ARRANCAS, pertencente à vila de São minhados outros três, propondo altera-
C João d’el Rei, foi palco de uma in- ções na Guarda Nacional, no Corpo de surreição escrava no dia 13 de maio de Permanentes e regulando a liberdade de 1833. Filhos, netos, sobrinhos, noras, imprensa. O período era de certa intran- genros e agregados do deputado Gabriel qüilidade, inúmeros conflitos contesta- Junqueira foram mortos por seus escra- tórios surgiam em diversos pontos do vos, aparentemente instigados pelo rumor Império, alguns mais sérios, outros mais de que em outras localidades se fazia o pontuais. Simultaneamente à insurreição mesmo. Ao final dos conflitos armados e de Carrancas e na mesma região ocorrera prisão dos insurgentes, foram julgados 33 a Revolta do Ano da Fumaça, mais uma escravos, sendo a maioria condenada à entre várias tentativas de promover o morte. Os julgamentos se deram pelo retorno de D. Pedro I. Os quatro projetos Código Criminal do Império, aprovado de lei tinham em comum o caráter re- no ano anterior: era considerado crime pressivo, cada qual a seu modo, pois se de insurreição a reunião de mais de vinte entendia que era necessária maior coerção escravos dispostos a conseguirem sua a fim de se garantir a coesão da Nação, liberdade por meio da força. Aos cabeças controlando os adversários políticos, os poderia ser imposta a pena de morte em homens livres pobres, os periódicos ou grau máximo, e aos demais participantes, os negros escravos. açoites. Os réus poderiam ainda apelar a O projeto de lei a respeito dos crimes um segundo júri ou à Relação, apesar de cometidos por escravos apresentado pela não poderem apelar ao monarca. Na prá- Regência foi acolhido pela Câmara com tica, a maioria dos insurgentes foi execu- pequenas alterações, apesar dos debates. tada sem que o curador dos réus tivesse Em poucas palavras, propunha a acelera- apelado, talvez por julgar inconveniente ção dos processos contra escravos acusados diante da opinião pública. Os últimos en- de assassinar ou ferir gravemente seus senho- forcamentos ocorreram em 1834. res, feitores, administradores, ou os fami- No mesmo ano de 1833, no mês se- liares desses: acabavam-se as apelações e as guinte ao ocorrido em Carrancas, o Mi- gradações de penas; essas estariam limita- nistério da Justiça da Regência Trina das a apenas duas, a morte pela forca ou Permanente enviava ao Parlamento uma açoites em caso de ferimentos leves. Uma proposta de lei que reprimisse os levantes lei de exceção para uma época excepcional. escravos. Não se tratava de simples haitia- Ou para uma sociedade excepcional? nismo, um receio de que o Brasil fosse São exatamente as relações entre uma palco de conflito idêntico aos ocorrido lei, sua prática e a sociedade que as engen- no Haiti no século anterior. O episódio dra que constitui o objeto do extenso e de Carrancas não havia sido o primeiro e profundo estudo realizado por João Luiz também não seria o último em que escra- Ribeiro em seu livro No meio das galinhas vos se levantariam contra seus senhores. as baratas não têm razão. De fato, diante Junto ao projeto original foram enca- do tema os debates parlamentares já se-
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riam suficientes para a elaboração de uma mais “avançadas” (e também as mais polê- dissertação de mestrado de significativa micas) à época, entre elas o julgamento importância. No entanto, essa dissertação por jurados. Ao contrário do sistema defendida na UFRJ, em 2000, vai além. judiciário dos tempos coloniais, a legisla- O autor mineiro preferiu não se ater so- ção do Império partia de premissas oriun- mente à história política, explorando tam- das do pensamento iluminista. Todo cida- bém a sociedade na qual se dá a ação polí- dão seria igual perante a lei, respondendo tica e sua organização por meio das leis. a punições na proporção da infração co- Um direito vivo transitando entre a legis- metida, de acordo com o julgamento rea- lação em si e sua aplicação, que não por pou- lizado por seus pares, os jurados. Esse sis- cas vezes se mostraram esferas distintas. tema, entretanto, não era consensualmen- Desse modo, a Lei de 10 de junho de te aceito por nenhuma das nações que o 1835, citada no subtítulo do livro, repre- adotou, assim como a pena de morte. A senta apenas um fenômeno, a parte mais chamada “pena última” ou “capital”, visível em um todo muito mais complexo. segundo o autor, gozava de uma aceitação Para além da superfície do texto da legis- de ocasião, um mal necessário diante de lação se encontram deputados, senadores, massas “bárbaras carentes” de sentimento juízes, jurados, advogados, promotores, de ordem. Esse argumento, facilmente as vítimas e suas famílias, todos cidadãos imaginável na boca de um deputado e, por conseguinte, proprietários de escra- brasileiro, fora originalmente utilizado vos ou a eles relacionados. O debate ocor- por ingleses e franceses com o intuito de rido na Câmara, entre 1833 e 1835, e simul- justificar a aplicação de pena tão extrema taneamente às discussões do Ato Adicional, em países tão civilizados. mostra com clareza essa situação ímpar: João Luiz Ribeiro, muito perspicaz, viver em uma sociedade escravista era convi- estabelece não apenas o debate diante das ver com a tensão natural existente entre necessidades nacionais, mas também a senhores e escravos. Cabia aos primeiros reutilização de discursos semelhantes em fazer que os últimos produzissem de casos aparentemente diferentes. Segundo forma satisfatória, bem como era dever o autor, o uso de “medidas extremas” na dos representantes legais no Parlamento, Inglaterra era justificado diante da necessi- garantir os meios sob os quais se dariam dade de organizar os contingentes popu- a produção e o controle da mão-de-obra. lacionais ainda não conscientes de seu pa- Assim se esperava de um Estado e de uma pel na nova lógica do trabalho em fins do sociedade organizados de acordo com os século XVIII e início do seguinte. Mos- preceitos liberais, os mesmos preceitos trava-se necessário aos olhos dos grupos que nortearam a confecção da Carta de dirigentes civilizar a população, ou seja, 1824 e dos Códigos brasileiros. torná-la cidadã segundo um critério pro- No caso das regras do jogo político dutivo, ao mesmo tempo que se fazia ur- estabeleceram-se a representatividade por gente contê-la diante dos crescentes índi- meio do processo eleitoral e a instituição ces de criminalidade por meio de punições de uma arena política claramente definida, severas e exemplares. Algo semelhante um parlamento bicameral. Quanto à apli- ocorria no Brasil: não só era necessário cação das leis, Ribeiro menciona que os punir os escravos assassinos de seus senhores legisladores brasileiros seguiam as idéias para que a prática não se tornasse usual,
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como também se pretendia evitar uma do Estado na propriedade privada de acor- possível desorganização da produção. do com o interesse dos próprios proprietá- Desse modo, o trabalho de Ribeiro rios que, no momento da aprovação da inscreve-se em debate mais amplo, pois lei, já não viam outra saída diante da refere-se às mediações entre liberalismo aparente ineficiência do açoite aplicado e escravidão, tema que tem sido alvo das rotineiramente. Na verdade, a pena de reflexões de autores como Maria Silvia de morte em países como França e Inglaterra Carvalho Franco, Emilia Viotti da Costa, vinha sendo considerada pouco eficaz na Alfredo Bosi, João José Reis, José Murilo contenção da criminalidade quando foi de Carvalho, Izabel Andrade Marson, adotada no Brasil, e nesse sentido foi ata- entre outros. Apesar de não ir a fundo cada por deputados nos debates de 1833 nessa questão, o autor oferece subsídios e 1834. No entanto, a Revolta dos Malês que indicam que as idéias liberais no em Salvador, no ano de 1835, acabou por Império do Brasil esbarravam em contra- precipitar a assinatura da “lei de exceção”, dições únicas, mas soluções de modo como ficou conhecida desde então por igualmente peculiar eram encontradas. A estar fora do direito comum. Conforme igualdade entre cidadãos, por exemplo, mostra Ribeiro, esperava-se que o medo era possível e existia, contanto que se esta- da forca fizesse o escravo refrear o desejo belecesse claramente uma diferença entre de matar seu senhor. Do mesmo modo os cidadãos e os “outros”, de modo que que a própria escravidão havia sido outro- cada um desses elementos que com- ra considerada, a pena de morte passava punham a sociedade respondesse de a ser encarada também como um mal ne- forma diferente perante a lei. cessário ou um “terror salutar”. Em uma sociedade escravista a divisão De acordo com a extensa pesquisa básica não poderia ser outra que não o realizada por Ribeiro nos códices e corres- senhor e o escravo; no entanto, a relação pondências do Judiciário, periódicos da entre as partes está longe de ser simples. Corte e de Províncias, e documentação Ambas as partes encontravam-se dentro gerada pelo Conselho de Estado, a pena do Estado e, apesar da aparência, esse não capital aplicada a escravos atravessou fases estava sempre em harmonia com os diversas, sinalizando diferentes entendi- cidadãos-proprietários, afinal dividiam o mentos a respeito da necessidade de uma poder de coerção sobre setores da popu- lei tão severa, sem que nunca se discutisse lação. Cabia ao cidadão dispor sobre sua sua supressão. A Lei de 10 de junho de 1835 propriedade, direito inalienável, mas quan- deixou de existir, de fato, apenas com a do necessário exigia que o Estado, do qual Abolição da Escravidão, em 1888. No en- fazia parte por meio de representantes tanto, a letra interpretada por juízes, advo- eleitos, tomasse as providências cabíveis. gados, promotores e mesmo pelos conse- Essa trama de interesses diversos articu- lheiros de Estado e pelo imperador variou lados diante de demandas mútuas tornava muito ao longo desses 53 anos. Após a a prática legal e mesmo o debate político aprovação da lei até a maioridade do mo- muito mais complexos. narca, em 1840, o cadafalso viveu anos No caso da pena de morte aplicada de destaque, o espetáculo da forca foi fre- aos escravos que assassinavam seus senho- qüente tanto na capital do Império quan- res ou feitores, fica patente a intromissão to nas localidades mais remotas, na exata
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medida do que se entendia como uma emancipação do elemento servil. Por mais resposta aos medos da sociedade escra- irônico que possa parecer, o escravo era vista. salvo de morrer na forca para trabalhar Essa situação se manteve quase inalte- pelo resto da sua vida sob o jugo do Esta- rada, apesar de uma sutil diminuição no do, permanecendo em situação semelhan- ritmo das execuções, até o início da dé- te àquela anterior ao crime. cada de 1850, quando mudanças signifi- Se as mais altas esferas do poder che- cativas advindas com a Conciliação modi- garam ao ponto de interferir claramente ficaram esse quadro. Segundo o autor, nas decisões de julgamentos legítimos, tanto o Gabinete Ministerial quanto o algum motivo plausível haveria de existir. Conselho de Estado, seguindo uma po- Não se pode deixar de ressaltar mais uma sição pessoal do monarca, passaram, a par- vez que o sistema de jurados significa o tir de 1853, a agir de modo a flexibilizar julgamento pelos pares. Entretanto, a lei de 1835 sem, contudo, alterá-la. quando o réu é um escravo seus juízes de Apesar de a legislação definir que a úni- fato nunca serão seus iguais, e sim homens ca apelação possível ao escravo condenado muito mais identificados à vítima, um pela “lei de exceção” era ao Poder Mo- senhor ou feitor. De tal sorte que todo derador, desde que o recurso fosse im- tipo de artifício necessário à condenação petrado por seu curador ou advogado de do escravo poderia ser utilizado: aceitar defesa, com o passar dos anos o apelo à uma testemunha “de ouvir dizer” como imperial clemência se tornou regra. Cu- prova contundente, negligenciar o uso do riosamente, essa brecha foi sendo aberta Código Penal que proibia a condenação por meio de orientações dadas pelos mi- à morte quando a única prova era a nistros da pasta da Justiça aos presidentes confissão, entre outros. de Província e aos magistrados, sem que Ribeiro toca ainda em uma questão houvesse uma legislação nesse sentido muito importante quanto às dificuldades aprovada pelo Poder Legislativo. No en- de se estabelecer a “verdade” em um jul- tanto, como mostra Ribeiro, seria inge- gamento do século XIX. Sem provas ditas nuidade supor que essa nova prática fosse científicas, toda a reflexão se dava com fruto de um consensual humanitarismo base em indícios, elementos capazes de que tomava conta dos corações de minis- criar um encadeamento lógico a fim de tros e conselheiros. elucidar o caso. Do mesmo modo como Por mais que alguns, como o próprio uma roupa suja de sangue era indicativa D. Pedro II, se manifestassem claramente de crime, a própria condição escrava era contra a pena última, outros tantos consi- entendida como indício, na maioria das deravam necessário corrigir apenas as vezes promovida a evidência ou prova. injustiças cometidas pelos jurados ou No caso de escravos domésticos e crimes juízes, fosse na formação da culpa fosse cometidos sem nenhuma testemunha, na sentença contra os escravos. O modo não haveria outras provas que não a encontrado foi a comutação quase que própria confissão do réu e o fato de ser sistemática da pena de morte em galés escravo. perpétuas, em especial a partir da década Por vezes, havia a discordância entre de 1860, período em que o Conselho de o júri – os juízes de fato – e o juiz de di- Estado passou a discutir projetos de reito, provocando a apelação desse às ins-
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tâncias superiores. Por mais que o magis- imagem que estigmatiza o negro até hoje, trado pudesse fazer parte do mesmo gru- fazendo dele um elemento suspeito, po- po social que os jurados, mantinha-se em tencialmente criminoso. O mal-estar ge- alguns casos uma diferença entre homens rado no interior do estado por uma “lei da sociedade em geral e homens da má- de exceção” problematiza, por sua vez, a quina do Estado, ligados ao rigor das leis. questão dos debates acerca da emanci- Porém, o Poder Moderador nunca per- pação do elemento servil. Enquanto, de doava sentenças, apenas as comutava, por modo mais amplo, a relação desses ele- mais que parecessem injustas. Situação mentos em um universo sociopolítico e que levava muitos juizes a “manipularem” econômico vem estimular as reflexões os julgamentos, estabelecendo quesitos quanto à aplicação ou não das idéias libe- atenuantes, gerando uma jurisprudência rais no seio de uma sociedade escravista, que, a priori, estava vedada à Lei de 10 deixando no ar a indagação: ainda é pos- de junho de 1835. sível crer que as idéias estão, ou poderiam É exatamente essa queda-de-braço estar, fora do lugar? Questões essas que o constante entre jurados, juízes e Estado autor não pôde aprofundar talvez pela na- que anteriormente foi nomeado como tureza de seu trabalho, uma dissertação um direito vivo capaz de conceder de mestrado. Mas espera-se que futura- substância à letra da lei, aos códigos apro- mente o faça, pois sua minúcia na leitura vados como tentativas de regulação de das fontes e o cuidado no cotejamento uma sociedade dinâmica. Em todo caso, das informações e interpretações devem os três componentes em embate cotidiano servir de estímulo a outra pesquisa. Espe- permanecem ligados entre si pela quali- ra-se apenas que ao editar um novo tra- dade de cidadão, dependendo deles qual- balho não seja prejudicado pela falta de quer ação efetiva. Não à toa, quando se revisão final como o foi agora, quando viu enredado nas inquirições e demais um belo texto acabou manchado por práticas forenses, o réu José Crioulo aca- inúmeros erros de digitação. bou por responder ao juiz, apesar de ter sido instado a calar-se: “V. Ex. bem sabe, no meio das galinhas, as baratas não têm razão”. Utilizando as palavras de José Crioulo, não era mistério às baratas o modo de agir das galinhas. Além da detalhada pesquisa documen- tal, com sua copiosa coleta de processos, sentenças e debates, João Luiz Ribeiro oferece uma contribuição significativa a diferentes segmentos da pesquisa histó- rica. Os assassinatos de senhores e feitores RIBEIRO, J. L. No meio das galinhas as baratas não por escravos contabilizados e analisados têm razão. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. 609p. à luz da legislação reforçam as interpreta- ções a respeito da resistência escrava e Erik Hörner é mestre em História Social pela sinalizam uma “resistência à resistência FFLCH-USP e doutorando em História pela escrava” responsável pela geração de uma mesma instituição.