidos saltos
balísticos que os nossos olhos dão. Os olhos não percorrem suavemente a
página, saltam como flechas de um ponto fixo para outro. Quando vão a
meio de um salto, os nossos olhos movimentam-se demasiado rápido para
ler e só assimilam o texto quando paramos e nos fixamos numa posição,
normalmente durante cerca de vinte milésimas de segundo de cada vez.
Não temos consciência desses pulos, saltos, paragens e arranques porque o
cérebro está demasiado ocupado a estabilizar a perceção que temos do
mundo exterior.
Ler torna-se ainda mais estranho se refletirmos no seguinte: à medida
que lemos estas palavras, o respetivo significado flui desta sequência de
símbolos diretamente para o nosso cérebro. Para termos uma noção da
complexidade que isso envolve, basta experimentar ler esta mesma
informação noutro idioma:

Para quem não souber ler bengali, bielorusso ou coreano, estes carateres
vão parecer uns meros rabiscos esquisitos. Mas assim que passamos a
dominar a leitura de uma caligrafia (como esta), essa ação dá-nos a ilusão
de ser fácil: já não estamos conscientes de que estamos a desempenhar a
árdua tarefa de decifrar rabiscos. O nosso cérebro ocupa-se do trabalho de
bastidores.
Assim sendo, quem comanda? Seremos donos do nosso destino ou terão
as nossas decisões e ações mais a ver com os imensos mecanismos neurais
que funcionam longe da vista? Estará a qualidade da nossa vida diária
relacionada com a tomada de decisões acertadas ou, pelo contrário, com
densas selvas de neurónios e o zumbido contínuo de inumeráveis
transmissões químicas?
Neste capítulo, vamos descobrir que o nosso eu consciente é apenas a
ínfima parte da nossa atividade cerebral. As nossas ações, as crenças e os
preconceitos são todas comandadas por redes do nosso cérebro a que não
temos acesso consciente.

O CÉREBRO INCONSCIENTE EM AÇÃO

Vamos imaginar que nós estamos sentados lado a lado num café.
Enquanto conversamos, o leitor repara que eu pego na chávena para beber
um golo. É um gesto tão banal, que costuma dispensar qualquer menção, a
menos que o entorne para cima da minha camisa. Mas há que lhe dar o
devido mérito, pois levar a chávena à boca não é tarefa fácil. O campo da
robótica continua com dificuldades para fazer com que esse tipo de tarefa
seja executado de forma suave. Porquê? Porque este gesto simples se
baseia em biliões de impulsos elétricos, coordenados meticulosamente
pelo meu cérebro.

A FLORESTA CEREBRAL

A partir de 1887, o cientista espanhol Santiago Ramón y Cajal passou a utilizar os


seus conhecimentos de fotografia para aplicar marcadores químicos a faixas de
tecido cerebral. Essa técnica permitiu observar células individuais do cérebro em
todo o esplendor das suas ramificações. Começou a tornar-se evidente que o
cérebro era um sistema complexo sem equivalente e sem que tivéssemos uma
linguagem para o estudar.
Com o advento da produção em massa de microscópios e dos novos métodos de
marcação de células, os cientistas começaram a descrever – pelo menos em termos
gerais – os neurónios que constituem o nosso cérebro. Estas admiráveis estruturas
apresentam-se numa variedade intrigante de formas e tamanhos e estão ligadas sob
a forma de uma densa floresta impenetrável que os cientistas demorarão ainda
muitas décadas a destrinçar.
O meu sistema visual começa por observar a cena para localizar com
precisão a chávena que está diante de mim e, em seguida, os meus anos de
experiência ativam memórias relacionadas com café noutras situações. O
meu córtex frontal emite sinais que viajam até ao córtex motor, que
coordena com precisão as contrações musculares – ao longo do meu
tronco, braço, antebraço e mão – para que eu possa agarrar na chávena. Ao
tocar na chávena, os meus nervos transportam grandes quantidades de
informação sobre o peso da chávena, a respetiva posição espacial, a
temperatura, a asa escorregadia e assim sucessivamente.
À medida que a informação viaja pela medula espinal acima até ao
cérebro, outras informações de compensação viajam em sentido contrário,
como o trânsito rápido numa estrada de duas vias. Essa informação resulta
de uma complexa coreografia entre partes do meu cérebro, com nomes
como gânglios da base, cerebelo e córtex somatossensorial, entre muitas
outras. Em frações de segundo, são feitos ajustamentos à força com que
levanto e agarro na chávena. Através de extensos cálculos e informação de
retorno, ajusto os músculos para manter a chávena direita enquanto a
desloco suavemente num longo arco ascendente. Vou fazendo ajustes
microscópicos durante esse movimento e, quando se aproxima dos meus
lábios, inclino a chávena apenas o suficiente para ingerir um pouco do
líquido sem me escaldar.
Seriam precisas dezenas dos supercomputadores mais rápidos do mundo
para conseguir atingir o poder de computação necessário para conseguir
este feito. No entanto, não tenho perceção alguma desta tempestade
elétrica no meu cérebro. Embora as minhas redes neurais registem uma
atividade febril, a minha perceção consciente tem uma experiência
completamente diferente, mais como uma espécie de alheamento total. O
meu eu consciente está de tal modo absorto na nossa conversa, que
consigo até ir moldando o fluxo de ar que sai da minha boca enquanto
ergo a chávena e participo numa conversa complexa.
Só me apercebo se levei ou não o café à boca. Se o executar na
perfeição, o mais provável é nem sequer reparar que fiz esse gesto.
Os mecanismos do nosso cérebro estão em constante atividade, mas
funcionam tão bem, que não costumamos dar por eles. É, por isso, muitas
vezes, mais fácil dar-lhe o devido valor só quando deixa de funcionar.
Como seria se tivéssemos de pensar de forma consciente em ações muito
simples que costumamos dar como adquiridas, como o ato aparentemente
simples de andar? Para descobrir, fui falar com um homem chamado Ian
Waterman.
Aos dezanove anos, Ian sofreu uma lesão neurológica rara em virtude de
um caso severo de gastroenterite. Perdeu os nervos sensoriais que
transmitem ao cérebro informação tátil, bem como a posição, dos
membros da própria pessoa (a chamada proprioceção). Daí resultou que
Ian deixou de conseguir gerir automaticamente quaisquer movimentos do
corpo. Os médicos disseram-lhe que ficaria confinado a uma cadeira de
rodas para o resto da vida, apesar de não ter qualquer problema nos
músculos. Uma pessoa não consegue simplesmente deslocar-se sem o
conhecimento de onde está o seu corpo. Apesar de raramente o
reconhecermos, o retorno de informação que nos chega do mundo exterior
e dos nossos músculos possibilita os movimentos complexos que
executamos a cada momento do dia.

PROPRIOCEÇÃO

Mesmo com os olhos fechados, sabemos onde estão os nossos membros: o braço
esquerdo está para cima ou para baixo? As pernas estão esticadas ou dobradas?
As costas estão direitas ou curvadas? Esta capacidade de reconhecer o estado dos
nossos próprios músculos é denominada proprioceção. Recetores nos músculos,
tendões e articulações transmitem informações acerca dos ângulos das
articulações, bem como da tensão e do comprimento dos músculos. Coletivamente,
isso dá ao cérebro uma imagem detalhada da posição do corpo e permite fazer
ajustes rápidos.
Podemos experimentar uma falha temporária da nossa proprioceção quando
tentamos andar depois de ficarmos com uma perna dormente. A pressão exercida
sobre os nervos sensoriais, apertando-os, impede o envio e a receção dos sinais
adequados. Sem o sentido de posicionamento dos nossos próprios membros,
gestos simples como cortar comida, escrever ao computador ou andar são
praticamente impossíveis.

Ian não estava disposto a deixar que o problema dele o obrigasse a viver
uma vida sem movimento, por isso levanta-se e caminha, mas cada passo
que dá obriga-o a pensar de forma consciente em cada movimento do seu
corpo. Sem a consciência de onde estão os membros, Ian tem de mover o
corpo com uma determinação consciente e muita concentração, utilizando
o sistema visual para monitorizar a posição dos membros. Enquanto
caminha, Ian inclina a cabeça para a frente, para ver os membros o melhor
possível. Para manter o equilíbrio, compensa essa postura certificando-se
de que os braços estão esticados para trás. Como não consegue sentir os
pés a tocar no chão, tem de antecipar a distância exata de cada passo e
pousar o pé com a perna bem apoiada. Cada passo que dá é calculado e
coordenado pela mente consciente.
Tendo perdido a capacidade de andar automaticamente, Ian está
perfeitamente ciente da miraculosa coordenação que a maioria de nós
toma como adquirida quando vai dar um passeio. Toda a gente que o
rodeia se move com tal fluidez e perfeição, como ele próprio salienta, que
as pessoas não têm a mínima consciência do incrível sistema que gere esse
processo por elas.
Se Ian se distrai momentaneamente ou se lhe vem outro pensamento
qualquer à cabeça, é provável que caia. Ele tem de afastar todas as
distrações para se concentrar nos mais ínfimos pormenores, como a
inclinação do terreno ou o balanço da perna.
Se passássemos algum tempo com Ian, nem que seja um minuto ou dois,
seria imediatamente evidente a enorme complexidade dos gestos do dia-a-
dia de que nunca nos lembramos sequer de falar: levantar-nos, atravessar
uma sala, abrir a porta, estender a mão para cumprimentar alguém. Apesar
das aparências, essas ações não são nada fáceis. Por isso, da próxima vez
que vir alguém a andar, a correr, a andar de skate ou de bicicleta, é melhor
parar para se maravilhar não apenas com a beleza do corpo humano, mas
também com o poder do cérebro inconsciente que o orquestra na
perfeição. Os intrincados pormenores dos nossos movimentos mais
básicos são animados por biliões de cálculos que pulsam velozmente
numa escala espacial mais pequena do que os nossos olhos conseguem ver
e com um nível de complexidade impossível de compreender. Ainda estão
por construir os robôs que cheguem aos calcanhares do desempenho
humano. E, enquanto um supercomputador obriga a contas astronómicas
de eletricidade, o nosso cérebro consegue funcionar com uma eficiência
desconcertante, consumindo aproximadamente o mesmo que uma lâmpada
de 60 W.

GRAVAR COMPETÊNCIAS NOS CIRCUITOS DO CÉREBRO

Os neurocientistas muitas vezes descobrem pistas sobre o funcionamento


do cérebro examinando pessoas que são especialistas numa determinada
área. Com esse propósito, fui conhecer Austin Naber, um rapaz de dez
anos com um talento extraordinário: ele detém o recorde mundial, na
categoria infantil, de um desporto conhecido como empilhamento de
copos.
Numa sucessão de movimentos rápidos e fluidos, impossíveis de seguir
a olho nu, Austin transforma uma coluna de copos de plástico,
empilhados, numa composição simétrica formada por três pirâmides.
Depois, com as duas mãos, a alta velocidade, desfaz as pirâmides e volta a
empilhar os copos em duas pequenas colunas, transformando de seguida
as colunas numa única pirâmide alta, que é desfeita para voltar a montar a
coluna de copos original.
Ele faz isto tudo em cinco segundos. Eu experimentei e o melhor que
consegui foi quarenta e três segundos.
Ao ver o Austin em ação, seria de esperar que o cérebro dele estivesse a
fazer um esforço adicional, a queimar uma quantidade enorme de energia
para coordenar aqueles gestos complexos tão depressa. Para testar esta
expetativa, decidi medir a atividade cerebral dele – e a minha também –
durante um frente-a-frente de empilhamento de copos. Com a ajuda do
investigador José Luis Contreras-Vidal, colocaram elétrodos na nossa
cabeça para medir a atividade elétrica gerada pelas populações de
neurónios que temos dentro do crânio. As ondas cerebrais medidas pelos
eletroencefalogramas de ambos seriam registadas, permitindo uma
comparação direta do esforço realizado pelos nossos cérebros durante a
tarefa. Assim ligados, já tínhamos uma visão aproximada do interior do
nosso crânio.
Austin explicou-me os passos da sua sequência. Então, para não ser
completamente humilhado por um miúdo de dez anos, pratiquei sem parar
durante cerca de vinte minutos antes de começar o desafio oficial.
Os meus esforços acabaram por não fazer qualquer diferença. Fui
derrotado pelo Austin. Ainda nem tinha feito um oitavo da sequência
quando ele bateu com os copos, triunfante, já empilhados na configuração
final.
A derrota não foi surpreendente, mas o que revelou o EEG? Se o Austin
completa a sequência oito vezes mais depressa, parece razoável assumir
que isso o faria gastar mais energia. Só que esse pressuposto peca por não
levar em conta uma regra básica sobre a aquisição de novas competências
pelo cérebro. Sucede que os resultados do EEG demonstraram que foi o
meu cérebro, e não o de Austin, que teve de fazer um esforço adicional,
queimando uma quantidade enorme de energia para realizar aquela nova
tarefa complexa. O meu EEG mostrou uma atividade elevada na banda de
frequência das ondas Beta, que estão associadas à resolução intensiva de
problemas. Austin, por seu turno, tinha uma atividade elevada na gama de
frequência Alfa, um estado associado ao cérebro em repouso. Apesar da
velocidade e da complexidade dos gestos, o cérebro de Austin estava
sereno.
O talento e a velocidade de Austin resultam de alterações físicas no seu
cérebro. Ao longo dos anos de treino, formaram-se padrões específicos de
ligações físicas. Ele incorporou a competência de empilhar copos na
estrutura dos seus neurónios. Em consequência disso, Austin gasta, hoje
em dia, muito menos energia para empilhar copos. O meu cérebro, pelo
contrário, ataca o problema através da deliberação consciente. Eu estou a
usar um software cognitivo genérico, ele transferiu a competência para um
hardware cognitivo especializado.
Quando praticamos novas competências, elas ficam fisicamente
gravadas num nível subconsciente. Há quem goste de lhe chamar memória
muscular, mas, na realidade, as competências não ficam guardadas nos
músculos; bem pelo contrário, uma rotina como o empilhamento de copos
é orquestrada nas densas florestas de ligações do cérebro de Austin.

ONDAS CEREBRAIS
Um EEG, a sigla de eletroencefalograma, é um método para espiar a atividade
elétrica global gerada pela atividade dos neurónios. Pequenos elétrodos aplicados
na superfície do couro cabeludo captam as “ondas cerebrais”, o termo coloquial
utilizado para a média dos sinais elétricos produzidos pelas conversas
pormenorizadas entre os neurónios.
O primeiro EEG de um ser humano foi registado pelo fisiologista e psiquiatra
alemão Hans Berger, em 1924, e, nas duas décadas seguintes, os investigadores
identificaram tipos diferentes de ondas cerebrais: as ondas Delta (abaixo dos 4 Hz)
ocorrem durante o sono, as ondas Teta (entre os 4 e os 7 Hz) estão associadas ao
sono, ao relaxamento profundo e à visualização, as ondas Alfa (entre os 8 e os 13
Hz) ocorrem quando estamos relaxados e calmos, as ondas Beta (entre os 13 e os
38 Hz) registam-se quando estamos ativamente dedicados ao pensamento e à
resolução de problemas. Desde então, foram identificados outros tipos de ondas
igualmente importantes, nomeadamente as ondas Gama (entre os 39 e os 100 Hz),
que estão relacionadas com atividades de concentração mental, como o raciocínio e
o planeamento.
A nossa atividade cerebral total é uma mistura de todas estas frequências
diferentes, mas, consoante o que estamos a fazer, predominarão algumas delas.

A estrutura detalhada das redes do cérebro de Austin sofreu


modificações com os anos de treino a empilhar copos. A memória de
procedimentos é uma memória de longo prazo que representa o modo de
fazer coisas automaticamente, como andar de bicicleta ou apertar os
atacadores. Para Austin, empilhar copos passou a ser uma memória de
procedimentos que ficou gravada no hardware microscópico do cérebro,
fazendo com que esses gestos sejam rápidos e consumam pouca energia.
Através do treino, sinais repetidos passaram pelas redes neurais,
reforçando sinapses e gravando assim essa competência nos circuitos.
Com efeito, o cérebro de Austin desenvolveu uma tal especialização, que
ele consegue completar a sequência de empilhamento com uma venda nos
olhos.
Já eu, enquanto aprendo a empilhar copos, o meu cérebro recorre a áreas
lentas e que consomem muita energia, como o córtex pré-frontal, o córtex
parietal e o cerebelo, de que Austin já não precisa para fazer a sequência.
Nos primeiros tempos de aprendizagem de uma competência motora, o
cerebelo desempenha um papel particularmente importante, coordenando
a fluidez de movimentos necessária para a precisão e para o domínio
perfeito do tempo.
Quando uma competência fica gravada, passa para um nível inferior ao
do controlo consciente. Nesse momento, passamos a conseguir realizar
uma determinada tarefa automaticamente e sem pensar nela, ou seja, sem
perceção consciente. Em alguns casos, a competência fica de tal modo
incorporada, que os circuitos que a suportam se encontram abaixo do
cérebro, na espinal medula. Isso mesmo foi observado em gatos a quem
foi removida a maior parte do cérebro, mas que continuam a conseguir
andar normalmente numa passadeira: os programas complexos envolvidos
no andar são guardados num nível inferior do sistema nervoso.

FUNCIONAR EM PILOTO AUTOMÁTICO

Ao longo da vida, o nosso cérebro reformula-se a si próprio sempre que


precisa de construir circuitos dedicados para as missões que praticamos,
seja andar, fazer surf ou malabarismo, nadar ou conduzir. Essa capacidade
de gravar programas na estrutura do cérebro é um dos truques mais
poderosos de que ele é capaz. Consegue resolver o problema dos
movimentos complexos consumindo tão pouca energia graças à formação
de circuitos dedicados no hardware. Assim que ficam registados nos
circuitos cerebrais, essas competências podem ser executadas sem pensar
– sem esforço consciente – libertando recursos dessa forma, o que permite
à mente consciente realizar e absorver outras tarefas.
Esta automatização traz uma consequência: as novas competências
passam para um nível a que a consciência não tem acesso. Perdemos o
acesso aos programas sofisticados que estão a ser executados nas
profundezas do cérebro, pelo que não sabemos precisamente como
fazemos o que estamos a fazer. Quando subimos um lanço de escadas
enquanto conversamos, não fazemos ideia de como calculamos as dezenas
de microcorreções no equilíbrio do corpo ou como executamos
movimentos dinâmicos com a língua para produzir os sons corretos para o
nosso idioma. São tarefas difíceis que nem sempre conseguimos realizar.
Mas como as nossas ações se tornaram automáticas e inconscientes, isso
dá-nos a capacidade de funcionar em piloto automático. Todos
conhecemos a sensação de voltar para casa de carro fazendo o mesmo
percurso diário e de nos apercebermos, subitamente, de que chegámos sem
termos qualquer memória da viagem. As competências relacionadas com a
condução tornaram-se tão automatizadas, que conseguimos executar
inconscientemente essas rotinas. O eu consciente – a parte que despertou
para a vida quando acordámos de manhã – já não vai ao volante; quando
muito, é um passageiro.
Há um desfecho interessante nas competências automatizadas: as
tentativas conscientes de interferir com elas costumam piorar o
desempenho. Mais vale deixar as capacidades aprendidas – mesmo as
mais complexas – funcionarem por si próprias.
Vejamos o caso do alpinista Dean Potter. Até à sua morte recente,
escalou penhascos sem corda e sem equipamento de segurança. Desde os
doze anos que Dean dedicou a vida ao alpinismo. Anos de prática
configuraram o seu cérebro para a precisão e a mestria. Para alcançar os
seus feitos de escalada, Dean confiava que esses circuitos tão bem
treinados fizessem o seu trabalho, livres de qualquer deliberação
consciente. Ele concedia o controlo total ao seu inconsciente, escalando
num estado cerebral muitas vezes designado “fluxo”, em que os atletas
radicais costumam superar os limites das suas capacidades. À semelhança
de muitos outros atletas, Dean atingia o estado de fluxo expondo-se a
situações de risco para a própria vida. Uma vez nesse estado, não tinha
qualquer interferência da sua voz interior e conseguia depender
exclusivamente das capacidades de escalada que estavam gravadas no seu
hardware após muitos anos de treino.
Tal como o campeão do empilhamento de copos Austin Naber, as ondas
cerebrais de um atleta em fluxo não são perturbadas pelo ruído da
deliberação consciente (Estou com bom aspeto? Devo dizer isto ou
aquilo? Será que fechei a porta quando saí?). Em fluxo, o cérebro entra
numa estado de hipofrontalidade, o que significa que algumas partes do
córtex pré-frontal ficam temporariamente menos ativas. Essas áreas estão
relacionadas com o pensamento abstrato, o planeamento do futuro e a
concentração em nós mesmos. A atenuação dessas operações de segundo
plano é o principal fator que permite à pessoa ficar pendurada a meio de
um rochedo. Feitos como os de Dean só podem ser alcançados sem a
distração da cavaqueira interna.
Muitas vezes, é melhor deixar a consciência de parte, e, em algumas
tarefas, nem sequer temos alternativa, porque o cérebro inconsciente
consegue funcionar a velocidades em que a mente consciente é demasiado
lenta para acompanhar. Basta pensar no basebol, em que uma bola lançada
pode atingir velocidades de mais de 150 quilómetros por hora. Para
estabelecer o contacto com a bola, o cérebro tem umas escassas quatro
décimas de segundo para reagir. Nesse tempo, tem de processar e
orquestrar uma intrincada sequência de movimentos para acertar na bola.
Os batedores estão sempre a acertar na bola, mas fazem-no de forma
inconsciente, pois a bola desloca-se a uma velocidade demasiado rápida
para o atleta ter a perceção consciente da posição dela. O batimento é feito
antes que o batedor consiga registar o que aconteceu. A consciência fica
não só de fora, fica muito para trás.

AS SINAPSES E A APRENDIZAGEM
As ligações entre os neurónios são denominadas sinapses. É nessas ligações
que umas substâncias químicas, os neurotransmissores, transportam sinais entre os
neurónios. Mas as ligações sinápticas não têm todas a mesma força e podem
tornar-se, dependendo do histórico de atividade, mais fortes ou mais fracas. À
medida que a potência das sinapses se altera, a informação flui de forma diferente
pela rede. Se uma ligação fica suficientemente fraca, desvanece até desaparecer.
Se for reforçada, pode desenvolver novas ligações. Parte desta reconfiguração é
regida por sistemas de recompensa, que emitem globalmente um neurotransmissor
denominado dopamina quando alguma coisa corre bem. As redes cerebrais de
Austin foram reconfiguradas – muito lentamente, muito subtilmente – pelo sucesso
ou insucesso de cada tentativa de movimento, ao longo de centenas de horas de
prática.

AS PROFUNDEZAS DO INCONSCIENTE

O alcance da mente inconsciente vai muito para lá do controlo do nosso


corpo. Ela molda profundamente as nossas vidas de muitas maneiras. Da
próxima vez que estiver a conversar, há de reparar que as palavras lhe
saem da boca mais depressa do que a capacidade que tem de controlar
conscientemente o que está a dizer. O cérebro está a funcionar nos
bastidores, elaborando e produzindo linguagem, conjugações e
pensamentos complexos por si. (Para ter uma ideia, basta comparar a
velocidade com que fala uma língua estrangeira que acabou de aprender!)
Esse trabalho de bastidores também é válido para as ideias. Assumimos
conscientemente o crédito de todas as ideias que temos, como se tivesse
sido nosso o trabalho árduo de as gerar. Mas, na realidade, foi o nosso
cérebro inconsciente que esteve a trabalhar nessas ideias – consolidando
memórias, experimentando novas combinações, avaliando as
consequências – durante horas, ou mesmo meses, até que a ideia chega à
nossa consciência e dizemos: “acabei de pensar numa coisa!”
O homem que começou a trazer à luz os segredos das profundezas
ocultas do inconsciente foi um dos cientistas mais influentes do século
XX. Sigmund Freud entrou para a faculdade de Medicina de Viena em
1873 e fez a especialização em neurologia. Quando abriu o consultório e
começou a tratar distúrbios psicológicos, apercebeu-se de que era
frequente os doentes não terem conhecimento consciente do que motivava
o seu comportamento. A ideia de Freud era que grande parte desse
comportamento era fruto de processos mentais não visíveis. Essa simples
ideia transformou a psiquiatria, abrindo o caminho para um novo
entendimento das pulsões e das emoções humanas.
Antes de Freud, os processos mentais aberrantes não tinham explicação
ou eram considerados possessões demoníacas, falta de força de vontade e
assim sucessivamente. Freud insistiu em procurar a causa no cérebro
físico.
Ele deitava os doentes num sofá, no consultório, de forma a não terem
de olhar para ele diretamente, e punha-os a falar. Numa era anterior à
imagiologia, essa era a melhor janela para o mundo do cérebro
inconsciente. O método dele consistia em reunir informação a partir dos
padrões de comportamento, do conteúdo dos sonhos, de deslizes de
linguagem, de erros de escrita. Ele observava como um detetive,
procurando pistas para os mecanismos neurais inconscientes a que os
doentes não tinham acesso direto.
Freud acabou por se convencer de que a mente consciente é a ponta do
icebergue dos nossos processos mentais, ao passo que a maior parte do
que motiva os nossos pensamentos e comportamentos não está à vista.
As especulações de Freud revelaram-se corretas, e normalmente uma
das consequências é não sabermos o que está na origem das nossas
decisões. O cérebro recolhe constantemente informação a partir do
ambiente e usa-a para conduzir o nosso comportamento, mas, muitas
vezes, as influências que nos rodeiam não são reconhecidas. Basta ver um
efeito denominado “primação”, em que uma coisa influencia a perceção
de outra coisa qualquer. Por exemplo, se a pessoa tiver uma bebida quente
na mão, irá descrever a relação com um membro da família mais
favoravelmente, ao passo que, se tiver uma bebida fria na mão, irá
expressar uma opinião ligeiramente menos favorável acerca dessa relação.
Porque é que isto acontece? Porque os mecanismos cerebrais que avaliam
o calor intrapessoal sobrepõem-se aos mecanismos que avaliam o calor
físico, pelo que uns influenciam os outros. A conclusão que se tira é que a
nossa opinião sobre qualquer coisa tão fundamental como a relação com a
nossa mãe pode ser manipulada pelo facto de bebermos chá ou ice tea. Da
mesma forma, quando estamos num ambiente malcheiroso, fazemos
julgamentos morais mais severos – por exemplo, temos maior propensão
para considerar imoral determinado comportamento menos comum de
alguém. Noutro estudo, ficou demonstrado que, se nos sentarmos numa
cadeira dura, seremos negociadores mais duros; numa cadeira mole,
somos mais transigentes.
Vejamos outro exemplo, a influência inconsciente do “egoísmo
implícito”, que descreve a nossa atração por coisas que nos fazem lembrar
de nós mesmos. Quando a equipa do psicólogo social Brett Pelham
analisou os registos de alunos formados nas faculdades de Medicina
Dentária e de Direito, encontraram uma sobre-representação estatística de
dentistas chamados Dennis ou Denise e de advogados chamados Laura ou
Laurence5. Também descobriram que havia mais probabilidades de os
proprietários de empresas de telhados terem um nome começado por R e
de os donos de lojas de ferragens terem nomes começados por H6. Mas
será a escolha da profissão o único caso em que tomamos estas decisões?
Sucede que as nossas vidas amorosas também podem ser fortemente
influenciadas por tais semelhanças. Quando o psicólogo John Jones e os
respetivos colegas olharam para os registos de casamentos nos estados da
Geórgia e da Flórida, descobriram um número mais elevado do que
esperavam de casais que partilham as iniciais do primeiro nome. Isto
significa que é mais provável que a Jenny case com o Joel, o Alex, com a
Amy e o Donny, com a Daisy. Estes tipos de efeitos inconscientes são
pequenos, mas verificáveis.
Mas eis o busílis da questão: se perguntássemos a uma dessas Dennises,
Lauras ou Jennys porque escolheram a profissão ou o marido, elas teriam
uma narrativa consciente para nos contar. Só que essa narrativa não
incluiria a grande influência do seu inconsciente em algumas das decisões
mais importantes que tomaram na vida.
Vejamos outra experiência desenvolvida pelo psicólogo Eckhard Hess,
em 1965. Pediram a vários homens que olhassem para fotografias de
rostos femininos e que fizessem o seu julgamento. Eram atraentes?
Quanto, numa escala de um a dez? Eram felizes ou infelizes? Más ou
bondosas? Simpáticas ou antipáticas? O que os participantes não sabiam
era que as fotografias haviam sido manipuladas. Em metade delas, as
pupilas das mulheres tinham sido dilatadas artificialmente.
Os homens acharam as mulheres com os olhos dilatados mais atraentes.
Nenhum deles reparou explicitamente no tamanho das pupilas e,
presumivelmente, também nenhum sabia que os olhos dilatados são um
sinal biológico de excitação feminina. Mas os cérebros deles sabiam. E
esses homens foram inconscientemente dirigidos para as mulheres que
tinham os olhos dilatados, que acharam mais bonitas, mais felizes, mais
bondosas e mais simpáticas. Na realidade, muitas vezes, é o que se passa
com o amor. Sentimo-nos mais atraídos por umas pessoas do que por
outras, e, geralmente, não é possível apontar a causa precisa.
Presumivelmente, há uma explicação, mas não temos acesso a ela.

INSTIGAR O INCONSCIENTE

No livro Nudge, Richard Thaler e Cass Sunstein propõem uma abordagem para
nos ajudar a tomar boas “decisões em relação à saúde, à riqueza e à felicidade”
recorrendo às redes inconscientes do cérebro. Um pequeno incentivo pode ajudar o
nosso comportamento e o nosso poder de decisão sem darmos conta disso.
Arrumar a fruta em prateleiras ao nível dos olhos, no supermercado, incentiva as
pessoas a fazerem opções mais saudáveis no que se refere à alimentação. Pôr a
fotografia de uma mosca doméstica nos urinóis dos aeroportos ajuda os homens a
apontarem melhor. Proporcionar aos funcionários a subscrição automática de planos
de reforma (com a opção de poderem desistir se assim desejarem) conduz a
melhores práticas de poupança. A esta visão de governação chamamos
paternalismo suave, e Thaler e Sunstein acreditam que influenciarmos de forma
subtil o nosso inconsciente resulta melhor do que a obrigatoriedade pura e simples.

Noutra experiência, o psicólogo evolucionista Geoffrey Miller


quantificou a atração sexual que uma mulher exerce sobre um homem
registando as gorgetas das dançarinas de um clube de striptease.
E acompanhou a evolução desse efeito ao longo do ciclo menstrual das
mulheres. Acontece que os homens davam o dobro da gorjeta quando as
dançarinas estavam a ovular (férteis), comparando com o período em que
estavam menstruadas (não férteis). Mas o mais estranho é que os homens
não estavam conscientes das alterações biológicas que acompanham o
ciclo menstrual: quando a mulher está a ovular, o aumento da hormona
estrogénio altera subtilmente a sua aparência, levando a que as suas
feições se tornem mais simétricas, a pele mais macia e a cintura mais
estreita. Ainda assim, eles detetaram essas pistas de fertilidade com o
radar da consciência.
Este tipo de experiências revela uma coisa fundamental acerca do
funcionamento do cérebro. O trabalho desse órgão é reunir informação
sobre o mundo e orientar adequadamente o nosso comportamento. Não
interessa se a nossa perceção consciente está ou não envolvida. E, na
maior parte das vezes, não está. Na maior parte das vezes, não temos
consciência das decisões que estão a ser tomadas no nosso interesse.

PORQUE TEMOS CONSCIÊNCIA?

Então, porque não somos apenas seres inconscientes? Porque não


andamos todos a vaguear como mortos-vivos sem cérebro? Por que razão
a evolução desenvolveu um cérebro que é consciente? Para responder a
estas perguntas, basta imaginarmo-nos a andar por uma rua do nosso
bairro, alheios ao que se passa à nossa volta. Subitamente, alguma coisa
nos chama a atenção: alguém à nossa frente vai vestido com um fato de
abelha gigante e leva uma pasta na mão. Se víssemos a abelha humana,
repararíamos nas reações das pessoas que se cruzam com ela, que
abandonavam as suas rotinas automáticas e ficavam a olhar.
A consciência entra em ação quando acontece o inesperado, quando
temos de perceber o que fazer a seguir. Apesar de o cérebro tentar
funcionar em piloto automático o mais que puder, isso nem sempre é
possível num mundo que nos reserva algumas surpresas.
Mas a consciência não se resume à reação às surpresas. Ela também
desempenha um papel vital na resolução de conflitos dentro do cérebro.
Os milhares de milhões de neurónios participam em tarefas que vão desde
respirar a andar pelo quarto, meter comida na boca ou dominar um
desporto. Cada uma dessas tarefas é sustentada por vastas redes nos
mecanismos do cérebro. Mas o que acontece em caso de conflito?
Imaginemos que damos por nós a ir buscar um gelado, mas sabemos que
nos vamos arrepender de o comer. Numa situação dessas, é preciso tomar
uma decisão. Uma decisão que avalie o que é melhor para o organismo –
para nós – e para os seus objetivos de longo prazo. A consciência é o
sistema que dispõe dessa vantagem única, que mais nenhum subsistema
do cérebro tem. E, por esse motivo, pode desempenhar o papel de árbitro
das interações de milhões de elementos, subsistemas e processos
incorporados. Ela pode fazer planos e definir objetivos para o sistema
como um todo.
Eu vejo a consciência como o diretor geral ou CEO de uma grande
empresa em expansão, com muitos milhares de subdivisões e
departamentos que colaboram, interagem e competem todos de várias
maneiras. As pequenas empresas não precisam de um CEO, mas quando a
organização atinge uma dimensão e complexidade suficientemente
grandes, é preciso um CEO que esteja acima dos pequenos detalhes do
dia-a-dia e desenvolva a visão a longo prazo da empresa.
Apesar de o CEO ter acesso a muito poucos detalhes do dia-a-dia, tem
sempre em mente a visão de longo prazo da empresa. Um CEO representa
a visão mais abstrata que a empresa tem de si mesma. No caso do cérebro,
a consciência é uma forma dos milhões e milhões de células se verem a si
próprias como um todo unificado, uma maneira de um sistema complexo
se ver ao espelho.
QUANDO FALTA A CONSCIÊNCIA

E se a consciência não entra em ação e continuamos perdidos em piloto


automático durante demasiado tempo?
Foi o que Ken Parks, de vinte e três anos, descobriu no dia 23 de maio
de 1987, ao adormecer enquanto via televisão em casa. À época, vivia
com a mulher e a filha de cinco meses, e passava por dificuldades
financeiras, tinha problemas conjugais e era viciado no jogo. Tinha
planeado discutir esses problemas com os sogros no dia seguinte. A sogra
descrevia-o como um “gigante delicado”, e ele dava-se bem com os pais
da mulher. A determinada altura, a meio da noite, levantou-se, meteu-se
no carro e percorreu vinte e três quilómetros até casa dos sogros,
estrangulou o sogro e esfaqueou a sogra até à morte. Depois, foi até à
esquadra mais próxima e disse ao agente: “Eu acho que acabei de matar
alguém”.
Não tinha qualquer memória do que acabara de acontecer. Parecia que a
mente consciente estivera ausente durante aquele episódio horrendo. O
que tinha corrido mal no cérebro de Ken? Marlys Edwardh, advogada de
Parks, reuniu uma equipa de especialistas para a ajudarem a desvendar
aquele mistério. Depressa começaram a suspeitar que os acontecimentos
poderiam estar relacionados com o sono de Ken. Enquanto Ken estava na
prisão, a advogada ligou ao especialista do sono Roger Broughton, que
mediu com um EEG os sinais do cérebro de Ken enquanto este dormia. Os
resultados registados correspondiam aos de um sonâmbulo.
À medida que a equipa avançava nas investigações, descobriu distúrbios
do sono na família alargada de Ken. Sem motivo, sem forma de falsear os
resultados do sono e com um tal historial de família, Ken foi considerado
inocente da acusação de homicídio e foi libertado.

ENTÃO, QUEM COMANDA?

É possível que tudo isto leve algumas pessoas a questionar-se que controlo
tem realmente a mente consciente. Será possível que vivamos as nossas
vidas como marionetas à mercê de um sistema que nos manipula e
determina os nossos passos seguintes? Há quem acredite que é de facto
assim e que as nossas mentes conscientes não têm qualquer controlo sobre
o que fazemos.
Vamos aprofundar esta questão através de um exemplo muito simples.
Vamos imaginar que conduzimos numa estrada e que nos deparamos com
uma bifurcação em que podemos seguir pela esquerda ou pela direita. Não
há qualquer obrigação de escolher um dos caminhos, mas hoje, neste
preciso momento, sentimos que queremos ir pela direita. Então, viramos à
direita. Mas porque é que virámos à direita e não à esquerda? Porque nos
apeteceu? Ou porque há mecanismos inacessíveis no cérebro que tomaram
a decisão por nós? Pensemos nisto: os sinais neurais que fazem com que
os braços rodem o volante provêm do córtex motor, mas não é aí que eles
têm origem. Eles são influenciados por outras regiões do lobo frontal, que
sofre, por seu turno, a influência de muitas outras partes do cérebro, e
assim sucessivamente, numa ligação em cadeia que cruza toda rede
cerebral. Não existe um momento zero em que decidimos fazer
determinada coisa, porque cada neurónio do cérebro é influenciado por
outros neurónios; parece não haver nenhuma parte do sistema que aja
independentemente, reagindo antes de forma dependente. A nossa decisão
de virar à direita – ou à esquerda – é uma decisão que tem raízes no
passado, seja há segundos, minutos ou dias, ou há uma vida. Mesmo
quando nos parecem espontâneas, as decisões não existem isoladamente.
Por isso, quando escolhemos uma direção naquela bifurcação,
transportando connosco toda a história da nossa vida, quem é exatamente
responsável por essa decisão? Estas considerações levam-nos à questão da
livre vontade. Se repetíssemos a história cem vezes, faríamos sempre a
mesma coisa?

A SENSAÇÃO DA LIVRE VONTADE

Nós achamos que temos autonomia, ou seja que tomamos livremente as


nossas decisões. Mas em algumas circunstâncias, é possível demonstrar
que esta sensação de autonomia pode ser ilusória. Numa experiência, o
Professor Alvaro Pascual-Leone, da Universidade de Harvard, convidou
participantes para o seu laboratório, para uma experiência simples.
Os participantes sentavam-se em frente de um ecrã de computador com
ambas as mãos estendidas. Quando o ecrã ficava vermelho, decidiam
interiormente qual das mãos iam mexer, mas não a mexiam de facto.
Quando a luz ficava amarela e, por fim, verde, a pessoa punha em prática
a decisão previamente tomada, levantando a mão direita ou a esquerda.
Depois, os investigadores introduziram uma novidade. Utilizaram a
estimulação magnética transcraniana (EMT), que descarrega um impulso
magnético e excita a área do cérebro imediatamente abaixo, estimulando o
córtex motor a iniciar o movimento da mão esquerda ou da direita. Agora,
durante a luz amarela, emitiam o impulso da EMT (ou, no caso dos
sujeitos controlo, apenas o som do impulso).
A intervenção da EMT levava os indivíduos a optar por uma mão em
detrimento da outra; por exemplo, a estimulação sobre o córtex motor
esquerdo aumentava as probabilidades de os participantes levantarem a
mão direita. Mas a parte mais interessante foi que os participantes
relataram a sensação de quererem mover a mão que estava a ser
manipulada pela EMT. Por outras palavras, podiam ter interiormente
escolhido levantar a mão esquerda durante a luz vermelha, mas depois da
estimulação, durante a luz amarela, podiam sentir que, afinal, sempre
tinham querido mexer a mão direita. Apesar de ser a EMT que estava a
desencadear o movimento da mão, muitos participantes sentiam que
haviam sido eles a tomar essa decisão de livre vontade. O Professor
Pascual-Leone relata que era frequente os participantes afirmarem que
tinham alterado intencionalmente a sua escolha. Independentemente dos
objetivos da atividade cerebral dessas pessoas, elas assumiam a escolha
como sua, como se a tivessem tomado de livre vontade. A mente
consciente é perita em contar a si mesma a narrativa de estar no comando
das operações.
Experiências como esta revelam a natureza problemática de confiarmos
nas nossas intuições acerca da liberdade das escolhas que fazemos. A
neurociência não dispõe atualmente de experiências perfeitas para excluir
por completo a livre vontade. Este é um tema complexo, e é possível que a
nossa ciência seja simplesmente demasiado jovem para conseguir dar-lhe
uma resposta exaustiva. Mas vamos aceitar por um momento a ideia de
que a livre vontade de facto não existe, ou seja, quando chegamos à
bifurcação da estrada, a escolha está predeterminada. Perante isto, uma
vida previsível não parece merecer ser vivida.
A boa notícia é que a imensa complexidade do cérebro significa que, na
realidade, nada é previsível. Imaginemos um caixote com várias filas de
bolas de pingue-pongue no fundo, cada uma delicadamente colocada
numa ratoeira, armada e pronta a saltar. Se deixássemos cair mais uma
bola de pingue-pongue cá de cima, seria relativamente fácil prever
matematicamente onde iria cair. Mas assim que a bola acerta no fundo,
aciona uma reação em cadeia imprevisível. Ela vai fazer que outras bolas
sejam projetadas das respetivas ratoeiras, essas levam a que outras bolas
saltem e a situação rapidamente explode, tornando-se complexa. O
mínimo erro na previsão inicial, por mais pequeno que seja, é ampliado, à
medida que as bolas colidem, ressaltam nos lados do caixote e caem por
cima de outras bolas. Não tarda a ser completamente impossível fazer
qualquer tipo de previsão acerca da posição futura das bolas.
O nosso cérebro é como esse caixote de bolas de pingue-pongue, mas
muitíssimo mais complexo. Num caixote, conseguiríamos pôr algumas
centenas de bolas, mas o nosso crânio alberga biliões de vezes mais
interações que o caixote, e os ressaltos continuam durante todos os
segundos da nossa vida. É a partir dessas inumeráveis trocas de energia
que nascem os nossos pensamentos, os sentimentos e as decisões.
E isto é apenas o começo da imprevisibilidade. Cada cérebro está
integrado num mundo de outros cérebros. No espaço de uma mesa ao
jantar, numa sala de aulas ou na abrangência da Internet, todos os
neurónios humanos do planeta se influenciam mutuamente, criando um
sistema de uma complexidade inimaginável. Isto significa que, apesar de
os neurónios seguirem regras físicas bem definidas, na prática será sempre
impossível prever com exatidão o que irá cada indivíduo fazer a seguir.
Esta complexidade titânica dá-nos o discernimento suficiente para
compreendermos um facto muito simples: as nossas vidas são guiadas por
forças que estão muito para lá da nossa capacidade consciente ou de
controlo.

5 Na língua inglesa, os termos dental (Medicina Dentária) e law (Direito) apresentam fortes
semelhanças fonéticas com os nomes referidos. (N. do T.)

6 Nestes dois exemplos, a analogia está nas iniciais dos nomes e das palavras roofing (telhados) e
hardware (ferragens). (N. do T.)
4
COMO DECIDO?
Devo ou não comer o gelado? Devo responder já a este email ou deixo para
mais tarde? Que sapatos vou usar? Os nossos dias são feitos de milhares de
pequenas decisões: o que fazer, que caminho seguir, como responder, em que
participar. As primeiras teorias acerca da tomada de decisão partiam do
princípio que o ser humano é um ator racional que pondera os prós e os
contras das suas opções para chegar à melhor decisão. Mas não é isso que
as observações científicas do processo de decisão mostram. O cérebro é
composto por várias redes concorrentes, cada uma com os seus objetivos e
desejos. Quando decidimos se devoramos ou não o gelado, algumas redes
cerebrais querem o açúcar, outras votam contra baseando-se em
preocupações com a imagem a longo prazo, outras ainda sugerem que talvez
possamos comer o gelado se prometermos ir ao ginásio no dia seguinte. O
nosso cérebro é como um parlamento neural, composto por partidos políticos
rivais que se debatem para conduzir os destinos do Estado. Às vezes,
decidimos de modo egoísta, outras, impulsivamente, e outras ainda, em
função de uma perspetiva de longo prazo. Somos criaturas complexas porque
somos compostos por muitos impulsos que desejam, todos eles, assumir o
comando.
O SOM DE UMA DECISÃO

Na mesa de operações, um doente chamado Jim está a ser submetido a


uma intervenção cirúrgica ao cérebro para deixar de ter tremores na mão.
O neurocirurgião implantou no seu cérebro uns fios compridos e finos,
chamados elétrodos. Aplicando uma pequena corrente elétrica através dos
fios, os padrões de atividade nos neurónios do cérebro de Jim podem ser
ajustados para reduzir os tremores.
Os elétrodos proporcionam uma oportunidade especial para espiar a
atividade de neurónios isolados. Os neurónios falam uns com os outros
através de picos elétricos denominados potenciais de ação, mas esses
sinais são tão minúsculos, que se tornam praticamente invisíveis, pelo que
cirurgiões e investigadores os fazem passar por um altifalante. Dessa
forma, uma alteração minúscula na voltagem (um décimo de volt, que
dura uma milésima de segundo) é transformada num estalido audível!
À medida que o elétrodo vai descendo pelas diferentes regiões do
cérebro, ouvidos treinados conseguem reconhecer os padrões de atividade
dessas regiões. Algumas caracterizam-se por um som tipo pop! pop! pop!,
enquanto outras têm um som bastante diferente: pop!... poppop!... pop! É
como se, de repente, caíssemos no meio de conversas entre várias pessoas
num ponto aleatório do planeta, e como essas pessoas têm tarefas
específicas em culturas diferentes, todas têm conversas muito diferentes.
Eu estou na sala de operações na qualidade de investigador; enquanto o
meu colega realiza a cirurgia, o meu objetivo é compreender melhor de
que modo o cérebro toma decisões. Para esse efeito, peço ao Jim que
execute várias tarefas diferentes – como falar, ler, olhar, decidir – para eu
conseguir determinar o que está correlacionado com a atividade dos seus
neurónios. Como o cérebro não possui recetores de dor, o doente pode
estar acordado durante a intervenção. Peço a Jim que olhe para uma
imagem simples enquanto gravamos.

O que acontece no cérebro quando vemos a mulher idosa? O que se modifica


quando vemos a jovem?

Nesta figura, o leitor pode ver uma jovem de touca a olhar para trás. Tente
agora descobrir outra maneira de interpretar a mesma imagem: uma
mulher idosa a olhar para baixo e para a esquerda. Esta imagem pode ser
vista alternadamente de duas maneiras (um efeito denominado
biestabilidade percetiva), o que significa que as linhas da página são
consistentes com duas interpretações muito diferentes.
Quando olhamos para a figura, vemos uma versão, depois acabamos
eventualmente por ver a outra, depois outra vez a primeira e assim
sucessivamente. Eis a parte mais importante: não há qualquer alteração na
página, por isso, se o Jim diz que a imagem mudou, isso deve-se a
qualquer mudança no cérebro dele.
Assim que vê a jovem, ou a idosa, o cérebro dele tomou uma decisão,
que não tem de ser consciente; neste caso, é uma decisão percetual tomada
pelo sistema visual de Jim, e a mecânica da alternância está
completamente oculta. Em teoria, o cérebro deve ser capaz de ver tanto a
jovem como a mulher idosa ao mesmo tempo, mas, na realidade, não o
faz. Reflexivamente, ele pega em algo ambíguo e faz uma escolha.
Depois, acaba por refazer a escolha e pode alternar uma e outra vez. Mas o
nosso cérebro está sempre a desfazer a ambiguidade convertendo-a em
escolhas.
Então, quando o cérebro de Jim chega a uma interpretação da jovem –
ou da idosa – conseguimos ouvir as respostas de um pequeno número de
neurónios. Alguns passam a registar uma atividade mais acelerada
(poppop! pop!... pop!), ao passo que outros desaceleram (pop!... pop!...
pop!... pop!). Mas não é sempre uma questão de aceleração e
desaceleração, pois, por vezes, os neurónios alteram de forma mais subtil
o seu padrão de atividade, ficando sincronizados ou dessincronizados com
outros neurónios, mesmo mantendo o ritmo original.
Os neurónios que estivemos a espiar não são, por si só, responsáveis
pela alteração percetual, funcionando, pelo contrário, em sintonia com
milhares de milhões de outros neurónios, pelo que as mudanças que
podemos presenciar são apenas o reflexo de um padrão alterado a tomar
conta de grandes faixas do território cerebral. Quando um padrão
consegue triunfar sobre outro no cérebro de Jim, foi tomada uma decisão.
O nosso cérebro toma milhares de decisões todos os dias da nossa vida,
ditando a experiência que temos do mundo. Desde a decisão do que vestir,
a quem ligar, como interpretar um comentário espontâneo, responder ou
não a um email, a que horas sair – as decisões fundamentam todos os
nossos atos e pensamentos. Aquilo que somos resulta de inúmeras
batalhas pelo poder travadas no cérebro a cada momento da nossa vida.
É impossível não ficar impressionado ao escutar a atividade neural –
pop! pop! pop! – de Jim. Afinal, é este o som de todas as decisões
tomadas ao longo da história da nossa espécie. Cada pedido de casamento,
cada declaração de guerra, cada salto da imaginação, cada missão lançada
para o desconhecido, cada ato de bondade, cada mentira, cada avanço
eufórico, cada momento decisivo. Foi aqui que tudo aconteceu, na
escuridão do crânio, emergindo de padrões de atividade em redes de
células biológicas.

O CÉREBRO É UMA MÁQUINA QUE RESULTOU DO


CONFLITO

Vamos olhar mais de perto para o que acontece nos bastidores quando
tomamos uma decisão. Imaginemos alguém que está a tomar uma decisão
simples, na geladaria, a tentar decidir entre dois sabores de que gosta
igualmente. Imaginemos que são hortelã e limão. Vista de fora, parece que
essa pessoa não está a fazer grande coisa, limitando-se a ficar ali, de pé, a
olhar, ora para um, ora para o outro sabor. Mas no cérebro dela, uma
escolha tão simples como esta desencadeia um turbilhão de atividade.
Um neurónio sozinho não tem uma influência significativa, mas cada
um está ligado a milhares de outros, que estão, por seu turno, ligados a
milhares de outros neurónios, e assim sucessivamente, formando uma
densa rede, ininterrupta e interligada. Todos eles estão a libertar
substâncias químicas que excitam ou deprimem o neurónio seguinte.
Nessa teia, há uma constelação particular de neurónios que representa a
hortelã. Esse padrão é formado a partir de neurónios que se excitam
mutuamente. Não estão necessariamente ao lado uns dos outros, podendo
até espalhar-se por regiões do cérebro relacionadas com o olfato, o
paladar, a visão e a recordação pessoal de memórias relacionadas com
hortelã. Cada um desses neurónios, por si só, tem pouco a ver com a
hortelã; com efeito, cada neurónio desempenha muitos papéis, em
momentos diferentes, em coligações que são constantemente
reformuladas. Mas quando todos esses neurónios ficam coletivamente
ativos segundo esse padrão particular… eis a hortelã a surgir no cérebro
dessa pessoa. Enquanto ela está especada em frente aos gelados, essa
federação de neurónios comunica entre si como indivíduos dispersos que
se ligam online.
Esses neurónios não estão a agir isoladamente na propaganda que
fazem. Ao mesmo tempo, a possibilidade concorrente – o limão – é
representada pelo seu próprio partido neural. Cada coligação – a hortelã e
o limão – tenta ganhar a supremacia intensificando a sua atividade e
suprimindo a da outra. Elas competem até uma delas triunfar nessa
competição em que só uma pode sair vitoriosa. A rede vencedora define o
que a pessoa vai fazer a seguir.
O CÉREBRO DIVIDIDO: O CONFLITO POSTO A NU

Em circunstâncias especiais, torna-se particularmente fácil testemunhar o conflito


interno entre as diferentes partes do cérebro. Para tratar certos tipos de epilepsia,
alguns doentes submetem-se a uma cirurgia de “divisão do cérebro”, na qual os dois
hemisférios cerebrais são desligados um do outro. Normalmente, os hemisférios
estão ligados por uma super-autoestrada de nervos a que chamamos o corpo
caloso, que permite que as metades direita e esquerda se coordenem e funcionem
de modo concertado. Quando estamos com frio, as mãos colaboram uma com a
outra: uma segura no blusão enquanto a outra aperta o fecho de correr.
Mas quando o corpo caloso é cortado, pode surgir uma condição clínica
extraordinária e perturbante: a síndrome da mão alheia, em que ambas as mãos
podem agir com intenções completamente diferentes. Por exemplo, o doente
começa a fechar o blusão com uma mão, e a outra (a mão “alheia”) pega
repentinamente no fecho e volta a abri-lo. Ou o doente pode estender uma mão para
pegar num biscoito, e a outra mão entra em ação, bate-lhe e impede-a. O conflito
normal que ocorre no cérebro é posto a nu quando ambos os hemisférios funcionam
de forma independente.
A síndrome da mão alheia costuma desaparecer poucas semanas após a
cirurgia, quando as duas metades do cérebro aproveitam ligações que resistiram
para retomarem a coordenação, mas serve como uma demonstração clara de que,
mesmo quando achamos que estamos focados num único objetivo, os nossos atos
são fruto de batalhas imensas que constantemente irrompem e se desvanecem na
escuridão do crânio.

Ao contrário dos computadores, o cérebro funciona a partir do conflito


entre várias possibilidades, que tentam, todas elas, eliminar a concorrência
das restantes. E há sempre opções múltiplas. Mesmo depois de ter
escolhido hortelã ou limão, a pessoa vê-se perante outro conflito: será que
deve comer o gelado inteiro? Uma parte dela deseja aquela fonte de
energia deliciosa, enquanto outra parte sabe que tem açúcar a mais e que
talvez fosse melhor ir correr. Se a pessoa come ou não o gelado até ver o
fundo ao copo depende simplesmente do desenrolar dessa luta interior.
Em virtude dos constantes conflitos que ocorrem no cérebro, podemos
discutir connosco próprios, amaldiçoar-nos ou persuadir-nos. Mas quem
está exatamente a falar com quem? Somos sempre nós, só que são partes
diferentes de nós mesmos.
Para destrinçar alguns dos principais sistemas concorrentes do cérebro,
vamos recorrer a uma experiência mental conhecida como o dilema do
elétrico. Um elétrico desgovernado vai a toda a velocidade pela linha.
Quatro trabalhadores estão a arranjar a linha mais adiante e alguém que
observa a cena depressa se apercebe de que irão ser todos mortos pelo
elétrico desgovernado. Essa pessoa descobre então que há uma alavanca
ali perto que pode desviar o elétrico para outra linha. Mas, alto! Ela vê que
está um trabalhador nessa linha, por isso, se puxar a alavanca, vai morrer
um trabalhador, mas se não puxar, morrem quatro. O leitor puxava a
alavanca?

O dilema do elétrico. Quando se pergunta a alguém o que faria neste cenário,


quase toda a gente puxava a alavanca. Afinal, é muito melhor morrer só uma
pessoa do que morrerem quatro, certo?

Vamos agora ponderar um segundo cenário, ligeiramente diferente. A


situação parte da mesma premissa: um elétrico desgovernado vai na linha
a alta velocidade e quatro trabalhadores vão ser mortos. Mas, desta vez,
alguém está no varandim de uma torre de água a observar a linha e repara
que há um homem corpulento ao lado dela, a olhar para o horizonte. Essa
pessoa apercebe-se de que, se o empurrar, ele vai cair na linha, e o seu
peso é suficiente para deter o elétrico e salvar os quatro trabalhadores.
O dilema do elétrico, cenário 2. Nesta situação, quase ninguém está disposto a
empurrar o homem. E porque não? Quando questionadas, as pessoas dão
respostas como “seria assassínio” e “seria completamente errado”.

E o leitor, empurrava o homem?


Mas, então, o que lhe é pedido não é que pondere a mesma hipótese em
ambos os casos? Trocar uma vida por quatro? Porque é que os resultados
são tão diferentes no segundo cenário? Os eticistas estudaram o problema
a partir de muitos ângulos, mas a neuroimagiologia conseguiu dar uma
resposta relativamente simples. Para o cérebro, o primeiro cenário resume-
se a um simples problema aritmético. O dilema ativa regiões relacionadas
com a resolução de problemas lógicos.
No segundo cenário, temos de interagir fisicamente com o homem e
empurrá-lo para a morte, o que vai envolver outras redes na tomada da
decisão: as regiões cerebrais relacionadas com a emoção.
Algumas regiões do cérebro são mais dedicadas à resolução de problemas
lógicos.

Neste cenário, somos apanhados num conflito entre dois sistemas com
opiniões diferentes. As redes racionais dizem-nos que a morte de uma
pessoa é melhor do que a morte de quatro pessoas, mas as redes
emocionais desencadeiam o sentimento intuitivo de que matar o homem
do varadim está errado. Ficamos divididos entre dois impulsos contrários,
o que leva a que a nossa decisão provavelmente se altere relativamente ao
primeiro cenário.
Quando se considera a hipótese de empurrar um homem inocente para a morte,
as redes relacionadas com as emoções envolvem-se mais na tomada de decisão,
o que pode inverter o desfecho.

O dilema do elétrico traz luz sobre situações reais. Basta pensar na


guerra moderna, que se tornou mais parecida com puxar uma alavanca do
que com empurrar um homem. Quando uma pessoa carrega num botão
para lançar um míssil de longo alcance, esse gesto envolve apenas as redes
relacionadas com a resolução de problemas lógicos. Operar um drone
pode assemelhar-se muito a um videojogo; as consequências dos
ciberataques ocorrem à distância. Nessas situações, as redes racionais
estão a funcionar, mas não necessariamente as emocionais. A natureza
alheada da guerra à distância reduz o conflito interior, o que torna mais
fácil travá-la.
Um erudito sugeriu que o botão para lançar mísseis nucleares devia ser
implantado no peito do melhor amigo do Presidente. Assim, se ele
decidisse lançá-los, teria de infligir sofrimento físico ao amigo, abrindo-
lhe o peito, uma consideração que iria envolver as redes emocionais na
decisão. Na tomada de decisões de vida e de morte, a razão sem controlo
pode ser perigosa, pois as nossas emoções constituem um eleitorado
poderoso e, muitas vezes, esclarecedor, e estaríamos a ser negligentes se
as excluíssemos da votação parlamentar. O mundo não seria melhor se nos
comportássemos como robôs.
Apesar de a neurociência ser um campo novo, essa intuição já tem uma
longa história. Os gregos antigos sugeriam que devíamos ver a nossa vida
como uma biga. Nós somos os aurigas que tentam dominar dois cavalos: o
cavalo branco da razão e o cavalo preto da paixão. Cada cavalo puxa para
seu lado, em sentidos opostos. A nossa tarefa é controlar ambos os cavalos
para manter a biga a rodar no meio do caminho.
Com efeito, de um modo bem característico da neurociência, podemos
revelar a importância das emoções vendo o que acontece quando alguém
perde a capacidade de as incluir na tomada de decisão.

OS ESTADOS DO CORPO AJUDAM-NOS A DECIDIR

Além de tornarem a nossa vida mais rica, as emoções são também o


segredo que está por detrás do modo como decidimos o que fazer a cada
momento. Esse aspeto fica bem ilustrado com a situação de Tammy
Myers, uma antiga engenheira que teve um acidente de moto. Como
consequência, sofreu lesões no córtex orbitofrontal, a região que fica
imediatamente acima das órbitas dos olhos. É uma região cerebral
fundamental para a integração dos sinais provenientes do corpo, que
dizem ao resto do cérebro em que estado aquele se encontra: se está com
fome, nervoso, excitado, envergonhado, com sede, alegre.
Tammy não parece alguém que sofreu um traumatismo
cranioencefálico, mas basta passar cinco minutos com ela para
percebermos que tem um problema na capacidade de lidar com as
decisões do dia-a-dia. Apesar de conseguir descrever todos os prós e
contras de uma determinada escolha que tenha perante si, até a mais
simples das situações a deixa presa à indecisão. Como deixou de
conseguir ler os resumos emocionais do corpo, as decisões tornam-se
incrivelmente difíceis para ela. Agora, nenhuma escolha é tangivelmente
diferente de outra qualquer. Na falta de uma tomada de decisão, pouco
acontece. Tammy conta que chega a passar dias inteiros sem sair do sofá.
A lesão cerebral de Tammy diz-nos algo crucial acerca da tomada de
decisão. É fácil imaginar que o cérebro comanda o corpo lá do alto, mas,
na realidade, o cérebro está constantemente a trocar informações com o
corpo, cujos sinais físicos fazem um breve resumo do que está a acontecer
e do que fazer quanto a isso. Para chegar a uma escolha, o corpo e o
cérebro têm de estar em estreita comunicação.
Vamos imaginar a seguinte situação: quer entregar uma encomenda que
veio com a morada errada ao vizinho da casa do lado. Mas, ao aproximar-
se do portão, o cão do vizinho rosna e mostra os dentes. Será que decide
abrir o portão e dirigir-se à porta de entrada? O conhecimento que tem
sobre as estatísticas de ataques de cães não é o fator determinante nesta
situação, mas antes a postura ameaçadora do cão, que desencadeia um
conjunto de respostas fisiológicas no seu corpo: o aumento do ritmo
cardíaco, um aperto no estômago, tensão nos músculos, dilatação das
pupilas, alterações nas hormonas do sangue, abertura das glândulas
sudoríparas e assim sucessivamente. Essas respostas são automáticas e
inconscientes.
Nesse momento, ali, com a mão no trinco do portão, há muitos detalhes
exteriores que poderiam ser avaliados (por exemplo, a cor da coleira do
cão), mas aquilo que o cérebro realmente precisa de saber é se deve
enfrentar o cão ou se deve procurar outra forma de entregar a encomenda.
O estado do seu corpo ajuda-o a decidir, servindo como um resumo da
situação. A sua assinatura fisiológica é como se fosse um cabeçalho de
jornal que não se percebe bem porque está em baixa resolução: “isto é
mau” ou “isto não é um problema”. E isso ajuda o cérebro a decidir o
passo seguinte.
Todos os dias lemos desta forma os estados do nosso corpo. Na maioria
das situações, os sinais fisiológicos são mais subtis, pelo que tendemos a
não estar cientes deles. Contudo, são cruciais para guiar as decisões que
temos de tomar. Basta imaginar que estamos num supermercado, o tipo de
local que deixa a Tammy sem saber o que fazer por ser tão indecisa. Que
maçãs comprar? Que pão? Que gelado? São aos milhares as escolhas que
recaem sobre os consumidores e que nos fazem passar centenas de horas
em frente das prateleiras, a tentar que as redes neurais façam uma escolha
em detrimento de outra. Apesar de habitualmente não nos apercebermos, o
corpo ajuda-nos a encontrar uma saída nessa complexidade intrigante.
Vejamos como escolher o tipo de sopa instantânea que vamos comprar.
Há demasiada informação para gerir: calorias, preço, teor de sal, sabor,
embalagem e por aí fora. Se fôssemos robôs, ficávamos ali o dia inteiro a
tentar tomar uma decisão, sem uma forma óbvia de determinar os
pormenores mais importantes. Para chegar a uma decisão, precisamos de
algum tipo de resumo. E é isso que o retorno que recebemos do corpo nos
consegue dar. Podemos ficar com as palmas das mãos suadas ao
pensarmos no preço, podemos salivar ao pensar na última vez que
comemos canja ou sentir uma cãibra nos intestinos perante o excesso de
natas que outra sopa tem. Simulamos a experiência de uma sopa e depois
de outra. A nossa experiência corporal ajuda o cérebro a atribuir
rapidamente um valor à sopa A e outro à sopa B, permitindo-nos fazer
pender a balança para um ou para o outro lado. Não nos limitamos
a extrair a informação dos rótulos das latas de sopa, nós sentimos a
informação. Essas assinaturas emocionais são mais subtis do que as que
sentimos quando enfrentamos um cão a ladrar, mas a ideia é a mesma:
cada escolha é marcada por uma assinatura corporal. E isso ajuda-nos a
decidir.
Mais atrás, na situação em que era preciso decidir entre o gelado de
hortelã e o de limão, havia uma batalha entre redes. Os estados
fisiológicos do corpo eram os aspetos fundamentais que ajudavam a
decidir o desfecho da batalha, que permitiam a uma rede vencer a outra.
Por causa da lesão cerebral, Tammy não tem a capacidade de integrar os
sinais do corpo na tomada de decisão. Ela não tem forma de comparar
rapidamente o valor global de cada opção, não tem forma de priorizar as
dezenas de aspetos que pode listar. E é por isso que Tammy passa a maior
parte do tempo no sofá, porque nenhuma das escolhas que tem pela frente
lhe transmite qualquer valor emocional em particular. Não tem forma de
privilegiar a campanha de uma rede em detrimento de outra qualquer. Os
debates no parlamento neural dela continuam num impasse.
Dado que a mente inconsciente funciona numa banda de frequência
baixa, habitualmente não temos total acesso aos sinais do corpo que
influenciam as nossas decisões; a maior parte da ação do nosso corpo
ocorre muito abaixo do nível da consciência. Ainda assim, os sinais
podem ter consequências muito profundas no tipo de pessoa que julgamos
ser. A título de exemplo, o neurocientista Read Montague descobriu uma
ligação entre as opções políticas e o caráter das respostas emocionais da
pessoa. Ele põe as pessoas numa máquina de ressonância magnética e
mede as respostas a várias imagens escolhidas para provocar uma resposta
de repugnância, desde imagens de fezes a cadáveres ou alimentos cobertos
de insetos. Quando saem da máquina, pergunta-lhes se gostariam de
participar noutra experiência; caso respondam afirmativamente, têm dez
minutos para responder a um questionário sobre a ideologia política, com
perguntas sobre as respetivas posições em relação ao controlo das armas,
ao aborto, ao sexo antes do casamento e por aí adiante. Montague
descobriu que, quanto maior repugnância o participante sente perante as
imagens, maiores são as probabilidades de ser politicamente conservador.
Quanto menos repugnado fica, mais liberal é. A correlação é tão forte, que
a resposta neural de uma pessoa a uma única imagem repugnante
consegue prever o resultado do teste da ideologia política com uma
exatidão de 95 por cento. A persuasão política nasce do cruzamento do
mental com o físico.

VIAJAR PARA O FUTURO

Todas as decisões envolvem as nossas experiências passadas (guardadas


nos estados do nosso corpo), bem como a situação presente (“Tenho
dinheiro suficiente para comprar X em vez de Y? Haverá uma opção Z
disponível?). Mas há outra parte na história das decisões: as previsões
acerca do futuro.
Em todo o reino animal, cada criatura está programada para procurar a
recompensa. O que é uma recompensa? Na essência, é algo que vai
aproximar o corpo dos parâmetros ideais. A água é uma recompensa
quando o corpo está a ficar desidratado, a comida é uma recompensa
quando as reservas de energia se estão a esgotar. A água e a comida são as
ditas recompensas primárias, que respondem diretamente a necessidades
biológicas. De um modo mais geral, porém, o comportamento humano
guia-se por recompensas secundárias, que são coisas que preveem
recompensas primárias. Por exemplo, a visão de um objeto metálico por si
só não tem grande efeito sobre o cérebro, mas, como aprendemos a
reconhecer nele uma torneira, essa visão torna-se recompensadora quando
temos sede. No caso dos seres humanos, conseguimos ver a recompensa
até em conceitos muito abstratos, como a sensação de sermos
reconhecidos pela comunidade local. E, ao contrário dos animais,
podemos, muitas vezes, pôr essas recompensas à frente das necessidades
biológicas. Como tão bem diz Read Montague: “Os tubarões não fazem
greve de fome.” O resto do reino animal só persegue as suas necessidades
mais básicas, enquanto os seres humanos as relegam frequentemente para
segundo plano, privilegiando ideais abstratos. Por isso, quando somos
confrontados com uma série de possibilidades, integramos informações
internas e externas para tentarmos potenciar a recompensa,
independentemente de como é definida por cada indivíduo.
O desafio de qualquer recompensa, seja ela básica ou abstrata, é o facto
de as escolhas não costumarem dar frutos imediatos. Temos, quase
sempre, de fazer escolhas em que uma determinada linha de ação nos traz
uma recompensa mais tarde. As pessoas vão à escola durante anos porque
valorizam a ideia de ter um diploma no futuro, trabalham arduamente em
empregos de que não gostam na esperança de uma futura promoção e
obrigam-se a fazer exercício físico doloroso com o objetivo de ficarem em
forma.
Ao compararmos várias opções, estamos a atribuir um valor a cada uma
delas numa moeda corrente – a de uma recompensa antecipada – e depois
a escolher a mais valiosa. Vejamos o seguinte cenário: eu tenho algum
tempo livre e estou a tentar decidir o que fazer. Tenho de ir às compras,
mas também sei que preciso de trabalhar num projeto para obter uma
bolsa para o meu laboratório, porque a data limite do concurso está a
aproximar-se, e também quero passar algum tempo com o meu filho no
parque. Como hei de decidir perante este leque de opções?
Seria fácil, claro, se conseguisse comparar diretamente essas
experiências vivendo cada uma delas e depois voltando atrás no tempo,
para finalmente escolher o meu caminho com base no melhor resultado.
Só que eu não posso viajar no tempo.
Ou posso?
Viajar no tempo é algo que o cérebro humano faz incessantemente.
Perante uma decisão, o nosso cérebro simula vários desfechos diferentes
para gerar uma simulação de como poderá ser o nosso futuro.
Mentalmente, conseguimos desligar-nos do momento presente e viajar
para um mundo que ainda não existe.
Mas, simular um cenário na minha mente é apenas o primeiro passo.
Para decidir entre os cenários imaginados, tento estimar qual irá ser a
recompensa em cada um dos futuros potenciais. Quando simulo encher a
minha despensa de comida, tenho uma sensação de alívio por estar
organizado e evitar a incerteza. O projeto comporta diferentes tipos de
recompensa: não apenas dinheiro para o laboratório, mas, de um modo
mais geral, o reconhecimento do diretor do meu departamento e uma
sensação gratificante de realização na minha carreira. Imaginar-me no
parque com o meu filho inspira-me alegria e uma sensação gratificante em
termos dos laços familiares. A minha decisão final será tomada em função
do valor de cada futuro relativamente aos restantes, segundo a moeda
única dos sistemas de recompensa. A escolha não é fácil, porque todas
essas avaliações têm nuances: a simulação das compras é acompanhada
por sentimentos de tédio, trabalhar no projeto traz uma sensação de
frustração, o parque traz culpa de não estar a adiantar o trabalho.
Normalmente, sob o radar da consciência, o meu cérebro simula todas as
opções, uma de cada vez, e verifica a minha intuição. É assim que decido.
Como é que eu simulo esses futuros com exatidão? Como é que eu
consigo prever como irá ser realmente seguir um desses caminhos? A
resposta é que não consigo, pois não há maneira de saber se as minhas
previsões são exatas. Todas as minhas simulações se baseiam apenas nas
minhas experiências passadas e nos meus modelos atuais de como o
mundo funciona. À semelhança de todos os seres do reino animal, não
podemos limitar-nos a vaguear por aí na esperança de descobrir
aleatoriamente o que resulta ou não em recompensas futuras. O principal
trabalho do cérebro é, pelo contrário, prever. E, para o fazer
razoavelmente bem, precisamos de aprender continuamente coisas sobre o
mundo a partir de todas as nossas experiências. Então, neste caso, atribuo
um valor a cada uma dessas opções a partir das minhas experiências do
passado. Fazendo uso dos estúdios de Hollywood que temos no nosso
cérebro, viajamos no tempo até aos nossos futuros imaginados para
vermos que valor eles têm. E é assim que eu tomo as minhas decisões. É
assim que converto opções concorrentes numa moeda única de
recompensas futuras.
Pensemos no valor da recompensa prevista como uma avaliação interna
que regista em que medida determinada coisa vai ser boa. Como ir às
compras me vai abastecer de comida, digamos que vale dez unidades de
recompensa. Tratar do projeto é uma coisa difícil mas necessária para a
minha carreira, por isso vale vinte e cinco unidades. Eu adoro estar com o
meu filho, por isso, a ida ao parque vale cinquenta unidades.
Mas há aqui uma reviravolta interessante: o mundo é complicado, e as
nossas avaliações internas nunca ficam escritas a tinta permanente. A
avaliação que fazemos de tudo o que nos rodeia é inconstante porque,
muitas vezes, as nossas previsões não correspondem ao que realmente
acontece. A chave para uma aprendizagem eficaz está em ir
acompanhando esse erro de previsão: a diferença entre o resultado
esperado de uma determinada escolha e o resultado que na realidade se
obteve.
No caso presente, o meu cérebro tem uma ideia do valor da recompensa
que a ida ao parque irá representar. Se encontrarmos amigos e for ainda
melhor do que eu pensava, isso aumenta o valor da avaliação da próxima
vez que tiver de tomar a mesma decisão. Se, pelo contrário, os baloiços
estiverem estragados e estiver a chover, o valor da avaliação para a
próxima ida ao parque será mais baixo.
Como é que isto funciona? O cérebro tem um sistema ínfimo e muito
antigo, cuja missão é atualizar em permanência as nossas avaliações do
mundo. Esse sistema é composto por grupos minúsculos de células no
mesencéfalo que falam a língua de um neurotransmissor chamado
dopamina.
Quando há um desfasamento entre a nossa expetativa e a realidade, esse
sistema de dopamina do mesencéfalo emite um sinal que reavalia o valor
de base. Esse sinal diz ao resto do sistema se as coisas correram melhor do
que o esperado (há um aumento do nível de dopamina) ou pior (há uma
redução do nível de dopamina). O sinal de erro da previsão permite ao
resto do cérebro ajustar as suas expetativas para tentar aproximar-se mais
da realidade da próxima vez. A dopamina funciona como um corretor de
erros: um avaliador químico que trabalha sempre para atualizar o melhor
possível as nossas avaliações. Dessa forma, conseguimos priorizar as
nossas decisões com base em previsões otimizadas sobre o futuro.
No essencial, o cérebro está afinado para detetar desfechos inesperados,
e essa sensibilidade é a base da capacidade que os animais têm de se
adaptarem e aprenderem. Não é, pois, surpresa que a arquitetura do
cérebro relacionada com a aprendizagem a partir da experiência seja
comum a todas as espécies, das abelhas aos seres humanos. Isto sugere
que os cérebros descobriram há muito os princípios básicos da
aprendizagem a partir da recompensa.
Os neurónios que libertam dopamina, que tem um papel importante na tomada de
decisão, estão concentrados em regiões minúsculas do cérebro a que chamamos
área tegmental ventral e substância negra. Apesar do tamanho diminuto, têm uma
enorme influência, emitindo informação atualizada quando o valor previsto de uma
escolha se revela demasiado alto ou demasiado baixo.

O PODER DO AGORA

Já vimos como são atribuídos valores às várias opções. Mas há um


pormenor que se costuma intrometer numa boa decisão: as opções que
estão mesmo à nossa frente tendem a ser mais valorizadas do que aquelas
que nos limitamos a simular. Aquilo que deita por terra uma boa decisão
acerca do futuro é o presente.
Em 2008, a economia norte-americana registou uma queda abrupta. Na
origem do problema esteve o simples facto de muitos dos proprietários de
imóveis se terem sobreendividado. Essas pessoas tinham contraído
empréstimos que ofereciam taxas de juro maravilhosamente baixas
durante um período de alguns anos. O problema deu-se no final do
período experimental, quando os juros subiram. Com taxas mais altas,
muitos proprietários deixaram de conseguir fazer os pagamentos. Um
milhão de hipotecas foram executadas, gerando ondas que choque que se
fizeram repercutir na economia de todo o planeta.
O que teve essa calamidade a ver com as redes concorrentes do nosso
cérebro? Esses empréstimos subprime permitiram às pessoas comprar uma
boa casa no imediato, adiando para mais tarde as taxas elevadas. Assim
sendo, a oferta agradou na perfeição às redes neurais que desejam a
gratificação instantânea, ou seja, as redes que querem as coisas logo no
momento. Dado que a perspetiva da satisfação imediata pesa tanto nas
nossas decisões, a bolha imobiliária pode ser vista não apenas como um
fenómeno económico, mas também neural.
A atração pelo “agora, já” não foi sentida só por quem contraiu os
empréstimos, mas também por quem concedia o crédito e estava a
enriquecer, “aqui e agora”, oferecendo empréstimos que não iriam ser
pagos. Essas pessoas encobriam esses empréstimos sob novos produtos de
crédito e vendiam-nos a seguir. Tais práticas não são éticas, mas a tentação
revelou-se demasiado sedutora.
Esta batalha que opõe o presente ao futuro não se aplica apenas
às bolhas imobiliárias, verifica-se em todos os aspetos da nossa vida.
É por isso que os vendedores de automóveis querem que entremos e
experimentemos o carro, que as lojas de moda querem que
experimentemos as roupas, que os comerciantes querem que toquemos na
mercadoria. As nossas simulações mentais não conseguem superar a
experiência de ter uma coisa à nossa frente «aqui e agora».
Para o cérebro, o futuro só pode ser uma imagem pálida do presente. O
poder do agora explica por que motivo as pessoas tomam decisões que
lhes sabem bem no momento, mas que têm consequências terríveis no
futuro, como é o caso de quem bebe ou consome drogas, mesmo sabendo
que não devia, atletas que tomam esteroides anabolizantes, mesmo
sabendo que isso lhes pode custar anos de vida, ou pessoas casadas que
cedem à tentação de um caso amoroso.
Será que podemos fazer alguma coisa contra a sedução do «aqui e
agora»? Sim, graças aos sistemas concorrentes do cérebro. Senão,
vejamos: todos sabemos que é difícil fazer certas coisas, como ir
regularmente ao ginásio. Queremos estar em forma, mas quando chega a
altura, costumamos ter coisas para fazer que nos parecem mais agradáveis.
A atração por aquilo que estamos a fazer é mais forte do que a ideia
abstrata de estar em forma no futuro. Então, eis a solução: para termos a
certeza de que vamos ao ginásio, podemos ir buscar inspiração a um
homem que viveu há três mil anos.
ULTRAPASSAR O PODER DO AGORA: O PACTO DE ULISSES

Esse homem estava perante uma versão mais radical do que a do ginásio.
Havia uma coisa que ele queria fazer, mas sabia que não ia conseguir
resistir à tentação quando chegasse o momento. No caso dele não se
tratava de ter um físico melhor, mas sim de salvar a própria vida de um
grupo de senhoras encantadoras.
Esse homem era Ulisses, o herói lendário, que regressava, triunfante, da
Guerra de Troia. A determinada altura da longa viagem, percebeu que o
navio não tardaria a passar por uma ilha onde viviam as belas Sereias. As
Sereias eram famosas por cantarem canções tão melodiosas que os
marinheiros ficavam em êxtase e encantados. O problema era que os
marinheiros achavam as mulheres irresistíveis e ao tentarem ir ter com
elas, os navios naufragavam contra as rochas.
Ulisses queria desesperadamente ouvir as canções lendárias, mas não
queria morrer nem matar a tripulação. Então, engendrou um plano. Ele
sabia que, quando ouvisse a música, seria incapaz de resistir a seguir na
direção dos rochedos da ilha. O problema não era o Ulisses racional do
presente, mas sim o Ulisses ilógico do futuro, a pessoa em que se tornaria
assim que as Sereias ficassem ao alcance do ouvido. Então, Ulisses
ordenou aos seus homens que o amarrassem bem amarrado ao mastro do
navio. Eles taparam os ouvidos com cera de abelha, para não ouvirem as
Sereias, e continuaram a remar com ordens estritas para ignoraram todos
os apelos, gritos e contorções que ele fizesse.
Ulisses sabia que a pessoa em que se iria transformar, em breve, não ia
estar em condições de tomar boas decisões. Então, o Ulisses da mente sã
preparou as coisas de forma a não conseguir tomar a decisão errada. Este
tipo de acordo entre o nosso eu presente e o nosso eu futuro é conhecido
como um pacto de Ulisses.
No caso do ginásio, o meu pacto de Ulisses é simplesmente marcar um
encontro com um amigo lá: a pressão de respeitar o contrato social
amarra-me ao mastro. Quando começamos à procura deles, os pactos de
Ulisses estão por toda a parte. É o caso dos estudantes universitários que
alteram a palavra-passe do Facebook na semana dos exames finais; cada
estudante altera a senha do outro para nenhum deles conseguir ir ao
Facebook até ao fim dos exames. O primeiro passo dos programas de
reabilitação de alcoólicos é tirarem todo o álcool de casa para não terem a
tentação à sua frente nos momentos de fraqueza. As pessoas que têm
problemas de peso fazem cirurgias para reduzir o volume do estômago,
para ser fisicamente impossível comer em excesso. Numa versão diferente
do pacto de Ulisses, há quem prepare as coisas para, em caso de quebra de
uma promessa, ser desencadeado um donativo em dinheiro a uma
“instituição de não beneficência”. Por exemplo, uma mulher que toda a
vida lutou pela igualdade de direitos passou um cheque chorudo ao Ku
Klux Klan, com ordens estritas para o amigo o pôr no correio se ela
voltasse a fumar um cigarro.
Em todos estes casos, as pessoas estruturam as coisas no presente para
que o seu eu do futuro não faça asneiras. Atando-nos ao mastro,
conseguimos resistir à tentação do agora. É o truque que nos permite agir
mais de acordo com o tipo de pessoa que gostaríamos de ser. A chave para
o pacto de Ulisses está em reconhecer que somos pessoas diferentes em
contextos diferentes. Para tomarmos decisões melhores é importante não
só conhecermo-nos a nós próprios, mas também os nossos outros eus.

OS MECANISMOS INVISÍVEIS DA TOMADA DE DECISÃO

Conhecermo-nos a nós mesmos é apenas uma parte da batalha, já que


também temos de saber que o desfecho das nossas batalhas não vai ser
sempre igual. Mesmo na falta de um pacto de Ulisses, há alturas em que
estamos mais entusiasmados com uma ida ao ginásio do que outras. Às
vezes somos mais capazes de tomar uma boa decisão, outras vezes o nosso
parlamento neural vota uma decisão de que nos arrependemos mais tarde.
Porquê? Porque o resultado depende de muitos fatores mutáveis
relacionados com o estado do nosso corpo, estado esse que pode mudar de
um momento para o outro. Por exemplo, dois homens que estão a cumprir
uma sentença de prisão têm audiência marcada para o Tribunal de
Execução de Penas decidir sobre a liberdade condicional. Um dos reclusos
compareceu perante o tribunal às 11h27. Foi condenado por fraude e está a
cumprir uma pena de trinta meses. A audiência do outro recluso é às
13h15. Cometeu o mesmo crime e recebeu a mesma sentença.
O primeiro recluso vê recusada a liberdade condicional, que é concedida
ao segundo. Porquê? O que influenciou a decisão? A etnia? O aspeto? A
idade?
Um estudo de 2011 analisou uma centena de sentenças e revelou que o
motivo, provavelmente, não terá sido nenhum desses fatores. Fora
sobretudo a fome. Imediatamente após o tribunal fazer uma pausa para
comer, as probabilidades de um recluso sair em liberdade condicional
atingem o máximo de 65%. Mas o recluso que foi ouvido mais perto do
final da sessão da manhã tinha as probabilidades mais baixas, apenas 20%,
de conseguir um desfecho favorável.
Por outras palavras, as prioridades das decisões alteram-se quando
outras necessidades ganham importância. As avaliações mudam com as
circunstâncias. O destino de um recluso está irrevogavelmente ligado às
redes neurais do juiz, que funcionam segundo necessidades biológicas.
Alguns psicólogos descrevem este efeito como “esvaziamento do ego”,
o que significa que áreas cognitivas de um nível superior, relacionadas
com as funções executivas e com o planeamento (como, por exemplo, o
córtex pré-frontal) ficam fatigadas. A força de vontade é um recurso
limitado que se vai esgotando como um depósito de gasolina. No caso dos
juízes, quanto mais casos tinham de julgar (até trinta e cinco por sessão),
mais esgotados os cérebros deles ficavam. Mas depois de comerem
qualquer coisa, como uma sanduíche e uma peça de fruta, as reservas de
energia eram repostas, e outros impulsos passavam a pesar mais nas
decisões.
Tradicionalmente, partimos do princípio de que os seres humanos
tomam decisões racionalmente: absorvem informação, processam-na e
obtêm uma resposta ou solução. Mas, na vida real, não é assim. Até os
juízes, que se esforçam por manter a imparcialidade, são prisioneiros da
sua biologia.
As nossas decisões são igualmente influenciadas no que toca ao
comportamento que temos com os nossos parceiros amorosos. Vejamos a
escolha da monogamia, a união estável com um único parceiro. Isto
poderia parecer uma decisão que está relacionada com a nossa cultura, os
nossos valores e a nossa moral. Tudo isso é verdade, mas há uma força
mais profunda que também influencia a decisão: as nossas hormonas.
Uma delas em particular, chamada oxitocina, é um dos principais
ingredientes da magia da união. Num estudo recente, homens que estavam
apaixonados pelas parceiras receberam uma pequena dose extra de
oxitocina. A seguir, pediram-lhes para classificarem a atratividade de
várias mulheres. Com a oxitocina extra, os homens acharam as parceiras
mais atraentes, mas não as outras mulheres. Com efeito, os homens
mantiveram uma distância física maior em relação a uma assistente
atraente que ajudava a conduzir o estudo. A oxitocina aumentou os laços
que os uniam às respetivas parceiras.

FORÇA DE VONTADE, UM RECURSO LIMITADO

Gastamos muita energia a tentar convencer-nos no sentido de tomarmos decisões


que achamos certas. Para mantermos uma boa conduta, falta-nos, muitas vezes, a
força de vontade, aquela força interior que nos permite dividir o biscoito (ou, pelo
menos, o segundo biscoito) ou cumprir o prazo de um trabalho quando, na
realidade, queríamos era ir apanhar sol. Todos conhecemos a sensação de termos
esgotado a força de vontade. Após um longo e árduo dia de trabalho, as pessoas
dão por si a tomar más decisões, como, por exemplo, comer mais do que
tencionavam ou ver televisão em vez de cumprirem os prazos que têm de cumprir.
Então, o psicólogo Roy Baumeister e respetivos colegas decidiram fazer uma
avaliação mais apurada. Convidaram pessoas para verem um filme triste, e
disseram a metade delas para se comportarem como fariam normalmente e à outra
metade que reprimisse as emoções o mais possível. No fim do filme, todos
receberam uma bola antistress e pediram-lhes que a apertassem o máximo de
tempo que conseguissem. Quem tinha reprimido as emoções desistiu primeiro.
Porquê? Porque o autocontrolo exige energia, o que significa que temos menos
energia disponível para o que temos de fazer a seguir. E é por isso que resistir às
tentações, tomar decisões difíceis ou ter iniciativa, qualquer uma dessas ações vai
buscar energia à mesma fonte. Logo, a força de vontade não é uma coisa que
possamos exercitar, é algo que se esgota.
O córtex pré-frontal dorsolateral entra em atividade quando alguém que está de
dieta escolhe os alimentos mais saudáveis que tem à frente, ou quando alguém
opta por renunciar a uma pequena recompensa no presente para conseguir um
resultado melhor mais tarde.

Porque é que temos substâncias químicas como a oxitocina a


empurrarem-nos para um parceiro? Afinal, numa perspetiva evolutiva,
seria de esperar que um homem não aceitasse a monogamia, uma vez que
tem um mandato biológico para disseminar os seus genes o mais possível.
Mas, para a sobrevivência das crianças, ter dois progenitores por perto é
melhor do que ter só um. Este simples facto é tão importante que o
cérebro possui formas ocultas de influenciar as nossas decisões nesta
matéria.

AS DECISÕES E A SOCIEDADE

Um melhor entendimento do processo de tomada de decisão abre a porta a


melhores políticas sociais. Por exemplo, todos nós temos dificuldade em
controlar os nossos impulsos, cada um à sua maneira. O exemplo mais
radical é acabarmos escravos dos desejos imediatos dos nossos impulsos.
Nesta perspetiva, conseguimos perceber melhor iniciativas sociais como o
combate às drogas.
A toxicodependência é um velho problema social que gera crime, menor
produtividade, doenças mentais, transmissão de outras doenças e, mais
recentemente, uma população prisional cada vez maior em países como os
Estados Unidos, onde quase sete em cada dez reclusos se enquadram nos
critérios de abuso ou dependência de substâncias psicoativas. Um estudo
mostrou que 35,6% dos reclusos analisados estavam sob o efeito de
drogas no momento do crime. A toxicodependência traduz-se em perdas
de várias dezenas de milhões de dólares, sobretudo por causa dos crimes
relacionados com as drogas.
A maioria dos países lida com o problema da toxicodependência
criminalizando-a. Há algumas décadas, havia 38 mil norte-americanos
presos por crimes relacionados com drogas. Hoje são meio milhão.
Aparentemente, podia dever-se ao sucesso do programa de combate às
drogas, mas essa detenção em massa não fez diminuir o tráfico. Isso deve-
se, em grande medida, ao facto de as pessoas que estão atrás das grades
não serem, na sua grande maioria, líderes dos cartéis, padrinhos das
máfias nem grandes traficantes, mas antes condenados pela posse de
pequenas quantidades de droga, habitualmente inferiores a duas gramas.
São os consumidores. Os toxicodependentes. Irem para a prisão não
resolve o problema que têm e, geralmente, até o agrava.
Nos EUA, o número de pessoas presas devido a crimes relacionados
com drogas supera o de todos os reclusos da União Europeia. O problema
é que a detenção desencadeia um círculo vicioso de recaída e regresso à
prisão, rompe os círculos sociais e as oportunidades de emprego e cria
novos círculos sociais e novas oportunidades de emprego que costumam
alimentar a dependência.
Todos os anos, os Estados Unidos gastam 20 mil milhões de dólares no
programa Guerra às Drogas; globalmente, o valor ultrapassa os 100 mil
milhões. Mas esse investimento não tem dado resultados. Desde o início
do programa, o consumo de drogas aumentou. Por que motivo esse
investimento não deu bons frutos? O tráfico faz lembrar um balão de água:
se for pressionado de um lado, expande-se para outro lado qualquer. Em
vez de atacar a oferta, a melhor estratégia será combater a procura. E a
procura está no cérebro do toxicodependente.
Há quem argumente que a toxicodependência está relacionada com a
pobreza e a pressão dos pares. São fatores importantes, mas no cerne do
problema está a biologia do cérebro. Em experiências laboratoriais, os
ratos autoadministram drogas, pressionando continuamente a alavanca que
lhes fornece uma dose, em detrimento de alimento e água. Os ratos não
fazem isso por motivos financeiros ou de coerção social. Fazem-no porque
as drogas tiram partido de circuitos de recompensa fundamentais do
cérebro. As drogas dizem efetivamente ao cérebro que essa decisão é
melhor do que tudo o resto que poderia estar a fazer. Outras redes
cerebrais podem entrar na batalha, representando todas as razões para
resistir à droga. Mas, numa situação de dependência, quem vence é a rede
que tem esse desejo. A maioria dos toxicodependentes quer deixar as
drogas, mas não consegue. Essas pessoas acabam escravas dos seus
impulsos.
Como o problema da toxicodependência reside no cérebro, é plausível
que seja também aí que se encontra a solução. Uma das abordagens
possíveis é influenciar o equilíbrio do controlo dos impulsos, o que pode
ser conseguido aumentando a certeza e a celeridade da penalização,
obrigando, por exemplo, os infratores a submeterem-se a testes de despiste
duas vezes por semana, com pena de prisão automática e imediata em caso
de resultado positivo, deixando assim de contar apenas com uma abstração
distante. Da mesma forma, alguns economistas sugerem que a queda do
crime nos Estados Unidos desde o início da década de noventa do século
passado se deve, em parte, ao aumento da presença policial nas ruas. Na
linguagem do cérebro, a visibilidade da polícia estimula as redes que
pesam as consequências a longo prazo.
No meu laboratório, estamos a trabalhar noutra abordagem
potencialmente eficaz. Estamos a dar retorno em tempo real durante a
realização de testes de imagiologia cerebral, permitindo que pessoas
dependentes de cocaína vejam a sua própria atividade cerebral e aprendam
a regulá-la.
Uma das nossas participantes chama-se Karen. É uma mulher alegre e
inteligente que conserva, aos cinquenta anos, uma energia jovial. Há mais
de duas décadas que é viciada em crack, e descreve a droga como algo
que lhe arruinou a vida. Se a tiver à frente, sente que não tem alternativa
senão consumi-la. Em experiências que estamos presentemente a realizar
no meu laboratório, pomos Karen numa máquina de ressonância
magnética funcional (RMf). Mostramos-lhe imagens de crack e pedimos-
lhe que deseje consumi-lo, o que é fácil para ela e ativa regiões
particulares do cérebro a que chamamos, para simplificar, redes do desejo.
Depois, pedimos-lhe que suprima o desejo. Pedimos-lhe para pensar no
preço que teve de pagar pelo crack, em termos financeiros, de
relacionamentos e de emprego, o que ativa uma série de outras áreas, a
que chamamos redes de supressão. As redes do desejo e as de supressão
estão em constante luta pela supremacia, e quem vence num dado
momento vai determinar o que Karen vai fazer perante a oferta de crack.
Recorrendo a técnicas de computação rápida do equipamento,
conseguimos medir qual das redes está a ganhar, se o pensamento a curto
prazo das redes do desejo, se o pensamento a longo prazo das redes de
controlo dos impulsos ou de supressão. Damos a Karen retorno visual em
tempo real através de um velocímetro, para que consiga ver como está a
decorrer a batalha. Quando o desejo está a vencer, o ponteiro está na zona
vermelha, e, quando consegue suprimir o desejo, o ponteiro volta à zona
azul. Ela consegue então utilizar diferentes abordagens para descobrir o
que é eficaz para fazer pender o ponteiro para uma dessas redes.
Através da prática, Karen consegue perceber melhor o que tem de fazer
para deslocar o ponteiro. Ela pode ou não ter consciência de como
consegue fazê-lo, mas através da prática repetida, consegue reforçar os
circuitos neurais que lhe permitem suprimir o desejo. Esta técnica ainda
está a dar os primeiros passos, mas a esperança é que, da próxima vez que
lhe oferecerem crack, ela disponha das ferramentas cognitivas para vencer
o desejo imediato se assim o pretender. Esse treino não obriga Karen a
comportar-se de determinada maneira, dando-lhe simplesmente as
capacidades cognitivas necessárias para ter mais controlo sobre as suas
escolhas, em vez de ficar escrava dos seus impulsos.
A toxicodependência é um problema para milhões de pessoas, mas não
é nas prisões que se resolve o problema. Dispondo do conhecimento sobre
como o cérebro humano toma de facto as decisões, podemos desenvolver
novas abordagens que vão além da punição. À medida que percebemos
melhor o funcionamento do nosso cérebro, podemos alinhar melhor o
nosso comportamento com as nossas melhores intenções.
Em termos mais gerais, a familiaridade com o processo de tomada de
decisão pode melhorar aspetos do nosso sistema de justiça penal para lá da
toxicodependência, introduzindo políticas mais humanas e
economicamente eficazes. E quais poderiam ser? Poderíamos começar por
dar mais ênfase à reabilitação do que ao encarceramento em massa. Isto
pode parecer ilusório, mas a verdade é que já há lugares que são pioneiros
numa tal abordagem, com grande sucesso. Um deles é o Centro de
Tratamento Juvenil de Mendota, em Madison, no estado de Wisconsin,
nos EUA.
Muitos dos jovens, entre os doze e os dezassete anos, que estão em
Mendota cometeram crimes que poderiam, de outro modo, valer-lhes uma
pena de prisão. Aqui, valem a admissão no centro. Para muitos desses
jovens, essa é a sua última oportunidade. O programa começou no início
dos anos noventa do século passado, com o objetivo de oferecer uma nova
abordagem ao trabalho com jovens de quem o sistema tinha desistido. O
programa presta particular atenção aos cérebros imaturos, ainda em
desenvolvimento, desses jovens. Como vimos no Capítulo 1, sem um
córtex pré-frontal, muitas vezes as decisões são tomadas de forma
impulsiva, sem ponderar devidamente as consequências futuras. Em
Mendota, este ponto de vista serve para clarificar uma abordagem de
reabilitação. O programa inclui um sistema de tutoria, aconselhamento e
recompensa para ajudar os jovens a melhorarem o autocontrolo. Uma
técnica importante é o treino dos jovens para pararem e ponderarem no
resultado futuro de qualquer escolha que possam fazer – incentivando-os a
fazerem simulações do que poderia acontecer – reforçando assim as
ligações neurais que podem sobrepor-se à gratificação imediata dos
impulsos.
O controlo deficiente dos impulsos é uma característica da maioria dos
criminosos que se encontram no sistema prisional. Muitos delinquentes
geralmente conseguem distinguir a diferença entre o que está certo e o que
está errado, e compreendem a ameaça da pena, mas estão manietados pelo
controlo deficiente dos impulsos. Essas pessoas veem uma mulher mais
velha com uma mala cara e não param para considerar outras opções além
da que lhes permite aproveitar-se da situação. A tentação do agora
sobrepõe-se a qualquer consideração do futuro.
Muito embora o nosso atual estilo de punição ter por base a livre
vontade e a culpa individual, o centro de Mendota é uma experiência que
explora outras alternativas. Apesar de as sociedades possuírem impulsos
punitivos profundamente arraigados, é possível imaginar um tipo de
sistema de justiça penal diferente, em que exista uma relação mais estreita
com as bases neurocientíficas das decisões. Um tal sistema legal não
deixaria ninguém impune, mas teria uma maior preocupação com a forma
de lidar com os infratores numa perspetiva de futuro, em vez de os julgar
pelo seu passado. Quem quebra os pactos sociais tem de ser retirado das
ruas, em prol da segurança da sociedade, mas o que acontece na prisão
não tem de ser baseado exclusivamente na vingança, mas também na
reabilitação efetiva com base em evidências.
A tomada de decisão está no centro de tudo: quem somos, o que somos,
que perceção temos do mundo que nos rodeia. Sem a capacidade de
ponderarmos diversas alternativas, ficaríamos reféns das nossas pulsões
mais básicas. Não conseguiríamos guiar-nos no presente, nem planear o
nosso futuro. Apesar de cada um de nós ter uma única identidade, isso não
significa que tenhamos um pensamento único, bem pelo contrário, pois
somos um conjunto de muitas pulsões concorrentes. Compreendendo
como as escolhas se debatem no cérebro, podemos aprender a tomar
melhores decisões para nós próprios e para a sociedade.
5
PRECISO DE TI?
De que precisa o nosso cérebro para funcionar normalmente? Além dos
nutrientes que ingerimos nos alimentos, do oxigénio que respiramos, da água
que bebemos, há uma outra coisa, tão ou mais importante: as outras pessoas.
O funcionamento normal do cérebro depende da rede social que nos rodeia.
Os nossos neurónios precisam dos neurónios das outras pessoas para
sobreviverem e florescerem.
METADE DE NÓS SÃO OUTRAS PESSOAS

Atualmente, vivem no planeta mais de sete mil milhões de cérebros


humanos. Apesar de, geralmente, nos sentirmos independentes, o cérebro
de cada um de nós funciona numa rede rica em interações com os outros,
tanto assim é que é plausível olharmos para os feitos da nossa espécie
como a obra de um único megaorganismo em mudança.
O cérebro tem sido tradicionalmente estudado de forma isolada, mas
essa abordagem ignora o facto de que uma enorme quantidade dos
circuitos cerebrais está relacionada com outros cérebros. Somos criaturas
profundamente sociais. Das famílias aos amigos, colegas e parceiros de
negócios, as nossas sociedades estão construídas a partir de camadas de
complexas interações sociais. Ao nosso redor, vemos relações a
formarem-se e a chegarem ao fim, novos elos familiares, a utilização
obsessiva de redes sociais e a construção compulsiva de alianças.
Todo este cimento social é gerado por circuitos específicos no cérebro,
extensas redes que monitorizam as outras pessoas, comunicam com elas,
sentem a sua dor, julgam as suas intenções e leem as suas emoções. As
nossas aptidões sociais estão profundamente arraigadas nos nossos
circuitos neurais, e o conhecimento desses circuitos é a base de uma nova
área de estudo, denominada neurociência social.
Pensemos por instantes nas diferenças que existem entre as seguintes
coisas: coelhinhos, comboios, monstros, aviões e brinquedos de criança.
Por mais diferentes que sejam, todas elas podem ser personagens
principais em filmes de animação muito populares, e não temos qualquer
dificuldade em atribuir-lhes intenções. O cérebro de quem vê esses filmes
não precisa de grande sugestão para assumir que todos esses personagens
são como nós, pelo que se pode rir e chorar com as aventuras deles.
Esta inclinação para atribuir intencionalidade a personagens não
humanas ficou bem ilustrada numa curta-metragem realizada em 1944
pelos psicólogos Fritz Heider e Marianne Simmel. Duas formas simples –
um triângulo e um círculo – juntam-se e começam a rodopiar um com o
outro. Passado algum tempo, entra em cena um triângulo maior. Vai contra
o triângulo mais pequeno e empurra-o. O círculo volta lentamente a entrar
numa estrutura retangular, que se fecha atrás de si; entretanto, o triângulo
grande escorraça o pequeno.

As pessoas não resistem a impor uma narrativa às formas em movimento.

O triângulo grande vai, ameaçador, até à porta da estrutura, onde entra e


persegue o círculo que, freneticamente (e sem sucesso), procura uma
maneira de escapar. Quando a situação parece perdida, o triângulo
pequeno volta. Abre a porta, e o círculo apressa-se a ir ter com ele. Juntos,
fecham a porta atrás de si, prendendo o triângulo grande lá dentro.
Fechado, o triângulo grande lança-se contra as paredes da estrutura. Lá
fora, o triângulo pequeno e o círculo rodam em torno um do outro.
Quando as pessoas viram essa curta-metragem e lhes pediram que
descrevessem o que tinham visto, seria de esperar que descrevessem as
pequenas figuras que se movimentavam no ecrã. Afinal, eram apenas um
círculo e dois triângulos a mudarem de coordenadas.
Mas não foi isso o que os espectadores relataram. Eles descreveram uma
história de amor, uma luta, uma perseguição e uma vitória. Heider e
Simmel utilizaram esta animação para demonstrarem a rapidez com que
temos a perceção de uma intenção social em tudo o que nos rodeia. Os
olhos registam formas em movimento, mas nós vemos um significado,
motivos e emoções, tudo na forma de uma narrativa social, não resistindo
a impor-lhes histórias. Desde tempos imemoriais que as pessoas veem o
voo das aves, o movimento das estrelas, o balançar das árvores e inventam
histórias acerca delas, interpretando-as como tendo uma intenção.
Este tipo de narrativa não é uma mera idiossincrasia, mas antes uma
importante pista acerca dos circuitos cerebrais que revela o nível de
predisposição do nosso cérebro para a interação social. Afinal, a nossa
sobrevivência depende da rapidez com que avaliamos quem é amigo ou
inimigo. Nós fazemos o nosso caminho pelo mundo social julgando as
intenções das outras pessoas. Ela está a tentar ajudar? Terei de me
preocupar com ele? Será que está a cuidar dos meus melhores interesses?
O nosso cérebro está constantemente a fazer juízos sociais, mas será que
aprendemos essa aptidão a partir da experiência da vida ou nascemos com
ela? Para descobrir a resposta, podemos investigar se ela já está presente
nos bebés. Reproduzindo uma experiência dos psicólogos Kiley Hamlin,
Karen Wynn e Paul Bloom da Universidade de Yale, convidei bebés para
assistirem, à vez, a um espetáculo de marionetas.
Esses bebés têm menos de um ano de idade, estão a começar a explorar
o mundo que os rodeia. Não têm qualquer experiência da vida. Estão
sentados ao colo das mães para assistirem ao espetáculo. Quando se abrem
as cortinas, veem um pato que se debate para abrir uma caixa com
brinquedos lá dentro. O pato tenta agarrar a tampa, mas não consegue.
Dois ursos, com camisas de cores diferentes, observam.
Passado algum tempo, um dos ursos ajuda o pato, colaborando com ele
para se agarrar a um lado da caixa e levantar a tampa. Abraçam-se durante
um momento, e a tampa volta a fechar-se.
O pato volta a tentar abrir a tampa. O outro urso, que observa a cena,
usa o peso para manter a tampa fechada, impedindo o pato de ser bem-
sucedido.
E é esta a história do espetáculo. Num curto enredo sem palavras, um
urso ajudou o pato, e o outro urso foi mau.
Quando o pano cai e volta a abrir-se, pego em ambos os ursos e levo-os
até ao pé do bebé que esteve a assistir ao espetáculo. Mostro os ursos à
criança e indico-lhe para escolher um deles para brincar com ele.
Extraordinariamente, como descobriram os investigadores de Yale, quase
todos os bebés escolheram o urso que foi amigo. Esses bebés não sabiam
andar nem falar, mas já dispunham das ferramentas para fazerem juízos
acerca dos outros.
Muitas vezes, assume-se que a confiança é algo que aprendemos a
avaliar, com base em anos de experiência do mundo. Mas experiências
simples como esta demonstram que, já em crianças, estamos equipados
com antenas sociais para nos ajudarem a fazer o nosso caminho pelo
mundo. O cérebro possui instintos inatos para detetar quem é de confiança
e quem não é.

OS SINAIS SUBTIS QUE NOS RODEIAM

À medida que crescemos, os nossos desafios sociais tornam-se mais subtis


e complexos. Além das palavras e das ações, temos de interpretar a
inflexão, as expressões faciais e a linguagem corporal. Enquanto nos
concentramos conscientemente naquilo que estamos a discutir, os nossos
mecanismos cerebrais estão ocupados a processar informações complexas.
As operações são tão instintivas que são essencialmente invisíveis.
Muitas vezes, a melhor maneira de dar valor a uma coisa é ver como é o
mundo sem ela. Para um homem chamado John Robison, a atividade
normal do cérebro social era uma coisa que ele, pura e simplesmente,
ignorava em criança. Ele era assediado e rejeitado pelas outras crianças,
mas descobriu o amor pelas máquinas. Tal como recorda, podia entreter-se
com um trator, e o trator não se metia com ele. “Acho que aprendi a fazer
amizade com as máquinas antes de fazer amizade com outras pessoas”,
afirma.
Com o tempo, a afinidade de John pela tecnologia ajudou-o a chegar a
lugares que os rufias que o assediavam nem sonhavam que existiam. Aos
vinte e um anos, era roadie da banda KISS. Contudo, apesar de estar
rodeado pelos excessos lendários do rock’n’roll, continuava a ter uma
perceção diferente da das outras pessoas. Quando lhe perguntavam pelos
músicos e como eram, John respondia explicando que tinham tocado no
Sun Coliseum com sete amplificadores ligados em série. Explicava que o
sistema de baixo tinha 2200 watts e conseguia enumerar todos os
amplificadores e frequências de transição, mas não conseguia dizer nada
sobre os músicos que usavam toda essa tecnologia. Vivia num mundo de
tecnologia e equipamento e só aos quarenta anos descobriu que sofria da
síndrome de Asperger, que é uma forma de autismo.

AUTISMO

O autismo é uma perturbação do desenvolvimento neurológico que afeta 1% da


população. Apesar de estar estabelecido que tem origem em causas tanto genéticas
como ambientais, o número de indivíduos com um diagnóstico de autismo tem vindo
a aumentar nos últimos anos, com poucas ou nenhumas provas que possam
explicar esse aumento. Pessoas que não são afetadas pelo autismo têm regiões do
cérebro envolvidas na codificação de pistas sociais em relação aos sentimentos e
pensamentos dos outros. No autismo, não se observa essa atividade cerebral com
tanta intensidade, o que é acompanhado por uma redução das aptidões sociais.

Nessa altura, houve um acontecimento que transformou a vida de John.


Em 2008, convidaram-no para participar numa experiência da Faculdade
de Medicina de Harvard. Uma equipa liderada pelo Dr. Alvaro Pascual-
Leone usava a estimulação magnética transcraniana (EMT) para avaliar de
que forma a atividade de uma área do cérebro afeta a atividade de outra
área. A EMT emite um forte impulso magnético junto à cabeça, que, por
seu turno, induz uma pequena corrente elétrica no cérebro, interrompendo
temporariamente a atividade cerebral nesse local. A experiência pretendia
ajudar os investigadores a obterem mais informações sobre o cérebro
autista. A equipa utilizou a EMT para analisar diferentes áreas do cérebro
de John relacionadas com as funções cognitivas de ordem superior. No
início, John relatou que a estimulação não fazia efeito. Mas, numa das
sessões, os investigadores aplicaram a EMT ao córtex pré-frontal
dorsolateral, uma região de evolução recente, relacionada com o
pensamento flexível e a abstração. John contou que, de alguma forma,
ficou diferente.
Ligou então ao Dr. Pascual-Leone para lhe dizer que os efeitos
da estimulação pareciam ter “desbloqueado” qualquer coisa nele. Os
efeitos perduraram além da experiência, como relatou. Para ele, tinha-se
aberto uma nova janela para o mundo social. Simplesmente não percebia
que das expressões faciais das outras pessoas emanavam mensagens, mas,
após a experiência, já estava consciente dessas mensagens. A experiência
que John tinha do mundo havia mudado. O Dr. Pascual-Leone estava
cético, achando que, se os efeitos fossem reais, não iriam perdurar, uma
vez que, tipicamente, os efeitos da EMT não persistem além de poucos
minutos ou horas. Apesar de o Dr. Pascual-Leone não compreender
totalmente o sucedido, já admite que a estimulação parece ter alterado
profundamente John.
No domínio social, John passou de uma experiência a preto e branco
para uma a cores. Agora vê o canal de comunicação que antes nunca
conseguira detetar. A história de John não representa apenas a esperança
em novas técnicas de tratamento para as perturbações do espetro autista.
Revela também a importância dos mecanismos inconscientes do cérebro,
sempre ativos nas relações sociais, em todos os momentos da nossa vida –
circuitos cerebrais que descodificam constantemente as emoções dos
outros com base em subtis pistas sensoriais – faciais, auditivas ou de outro
tipo.
“Eu conseguia perceber que as pessoas podiam ter ataques de fúria”,
afirma. “Mas em relação a expressões mais subtis – tipo, eu acho que és
querido, ou o que será que estás a esconder, ou gostava muito de fazer
isso, ou quem me dera fazer aquilo – eu não conseguia perceber esse tipo
de coisas.”
A cada momento da nossa vida, os nossos circuitos cerebrais
descodificam as emoções dos outros com base em pistas faciais
extremamente subtis. Para percebermos melhor como conseguimos ler os
rostos tão rapidamente e de forma automática, convidei um grupo de
pessoas a vir ao meu laboratório. Apliquei dois elétrodos no rosto dessas
pessoas – um na testa e o outro na bochecha – para medir ligeiras
alterações nas suas expressões faciais. A seguir, mostrei-lhes fotografias
de caras.
Quando os participantes olhavam para uma fotografia que mostrava, por
exemplo, um sorriso ou um franzir de sobrolho, conseguimos medir curtos
períodos de atividade elétrica que indicavam que os músculos faciais
dessas pessoas se movimentavam, frequentemente de forma muito subtil.
Isto deve-se a uma coisa denominada espelhamento: elas estavam a
utilizar automaticamente os seus próprios músculos faciais para copiarem
as expressões que estavam a ver. Um sorriso refletia-se num sorriso,
apesar de os movimentos dos músculos dos participantes serem demasiado
subtis para serem visualmente evidentes. Sem quererem, as pessoas
imitam as outras.
Este espelhamento ajuda a esclarecer um facto estranho: duas pessoas
que estejam casadas há muito tempo começam a parecer-se uma com a
outra, e quanto mais tempo estiverem casadas, mais forte é o efeito.
Estudos sugerem que isso se deve não apenas a terem adotado o mesmo
estilo de roupa ou penteado, mas porque se espalharam na cara um do
outro tantos anos, que os padrões de rugas começaram a assemelhar-se.
Porque é que fazemos isso? Serve algum propósito? Para descobrir,
convidei um segundo grupo de pessoas, semelhante ao primeiro, com uma
exceção: este novo grupo de pessoas tinha estado exposto à toxina mais
letal do planeta. Se ingeríssemos umas escassas gotas dessa neurotoxina, o
nosso cérebro deixaria de conseguir controlar as contrações dos músculos
e morreríamos de paralisia (mais concretamente, o nosso diafragma
deixaria de se conseguir movimentar, sufocando-nos). Dito isto, pareceria
pouco provável que houvesse pessoas que pagassem para lhes injetarem
essa toxina. Mas há. A toxina chama-se botulínica, é derivada de uma
bactéria e é geralmente comercializada com a marca Botox. Uma vez
injetada nos músculos faciais, paralisa-os, reduzindo assim as rugas.
Porém, para além dos benefícios cosméticos, há um lado menos
conhecido do Botox. Mostrámos a utilizadores de Botox o mesmo
conjunto de fotografias. Os músculos faciais dessas pessoas apresentavam
um menor espelhamento no nosso eletromiograma, o que não constituiu
surpresa, pois esses músculos foram propositadamente enfraquecidos. A
surpresa foi outra, inicialmente relatada em 2011 por David Neal e Tanya
Chartrand. À semelhança da experiência original, pedi aos participantes de
ambos os grupos (com Botox e sem Botox) para olharem para rostos
expressivos e escolherem qual das quatro palavras melhor descrevia a
emoção demonstrada.
No Teste de Leitura da Mente nos Olhos (Baron-Cohen et al., 2001), mostrava-se
aos participantes trinta e seis fotografias de expressões faciais, acompanhadas,
cada uma delas, de quatro palavras.

Em média, quem tinha usado Botox tinha mais dificuldade em


identificar corretamente as emoções das fotografias. Porquê? Uma das
hipóteses sugere que a falta de retorno dos músculos faciais prejudicava a
capacidade dessas pessoas para lerem os rostos dos outros. Todos sabemos
que os rostos menos expressivos dos utilizadores de Botox podem tornar
mais difícil aos outros perceber o que estão a sentir; a surpresa está em
que esses mesmos músculos paralisados podem dificultar a essas pessoas
a leitura das expressões dos outros.
Há uma maneira de pensar neste resultado: os meus músculos faciais
refletem o que estou a sentir, e os mecanismos neurais da outra pessoa
tiram partido disso. Quando ela está a tentar perceber o que estou a sentir,
tenta ler a minha expressão facial. Não o faz de propósito, pois isso
acontece de forma rápida e inconsciente, mas esse espelhamento
automático da minha expressão dá-lhe uma estimativa rápida do que
provavelmente estarei a sentir. É um truque muito eficaz para que o
cérebro possa ter um melhor entendimento do outro e possa fazer
melhores previsões em relação ao que ele vai fazer a seguir. Acontece que
é apenas um de muitos truques.

AS ALEGRIAS E TRISTEZAS DA EMPATIA

Quando vamos ao cinema, temos a intenção de nos evadir para mundos de


amor e corações despedaçados, de aventura e medo. Mas os heróis e vilões
são apenas atores projetados a duas dimensões numa tela; então, porque
havemos sequer de dar importância ao que acontece a esses fantasmas
fugazes? Porque é que os filmes nos fazem chorar, rir e sobressaltar?
Para compreender porque damos importância aos atores, vamos
começar por aquilo que acontece no cérebro quando estamos em
sofrimento. Imaginemos que alguém nos espeta uma seringa na mão. Não
há um ponto específico do cérebro onde essa dor é processada. A situação,
pelo contrário, ativa áreas diferentes do cérebro, funcionando todas elas de
forma concertada, numa rede que resumidamente designamos matriz da
dor.
Eis a parte mais surpreendente: a matriz da dor é crucial para o modo
como nos ligamos aos outros. Se virmos outra pessoa a ser ferida com a
seringa, a maior parte da nossa matriz da dor é ativada. Não aquelas áreas
que nos informam que fomos fisicamente afetados, mas as partes que
estão relacionadas com a experiência emocional da dor. Por outras
palavras, ver alguém em sofrimento ou estarmos nós próprios em
sofrimento, ativa os mesmos mecanismos neurais. É esta a base da
empatia.
Sentir empatia com alguém é, literalmente, sentir a dor dessa pessoa.
Nós fazemos uma simulação de como seria estarmos nós próprios nessa
situação. É esta nossa capacidade que torna as histórias – como as dos
filmes e dos romances – tão absorventes e generalizadas na cultura
humana. Sejam elas sobre perfeitos estranhos ou personagens fictícias, nós
sentimos a agonia e o êxtase delas. Tornamo-nos fluidamente nessas
pessoas, vivemos as vidas delas e assumimos os respetivos pontos de
vista. Quando vemos outra pessoa em sofrimento, podemos dizer a nós
mesmos que é um problema dela e não nosso, mas os neurónios das
profundezas do cérebro não conseguem perceber a diferença.
Esta capacidade inata para sentir a dor de outra pessoa é parte daquilo
que nos torna tão bons a pormo-nos no lugar dos outros, falando em
termos neurais. Mas de onde vem esta nossa facilidade? Do ponto de vista
evolutivo, a empatia é uma ferramenta útil, pois tendo uma melhor noção
do que alguém está a sentir, conseguimos prever melhor o que fará a
seguir.
Contudo, a exatidão da empatia é limitada, e, em muitos casos,
limitamo-nos a projetarmo-nos nos outros. Vejamos o exemplo de Susan
Smith, uma mãe da Carolina do Sul que, em 1994, suscitou a empatia de
toda uma nação quando contou à polícia que tinha sido vítima de
carjacking, e o homem tinha fugido com os filhos dela ainda no carro.
Durante nove dias, implorou nas televisões nacionais pelo salvamento e
restituição dos filhos. Um pouco por todo o país, estranhos ofereceram-lhe
ajuda e apoio. Susan Smith acabaria por confessar que tinha assassinado
os próprios filhos. Toda a gente tinha caído na história dela porque aquele
ato real estava muito longe das previsões normais. Apesar de, vistos em
retrospetiva, os contornos do caso serem todos razoavelmente óbvios,
eram difíceis de ver, no momento, porque costumamos interpretar os
outros a partir do ponto de vista daquilo que somos e do que somos
capazes.
Não conseguimos deixar de imitar os outros, de nos ligarmos aos outros,
de nos preocuparmos com eles, porque estamos configurados para sermos
criaturas sociais, o que levanta uma questão. Estará o nosso cérebro
dependente da interação social? O que aconteceria se o cérebro fosse
privado do contacto humano?
Em 2009, a ativista da paz Sarah Shourd e dois companheiros viajavam
à boleia nas montanhas do norte do Iraque, uma região que vivia em paz à
época, e seguiram a recomendação dos habitantes para visitarem a queda
de água de Ahmed Awa. Infelizmente, essa queda de água fica situada na
fronteira entre o Iraque e o Irão, e foram presos por guardas fronteiriços
iranianos, sob suspeita de serem espiões americanos. Puseram os dois
homens na mesma cela, mas Sarah ficou em prisão solitária. À exceção de
dois períodos diários de trinta minutos, passou 410 dias numa cela isolada.

Nas palavras de Sarah:

Nas primeiras semanas e meses de prisão solitária, ficamos reduzidos a um estado


animal. Quer dizer, somos como um animal numa jaula e passamos a maior parte do
tempo a andar às voltas. O estado animal acaba por se transformar num estado
mais vegetativo: a mente começa a tornar-se lenta e os pensamentos repetitivos. O
cérebro vira-se contra si próprio e torna-se a maior fonte de sofrimento e a maior
tortura. Revemos todos os momentos da nossa vida e acabamos por ficar sem mais
memórias. Contamos tantas vezes as mesmas histórias... e não leva assim tanto
tempo.
A privação social a que Sarah foi sujeita causou-lhe um profundo
sofrimento psicológico, pois, sem interação, o cérebro sofre. Há muitos
sítios onde a prisão solitária é ilegal, precisamente porque há muito que os
observadores reconheceram os danos causados pela privação de um dos
aspetos mais vitais da vida humana: a interação com os outros. Privada do
contacto com o mundo, Sarah rapidamente entrou num estado
alucinatório:

A uma certa hora do dia, o sol entrava pela janela num determinado ângulo. E todas
as pequenas partículas de pó da minha cela ficavam iluminadas pelo sol. Eu via
aquelas partículas todas como outros seres humanos que ocupavam o planeta. E
seguiam na corrente da vida, interagiam e iam uns contra os outros. Estavam a
fazer qualquer coisa coletivamente. Eu via-me isolada num canto, emparedada.
Fora da corrente da vida.

Em setembro de 2010, após mais de um ano de cativeiro, Sarah foi


libertada e pode retomar a sua vida. O trauma não a abandonou: ficou
deprimida e entrava facilmente em pânico. No ano seguinte, casou com
Shane Bauer, um dos companheiros de viagem. Ela conta que conseguem
acalmar-se mutuamente, mas nem sempre é fácil, pois ambos têm
cicatrizes do foro emocional.
O filósofo Martin Heidegger sugeriu que é difícil falar de uma pessoa
“ser”, quando, pelo contrário, estamos geralmente a “ser no mundo”. Era
esta a forma que utilizava para enfatizar a ideia de que o mundo que nos
rodeia representa uma grande parte daquilo que somos. O ser não existe
num vácuo.
Apesar de os cientistas e clínicos poderem observar o que acontece às
pessoas que estão em prisão solitária, trata-se de algo difícil de estudar
diretamente. Porém, uma experiência realizada pela neurocientista Naomi
Eisenberger pode ajudar a compreender aquilo que acontece no cérebro
numa condição ligeiramente menos grave: quando somos excluídos de um
grupo.
Basta imaginarmo-nos a jogar à bola com mais duas pessoas e, a
determinada altura, ficamos de fora do jogo porque os outros dois só
passam a bola um ao outro, excluindo-nos. A experiência de Eisenberger
baseou-se num cenário simples. Ela pediu a voluntários para jogarem um
jogo de computador simples em que o personagem animado que
controlavam jogava à bola com os outros dois jogadores. Os voluntários
eram levados a crer que os outros jogadores eram controlados por outras
duas pessoas, mas, na realidade, faziam apenas parte de um programa de
computador. A princípio, os outros jogavam de forma simpática, mas
passado algum tempo, excluíam o voluntário do jogo passando a bola
apenas entre si.
Eisenberger punha os voluntários a jogar enquanto estavam deitados
numa máquina de ressonância magnética (a técnica chama-se imagem por
ressonância magnética funcional, como vimos no Capítulo 4). A
neurocientista descobriu algo extraordinário: quando os voluntários eram
excluídos do jogo, várias regiões relacionadas com a matriz da dor eram
ativadas. Não lhes passarem a bola podia parecer uma coisa insignificante,
mas, para o cérebro, a rejeição social é tão importante que literalmente
magoa.

A dor social – como a resultante da exclusão – ativa as mesmas regiões do


cérebro que a dor física.

Porque nos magoa a exclusão? Presumivelmente, trata-se de uma pista


de que os laços sociais são importantes na perspetiva evolutiva, ou, por
outras palavras, de que a dor é um mecanismo que nos impele a interagir e
a ser aceites pelos outros. Os nossos mecanismos neurais inatos
estimulam-nos a estabelecermos ligações com os outros. Instam-nos a
formar grupos.
Esta descoberta vem trazer luz sobre o mundo social que nos rodeia: um
pouco por todo o lado, os seres humanos formam constantemente grupos.
Ligamo-nos através dos laços familiares, da amizade, do trabalho, do
estilo, do clube desportivo, da religião, da cultura, da cor da pele, da
língua, dos hobbies e da filiação política. Essa ligação dá-nos o conforto
de pertencermos a um grupo, o que é uma indicação essencial acerca da
história da nossa espécie.

PARA ALÉM DA SOBREVIVÊNCIA DOS MAIS APTOS

Quando pensamos na evolução humana, todos estamos familiarizados com


o conceito da sobrevivência dos mais aptos, o que nos traz à memória a
imagem de um indivíduo forte e astuto que consegue derrotar, ser mais
rápido ou reproduzir-se melhor do que os restantes elementos da sua
espécie. Por outras palavras, é preciso ser um bom concorrente para
prosperar e sobreviver. Esse modelo tem uma boa capacidade explicativa,
mas deixa de parte alguns aspetos do nosso comportamento difíceis de
explicar. Senão, vejamos o caso do altruísmo. Como é que a sobrevivência
dos mais aptos explica que as pessoas se ajudem umas às outras? A
seleção do indivíduo mais forte não cobre esse aspeto, pelo que os teóricos
introduziram a ideia adicional de “seleção de parentesco”. Isto significa
que cada pessoa não se preocupa apenas consigo, mas também com
aqueles com quem partilha material genético, por exemplo os irmãos e
primos, como tão bem resumiu, gracejando, o biólogo evolucionista J. S.
Haldane: “Eu saltava com todo o gosto para dentro de um rio para salvar
dois dos meus irmãos ou oito dos meus primos.”
Porém, nem a seleção de parentesco chega para explicar todas as facetas
do comportamento humano, o motivo pelo qual as pessoas se juntam e
cooperam independentemente do parentesco. Esta constatação leva-nos à
ideia de “seleção de grupo”. Eis o conceito: se um grupo é composto
inteiramente por pessoas que cooperam, todos os elementos desse grupo
sairão beneficiados. Em média, cada elemento sai-se muito melhor do que
outras pessoas que não cooperam com os vizinhos. Juntos, os elementos
de um grupo podem ajudar-se mutuamente a sobreviver. Estão mais
seguros, são mais produtivos e mais capazes de ultrapassar os desafios.
Este impulso para nos ligarmos aos outros é denominado eussociabilidade
(eu é um prefixo grego que significa bom) e dá-nos um cimento,
independentemente do parentesco, que nos permite construir tribos,
grupos e nações. Não é que a seleção individual não ocorra, simplesmente
não basta para explicar o quadro completo. Apesar de os seres humanos
serem competitivos e individualistas durante a maior parte do tempo,
também é verdade que passamos grande parte das nossas vidas a cooperar
em prol do grupo, e foi isto o que permitiu às populações humanas
prosperarem em todo o planeta e construírem sociedades e civilizações,
feitos que os indivíduos, por mais aptos, nunca conseguiriam fazer
isoladamente. O verdadeiro progresso só é possível com alianças que se
tornam confederações, e a nossa eussociabilidade é um dos fatores
principais da riqueza e complexidade do mundo moderno.
Por isso, o nosso impulso para nos reunirmos em grupos representa uma
vantagem para a nossa sobrevivência, mas também tem um lado negro.
Por cada endogrupo, tem de haver pelo menos um exogrupo.

EXOGRUPOS

É fundamental compreender os endogrupos e os exogrupos para


compreendermos a nossa história. Repetidamente, um pouco por todo o
planeta, grupos de pessoas exercem violência sobre outros grupos, mesmo
aqueles que são indefesos e não representam uma ameaça direta. Em
1915, assistiu-se à matança sistemática de mais de um milhão de arménios
às mãos dos turcos otomanos. No massacre de Nanquim, em 1937, os
japoneses invadiram a China e mataram centenas de milhares de civis
desarmados. Em 1994, no espaço de cem dias, os hutus do Ruanda
mataram 800 mil tutsis utilizando sobretudo machetes.
Eu não consigo olhar para esses acontecimentos com a visão distanciada
de um historiador. Quem for ver a minha árvore genealógica pode reparar
que a maioria dos ramos tem um fim abrupto nos inícios da década de
1940. Esses meus antepassados foram assassinados por serem judeus,
apanhados nas garras do genocídio nazi, enquanto elementos de um grupo
que serviu de bode expiatório.
Após o Holocausto, a Europa ganhou o hábito de jurar “nunca mais”,
mas, volvidos cinquenta anos, deu-se novo genocídio, desta vez a escassos
600 quilómetros de distância, na Jugoslávia. Entre 1992 e 1995, durante a
Guerra da Bósnia, mais de 100 mil muçulmanos foram chacinados pelos
sérvios em ações violentas que ficaram conhecidas como “limpeza
étnica”. Um dos piores acontecimentos dessa guerra ocorreu em
Srebrenica, onde, ao longo de dez dias, mais de oito mil bósnios
muçulmanos, conhecidos como bosniaks, foram fuzilados e mortos. Essas
pessoas tinham-se refugiado num complexo das Nações Unidas após
Srebrenica ter sido cercada por forças sérvias, mas a 11 de julho de 1995,
os comandantes das forças da ONU expulsaram todos os refugiados do
complexo, deixando-os à mercê dos inimigos que os esperavam do lado de
fora dos portões. Mulheres foram violadas, homens foram executados e
até crianças foram mortas.
Viajei até Sarajevo para compreender melhor o que tinha acontecido e,
uma vez lá, tive a oportunidade de conversar com um homem alto, de
meia-idade, chamado Hasan Nuhanovic´. Hasan, um bósnio muçulmano,
trabalhava como tradutor no complexo das Nações Unidas. A família dele
também lá estava, entre os refugiados, mas foi expulsa do complexo para
morrer às mãos dos sérvios, só ele foi autorizado a ficar por causa do valor
que tinha como tradutor. A mãe, o pai e o irmão foram mortos nesse
mesmo dia. A parte que mais o persegue é que “a continuação das mortes,
da tortura, foi perpetrada pelos nossos vizinhos, as mesmas pessoas com
quem vivêramos décadas. Eles foram capazes de matar os próprios amigos
da escola.”
Para exemplificar até que ponto foi quebrada a interação social, contou-
me que os sérvios prenderam um dentista bosniak. Penduraram-no de um
poste de iluminação pelos braços e bateram-lhe com uma barra de metal
até lhe partirem a coluna. Hasan contou-me que o dentista ficou ali
pendurado durante três dias, com as crianças sérvias a passarem pelo
cadáver a caminho da escola. Nas palavras dele, “há valores universais, e
esses valores são muito básicos: não matarás. Em abril de 1992, esse ‘não
matarás’ desapareceu de um momento para o outro e passou a ser ‘vai e
mata’.”
A SÍNDROME DE E

O que permite que haja uma fraca reação emocional ao provocar sofrimento noutra
pessoa? O neurocirurgião Itzhak Fried salienta que, quando observamos
acontecimentos violentos em qualquer parte do mundo, encontramos o mesmo
padrão de comportamento em todo o lado. É como se as pessoas alterassem o
funcionamento normal do cérebro e passassem a funcionar de uma maneira
específica. Tal como um médico pode procurar os sintomas de tosse e febre num
caso de pneumonia, ele sugeriu que é possível observar e identificar
comportamentos particulares que caracterizam os perpetradores em situações de
violência, e chamou a isso a “Síndrome de E”. Segundo Fried, a Síndrome de E é
caracterizada por uma fraca reatividade emocional, o que permite atos repetidos de
violência. Também inclui a hiperestimulação, ou Rausch, como lhe chamam os
alemães, uma sensação de júbilo ao cometer esses atos. E há o efeito de contágio
do grupo: está toda a gente a fazer o mesmo, os outros imitam e a situação alastra.
Há uma compartimentação em que uma pessoa pode proteger a sua própria família,
mas cometer atos violentos contra a família de outra pessoa.
Do ponto de vista da neurociência, a pista mais importante é ver que outras
funções cerebrais, como a linguagem, a memória e a resolução de problemas,
permanecem intactas, o que sugere que não se trata de uma alteração ao nível de
todo o cérebro, mas apenas em áreas relacionadas com a emoção e a empatia. É
como se entrassem, de facto, em curto-circuito, deixando de participar nas tomadas
de decisão. Pelo contrário, as escolhas do perpetrador passam a ser alimentadas
por partes do cérebro que suportam a lógica, a memória, o raciocínio e assim
sucessivamente, mas não pelas redes relacionadas com a consideração emocional
de como é ser outra pessoa. Na perspetiva de Fried, isto corresponde a uma
desobrigação moral. As pessoas deixam de usar os sistemas emocionais que, em
circunstâncias normais, guiam as tomadas de decisão de caráter social.

O que permite uma mudança tão alarmante na interação humana? Como


pode ser ela compatível com uma espécie eussocial? Porque continuam a
ocorrer genocídios por todo o planeta? Tradicionalmente, analisamos a
guerra e os massacres dentro de um contexto histórico, económico e
político. Contudo, para termos um quadro completo, acredito que temos
igualmente de entender esse fenómeno como sendo do foro neural. Numa
situação normal, qualquer pessoa consideraria imoral matar o vizinho.
Então, o que permite que subitamente centenas ou milhares de pessoas
façam exatamente isso? O que têm determinadas situações que provocam
um curto-circuito no funcionamento social normal do cérebro?

UNS SÃO MAIS IGUAIS DO QUE OUTROS

Será possível estudar uma avaria no funcionamento social normal em


laboratório? Para descobrir a resposta, concebi uma experiência.
A nossa primeira questão era simples: será que a nossa sensação básica
de empatia com alguém se altera em função de ela pertencer ao nosso
endogrupo ou a um exogrupo?
Pusemos os participantes na máquina de ressonância magnética, onde
viam seis mãos no ecrã. À semelhança de uma roda, como as que são
utilizadas nos concursos televisivos, o computador escolhe aleatoriamente
uma das mãos. Essa mão expande-se então até meio do ecrã e o
participante vê-a a ser tocada por um cotonete ou espetada pela agulha de
uma seringa. São duas ações que produzem a mesma atividade no sistema
visual, mas reações muito diferentes no resto do cérebro.
Como já vimos anteriormente, quando vemos alguém em sofrimento,
isso ativa a nossa própria matriz da dor. É essa a base da empatia. Assim,
já podíamos passar para um outro nível e colocar novas questões acerca da
empatia. Uma vez estabelecida a condição de base, fizemos uma alteração
muito simples: apareciam as mesmas seis mãos no ecrã, mas agora cada
uma tinha uma legenda, uma única palavra, a dizer cristão, judeu, ateu,
muçulmano, hindu ou cientologista. Quando era escolhida uma mão de
forma aleatória, expandia-se para meio do ecrã e era depois tocada com o
cotonete ou picada pela agulha da seringa. A nossa pergunta experimental
era: será que o nosso cérebro se preocupa de igual modo quando vê um
membro de um exogrupo a ser magoado?
Descobrimos uma variabilidade individual bastante considerável, mas,
em média, os cérebros das pessoas demonstraram uma maior resposta
empática quando viam alguém do seu endogrupo em sofrimento, e menor
quando se tratava de um membro de um dos exogrupos. O resultado é
particularmente notável dado tratar-se de umas simples legendas com uma
única palavra, ou seja, é preciso muito pouco para estabelecer a pertença
ao grupo.
Basta uma categorização básica para alterar a resposta pré-consciente do
nosso cérebro a outra pessoa em sofrimento. Uma pessoa pode ter uma
opinião acerca das divisões que a religião provoca, mas há uma questão
mais profunda que vale a pena salientar: no nosso estudo, mesmo os ateus
demonstraram uma maior resposta à dor na mão com a legenda “ateu” e
uma resposta menos empática às outras legendas. Por isso, o resultado não
tem fundamentalmente a ver com a religião, mas sim com a equipa a que
pertencemos.
Vemos que as pessoas podem sentir menos empatia por membros de um
exogrupo, mas para compreendermos fenómenos como a violência ou o
genocídio, temos de chegar a um nível mais profundo: à desumanização.
Lasana Harris, da Universidade de Leiden, na Holanda, conduziu uma
série de experiências que nos ajudam a perceber melhor como isto se
processa. Harris investiga alterações na rede social do cérebro, em
particular no córtex pré-frontal medial (CPFm). Essa região fica ativa
quando estamos a interagir com outras pessoas ou a pensar nelas, mas não
quando estamos a lidar com objetos inanimados, como uma chávena de
café.
Harris mostrou aos voluntários fotografias de pessoas de diferentes
grupos sociais, por exemplo pessoas sem-abrigo ou toxicodependentes, e
descobriu que o CPFm ficava menos ativo quando olhavam para um sem-
abrigo. Era como se se assemelhasse mais a um objeto.

O córtex pré-frontal medial (CPFm) está relacionado com a atividade de pensar


nas outras pessoas, pelo menos na maioria das outras pessoas.

Segundo Harris, ao desligarmos os sistemas que veem o sem-abrigo como


um ser humano, não temos de experimentar as pressões negativas de nos
sentirmos mal por não lhe darmos dinheiro. Por outras palavras, o sem-
abrigo tem de ser desumanizado: o cérebro está a vê-lo mais como um
objeto e menos como uma pessoa. Não é de estranhar, pois, que haja mais
probabilidades de o tratarmos com menos consideração. Tal como nos
explica, “se não diagnosticarmos devidamente as pessoas como seres
humanos, as regras morais reservadas aos seres humanos poderão não se
aplicar”.
A desumanização é um componente-chave do genocídio. Tal como os
nazis viam os judeus como sub-humanos, também os sérvios da antiga
Jugoslávia viam os muçulmanos dessa forma.
Quando estive em Sarajevo, andei pela avenida principal da cidade.
Durante a guerra, ficou conhecida como a “Avenida dos Snipers”, porque
homens, mulheres e crianças eram mortos por atiradores que estavam
escondidos nas colinas à volta da cidade e nos edifícios vizinhos. Essa
avenida tornou-se um dos maiores símbolos do horror da guerra. Como é
que uma avenida normal de uma cidade chega a isso?
Essa guerra, tal como todas as outras, foi alimentada por uma forma de
manipulação neural muito eficaz, praticada há séculos: a propaganda.
Durante a Guerra da Bósnia, a principal cadeia televisiva, a Rádio e
Televisão da Sérvia, era controlada pelo Governo sérvio e era prática
constante a apresentação de notícias distorcidas como sendo factuais. A
cadeia inventava notícias de ataques com motivação étnica perpetrados
pelos bósnios muçulmanos contra o povo sérvio. Demonizavam
constantemente bósnios e croatas e usavam linguagem negativa nas
descrições que faziam dos muçulmanos. No auge da bizarria, transmitiu
uma história sem fundamento que relatava que os muçulmanos
alimentavam os leões famintos do jardim zoológico de Sarajevo com
crianças sérvias.
O genocídio só é possível quando a desumanização ocorre a uma escala
massiva, e a ferramenta perfeita para isso é a propaganda, que atinge
diretamente as redes neurais que compreendem os outros e reduz o nosso
nível de empatia para com eles.
Já vimos que o nosso cérebro pode ser manipulado por agendas políticas
para desumanizar os outros, as que podem então conduzir ao lado mais
negro da natureza humana. Mas será possível programar o cérebro para
evitar que tal aconteça? Uma solução possível está numa experiência
realizada durante os anos sessenta, conduzida não num laboratório
científico, mas sim numa escola.
Foi em 1968, no dia seguinte ao assassinato de Martin Luther King, o
líder do Movimento dos Direitos Civis. Jane Elliott, professora numa
pequena cidade do estado do Iowa, decidiu demonstrar à turma o que era o
preconceito. Jane perguntou aos alunos se sabiam como seria a sensação
de serem julgados pela cor da pele. A maioria achou que sim, mas Jane
não estava tão certa disso, pelo que iniciou o que estaria destinado a
tornar-se uma célebre experiência. Anunciou que os alunos com olhos
azuis eram “as melhores pessoas desta sala”.
Jane Elliott: “As pessoas com olhos castanhos não podem usar o
bebedouro. Vão ter de usar os copos de papel. As pessoas de olhos
castanhos não podem brincar com as pessoas de olhos azuis no recreio,
porque não são tão bons como as pessoas de olhos azuis. As pessoas de
olhos castanhos que estão aqui nesta sala vão ter de usar colarinhos.
Assim, ao longe, sabemos de que cor são os vossos olhos. Estão todos
prontos? Todos menos a Laurie. Estás pronta, Laurie?”
Criança: “Ela tem olhos castanhos.”
Jane Elliott: “Ela tem olhos castanhos. Hoje, vão começar a reparar que
perdemos muito tempo à espera das pessoas de olhos castanhos.”
Passados momentos, Jane começa à procura da régua, e dois alunos
intervêm. Rex aponta para onde está a régua, e Raymond acrescenta,
solícito: “Sra. Elliot, é melhor ficar com ela em cima da mesa, para o caso
de as pessoas castanhas [sic], as pessoas de olhos castanhos ficarem fora
de controlo.”
Estive recentemente com esses dois rapazes, Rex Kozak e Ray Hansen,
hoje homens feitos. Ambos têm olhos azuis. Perguntei-lhes se se
lembravam do comportamento que tiveram naquele dia. Ray respondeu:
“Eu fui extremamente mau para os meus amigos. Fazia todos os possíveis
por irritar os meus amigos de olhos castanhos, para me autopromover.”
Recorda que, nessa altura, tinha o cabelo muito louro e os olhos muito
azuis, “e era o pequeno nazi perfeito. Procurava maneiras de ser mau para
os meus amigos, de quem, horas ou minutos antes, tinha sido muito
próximo.”
No dia seguinte, Jane inverteu a experiência, anunciando à turma:
As pessoas de olhos castanhos podem tirar os colarinhos. E cada um de vocês
pode pôr o seu numa pessoa de olhos azuis. As pessoas de olhos castanhos têm
mais cinco minutos de intervalo. As pessoas de olhos azuis não podem usar nunca
o equipamento do recreio. As pessoas de olhos azuis não podem brincar com as
pessoas de olhos castanhos. As pessoas de olhos castanhos são melhores do que
as pessoas de olhos azuis.

Rex descreveu o que sentiu quando a situação se inverteu: “Aquilo deita o


teu mundo por terra como nunca antes tinha acontecido.” Quando Ray
ficou no grupo inferior, experimentou uma sensação de perda, de
personalidade e de identidade, tão profunda que se tornou praticamente
impossível continuar a fazer a sua vida normal.
Uma das coisas mais importantes que aprendemos, enquanto seres
humanos, é a vermos as coisas na perspetiva dos outros, algo em que as
crianças geralmente não são exercitadas de forma significativa. Quando
somos obrigados a compreender como é estar na pele de outra pessoa, isso
abre novas vias cognitivas. A partir do exercício na sala da Sra. Elliott,
Rex passou a estar mais vigilante contra afirmações racistas; ele lembra-se
de dizer ao pai: “Isso não está certo.” Rex guarda uma recordação muito
preciosa desse momento, que o fez sentir o que estava certo e que lhe deu
a certeza de estar a tornar-se uma pessoa diferente.
O brilhantismo do exercício dos olhos castanhos e azuis de Jane Elliott
foi ela ter trocado os grupos favorecidos, o que permitiu às crianças daí
tirarem uma lição ainda maior: os sistemas de regras podem ser
arbitrários. As crianças aprenderam que as verdades do mundo não são
absolutas e, mais, nem sequer são necessariamente verdades. Esse
exercício permitiu que as crianças vissem para lá dos artifícios das
agendas políticas e que formassem as suas próprias opiniões, uma
capacidade que certamente desejaríamos para todas as nossas crianças.
A educação desempenha um papel fundamental para evitar o genocídio.
Só compreendendo o impulso neural para formar endogrupos e exogrupos
– e os truques habituais a que a propaganda recorre para manipular esse
impulso – poderemos ter esperança de interromper as vias da
desumanização que acabam em atrocidades em massa.
Nesta era de hiperligação digital, é mais importante do que nunca
compreender as ligações entre os seres humanos. O cérebro humano está
fundamentalmente configurado para interagir: somos uma espécie
fantasticamente social. Apesar de os nossos impulsos sociais poderem, por
vezes, ser manipulados, também estão decisivamente no centro da história
do sucesso humano.
Poderíamos assumir que a nossa pele é o nosso limite, mas há um
sentimento em que é impossível distinguir onde acaba uma pessoa e onde
começam todas as outras que a rodeiam. Os nossos neurónios e os
neurónios de todas as outras pessoas do planeta interagem no seio de um
superorganismo gigante em constante mutação. Aquilo que demarcamos
como uma pessoa é simplesmente uma rede que pertence a uma rede
maior. Se queremos um futuro brilhante para a nossa espécie, temos de
continuar a investigar como interagem os cérebros e os respetivos perigos
e oportunidades. Porque não há forma de evitar a verdade gravada nos
circuitos dos nossos cérebros: nós precisamos uns dos outros.
6
QUEM SEREMOS NO FUTURO?
O corpo humano é uma obra-prima de grande complexidade e beleza, uma
sinfonia de quarenta biliões de células a trabalhar de forma concertada.
Porém, tem as suas limitações. Os nossos sentidos impõem limites àquilo que
conseguimos fazer. Mas, e se o cérebro conseguisse compreender novos
tipos de estímulos e controlar novos tipos de membros, expandindo assim a
realidade em que habitamos? Estamos num momento da história em que o
casamento da nossa biologia e da nossa tecnologia irá transcender as
limitações do cérebro. Podemos modificar o nosso próprio hardware para
definir um rumo para o futuro, algo que está prestes a alterar profundamente o
significado do que é ser humano.
Ao longo dos últimos 100 mil anos, a nossa espécie tem feito uma jornada
impressionante, evoluindo de uma existência de caçadores-recoletores
primitivos, que sobreviviam com muito pouco, para uma espécie
hiperligada que conquistou o planeta e que define o seu próprio destino.
Desfrutamos hoje de experiências mundanas que os nossos antepassados
nem poderiam sonhar. Temos rios de água potável que podemos usar
sempre que quisermos nas nossas cavernas bem adornadas. Andamos com
aparelhos do tamanho de uma pedra que contêm todo o conhecimento do
mundo. Vemos regularmente o topo das nuvens e a curvatura do nosso
planeta a partir do espaço. Enviamos mensagens para o outro lado do
globo em oito milissegundos e transferimos dados para uma colónia
espacial flutuante de seres humanos à velocidade de sessenta megabits por
segundo. Mesmo quando vamos de carro para o emprego, costumamos
deslocar-nos a velocidades que superam grandes obras-primas da biologia,
como as chitas. A nossa espécie deve o seu estrondoso sucesso às
propriedades especiais do cerca de quilo e meio de matéria que temos no
interior do nosso crânio.
O que tem o cérebro humano para tornar tal jornada possível? Se
conseguirmos compreender os segredos que estão por detrás das nossas
conquistas, talvez possamos direcionar as potencialidades do cérebro de
forma consciente e intencional, abrindo um novo capítulo da história
humana. O que nos reservam os próximos milhares de anos? No futuro
longínquo, como será a espécie humana?

UM DISPOSITIVO COMPUTACIONAL FLEXÍVEL

O segredo para compreender o nosso sucesso – e a nossa oportunidade de


futuro – é a formidável capacidade de adaptação do cérebro, conhecida
como plasticidade cerebral. Como vimos no Capítulo 2, essa
funcionalidade permitiu-nos chegar a qualquer ambiente e captar os
detalhes locais de que precisamos para sobreviver, incluindo o idioma, as
pressões ambientais ou os requisitos culturais desse local.
A plasticidade do cérebro é também a chave para o nosso futuro porque
abre a porta à possibilidade de fazermos modificações no nosso próprio
hardware. Vamos começar por perceber até que ponto o cérebro é um
dispositivo computacional flexível. Vejamos o caso de uma rapariga
chamada Cameron Mott. Aos quatro anos, começou a sofrer de violentas
crises de epilepsia. Eram ataques agressivos, e Cameron caía subitamente
para o chão, o que a obrigava a usar sempre um capacete. O diagnóstico
não tardou: tratava-se de uma doença debilitante, rara, denominada
encefalite de Rasmussen. O neurologista dela sabia que essa forma rara de
epilepsia conduziria à paralisia e eventualmente à morte, pelo que propôs
uma intervenção cirúrgica drástica. Em 2007, numa operação que
demorou quase doze horas, uma equipa de neurocirurgiões removeu um
dos hemisférios do cérebro de Cameron.
Quais seriam os efeitos a longo prazo da remoção de metade do
cérebro? Como se veio a constatar, as consequências foram
surpreendentemente ligeiras. Cameron tem pouca força de um lado do
corpo, mas, de resto, é praticamente indistinguível das outras crianças da
turma dela. Não tem problemas de compreensão da linguagem, da música,
da matemática ou de histórias. É boa aluna e participa nos desportos
escolares.
Como é isso possível? Não foi porque a outra metade do cérebro dela
não lhe fizesse falta, mas a metade que sobreviveu voltou a estabelecer
circuitos de forma dinâmica e assumiu as funções em falta, acumulando-as
todas apenas nessa metade do cérebro. A recuperação de Cameron
sublinha uma capacidade extraordinária do cérebro: ele restabelece as
ligações para se adaptar aos estímulos, às respostas e às tarefas que tem de
desempenhar.
Desta maneira crítica, o cérebro é fundamentalmente o contrário do
hardware dos nossos aparelhos digitais. É liveware, matéria viva,
reconfigurando os seus próprios circuitos. Apesar de o cérebro adulto não
ser tão flexível como o de uma criança, mantém, ainda assim, uma
espantosa capacidade de adaptação e mudança. Como vimos em capítulos
anteriores, sempre que aprendemos alguma coisa nova, seja o mapa de
Londres ou a capacidade de empilhar copos, o cérebro modifica-se. É esta
propriedade do cérebro – a sua plasticidade – que permite um novo
casamento entre a tecnologia e a nossa biologia.

PERIFÉRICOS

O ser humano foi melhorando aos poucos a sua capacidade de ligar


máquinas diretamente ao seu corpo. Podemos não nos aperceber, mas há
atualmente centenas de milhares de pessoas a fazerem a sua vida normal
tendo audição e visão artificiais.
Graças a um aparelho chamado implante coclear, um microfone externo
digitaliza um sinal sonoro e transmite-o ao nervo auditivo. O implante de
retina também digitaliza um sinal proveniente de uma câmara, que envia
através de uma grelha de elétrodos ligada ao nervo ótico, na parte de trás
do olho. Esses aparelhos ajudaram surdos e cegos de todo o planeta a
recuperarem os respetivos sentidos.
O sucesso de uma tal abordagem não foi sempre evidente. Quando estas
tecnologias foram introduzidas, muitos investigadores estavam céticos,
pois o cérebro está configurado com tal precisão e especificidade, que não
era claro que pudesse haver um diálogo com sentido entre elétrodos
metálicos e células biológicas. O cérebro seria capaz de compreender
sinais não biológicos em bruto ou deixá-lo-iam confuso?
Sucede que o cérebro aprende a interpretar os sinais. Para o cérebro,
habituar-se a esses implantes é um pouco como aprender uma nova língua.
A princípio, os sinais elétricos estranhos são ininteligíveis, mas as redes
neurais acabam por extrair padrões dos dados recebidos. Apesar de serem
sinais em bruto, o cérebro encontra uma maneira de lhes dar um sentido.
Procura padrões, que cruza com outros sentidos. Se os dados recebidos
tiverem alguma estrutura, o cérebro procura-a e encontra-a e, passadas
algumas semanas, a informação começa a ganhar um sentido. Ainda que
os implantes transmitam sinais ligeiramente diferentes dos emitidos pelos
nossos órgãos sensitivos naturais, o cérebro encontra maneira de funcionar
com as informações que consegue obter.
VISÃO E AUDIÇÃO ARTIFICIAL

Um implante coclear contorna os problemas da biologia do ouvido e transmite os


sinais de áudio diretamente para o nervo auditivo saudável, o cabo de dados do
cérebro que envia impulsos elétricos para o córtex auditivo, para serem
descodificados. O implante capta os sons do mundo exterior e transmite-os ao nervo
auditivo por intermédio de dezasseis elétrodos minúsculos. A experiência da
audição não chega imediatamente: as pessoas têm de aprender a interpretar o
dialeto estranho dos sinais que chegam ao cérebro. Michael Chorost, que recebeu
um implante coclear, descreve assim a experiência:
Quando ligaram o aparelho, um mês depois da cirurgia, a primeira frase que ouvi
soou-me a uma coisa deste género: ‘Zzzzzz szz szvizzz ur brfzzzzzz?’ O meu
cérebro aprendeu gradualmente a interpretar o sinal estranho. Não tardou muito até
o ‘Zzzzzz szz szvizzz ur brfzzzzzz?’ se tornar ‘O que é que comeste ao pequeno-
almoço?’ Ao cabo de uns meses de prática, já conseguia usar o telefone outra vez e
até conversar em bares e cafés barulhentos.
Os implantes de retina funcionam com princípios semelhantes. Os minúsculos
elétrodos do implante de retina substituem as funções normais dos fotorrecetores da
retina, enviando as suas minúsculas centelhas de atividade elétrica. Esses
implantes são utilizados sobretudo para doenças dos olhos em que os fotorrecetores
da parte posterior do olho estão a degenerar, mas as células do nervo ótico
permanecem saudáveis. Apesar de os sinais enviados pelo implante não serem
exatamente aquilo a que o sistema visual está habituado, os processos a jusante
conseguem aprender a extrair a informação necessária à visão.

PLUG AND PLAY: UM FUTURO EXTRASSENSORIAL

A plasticidade do cérebro permite a interpretação de novos estímulos. Que


oportunidades sensoriais poderá trazer?
Chegamos a este mundo com um conjunto de sentidos básicos: a
audição, o tato, a visão, o olfato, em conjunto com outros sentidos, como
o equilíbrio, a vibração e a temperatura. Os sensores que possuímos são
portais através dos quais captamos sinais do nosso ambiente.
No entanto, como vimos no primeiro capítulo, esses sentidos só nos
permitem experimentar uma fração ínfima do mundo que nos rodeia.
Todas as fontes de informação para as quais não dispomos de sensores são
invisíveis para nós.
Eu penso nos nossos portais sensoriais como periféricos plug and play7.
A chave é o facto de o cérebro não saber e não querer saber de onde
provém a informação. Seja qual for a informação que receba, o cérebro
descobre o que fazer com ela. Nesta perspetiva, vejo o cérebro como um
dispositivo computacional de uso geral, funcionando com o quer que
receba. A ideia é que a mãe natureza só precisou de inventar os princípios
do funcionamento do cérebro uma vez e depois ficou livre para se dedicar
a inventar novos canais de entrada.
O resultado foi que todos esses sensores que conhecemos e adoramos
são meros dispositivos que podem ser trocados. Basta aplicá-los, que o
cérebro consegue funcionar. Neste contexto, a evolução não tem de estar a
redesenhar constantemente o cérebro, apenas os periféricos, e o cérebro
aprende a utilizá-los.
Basta ver o que se passa um pouco por todo o reino animal para
descobrir uma variedade estonteante de sensores periféricos utilizados
pelos cérebros dos animais. As cobras possuem sensores de calor. O ituí-
transparente tem sensores elétricos para interpretar as alterações no campo
elétrico local. As vacas e as aves têm magnetite, que usam para se
orientarem pelo campo magnético da Terra. Há animais que têm visão
ultravioleta, os elefantes conseguem ouvir a grandes distâncias, ao passo
que os cães experimentam uma realidade rica em cheiros. O cadinho da
seleção natural é o espaço por excelência para o hacking, e estas são
apenas algumas das maneiras que os genes encontraram para canalizar a
informação do mundo exterior para o mundo interior. Em virtude disso, a
evolução construiu um cérebro que pode experienciar muitas fatias
diferentes da realidade.
A consequência que quero salientar é o facto de poder não haver nada
de especial ou fundamental nos sensores que estamos habituados, a usar.
São apenas aquilo que herdámos de uma complexa história de limitações
evolutivas. Não estamos limitados a eles.
A principal prova de princípio desta ideia vem de um conceito
denominado substituição sensorial, que se refere à transmissão de
informação sensorial através de canais sensoriais incomuns, como a visão
através do tato. O cérebro descobre o que fazer com essa informação,
porque não se interessa como ela chega até ele.
A substituição sensorial pode parecer ficção científica, mas, na
realidade, já é um dado adquirido. A primeira demonstração foi publicada
na revista Nature, em 1969. Nesse artigo, o neurocientista Paul Bach-y-
Rita demonstrou que os indivíduos cegos conseguiam “ver” objetos,
mesmo quando a informação visual lhes chegava por uma via não
habitual. As pessoas cegas sentavam-se numa cadeira de dentista
modificada, e o sinal de vídeo de uma câmara era convertido num padrão
de pequenos êmbolos que pressionavam a região lombar. Por outras
palavras, ao pôr um círculo em frente da câmara, o participante sentia um
círculo nas costas. Com uma cara em frente da câmara, o participante
sente a cara nas costas. Surpreendentemente, os cegos conseguiam
interpretar os objetos, e também sentiam o aumento de tamanho de objetos
quando se aproximavam. Essas pessoas conseguiam, pelo menos em certa
medida, ver através das costas.
Este foi o primeiro exemplo de substituição sensorial de muitos que se
seguiriam. As encarnações modernas desta abordagem incluem a
transformação de um sinal de vídeo num fluxo sonoro, ou uma série de
pequenos choques na testa ou na língua.
Um exemplo desta última técnica é um aparelho do tamanho de um selo
postal chamado BrainPort, que funciona dando choques elétricos ínfimos
na língua, através de uma pequena grelha aí aplicada. O indivíduo cego
usa óculos de sol com uma pequena câmara instalada. Os píxeis da câmara
são convertidos em impulsos elétricos na língua, o que dá uma sensação
parecida à efervescência de uma bebida gaseificada. Os cegos conseguem
resultados bastante bons com o BrainPort, percorrendo percursos com
obstáculos ou lançando uma bola para um cesto. Um atleta cego, Erik
Weihenmayer, usa o BrainPort para escalar, avaliando a posição das
saliências rochosas e das fendas através dos padrões que sente na língua.
Pode parecer uma loucura “ver” pela língua, mas temos de nos lembrar
de que a visão não passa de sinais elétricos que conseguem chegar até às
trevas do nosso crânio. Normalmente, isso acontece através dos nervos
óticos, mas não há motivo para a informação não poder chegar através de
outros nervos. Tal como ficou demonstrado pela substituição sensorial, o
cérebro usa quaisquer informações que lhe cheguem e descobre o que
pode fazer com elas.
Um dos projetos do meu laboratório é a construção de uma plataforma
que possibilite a substituição sensorial. Mais especificamente, construímos
uma tecnologia que se veste, denominada Transdutor Extrassensorial
Variável, ou VEST8, na sigla em língua inglesa. Usado discretamente por
baixo da roupa, o VEST está coberto por minúsculos motores vibratórios
que convertem fluxos de informação em padrões de vibração dinâmicos
no tronco do utilizador. Estamos a utilizar o VEST para dar audição aos
surdos.
Após cerca de cinco dias a usar o VEST, um surdo de nascença
consegue identificar corretamente palavras que são proferidas. Apesar de
as experiências estarem ainda na fase inicial, esperamos que, após alguns
meses a usar o VEST, os utilizadores consigam ter uma experiência
percetual direta, sendo no essencial equivalente à audição.
Pode parecer estranho que a pessoa consiga ouvir através de padrões de
vibrações que lhe percorrem o tronco, mas, tal como a cadeira de dentista
ou a grelha na língua, o truque é este: ao cérebro não lhe interessa de onde
vem a informação, desde que a receba.

AUMENTO SENSORIAL

A substituição sensorial é excelente para contornar sistemas sensoriais


danificados, mas, e se além da substituição conseguíssemos usar essa
tecnologia para expandir as nossas capacidades sensoriais? Para testar
isso, eu e os meus alunos estamos atualmente a acrescentar novos sentidos
ao repertório humano para aumentar a nossa experiência do mundo.
Vejamos o seguinte: há petabytes de dados a correr na Internet, mas
atualmente só conseguimos aceder a essa informação num telemóvel ou
no ecrã de computador. E se tivéssemos a possibilidade de transmitir
dados em tempo real ao nosso corpo para que essa informação se tornasse
parte da nossa experiência direta do mundo? Por outras palavras, e se
conseguíssemos sentir os dados? Poderiam ser informações
meteorológicas, da bolsa, do Twitter, dos instrumentos da cabina de um
avião ou sobre o estado de uma fábrica, todas codificadas numa nova
linguagem vibratória que o cérebro aprenderia a compreender. À medida
que íamos fazendo as nossas tarefas diárias, podíamos ter a perceção
direta de um tempo chuvoso a cem quilómetros de distância ou no dia
seguinte. Podíamos ter uma perceção de como os mercados de capitais
iriam evoluir, identificando de forma subconsciente os movimentos da
economia global. Ou podíamos sentir as tendências da Twittosfera,
ligando-nos assim e tirando partido da consciência da nossa espécie.
Apesar de isto poder parecer ficção científica, não estamos longe de um
tal futuro, tudo graças ao talento do cérebro para extrair padrões, mesmo
quando não estamos a tentar fazê-lo.
É esse o truque que nos permite absorver informação complexa na nossa
experiência sensorial do mundo. Tal como ler esta página, absorver novos
fluxos de dados tornar-se-á uma coisa simples e natural. Mas ao contrário
de ler, o aumento sensorial seria uma forma de receber novas informações
sobre o mundo sem qualquer esforço da nossa parte.
Neste momento, não conhecemos os limites – ou sequer se há limites –
para os tipos de informações que o cérebro conseguirá incorporar, mas é
evidente que já não somos uma espécie natural que tem de esperar por
adaptações sensoriais numa escala temporal evolutiva. À medida que
avançamos, iremos progressivamente conceber os nossos próprios portais
sensoriais para o mundo. Iremos configurar novos circuitos para nos
ligarmos a uma realidade sensorial aumentada.

O VEST
Eu e Scott Novich, meu aluno de pós-graduação, criámos o VEST para ajudar
pessoas surdas. Esta tecnologia que se veste capta o som do ambiente e mapeia-o
para pequenos motores vibratórios espalhados por todo o tronco. Os motores são
ativados com padrões que correspondem às frequências do som. Desta maneira, o
som é transformado em padrões de vibração que se vão alterando.
A princípio, esses sinais vibratórios não fazem sentido. Mas com prática
suficiente, o cérebro percebe o que fazer com a informação. Os surdos começam a
conseguir traduzir os padrões complicados que sentem no tronco para uma
linguagem inteligível. O cérebro aprende a decifrar os padrões inconscientemente,
tal como um cego que aprende a ler braile sem esforço.
O VEST tem o potencial de vir a alterar profundamente a vida dos surdos. Ao
contrário de um implante coclear, não exige qualquer intervenção cirúrgica invasiva.
E é pelo menos vinte vezes mais barato, o que faz dele uma solução que poderá
tornar-se global.
O grande potencial do VEST é este: além do som, também pode servir de
plataforma para fazer chegar qualquer tipo de informação ao cérebro.
Em eagleman.com encontrará vídeos do VEST em ação.

COMO TER UM CORPO MELHOR

O modo como sentimos o mundo é apenas metade da história. A outra


metade é o modo como interagimos com ele. Da mesma forma que
estamos a começar a modificar a nossa capacidade sensorial, poderá a
flexibilidade do cérebro ser utilizada para modificar o modo como
interagimos com o mundo?
Vejamos o caso de Jan Scheuermann. Em consequência de uma doença
genética rara, denominada degeneração espinocerebelar, os nervos da
espinal medula que ligam o cérebro aos músculos deterioraram-se. Ela
consegue sentir o corpo, mas não consegue mexê-lo. Tal como ela própria
descreve, “o meu cérebro diz ao braço ‘levanta-te’, mas o braço responde
‘não te ouço’”. A paralisia total de que é vítima fez dela a candidata ideal
para um novo estudo que está a ser conduzido pela Faculdade de Medicina
da Universidade de Pittsburgh.
Aí, os investigadores implantaram-lhe dois elétrodos no córtex motor
esquerdo, a última paragem dos sinais cerebrais antes de descerem pela
espinal medula para irem controlar os músculos do braço. As tempestades
elétricas no córtex de Jan são monitorizadas, traduzidas por um
computador para compreender a intenção, e o sinal resultante é utilizado
para controlar o braço robótico mais avançado do mundo.
Quando Jan quer mexer o braço robótico, pensa simplesmente em mexê-
lo. Quando o mexe, tem a tendência para lhe falar na terceira pessoa:
“Levanta-te. Para baixo, para baixo, para baixo. Vá, para a direita. E
agarra. Solta”. E o braço assim faz, quando ela manda. Apesar de ela dar
todas as ordens em voz alta, não é preciso. Há uma ligação física direta
entre o cérebro e o braço. Jan conta que o cérebro não se esqueceu de
como se mexe um braço, mesmo não o tendo mexido em dez anos. “É
como andar de bicicleta, nunca se esquece”, afirma.
A proficiência de Jan aponta para um futuro em que recorremos à
tecnologia para melhorar e aumentar o nosso corpo, não apenas substituir
membros ou órgãos, mas melhorá-los: elevá-los da fragilidade humana
para algo mais durável. O braço robótico dela é apenas o primeiro sinal de
uma futura era biónica em que seremos capazes controlar equipamento
muito mais potente e resistente do que a pele, o músculo e os ossos frágeis
com que nascemos. Entre outras coisas, é algo que abre novas
possibilidades para as viagens espaciais, algo para o qual os nossos corpos
delicados estão mal preparados.
Além da substituição de membros, o avanço da tecnologia de interface
cérebro-máquina sugere possibilidades mais exóticas. Basta imaginar a
extensão do nosso corpo para algo irreconhecível. Comecemos por esta
ideia: e se conseguíssemos usar os sinais cerebrais para controlar, sem
fios, uma máquina do outro lado da sala? Imaginemo-nos a responder a
emails enquanto nos servimos em simultâneo do córtex motor para operar
um aspirador controlado pelo pensamento. À primeira vista, a ideia pode
parecer irrealizável, mas basta ter em conta que o cérebro é excelente a
executar tarefas em segundo plano, sem precisar de recorrer muito ao
modo consciente. Basta recordar a facilidade com que conduzimos um
carro enquanto falamos com o passageiro do lado e mudamos a estação no
rádio.
Com a interface cérebro-máquina e a tecnologia sem fios adequadas,
não há motivo para não conseguirmos controlar grandes equipamentos,
como uma grua ou um empilhador, à distância, pelo pensamento, tal como
poderíamos estar a cavar com uma pá ou a tocar guitarra sem pensar no
assunto. A nossa capacidade para fazer bem essas coisas seria potenciada
pelo retorno sensorial, o que poderia ser feito visualmente (vemos como a
máquina se movimenta), ou mesmo reencaminhando a informação para o
córtex somatossensorial (sentimos como a máquina se movimenta). O
controlo de tais membros exigiria treino e seria estranho a princípio, tal
como um bebé tem de passar vários meses a fazer movimentos bruscos até
conseguir controlar os braços e as pernas. Com o tempo, essas máquinas
acabariam por se tornar efetivamente membros extra do nosso corpo e ter
uma força extraordinária, de natureza hidráulica ou outra. Elas passariam a
dar-nos a mesma sensação que temos dos nossos braços e pernas; seriam
apenas mais um membro, uma simples extensão de nós mesmos.
Não conhecemos qualquer limite teórico para os tipos de sinais que o
cérebro poderá aprender a incorporar. Poderá ser possível ter praticamente
qualquer tipo de corpo físico e qualquer tipo de interação que quisermos
com o mundo. Não há nenhum motivo para uma extensão de nós mesmos
não se poder ocupar de tarefas do outro lado do mundo ou controlar
explorações mineiras na Lua enquanto saboreamos uma sanduíche aqui na
Terra.
O corpo com que nascemos é, com efeito, apenas o ponto de partida
para a Humanidade. Num futuro distante, não nos limitaremos a ampliar o
nosso corpo físico, mas fundamentalmente o nosso sentido do ser. À
medida que adquirimos novas experiências sensoriais e controlamos
novos tipos de corpos, tudo isso nos irá modificar profundamente
enquanto indivíduos; a nossa fisicalidade prepara o terreno para aquilo que
sentimos, em que pensamos e quem somos. Sem as limitações dos
sentidos e do corpo que trazemos de série, seríamos pessoas diferentes. É
possível que os nossos tetra-tetranetos venham a ter dificuldade em
compreender quem éramos nós e que coisas eram importantes para nós.
Neste momento da História, podemos ter mais em comum com os nossos
antepassados pré-históricos do que com os nossos descendentes no futuro
próximo.

CONTINUAR VIVOS

Já começámos a ampliar o corpo humano, mas, por mais que nos


melhoremos, há um senão difícil de evitar: o nosso cérebro e o nosso
corpo são compostos por matéria física e vão, por isso, deteriorar-se e
morrer. Chegará um momento em que toda a nossa atividade neural vai
parar, e a maravilhosa experiência da consciência vai então chegar ao fim.
Não interessa quem conhecemos ou o que fazemos, é esse o destino que
nos espera a todos. Com efeito, é o destino de todos os seres vivos, mas só
os seres humanos possuem a tão extraordinária capacidade de antevisão
que os faz sofrer com o conhecimento desse facto.
Nem toda a gente se resigna a sofrer, e há quem tenha optado por
combater o espetro da morte. Grupos dispersos de investigadores estão
interessados na ideia de um melhor entendimento da nossa biologia para
lidar com a nossa mortalidade. E se, no futuro, não tivéssemos de morrer?
Quando o meu amigo e mentor Francis Crick foi cremado, passei algum
tempo a pensar como era uma pena lançar toda aquela matéria neural às
chamas. O cérebro continha todo o conhecimento, a sabedoria e o
intelecto de um dos expoentes máximos da biologia do século XX. Todos
os arquivos da vida dele – as memórias, a capacidade de discernimento, o
sentido de humor – estavam armazenados na estrutura física do cérebro, e,
só por o coração ter parado, toda a gente se resignou em mandar fora o
disco rígido. Aquilo fez-me pensar: seria possível, de alguma forma,
preservar a informação que estava no cérebro dele? Se o cérebro fosse
preservado, seria possível um dia devolver à vida os pensamentos, a
consciência e a personalidade de uma pessoa?
Nos últimos cinquenta anos, a Alcor – Fundação para a Extensão da
Vida – tem vindo a desenvolver tecnologia que, os responsáveis
acreditam, irá permitir que pessoas que hoje estão vivas venham a
desfrutar de um segundo ciclo de vida no futuro. A instituição mantém
atualmente conservadas 129 pessoas num estado de congelamento
profundo que interrompe a decomposição biológica.
Eis como funciona a criopreservação: primeiro, o interessado transfere a
propriedade da apólice do seu seguro de vida para a fundação, que nomeia
beneficiária. Depois, assim que o óbito é legalmente declarado, a Alcor é
alertada. Uma equipa desloca-se rapidamente para o local para tratar do
corpo.
A equipa transfere de imediato o corpo para um banho gelado. Através
de um processo conhecido como perfusão crioprotetora, fazem circular
pelo corpo dezasseis substâncias químicas diferentes para proteger as
células, à medida que o corpo arrefece. O corpo é então levado o mais
rapidamente possível para a sala de operações da Alcor, para a etapa final
do processo. O corpo é arrefecido por intermédio de ventoinhas
controladas por computador, que fazem circular azoto gasoso a
temperaturas extremamente baixas. O objetivo é arrefecer todas as partes
do corpo abaixo dos -124 oC, o mais rapidamente possível, para impedir a
formação de gelo. O processo leva cerca de três horas, até o corpo ficar
“vitrificado”, ou seja, atingir um estado estável, sem gelo. Ao longo das
duas semanas seguintes, o corpo é arrefecido ainda mais, até aos -196 oC.
Nem todos os clientes optam por ter todo o corpo congelado. Há uma
opção mais acessível, que é a de preservar apenas a cabeça. A separação
da cabeça do corpo é realizada numa mesa de cirurgia, onde o sangue e os
fluidos são retirados e são substituídos por líquidos que mantêm o tecido
intacto, tal como sucede com os clientes que preservam o corpo inteiro.
No final do processo, os clientes são mergulhados num líquido
ultracongelado, em enormes cilindros de aço inoxidável, chamados vasos
de Dewar. E aí permanecerão durante muito tempo, pois atualmente
ninguém no mundo sabe como descongelar e reanimar com sucesso esses
residentes congelados.

MORTE LEGAL VS. MORTE BIOLÓGICA

Uma pessoa é declarada legalmente morta quando o cérebro está clinicamente


morto ou o corpo sofreu uma interrupção irreversível da função respiratória ou
circulatória. Para o cérebro ser declarado oficialmente morto, toda a atividade tem
de ter cessado no córtex cerebral, a região relacionada com as funções de ordem
superior. Após a morte cerebral, as funções vitais ainda podem ser mantidas para
efeitos de doação de órgãos ou do corpo, um facto que é crucial para a Alcor. A
morte biológica, por seu turno, ocorre na ausência de intervenção, e envolve a morte
de células em todo o corpo: nos órgãos e no cérebro, o que significa que os órgãos
deixam de estar em condições para serem doados. Sem o oxigénio proveniente da
circulação sanguínea, as células do corpo começam rapidamente a morrer. Para
preservar um corpo e um cérebro na sua forma menos degradada, a morte celular
tem de ser interrompida, ou pelo menos, retardada, o mais rapidamente possível.
Além do mais, durante o arrefecimento, a prioridade é evitar a formação de cristais
de gelo, que podem destruir as delicadas estruturas celulares.

Mas a questão não é essa. A esperança é que, um dia, haja tecnologia para
descongelar cuidadosamente – e depois devolver à vida – as pessoas dessa
comunidade. As civilizações de um futuro distante, presume-se, irão
dominar a tecnologia necessária para curar as doenças que atacaram esses
corpos e que os conduziram à morte.
Os clientes da Alcor sabem que a tecnologia necessária para os reanimar
poderá nunca chegar a existir. Cada pessoa conservada nos vasos de
Dewar da Alcor fez um ato de fé, esperando e sonhando que um dia se
materialize a tecnologia para os descongelar, reanimar e lhes dar uma
segunda oportunidade de vida. O projeto representa uma aposta na
possibilidade de a tecnologia necessária vir a ser desenvolvida no futuro.
Falei com um membro da comunidade (que aguarda para entrar nos vasos
de Dewar, chegado o momento), e ele admite que a ideia é um risco, mas
salientou que, pelo menos, é “melhor do que nada” para tentar enganar a
morte; as probabilidades são melhores de que as do resto das pessoas.
O Dr. Max More, que gere a fundação, não usa a palavra
“imortalidade”, preferindo dizer que a Alcor dá às pessoas uma segunda
oportunidade, com a possibilidade de viverem milhares de anos, ou mais.
Até esse momento chegar, a Alcor é a última morada para elas.

IMORTALIDADE DIGITAL

Nem toda a gente com inclinação para prolongar a vida tem preferência
pela criopreservação, e houve quem procurasse outra via: e se existissem
outras formas de aceder à informação que se encontra guardada no
cérebro? Não devolvendo à vida alguém que faleceu, mas procurando
antes uma maneira de ler diretamente a informação. Afinal, se a estrutura
do cérebro, com um nível de detalhe submicroscópico, contém todo o
conhecimento e as memórias dessa pessoa, então, porque não desencriptar
esse livro?
Vamos ver o que seria necessário para fazer isso. Para começar,
precisaríamos de computadores extraordinariamente potentes para
armazenar os dados detalhados do cérebro de um indivíduo. Felizmente, o
nosso poder computacional exponencialmente crescente aponta para
enormes possibilidades. Nos últimos vinte anos, o poder computacional
aumentou mil vezes. O poder de processamento dos chips dos
computadores tem vindo a duplicar a aproximadamente cada dezoito
meses, uma tendência que se mantém. As tecnologias da nossa era
moderna permitem-nos armazenar quantidades inimagináveis de dados e
executar simulações gigantescas.
Tem em conta o nosso potencial computacional, parece provável que um
dia seremos capazes de digitalizar uma cópia funcional do cérebro para o
substrato de um computador. Em teoria, não há nada que impeça essa
possibilidade. No entanto, o desafio tem de ser realisticamente avaliado.
O cérebro tem normalmente cerca de oitenta e seis mil milhões de
neurónios, com cerca de dez mil ligações cada. Eles ligam-se de uma
maneira muito específica, exclusiva de cada pessoa. As nossas
experiências, as nossas memórias, tudo o que nos define como pessoas
está representado no padrão único dos mil biliões de ligações entre as
células de cada um dos nossos cérebros. Esse padrão, demasiado grande
para ser compreendido, pode ser resumido como o nosso “conectoma”.
Num projeto ambicioso, o Dr. Sebastian Seung está a trabalhar com a sua
equipa da Universidade de Princeton no sentido de descobrir os
pormenores finos de um conectoma.
Com um sistema tão microscópico e complexo como este, é
extraordinariamente difícil mapear a rede de ligações. O Dr. Seung recorre
à microscopia eletrónica de varrimento, que envolve o corte de fatias
muito finas de tecido cerebral com uma lâmina extremamente precisa.
(Atualmente, são utilizados cérebros de rato, não humanos.) Cada fatia é
subdividida em áreas minúsculas, e cada uma delas é digitalizada através
de um microscópio eletrónico extremamente potente. O resultado de cada
digitalização é uma imagem denominada micrografia eletrónica, que
representa um segmento de cérebro aumentado cem mil vezes. Com uma
tal resolução, é possível distinguir características finas do cérebro.
Assim que as imagens dessas fatias são guardadas no computador,
começa o trabalho mais difícil. Analisada fatia a fatia, os limites das
células são traçados, geralmente à mão, mas cada vez mais com o recurso
a algoritmos de computador. Em seguida, as imagens são sobrepostas
umas às outras, e tenta-se ligar todo o conjunto das células individuais das
várias fatias para revelar a sua riqueza tridimensional. Desse processo
meticuloso surge um modelo que revela o que está ligado a quê.
O denso esparguete de ligações mede escassos milésimos de
milionésimo do metro, aproximadamente o tamanho da cabeça de um
alfinete. Não é difícil ver que a reconstrução da imagem completa de todas
as ligações de um cérebro humano é uma tarefa tão desafiante, que
ninguém tem verdadeiramente esperança de a concluir num futuro
próximo. A quantidade de informação necessária é colossal: para guardar
a arquitetura em alta resolução de um único cérebro humano seria
necessária a capacidade de um zetabyte, ou seja, um volume equivalente a
todos os atuais conteúdos digitais do planeta.
Projetando um futuro longínquo, imaginemos que conseguimos
digitalizar um conectoma. Seria essa informação suficiente para
representar uma pessoa? Poderia essa imagem de todos os circuitos do
cérebro ter a consciência de uma pessoa? Provavelmente, não. Afinal, o
esquema dos circuitos (que nos mostra o que está ligado a quê) é apenas
metade da magia de um cérebro funcional. A outra metade é toda a
atividade elétrica e química que ocorre nessas ligações. A alquimia do
pensamento, dos sentimentos, da consciência emerge, a cada segundo, de
milhares de biliões de interações entre as células cerebrais: a libertação de
substâncias químicas, as alterações nas formas das proteínas e as ondas de
atividade elétrica que percorrem os axónios dos neurónios.
Basta pensar na enormidade do conectoma e multiplicá-la pelo vasto
número de coisas que acontecem a cada segundo, em cada uma das
ligações, para termos ideia da magnitude do problema. Infelizmente para
nós, o cérebro humano não consegue compreender sistemas desta
magnitude. Felizmente para nós, o nosso poder computacional está a
evoluir na direção certa para acabar por nos abrir uma possibilidade: uma
simulação do sistema. O desafio seguinte é não apenas ler o cérebro, mas
sim fazê-lo funcionar.
É precisamente com o objetivo de realizar uma tal simulação que uma
equipa de investigadores da Escola Politécnica Federal de Lausanne
(EPFL), na Suíça, está a trabalhar. O objetivo é desenvolver até 2023 uma
infraestrutura de software e hardware capaz de fazer a simulação completa
de um cérebro humano. O Projeto do Cérebro Humano é uma ambiciosa
missão de investigação que recolhe dados junto de laboratórios de
neurociências de todo o mundo, o que inclui as informações de células
individuais (o respetivo conteúdo e estrutura), desde os dados relativos ao
conectoma até informações acerca dos padrões de atividade em larga
escala de grupos de neurónios. Lentamente, experiência a experiência,
cada nova descoberta acerca do planeta representa mais uma pequena peça
de um gigantesco puzzle. O objetivo do Projeto do Cérebro Humano é
conseguir fazer uma simulação de um cérebro com recurso a neurónios
detalhados, com uma estrutura e um comportamento realistas. Mesmo
com um tão ambicioso objetivo e mais de mil milhões de euros de
financiamento da União Europeia, o cérebro humano continua
completamente fora do nosso alcance. O objetivo atual é construir uma
simulação do cérebro de uma ratazana.

O RITMO DO PROGRESSO TECNOLÓGICO

Em 1965, Gordon Moore, um dos fundadores da gigante informática Intel, fez


uma previsão em relação ao ritmo nos avanços na computação. A “Lei de Moore”
previa que, à medida que os transístores fossem diminuindo de tamanho e ficando
mais precisos, o número que poderia caber num chip de computador duplicaria a
cada dois anos, aumentando exponencialmente a capacidade computacional ao
longo do tempo. A previsão de Moore revelou-se verdadeira durante as décadas
seguintes e tornou-se a epítome do ritmo cada vez mais acelerado do progresso
tecnológico. A Lei de Moore é utilizada pela indústria informática para orientar
o planeamento a longo prazo e para definir objetivos para o desenvolvimento
tecnológico. Uma vez que a lei prevê que a evolução tecnológica aumente
exponencialmente, e não de forma linear, há quem preveja que, ao ritmo atual,
durante o próximo século, registaremos uma evolução equivalente à dos últimos 20
mil anos. Com um ritmo assim, é de esperar que possamos assistir a avanços
radicais na tecnologia de que dependemos.

Estamos apenas no começo da nossa tentativa de mapear e simular um


cérebro humano completo, mas não há motivos teóricos para não
chegarmos lá. Há, todavia, uma questão fundamental: teria uma simulação
funcional do cérebro consciência? Se os detalhes fossem corretamente
captados e simulados, estaríamos a olhar para um ser consciente? Pensaria
e seria autoconsciente?

A CONSCIÊNCIA PRECISA DA MATÉRIA FÍSICA?

Tal como um software de computador pode ser executado em diferentes


tipos de hardware, é possível que o software da mente também possa
correr noutras plataformas. Olhemos para a questão da seguinte forma: e
se os neurónios em si não tiverem nada de especial e for apenas o modo
como comunicam que faz de uma pessoa o que ela é? Esta perspetiva é
conhecida como a hipótese computacional do cérebro. A ideia é que o
importante não são os neurónios, as sinapses e a restante matéria
biológica, mas sim as computações que esses elementos possam
implementar. É possível que o importante seja não aquilo que o cérebro é
fisicamente, mas sim o que ele faz.
A ser verdade, então, em teoria, seria possível executar as operações do
cérebro em qualquer substrato. Desde que as computações sejam feitas da
maneira correta, todos os pensamentos, emoções e complexidades de uma
pessoa deviam surgir como produto de comunicações complexas no novo
material de suporte. Em teoria, seria possível trocar células por circuitos,
ou oxigénio por eletricidade: o suporte não interessa, desde que todas as
partes e peças estivessem ligadas e a interagir da maneira correta. Assim,
poderíamos “correr” uma simulação completamente funcional de uma
pessoa sem um cérebro biológico. Segundo a hipótese computacional,
uma tal simulação seria de facto essa pessoa. A hipótese computacional do
cérebro não passa disso mesmo, uma hipótese que ainda não sabemos se é
verdadeira.

A MICROSCOPIA ELETRÓNICA DE VARRIMENTO E O


CONECTOMA

Os sinais provenientes do ambiente são convertidos em sinais eletroquímicos,


transportados pelas células cerebrais. Este é o primeiro passo através do qual o
cérebro entra em contacto com a informação vinda do mundo exterior ao corpo.
Para traçar o denso emaranhado dos milhões de neurónios interligados entre si é
necessária uma tecnologia especializada, bem como a lâmina mais afiada do
mundo. Uma técnica denominada microscopia eletrónica de varrimento de faces de
um bloco9 gera modelos 3D, de alta resolução, de vias neurais completas a partir de
pequenas fatias de tecido cerebral. É a primeira técnica a produzir imagens 3D do
cérebro com uma resolução nanométrica (um milésimo de milionésimo do metro).
À semelhança de uma máquina de cortar fiambre, uma lâmina de diamante de
alta precisão, montada no interior de um microscópio de varrimento, corta, fatia após
fatia, a partir de um bloco minúsculo de cérebro, produzindo uma série de fatias
ultrafinas. Cada fatia é digitalizada por um microscópio eletrónico. As imagens
obtidas são sobrepostas digitalmente para criar um modelo 3D do bloco original.
Traçando as características de cada camada, surge um modelo do emaranhado
de neurónios que se cruzam e entrelaçam. Dado que, em média, um neurónio pode
ter um comprimento entre 4 e 100 milésimos de milionésimo do metro e 10 mil
ramificações, trata-se de uma tarefa formidável. O desafio de mapear um conectoma
humano completo é algo que se espera que leve várias décadas a concretizar.
Afinal, sempre pode haver algo de especial e por descobrir no wetware
biológico e, nesse caso, estamos presos à biologia com que nascemos. Se,
porém, a hipótese computacional estiver certa, uma mente podia viver
dentro de um computador.
Se vier a ser possível simular uma mente, isso leva-nos a uma questão
diferente: teremos de copiar a maneira biológica tradicional de produzir
essa mente ou será possível criar um tipo diferente de inteligência,
inventada por nós, do zero?

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

Há muito que as pessoas tentam criar máquinas que pensem. Essa linha de
investigação – a inteligência artificial – é seguida desde pelo menos a
década de cinquenta do século passado. Muito embora os pioneiros
transpirassem de otimismo, o problema revelou-se inesperadamente
difícil. Apesar de não tardarmos a ter carros que se conduzem sozinhos, e
de já terem passado duas décadas desde que um computador derrotou um
grande mestre do xadrez, o objetivo de criar uma máquina
verdadeiramente consciente continua por atingir. Quando eu era criança,
esperava que, por esta altura, já tivéssemos robôs a interagir connosco, a
cuidar de nós e a terem conversas inteligentes connosco. O facto de
continuarmos muito distantes dessa realidade diz bem do imenso enigma
que é o funcionamento do cérebro e do longo caminho que ainda temos de
percorrer para decifrar os segredos da mãe natureza.
Uma das mais recentes tentativas de criar uma inteligência artificial
pode ser encontrada na Universidade de Plymouth, em Inglaterra. Chama-
se iCub e é um robô humanoide concebido e desenvolvido para aprender
como uma criança humana. Tradicionalmente, os robôs são pré-
programados com o que têm de saber para realizarem as suas tarefas. Mas,
e se conseguissem desenvolver-se como os bebés humanos, interagindo
com o mundo, imitando e aprendendo através do exemplo? Afinal, os
bebés não vêm ao mundo a saber andar e falar, mas vêm com curiosidade,
prestam atenção e imitam. Os bebés usam o mundo que os rodeia como
um manual escolar para aprenderem pelo exemplo. Não poderia um robô
fazer o mesmo?

CÉREBROS DE RATAZANA

A ratazana teve uma terrível reputação durante grande parte da história da


Humanidade, mas, para a neurociência moderna, a ratazana (e o rato) desempenha
um papel crucial em muitas áreas de investigação. O cérebro da ratazana é maior
do que o do rato, mas ambos partilham semelhanças importantes com o cérebro
humano, em particular a organização do córtex cerebral, a camada exterior que é
tão importante para o pensamento abstrato.
A camada exterior do cérebro humano, o córtex, está dobrada sobre si mesma de
forma a poder caber uma maior quantidade dentro do crânio. Se alisássemos o
córtex de um adulto comum, cobriria 2500 centímetros quadrados (uma toalha de
mesa pequena). O cérebro da ratazana, pelo contrário, é completamente liso.
Apesar das diferenças óbvias no aspeto e no tamanho, há semelhanças
fundamentais a nível celular entre ambos os cérebros.
Ao microscópio, é praticamente impossível distinguir um neurónio de uma
ratazana de um neurónio humano. Ambos os cérebros desenvolvem circuitos muito
semelhantes e passam pelas mesmas fases de desenvolvimento. As ratazanas
podem ser treinadas para realizar tarefas cognitivas – desde distinguir cheiros até
encontrar a saída de um labirinto – permitindo aos investigadores correlacionar os
detalhes da atividade neural desses animais com tarefas específicas.

O iCub é mais ou menos do tamanho de uma criança de dois anos. Tem


olhos, ouvidos e sensores táteis, que lhe permitem interagir e aprender
com o mundo.
Se mostrarmos um novo objeto ao iCub e lhe dermos um nome (“isto é
uma bola vermelha”), o programa de computador correlaciona a imagem
visual do objeto com a etiqueta verbal. Por isso, da próxima vez que lhe
mostrarem a bola vermelha e lhe perguntarem o que é, ele vai responder:
“Isto é uma bola vermelha.” O objetivo é que o robô acrescente cada
interação à sua base de conhecimento. Fazendo alterações e ligações no
seu código interno, ele desenvolve um repertório de respostas adequadas.
Ele engana-se muitas vezes. Se lhe mostrarmos e dissermos o nome de
vários objetos e se depois lhe pedirmos que diga o nome deles todos,
vamos receber várias respostas erradas e muitos “não sei”. Isso faz parte
do processo. E também revela a grande dificuldade de criar inteligência.
Eu passei bastante tempo a interagir com o iCub, e é um projeto
impressionante. Mas, quanto mais tempo passava com ele, mais evidente
se tornava a falta de uma mente por detrás do programa. Apesar dos
grandes olhos, da voz simpática e dos movimentos infantis, tornou-se
claro que o iCub não tem consciência, sendo regido por linhas de código e
não por linhas de pensamento. E, apesar de estarmos ainda a dar os
primeiros passos na inteligência artificial (IA), é impossível não ficar a
matutar numa velha e profunda questão filosófica: poderão as linhas do
código de programação alguma vez chegar a pensar? Apesar de o iCub
conseguir dizer “bola vermelha”, será que tem a sensação do vermelho ou
a ideia de esfericidade? Os computadores só fazem aquilo que estão
programados para fazer ou conseguirão de facto ter experiências
interiores?

CONSEGUIRÁ UM COMPUTADOR PENSAR?

Poderá alguma vez um computador ser programado para ter consciência,


para ter uma mente? Na década de 1980, o filósofo John Searle criou uma
experiência mental que vai diretamente ao cerne desta questão. Chamou-
lhe o Argumento da Sala Chinesa.
A experiência funciona assim: eu estou fechado numa sala, e passam-me
perguntas através de uma pequena abertura, mas essas mensagens só estão
escritas em chinês. Eu não falo chinês. Não faço a mínima ideia do que
está escrito naqueles papéis. Contudo, na sala tenho uma biblioteca cujos
livros têm instruções passo a passo que me dizem exatamente o que fazer
com aqueles símbolos. Olho para os conjuntos de símbolos e sigo
simplesmente os passos do livro, que me dizem que símbolos chineses
devo copiar para responder. Escrevo-os no papel e devolvo-o pela
abertura.
Quando a falante de chinês recebe a minha resposta, a mensagem faz
sentido para ela. Parece que quem está na sala está a responder
perfeitamente às perguntas dela, pelo que parece evidente que essa pessoa
deve perceber chinês. Enganei-a, é claro, porque só estou a seguir um
conjunto de instruções, sem ter qualquer conhecimento do que está a
acontecer. Com tempo suficiente e com um conjunto suficientemente
grande de instruções, consigo responder a praticamente qualquer pergunta
que me façam em chinês. Mas eu, o operador, não percebo chinês. Passo o
dia a manipular os símbolos, mas não faço ideia do significado que eles
têm.
Searle defendeu que é precisamente isto o que acontece dentro de um
computador. Por mais inteligente que o programa como o iCub possa
parecer, ele limita-se a seguir conjuntos de instruções para cuspir
respostas, a manipular símbolos sem compreender realmente o que está a
fazer.
O Google é um exemplo deste princípio. Quando fazemos uma pesquisa
no Google, ele não percebe a nossa pergunta nem a resposta que nos dá,
pois limita-se a fazer passar zeros e uns por portas lógicas e a responder-
nos com zeros e uns. Com um programa incrível como o Google Tradutor,
posso dizer uma frase em suaíli, e ele dá-me a tradução em húngaro. Mas
é tudo algorítmico. É uma mera manipulação de símbolos, tal e qual a
pessoa dentro da Sala Chinesa. O Google Tradutor não percebe nada da
frase, e não há nada que tenha qualquer significado para ele.
O Argumento da Sala Chinesa sugere que desenvolvemos computadores
que imitam a inteligência humana, mas que não compreendem
verdadeiramente o que estão a falar; nada do que fazem tem significado
para eles. Searle utilizou esta experiência mental para defender que há
qualquer coisa no cérebro humano que não pode ser explicada através de
uma simples analogia com os computadores digitais. Há um fosso entre
símbolos que não têm significado e a nossa experiência consciente.
A discussão acerca da interpretação do Argumento da Sala Chinesa
prossegue, mas seja qual for a leitura que fizermos, ela põe a nu a
dificuldade e o mistério de como poderão partes e peças físicas igualar a
nossa experiência de estarmos vivos neste mundo. A cada tentativa de
simulação ou criação de uma inteligência semelhante à humana, somos
confrontados com uma questão central da neurociência que permanece
sem resposta: como é que uma coisa tão rica como a sensação subjetiva de
ser eu – o aguilhão da dor, a vermelhidão do vermelho, o sabor da toranja
– nasce das operações executadas por milhares de milhões de células
cerebrais? Afinal, cada célula cerebral é apenas uma célula que segue
regras locais, executa as suas operações básicas. Por si só, não consegue
fazer muito. Então, como é que vários milhões dessas células juntas
resultam na experiência subjetiva de ser eu?

MAIOR DO QUE A SOMA DAS PARTES

Em 1714, Gottfried Wilhelm Leibniz defendeu que a matéria por si só


nunca poderia produzir uma mente. Leibniz foi um filósofo, matemático e
cientista alemão a quem por vezes apelidam de “o último homem que
sabia tudo”. Para Leibniz, o tecido cerebral por si só não podia ter uma
vida interior. Ele sugeriu uma experiência mental, hoje em dia conhecida
como o Moinho de Leibniz. Imaginemos um grande moinho. Se
percorrêssemos o seu interior, veríamos as rodas dentadas, as bielas e as
alavancas todas em movimento, mas seria absurdo sugerir que o moinho
está a pensar, a sentir ou a ter perceção. Como poderia um moinho
apaixonar-se ou apreciar um pôr-do-sol? Um moinho é apenas feito de
partes e peças. E o mesmo se passa com o cérebro, afirmou Leibniz. Se
conseguíssemos expandir o cérebro para o tamanho de um moinho e
dessemos uma volta lá por dentro, só veríamos partes e peças. Nada
corresponderia de forma óbvia à perceção. Tudo estaria simplesmente a
agir sobre outra coisa qualquer. Se registássemos todas as interações, não
seria óbvio onde residem o pensamento, os sentimentos e a perceção.
Quando olhamos para dentro do cérebro, vemos neurónios, sinapses,
transmissores químicos e atividade elétrica. Vemos vários milhões de
células ativas, a tagarelarem umas com as outras. Onde estamos nós?
Onde estão os nossos pensamentos? As nossas emoções? A sensação de
felicidade, a cor índigo? Como é possível sermos feitos de mera matéria?
Para Leibniz, a mente parecia inexplicável através de causas mecânicas.
Será possível Leibniz ter negligenciado alguma coisa no seu argumento?
Olhando para as partes e peças individuais de um cérebro, talvez ele não
tenha reparado num truque. Talvez a ideia de percorrer o interior do
moinho não seja a maneira certa de abordar a questão da consciência.

A CONSCIÊNCIA COMO UMA PROPRIEDADE EMERGENTE

Para compreender a consciência humana, talvez tenhamos de pensar não


em termos das partes e peças do cérebro, mas antes no modo como esses
componentes interagem. Se quisermos ver como simples peças podem dar
origem a algo maior do que elas próprias, basta ir ao formigueiro mais
próximo.
Com milhões de indivíduos numa colónia, as formigas cortadeiras
cultivam o seu próprio alimento. Tal como os seres humanos, são
agricultoras. Algumas das formigas saem do ninho para procurar
vegetação viçosa e, quando a encontram, cortam com os dentes grandes
pedaços que transportam para o ninho. No entanto, as formigas não
comem esses pedaços. Em vez disso, formigas obreiras mais pequenas
pegam neles e utilizam-nos como fertilizante para cultivar fungos em
grandes “hortas” subterrâneas. As formigas alimentam os fungos, e estes
florescem, formando corpos de frutificação de que as formigas
posteriormente se alimentam. (A relação tornou-se tão simbiótica, que os
fungos já não se conseguem reproduzir sozinhos, dependendo
inteiramente das formigas para se propagarem.) Recorrendo a esta bem-
sucedida técnica de cultivo, as formigas constroem ninhos subterrâneos
enormes, que podem estender-se por centenas de metros quadrados. Tal
como os seres humanos, aperfeiçoaram uma civilização agrícola.
Eis a parte mais importante: apesar de a colónia ser como um
superorganismo que alcança feitos extraordinários, o comportamento
individual de cada formiga é muito simples. Ela limita-se a seguir as
regras locais. A rainha não dá ordens, não coordena o comportamento de
cima para baixo. Pelo contrário, cada formiga reage a sinais químicos
locais provenientes das outras formigas, larvas, intrusos, alimentos,
resíduos ou folhas. Cada formiga é uma modesta unidade autónoma cujas
reações dependem exclusivamente do ambiente local e de regras
geneticamente codificadas naquela espécie de formiga.
Apesar da falta de tomada de decisão centralizada, as colónias de
formigas cortadeiras apresentam o que parece ser um comportamento
extraordinariamente sofisticado. (Além da agricultura, também realizam
feitos como descobrir a maior distância de todas as entradas da colónia
para depositarem os cadáveres, um sofisticado problema de geometria.)
A grande lição a tirar é que o comportamento complexo da colónia não
resulta da complexidade dos indivíduos. Cada formiga não sabe que faz
parte de uma civilização bem-sucedida, limitando-se a executar os seus
pequenos programas simples.
Quando se reúne uma quantidade suficiente de formigas, surge um
superorganismo com propriedades coletivas que são mais sofisticadas do
que as respetivas peças básicas. Este fenómeno, conhecido como
“emergência”, é o que acontece quando unidades simples interagem das
maneiras certas e surge algo maior.
A chave é a interação entre as formigas. E o mesmo se passa com o
cérebro. Um neurónio é simplesmente uma célula especializada, tal como
as outras células do nosso corpo, mas com algumas especializações que
lhe permitem desenvolver processos e propagar sinais elétricos. À
semelhança de uma formiga, cada célula cerebral limita-se a executar o
seu programa local a vida inteira, conduzindo sinais elétricos ao longo da
membrana, «cuspindo» neurotransmissores quando chega o momento e
«absorvendo» os neurotransmissores «cuspidos» pelas outras células. Só
isso. O neurónio vive na escuridão e passa a vida integrado numa rede de
outras células, respondendo simplesmente aos sinais. Não sabe se está
relacionado com o movimento dos nossos olhos para lermos Shakespeare
ou das nossas mãos para tocarmos Beethoven. Não sabe quem somos.
Apesar de os nossos objetivos, intenções e capacidades dependerem
completamente da existência desses pequenos neurónios, eles vivem numa
escala menor, sem consciência da coisa que construíram juntos.
Mas se um número suficiente dessas células cerebrais básicas se juntar e
interagir das maneiras certas, surge a mente.
Podemos encontrar sistemas com propriedades emergentes um pouco
por todo o lado. Nenhum pedaço de metal de um avião tem a capacidade
de voar, mas quando organizamos as peças da maneira certa, surge o voo.
As partes e peças de um sistema podem ser bastante simples
individualmente. O segredo está na respetiva interação. Em muitos casos,
as próprias partes são substituíveis.

O QUE É PRECISO PARA HAVER CONSCIÊNCIA?

Apesar de os detalhes teóricos não terem sido ainda desvendados, a mente


parece resultar da interação dos biliões de partes e peças do cérebro, o que
levanta uma questão fundamental: poderá a mente resultar de uma coisa
que tenha muitas peças que interagem?
Por exemplo, poderá uma cidade ser consciente? Ela é, afinal,
construída pelas interações entre os elementos. Basta pensar nos sinais que
percorrem uma cidade: fios telefónicos, linhas de fibra ótica, esgotos por
onde correm resíduos, todos os apertos de mão entre humanos, todos os
semáforos, e por aí fora. A escala de interação numa cidade está ao nível
da que ocorre no cérebro humano, mas é evidente que seria muito difícil
saber se a cidade é consciente. Como poderia ela dizer-nos isso? Como
poderíamos perguntar-lhe?
Para responder a uma pergunta como esta, temos de fazer outra, mais
profunda: para uma rede ter consciência, precisará de mais do que um
determinado número de peças, precisará de uma estrutura muito particular
para as interações?
O Professor Giulio Tononi, da Universidade de Wisconsin, nos EUA,
está a trabalhar para responder precisamente a esta pergunta e propôs uma
definição quantitativa da consciência. A interação entre as partes e peças
não basta, segundo ele, sendo, pelo contrário, necessária uma certa
organização subjacente a essa interação.
Com o objetivo de investigar a consciência num ambiente laboratorial,
Tononi recorre à estimulação magnética transcraniana (EMT) para
comparar a atividade do cérebro quando está desperto e quando está num
sono profundo (vimos no Capítulo 1 que é quando a nossa consciência
desaparece). Introduzindo um pico de corrente elétrica, a equipa do
Professor Tononi consegue então seguir o modo como a atividade se
dissemina.
Quando o indivíduo está acordado e consciente, um padrão complexo de
atividade neural espalha-se a partir do ponto de incidência do impulso da
EMT. Ondas persistentes de atividade estendem-se até várias áreas
corticais, revelando uma conetividade generalizada em toda a rede.
Quando a pessoa está num sono profundo, pelo contrário, o mesmo
impulso da EMT estimula apenas uma área muito localizada, e a atividade
dissipa-se rapidamente. A rede perdeu grande parte da conetividade. Esse
mesmo resultado é observado quando a pessoa está em coma: a atividade
dissemina-se muito pouco, mas quando a pessoa recupera a consciência ao
cabo de várias semanas, a atividade espalha-se com maior amplitude.
O Professor Tononi acredita que isso se deve ao facto de, quando
estamos acordados e conscientes, haver uma comunicação generalizada
entre diferentes áreas corticais; já o estado inconsciente do sono é
caracterizado por uma falta de comunicação entre as várias áreas. Nesse
âmbito, Tononi sugere que um sistema consciente exige um equilíbrio
perfeito suficientemente complexo para representar estados muito
diferentes (a isto damos o nome de diferenciação) e conetividade
suficiente para que as partes mais distantes da rede possam estar em
estreita comunicação umas com as outras (a que chamamos integração).
Neste contexto, é possível quantificar o equilíbrio da diferenciação e da
integração, e Tononi defende que apenas os sistemas que se encontrem
dentro do intervalo certo poderão ter consciência.

CONSCIÊNCIA E NEUROCIÊNCIA
Vamos pensar na experiência privada e subjetiva, no espetáculo que só acontece
dentro da cabeça de alguém. Por exemplo, quando trinco um pêssego enquanto
admiro um pôr-do-sol, é impossível para outra pessoa conhecer a experiência exata
que estou a viver dentro de mim, já que só podemos tentar adivinhar com base em
experiências por que já passámos. A minha experiência consciente é só minha, e a
da outra pessoa é só dela. Como é então possível estudá-la através do método
científico?
Nas últimas décadas, os investigadores procuraram trazer luz sobre os
“correlatos neurais” da consciência, ou seja, os padrões exatos de atividade cerebral
que estão presentes sempre que uma pessoa está a ter uma experiência particular e
só enquanto dura essa experiência.
Observemos a imagem ambígua de um pato/coelho. Tal como a imagem da
jovem/idosa do Capítulo 4, o que esta tem de interessante é o facto de só
conseguirmos ver uma interpretação de cada vez, nunca ambas em simultâneo. Por
isso, nos momentos em que estamos a ter a experiência de um coelho, o que define
exatamente a nossa atividade cerebral? Quando mudamos para o pato, o que é que
o nosso cérebro está a fazer de maneira diferente? Nada mudou na página, pelo
que a única coisa que está a mudar devem ser os detalhes da atividade cerebral
que produz a nossa experiência consciente.

Se esta teoria estiver certa, ela permitir-nos-á fazer uma avaliação não
invasiva do nível de consciência em doentes em coma. E também poderá
dar-nos os meios para sabermos se os sistemas inanimados têm
consciência. Logo, seria possível responder à questão de a cidade ter ou
não consciência, dependendo apenas do facto de o fluxo de informação
estar organizado da maneira correta, ou seja, com a quantidade certa de
diferenciação e integração.
A teoria do Professor Tononi é compatível com a ideia de que a
consciência humana pode libertar-se das suas origens biológicas. Na
opinião dele, apesar de a consciência ter evoluído numa determinada
direção que viria a resultar num cérebro, não tem de ter uma base
exclusivamente orgânica. Ela pode ser facilmente feita de silicone, desde
que as interações se organizem da forma correta.

O UPLOAD DA CONSCIÊNCIA

Se o software do cérebro é para a mente o elemento crítico – e não os


detalhes do hardware –, então, em teoria, poderíamos deixar o substrato
do nosso corpo. Com computadores suficientemente potentes que
simulassem as interações do nosso cérebro, poderíamos fazer um upload10
de nós próprios. Poderíamos existir digitalmente, correndo como uma
simulação, como qualquer outro programa de computador, libertando-nos
do wetware biológico que esteve na nossa origem e tornando-nos seres
não biológicos. Esse seria o salto mais significativo da história da nossa
espécie, lançando-nos numa era de transhumanismo.
Imagine o que seria deixar o corpo para trás e iniciar uma nova
existência num mundo simulado. A nossa existência digital podia ter a
aparência de qualquer tipo de vida que quiséssemos. Os programadores
podiam criar um mundo virtual à nossa vontade, mundos em que
podíamos voar, ou viver debaixo de água, ou sentir os ventos de outro
planeta. Podíamos correr os nossos cérebros virtuais à velocidade que
quiséssemos, pelo que a nossa mente podia prolongar-se por períodos de
tempo imensos ou transformar segundos de computação em milhões de
anos de experiência.
Uma dificuldade técnica desse upload é a necessidade de o cérebro
simulado ser capaz de se modificar a si mesmo. Iríamos precisar não
apenas das partes e peças, mas também do lado físico das interações
constantes, como a atividade dos fatores de transcrição que viajam até ao
núcleo e dão origem à expressão genética, as mudanças dinâmicas da
localização e da força das sinapses, e por aí fora. A menos que as nossas
experiências simuladas modificassem a estrutura do cérebro simulado,
seríamos incapazes de formar novas memórias e não teríamos a noção da
passagem do tempo. Em tais circunstâncias, a imortalidade faria algum
sentido?
Se o upload vier um dia a tornar-se realidade, então será possível
alcançar outros sistemas solares. Há pelo menos cem mil milhões de
outras galáxias no nosso universo, cada uma com centenas de milhões de
estrelas. Já identificámos milhares de exoplanetas a orbitarem essas
estrelas, alguns dos quais com condições semelhantes às da Terra. A
dificuldade está na impossibilidade de os nossos atuais corpos, de carne e
osso, conseguirem alguma vez chegar a esses exoplanetas, pois não se
vislumbra qualquer forma de conseguirmos percorrer tais distâncias no
espaço e no tempo. No entanto, uma vez que é possível pôr uma
simulação em modo de pausa, mandá-la para o espaço e reiniciá-la uns
milhares de anos mais tarde, quando chegasse a um planeta, a consciência
ia pensar que tinha saído da Terra uns segundos antes e aterrado num novo
planeta. O upload seria o equivalente à realização do sonho dos físicos de
encontrarem um “buraco de verme”11 que permitisse ir de um lado para
outro do universo num instante subjetivo.

UPLOAD DA MENTE: CONTINUAMOS A SER NÓS PRÓPRIOS?

Se a parte importante que faz de nós aquilo que somos são os algoritmos
biológicos e não a matéria física, então é possível que consigamos um dia copiar o
nosso cérebro, fazer o seu upload e viver eternamente em sílica. Mas há aqui uma
questão muito importante: nessa altura seremos realmente nós próprios? Não
propriamente. A cópia que transferimos tem todas as nossas memórias e acredita
que eras tu que estavas ali, no teu corpo, ao lado do computador. E agora a parte
mais estranha: se morrermos e ligarem a nossa simulação um segundo depois,
seria uma transferência. Não seria diferente do teletransporte do Caminho das
Estrelas (“beam me up”), em que uma pessoa é desintegrada e uma nova versão da
mesma é reconstituída momentos depois. O upload pode não ser muito diferente do
que nos acontece todas as noites quando adormecemos: experimentamos uma
pequena morte da nossa consciência, e a pessoa que acorda na nossa almofada na
manhã seguinte herda todas as nossas memórias e acredita que somos nós.

JÁ ESTAMOS A VIVER NUMA SIMULAÇÃO?

Talvez muitos escolhessem como simulação algo muito parecido com a


vida que atualmente levam na Terra, e esse simples pensamento já levou
vários filósofos a questionarem-se se já estaremos a viver numa
simulação. Apesar de parecer uma ideia fantasiosa, já sabemos como é
fácil sermos levados a aceitar a nossa realidade: adormecemos todas as
noites e temos sonhos bizarros e, enquanto estamos nesses mundos,
acreditamos piamente neles.
As questões acerca da nossa realidade não são novas. Há dois mil e
trezentos anos, o filósofo chinês Chuang Tzu sonhou que era uma
borboleta. Enquanto caminhava, refletiu sobre a seguinte questão: como
posso saber se era o Chuang Tzu a sonhar que era uma borboleta ou se,
pelo contrário, neste momento, sou uma borboleta a sonhar que sou um
homem chamado Chuang Tzu?
O filósofo francês René Descartes debateu-se com uma versão diferente
do mesmo problema, questionando-se sobre como seria possível saber se o
que experienciamos é a verdadeira realidade. Para clarificar o problema,
imaginou uma experiência mental: como poderei saber se não sou um
cérebro dentro de uma cuba? Talvez alguém esteja a estimular esse
cérebro da maneira certa para me fazer crer que estou aqui, a tocar no
chão, a ver estas pessoas e a ouvir estes sons.
Descartes concluiu que poderia não haver forma de saber. Mas também
percebeu outra coisa: há uma parte de mim no centro da questão, a tentar
perceber tudo isto. Seja eu um cérebro dentro de uma cuba ou não, estou a
ponderar o problema. Estou a pensar nisto, logo existo.

O FUTURO

Nos próximos anos, iremos descobrir mais coisas acerca do cérebro


humano do que as que conseguimos descrever através das nossas teorias e
enquadramentos atuais. Por enquanto, estamos rodeados de mistérios,
muitos que reconhecemos e muitos outros que ainda não registámos.
Enquanto campo de investigação, temos à nossa frente um vasto terreno
por desbravar. Como sempre sucede na ciência, o mais importante é fazer
as experiências e avaliar os resultados. A mãe natureza irá então ensinar-
nos quais são as abordagens que não passam de becos sem saída e quais
são as que nos permitem avançar na compreensão das matrizes da nossa
própria mente.
Só há uma coisa certa: a nossa espécie está apenas no começo de algo, e
ainda não sabemos exatamente o que é. Estamos num momento sem
precedentes na História, um momento em que a neurociência e a
tecnologia estão a evoluir a par. O que acontece nessa interseção está
prestes a alterar aquilo que somos.
Durante centenas de gerações, os seres humanos repetiram o mesmo
ciclo de vida: nascemos, controlamos um corpo frágil, desfrutamos de um
pequeno período de realidade sensorial e depois morremos.
A ciência pode dar-nos as ferramentas necessárias para transcendermos
essa história evolutiva. Já conseguimos alterar o nosso próprio hardware,
e consequentemente o nosso cérebro já não tem de ser igual ao que
herdámos. Conseguimos habitar novos tipos de realidades sensoriais e
novos tipos de corpos. Poderemos mesmo acabar por alterar
completamente a nossa aparência física.
A nossa espécie está ainda a descobrir as ferramentas para moldar o seu
próprio destino.
Aquilo em que nos vamos tornar depende de nós.

7 Ligar e usar, numa tradução literal. Dispositivo que basta ligar ao computador e começar a usar e
não é preciso configurar. (N. do E.)

8 A palavra que resulta das iniciais VEST significa colete, conferindo assim um duplo sentido ao
nome do equipamento. (N. do T.)

9 No original, serial block-face scanning electron microscopy. (N do R.)

10 Transferir ficheiros do nosso computador para outro computador/servidor (download é a ação


contrária, transferir ou descarregar ficheiros de um outro computador para o nosso. Neste caso
transferir “o nosso cérebro” para um computador. (N. do E.)

11 A teoria dos “buracos de verme ou de minhoca”, também conhecida como Pontes de Einstein-
Rosen, pressupõe a possibilidade de se realizarem viagens no espaço-tempo através de uma espécie
de portais, permitindo passar do passado para o futuro ou de um universo para outro. (N. do E.)
AGRADECIMENTOS

Tal como a magia do cérebro nasce da interação de muitas partes, também


o livro e a série televisiva O Cérebro nasceram da colaboração entre
muitas pessoas.
Jennifer Beamish foi um dos pilares do projeto: incansável a gerir
pessoas, a dar voltas à cabeça para coordenar o desenvolvimento dos
conteúdos da série e a lidar com as várias personalidades diferentes, tudo
ao mesmo tempo. Foi insubstituível, sem ela este projeto, pura e
simplesmente, nunca teria existido. O segundo pilar do projeto foi Justine
Kershaw. A perícia e a coragem com que idealiza grandes projetos, gere
uma empresa (a Blink Films) e coordena imensa gente é uma inspiração
constante para mim. Durante as filmagens da série, tivemos o prazer de
trabalhar com uma equipa de realizadores extraordinariamente talentosos:
Toby Trackman, Nic Stacey, Julian Jones, Cat Gale e Johanna Gibbon.
Não deixo de me surpreender com a perspicácia deles para as alterações
nos padrões de emoção, cor, luminosidade, definição e tonalidade.
Juntos, tivemos o prazer de trabalhar com os conhecedores do mundo
visual, os diretores de fotografia Duane McClune, Andy Jackson e Mark
Schwartzbard. O estímulo diário para fazer a série foi dado pelos
engenhosos e energéticos assistentes de produção Alice Smith, Chris
Baron e Emma Pound.
Para este livro, tive o prazer de trabalhar com Katy Follain e Jamie
Byng, da Canongate Books, consistentemente uma das editoras mais
corajosas e inspiradoras do mundo. É igualmente uma honra e um prazer
trabalhar com Dan Frank, o meu editor americano da Pantheon Books, que
tem tanto de amigo como de conselheiro.
Sinto-me infinitamente grato aos meus pais pela inspiração que são para
mim: o meu pai é psiquiatra, a minha mãe, professora de biologia, e
ambos adoram ensinar e aprender. Incentivaram sempre o meu percurso de
investigador e comunicador. Apesar de, na minha infância, quase nunca
vermos televisão, fizeram questão de me pôr a ver a série Cosmos, de Carl
Sagan. Este projeto tem raízes profundas que remontam a esses serões.
Quero agradecer aos estudantes e pós-doutorados do meu laboratório de
neurociência por conseguirem lidar com a minha agenda caótica durante
as filmagens da série e a escrita do livro.
Deixo o mais importante para o fim, o agradecimento à minha bela
esposa Sarah, por me apoiar, encorajar, aturar e aguentar o barco durante
este projeto. Sou um homem cheio de sorte por ela acreditar tanto como eu
na importância deste trabalho.
NOTAS

CAPÍTULO 1 – QUEM SOU EU?


O cérebro adolescente e o aumento da autoconsciência
Somerville, L. H., Jones, RM, Ruberry, E. J., Dyke, J. P., Glover, G. & Casey, B. J. (2013) “The
medial prefrontal cortex and the emergence of self-conscious emotion in adolescence.”
Psychological Science, 24(8), 1554-1562.
É de salientar que os autores também encontraram ligações mais fortes entre o córtex pré-frontal
medial e outra região do cérebro conhecida como corpo estriado. O corpo estriado e a respetiva
rede de ligações estão relacionados com a transformação de motivações em ações. Os autores
sugerem que essa conetividade poderá explicar que considerações sociais têm mais influência no
comportamento dos adolescentes e porque são estes mais propensos a correr riscos na presença
dos pares.
Bjork, J. M., Knutson, B., Fong, G.W., Caggiano, D. M., Bennett, S. M. & Hommer, D. W. (2004)
“Incentive-elicited brain activation in adolescents: similarities and differences from young adults.”
The Journal of Neuroscience, 24(8), 1793-1802.
Spear, L. P. (2000) “The adolescent brain and age-related behavioral manifestations.” Neuroscience
and Biobehavioral Reviews, 24(4), 417-463.
Heatherton, T. F. (2011) “Neuroscience of self and self-regulation.” Annual Review of Psychology,
62, 363-390.
Os taxistas e O Conhecimento
Maguire, E. A., Gadian, D. G., Johnsrude, I. S., Good, C. D., Ashburner, J., Frackowiak, R. S. &
Frith, C. D. (2000) “Navigation-related structural change in the hippocampi of taxi drivers.”
Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, 97(8), 4398-
4403.
Número de células do cérebro
É também de salientar que existe um número igual de neurónios e células gliais, cerca de 86 mil
milhões de cada, em todo o cérebro humano.
Azevedo, F. A. C., Carvalho, L. R. B., Grinberg, L. T., Farfel, J. M., Ferretti, R. E. L., Leite, R. E.
P. & Herculano-Houzel, S (2009) “Equal numbers of neuronal and nonneuronal cells make the
human brain an isometrically scaled-up primate brain.” The Journal of Comparative Neurology,
513(5), 532-541.
As estimativas sobre o número de ligações (as sinapses) variam imenso, mas mil biliões é um valor
aproximado que parece razoável, se tivermos em conta os quase 100 mil milhões de neurónios com
cerca de dez mil ligações cada. Alguns tipos de neurónios possuem menos sinapses, ao passo que
outros (as células de Purkinje) têm muito mais, cerca de 200 mil sinapses cada.
Ver também a compilação enciclopédica de números em “Brain Facts and Figures”, de Eric
Chudler: faculty.washington.edu/chudler/facts.html.
Os músicos têm melhor memória
Chan, A. S., Ho, Y. C. & Cheung, M. C. (1998) “Music training improves verbal memory.” Nature,
396(6707).
Jakobson, L. S,. Lewycky, S. T., Kilgour, A. R. & Stoesz, B. M. (2008) “Memory for verbal and
visual material in highly trained musicians.” Music Perception, 26(1), 41-55.
O cérebro de Einstein e o símbolo Ómega
Falk, D. (2009) “New information about Albert Einstein’s Brain.” Frontiers in Evolutionary
Neuroscience, 1.
Ver também Bangert, M. & Schlaug, G. (2006) “Specialization of the specialized in features of
external human brain morphology.” The European Journal of Neuroscience, 24(6), 1832-1834.
Memória do futuro
Schacter, D. L., Addis, D. R. & Buckner, R.L. (2007) “Remembering the past to imagine the future:
the prospective brain.” Nature Reviews Neuroscience, 8(9), 657-661.
Corkin, S. (2013) Permanent Present Tense: The Unforgettable Life Of The Amnesic Patient. Basic
Books.
O estudo das freiras
Wilson, R. S. et al. “Participation in cognitively stimulating activities and risk of incident
Alzheimer disease.” Jama, 287.6 (2002), 742-748.
Bennett, D. A. et al. “Overview and findings from the religious orders study.” Current Alzheimer
Research, 9.6 (2012): 628.
Nas amostras das autópsias, os investigadores descobriram que metade das pessoas que não
tinham problemas cognitivos apresentava sinais de patologias no cérebro, e um terço estava no
limiar patológico da doença de Alzheimer. Por outras palavras, encontraram sinais generalizados
de doença nos cérebros dos falecidos, mas essas patologias eram responsáveis por apenas cerca de
metade das probabilidades de declínio cognitivo do indivíduo. Para saber mais sobre o Estudo das
Ordens Religiosas, ver www.rush.edu/services-treatments/alzheimers-disease-center/religious-
orders-study
O problema corpo/mente
Descartes, R. (2008) Meditations on First Philosophy (tradução de Michael Moriarty em 1641 ed.).
Oxford University Press.

CAPÍTULO 2 – O QUE É A REALIDADE?


Ilusões visuais
Eagleman, D. M. (2001) “Visual illusions and neurobiology.” Nature Reviews Neuroscience, 2(12),
920-926.
Óculos prismáticos
Brewer, A. A., Barton, B. & Lin, L. (2012) “Functional plasticity in human parietal visual field
map clusters: adapting to reversed visual input.” Journal of Vision, 12(9), 1398.
É de salientar que, no final das experiências, depois de tirarem os óculos, os voluntários precisam
de um dia ou dois para recuperarem a proficiência visual, enquanto o cérebro volta ao estado
original.
Configurar o cérebro através da interação com o mundo
Held, R. & Hein, A (1963) “Movement-produced stimulation in the development of visually
guided behavior.” Journal of Comparative and Physiological Psychology, 56(5), 872-876.
Sincronizar o tempo dos sinais
Eagleman, D. M. (2008) “Human time perception and its illusions.” Current Opinion in
Neurobiology. 18(2), 131-136.
Stetson C., Cui, X., Montague, P. R. & Eagleman, D. M. (2006) “Motor-sensory recalibration leads
to an illusory reversal of action and sensation.” Neuron, 51(5), 651-659.
Parsons, B, Novich S.D. & Eagleman DM (2013) “Motor-sensory recalibration modulates
perceived simultaneity of cross-modal events.” Frontiers in Psychology, 4: 46.
A ilusão da máscara oca
Gregory, Richard (1970) The Intelligent Eye. London: Weidenfeld & Nicolson.
Króliczak, G., Heard, P., Goodale, M.A. & Gregory, R.L. (2006) “Dissociation of perception and
action unmasked by the hollow-face illusion.” Brain Res., 1080(1): 9-16.
Em jeito de nota marginal, as pessoas que sofrem de esquizofrenia são menos suscetíveis a verem a
ilusão da máscara oca:
Keane, B.P., Silverstein, S.M., Wang, Y. & Papathomas, TV (2013) “Reduced depth inversion
illusions in schizophrenia are state-specific and occur for multiple object types and viewing
conditions.” J. Abnorm. Psychol., 122(2): 506-512.
Sinestesia
Cytowic, R. & Eagleman, D. M (2009) Wednesday is Indigo Blue: Discovering the Brain of
Synesthesia. Cambridge, M. A.: MIT Press.
Witthoft N., Winawer J., Eagleman D. M. (2015) “Prevalence of learned grapheme-color pairings
in a large online sample of synesthetes.” PLoS ONE, 10(3), e0118996.
Tomson, S. N., Narayan, M., Allen, G.I. & Eagleman D. M. (2013) “Neural networks of colored
sequence synesthesia.” Journal of Neuroscience, 33(35), 14098-14106.
Eagleman, D. M., Kagan, A. D., Nelson, S. N., Sagaram, D. & Sarma, A. K. (2007) “A
standardized test battery for the study of synesthesia.” Journal of Neuroscience Methods, 159, 139-
45.
O tempo distorcido
Stetson, C., Fiesta, M. & Eagleman, D. M. (2007) “Does time really slow down during a
frightening event?” PloS One, 2(12), e1295.

CAPÍTULO 3 – QUEM COMANDA?


O poder do cérebro inconsciente
Eagleman, D. M. (2011) Incognito: The Secret Lives of the Brain. Pantheon.
Alguns dos conceitos que optei por incluir em O Cérebro já faziam parte do material utilizado em
Incógnito. Entre eles, os casos de Mike May, Charles Whitman e Ken Parks, bem como a
experiência de acompanhamento do olhar de Yarbus, o dilema do elétrico, a crise hipotecária e o
pacto de Ulisses. Enquanto criava o esqueleto para este projeto, considerei esses pontos de
contacto toleráveis, em parte porque os temas são abordados de maneira diferente e
frequentemente para objetivos distintos.
Olhos dilatados e atratividade
Hess, E. H. (1975) “The role of pupil size in communication,” Scientific American, 233(5), 110-
112.
O estado de fluxo
Kotler, S. (2014) The Rise of Superman: Decoding the Science of Ultimate Human Performance.
Houghton Mifflin Harcourt.
Influências subconscientes na tomada de decisão
Lobel, T (2014) Sensation: The New Science of Physical Intelligence. Simon & Schuster.
Williams, L. E. & Bargh, JA (2008) “Experiencing physical warmth promotes interpersonal
warmth.” Science, 322(5901), 606-607.
Pelham, B. W., Mirenberg, MC & Jones, J. T. (2002) “Why Susie sells seashells by the seashore:
implicit egotism and major life decisions,” Journal of Personality and Social Psychology, 82, 469-
487.

CAPÍTULO 4 – COMO DECIDO?


A tomada de decisão
Montague, R. (2007) Your Brain is (Almost) Perfect: How We Make Decisions. Plume.
Coligações de neurónios
Crick, F. & Koch, C. (2003) “A framework for consciousness.” Nature Neuroscience, 6(2), 119-
126.
O dilema do elétrico
Foot, P. (1967) “The problem of abortion and the doctrine of the double effect.” Reimpresso em
Virtues and Vices and Other Essays in Moral Philosophy (1978). Blackwell.
Greene, JD, Sommerville, RB, Nystrom, LE, Darley, J. M. & Cohen, J. D. (2001) “An fMRI
investigation of emotional engagement in moral judgment.” Science, 293(5537), 2105-2108.
É de salientar que as emoções são respostas físicas mensuráveis provocadas por coisas que
acontecem. Os sentimentos, por seu turno, são as experiências subjetivas que, por vezes,
acompanham esses marcadores corporais, ou seja, aquilo que as pessoas geralmente consideram
como as sensações de felicidade, inveja, tristeza e assim sucessivamente.
A dopamina e a recompensa inesperada
Zaghloul, K. A., Blanco, J. A., Weidemann, C. T., McGill, K., Jaggi, J. L., Baltuch, G. H. &
Kahana, M. J. (2009) “Human substantia nigra neurons encode unexpected financial rewards.”
Science, 323(5920), 1496-1499.
Schultz, W, Dayan, P & Montague, PR (1997) “A neural substrate of prediction and reward.”
Science, 275(5306), 1593-1599.
Eagleman, D. M., Person, C. & Montague, P. R. (1998) “A computational role for dopamine
delivery in human decision-making.” Journal of Cognitive Neuroscience, 10(5), 623-630.
Rangel, A, Camerer, C. & Montague, P. R. (2008) “A framework for studying the neurobiology of
value-based decision making.” Nature Reviews Neuroscience, 9(7), 545-556.
Juízes e decisões sobre a liberdade condicional
Danziger, S., Levav, J. & Avnaim-Pesso, L. (2011) “Extraneous factors in judicial decisions.”
Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, 108(17), 6889-
6892.
As emoções na tomada de decisão
Damasio, A. (2008) Descartes’ Error: Emotion, Reason and the Human Brain. Random House.
O poder do presente
Dixon, M. L. (2010) “Uncovering the neural basis of resisting immediate gratification while
pursuing long-term goals.” The Journal of Neuroscience, 30(18), 6178-6179.
Kable, J. W. & Glimcher, P. W. (2007) “The neural correlates of subjective value during
intertemporal choice.” Nature Neuroscience, 10(12), 1625-1633.
McClure, S. M., Laibson, D. I., Loewenstein, G. & Cohen, J. D. (2004) “Separate neural systems
value immediate and delayed monetary rewards.” Science, 306(5695), 503-507.
O poder do imediato aplica-se não apenas às coisas do momento presente, mas também
fisicamente próximas. Vejamos o seguinte cenário, proposto pelo filósofo Peter Singer: uma pessoa
está prestes a devorar uma sanduíche, quando olha pela janela e vê uma criança no passeio,
esfomeada, com uma lágrima a correr-lhe pela face magra. Estará essa pessoa disposta a dar a
sanduíche à criança ou limita-se a comê-la? A maioria das pessoas daria a sanduíche de boa
vontade. Mas, nesse preciso momento, em África, está a mesma criança a morrer de fome, tal como
o miúdo da esquina. Bastaria um clique com o rato para enviar a quantia equivalente ao preço da
sanduíche. Porém, o mais provável é que a pessoa não tenha mandado dinheiro nenhum hoje, nem
no passado recente, apesar da caridade que demonstrou no primeiro cenário. Porque é que não
age para ajudar a criança? Porque o primeiro cenário põe a criança à frente da pessoa.
O segundo exige que a pessoa imagine a criança.
Força de vontade
Muraven, M., Tice, D. M. & Baumeister, R. F. (1998) “Self-control as a limited resource:
regulatory depletion patterns.” Journal of Personality and Social Psychology, 74(3), 774.
Baumeister, R. F. & Tierney, J (2011) Willpower: Rediscovering the Greatest Human Strength.
Penguin.
Política e repugnância
Ahn, W-Y, Kishida, K. T., Gu, X., Lohrenz, T., Harvey, A., Alford, J. R. & Dayan, P. (2014)
“Nonpolitical images evoke neural predictors of political ideology.” Current Biology, 24(22), 2693-
2699.
Oxitocina
Scheele, D., Wille, A., Kendrick, K. M., Stoffel-Wagner, B., Becker, B., Güntürkün, O. &
Hurlemann, R. (2013) “Oxytocin enhances brain reward system responses in men viewing the face
of their female partner.” Proceedings of the National Academy of Sciences, 110(50), 20308-20313.
Zak, P. J. (2012) The Moral Molecule: The Source of Love and Prosperity. Random House.
Decisões e sociedade
Levitt, S. D. (2004) “Understanding why crime fell in the 1990s: four factors that explain the
decline and six that do not.” Journal of Economic Perspectives, 163-190.
Eagleman, D. M. & Isgur, S. (2012). “Defining a neurocompatibility index for systems of law”. In
Law of the Future, Hague Institute for the Internationalisation of Law. 1(2012), 161-172.
Retorno em tempo real e neuroimagiologia
Eagleman, D. M. (2011) Incognito: The Secret Lives of the Brain. Pantheon.

CAPÍTULO 5 – PRECISO DE TI?


Ler a intenção nos outros
Heider, F. & Simmel, M. (1944) “An experimental study of apparent behavior.” The American
Journal of Psychology, 243-259.
Empatia
Singer, T., Seymour, B., O’Doherty, J., Stephan, K., Dolan, R. & Frith, C. (2006) “Empathic neural
responses are modulated by the perceived fairness of others.” Nature, 439(7075), 466-469.
Singer, T., Seymour, B., O’Doherty, J., Kaube, H., Dolan, R. & Frith, C. (2004) “Empathy for pain
involves the affective but not sensory components of pain.” Science, 303(5661), 1157-1162.
Empatia e exogrupos
Vaughn, D. A., Eagleman, D. M. (2010) “Religious labels modulate empathetic response to
another’s pain.” Society for Neuroscience abstract.
Harris, L. T. & Fiske, ST (2011). “Perceiving humanity.” In A. Todorov, S. Fiske, & D. Prentice
(eds.). Social Neuroscience: Towards Understanding the Underpinnings of the Social Mind, Oxford
Press.
Harris, LT & Fiske, ST (2007) “Social groups that elicit disgust are differentially processed in the
mPFC.” Social Cognitive Affective Neuroscience, 2, 45-51.
Circuitos cerebrais dedicados a outros cérebros
Plitt, M., Savjani, R. R. & Eagleman, D. M. (2015) “Are corporations people too? The neural
correlates of moral judgments about companies and individuals.” Social Neuroscience, 10(2), 113-
125.
Bebés e confiança
Hamlin, J. K., Wynn, K. & Bloom, P. (2007) “Social evaluation by preverbal infants.” Nature,
450(7169), 557-559.
Hamlin, JK, Wynn, K, Bloom, P & Mahajan, N (2011) “How infants and toddlers react to
antisocial others.” Proceedings of the National Academy of Sciences, 108(50), 19931-19936.
Hamlin, J. K. & Wynn, K. (2011) “Young infants prefer prosocial to antisocial others.”Cognitive
Development, 26(1), 30-39. doi:10.1016/j.cogdev.2010.09.001.
Bloom, P. (2013) Just Babies: The Origins of Good and Evil. Crown.
Ler as emoções simulando os rostos dos outros
Goldman, A. I. & Sripada, C. S. (2005) “Simulationist models of face-based emotion recognition.”
Cognition, 94(3).
Niedenthal, P. M. , Mermillod, M., Maringer, M. & Hess, U. (2010) “The simulation of smiles
(SIMS) model: embodied simulation and the meaning of facial expression.” The Behavioral and
Brain Sciences, 33(6), 417-433; discussão 433-480.
Zajonc, R. B., Adelmann, P. K., Murphy, S. T. & Niedenthal, P. M. (1987) “Convergence in the
physical appearance of spouses.” Motivation and Emotion, 11(4), 335-346.
Em relação à experiência da EMT com John Robison, o Professor Pascual-Leone relata: “Não
sabemos exatamente o que aconteceu em termos neurobiológicos, mas eu acho que isto agora dá-
nos a oportunidade de percebermos que modificações comportamentais e que intervenções
poderíamos aprender [com o caso de John] para ensinarmos depois aos outros.”
O Botox diminui a capacidade de ler os rostos
Neal, D. T. & Chartrand, T. L. (2011) “Embodied emotion perception amplifying and dampening
facial feedback modulates emotion perception accuracy.” Social Psychological and Personality
Science, 2(6), 673-678.
O efeito é pequeno, mas significativo: os utilizadores de Botox registaram uma precisão de 70% a
identificar as emoções, ao passo que o grupo de controlo registou em média 77%.
Baron-Cohen, S, Wheelwright, S, Hill, J, Raste, Y & Plumb, I (2001) “The ‘Reading the Mind in
the Eyes’ test revised version: A study with normal adults, and adults with Asperger syndrome or
high-functioning autism.” Journal of Child Psychology and Psychiatry, 42(2), 241-251.
Órfãos romenos
Nelson, C. A. (2007) “A neurobiological perspective on early human deprivation.” Child
Development Perspectives, 1(1), 13-18.
A dor da exclusão social
Eisenberger, N. I., Lieberman, M. D. & Williams, K. D. (2003) “Does rejection hurt? An fMRI
study of social exclusion.” Science, 302(5643), 290-292.
Eisenberger, N. I. & Lieberman, M. D. (2004) “Why rejection hurts: a common neural alarm
system for physical and social pain.” Trends in Cognitive Sciences, 8(7), 294-300.
Prisão solitária
Beyond our interviews with Sarah Shourd for the television series, see also:
Pesta, A. (2014) Like an Animal: Freed U.S. Hiker Recalls 410 Days in Iran Prison. NBC News.
Psicopatas e o córtex pré-frontal
Koenigs, M. (2012) “The role of prefrontal cortex in psychopathy.” Reviews in the Neurosciences,
23(3), 253-262.
As áreas que sofrem uma ativação diferente nos psicopatas são duas regiões vizinhas da parte
média do córtex pré-frontal: o córtex pré-frontal ventromedial e o córtex cingulado anterior. Estas
áreas são comummente observadas em estudos sobre a tomada de decisão social e emocional e
reguladas negativamente na psicopatia.
Experiência dos olhos azuis e olhos castanhos
Transcrição de A Class Divided, emissão original: 26 de março de 1985. Produzido e realizado por
William Peters. Texto de William Peters e Charlie Cobb.

CAPÍTULO 6 – QUEM SEREMOS NO FUTURO?


Número de células do corpo humano
Bianconi, E., Piovesan, A., Facchin, F., Beraudi, A., Casadei, R., Frabetti, F. & Canaider, S. (2013)
“An estimation of the number of cells in the human body.” Annals of Human Biology, 40(6), 463-
471.
Plasticidade do cérebro
Eagleman, D. M. (no prelo). LiveWired: How the Brain Rewires Itself on the Fly. Canongate.
Eagleman, D. M. (17 de março de 2015). David Eagleman: “Can we create new senses for
humans?” TED conference. [Ficheiro de vídeo].
http://www.ted.com/talks/david_eagleman_can_we_create_new_ senses_for_humans?
Novich, S. D. & Eagleman, D. M. (2015) “Using space and time to encode vibrotactile
information: toward an estimate of the skin’s achievable throughput.” Experimental Brain
Research, 1-12.
Implantes cocleares
Chorost, M. (2005) Rebuilt: How Becoming Part Computer Made Me More Human. Houghton
Mifflin Harcourt.
Substituição sensorial
Bach-y-Rita, P., Collins, C., Saunders, F., White, B. & Scadden, L (1969) “Vision substitution by
tactile image projection.” Nature, 221(5184), 963-964.
Danilov, Y. & Tyler, M. (2005) “Brainport: an alternative input to the brain.” Journal of Integrative
Neuroscience, 4(04), 537-550.
O conectoma: fazer um mapa de todas as ligações de um cérebro
Seung, S. (2012) Connectome: How the Brain’s Wiring Makes Us Who We Are. Houghton Mifflin
Harcourt.
Kasthuri, N. et al. (2015) “Saturated reconstruction of a volume of neocortex.” Célula: no prelo.
Crédito de imagem do volume do cérebro do rato: Daniel R. Berger, H. Sebastian Seung & Jeff W.
Lichtman.
Projeto do Cérebro Humano
The Blue Brain Project: http://bluebrain.epfl.ch. A equipa do Blue Brain uniu esforços com
aproximadamente oitenta e sete parceiros internacionais para desenvolver o Projeto do Cérebro
Humano (HBP, na sigla em língua inglesa).
Computação noutros substratos
A construção de dispositivos computacionais em substratos estranhos já tem uma longa história:
um dos primeiros computadores, analógico, chamado Integrador de Água foi construído na União
Soviética em 1936.
Os exemplos mais recentes de computadores a água utilizam a microfluídica – ver:
Katsikis, G., Cybulski, J. S. & Prakash, M. (2015) “Synchronous universal droplet logic and
control.” Nature Physics.
O Argumento da Sala Chinesa
Searle, J. R. (1980) “Minds, brains, and programs.” Behavioral and Brain Sciences, 3(03), 417-
424.
Nem todos concordam com esta interpretação da Sala Chinesa. Há quem sugira que, apesar de o
operador não perceber chinês, o sistema como um todo (o operador mais os livros) percebe chinês.
O argumento do moinho de Leibniz
Leibniz, G. W. (1989) The Monadology. Springer.
Eis o argumento nas palavras do próprio Leibniz:
Além disso, é preciso confessar que a perceção e o que dela depende é inexplicável com base na
mecânica, ou seja, por intermédio de figuras e movimentos. E, supondo que havia uma máquina
construída para pensar, sentir e ter perceção, ela poderia ser concebida com um tamanho
aumentado, mantendo as mesmas proporções, para podermos lá entrar, como num moinho. Assim
sendo, deveríamos, ao examinar o seu interior, encontrar apenas peças que atuam umas sobre as
outras, e nunca nada que servisse para explicar a perceção. Então, é numa substância simples,
nunca num composto ou numa máquina, que devemos procurar a perceção. Mais, nada a não ser
isso (nomeadamente as perceções e as respetivas alterações) poderá ser encontrado numa
substância simples. E é também nisso apenas que todas as atividades internas de uma substância
simples podem consistir.
Formigas
Hölldobler, B. & Wilson, E. O. (2010) The Leafcutter Ants: Civilization by Instinct. WW Norton &
Company.
Consciência
Tononi, G. (2012) Phi: A Voyage from the Brain to the Soul. Pantheon Books.
Koch, C. (2004) The Quest for Consciousness. Nova Iorque.
Crick, F. & Koch, C. (2003) “A framework for consciousness.” Nature Neuroscience, 6(2), 119-
126.
GLOSSÁRIO
Área tegmental ventral: Estrutura composta sobretudo por neurónios dopaminérgicos, localizada
no mesencéfalo. Esta área desempenha um papel crucial no sistema de recompensa.
Axónio: Protuberância anatómica de saída de um neurónio, capaz de conduzir sinais elétricos
vindos do corpo celular.
Célula glial: Tipo de células cerebrais especializadas, que protegem os neurónios fornecendo-lhes
nutrientes e oxigénio, eliminando os resíduos e dando-lhes genericamente apoio.
Cerebelo: Pequena estrutura anatómica situada por baixo do córtex cerebral, na parte posterior da
cabeça. Esta área do cérebro é essencial para a fluidez do controlo motor, o equilíbrio, a postura e,
possivelmente, algumas funções cognitivas.
Cérebro: Áreas do cérebro humano, incluindo: o córtex cerebral exterior, grande e ondulado, o
hipocampo, os gânglios da base e o bolbo olfativo. O desenvolvimento desta área nos mamíferos
superiores contribui para uma cognição e um comportamento mais avançados.
Cirurgia de divisão do cérebro: Também conhecida como calosotomia, divide o corpo caloso
como medida para controlar a epilepsia, que não pode ser curada por outros meios. Esta
intervenção cirúrgica elimina a comunicação entre ambos os hemisférios do cérebro.
Conectoma: Mapa tridimensional de todas as ligações neuronais do cérebro.
Corpo caloso: Faixa de fibras nervosas, localizada na fissura longitudinal entre os hemisférios do
cérebro, e que permite a comunicação entre ambos.
Dendrites: Protuberâncias anatómicas de um neurónio, que transportam sinais elétricos gerados
pela libertação de neurotransmissores de outros neurónios para o corpo celular.
Doença de Parkinson: Perturbação progressiva caracterizada por dificuldades motoras e tremores,
causada pela deterioração das células produtoras de dopamina numa estrutura do mesencéfalo
denominada substância negra.
Dopamina: Neurotransmissor do cérebro ligado ao controlo motor, à dependência e à recompensa.
Eletroencefalografia (EEG): Técnica utilizada para medir a atividade elétrica do cérebro, com
uma resolução de milissegundos, através da ligação de elétrodos condutores ao couro cabeludo.
Cada elétrodo regista o somatório dos milhões de neurónios que lhe estão subjacentes. Este método
é utilizado para registar mudanças rápidas na atividade cerebral do córtex.
Estimulação magnética transcraniana (EMT): Técnica não invasiva, utilizada para estimular ou
inibir a atividade cerebral através de um impulso magnético para induzir pequenas correntes
elétricas em tecidos neurais subjacentes. Esta técnica é normalmente utilizada para compreender a
influência das áreas cerebrais nos circuitos neurais.
Hipótese computacional do funcionamento do cérebro: Enquadramento que propõe que as
interações do cérebro implementam computações, e que essas mesmas computações, se fossem
executadas num subestrato diferente, dariam igualmente lugar à mente.
Neural: Que faz parte ou está relacionado com o sistema nervoso ou com os neurónios.
Neurónio: Célula especializada, que se encontra nos sistemas nervosos central e periférico,
(incluindo o cérebro, a espinal medula e as células sensoriais) e que comunica com outras células
através de sinais eletroquímicos.
Neurotransmissor: Substâncias químicas que são libertadas por um neurónio e enviados para
outro neurónio recetor, geralmente através de uma sinapse. Encontram-se nos sistemas nervosos
central e periférico, incluído o cérebro, a espinal medula e os neurónios sensoriais espalhados pelo
corpo. Os neurónios podem libertar mais do que um neurotransmissor.
Pacto de Ulisses: Pacto inviolável, utilizado para vincular a pessoa a um potencial objetivo futuro,
feito por ela compreender que poderá não ter capacidade para tomar uma decisão racional quando
esse momento chegar.
Plasticidade Capacidade de adaptação do cérebro, criando novas ligações neurais ou modificando
as existentes. A capacidade do cérebro para apresentar plasticidade é importante após uma lesão, de
forma a compensar eventuais défices daí resultantes.
Potencial de ação: Episódio breve (de um milissegundo) em que a tensão de um neurónio atinge
um limite, o que causa a propagação de uma reação em cadeia de permuta de iões na membrana
celular. Essa reação acaba por provocar a libertação de neurotransmissores nos terminais do axónio.
Também conhecido como potencial de membrana ou impulso nervoso.
Resposta galvânica da pele (RGP): Técnica que mede alterações no sistema nervoso autónomo,
que ocorrem quando alguém experimenta algo novo, que causa stress intenso, ainda que num nível
abaixo da perceção consciente. Na prática, é ligada uma máquina à ponta do dedo, e são
monitorizadas as propriedades elétricas da pele, que se alteram conforme a atividade das glândulas
sudoríparas.
Ressonância magnética funcional (RMf): Técnica de neuroimagiologia que deteta atividade
cerebral com uma resolução de segundos, medindo o fluxo sanguíneo no cérebro com uma
resolução de milímetros.
Sinapse: Espaço existente normalmente entre o axónio de um neurónio e a dendrite de outro
neurónio, onde ocorre a comunicação entre neurónios através da libertação de neurotransmissores.
Também existem sinapses entre dois axónios e entre duas dendrites.
Síndrome da Mão Alheia: Perturbação resultante de um tratamento para a epilepsia, conhecido
como calosotomia, no qual o corpo caloso é cortado, ficando os dois hemisférios do cérebro
desligados um do outro, também conhecido como a cirurgia de “divisão do cérebro”. Esta
perturbação causa movimentos unilaterais, e por vezes intrincados, da mão, sem que o doente sinta
que tem controlo volitivo sobre os movimentos.
Substituição sensorial Abordagem para compensar um sentido deficiente, em que a informação
sensorial é transmitida ao cérebro através de canais incomuns. Por exemplo, a informação visual é
convertida em vibrações na língua, ou a informação auditiva é convertida em padrões de vibrações
no tronco, permitindo ao indivíduo ver ou ouvir, respetivamente.
Transdução sensorial: Os sinais do ambiente, como os fotões (visão), ondas de compressão do ar
(audição) ou moléculas odoríferas (olfato) são convertidas (transduzidas) em potenciais de ação por
células especializadas. É o primeiro passo para fazer chegar ao cérebro a informação proveniente
do exterior do corpo.

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