Você está na página 1de 248

AS REDES DE POLÍTICAS NA ANÁLISE DA ESTRATÉGIA DE

REGIONALIZAÇÃO DA SAÚDE NO BRASIL

1
SUMÁRIO

Capítulo 1 – Redes de Política: Emergência, Conceituação e


Gestão ................................................................................................ 4
1. Introdução ................................................................................................... 4
2. Contexto de emergência do fenômeno ....................................................... 5
3. Conceitos de redes ..................................................................................... 9
4. Formação e gestão de redes .................................................................... 21
5. Para Concluir: Redes de Políticas Sociais................................................ 31

Capítulo 2 - Redes em Administração Pública: Interdependência


como novo Paradigma de Gestão ...................................................37
2.1 - Introdução............................................................................................. 37
2.2 - Histórico do Fenômeno......................................................................... 43
2.3 – A Produção Conceitual de Redes na Literatura Internacional em
Administração Pública: fundamentos e processos de estruturação.............. 57
2.3.1 – A Perspectiva Generalizante: os fundamentos ................................. 59
2.3.2 – Perspectivas Específicas: os processos de estruturação ................. 65
2.4 – Singularidades das Redes como Forma de Coordenação................... 83

Capítulo 3 – Construindo uma Tipologia para Identificação e a


Análise da Interdependência em Rede ...........................................93
3.1 - Introdução............................................................................................. 93
3.2 – Coesão Sistêmica e a Natureza da Governança em Rede.................. 99
3.3– Implicações para a Composição Estrutural da Rede .......................... 110
3.4 – O Padrão de Interdependência em Rede .......................................... 116

Capítulo 4 – A Estratégia de Regionalização da NOAS:


Interdependência Municipal, Territorialização e Planejamento
Integrado .........................................................................................150
4.2.1 – O Processo de Territorialização...................................................... 152
4.2.1 – O Processo de Planejamento Integrado ......................................... 162

Capítulo 5 – Analisando a Estratégia de Regionalização da NOAS:


qual o padrão de governança?......................................................184
5.3.1 – Foco Gerencial................................................................................ 193
5.3.2 – Atores Envolvidos e Amplitude de Inserção.................................... 196
5.3.3 – Nível de Formalização .................................................................... 199
5.3.4 – Recursos Envolvidos e Foco de Poder ........................................... 203
5.3.5 – Foco de Controle ............................................................................ 210
5.3.6 – Objetivos Coletivos ......................................................................... 214
5.3.7 – Instâncias de Estratégia.................................................................. 219
5.3.8 – Espaços Internos de Pactação ....................................................... 224
5.3.9 – Canais Externos de Articulação ...................................................... 228

2
CAPÍTULO 6 – Consolidando as Análises: uma governança em
rede? ...............................................................................................233
6.1 – Definindo o padrão de interdependência e governança..................... 233
6.2 – Implicações para a Dinâmica Gerencial da Regionalização .............. 238

3
Capítulo 1 – Redes de Política: Emergência, Conceituação e Gestão

1. Introdução

Um fenômeno recente, cada vez mais freqüentemente observado, é a existência


de redes, ou estruturas policêntricas, envolvendo diferentes atores, organizações
ou nódulos, vinculados entre si a partir do estabelecimento e manutenção de
objetivos comuns e de uma dinâmica gerencial compatível e adequada.

Este fenômeno apresenta-se igualmente em diferentes campos gerenciais,


manifestando-se na existência de redes empresariais, redes de políticas, redes de
movimentos sociais, redes de apoio sócio-psicológico, etc.

Apesar da diversidade de objetivos, de instituições, atores e recursos envolvidos,


em todos os casos encontramos elementos comuns, representados pelos desafios
de estabelecer modalidades gerenciais capazes de viabilizar os objetivos
pretendidos e preservar a existência da estrutura reticular.

A proliferação de redes de gestão é explicada por uma multiplicidade de fatores


que incidem, simultaneamente, conformando uma nova realidade administrativa. A
globalização econômica alterou os processos produtivos e administrativos em
direção à maior flexibilização, integração e interdependência.

Por outro lado, as transformações recentes no papel do estado e em suas


relações com a sociedade, impõem novos modelos de gestão que comportem a
interação de estruturas descentralizadas e modalidades inovadoras de parcerias
entre entes estatais e organizações empresariais ou sociais.

No caso da América Latina, estes fatores são concomitantes ao processo de


democratização, que alterou o tecido social, com a proliferação de inúmeras
organizações sociais e o desenvolvimento de uma nova consciência cidadã, que
reivindica maior participação nos processos de gestão das políticas públicas.

4
A existência de redes é fruto de outro tipo de fatores identificados com a
complexificação dos processos administrativos em um meio ambiente cuja
dinâmica impossibilita qualquer ator isolado de controlar os processos e a
velocidade das mudanças.

Sem dúvida, a possibilidade de estabelecimento de redes de gestão está


condicionada pelo desenvolvimento tecnológico das comunicações, permitindo
interações virtuais em tempo real.

Todos estes fatores têm confluído para gerar a proliferação de redes gestoras de
políticas públicas, especialmente no campo das políticas sociais, no qual incidem
fortemente. Neste sentido, as redes têm sido vistas como a solução adequada
para administrar políticas e projetos onde os recursos são escassos, os problemas
são complexos, existem múltiplos atores envolvidos, interagem agentes públicos e
privados, centrais e locais, há uma crescente demanda por benefícios e por
participação cidadã.

No entanto, a gestão de redes, está longe de ser algo simples, o que tem
implicado, muitas vezes, no fracasso de programas e projetos sociais, apesar das
boas intenções dos atores envolvidos.

A criação e a manutenção da estrutura de redes impõem desafios administrativos


fundamentais, vinculados aos processos de negociação e geração de consensos,
estabelecimento de regras de atuação, distribuição de recursos e interação,
construção de mecanismos e processos coletivos de decisão, estabelecimento de
prioridades e acompanhamento. Em outras palavras, os processos de decisão,
planejamento e avaliação ganham novos contornos e requerem outra abordagem,
quando se trata de estruturas gerenciais policêntricas.

2. Contexto de emergência do fenômeno

As transformações pelas quais passaram estado e sociedade, como conseqüência


do processo de modernização, caracterizaram-se pela crescente diferenciação do

5
tecido social, o que colocou novas necessidades em relação ao processo de
coordenação social.

Lechner (1997) identifica dois paradigmas tradicionais de coordenação: por um


lado, a coordenação política exercida pelo estado de forma centralizada,
hierárquica pública e deliberada. Por outro lado, o paradigma de coordenação via
mercado implica em ações descentralizadas, privadas, horizontais e não
deliberadas (equilíbrio espontâneo dos interesses).

A recente formação de estruturas policêntricas advém de um contexto de ruptura


com a concepção tradicional do estado, como núcleo praticamente exclusivo de
representação, planejamento e condução da ação pública. No entanto, a recente
experiência das políticas de ajuste econômico nos países em desenvolvimento foi
suficiente para demonstrar que "o mercado sozinho nem gera nem sustenta uma
ordem social" (Lechner, 1997:11). Ao contrário, ele generaliza tendências
desintegradoras, pois acentua as iniqüidades e promove a exclusão, não sendo
capaz de gerar a integração social. As redes de políticas representariam uma nova
modalidade de coordenação, que se distingue dos dois paradigmas acima
apontados.

A globalização se apresenta como um elemento de grande influência nas


sociedades policêntricas, posto que a sociedade policêntrica se expande e
ultrapassa as fronteiras tradicionalmente fixadas, redimensionando os territórios
de influência e ação (Scherer-Warren, 1997).

Esse caráter transnacional, no entanto, ao passo que favorece o encontro,


também desvela antagonismos. O contexto econômico em que se inserem as
sociedades policêntricas é caracterizado pela complexidade e incerteza nas
relações sociais, que manifesta, de um lado, a aproximação, a integração e o
diálogo, e de outro, o individualismo, a competição e a intolerância.

Na América Latina, os processos simultâneos de democratização e crise fiscal


conduziram as reformas política e administrativa nos estados, abrindo espaço para
a profusão de novas formas de relação entre estado e sociedade, levando à pauta

6
da discussão pública os alicerces da estrutura de poder, organização e gestão das
instituições políticas vigentes.

Dentre as forças políticas que emergiram neste período sobressaem os novos


movimentos sociais, denunciando formas de opressão distintas da exploração nas
relações de produção - ainda que encontrem nesta a experiência histórica da
dominação - e denunciando, com uma radicalidade sem precedentes, os excessos
de regulação da modernidade (Santos, 1996:258). Sobretudo, estes novos atores
encontram formas inovadoras de organização, criando redes sociais que
pretendem interferir na política pública.

O curso da modernização e a correlata diferenciação no tecido social fazem


emergir conflitos difusos e múltiplas formas de acordos, cooperação e
solidariedade. Em outras palavras, a crescente diferenciação social e a expressão
de novas utopias políticas reduzem a legitimidade da regulação burocrática e da
centralidade do estado na mediação dos conflitos sociais, ao mesmo tempo em
que denunciam a predominância dos interesses mercantis.

Segundo Moura (1997), a abordagem de redes, como expressão dos novos


arranjos organizacionais que emergem na atualidade, indica o esgotamento da
capacidade de integração das instituições representativas tradicionais, da eficácia
das organizações burocráticas e do modelo de planejamento centralizado.

A multiplicidade de atores sociais influenciando o processo político, seja na


decisão, execução ou controle de ações públicas, sinaliza para o florescimento de
uma sociedade policêntrica, na qual se organizam distintos núcleos articuladores,
que, por sua vez, tendem a alterar os nexos verticais entre estado e sociedade,
baseados na regulação e subordinação, em direção às relações mais horizontais e
que privilegiam a diversidade e o diálogo.

Nesse aspecto, a formação das estruturas policêntricas, que configuram uma nova
esfera pública plural, advém tanto de um deslocamento desde o nível central de
governo para o local quanto da esfera do estado para a sociedade. Processos
como a descentralização e o adensamento da sociedade civil convergem para
formas inovadoras de gestão compartida das políticas públicas.

7
Adquirem relevância as propostas de descentralização das políticas públicas, na
qual o poder local assume o protagonismo na articulação entre organizações
governamentais, empresariais e sociais, ampliando a rede de ação pública por
meio da inclusão de novos atores políticos.

O pluralismo político permeia a composição da esfera pública na atualidade e


transforma os nexos entre estado e sociedade, por meio dos quais as
organizações sociais buscam simultaneamente preservar a sua autonomia e se
inserir nas estruturas políticas de governo (Oxhorn, 1999). Esse desafio implica na
instituição de espaços públicos de negociação, para além de um mero jogo de
interesses, mas que viabilize aos atores negociarem uma interpretação da
realidade e a conduta apropriada para a resolução de problemas coletivos
(Cavalcanti, 1998).

Soma-se a esses fatores a revolução tecnológica informacional, estabelecendo um


novo sistema de comunicação de alcance universal promovendo o
compartilhamento de palavras, imagens e sons, ao passo que reforça as
identidades individuais e coletivas (Castells, 1999).

A tecnologia da informação revolucionou os modelos organizacionais vigentes,


produzindo soluções inovadoras no processo de planejamento, coordenação e
controle das atividades e viabilizando uma articulação virtual, em tempo real, dos
indivíduos e das organizações.

Pal (2001), identifica algumas das características da tecnologia informacional que


permitiriam a formação de redes de políticas e apontariam a um modelo sócio-
cibernético de governança, tais como a inteligência distribuída (derrubada dos
monopólios de conhecimento e distribuição e acesso á informação para todos os
atores), a estrutura horizontalizada (substituição das hierarquias pela
conectividade) e a possibilidade de ação simultânea dos participantes.

Em resumo, a diferenciação social acarretou a ampliação dos atores envolvidos na


inserção de seus interesses na arena política enquanto a diferenciação
concomitante do aparato estatal implicou em uma progressiva setorialização das
políticas públicas. Tanto a descentralização quanto o processo de globalização

8
acentuaram estas características de diferenciação e autonomização. Lechner
(1977:13) cita, a respeito, o paradoxo de Luhmann segundo o qual a autonomia
relativa de cada subsistema funcional aumenta, mas assim também aumenta sua
interdependência mútua.

3. Conceitos de redes

O termo rede tem sido utilizado em diferentes disciplinas como a psicologia social
onde indica o universo relacional de um indivíduo, ou seja, o conjunto de relações
e estruturas de apoio sócio-afetivo de cada um. A psicologia social identifica como
características estruturais das redes o tamanho, a densidade a composição
(distribuição), a dispersão, a homogeneidade/heterogeneidade e os tipos de
funções que exercem.

Em sociologia estudam-se as redes de movimentos sociais que integram atores


diversos, articulando o local e o global, o particular e o universal (Scherer-Warren,
1993:10). Para alguns autores as redes são vistas como novas formas de
coordenação intermediárias decorrentes do processo de diferenciação funcional
dos subsistemas (Luhmann, 1987) ou mesmo como novas formas de organização
social, do Estado ou sociedade, intensivas em tecnologia da informação e
baseadas na cooperação entre unidades dotadas de autonomia (Castells, 1996).

Na administração de empresas a rede é vista como a combinação de pessoas -


tecnologia-conhecimento que substituiu a corporação hierarquizada do modelo
fordista, baseado em trabalho-capital-gerenciamento (Albrechet, 1994:48).

Na gestão intergovernamental é vista como um tópico emergente de junção das


disciplinas de política e administração (Marando e Florestano, 1990), como um
modelo estratégico de gestão de políticas (Mandell, 1990) ou ainda como um novo
modelo de governança que envolve os níveis local e global (Rhodes, 1986).

De acordo com Börzel (1997) todas as disciplinas que trabalham com as redes de
políticas compartilham um entendimento comum no qual elas são vistas "como un

9
conjunto de relaciones relativamente estables, de naturaleza no jerárquica e
independiente, que vinculan a una variedad de actores que comparten intereses
comunes en referencia a una política, y que intercambian recursos para perseguir
esos intereses compartidos, admitiendo que la cooperación es la mejor manera de
alcanzar las metas comunes".

No entanto, a autora adverte que não há concordância entre os estudiosos em


relação ao poder teórico do conceito de redes, visto por alguns como uma
metáfora para demonstrar que as políticas públicas envolvem multiplicidade de
atores diversos, já outros o aceitam como uma ferramenta analítica valiosa para o
estudo das relações entre atores e poder público, enquanto um outro grupo de
autores entendem as redes de políticas como um método de análise da estrutura
social.

Miller (1994) considera que nem o modelo tradicional de administração pública,


baseado na cultura da racionalidade técnica e dos controles e coordenação
hierárquicos, nem a teoria econômica da escolha racional, fruto da motivação
baseada na racionalidade utilitária, são capazes de compreender o fenômeno
atual das redes de políticas.

No caso da teoria tradicional da administração pública, o pressuposto da


separação entre política e administração é francamente contestado por inúmeros
estudos recentes. Por outro lado, a hierarquia centralizada é incapaz de responder
às necessidades atuais de coordenação flexível de múltiplos atores
interdependentes.

A teoria da escolha racional (rational choice) pressupõe que toda ação é motivada
por uma decisão racional que maximiza os interesses pessoais. As organizações
são vistas como entidades racionais que buscam maximizar sua utilidade racional
quando se engajam nas redes de trocas. Para Miller (1994:380), esta
pressuposição, ao ser levada até o limite de incluir como interesses egoístas bens
intangíveis como poder, afeto e lealdade perde qualquer capacidade explicativa.

A combinação dos supostos institucionalistas com aqueles da teoria da escolha


racional concebe as redes como instituições informais que se baseiam em regras

10
acordadas para chegar a um objetivo comum, ou seja, institucionalizando um
mecanismo de coordenação horizontal e reduzindo assim os custos de informação
e transação, criando confiança e reduzindo incertezas (Scharpf, citado por Börzel,
1997).

Para entender o fenômeno das redes Miller propõe a abordagem do


construtivismo social, baseado no método fenomenológico, É através da interação
dos participantes na rede de políticas que as impressões e experiências ganham
significado, para além dos interesses egoístas individuais. Neste caso a ênfase
deixa de ser na perseguição dos objetivos comuns para enfocar o processo
comunicacional, por meio do qual os membros da rede compartilham um conjunto
de valores, conhecimentos e percepções dos problemas.

Para Börzel (1997) as explicações teóricas sobre as redes de políticas podem ser
divididas em duas correntes distintas, ainda que não mutuamente excludentes: a
escola da intermediação de interesses e a escola de governação.

A corrente que vê as redes como uma forma genérica de intermediação de


interesses trata de analisar as relações entre os grupos de interesse e o estado.
Esta corrente tem origem na crítica feita ao pluralismo, que pressupõe a
organização e competição dos grupos de interesses como externas ao estado.

Para o neocorporativismo as sociedades modernas criaram inúmeros vínculos


(triângulos de ferro, issue networks, anéis burocráticos, meso-corporativismo, etc.)
entre os grupos de interesse e setores do estado, de tal forma que sua
organização e a competição se fazem também ao interior do próprio estado. As
redes de políticas indicariam relações de dependência entre governo e grupos de
interesses, nas quais se faz o intercâmbio de recursos.

Nos Estados Unidos os pioneiros na abordagem das redes de políticas


começaram por perceber as políticas como resultado das estreitas relações
existentes entre os decisores, envolvendo patrões de intercâmbio desenvolvidos
entre as agências executivas, as comissões do Congresso e os grupos de
interesse (John, 1999). Na Grã Bretanha o estudo de redes de políticas partiu do
estudo das relações intergovernamentais (Rhodes.1986, 1988; Marsh e Rhodes

11
1992:197), baseados na idéia central de que "a existência de uma rede de
políticas, ou mais particularmente de uma comunidade política, delimita a agenda
política e dá forma aos resultados da política".

As diferentes tipologias de redes propõem a descrição da rede de acordo a certos


atributos, como o nível de institucionalização (estável/instável) o número de
participantes (restrita/aberta), a configuração das políticas (setorial/transetorial) ou
ainda o tipo de atores sociais envolvidos e a função principal da rede (por
exemplo, redes de problemas, redes profissionais, redes intergovernaentais, redes
de produtores) e o equilíbrio de poder (redes heterogêneas e redes homogêneas)
(Börzel,1997).

Para além das classificações, pode-se buscar algum valor explicativo nos
diferentes tipos de redes supondo que a estrutura da rede delimita a lógica da
interação entre seus membros, afetando o processo político, ou ainda, que se
pretenda estabelecer uma vinculação sistemática entre a natureza de uma rede e
o resultado do processo político.

Para a corrente da governação as redes de políticas são concebidas como uma


forma particular de governança dos sistemas políticos modernos, centrando-se na
estrutura e processos através dos quais as políticas públicas se estruturam. As
suposições implícitas são de que as sociedades modernas caracterizam-se pela
diferenciação social, setorialização e crescimento político. Tais características
acarretariam uma sobrecarga política denominada "governação sob pressão"
(Jordan y Richardson, 1983 citados por Börzel, 1997).

Para Hanf y O'Toole (1992:166) "la governación moderna se caracteriza por


sistemas de decisión en los que la diferenciación territorial y funcional desagrega
la capacidad efectiva de solución de problemas en una colección de sub-sistemas
de atores con tareas específicas y competência y recursos limitados"

Consequentemente, há uma tendência para a crescente interdependência


funcional entre atores públicos e privados na consecução de uma política, e
apenas por meio das redes de políticas pode-se garantir a mobilização dos
recursos dispersos e dar uma resposta eficaz aos problemas de políticas públicas.

12
Castells (1998) chega a formular a proposta de um estado-rede, para designar o
formato atual das políticas públicas, cuja estrutura e funcionamento administrativo
assumem as características de subsidiariedade, flexibilidade, coordenação,
participação cidadã, transparência, modernização tecnológica, profissionalização
dos atores e retroalimentação e aprendizagem constantes.

Para alguns autores a análise de redes é uma ferramenta útil para explicar a união
de atores interdependentes, enquanto que para outros a inovação seria
representada pelo deslocamento do objeto da análise desde o ator individual para
o padrão de vínculos e interação como um todo. A ênfase, neste último caso,
centra-se na estrutura e processos através dos quais a realização conjunta das
políticas públicas se organiza em governação.

Para outros autores, mais do que uma nova perspectiva analítica, as redes
indicam uma mudança na estrutura política da sociedade e representariam novas
formas de organização social em resposta aos problemas políticos de
coordenação ou de mediação social. Miller (1994:379) entende que as redes
formam um terceiro tipo de estrutura social, distinta tanto do mercado quanto das
formas hierárquicas porque a qualidade da interação no mercado é baseada no
interesse racional e nas hierarquias na obediência, enquanto nas redes a
interação é indeterminada.

Em relação aos estudos de gestão a concepção de redes também representa uma


inovação. Ainda que exista uma vasta contribuição dos estudos das relações
intergovernamentais, que tem origem na tradição do federalismo e forte conotação
jurídica, somente quando o foco muda das relações intergovernamentais para a
gestão intergovernamental é que se supera a dicotomização entre administração e
política (Marando e Florestano 1990). A partir daí, passa-se a incluir o contexto
decisório multijuridicional e os vários mixes entre autoridade central e local, as
redes de relações interpessoais e organizacionais e o envolvimento do setor
governamental e do não-governamental.

Segundo Rhodes (1986), implícito à concepção de redes está o argumento de que


a implementação é um elemento chave no processo político, pois os objetivos

13
iniciais podem ser substancialmente transformados quando levados à prática. Já a
concepção tradicional da administração pública, representada pelo modelo top-
down, pressupõe, para uma implementação perfeita, que as circunstâncias
externas não impõem restrições, que os recursos e tempo necessários se
encontram disponíveis, que a compreensão do problema está numa relação de
causa e efeito direta e sem interferências, que há entendimento e acordo sobre os
objetivos, que as tarefas estão definidas na seqüência correta, e que as
autoridades podem demandar e receber plena obediência.

O autor argumenta que as redes possuem diferentes estruturas, que variam de


acordo com constelação de interesses, com a natureza do grupo associado, com a
interdependência vertical entre os membros, com a interdependência horizontal
com outras redes e com a distribuição de recursos entre os atores.

A natureza e a distribuição dos recursos na rede influenciam os padrões de


interdependências. Os recursos podem ser legais, envolvendo a distribuição
formal de funções e competências entre os níveis de governo; políticos, referindo
às estratégias, interesses e ao setor de atuação dos participantes;
organizacionais, relacionados à disponibilidade de expertise, staff, espaço físico e
equipamentos; e os recursos financeiros, envolvendo a disponibilidade de fundos
para a rede.

Uma outra possibilidade de agrupar as abordagens teóricas às redes de políticas


diz respeito à ênfase colocada nos vínculos entre os diferentes atores ou nas
estruturas das redes. Os autores que trabalham com a abordagem dos vínculos
em geral baseiam-se na disciplina da psicologia social e na sociologia relacional.

A visão da psicologia social é assumida por Rovere (1998:30) para o qual "para
nosotros, redes son redes de personas, se conectan o vinculan personas, aunque
esta persona sea el director de la institución y se relacione con su cargo incluido,
pero no se conectan cargos entre sí, no se conectan instituciones entre sí, no se
conectan computadoras entre sí, se conectan personas. Por esto es que se dice
que redes es el lenguaje de los vínculos, es fundamentalmente un concepto
vincular".

14
Rovere propõe um esquema ascendente de classificação dos vínculos em relação
ao nível, às ações e aos valores envolvidos, que permite monitorar os graus de
profundidade de uma rede. Os níveis começam com o reconhecimento, seguido
do conhecimento, depois seria a colaboração, a cooperação, e, finalmente, a
associação.

“El primer nivel sería el de reconocimiento, que expresaría la aceptación del otro.
En casos extremos, la dificultad de operar o de interactuar consiste en que no se
reconoce que el otro existe...

Hay un segundo nivel que es el de conocimiento. Luego que el otro es


reconocido como par, como interlocutor válido, empieza a ser incluido en mi
palabra, empiezo a necesitar conocimiento del otro, lo cual expresa interés, quiero
saber quién es el otro, quiero entender cómo se ve el mundo desde ahí.

Un tercer nivel, a partir del interés y del conocimiento empiezan a existir algunos
episodios de colaboración (co-laborar en el sentido de trabajar con. No es una
ayuda sistemática, no es una ayuda organizada sino espontánea. Hay momentos,
hechos, circunstancias donde se verifican mecanismos de co-laboración que
empiezan a estructurar una serie de vínculos de reciprocidad, empiezo a colaborar
pero espero también que colaboren conmigo.

En el cuarto nivel ya existen algunas formas sistemáticas de cooperación (co-


operación: operación conjunta). Esto supone un proceso más complejo porque
supone que existe un problema común, por lo tanto hay una co-problematización,
y existe una forma más sistemática y estable de operación conjunta, es decir que
hay un compartir sistemático de actividades.

Existe un quinto nivel donde hay asociación, donde esta actividad profundiza
alguna forma de contrato o acuerdo que significa compartir recursos.

15
Toda esta construcción podría ser representada en una tabla:

Nivel Acciones Valor

5. Asociarse Compartir objetivos Confianza

y proyectos

4. Cooperar Compartir actividades Solidaridad

y/o recursos

3. Colaborar Prestar ayuda esporádica Reciprocidad

2. Conocer Conocimiento de lo que Interés

el otro es o hace

1. Reconocer Destinadas a reconocer Aceptación

que el otro existe

Rovere (1998:35)

Nesta análise de redes o enfoque central está nas relações sociais, ao invés dos
atributos de grupos ou indivíduos. A partir das relações é possível compreender o
sentido das ações sociais enquanto os atributos dizem respeito apenas aos seus
agentes. Também de acordo com a sociologia relacional, “as instituições, a
estrutura social e as características dos grupos são cristalizações dos
movimentos, trocas e “encontros” nas múltiplas e intercambiantes redes de
relações ligadas e superpostas” (Marques, 1999:3).

A ênfase nas relações pessoais passa a ser o pressuposto da análise de redes


sociais já que o “social” é estruturado por inúmeras redes de relacionamento
pessoal e organizacional de diversas naturezas. A estrutura e as posições dos
atores na rede influenciam suas ações, preferências, projetos e visões de mundo,
assim como o acesso aos distintos recursos de poder.

16
Para análise da natureza das articulações em uma rede de políticas (Cavalcanti,
1998) propõe a construção de uma matriz, a partir de dois conjuntos de
indicadores, sendo o primeiro relativo às posições hierárquicas das organizações,
e o segundo composto de indicadores de gestão pública. Para efetuar a análise,
das relações identificadas na matriz interorganizacional – ainda que restrita às
relações bilaterais-, relaciona como variáveis a serem consideradas: eficácia
percebida, dependência, resposta a problemas e oportunidades, conhecimento
mútuo, consenso, similaridade de domínio, fluxo de comunicações, formalização,
complexidade centralização.

Uma perspectiva distinta, na qual a ênfase não é colocada nos vínculos mas na
estrutura, pode ser encontrada nos trabalhos de Klijn (1995 e 1996),
compreendendo as redes de políticas como o contexto mais ou menos estável
dentro do qual se desenvolvem jogos independentes sobre decisões políticas. Klijn
e outros (1995:439) definem as redes de políticas como sendo "patrones más o
menos estables de relaciones sociales entre atores mutuamente dependientes que
se forman alrededor de problemas políticos os grupos de recursos e cuya
formación, mantenimiento y cambio es obra de una serie de juegos". Os jogos são
entendidos como uma série de ações contínuas e consecutivas entre diferentes
atores, realizadas de acordo com, e guiadas por, regras formais e informais que
surgem em torno de temas ou decisões nos quais os atores têm interesse.

As políticas são os resultados destes jogos e envolvem atores em relação de


interdependência; recursos tais como poder, status, legitimidade, conhecimento,
informação e dinheiro; regras prevalecentes e mutáveis que são fruto das
interações e regulam o comportamento dos atores; e percepções que são imagens
da realidade na base das quais os atores interpretam e avaliam seu curso de ação
e também o dos outros atores.

Outra possibilidade de compreensão das redes remete-nos à dicotomia entre


aqueles que privilegiam as transformações na sociedade e sua capacidade de
mobilização e aqueles que enfatizam as mudanças no estado e na gestão das
políticas públicas.

17
No primeiro caso, na perspectiva societária e moblizatória encontramos autores
como Jacobi (2000: 156), para o qual as redes fortalecem-se como atores políticos
transnacionais na defesa de políticas públicas e “representam a capacidade de os
movimentos sociais e organizações da sociedade civil explicitarem sua riqueza
intersubjetiva, organizacional e política e concretizarem a construção de
intersubjetividades planetárias, buscando consensos, tratados e compromissos de
atuação coletiva”.

Para o autor as redes se inscrevem numa lógica que demanda articulações e


solidariedade, definição de objetivos comuns e redução de atritos e conflitos,
horizontalizam a articulação de demandas e se servem das modernas tecnologias
de informação para disseminar seus posicionamentos (Jacobi, 2000:134).

Da mesma maneira Scherer-Warren (1997) considera que as redes constituem um


nível intermediário crucial para se entender processos mobilizatórios já que
através dessas redes as pessoas interagem, influenciam-se mutuamente e se
engajam em negociações, ao mesmo tempo que produzem os esquemas
cognitivos e motivacionais necessários para a ação coletiva.

Devido às tecnologias de informática, surgem ainda as comunidades virtuais, cada


vez mais abrangentes, criadas por atores que se identificam com causas comuns
que vão constituindo um novo tipo de imaginário coletivo, redimensionando os
territórios de influência e de ação, se comunicando em tempo real.

Sherrer-Warrer (1997) elabora algumas questões a serem incorporadas à


metodologia de análise de redes acerca de quais são os “nós” da rede (lideranças
e mediadores); quais atores estão integrados ou excluídos da rede; como se dá a
conectividade da rede; que tipo de imaginário se constrói e quais são as naturezas
das interações.

Nesta perspectiva, os próprios movimentos sociais das sociedades complexas são


vistos como redes submersas de grupos, circuitos de solidariedade, que diferem
profundamente da imagem de um ator politicamente organizado.

Se na perspectiva societária privilegia-se a visão das redes como processos


mobilizatórios que geram conexões solidárias, na perspectiva que privilegia a

18
gestão das redes intergovernamentais e interorganizacionais, reconhece-se que a
complexificação do sistema intergovernamental significou um aumento das inter-
relações em todos os níveis de governo e da sociedade, alterando o modelo de
gestão das políticas públicas.

As redes intergovernamentais e interorganizacionais são vistas como "estruturas


de interdependência envolvendo múltiplas organização ou partes, onde uma
unidade não é meramente o subordinado formal da outra em um amplo arranjo
hierárquico", não importando se estas estruturas de colaboração envolvem
organizações não lucrativas ou vínculos com empresas lucrativas (O'Toole,
1997:45).

A proliferação de relações entre o governo e o chamado terceiro setor, na


execução de políticas públicas é apontada por Salamon (1995:22) como uma
mudança crucial nas formas de ação governamental, colocando desafios em
relação à accountability, gestão e coordenação das atividades governamentais. O
novo padrão extensivo de governo em associação com instituições não-lucrativas
responde tanto às demandas democráticas quanto às necessidades de corte no
gasto público, mas impõe novos desafias à gestão pública.

Estas alterações tornam necessário a revisão da concepção de gestão estratégica


à luz da especificidade das redes interorganizacionais.

Para Mandell (1990) no modelo de gestão estratégica “intra-organizacional” o


controle é baseado na autoridade legítima que parte da hierarquia. Com relação à
estrutura de poder, as estratégias dependem da habilidade da administração do
topo traçar as decisões, delegar e controlar o processo de implementação. Além
disso, as ações do administrador estão delimitadas a um contexto organizacional
específico. Diferentemente, na rede “interorganizacional” o controle não é uma
relação preponderante. Ainda que seus membros representem os diferentes níveis
de governo, não implica que haja um relacionamento hierárquico entre eles e cada
nível atua como unidade semi-autônoma. A posição de poder está relacionada à
influência que cada membro tem na viabilidade mesma da rede. As organizações
confiam umas nas outras para alcançar objetivos próprios e, nesse sentido, o

19
poder de uma organização aumenta na medida em que sua participação se torna
essencial para a preservação da rede. Além disso, o gestor está envolvido em
diversas redes, que se sobrepõem ou influenciam mutuamente.

A autora define algumas variáveis para analisar as características de cada tipo de


rede. Essas variáveis são:

 A “compatibilidade dos membros”, que corresponde aos níveis de congruência


de valores e de concordância sobre os objetivos. Nesse aspecto, o desafio
está em conciliar o objetivo da rede com os objetivos particulares dos
membros.

• O “ambiente de mobilização de recursos” corresponde à disponibilidade de


fundos e o tipo de controle sobre esses recursos.

• O “ambiente social e político” corresponde às bases de poder e o padrão de


conflitos. A autora considera o conflito como uma conseqüência inevitável na
relação de interdependência e deve ser aproveitado em seus aspectos
construtivos, como o “ajustamento” de poder e de recursos entre as
organizações.

A complexidade do fenômeno das redes de políticas pode ser espelhada nas


diferentes dicotomias (paradoxos) envolvidos na sua análise, alguns dos quais
forma apontados por Loiola e Moura (1996:58) ou por outros autores:

- Organizações/indivíduos (apontado por John, 1999)- muitos autores


identificam as redes como relações de interdependência entre organizações,
mas outros autores chamam atenção para o fato de que estas relações de dão
entre indivíduos que atuam dentro daquelas organizações e criam vínculos
entre si.

- Transitoriedade/permanência - as relações entre os diferentes atores ou nós


da rede apresentam-se em padrões mais ou menos estáveis, o que as
diferencia tanto de formas mais casuísticas quanto da formalização burocrática
do estado. Estas estruturas flexíveis transformam-se com a dinâmica da
própria rede.

20
- Cooperação/competição, solidariedade/conflito - as redes estruturam-se
como ações conjuntas de cooperação em torno de um problema e uma
solução compartilhados, o que não exclui a existência de singularidades e
conflitos. Mais que um consenso prévio o que existe é a negociação de
interesses competitivos.

- Igualdade/diversidade - os diferentes atores envolvidos em uma rede


resguardam sua diversidade ainda quando se igualam como parte de uma
estrutura conjunta.

- Racionalidade instrumental/ racionalidade comunicativa (na terminologia


de Junger Habermas) - a ação coordenada e interdependente requer a
construção do consenso comunicativo, mas a gestão das redes de políticas
implica na ação instrumental que vincula, racional e eficazmente, meios a fins
acordados.

- Construção/desconstrução - a dinâmica flexível das redes permite a


permanente construção e desconstrução tanto de padrões de interações como
dos próprios nódulos que compõe a rede.

Loiola e Moura (1996:64) resumem a contribuição teórica das abordagens de


redes, apontadas por diferentes atores ao afirmar que permitem superar as
limitações das abordagens atomistas e mesmo sistêmicas das organizações por
perceber os atores/agentes em suas interações, ou seja, a dinâmica do processo,
quebrando as divisões artificiais entre ator e estrutura e ambientes interno e
externo.

4. Formação e gestão de redes

A proliferação de redes de políticas nos leva a refletir sobre suas características,


fortalezas e debilidades, assim como sobre os problemas específicos envolvidos
na sua gestão.

21
As principais características das redes de políticas são a horizontalidade e a
interdependência entre os múltiplos nódulos ou participantes, o que as distingue
de outros formatos de gestão de políticas, como a contratação e as parcerias.

São em geral apresentadas como características vantajosas das redes de


políticas:

- dada a pluralidade de atores envolvidos nas redes é possível a maior


mobilização de recursos e garante-se a diversidade de opiniões sobre o
problema;

- devido à capilaridade apresentada pelas redes, a definição de prioridades é


feita de forma mais democrática, envolvendo organizações de pequeno
porte e mais próximas dos da origem dos problemas (Salamon, 1995);

- por envolver, conjuntamente, governo e organizações não-governamentais,


pode-se criar uma presença pública sem criar uma estrutura burocrática
(Salamon, 1995);

- devido à flexibilidade inerente à dinâmica das redes elas seriam mais aptas a
desenvolver uma gestão adaptativa que está conectada a uma realidade
social volátil, tendo que articular as ações de planejamento, execução,
retroalimentação e redesenho, adotando o monitoramento como instrumento
de gestão, e não de controle (1997).

- Por serem estruturas horizontalizadas em que os participantes preservam


sua autonomia, os objetivos e estratégias estabelecidos pela rede são fruto
dos consensos obtidos através de processos de negociação entre seus
participantes, o que geraria maior compromisso e responsabilidade destes com
as metas compartilhadas e maior sustentabilidade.

No entanto, algumas das características das redes são também apontadas como
limitadoras de sua eficácia ou gerando problemas e dificuldades para sua gestão,
tais como:

22
- as redes de políticas apresentariam novos desafios para garantir a rendição
de contas (accountability) em relação ao uso dos recursos públicos, pelo fato
de envolverem numerosos participantes governamentais e privados;

- o processo de geração de consensos e negociação pode ser


demasiadamente lento criando dificuldades para enfrentar questões que
requerem uma ação imediata;

- as metas compartilhadas não garantem a eficácia no cumprimentos dos


objetivos já que as responsabilidades são muito diluídas;

- a dinâmica flexível pode terminar afastando os participantes dos objetivos


iniciais ou comprometer a ação da rede pela deserção de alguns atores em
momentos cruciais;

- os critérios para participação na rede não são explícitos e universais e podem


provocar marginalização de grupos, instituições, pessoas e mesmo regiões,
podendo deixar a política apenas nas mãos de uma elite;

- as dificuldades de controle e coordenação das interdependências tende a


gerar problemas gestão das redes.

A gestão estratégia de redes é considerada, por alguns autores, como a grande


lacuna nos estudos atuais deste campo. Os modelos de gestão foram pensados
para situações intraorganizacional que diferem das estruturas interorganizacionais
em aspectos cruciais:

23
INTRAORGANIZACIONAL

. Controle baseado em uma autoridade legítima; fluxo hierárquico.

. Exercício do poder depende da habilidade do chefe para controlar o processo


(ainda que haja descentralização de funções e ações. Gestão a cargo de um
gestor particular em um contexto organizacional específico.

INTERORGANIZACIONAL

. Unidades semiautônomas ou independentes, relações horizontais.

. Exercício baseado na crença e confiança nos outros membros para chegar às


metas de cada um. Poder é diverso, não descentralizado.

. Gestores podem estar envolvidos em muitas redes funcionais simultâneas,


podendo cada uma influenciar e sobrepor-se às ações das outras.

Baseado em Mandell (1990)

A gerência intergovernamental corresponderia ao manejo de políticas e programas


públicos por meio de redes interorganizacionais, cujas características ou
qualidades principais seriam, segundo Wright (1983) o enfoque na solução de
problemas, o comportamento estratégico e as redes de comunicação. “Estas
características referem-se às habilidades para alcançar coordenação e controle,
para desenvolver um padrão de contatos dentro do sistema de redes e para
manejar interdependências” (Mandell, 1990:33).

Se as redes são formadas por atores, recursos, percepções e regras (Klijn at all,
1995), estes são elementos chave a serem considerados não apenas na análise
como também na gestão das redes.

24
Em relação aos atores devemos considerar que estão em uma situação de
interdependência em uma rede, gerada pela necessidade de compartilhar
recursos para atingir um objetivo comum. Cada ator específico tem seus objetivos
particulares, mas seria limitado imaginar que sua participação em uma rede seria
conseqüência de suas carências e do mero comportamento maximizador para
atingir seu objetivo pessoal ou organizacional. A construção de uma rede envolve
mais do que isto, ou seja, requer a construção de um objetivo maior que passa a
ser um valor compartilhado, para além dos objetivos particulares que
permanecem.

A habilidade para estabelecer este mega-objetivo, que implica uma linha básica de
acordo, tem a ver com o grau de compatibilidade e congruência de valores entre
os membros da rede (Mandell, 1999). Para chegar a este tipo de acordo é
necessário desenvolver arenas de barganha, onde as percepções, valores e
interesses possam ser confrontados e negociados.

A estruturação destes espaços e processos de negociação faz parte da dimensão


da estrutura da rede, que diz respeito à institucionalização dos padrões de
interação. O estabelecimento de regras formais e informais são um importante
instrumento para a gestão das redes (Bruijn and Heuvelhof, 1997) porque
especifica a posição dos atores na rede, a distribuição de poder, as barreiras para
ingresso, etc.

As regras constituem práticas sociais e orientam os comportamentos dos atores


(Klijn, 1996), requerendo seu prévio conhecimento e a interpretação comum por
parte dos membros da rede. Sendo produto das interações dos atores as regras
devem ser construídas e/ou alteradas como parte da dinâmica interacional entre
atores.

A existência de diferentes atores possuidores de distintos recursos deve ser


considerada tanto do ponto de vista interno como externo à rede. A capacidade de
mobilização de recursos pelos membros da rede depende tanto dos recursos que
cada um controla quanto das ligações externas que estabelece. O poder de cada
membro dentro de uma rede vai depender da centralidade de suas funções para a

25
rede (ou seja, o controle de recursos), como também das ligações de cada
organização a um padrão mais amplo de organizações. (Benson, 1975).

Na gestão das redes o foco está colocado nos processos de interação entre os
diferentes atores e os meios pelos quais estes processos podem ser estimulados,
mantidos ou mudados, quando necessário. O conflito entre as organizações é
visto como um produto inevitável das interdependências entre elas e deve ser
ativamente gerenciado. O apoio a uma política que favoreça os objetivos de vários
atores é uma estratégia da gerência das redes, assim como a ativação seletiva por
meio do uso de incentivos para desenvolver arranjos organizacionais – coalizões -
e interações entre os atores (Klijn, 1996).

Os atores agem em função de suas percepções em relação aos demais atores e


às expectativas de seus comportamentos. Com base nestas percepções, nos seus
recursos e interesses e nas regras estabelecidas, cada ator define sua estratégia
de ação. As redes são caracterizadas por configurações específicas de
percepções que são relacionadas à história e natureza de cada rede (Klijn at all,
1995:440). A gerência das redes muitas vezes deve se enfrentar a questões
relativas à mudança das regras de interação, aos valores e às percepções, que
podem ser promovidas a partir de debates abertos, de processos de avaliação e
aprendizagem e/ou por meio da entrada de novos atores.

Os elementos condicionadores do êxito da gestão de redes, apontados por


Agrannoff e Lindsay (1983), seriam:

- despender grande esforço para chegar a entendimentos comuns;

- alcançar situações em que todos ganham;

- envolver os reais decisores políticos e administrativos;

- focalizar questões específicas;

- avaliar permanentemente e negociar as soluções;

- criar um marco para a ação cotidiana.

26
Para Klijn at all (1995), a gerência exitosa de redes deve basear-se nas seguintes
condições:

- ativar seletivamente atores e recursos;

- limitar os custos da interação;

- buscar compromisso dos participantes;

- oportuna atenção a aspectos políticos e administrativos;

- qualidade e abertura da interação.

Como uma das características das redes é o fato de serem policêntrica, também
encontraremos que a gerência não é mais uma estratégia exclusiva para um ator.
O papel do gestor das redes de políticas é, portanto, um importante aspecto a ser
pensado, já que ele pode ser desempenhado por cada um dos atores, por vários
deles simultaneamente, ou mesmo por um mediador externo ou facilitador (Klijn,
1996:105).

Os padrões tradicionais da teoria e práticas da administração pública não se


aplicam à gerência das redes de políticas, pois os gerentes de redes não
supervisionam o desempenho dos difusos participantes das redes. Neste caso, o
gestor deve buscar instrumentos que lhe permitam conduzir pesquisas regulares
sobre as alianças que possui e identificar pontos de coordenação do conjunto de
atores. (O’Toole, 1997).

Duas habilidades distinguem-se como imprescindíveis para garantir o


comportamento mobilizador da liderança das redes: a habilidade de somar forças
e a habilidade de alcançar metas comuns.

Para Mandell (1990) como as redes diferem em relação aos tipos de mecanismos
de coordenação isto vai requerer diferentes estilos compatíveis de gerência. As
estruturas dos arranjos interorganizacionais correspondem, basicamente, a três
tipos de interdependências, cujo desenho tem um importante impacto na
performance futura e na natureza da gestão. Na rede “não mediada”, ou

27
voluntária, a coordenação se inicia com a participação das organizações, que
assumem igual posição na rede. Na rede “mediada”, a coordenação se inicia por
uma autoridade e pode ser “imposta” verticalmente pelo responsável legal e
financiador, ou ainda pode ser “articulada” horizontalmente por uma agência
designada e que não se sobrepõe aos demais membros.

Cada uma das estruturas identificadas requer diferentes papeis do líder, já que
para umas é vital a construção da própria mediação entre pares, enquanto para
outras esta questão está resolvida desde a constituição legal da rede e o que se
requer é a coordenação dos processos de negociação e de gestão das
interdependências. A autora identifica alguns estilos de gestão estratégica,
compatíveis às necessidades de cada contexto, num continuum que vai desde o
autocrata benevolente, que assume o papel de um “líder de orquestra”, até o
mediador de trabalhos, que apenas assegura às partes a consumação do acordo,
como um líder laissez-faire”. No centro desse continuum há o líder democrático,
que atua como um “produtor de cinema”, desempenhando um papel ativo no
alcance de resultados e na motivação dos participantes.

Em qualquer caso, no entanto, a gestão de redes implica na gestão de


interdependências, o que termina por aproximar os processos de formulação e
implementação de políticas e exige o desenvolvimento de formas de coordenação
e controle.

A interdependência é uma condição na qual cada organização depende de outra,


sem que isto implique relação de subordinação entre elas. Na condição de
interdependência o comportamento de uma parte não pode ser visto isoladamente
dos demais o que aumenta o grau de incerteza para cada uma delas. A
coordenação das interdependências deve levar em conta dois aspectos: a
coordenação das relações de causa-efeito e insumo-produto entre as parte, e, a
necessidade de redução da incerteza para todos.

Uma parte importante da coordenação é o estabelecimento de processos de


decisão que sejam contínuos e estáveis, sejam eles partes formais da estrutura da
rede ou não. Os instrumentos usados na gestão da rede que favorecem a

28
coordenação podem ser do tipo regulatório, financeiro ou comunicacional (Bruijn
and Heuvelhof (1997). No entanto, deve-se evitar os riscos de desenvolver
estruturas formais que sejam inapropriadas ao problema e cujo desenho altere a
estrutura de forma a ameaçar a própria existência e o equilíbrio dentro da rede.

Existe um paradoxo inerente à indispensável preservação da autonomia dos


membros da rede e a necessidade de desenvolver mecanismos de coordenação
interorganizacional para garantir a efetividade de suas ações. O processo de
desenvolvimento da coordenação interorganizacional contem as sementes da
desintegração que são devidos ao aumento da formalização e monitoramento o
que leva ao conflito e aumenta o dissenso entre os participantes que lutam por sua
autonomia funcional apesar de sua crescente interdependência (Van de Ven e
Walker, 1984).

O estabelecimento de canais de comunicação entre os membros da rede parece


crucial para o desenvolvimento de valores e objetivos coletivos, permitindo a
emergência de uma teia de interdependências e o crescimento da coordenação
interorganizacional, que não ameace o equilíbrio da rede. Canais informais
baseados em relações pessoais entre pares de indivíduos também costumam ser
de grande utilidade no desenvolvimento da coordenação.

Para Benson (1975:235) “uma rede interorganizacional é equilibrada na extensão


em que as organizações participantes estão engajadas em interações altamente
coordenadas, interações cooperativas baseadas no consenso normativo e no
respeito mútuo”. O autor identifica as quatro dimensões do equilíbrio
interorganizacional como sendo o consenso em relação ao domínio (campo de
atuação), o consenso ideológico (valores compartidos), a avaliação positiva dos
outros membros e a coordenação do trabalho.

Muitos autores sugerem a substituição dos métodos tradicionais de planejamento


pelo incrementalismo, no qual os administradores, ao invés de definirem objetivos
e as estratégias para alcançá-los, refinam suas idéias diversas vezes,
aprimorando ou contrariando a conduta precedente. O incrementalismo permite
manter o tema central da discussão constante e adaptar meios e fins de ações

29
mais operacionais. Para a implementação do planejamento incremental são
necessários o desenvolvimento de um sistema de informação que permita o
seguimento e a avaliação periódica das ações e o estabelecimento de canais
efetivos de comunicação e negociação.

Metcalfe (1997:238), no estudo da integração regional propõe que o fortalecimento


da coordenação deve obedecer a uma seqüência de etapas:

1. As organizações se administram independentemente em suas


jurisdições

2. Intercâmbio de informações entre as organizações (comunicação)

3. Consultas entre as organizações (Feedback)

4. Evitar divergências de políticas (falar com uma só voz)

5. Buscar o consenso sobre políticas (gerência do conflito)

6. Mediação e conciliação

7. Arbitragem de conflitos organizacionais

8. Estabelecimento de parâmetros comuns

9. Estabelecimento de prioridades

Para superar os problemas de coordenação na gestão intergovernamental, que


envolve elevados níveis de complexidade, diversidade e dependência Agranoff e
Lindsay (1983) fazem quatro considerações fundamentais:

1- O contexto constitucional, legal, estrutural das diferentes organizações


envolvidas necessita ser reconhecido e confrontado de alguma maneira. Só
assim será possível reconhecer e aceitar as diferenças em relação à definição
de missões, estrutura, processos e procedimentos, respeitando a autonomia
dos envolvidos e definindo responsabilidades nas ações, compatíveis com as
especificidades de cada membro.

30
2- Reconhecimento da natureza política da tarefa como inevitável em um
processo que envolve atores com diferente visões políticas do problema. Para
superar os problemas que podem surgir desta diversidade é necessário
estimular o diálogo franco que permita identificar as barreiras que podem
comprometer a ação coletiva. Quando a rede envolve atores governamentais e
não-governamentais é necessário que o setor privado seja considerado um
parceiro e não como dependente do governo.

3- Todo problema das redes de políticas envolve uma dimensão técnica


requerendo o envolvimento de especialistas e o uso de instrumentos técnicos
como ponte entre as diferentes perspectivas. Deve-se estabelecer um fluxo de
informação contínua entre o grupo técnico e os atores políticos.
Estabelecimento de diferentes níveis de trabalho preservando, no entanto a
administração das ações separadamente em cada organização.

4- Focalização na solução de problemas, envolvendo todos os atores políticos no


processo decisório, buscando estabelecer um processo pragmático de
construção de uma agenda que minimiza os conflitos. A definição de uma
agenda e de um plano comum com todos os membros deve levar em conta a
necessidade de estimulá-los a negociar este plano com suas agências. A
gestão deve ser mais adaptativa que usar técnicas de planejamento racional.

5. Para Concluir: Redes de Políticas Sociais

A proliferação de redes de políticas sociais deve-se, em primeiro lugar aos dois


macro fenômenos que definem o contexto atual destas políticas, ou seja, os
processos de descentralização e de democratização que marcaram as sociedades
latino-americanas nas últimas décadas.

Se os processos de descentralização provocam uma fragmentação inicial da


autoridade política e administrativa, eles geram formas novas de coordenação que

31
buscam garantir a eficácia da gestão das políticas públicas. O perigo para as
autoridades locais é decorrente da perda da coesão garantida pelos sistemas
centralizados e pelo fortalecimento da autonomia e independência funcional das
unidades sem o desenvolvimento de contrapesos que garantam a integração do
sistema de políticas e a agregação e coerência necessárias ao êxito dos governos
locais (Pratchett, 1994).

Para Cole e John (1995) o interesse em adaptar o conceito de redes de políticas


para estudar padrões de governança local reside no reconhecimento da
multiplicidade dos atores locais que são dependentes um do outro e cuja
cooperação pode ajudá-los a enfrentar pressões externas, reduzir as incertezas e
aumentar a eficiência em suas ações políticas.

O conceito de redes foi também amplamente utilizado na análise de processos de


integração regional, como na formação da Comunidade Européia por sua grande
utilidade na análise das políticas da CE por ser uma rede pluralística (Metcalfe,
1977) os estados membros conservam sua autonomia e suas identidades
individuais, compartindo responsabilidades para a gestão de políticas em comum,
e por desenvolver um padrão de interdependência coordenada (Rhodes, 1986).

Apesar de que a rede permite a desterritorialização dos mercados e das políticas


econômicas, como parte do fenômeno de globalização e dos processos
supranacionais de integração regional, existe uma forte tendência, no campo das
políticas sociais, para a criação de redes locais, que vinculam fortemente a gestão
das políticas ao território e à uma população específica.

Fica evidente a incapacidade dos governos centrais darem resposta aos


problemas sociais, especialmente no contexto atual de redução do papel das
burocracias e dos recursos do governo centrais. A complexidade dos problemas
sociais, a diversidade de atores e interesses conflitivos envolvidos, a crescente
mobilização da sociedade civil cobrando atenção diferenciada que respeite as
diferenças sociais, a organização de um setor não-governamental que atua cada
vez mais no campo das políticas sociais e o aumento da ação social das

32
empresas, são fatores que impulsionam e explicam o florescimento das redes de
políticas sociais.

A percepção crescente de que a descentralização, como transferência de poder


de decisão às autoridades locais e mesmo aos usuários não garante a eficácia
das políticas sociais tem levado estudiosos a identificar este déficit de eficácia em
função de vários fatores e apontar possíveis soluções:

- a falta de articulação das políticas econômicas e sociais. Em geral, a política


social vem operando em áreas sem autonomia e sem participação nas
decisões que a afetam, estando subordinadas às políticas econômicas.
(Kliksberg, 1997).

- apesar de que com a descentralização os serviços se dirigem aos mesmos


grupos sociais que ocupam um mesmo espaço geográfico, sua execução se
realiza d forma isolada por meio de cada política setorial. Se bem os problemas
sociais se manifestam setorialmente, sua solução depende da ação de mais de
uma políticas, de uma ação que considere a população de forma integral. Só
através da intersetorialidade é possível uma ação integradas das políticas
sociais que garanta a universalidade, integridade e equidade. (Junqueira,
1998).

- A agenda de políticas sociais tende a excluir os temas conflitivos e a


concentrar em questões administrativas de menor importância. Torna-se
necessário então buscar uma abordagem “substancial”, que reconheça e
resolva os conflitos, conduzindo processos de negociação utilizando modelos
técnicos avançados. (Kliksberg, 1997).

- A necessidade aumentar a flexibilidade na gestão das políticas sociais deve ter


em conta que isto não representa um alívio da tarefa gerencial. Primeiro
porque a expansão das competências legais nem sempre é acompanhada pelo
correlativo aumento das capacidades gerenciais e, segundo, porque a
flexibilidade aumenta a complexidade do sistema, requerendo à ação
administrativa diferentes bases para diferentes campos de política. (Metcalfe,
1997).

33
- É necessário a introdução de uma gerência social adaptativa para tornar
eficazes políticas que enfrentam problemas de elevada complexidade e que se
desenvolvem em contexto de alta turbulência política e instabilidade
institucional. A não separação entre formulação e implementação das políticas
assim como a introdução de mecanismos de monitoramento das políticas
sociais são requisitos para o desenvolvimento da imprescindível aprendizagem
institucional.

- Somente com a utilização de instrumentos como o planejamento estratégico e


a análise de atores envolvidos e dos processos de negociação é possível dar
consistência e sustentabilidade aos programas e projetos sociais. As
negociações só serão efetivas se baseadas em relações de confiança entre
todos os atores envolvidos.

- A participação da população na formulação e gestão das políticas sociais cria


as condições para o desenvolvimento da cidadania e emancipação dos setores
populacionais mais marginalizados, ao mesmo tempo em que transforma as
estruturas autoritárias do estado, gerando formas de co-gestão pública.

- O papel de liderança dos governos locais na articulação de atores públicos e


privados indica que ao invés de um enfraquecimento do estado o que as rede
locais sinalizam é em direção a sua transformação. Na gestão das políticas
sociais, as redes viabilizam a otimização dos recursos disponíveis e a
democratização na tomada de decisão, gerando ao mesmo tempo
conhecimentos que lhes são próprios, numa perspectiva transetorial.
(Junqueira, 1998).

- O gestor público deve deixar de ser um cumpridor de planos para ser um


negociador, capaz de incentivar o diálogo, coletivizar idéias, formular
alternativas e articular a ação conjunta. Nesse sentido, “o gerente negociador,
que trabalha com a participação, com o diálogo e com autonomia, tem, na
informação, o instrumento fundamental de sua ação. Essa perspectiva requer
do gerente a capacidade de captar, transferir, disseminar e utilizar a
informação de formar pró-ativa e interativa” (Junqueira e Inosa, 1992: 29).

34
Podemos, portanto concluir que as redes de políticas sociais são um instrumento
fundamental para a gerência das políticas sociais e, mais ainda, que elas
permitem a construção de novas formas de coletivização, socialização,
organização solidária e coordenação social, compatíveis com a transformação
tanto da sociedade civil quanto do Estado.

Offe (1998) refere-se a três princípios de coordenação dos indivíduos e


organizações da sociedade, cada um deles com seu fundamento e valor próprios:
o Estado cujo fundamento é a razão e o valor a igualdade, o mercado cujo
fundamento é o interesse e o valor a liberdade, e a comunidade, cujo fundamento
é a paixão e o valor é a solidariedade. Não há dúvidas que as políticas sociais
deveriam buscar uma forma de articulação ideal entre os princípios fundamentais
e entre os valores que movem as ações neste campo.

A emergência de redes de políticas representaria a tentativa de criação de novas


formas de coordenação, que fossem capazes de responder às necessidades e
características do contexto atual, onde o poder apresenta-se como plural e
diversificado.

Neste sentido, as redes transcendem o papel de um mero instrumento gerencial,


na medida em que permitem gerar relações baseadas na confiança (capital social)
e processos gerenciais horizontalizados e pluralistas (esfera pública democrática).

No entanto, a existência de estruturas policêntricas não pode escamotear a


persistência da desigual distribuição do poder, nem as dificuldades gerenciais
inerentes ao processo de gestão pública em uma estrutura reticular.

É necessário também ter em conta as limitações das redes de políticas no


cumprimento de certas funções públicas, de caráter nitidamente estatal, como, por
exemplo, a garantia de direitos sociais e a regulação.

Finalmente, é necessário ter em conta os novos desafios impostos pelos


processos de fragmentação e exclusão social que impedem a geração de
consensos e ameaçam as condições de governabilidade em nossas sociedades.

35
A diversidade ou aceitação do outro como diferente, a pluralidade e o
reconhecimento do outro como parceiro, a ação coordenada e interdependente, a
negociação dos conflitos e a busca de um objetivo comum, requerem uma
sociedade com uma cultura democrática e uma estrutura de distribuição da
riqueza e do poder mais igualitária. Neste sentido, a democracia é tanto um pré-
requisito quanto o resultado da ação das redes de políticas.

Ou seja, sem assumir uma visão meramente instrumental das redes de políticas,
não podemos também imaginá-las, ingenuamente, como solução para todos os
problemas envolvidos no campo das políticas públicas.

36
Capítulo 2 - Redes em Administração Pública: Interdependência como novo
Paradigma de Gestão

Este capítulo tem por objetivo contextualizar o fenômeno das redes de


gestão pública no processo de reforma do Estado (seção 2.1), compor um
histórico das redes no âmbito das ciências sociais com ênfase na literatura em
administração pública (seção 2.2), desenvolver uma análise da produção
acadêmica de redes presente da literatura internacional em administração pública
desde o início da década de noventa, selecionando os fundamentos conceituais e
estruturais de construção das redes (seção 2.3). Finalmente, são apresentadas,
de acordo com a literatura internacional em administração pública, o diferencial
das redes como forma de coordenação pública no desenvolvimento de
competências especiais para a gestão de interdependências (seção 2.4).

2.1 - Introdução

Os desafios da administração pública como arena legítima no processo de


evolução das democracias contemporâneas no Ocidente intensificaram-se de
forma notável durante a década de noventa, envolvendo a emergência de
diferentes movimentos e estratégias de reformulação dos mais variados processos
de inserção do Estado nas esferas pública e privada, ou seja, de redefinição das
relações e da dinâmica de intercâmbio de recursos entre este, a sociedade e o
mercado. Estas transformações envolvem o surgimento de novas questões e
impasses em diferentes manifestações da ação estatal relacionadas aos campos
social, econômico e político expandindo e potencializando a problemática da
eficácia e da eficiência do Estado. Nesse contexto, emergem questões
fundamentais como a continuidade dos impasses relativos à proteção social, os
impactos no mercado de trabalho provenientes da reorganização produtiva
provocada pela crise fordista-taylorista, a ênfase na necessidade de estender o
princípio de mercado como mecanismo de orientação da economia em detrimento
da condução estatal, o intenso movimento de internacionalização das economias,

37
os desafios da reconstrução das bases da cidadania, a redefinição dos sistemas
políticos em busca de formatos mais horizontalizados e fragmentados de
governança, a necessidade de reformular as bases da democracia liberal
representativa, entre outros (FLEURY, 2004; SØRENSEN, 2002; KETTL, 2001;
OSBORNE e GAEBLE, 1992; GILPIN, 2004; ABRUCIO, 2001; CASTELLS, 1999;
CASTEL, 1997; KYMILICKA e NORMAN, 1997; ESPING-ANDERSEN, 1995).
Como resposta a esses desafios, emergiu uma multiplicidade de
transformações nas mais diversas dimensões de atuação do Estado ocasionando
reformulações que podem ser observadas não só nos arranjos de provisão de
bens públicos, nos sistemas de proteção social e regulação econômica, nos
paradigmas de gestão governamental e na cultura organizacional subjacente, mas
também nos modelos de concepção e coordenação do ciclo de políticas públicas,
na revisão das estratégias de condução do processo decisório, nas questões
relacionadas às mudanças na configuração das relações entre as esferas
governamentais, nas formas de intermediação de interesses e nos mecanismos de
mobilização de suporte político necessário ao exercício da governança
democrática num ambiente de crescente interdependência. Neste sentido, o que
se apresenta de forma subjacente aos movimentos de redefinição da esfera
estatal é a concepção de uma crise não apenas dos aspectos operacionais e
microeconômicos revelados na composição das estruturas organizacionais, mas
uma necessidade de compreensão das novas possibilidades de construção
institucional do Estado como ator e arena política, uma vez que além da presença
de estratégias de modernização gerencial, também são observados movimentos
de re-alocação do poder do Estado em nível internacional, com a redução de sua
soberania e de redefinição de suas relações com a comunidade interna. Esta
última se manifesta tanto nos novos arranjos de poder presentes nos sistemas
políticos de governança que se mostram mais fragmentados e organizados de
forma dispersa (RHODES, 1997; STOKER, 1998), quanto nas relações com os
indivíduos que compõem a comunidade de cidadãos (KYMILICKA e NORMAN,
1997).

38
Tanto os novos desafios quanto as respostas surgidas e pensadas em torno
de novos caminhos possíveis têm sido apontados por diversos ramos das ciências
sociais, às quais se apropriam dos aspectos e dimensões que interessam ao seu
objeto de estudo. Esse processo de disseminação da crise do Estado para a
academia tem provocado a emergência de novas idéias, concepções e teorias em
busca de novos paradigmas (ABERBACH e CHRISTENSEN, 2003; SØRENSEN,
2002; FLEURY, 2001). Como reflexo setorial amplamente visível deste processo,
a literatura internacional sobre administração pública apresentou significativas
inovações e re-direcionamentos em seus fundamentos teóricos, abrangendo
inclusive, a possibilidade de revisão de seus pilares clássicos e o surgimento de
novos paradigmas. Da mesma forma, as décadas de oitenta e noventa assistiram
ao aprofundamento do processo de internacionalização das questões e teorias
que constituem o objeto de estudo da Administração Pública como área de estudo
específica, uma vez que, historicamente se desenvolveu quase que isoladamente
no interior das escolas americana, britânica e centro-européia, cada qual com
suas abordagens particulares (BOGASON e TOONEN, 1998).
A emergência universal da crise financeira do Estado nos países
desenvolvidos motivou a difusão de estratégias de restrição dos dispêndios
públicos e, conseqüentemente, de redução da ação estatal. Tal processo,
conduzido por coalizões políticas de direita, impulsionou a adoção generalizada
das concepções e técnicas do New Public Management (BARZELAY, 2000;
SKALÉN, 2004; HOOD, 2001), sendo as agências internacionais de fomento como
OCDE, FMI, BID, entre outras, seus principais patrocinadores. A busca pela
eficiência e pela responsabilização na administração pública induziu à
implementação de inovações gerenciais que, malgrado a resistência de outras
academias, principalmente as européias, se inseriram em diversos processos de
reforma do Estado nos países desenvolvidos. O desenvolvimento do NPM como
estratégia de modernização do Estado direcionou a atenção dos movimentos de
reforma estatal para os aspectos internos e operacionais da gestão pública, o que
se explica pela composição de seu conteúdo ideológico e teórico. Hood (1991)

39
identificou as proposições que fundamentam as estratégias do NPM e as
sintetizou num núcleo doutrinário contendo sete elementos centrais:

1) Composição de uma elite profissional de gerentes com


liberdade de ação e responsabilidade por seus atos;
2) Utilização explícita de padrões e medidas de performance
(definição de metas e indicadores) compondo uma
administração por objetivos;
3) Maior ênfase no controle de resultados do que de
procedimentos, relacionando a alocação de recursos com a
mensuração da performance;
4) Transformações visando à desagregação das unidades que
compõem o setor público, na tentativa de romper com a
estrutura monolítica e centralizada de provisão de serviços,
descentralizando-a, separando as funções de produção e
provisão e buscando ganhos de eficiência por meios de
instrumentos de contratualização;
5) Transformações visando à ampliação da competição no setor
público, inserindo a concorrência como forma de redução dos
custos e de obtenção de melhores padrões de qualidade;
6) Ênfase no estilo privado de práticas de gestão por meio do
emprego de práticas e ferramentas de mercado, buscando
maior flexibilidade na alocação de recursos;
7) Ênfase na disciplina maximizadora de utilização constante dos
recursos públicos, envolvendo o desenvolvimento de sistemas
de custos e de ferramentas que possibilitem a realização de
‘mais com menos’.

Todavia, a manifestação de fenômenos além dos aspectos gerenciais,


como transformações relacionadas às estruturas de relações intergovernamentais,
nas formas de intermediação de interesses e de organização dos sistemas

40
políticos ocidentais, entre outras já referenciadas como integrantes do processo de
reconstrução do Estado, tornam as premissas e estratégias do NPM insuficientes
para compor um novo paradigma duradouro da Administração Pública, sem
mencionar os próprios paradoxos internos verificados nos processo de reforma já
analisados (HOOD e PETERS, 2004). Além disso, questões ainda não
devidamente incorporadas ao debate como as resultantes da necessidade de
redefinição de padrões de proteção social e de concepção da cidadania, de
estruturação de instâncias de democratização na definição das prioridades do
planejamento público, de reconhecimento da insuficiência da representatividade
democrática como mecanismo de garantia de acesso eqüitativo às decisões do
Estado, entre outros, evidenciam que a reconstrução da esfera estatal requer a
condução de uma abordagem multidisciplinar bem além das propostas do NPM.
Concomitantemente ao desenvolvimento do “mainstream” representado
pelo NPM, diversas abordagens teóricas como o Neo-Institucionalismo, Rational
Choice, Transaction Cost Economics, entre uma diversidade de concepções, se
inserem como linhas de pesquisa dentro da administração pública e buscam
espaço na agenda de reforma do Estado. No entanto, a insuficiência de respostas
seguras e coerentes, proporcionando espaço e clamando por abordagens mais
abrangentes e multidisciplinares, fez com que Bogason e Toonen, numa análise
sobre o desenvolvimento da administração pública como campo teórico nas duas
últimas décadas, afirmassem que “[...] by the beginning of the 1990s, Public
Administration theorists again feel the need to do some stocktaking, and at this
point the consequences of the growth in network analyses of various kinds are felt”
(BOGASON e TOONEN, 1998, p. 219).
Neste sentido, a emergência do conceito de redes no contexto da
administração pública nos anos noventa indica a insuficiência de uma série de
abordagens teóricas tradicionais, que aplicadas às diversas dimensões de atuação
do Estado buscavam explicar e inferir padrões de comportamento dos atores
envolvidos. Na medida em que tais paradigmas não mais suportaram explicações
convincentes frente à emergência de padrões de organização marcados por
crescente fragmentação e interdependência dos formatos organizacionais e inter-

41
relacionais, o conceito de redes surge como a abordagem mais promissora,
justamente por apresentar os pilares teóricos mais apropriados à descrição e
análise destes novos elementos.
Assim, a literatura de administração pública aponta a emergência de um
novo paradigma de gestão pública fundamentado na concepção de redes como
resposta aos processos de transformação da estrutura do Estado e de suas
relações com a Sociedade Civil. Esta literatura enfatiza as potencialidades
singulares das redes como sistemas de coordenação sócio-econômica e política,
afirmando ser o único referencial capaz de responder com eficácia e eficiência aos
desafios atuais da administração pública como arena de construção da
democracia.

42
2.2 - Histórico do Fenômeno

Apesar do crescente interesse pelas formas de organização em rede,


principalmente na literatura internacional sobre administração pública, a
emergência do conceito de redes nas ciências sociais não é um fenômeno
recente. Os primeiros estudos fundamentados na noção da existência de uma
estrutura relacional multicêntrica subjacente à organização social remontam aos
primórdios do século XX, mais precisamente à década de 1930, quando foram
anunciados os trabalhos baseados no desenvolvimento da sociometria. A
construção da técnica sociométrica por Jacob Moreno em 1934 (WASSERMAN e
FAUST, 1994) fundamentava-se teoricamente nos estudos de psicologia social e
buscava descrever e analisar a estrutura interpessoal presente no comportamento
de pequenos grupos. Para tal, foi desenvolvido um sistema de composição gráfica,
no qual cada indivíduo era representado por pontos numa escala bidimensional
ligados por linhas que delineavam a estrutura de relações do grupo.
Os desenvolvimentos posteriores desta técnica registraram tanto sua
sofisticação conceitual quanto a incorporação de diversos instrumentos
matemáticos e estatísticos, possibilitando sua incorporação por diversas áreas de
estudos das ciências sociais, como estudos antropológicos, políticos e
organizacionais. Numa perspectiva próxima aos trabalhos relacionados à
sociometria, é possível identificar o desenvolvimento de estudos sociológicos
iniciados na década de 1960 na Universidade de Harvard com o desenvolvimento
de modelagens matriciais de papéis sociais visando mapear padrões de
homogeneidade subjacentes às relações sociais em grupo e compará-los para
poder inferir características da estrutura social.
No interior da tradição de análise de redes sociais Berry et al (2004)
enfatizam ainda a relevância dos estudos provenientes dos antropólogos de
Manchester nas décadas de 1950 e 1960. Diferentemente da perspectiva
sociométrica, estes enfatizavam tanto a relevância dos padrões estruturais quanto
a presença do contexto cultural no qual esta estrutura se insere. Assim, a
construção de papéis sociais consistia num processo inter-relacional, ou seja, que

43
se forma nas diversas relações com outros indivíduos desempenhando papéis
variados como os presentes em relações de amizade, de trabalho, entre outros.
Tal concepção teórica originava uma interpretação do tecido social como sendo
formado por um conjunto de papéis (ou redes) que formam e definem suas
identidades num processo interativo com seus respectivos contextos sócio-
culturais.
Além da tradição sociológica, fortemente fundamentada sobre a relação
entre teoria social e o emprego de metodologias matemáticas e estatísticas,
estudos sobre relações políticas no interior de áreas específicas de política pública
podem ser colocados como um campo à parte devido à suas especificidades
teórica, metodológica e de objeto. Tais estudos originam-se das controvérsias dos
cientistas políticos das décadas de 1950 e 1960 no Estados Unidos sobre a
natureza das relações entre grupos de interesse e a burocracia estatal, tendo
como questão central o debate sobre a autonomia do Estado. A observação de
padrões regulares de intercâmbio entre grupos de interesses, políticos e a
burocratas suscitaram críticas tanto ao Pluralismo quanto ao Corporativismo como
modelos e teorias de intermediação de interesses entre Estado e Sociedade, na
medida em que tais padrões não se encaixavam devidamente aos pressupostos
teóricos de nenhum dos dois, tanto devido ao fato de que tais arranjos interativos
poderiam tornar-se dominantes e impedir a presença de outros grupos quanto pela
ausência de hierarquização dos atores. As controvérsias deram origem a uma
série de modelos híbridos (“subgovernos”, “corporativismo societário e estatal”,
“pluralismo de pressão”, “triângulos de ferro”, entre outros) que, da mesma forma
que os modelos puros, não eram suficientes:

These refinements of the two models, however, also appear


to be problematic because very often similar labels describe
different phenomena, or different labels refer to similar
phenomena, which often leads to confusion and
misunderstanding in the discussion of state/interest relations.
Some authors therefore suggested abandoning the pluralism-

44
neo-corporativism dichotomy and developed a new typology
in which the network is a generic label embracing the different
types of state/interest relations. For them, the network
approach presents an alternative to both pluralist and the
corporatist model. (BÖRZEL, 1998, p. 256).

Ainda segundo Börzel (1998), embora a temática de concepção de redes


como sendo padrões de intercâmbio de recursos entre atores públicos e privados,
por meio do estabelecimento de relações de interdependência, seja
predominantemente americana, a literatura britânica também adota abordagens
semelhantes para o conceito de redes. Sobre este aspecto, autores como Marsh e
Rhodes (1992) apresentam modelos estruturais para demonstrar como a
existência de redes como formas de intermediação de interesse afetam os
resultados das políticas públicas.
Finalmente, dentro dos estudos sobre redes em ciência política é possível
distinguir as tradições centro-européias representadas pela literatura alemã e
holandesa, que se desenvolveram predominantemente durante a década de
noventa e adotam uma perspectiva mais ampla de concepção do conceito de
redes, associando-o a uma forma de governança alternativa tanto à organização
burocrática quanto a proporcionada pelo mercado, ainda que a partir de
perspectivas diferentes (BORZEL, 1998; MARSH, 1998).
Embora o fenômeno de expansão das redes em administração pública seja
mais recente do que as tradições sociológica e política, e somente tenha ocorrido
ao longo da década de 1990, diversos estudos referentes à ação do Estado no
estabelecimento de arranjos locais de desenvolvimento (GAGE, 1984), na gestão
intergovernamental (MANDELL, 1988), nas estruturas de implementação de
gestão de programas federais e nos sistemas de implementação descentralizadas
de políticas públicas já constavam na literatura internacional sobre administração
pública. Tais estudos enfatizavam a ampliação do desenvolvimento de estratégias
conjuntas entre atores governamentais, privados e organizações da sociedade
civil.

45
Os trabalhos mais significativos sobre a análise dos aspectos gerenciais
envolvendo arranjos interorganizacionais em administração pública provém dos
estudos relativos à gestão intergovernamental. Tais estudos emergiram como
parte do campo teórico relativo às relações intergovernamentais e evoluíram de
forma independente ao longo da década de oitenta. A principal motivação para tal
surgiu da percepção de que a resolução dos problemas de políticas públicas
necessitava de um trabalho coletivo das três esferas governamentais além
daquele estabelecido pelo arcabouço constitucional e legal, que simplesmente
estabelecia a autonomia das partes e as funções que deveriam ser divididas ou
compartilhadas. Assim, ao se deslocar o foco dos aspectos formais para os
gerenciais de implementação de políticas (obtenção conjunta de metas), o
processo interativo entre as esferas de governo adquiriu uma nova dimensão,
provocando a necessidade de estudos voltados para o desenvolvimento de novos
conceitos, estratégias e instrumentos para a ampliação da eficácia e da eficiência
da ação do Estado.
Neste contexto, a emergência de estudos que buscavam compreender a
natureza da ação conjunta entre esfera de governo na implementação de
programas e políticas resultou na percepção de que outros atores externos à
burocracia estatal também eram parte ativa do processo. Esta ampliação do lócus
de pesquisa aparecia claramente em estudos como os de AGRANOFF e
LINDSAY (1983), que buscavam definir o campo de estudos da gestão
intergovernamental numa pesquisa envolvendo a ação conjunta para a resolução
de problemas locais em seis áreas metropolitanas nos Estados Unidos:

In each of the metropolitan areas an intergovernmental


body (IGB) or mechanisms, in different forms, was
established by mutual agreement of the member
governments and private funders, who refer to themselves as
partners, to identify selected issues for focus and
development of a course off action. These IGBs, which are
formal structures that evolve as they sequentially solve

46
individual problems, and somewhere between more complete
structural adaptations, such as special districts and
authorities, consolidations of governments, federations of
government, and less structured intergovernmental efforts,
such as ad hoc cooperation, mutual forums, or voluntary
associations of government. (AGRANOFF e LINDSAY, 1983,
p. 228).

O conceito “intergovernment body” abarca diversos elementos teóricos,


também presentes no conceito de redes tal qual delineado na literatura
internacional sobre administração pública na década de noventa. A consolidação
da gestão intergovernamental como um campo independente dos estudos sobre
relações intergovernamentais proporcionou o entendimento de que a ampliação da
eficiência e da eficácia das políticas públicas cada vez mais necessita da
participação constante de múltiplas partes, e que, por isso, aspectos como
processo decisório, estabelecimento de agendas de políticas, definição adequada
dos problemas e implementação de programas estavam se tornando tarefas mais
complexas.
Não tardou, então, para que se iniciasse o emprego do conceito de redes
como instrumento de análise para a crescente complexidade do ambiente de
inserção da administração pública, que requer o desenvolvimento de formas de
coordenação descentralizadas e flexíveis (GAGE, 1984). A partir da segunda
metade da década de oitenta, autores inseridos na literatura sobre gestão
intergovernamental, iniciaram diversos estudos já empregando o conceito de
redes para se referir a arranjos interorganizacionais necessários ao
desenvolvimento de políticas públicas, sua implementação e a devida
coordenação das atividades gerenciais envolvendo múltiplos atores engajados em
atividades empreendedoras (GAGE, 1988; MANDELL, 1988).
MARANDO e FLORESTANO (1990), num trabalho onde apresentam a
gestão intergovernamental como campo potencialmente desenvolvido de estudos

47
frente às relações intergovernamentais, demonstra como já havia uma ponte com
a literatura da década de noventa:

[...] IGM (Intergovernmental Management) implies a broader


scope for analysis than an exclusive focus on constituent
governmental units, agencies, and personnel of the federal
system. IGM involves interorganizational networking
between the private and public sector as well as within the
public sector. Thus, our perspective of IGM encourages a
broader interdisciplinary approach to problem solving than is
assumed by exclusively examining relationships among
governmental units.
The term intergovernmental implies issues that we also
included in an IGM perspective: (1) a multijurisdictional
decision making context, (2) the various mixes between
central and constituent authorities, (3) interpersonal
networking, and (4) the reliance on governmental and
nongovernmental approaches to problem resolution
(MARANDO e FLORESTANO, 1990, p. 288).

Assim, o desenvolvimento da literatura sobre gestão intergovernamental ao


longo da década de oitenta representou um salto importante na percepção tanto
dos estudiosos quanto da burocracia de que cada vez mais a administração
pública deveria redirecionar seu foco dos processos internos de trabalho para o
estabelecimento de instrumentos de compreensão do ambiente em que opera e
das estratégias de mobilização de diversos outros atores presentes neste
ambiente.
Os estudos iniciais da década de noventa ainda guardavam fortes vínculos
com a gestão intergovernamental focando na classificação de tipos de redes
formadas pela interação das esferas governamentais e no desenvolvimento de
estratégias gerenciais adequadas a cada uma. O decorrer da década de noventa

48
marca o desenvolvimento de estudos que apresentam um forte impulso para a
ampla difusão do conceito de redes na literatura internacional de administração
pública, evidenciando o surgimento tanto de um processo de diferenciação do
conceito, dos objetos estudados, das técnicas de pesquisa empregadas quanto do
intercâmbio teórico com outras áreas das ciências sociais. Embora este último
movimento ainda esteja em processo de consolidação, o desenvolvimento de
estratégias gerenciais baseadas em abordagens muldisciplinares é promissor
(KOPPENJAN e KLIJN, 2004).
Estudos relacionados à organização de formas associativas em saúde nos
Estados Unidos buscavam compreender o desenvolvimento de princípios de
gestão em cooperativas rurais de hospitais e sistemas locais de provisão de
serviços sanitários envolvendo o conceito de redes para estudar fatores
considerados relevantes na obtenção de soluções compartilhadas (PROVAN e
MILWARD, 1991; SIZE, 1993).
A ampla difusão do conceito de redes pela literatura de administração
pública em meados dos anos noventa mostrava o potencial do conceito no estudo
de diversos aspectos da administração pública não só nos Estados Unidos, mas
também na Inglaterra e na Europa Continental. Embora o desenvolvimento de
abordagens caracterizadas por uma tradição de análise de redes de atores e o
resultado final das políticas públicas já estivesse em desenvolvimento na
Inglaterra (MARSH e RHODES, 1992), os principais estudos em administração
pública buscavam se aprofundar somente em questões de eficiência
microeconômica dos arranjos de provisão de serviços finais, principalmente os
relacionados à saúde nos EUA (CASEY, 1997; MCLAUGHLIN, KONRAD e
PATHMAN, 1997). Sobre este aspecto, Provan e Milward (1995) lançavam-se no
desenvolvimento de estudos comparativos de performance de redes
interorganizacionais de serviços de saúde mental buscando relacionar aspectos
estruturais como integração, centralidade, estabilidade e controle externo com a
efetividade dos resultados.
O desenvolvimento de análises preocupadas com a construção de
abordagens capazes de interligar aspectos gerenciais relacionados ao ciclo de

49
etapas de política pública com o comportamento políticos de grupos de atores
envolvidos consistem em aprofundamentos raramente presentes na literatura
durante a primeira metade dos anos noventa. Tal fato evidenciava a necessidade
de ampliação do escopo de análise para além dos impactos microeconômicos da
organização em rede, entendendo que os resultados finais de uma política pública
dependem não somente da dinâmica intra-estatal, mas também da relação entre
os atores sociais interessados e o Estado.
No entanto, apesar da predominância de estudos relacionados aos
aspectos microeconômicos das redes ressaltando sua eficiência na provisão de
serviços, abordagens direcionadas ao estudo da dinâmica do contexto subjacente
ao processo de formação e desenvolvimento de políticas públicas começam a
surgir no início da segunda metade da década na Europa. Neste sentido, a
construção de modelos teóricos fundamentados na teoria qualitativa dos jogos
surge com abordagens de maior potencial de análise da dinâmica complexa das
redes. Tais modelos possibilitam o desenvolvimento de competências adequadas
ao conhecimento do ambiente de desenvolvimento dos jogos de políticas, com o
intuito de construir diretrizes adequadas de gestão das redes que se formam em
tais contextos (KLIJN, 1996).
Da mesma forma, o reconhecimento de que o ambiente de inserção da
rede consiste numa variável extremamente relevante, e não somente os aspectos
estruturais, emergia também nos Estados Unidos a partir dos estudos
relacionados ao desenvolvimento de estratégias de gestão de redes integradas de
provisão de serviços de saúde. A percepção fundamental de tais estudos consistia
em entender que o contexto de gestão na área de saúde era marcado por um
elevado grau de complexidade tanto devido à presença de uma ampla diversidade
de atores quanto pela natureza estratégica do trabalho médico para a sociedade,
tornando ineficazes as formas tradicionais de gestão:

Governance in health care organizations is, indeed, difficult to


assess. Health care organizations have grown increasingly
complex, and the traditional forms and practices of

50
governance – even at their best – may no longer be adequate
to manage issues that must be dealt with today. New
standards for governance are being continually developed in
attempts to cope with the changing health care environment.
These changes in both the environment and governance will
have significant effects on health care in the future, as health
care organizations enter into alliances of different types in
their struggle to survive (SAVAGE at al, 1997, p. 18).

Tais transformações em direção ao desenvolvimento de abordagens mais


consistentes capazes de incorporar elementos conceituais necessários à analise
das diversas dimensões presentes na dinâmica da administração pública
desencadeou reflexões sobre a necessidade de repensar o desenvolvimento da
teoria das redes em administração pública àquela altura.
Buscando enfatizar a necessidade de promover análises mais profundas e
integradas no interior da teoria das redes em administração pública, O’Toole
(1997a) propôs um olhar mais apurado sobre o fenômeno. Segundo o autor,
apesar da crescente relevância das formas de organização em rede para o
sucesso da implementação de políticas públicas, os estudos até então, com raras
exceções, não haviam produzido nem análises suficientes para um melhor
conhecimento de sua dinâmica organizacional, nem estratégias e instrumentos de
gestão inovadores:

How well equipped are public administrators to face


the challenge they confront from the involvement of
businesses, not-for-profits, other units of government, and
even clients in complex patterns of program operations? Not
very well, if judged by the extent to which practitioners and
scholars have incorporated the network concept and its
implications into their own work. Discussions in the field
contain little to help practicing managers cope with network

51
settings. In fact, Conventional theory may be
counterproductive when applied inappropriately to network
contexts. And yet, these arrays are now consequential and
becoming increasingly so. Practitioners need to begin to
incorporate the network concept into their administrative
efforts. The challenge for scholars is to conduct research that
illuminates this neglected aspect of contemporary
administration. (O´TOOLE, 1997a, p. 45).

Com o intuito de ‘tratar seriamente’ o fenômeno das redes no ambiente da


administração pública, O’Toole estabeleceu a necessidade de organizar agendas
de conteúdo conceitual e descritivo, teórico e também de implicações práticas
para a gestão pública. Na opinião do autor, embora o fenômeno das redes não
tenha sido ignorado nos estudos de administração pública, não havia, por outro
lado, trabalhos e análises que o colocassem como uma agenda prioritária.
Enquanto nos EUA O’Toole (O´TOOLE, 1997a) empenhava-se no
estabelecimento de linhas mais precisas e consistentes na pesquisa e gestão de
redes interorganizacionais de implementação e execução de programas
governamentais, na Inglaterra Marsh (1997a) e seus colaboradores levantavam
importantes questões sobre as diferenças conceituais observadas nos estudos de
redes de políticas públicas, e principalmente sobre sua capacidade explicativa
como variável independente para os resultados das políticas públicas. Baseados
numa tradição de estudos de políticas públicas amplamente desenvolvida na
Inglaterra, fundamentada em análises estruturais de relações Estado/Sociedade,
os autores centravam suas atenções sobre sete pontos considerados principais
para a evolução dos estudos sobre redes de políticas. Embora todos eles
considerassem ser significativo impacto das redes sobre a dinâmica dos sistemas
políticos e da administração pública ao final do século vinte, reconheciam que
havia questões ainda por responder, sendo as principais as seguintes:

52
(1) Consiste o conceito de redes uma ferramenta útil para a compreensão do
desenvolvimento de políticas pública?
(2) A existência das ações de uma rede de políticas afeta os resultados da
política?
(3) Como mudam as redes de políticas?
(4) Qual a importância de relações interpessoais quando comparadas com as
estruturais no interior das redes?
(5) Podem certos grupos dominar as redes?
(6) Quais são os métodos apropriados para estudar as redes?
(7) Quais evidências existem que possam sugerir que as redes consistam
numa nova, e de crescente relevância, forma de governança?

A busca por respostas a tais questões ainda persiste e soma-se a diversas


outras agendas de dúvidas e estudos que, ao seguir essa motivação, contribuíram
decisivamente para a especialização e diversificação do campo de pesquisas
sobre redes no interior da literatura sobre administração pública.
Como resultado, nos anos finais da década de noventa e iniciais da atual a
diversificação dos estudos sobre redes apresentada um campo em plena
expansão e consolidação. Desta forma, podem ser observados três movimentos
no sentido de enriquecimento do campo de pesquisas. O primeiro refere-se à
expansão das áreas de aplicação do referencial de redes que passa a abarcar
estudos além das áreas tradicionais de saúde e gestão intergovernamental, como
por exemplo, política urbana (LOWNDES e SKELCHER, 1998), assistência social
(JOHANSSON e BORELL, 1999; ANDERSON, 2003), política energética (TOKE,
2000), educação pública (MEIER e O’TOOLE, 2001), transportes (GRANTHAM,
2001), integração regional e continental (UNIÃO EUROPÉIA, 2001a), agricultura
(GREER, 2002), meio ambiente (VAN BUEREN, KLIJN e KOPPENJAN, 2003),
gestão de águas (GOLDIN, 2003) e diversas outras áreas.
O segundo movimento consiste na utilização de métodos e técnicas de
pesquisa mais diversificados. A quase exclusividade de emprego de estudos de
caso se reduz frente à inserção de ferramentas como análise histórica comparada

53
(HALL e O’TOOLE, 2000), regressão múltipla (MACLEAN, 2003), policy structure
index (BLAIR, 2002), medidas de distância euclideana (JOHN e COLE, 1997),
indicadores estruturais de densidade e centralidade (MILWARD e PROVAN,
1998), etnografia (BATE, 2000), entre diversos outros.
O terceiro deslocamento apresenta-se no crescente intercâmbio com outros
ramos das ciências sociais e suas diversas abordagens teóricas. Os estudos
iniciais com fortes vínculos com a gestão intergovernamental e a teoria (inter)
organizacional assistiram ao surgimento de análises fundamentadas em
abordagens como teoria dos jogos (VAN BUEREN, KLIJN e KOPPENJAN, 2003),
transaction cost economics (HINDMOOR, 1998), teoria institucional (BLOM-
HANSEN, 1997), teoria da democracia (SORENSEN, 2002), entre outras.
Tais abordagens, juntamente com as tradicionais, demonstram a crescente
multidisciplinaridade dos estudos sobre redes em administração pública, na
medida em que vem buscando ampliar o debate com outras ciências como
sociologia, ciência política, psicologia, economia, política pública, entre outras. Ao
estreitar seus laços com diversas outras correntes teóricas dentro das ciências
sociais, a dos estudos sobre redes não só constroem fundamentos mais
consistentes como também desenvolvem uma capacidade ampla para compor
abordagens e estratégias multidisplinares para orientar a ação do Estado em suas
diversas dimensões.
Como resultado deste processo de incorporação de fundamentos teóricos e
metodológicos, e o conseqüente refinamento de seus princípios fundamentais, no
início da atual década vários autores, principalmente aqueles calcados em longas
pesquisas (AGRANOFF e MCGUIRE, 2001a e 2003; KLIJN e KOPPENJAN, 2000;
MANDELL, 1999a) sustentavam a existência de bases teóricas e evidências
empíricas suficientes para o desenvolvimento de um novo paradigma de
gerenciamento das funções e atividades do Estado:

Increasingly, the capacities required to operate


successfully in network settings are different from the
capacities needed to succeed at managing a single

54
organization. The classical, mostly intraorganizational-
inspired management perspective that has guided public
administration for more than a century is simply inapplicable
for multiorganizational, multigovernmental, and multisectorial
forms of governing. If network management is a function
distinct from that of hierarchical management, as many
eminent scholars suggests, then focused research and
improved conceptualization on this core public activity must
be accelerated. […] Network management is thus in need of
a knowledge base equivalent to the hierarchical
organizational authority paradigm of bureaucratic
management. (AGRANOFF e MCGUIRE, 2001a, p. 296-
297).

Nesse intuito, AGRANOFF e MCGUIRE apresentam uma agenda de


pesquisa para cobrir preliminarmente sete questões consideradas essenciais no
desenvolvimento desse novo paradigma. Tais questões versam sobre a natureza
das tarefas de gestão em rede, a dinâmica do processo colaborativo, a
flexibilidade das redes, auto-responsabilização e accountability, elementos de
coesão, os elementos do jogo de poder, e por fim a própria efetividade das formas
de organização em rede. Após uma revisão da literatura, os autores oferecem os
fundamentos da gestão em rede e apresentam respostas preliminares às questões
indicando a necessidade de maior reflexão e ampliação da agenda de pesquisas.
Na medida em que as bases de fundamentação de um novo paradigma
encontram-se em pleno desenvolvimento e que os estudos crescentemente
apontam a insuficiência da coordenação burocrática como forma de organização
do trabalho e da condução das atividades do Estado, a teoria das redes em
administração pública, tal qual desenvolvida durante a década de noventa,
apresenta-se como uma abordagem capaz de orientar a ação do Estado diante de
seus novos desafios.

55
Uma vez que o processo de regionalização da saúde envolve diversos
desafios que estão muito além dos relativos à construção de estratégias e
instrumentos gerenciais para a busca por eficiência e maximização do emprego de
recursos, e incorpora demandas referentes à organização política, aos debates em
torno da democracia deliberativa, à busca por novos formatos de proteção social,
entre outros, as evidências sugerem que a contribuição da teoria das redes pode
ser maior, sendo ainda pouco explorada pela legislação do SUS.
A evolução histórica do conceito de redes em ciências sociais, desde o seu
surgimento na sociologia em 1934, revela sua aptidão específica como
fundamento para a análise e a compreensão de padrões relacionais complexos,
ou seja, é um conceito capaz de captar não só a estrutura da subjacente a um
conjunto de atores posicionados num determinado espaço geográfico, mas
também a dinâmica que marca o movimento destes atores. Diversas metodologias
foram desenvolvidas configurando uma tradição de quase um século que
incorpora instrumentos e técnicas sofisticadas, desde a criação da sociometria,
que estão disponíveis aos gestores para o devido conhecimento do ambiente em
que atuam.
Este aspecto torna-se central na condução do processo de regionalização
da saúde, uma vez que a diversidade sócio-econômica, cultural e política nacional
resulta em padrões relacionais extremamente diferente em cada unidade regional,
demandando o conhecimento não só da estrutura de relações entre os atores
envolvidos na arena sanitária, mas também a dinâmica subjacente a esta
estrutura. Este processo de ‘mapeamento’ consiste num aspecto fundamental para
a gestão da regionalização da saúde e os resultados que ela possa produzir, pois
como visto no debate da ciência política americana nas décadas de sessenta e
setenta, a existência e a natureza dos padrões regulares de intercâmbio entre
grupos de interesses, políticos e burocratas são um elemento capaz de
condicionar e direcionar a ação das políticas públicas.
Finalmente o desenvolvimento do conceito de redes especificamente na
literatura de administração pública na década noventa registra um fato de extrema
relevância internacional neste campo e reafirmado tanto pela dinâmica social que

56
impulsionou a construção do SUS quanto pela arquitetura institucional que o
fundamenta.
Como visto, o surgimento do conceito de redes em administração pública
teve sua origem no desenvolvimento dos estudos de gestão intergovernamental,
que durante a década de oitenta demonstraram que a obtenção de resultados
eficientes na ação do Estado se fazia cada vez mais em nível local e pelo
estreitamento não só das relações intergovernamentais, mas também mediante o
desenvolvimento de estratégias conjuntas relacionando atores governamentais,
privados e organizações da sociedade civil.
Este movimento culminou na percepção, durante a década de noventa, de
que o ambiente de produção de políticas públicas estava sendo transformado pela
inserção de atores cujo padrão de interação conformava uma esfera marcada pela
pluralidade, e que redirecionava o foco da administração pública da gestão de
procedimentos para a gestão de interdependências.
Assim, o desenvolvimento do SUS como sistema descentralizado e
permeado pela Sociedade Civil converge para o mesmo padrão de ação do
Estado difundido internacionalmente pela teoria das redes desenvolvida durante a
década de noventa e atual na literatura em administração pública. Logo, a
incorporação da gestão de redes ao processo de regionalização da saúde reafirma
os princípios de construção do SUS e contribui amplamente para fortalecer as
suas bases de gestão de interdependências, processo este essencial na
ampliação da performance do sistema no contexto atual, como visto no capítulo 1.
Como conseqüência, uma proposta de gestão em rede no interior do SUS
necessariamente deve reafirmar os princípios e o formato institucional que orienta
a produção de políticas públicas de saúde desde a Constituição de 1988.
Logo, partindo do ponto que a gestão de redes reafirma a institucionalidade
do SUS a nível regional, cabe entender melhor o conceito de redes, como estas se
estruturam e quais seus componentes.

2.3 – A Produção Conceitual de Redes na Literatura Internacional em


Administração Pública: fundamentos e processos de estruturação

57
O exame da literatura internacional de administração pública selecionada
possibilita a percepção de que as redes são concebidas como estruturas
extremamente amplas capazes de ser geridas somente por estratégicas
específicas e inovadoras. Tais estruturas conectam Estado e Sociedade por
diversos vínculos (formais e informais) e alteram as relações clássicas de gestão e
de inserção dos atores sociais no processo de produção de políticas públicas. No
entanto, a ampla aplicação do conceito nos estudos relacionados è ação do
Estado produziu diferenças pela relação com outras ciências sociais, sendo difícil
convergir toda a literatura de administração pública numa base conceitual comum.
Assim, podem ser visualizadas duas tendências de formação conceitual, cada
uma com sua contribuição: uma generalizante e outra de conteúdo específico.
A perspectiva generalizante apresenta os traços básicos de definição das
redes sem se aprofundar nas dimensões internas de composição das estruturas
de coordenação e regulação da dinâmica relacional, ou seja, proporciona
elementos mínimos para delinear em que consiste a rede, de que é composta,
qual a amplitude desta composição, e como se forma externamente a rede. Esta
perspectiva é de extrema relevância pelos subsídios que fornece à precisão do
conceito, uma vez que dela serão derivados os demais fundamentos conceituais e
estruturais do modelo. Assim, é importante eliminar as dificuldades e equívocos
presentes na literatura e separar as contribuições de consistência.
Por sua vez, a perspectiva específica de produção conceitual na teoria das
redes é derivada de ramos especializados da literatura que abordam
separadamente os componentes estruturais que fundamentam a coordenação das
redes. Estas bases estruturais de operação surgem de processos de reforma do
Estado e apontam para desafios específicos relativos tanto a aspectos técnicos e
gerenciais quanto de coordenação política e de construção da governança. Desta
forma, proporcionam um olhar mais detalhado e profundo sobre a estrutura da
rede.

58
2.3.1 – A Perspectiva Generalizante: os fundamentos

A maioria dos trabalhos publicados sobre redes em administração pública


parte de um conceito implícito sobre o fenômeno. Tal fato significa que muitos dos
autores raramente mencionam qual ou quais definições de rede estão
empregando em seus estudos. O que parece ser comum a todos consiste numa
simples noção de rede como estruturas poli ou multi-cêntricas.
A composição estrutural do conceito de redes emprega dois elementos
básicos que replicados diversas vezes, produz uma configuração poli ou
multicêntrica característica: os nódulos e os vínculos. Não estão em evidência
nem as propriedades dos nódulos nem a natureza dos vínculos. Assim, torna-se
indispensável compreender que o conceito de redes, pensado estruturalmente,
pode ser teoricamente aplicado a diversos temas e objetos de estudo, adquirindo
um elevado grau de generalização, e por isso podendo inutilizar sua capacidade
explicativa. A configuração estrutural possibilita precisamente a captação de
padrões relacionais entre atores diversos, mas nada além disso (WASSERMAN e
FAUST, 1994). O que freqüentemente se ignora é que os padrões relacionais
emergem e estão arraigados numa dinâmica social determinada por padrões de
comportamento e relacionamento segmentados e individualizados. A ausência de
percepção quanto à unicidade entre estrutura e dinâmica implica tanto na
emergência de dúvidas sobre a natureza do conceito de redes, quanto no
surgimento de críticas sobre sua capacidade explicativa. Assim, uma conceituação
mais adequada do fenômeno deve ressaltar a relevância das duas dimensões e
suas interação constante.
O primeiro problema que surge quando da procura por uma conceituação
mais precisa reside na adoção segmentada que privilegia recortes metodológicos
particulares, gerando incertezas sobre a validade do conceito. Tais incertezas
aparecem freqüentemente em textos considerados clássicos sobre redes. Börzel
(1998) retrata bem tal confusão quanto apresenta diferenças básicas entre os
conceitos de redes:

59
The first distinction is about methods. Both quantitative and
qualitative network approaches take networks as an
analytical tool. The quantitative approach, however, consider
networks analysis as a method of social structure analysis.
The relations between actors are analyzed in terms of their
cohesion, structural equivalence, spatial representation using
quantitative methods such ascendant hierarchical
classification, density tables, block models, etc. the qualitative
approach, on the other hand, is more process-oriented. It
focuses less on the mere structure of interaction between
actors, but rather on the content of these interaction using
qualitative methods such as in-depth interviews and content
and discourse analysis (BORZEL, 1998, p. 255).

Confundir o fenômeno com as diversas percepções dele construídas devido


ao emprego de diferentes técnicas e instrumentos de pesquisa consiste numa
interpretação freqüentemente tomada por diversos estudiosos, e contribui para as
divergências sobre o estudo de redes. Assim, cada abordagem buscará enfatizar
somente os aspectos que considera importantes resultando em construções
heterogêneas sobre o conceito de redes.
A segunda dificuldade reside na amplitude do conceito e nas contradições
que se colocam implicitamente. Determinados autores, diante da dificuldade de
construir conceitos capazes de captar a complexidade do fenômeno das redes,
exageram na ampliação do escopo da diversidade de vínculos e formas de
coordenação social presentes que acabam por abarcar diversos outros
fenômenos, concomitantemente. Tal posicionamento tanto impossibilita a
utilização prática do conceito, quanto implica freqüentemente em contradições
internas. Num dos artigos mais citados na literatura de administração pública,
O’Toole (1997a) assim conceitua o fenômeno das redes:

60
Networks are structures of interdependence involving multiple
organizations or parts thereof, where one unit is not merely
the formal subordinate of the others in some larger
hierarchical arrangement. Networks exhibit some structural
stability but extend beyond formally established linkages and
policy-legitimated ties. The notion of networks excludes mere
formal hierarchies and perfect markets, but includes a very
wide range of structures in between. The institutional glue
congealing networked ties may include authority bonds,
exchange relations, and coalitions based on common
interest, all within a single multiunit structure (O’TOOLE,
1997a, p. 45).

Torna-se extremamente difícil a identificação do fenômeno das redes com


base na definição acima apresentada. Uma vez que redes são capazes de abarcar
tantas variações de estruturas relacionais e vínculos das mais diversas naturezas,
sua aplicação prática acaba por perder precisão e impossibilitar o estudo
específico das redes. É possível que o fato de excluir tanto hierarquias formais e
mercados perfeitos pudesse determinar a especificidade do conceito de redes por
exceção. No entanto, logo à frente o autor afirma que tanto vínculos de autoridade
como relações de troca podem consistir em elos institucionais de composição da
estrutura das redes. Assim, não fica claro se relações típicas de mercado e/ou
hierarquizadas se inserem ou não na definição oferecida.
Apesar de sua dificuldade de operacionalização, esse conceito consiste
num dos mais citados na literatura, uma vez que apresenta aspectos que são
essenciais na caracterização das redes. O primeiro refere-se à existência de uma
estrutura, o que indica que a rede se distingue de uma diversidade de outros
arranjos policêntricos pela apresentação de padrões estáveis de interação, ou
seja, como nas palavras do autor, exige a presença de certa ‘estabilidade
estrutural’. O segundo aspecto consiste na percepção de que esses padrões se
formam entre atores que possuem um grau consistente de autonomia, ou

61
seja, entre eles não se verifica relação estritamente hierárquica. Finalmente, a
interdependência figura como o aspecto central na construção da estrutura que
distingue a rede, sem a qual os atores autônomos não iriam convergir para
compor o que o autor chamou de ‘single multiunit structure’.
Uma terceira tentativa de construção de conceitos mais adequados,
capazes de delimitar o fenômeno das redes, reside na identificação da
especificidade da estrutura pela singularidade de seu potencial resolutivo. Tal
estratégia não assume como aspecto central a precisão via delineamento de
atores e relações componentes, mas busca no contraste com modelos tradicionais
de gerenciamento organizacional seu elemento de definição:

Networks, as the term is used in the literature, typically refers


to multiorganizational arrangements for solving problems that
can not be achieved, or achieved easily, by single
organizations. Public management networks are led or
managed by government representatives. Simply put,
networks constitute emergent phenomena that are distinctive
managerial vehicles and that offer challenges for the single
organization and its management. (AGRANOFF e MCGUIRE,
2001a).

Ao identificar o conceito de redes com estruturas organizacionais cuja


singularidade reside na capacidade de reunir atores de uma forma colaborativa
para a resolução de problemas complexos, os autores apresentam apenas um
atributo do fenômeno das redes, mas permanece a ausência de delineamento
sobre a natureza e a composição desse arranjo considerado tão singular.
A variedade de conceitos e perspectivas enfatiza diversos aspectos do
fenômeno das redes resultando em diferentes percepções e composições sobre
atores envolvidos e sobre a natureza dos vínculos presentes. Uma das estratégias
de conceituação desenvolvida em resposta consiste na compreensão de que,

62
apesar da diversidade, é possível buscar uma composição entre os diferentes
enfoques, ressaltando as características comuns:

They all share a common understanding, a minimal or


lowest common denominator of a definition of a policy
network, as a set of relatively stable relationships which are
of non-hierarchical and interdependent nature linking a
variety of actors, who share common interest whit regard to a
policy and who to exchange resources to pursue these
shared interests acknowledging that cooperation is the best
way to achieve common goals. (BORZEL, 1998, p. 254).

Embora advogue um status de composição por elementos comuns a


diversas outras formas de conceituação de redes, o conceito proposto por Borzel
claramente possui um viés relacionado à escola alemã de governança, que
concebe as redes como uma forma alternativa de coordenação social diferente
tanto do mercado como das hierarquias. Tal fato é fácil de perceber tanto pela
menção de relações estáveis (excluindo o mercado) e quanto pela presença de
relações não-hierárquicas.
A última abordagem de destaque na literatura, e que se apresenta de forma
mais plausível, consiste numa concepção de redes como um fenômeno social que
se desenvolve por meio de uma relação constante entre a dinâmica das relações
entre os atores e a estrutura que forma como resultado (MANDELL, 1999b;
KEAST et al, 2004). O elemento que distingue tal concepção de redes reside no
reconhecimento das redes como um fenômeno concreto que se forma por meio de
uma dinâmica social deliberada e não simplesmente como uma metáfora para
analisar diversas formas de arranjos de trabalho conjunto, ou de relações entre
atores privados e o Estado, entre outros.
O ponto de partida consiste em distinguir entre as três fases principais que
são as de networking, networks e network structure. A fase de Networking consiste
na formação de vínculos por meio de freqüentes interações formais ou informais

63
que se estabelecem entre os atores envolvidos, sendo impulsionadas atualmente
pela disposição das tecnologias da informação. A formação da rede (a fase de
Network) ocorre quando a dinâmica das relações adquire maior consistência e
fornece certo grau de institucionalização às interações, resultando na formalização
das relações. Nesta fase, embora as partes envolvidas interajam por meio de
vínculos formalizados, permanece a decisão quanto à prerrogativa do trabalho
orientado individualmente.
Quando surge a percepção de que o aprofundamento da interdependência
consiste no fator decisivo para a obtenção dos objetivos desejados, inicia-se um
processo de coordenação deliberado e planejado no sentido de dividir e organizar
coletivamente o trabalho:

Network structures occur when working separately –


even while maintaining links with each other – is not enough.
Individuals representing themselves, public, not-for-profit, and
private organizations realize that working independently is not
enough to solve a particular problem or issue. A network
structure forms when these people realize they (and the
organizations they represent) are only one small piece of the
total picture. It is a recognition that only by coming together to
actively work on accomplishing a broad, common mission will
goals be accomplished. […] Network structures may include,
but reach beyond, linkages, coordination, or task force action.
Unlike networks, in which people are only loosely linked to
each other, in a network structure people must actively work
together to accomplish what they recognize as a problem or
issue of mutual concern (KEAST et al, 2004, p. 364).

Desta forma, os elementos essenciais à caracterização da existência de


uma estrutura em rede consistem no estabelecimento de ações estrategicamente
planejadas, uma missão comum, a fixação de compromissos relativos a metas

64
acordadas coletivamente e o intercâmbio constante e duradouro de recursos. A
formação da rede por etapas reflete tanto o fato de que a dinâmica das relações
constrói a estrutura e esta redimensiona as bases de interação iniciais, quanto na
percepção de que há um espaço (ou instância) para a ação das estratégias
específicas de gestão cujo objetivo consiste fundamentalmente em mediar o
conflito constante entre interesses particulares e os propósitos maiores da rede.
De forma conclusiva é importante ater-se à percepção de que a rede
consiste num fenômeno organizacional que, além dos aspectos fundamentais
como composição por atores autônomos, interdependência e padrões estáveis de
relacionamento, desenvolve uma institucionalidade voltada especificamente
para o aprofundamento da interdependência existente. Esta
institucionalidade se compõe em torno do planejamento deliberado da divisão do
trabalho e da articulação estratégica voltada para a manipulação do ambiente em
que opera a rede, ou, como nas palavras de Keast et al (2004, p. 364), a rede se
desenvolve pelo trabalho coletivo especificamente planejado (‘in a network
structure people must actively work together’).
Assim, somente quando há convergência institucional para o
aprofundamento articulado e planejado da interdependência existente entre os
atores, pode-se afirmar que se desenvolve uma estrutura em rede. A perspectiva
específica de conceituação das redes, apresentada a seguir, proporciona uma
visão dos fundamentos relativos às dimensões internas de composição das
estruturas de coordenação e regulação da dinâmica relacional subjacentes a essa
institucionalidade.

2.3.2 – Perspectivas Específicas: os processos de estruturação

As evidências sugerem que as abordagens mais específicas presentes na


literatura sobre redes surgiram como conceitos alternativos diante das
contestações sobre modelos clássicos de análise da ação estatal que
pressupunham ser o Estado um ator soberano, detentor de elevado grau de

65
independência, capaz tanto de determinar isoladamente as melhores soluções
para os problemas de política pública, assim como deter os recursos, o
conhecimento e as formas mais eficientes e eqüitativas de provisão de bens e
serviços públicos.
A análise da literatura internacional apresenta quatro abordagens
específicas principais que se associam às dimensões de reconstrução do Estado
mais estudadas durante a década de noventa na literatura internacional de
administração pública. A diversidade de temas, processos e metodologias
abordados no interior da literatura evidenciam, embora aparentemente
desordenados e dispersos, a amplitude e a relevância de tais dimensões em
diversos países do ocidente. Tais abordagens envolvem tanto aspectos internos
quanto externos, relacionando o processo de gestão do Estado com a dinâmica de
suas relações externas, ou seja, interagem fatores tanto intra como
interorganizacionais da esfera estatal.
A articulação destas perspectivas específicas com a generalizante permite que
o conceito estabelecido na sua forma fundamental possa adquirir maior
detalhamento e consistência teórica, abrindo caminho para a sua
operacionalização posterior.

2.3.2.1 - Estruturas interorganizacionais em arranjos de provisão de bens e


serviços

A primeira abordagem identifica o conceito de redes com os novos arranjos


interorganizacionais de provisão de bens e serviços resultantes das reformas dos
sistemas de proteção social conduzidas pelas coalizões de direita durante as
décadas de oitenta e noventa, principalmente em países como Inglaterra, Estado
Unidos e Nova Zelândia. As críticas constantes aos princípios de organização e
financiamento dos Welfare States o colocaram supostamente em crise e
resultaram em processos de reformulação cujos princípios consistiam em
privatização, descentralização, responsabilização, contratualização, accountability,

66
competição e flexibilização das formas de provisão (ESPING-ANDERSEN, 1995;
OSBORNE e GAEBLE, 1992; ALMEIDA, 1995; FLEURY, 2001).
A combinação de tais mecanismos redundou no estabelecimento de
sistemas descentralizados e localmente organizados, cuja composição abrangia
organizações e atores públicos, privados e não-governamentais. Supostamente
tais arranjos de provisão seriam mais eficientes, eficazes e eqüitativos devido à
presença de mecanismos de mercado, à flexibilidade organizacional e à
proximidade dos cidadãos. No entanto, tais resultados em termos de performance
não se apresentavam automaticamente como se supunha inicialmente, como
demonstram pesquisas sobre sistemas de saúde na Nova Zelândia, que registram
diferenças significativas de termos de contratualização e provisão de serviços,
baixa flexibilização, dificuldades de avaliação da performance e de garantia de
accountability (BARNETT e NEWBERRY, 2002).
Este processo de transferência das funções de produção e provisão a
terceiros, com o intuito de direcionar as atividades do Estado para funções de
maior relevância estratégica e política, resultou indiretamente na fragmentação e
dispersão das unidades componentes dos sistemas de proteção social ao longo
de um amplo conjunto de organizações, cada uma especializada e voltada para
uma atividade particular. Como efeito indireto gerou-se a necessidade do
desenvolvimento de mecanismos e estratégias adequadas de coordenação
interorganizacional (MILWARD e PROVAN, 2003).
O surgimento dessa necessidade deve-se ao fato do processo de
transferência ter deslocado a problemática da eficiência e da eficácia dos sistemas
de provisão do nível intraorganizacional para o interorganizacional. Para o cidadão
que irá receber o bem ou o serviço, não basta que cada provedor seja eficiente e
de qualidade, mas também que este estejam devidamente integrados de forma a
compor uma pauta integral adequada. De acordo com Provan e Milward:

[...] a focus on organizational outcomes is insufficient,


because such outcomes reflect how well individual providers
are performing their particular component of the many

67
services needed by their clients. If the overall well-being of
clients is a goal, then effectiveness must be assessed at the
network level, since client well-being depends on the
integrated and coordinated actions of many different agencies
separately providing shelter, transportation, food, and health,
mental health, legal vocational, recreational, family, and
income support services (PROVAN e MILWARD, 1995, p. 2).

As questões que se colocam sob esta perspectiva de concepção de redes


consistem na ampliação dos vínculos de integração por meio das mais diversas
estratégias, de forma a compor uma configuração funcional da rede de
provedores. Tal configuração encontra-se no centro da atenção dos estudos que
abordam esta dimensão da reforma do Estado, visando compreender qual a
relação das variáveis que interferem na estrutura da rede, como os graus de
integração, centralização, densidade e ação de atores externos, com os resultados
em termos de eficácia e eficiência do sistema.
O conceito empregado na literatura em administração pública para se
referir a tais arranjos em rede consiste no de Hollow State (Estado-vazio). O
desenvolvimento de mecanismos e estratégias especificamente desenhadas para
este novo ambiente, onde cada vez mais atores autônomos se colocam entre o
Estado e os cidadãos operando como agentes estatais indiretos, culminou na
percepção de se estaria diante da ação pública sem a presença do Estado.
A construção dessas estruturas articuladas visando ordenar as bases de
recursos e fornecer racionalidade sistêmica consiste num dos componentes
fundamentais de estruturação das redes. Na medida em que estas emergem de
atores autônomos, a convergência para a construção de objetivos comuns
necessita da presença de mecanismos e estratégias direcionadas especificamente
a compatibilizar e integrar as bases produtivas em torno dos objetivos
estabelecidos. A busca por racionalidade sistêmica envolve não só a utilização
eficaz e eficiente das bases produtivas, mas também a articulação dos provedores

68
segundo a orientação dos princípios máximos que fundamentam a composição
dos sistemas de proteção social em cada país, nos quais a rede está inserida.
Desta forma, qualquer proposta de gestão em rede deve estabelecer, como
um de seus componentes essenciais, uma estrutura de articulação das bases
produtivas orientada de acordo com determinados fundamentos de cooperação
interorganizacional selecionados segundo os princípios máximos da política social.
A estratégia de regionalização da saúde no Brasil, tal qual estabelecida na
NOAS, fundamenta-se quase que exclusivamente sobre este componente na
estruturação das redes intermunicipais no SUS.
Embora seja indispensável o desenvolvimento de tais estruturas de
articulação das bases produtivas, estas não são suficientes para fornecer
elementos de institucionalidade à rede, elementos estes essenciais na
composição da rede segundo o conceito de rede apresentado na seção referente
à perspectiva generalizante.
Logo, apesar das estruturas de integração de bases produtivas serem um
elemento necessário no planejamento da divisão do trabalho e da articulação
estratégica da rede, torna-se necessária a presença de outros elementos capazes
de fornecer institucionalidade à rede.

2.3.2.2 - Modelos de concepção e coordenação do ciclo de políticas públicas

Esta abordagem identifica o conceito de redes com os sistemas de centros


decisórios subjacente às políticas públicas, dentro e fora do Estado. A
compreensão de que o processo de tomada de decisões relativo às questões que
se apresentam na agenda pública tem se transformado significativamente implica
em perceber que cada vez menos o Estado é capaz de deter o controle
centralizado da elaboração e desenvolvimento das políticas. Uma série de fatores
presentes na cena socioeconômica e política como os processo de globalização
financeira, desterritorialização da produção, descentralização político-
administrativa, crescente especialização do conhecimento, desenvolvimento da
democracia deliberativa, ampliação da consciência ambiental, expansão das

69
instâncias multi-jurisdicionais, entre outros, resultam na complexificação dos
problemas de política pública e fundamentalmente na dispersão e sobreposição de
centros de tomada de decisão subjacentes ao desenvolvimento das políticas
públicas (KOPPENJAN e KLIJN, 2004).
Esta perspectiva de concepção de redes é mais comum na literatura
européia, embora também esteja presente no contexto federativo americano
(AGRANOFF e MCGUIRE, 2001b), e evidencia a natureza do contexto decisório
da União Européia, que consiste na sobreposição de instâncias decisórias
supranacionais sobre um conjunto extremamente heterogêneo de organização
nacional composto por estados unitários, estados unitários descentralizados,
estados unitários regionalizados, estados federais, entre outros (UNIÃO
EUROPÉIA, 2001a). A composição das instâncias decisórias de União Européia
envolve oito instituições centrais sendo as principais o Parlamento Europeu, a
Comissão Européia e o Conselho da União Européia, três órgãos financeiros, dois
órgãos consultivos e 22 agências descentralizadas.
A combinação dos fatores citados inseridos num contexto multi-jurisdicional
como o europeu implica na crescente incapacidade dos Estados nacionais em
deter tanto os recursos necessários à elaboração e à execução das políticas,
quanto à prerrogativa de controlar as diversas instâncias decisórias necessárias.
Como resultado, os modelos e teorias tradicionais de tomada de decisão, que
concebem a produção de políticas como um ciclo lógico de etapas sucessivas
intelectualmente desenhadas e planejadas, tornam-se insuficientes diante da
diversidade de atores, percepções, estratégias, interesses, objetivos, arenas
decisórias e contextos institucionais que caracterizam os contextos decisórios das
democracias contemporâneas.
De acordo com Van Bueren, Klijn e Koppenjan (2003), tal diversidade
provoca o aparecimento de incertezas constantes que permeiam todo o processo
de construção de políticas públicas. Assim, o estabelecimento das fases clássicas
de construção de políticas, desde a formulação do problema até a avaliação, não
mais se desdobra linearmente por envolver três tipos de incertezas:

70
a) Incerteza Substantiva – refere-se às divergências relativas à
determinação das soluções dos problemas de políticas tanto
devido à presença de diferentes referencias e percepções sobre
causas e origens, quanto à utilização ao surgimento de métodos e
técnicas alternativas de abordagem e estudo. As diversas partes
envolvidas buscam soluções quase sempre contrastantes e
estabelecem parâmetros variados de mensuração;

b) Incerteza Estratégica – resulta tanto da imprevisibilidade do


comportamento estratégico dos diversos atores envolvidos,
baseado em diferentes percepções, interesses e objetivos, quanto
da natureza dispersa dos centros decisórios e fragmentada dos
jogos interativos;

c) Incerteza Institucional – nasce da existência de arcabouços


regulatórios e contextos jurisdicionais diferenciados e muitas
vezes superpostos. Dificulta a convergência para acordos
coletivos devido à existência de diversos referencias de condução
do processo de negociação, como regras estabelecidas
informalmente, legislações complexas, ausência de confiança,
etc.

De acordo com os autores, o desenvolvimento das políticas públicas ocorre


não mais por fases predeterminadas, mas fundamentalmente por meio de rounds
entre diversos atores que se encontram em arenas decisórias e performam jogos
interativos constantemente. Nessa nova abordagem, somente mediante a
presença de um processo de aprendizagem (substancial, estratégico e
institucional) torna-se possível estabelecer soluções para os problemas de
políticas públicas. Em caso contrário, haverá impasses constantes e estagnação
do processo.

71
As evidências relatadas por estudos conduzidos por comissões de estudos
no interior da União Européia revelam a proliferação destes sistemas decisórios
como resposta eficiente a contextos de produção de políticas públicas organizados
em rede. De acordo com o relatório “Networking People for a Good Governance in
Europe”, foram identificadas atuando conjuntamente com a Comissão Européia na
formulação e implementação de políticas públicas 50 redes classificadas em
quatro tipos (UNIÃO EUROPEIA, 2001b, p. 5):

a) Redes de informação e assistência aos cidadãos e organizações sobre


políticas e programas;
b) Redes de consulta para redefinição de políticas e programas;
c) Redes de implementação e adaptação de políticas, programas e
legislações;
d) Redes para o desenvolvimento de políticas e marcos regulatórios.

Assim, a formação da rede por atores autônomos implica na dispersão da


capacidade decisória legítima e na produção de incertezas (substantiva,
estratégica e institucional) que podem inviabilizar tanto a organização do trabalho
coletivo quanto o aprofundamento do processo de interdependência entre os
atores.
Logo, o estabelecimento de estruturas de articulação das bases
econômicas, como visto na seção anterior, não é capaz de adquirir racionalidade
sistêmica nem legitimidade para a execução de estratégias e mecanismos de
integração produtiva sem que haja instâncias formal e coletivamente estabelecidas
pelos atores que compõem a rede.
A necessidade da construção coletiva de instâncias de estratégia justifica-
se também pelo fato de que, como acima afirmado, a natureza do processo de
desenvolvimento das políticas públicas em rede envolve a composição constante
de propósitos coletivos a partir de objetivos individuais, onde os atores precisam
reavaliar e reafirmar ou redefinir os compromissos coletivamente assumidos

72
previamente. Assim, tais instâncias viabilizam a renovação legítima do processo
de aprofundamento da interdependência entre os atores que compõem a rede.
Da mesma forma, operacionalmente se fundamenta a presença de
instâncias de estratégia coletivamente estabelecidas pela busca por maior
integração e ganho de eficiência sistêmica, uma vez que a simples articulação
individual entre atores autônomos não confere racionalidade à estrutura de
coordenação das bases produtivas da rede.
Logo, seja como núcleo de legitimação do monitoramento coletivo do ciclo
das políticas previamente estabelecidas ou a redução das incertezas entre aos
atores envolvidos, seja como centro de planejamento estratégico para o emprego
racional da base econômica, a presença de instâncias de estratégia
coletivamente construídas apresenta-se como etapa fundamental na
institucionalização necessária à emergência da rede.
No entanto, a percepção de que, subjacente à rede, desenvolve-se um
campo de forças políticas que resulta na formação de padrões de
compartilhamento de poder colocam desafios ao processo de institucionalização
da rede, sendo necessário que o estabelecimento das instâncias coletivas esteja
ancorado no processo político entre os atores que compõe a rede. Ou seja, o
processo de institucionalização da rede necessita da composição de forças entre
os grupos de poder envolvidos, como apresentado a seguir.

2.3.2.3 – Formas de intermediação de interesses entre Estado e Sociedade Civil

Esta perspectiva de análise das redes encontra-se amplamente difundida e


é provavelmente a mais empregada, principalmente na literatura britânica.
Conforme estabelecido na seção sobre o histórico das redes, esta noção de redes
surgiu como conceito alternativo aos modelos corporativos e pluralistas de
intermediação entre grupos de interesses atuantes na Sociedade civil e o Estado.
Enquanto os modelos da matriz corporativista (SCHMITTER, 1974, p. 75)
organizam os grupos de interesse de forma hierárquica e monopolizada, a
organização em rede possibilita a representação política competitiva e
horizontalizada. Da mesma forma, enquanto os modelos pluralistas supõem ser

73
baixo o nível de agregação dos grupos, a organização em rede ocorre por meio de
processos de convergência de interesses e intercâmbio de recursos entre grupos
setoriais.
O aspecto fundamental desta concepção de redes consiste na verificação
de que as características dos padrões relacionais e da estrutura interativa
composta por grupos setoriais (e sub-setoriais) de interesses possuem relações
de causalidade com os resultados das políticas desenhadas para aquele setor, ou
seja, tais relações podem simplesmente influenciar, ou mesmo determinar, as
estratégias estatais. Num continuum de capacidade de influência da rede, o
Estado tanto pode apresentar-se como um ator independente que fixa metas de
política de acordo com seus próprios objetivos, quanto ser instrumentalizado pelos
grupos de interesse.
Numa breve revisão da literatura sobre redes como sistemas de
intermediação de interesses, BORZEL (1998) identificou uma ampla diversidade
de tipologias que visavam delinear aspectos estruturais e padrões relacionais
enfatizando características comparáveis das redes de grupos de interesse. Nos
trabalhos examinados pela autora surge uma multiplicidade de elementos
componentes das tipologias, tais como nível de institucionalização das interações,
permeabilidade, regras de conduta, relações de poder, tipos de estratégias
empregados pelos atores, autonomia, capacidade de mobilização, integração,
distribuição de recursos, entre diversos outros.
No entanto, a tipologia de classificação de redes mais utilizada na literatura
da década de noventa, principalmente na comunidade acadêmica britânica,
consiste na perspectiva desenvolvida por David Marsh e R. A. W. Rhodes (1992).
Segundo Marsh (1997a), tal tipologia classifica as redes de políticas num
continuum entre os tipos ideais de policy community e issue network. Policy
communities consistem em redes coesas compostas por poucos atores que
compartilham valores essenciais e intercambiam recursos constantemente,
enquanto as issue networks referem-se a redes frouxas com a presença de um
grande número de atores, com elevada rotatividade dos membros e pouca
continuidade de valores. A distinção entre os dois tipos ideais é realizada com

74
base nos critérios de composição, integração, recursos e poder. A Tabela 6
apresenta uma elaboração mais detalhada do dois conceitos:

Tabela 6 – Tipologias Ideais de Redes de Marsh e Rhodes

Dimensão Policy Community Issue Network


Composição
Extremamente limitado,
- Número de alguns grupos são
Amplo
participantes conscientemente
excluídos
Dominam interesses
Abrange uma ampla
- Tipos de interesses econômicos e/ou
extensão de interesses
profissionais
Integração:
Freqüente, alta qualidade,
interação de todos os
- Freqüência de Contatos flutuam em
grupos sobre todas as
interação freqüência e intensidade
matérias relacionadas à
política setorial
Composição, valores e
Acessos flutuam
- Continuidade resultados persistem ao
significativamente
longo do tempo
Todos os participantes
Existe certa capacidade
compartilham valores
de concordância, mas os
- Consenso básicos e aceitam a
conflitos estão presentes
legitimidade dos
constantemente
resultados
Recursos
Alguns membros podem
Todos participantes possuir recursos, mas
- Distribuição de
possuem recursos; as estes são limitados, e as
recursos no interior
relações essências são de relações básicas são de
da rede
intercâmbio e negociação consulta e não de
barganha ou negociação

- Distribuição de Capacidade de regular os


Hierárquica; os lideres
recursos no interior membros é variada e
podem cooptar os
das organizações distribuída de forma
membros
participantes dispersa

75
Há igualdade relativa de
poder entre os membros.
Desigualdade de poder,
Embora um grupo possa
refletindo distribuição
dominar, o entendimento
Poder desigual de recursos e de
é de que este aspecto
acesso. Consiste num
beneficia a todos.
jogo de soma zero.
Consiste num jogo de
soma positiva.
Fonte: Marsh (1997a, p. 16).

Apesar da ampla difusão do conceito de redes como um referencial para


pensar temas referentes à dinâmica política e de construção de políticas públicas
na Europa e nos Estados Unidos, Peters (1997) adverte sobre a existência de
questões fundamentais e limitações analíticas, principalmente no caso americano
devido a pouca estruturação do sistema político. Segundo ele, apesar da concreta
capacidade de prover explicações para a dinâmica das escolhas políticas, tais
explicações somente são estabelecidas à posteriori, o que pouco contribui para a
capacidade de previsão dos resultados. Da mesma forma, ainda necessitam de
precisão questões como as relacionadas tanto ao surgimento de temáticas no
interior da rede quanto à forma como percepções conflitantes são resolvidas.
Ainda segundo Peters, persistem incertezas quanto à clareza das definições e
seus impactos sobre o processo de identificação e classificação das redes:

So, if networks are defined as having properties such as


being ‘open’, in reality they occupy points along the
continuum of ‘openness’, with a consequent need to identify
the points at which the aggregations become networks, rather
than the more closed communities. Further, can we
differentiate networks from even more loose and open
structures that may link government and society? There do
not appear to be criteria extant to make those choices in an
ambiguous manner. (PETERS, 1997, p. 24).

76
Entretanto, apesar das críticas e das advertências sobre o conceito, Marsh
(1997b) conclui tanto pela validade analítica do conceito quanto pela capacidade
das redes de influenciar no resultado final das políticas públicas, enfatizando a
necessidade de se integrar à abordagem de redes com outras afins, de se
focalizar as pesquisas nas inter-relações estabelecidas entre diversas redes, e
principalmente adotar perspectivas teóricas capazes de agregar as dimensões
estrutural e dinâmica no estudo das redes de políticas.
Logo, a perspectiva da rede como sistemas de intermediação de interesse
contribui de forma decisiva na compreensão de que a formação da rede ocorre
tanto mediante atores públicos quanto não públicos (privados, filantrópicos, etc.), e
que tal fato possui extrema relevância em termos do diferencial de poder interno
na rede. Se o núcleo da rede constitui-se de estruturas governamentais, então os
referenciais que orientam a dinâmica da rede são marcados por uma ética que
favorece a ação dos atores públicos na obtenção de seus objetivos, sendo
secundária e assessória a ação dos atores privados, e vice e versa. Tal fato pode
resultar em conflitos internos capazes de gerar impasses e até mesmo bloqueios
significativos que podem comprometer a integração da rede, comprometendo
seriamente a provisão de serviços aos cidadãos. Da mesma forma, o diferencial
de poder entre os entes públicos que formam o núcleo da rede também impõe os
mesmos desafios à integração.
No caso específico da proposta aqui formulada, onde o núcleo da rede
constitui-se de atores essencialmente públicos, outro fator apresenta relevância e
demanda certo cuidado no processo de gestão. A tipologia apresentada por Marsh
e Rhodes (Tabela 1) define claramente que os grupos de poder possuem
diferenciais extremamente variados em termos de composição, integração,
recursos e poder, o que lhes proporciona capacidade diferentes de influência
sobre as estruturas estatais (o núcleo da rede, neste caso). Este fato resulta num
desafio em relação ao cumprimento do princípio de igualdade na representação
junto ao Estado.
Desta forma, uma vez que a presença de grupos de interesse integrados,
ou redes de políticas, e articulados às estruturas estatais constituem uma variável

77
essencial no resultado das políticas públicas, é fundamental a percepção de que
somente com a sustentação destes atores haverá possibilidade de manter a
integração da rede. Da mesma maneira, em virtude do diferencial de capacidade
de representação, torna-se necessário buscar uma forma de ampliar a equidade
de representação, sob possibilidade de haver impasses e bloqueios por parte dos
atores de menor capacidade.
Assim é essencial que sejam desenvolvidos espaços internos de
pactação instituídos especificamente com o propósito tanto de permitir a
representatividade direta dos grupos de interesse internos à rede, quanto de
ampliar a equidade na capacidade de representação entre os grupos, por meio de
regras coletivamente construídas de representatividade. Tais espaços ou
instâncias, na medida em que possibilitam assimilar construtivamente o campo de
forças políticas impulsionando a formação de padrões de compartilhamento de
poder, contribui expressivamente no processo de institucionalização da rede.
Finalmente, a plena institucionalização da rede exige que suas relações
internas estejam articuladas com as macroestruturas maiores da qual faz parte,
uma vez que atores externos à rede são elementos importantes no sentido de que
podem influenciar a dinâmica e os resultados da rede.

2.3.2.4 – Modelos de governança democrática

Esta última perspectiva de conceituação presente na literatura de


administração pública identifica a noção de redes com relações específicas entre
atores no interior e fora do Estado por meio de mecanismos de mobilização de
recursos necessários ao exercício da governança democrática. Este conceito de
redes se apresenta como uma forma específica de coordenação social alternativa
aos princípios de mercado e de formas hierárquicas de organização da sociedade:

We define a network form of organization as any


collection of actors (N ≥ 2) that pursue repeated, enduring
exchange relations with one another and, at the same time,

78
lack a legitimate organizational authority to arbitrate and
resolve disputes that may arise during the exchange. In a
pure market, relations are not enduring, but episodic, formed
only for the purpose of a well-specific transfer of goods and
resources and ending after the transfer. In hierarchies,
relations may endure for longer than a brief episode, but a
clearly recognized, legitimate authority exists to resolve
disputes that arise among actors (PODOLNY e PAGE, 1998,
p. 59).

Tal conceito apresenta certa similaridade com o apresentado na abordagem


anterior, no sentido de que também reporta-se a relações de intercâmbio de
recursos entre atores públicos e privados. No entanto, o conceito de redes sob a
perspectiva de governança refere-se apenas a um tipo particular de relação entre
atores políticos e o Estado, sendo assim mais específico e restrito do que o
empregado pelos estudos de intermediação de interesses:

The interest intermediation school conceives policy network


as a generic concept which applies to all kinds of relations
between public and private actors. For the governance
school, on the contrary, policy network only characterize a
specific form of public-private interaction in public policy
(governance), namely the one based on non-hierarchical co-
ordination […] (BORZEL, 1998, p. 255).

A suposição básica por traz do conceito de rede como sistema de


governança consiste na percepção de que os sistemas políticos das democracias
ocidentais encontram-se num processo de transformação, onde o exercício do
poder cada vez menos é conduzido de forma centralizada sob a predominância do
Estado. Como resultado deste processo, as formas tradicionais de exercício
autoridade e de organização dos diversos interesses conflitantes tornam-se

79
insuficientes, uma vez que a presença de atores autônomos exige relações
estabelecidas de forma descentralizadas.
Assim, emergem clusters, ou redes compostas por atores públicos (sub-
nacionais ou supra-nacionais), privados e públicos não governamentais, cuja
mobilização de recursos e de suporte de legitimidade por parte do Estado exige a
ação orientada por princípios diferentes dos utilizados em relações de mercado ou
de autoridade racional-legal. O exercício da governança por meio de redes indica
a necessidade de construir relações de interdependência e intercâmbio de
recursos com base numa visão de complementaridade de interesses e confiança.
Tais formas de interação política são diferentes das relações estabelecidas em
mercados e hierarquias, como apresentado na Tabela 7:

80
Tabela 7 – Modelos de Governança – Mercados, Hierarquias e Redes.
MERCADOS HIERARQUIAS REDES
Contratos –
Bases Relações de Mútuo
direitos de
Normativas ocupação fortalecimento
propriedade
Meios de
preços rotinas Relacional
comunicação
Normas de
Métodos de Sanção
Disputas judiciais reciprocidade –
resolução de administrativa -
– recurso a cortes reputational
conflitos supervisão
concerns
Grau de
Alto Baixo Médio
flexibilidade
Nível de
confiança entre baixo médio Alto
as partes
Precisão e/ou Formal, Open-ended,
Ambiente
desconfiança burocrático benefícios mútuos
Preferência ou
escolhas dos independente dependente interdependente
atores
Fonte: Lowndes e Skelcher (1998, p. 319; adaptado de Powell, 1991).

Embora fundamentados em princípios diferentes de coordenação social,


mercados, hierarquias e redes não são mutuamente excludentes podendo
coexistir em arranjos multi-organizacionais como demonstram Lowndes e Skelcher
(1998) num estudo sobre composição de estruturas locais de parcerias em
cidades britânicas.

Assim, tais clusters de atores públicos (sub-nacionais ou supra-nacionais),


privados e públicos não governamentais, essenciais à mobilização de recursos e
de suporte de legitimidade por parte do Estado na construção da governança,
compõem o ambiente de relações externas à rede, sendo que a plena
institucionalização desta exige a construção de relações de interdependência e
intercâmbio de recursos com este ambiente. Tais relações podem ser compostas
por padrões extremamente variados de interdependência, desde inúmeras

81
conexões superficiais difíceis de identificar até relações de complementaridade
formalizadas caracterizadas por elevado grau de interdependência.

Neste último caso, a gestão das relações externas à rede consiste num
elemento essencial, uma vez que envolve recursos essenciais à manutenção da
dinâmica da rede bem como tais relações também interferem no campo de poder
desta. Sendo assim, o desenvolvimento de canais externos de articulação,
subjacentes a essas relações, torna-se essencial à integração da rede, uma vez
que torna possível articulações tanto com arenas decisórias relevantes externas à
rede quanto com outras redes de atores na busca por recursos estratégicos sejam
estes políticos, econômicos, ou quaisquer outros.

A base de desenvolvimento das relações da rede no interior destes


sistemas que formam o ambiente externo à rede, como visto na Tabela 7, consiste
no mútuo fortalecimento, principalmente em se tratando de sistemas de proteção
social como no caso da proposta aqui formulada. Neste caso, a dinâmica de
relações da rede está regulada pelos mesmos princípios que regem o sistema
maior, o que favorece o estabelecimento de relações de complementaridade e
intercâmbio de recursos, uma vez que a realização dos objetivos da rede consiste
num elemento que amplia a eficácia e fortalece politicamente o sistema. Ou seja, a
convergência natural de objetivos oferece um ponto para compor canais externos
de articulação que possam operar na construção de um ambiente caracterizado
pela busca de benefícios mútuos, na medida em que os princípios que regem a
ambos prevaleçam.

Obviamente que a existência de interdependência externa à rede amplia o


campo de forças políticas para além das fronteiras da rede, o que demanda que
os canais externos de articulação possam ter acesso ao processo de construção
dos princípios que regem tanto o sistema quanto a própria rede, formando, assim,
padrões de compartilhamento de poder capazes de desenvolver normas de
reciprocidade como parâmetro na resolução de conflitos, de acordo com o exposto
na Tabela 7.

82
Sob a perspectiva do sistema no qual se insere a rede, o estabelecimento
de canais externos de articulação permite que se construa a governança
democrática a partir de clusters de atores dispersos mediante o exercício de uma
forma de coordenação social diferente das hierarquias tradicionais e dos
mercados. Sendo assim, a dinâmica de relações de compartilhamento de poder
mediante canais formalizados de pactação transforma a interdependência na
relação fundamental de construção e no fortalecimento da governança
democrática, colocando a rede como a forma de coordenação social capaz de
ampliar o potencial do Estado tanto na eficácia relativa ao resultado das políticas
pública quanto na coordenação política.
De forma conclusiva, a plena institucionalização da rede envolve sua efetiva
inserção de forma estratégia no sistema externo por meio de canais externos de
articulação e construção da governança democrática.

2.4 – Singularidades das Redes como Forma de Coordenação

A plena institucionalização da rede, de acordo com os fundamentos


oferecidos pela literatura em administração pública, acima apresentada, possibilita
a formação de um campo organizacional capaz de gerar competências de gestão
adequadas aos desafios que se impõem à ação do Estado.

Assim, todos os autores consultados na literatura internacional de


administração pública enfatizam o potencial das redes tanto como forma de
organização interna do Estado, quanto como estratégias de desenvolvimento de
coordenação de políticas públicas por meio de formatos inovadores de
intermediação de interesses e de sustentação plural de legitimidade política,
possibilitando a construção da governança em meio à diversidade e à
fragmentação.

De acordo com a literatura, as formas de organização em rede possibilitam


a obtenção de resultados além dos obtidos por outros formatos de coordenação
como as burocracias centralizadas. Embora impliquem em transformações quanto

83
a formas de organização do poder e complexificação do processo decisório, as
formas de organização em rede possibilitam o acesso, a combinação e o emprego
de organizações e recursos (financeiros, econômicos, políticos, conhecimento,
etc) de forma relativamente estável e com grau elevado de flexibilidade. A
capacidade de circulação de informações e competências amplia-se
significativamente quando atores e organizações operam em rede pela
emergência de um padrão de interconexão não disponível em hierarquias. Desta
forma, em diversos estudos são ressaltados os resultados positivos do emprego
de redes ao contexto da administração pública, sendo os principais a ampliação
da performance na provisão de bens e serviços, a solidificação da
governabilidade, o desenvolvimento de formas de intermediação de interesses
plurais e a construção de processos de decisão mais igualitários.

Podolny e Page (2000) afirmam que cada vez mais uma ampla quantidade
de estudos enfatiza as vantagens das formas de organização em rede, o que
significa que o estabelecimento de estruturas de coordenação policêntricas pode
ampliar tanto competências existentes quanto gerar novas. Segundo os autores,
os principais atributos enfatizados pelos estudos são:

• Capacidade de Aprendizagem – as formas de organização em rede


preservam uma diversidade de fontes de conhecimento e impulsionam a
condução de informações em meio a uma amplitude significativa de atores
e organizações. As redes possibilitam o intercâmbio de informações de
forma mais ampla do que mercados e hierarquias, pois operam com maior
estabilidade que os primeiros e não impõem barreiras de segmentação
como as últimas. Assim, as redes são estruturas de maior potencial de
aprendizagem por dois motivos. Primeiro por funcionar como canais de
condução de informações, o que possibilita a ampliação da diversidade de
mecanismos de aquisição de conhecimento. Segundo por proporcionar a
combinação de informações existentes para a geração de novos
conhecimentos, o que converte uma rede num lócus de inovação;

84
• Legitimação e Status – a formação de vínculos diversificados entre
organizações e atores possibilita a redução de incertezas quanto a
sustentabilidade de inovações, como novos produtos, programas ou
políticas públicas. Neste sentido, a presença de atores ou organizações
com legitimidade e status relativo à determinada área pode, pela
associação em rede, transferi-los a outros, ou mesmo ampliá-los pela
formação de relações com atores e organizações de mesmo ou maior nível
de legitimidade e status;

• Benefícios Econômicos – As relações de intercâmbio em rede


possibilitam ganhos de escala, principalmente em termos de redução de
custos e de aperfeiçoamento da qualidade na provisão de bens e serviços.
A capacidade de associação entre organizações permite a dispersão de
custos não só pela divisão do valor de novos recursos adquiridos, mas
também pelo intercâmbio de recursos já existentes no cluster formado. Da
mesma maneira, a formação de vínculos caracterizados por estabilidade de
longo prazo entre organizações possibilita canais permanentes de trabalho
sobre o aperfeiçoamento da qualidade de produtos e serviços;

Os autores apontam ainda superficialmente uma série de benefícios das


formas de organização em rede como a redução do nível de incerteza proveniente
da dependência de recursos, a ampliação da autonomia, a redução de
desigualdades, a promoção de laços de solidariedade, entre outros.

Agranoff e Mcguire (1999), a partir de estudos sobre desenvolvimento


econômico local, enfatizam a capacidade das redes de acessar amplos conjuntos
de atores de diversas naturezas e possuidores de recursos variados, o que
possibilita ampliar o potencial de eficácia e de eficiência da ação pública, embora
demande habilidades especiais de gestão. Afirmam ainda que esta capacidade

85
deve-se também à flexibilidade da estrutura de organização em rede, que
proporciona velocidade de ajuste e adaptação a transformações ocorridas no
ambiente, o que representa que as redes estão aptas a responder de forma rápida
a oportunidades emergentes, transformar suas bases tecnológicas, suas formas
de produção, produtos e serviços, maximizando resultados em resposta a
restrições externas.

Keast et al (2004) destacam a capacidade das redes de oferecer soluções


inovadoras a problemas de política pública considerados de alta complexidade
(questões como pobreza, exclusão, uso de drogas, habitação urbana, etc.).
Segundo os autores, estes problemas são considerados de difícil solução, não
apresentando soluções satisfatórias, apesar de constantes esforços e dispêndios
de recursos para resolvê-los. Tais problemas apresentam dificuldades de definição
precisa quanto a causas e soluções, envolvem aspectos relativos a várias áreas
de política pública, e por isso resistem a respostas apresentadas por abordagens
de departamentos e agências isoladas. Assim, as redes possibilitam respostas
eficazes e eficientes a esses problemas por oferecer abordagens trans-
disciplinares, além da construção de ações coletivas combinando diversos atores
e recursos.

Van Bueren, Klijn e Koppenjan (2003) também enfatizam o potencial das


redes de solucionar problemas caracterizados pela presença de elevada
complexidade, chamados pelos autores de 'wicked problems'. Segundo eles, tais
problemas envolvem incertezas de natureza substancial (divergências quanto à
natureza do problema), estratégica (diferentes percepções, objetivos e interesses
envolvidos) e institucional (o contexto decisório caracteriza-se por diversas arenas
e referenciais de orientação). Segundo os autores, devido à ação destas
incertezas, a construção de soluções necessita da ampliação e da intensificação
das relações entre os atores e as organizações envolvidas. A abordagem de
redes proporciona um referencial adequado para a análise dos jogos e das
estratégias construídas pelos atores envolvidos. Devido à existência de diversos
atores envolvidos em vínculos de dependência de recursos, a resolução dos
problemas implica na necessidade de construção de estratégias cooperativas

86
como única forma eficaz de abordá-los. Assim, as redes proporcionam uma base
de gestão capaz de desenvolver estratégias de convergência de percepções,
interesses, objetivos e redução das incertezas subjacentes, contribuindo para
formação de ações coletivas direcionadas à resolução desses problemas.

Agranoff e Mcguire (2001b), a partir de uma análise das transformações no


contexto da organização federativa americana, afirmam que o modelo de gestão
em rede de relações e programas intergovernamentais apresenta crescente
potencialidade de ampliar a efetividade dos resultados em tal contexto. Os autores
descrevem a existência de quatro modelos empregados na gestão federativa, os
quais orientam a ação dos gestores em relações verticais e horizontais
necessárias para executar um amplo conjunto de programas federais. Estes
programas são de diferentes naturezas e envolvem várias bases jurídicas, além de
instrumentos e estratégias desenhados para abranger atores públicos (federais,
regionais e locais), privados e públicos não-governamentais.

O modelo Top-down reflete a manutenção do controle da esfera federal


sobre as demais no estabelecimento de relações necessárias à implementação e
execução de programas intergovernamentais. A manutenção do controle federal
enfatiza o emprego de instrumentos e de normas padronizadas desenhadas
unilateralmente, o monitoramento dos resultados, domínio de transferências
financeiras e sua regulação centralizada, entre outros. O Modelo de Trocas
Mútuas enfatiza a construção de instrumentos de gestão e o alcance de objetivos
pela mútua dependência entre os atores envolvidos. A base da gestão consiste
em processos de negociação a partir dos vínculos intergovernamentais
construídos pelo sistema federativo, em detrimento da dominação completa da
esfera federal.

O Modelo de Jurisdição adota como princípio de gestão o estabelecimento


por governos locais de bases normativas, estratégias e vínculos, necessários ao
adequado cumprimento das funções que lhes foram atribuídas por processo de
descentralização. No intuito de atingir seus objetivos, os gestores locais
selecionam e contactam os atores que detém os recursos estratégicos ao

87
desenvolvimento das atividades, programas e projetos planejados como
instrumentos essenciais. Embora este modelo proporcione maior grau de
autonomia aos governos locais, as esferas federal e regional ainda impõem
restrições a sua ação, uma vez que a ação dos governos locais está voltada para
suprir funções delegadas de cima, e não para construir ou aprimorar vocações
próprias.

Em contraposição, no Modelo de Gestão em Rede a ação dos diversos


atores relacionados à gestão do sistema intergovernamental processa-se num
ambiente onde atores ou organizações não possuem o poder de determinar as
estratégias dos demais. Logo, o princípio de gestão consiste em desenvolver
vínculos colaborativos pela intensificação das relações de interdependência:

As in the Jurisdiction-based model, the network model


extends the analytic focus to intersectoral and
intergovernmental relationships, but in this case leadership is
collaborative. Actors in federal system depend on each other
because they need the other's resources to achieve their
goals. Interdependency implies that all actors benefit in some
way, resulting from their joint interest in a specific activity, and
that a particular problem cannot be solved unless
participating actors pursue the solution strategically and
collaboratively (KEAST at al, 2004, p. 676).

Segundo os autores, embora o modelo de gestão em rede seja o mais


recente na gestão de programas federativos, existem diversas razões para
assegurar que sua utilização se ampliará, uma vez que se torna o mais apto a
coordenar questões relacionadas ao atual contexto americano da gestão
intergovernamental.

88
O relatório Networking People for a Good Governance in Europe (UNIÃO
EUROPEIA, 2001b) apresenta uma série de vantagens principais das redes como
forma de coordenação política:

• Enquanto as hierarquias limitam a ação de seus componentes pela


formalização e especialização das atividades, as redes ampliam os
espaços formais e informais de interação e possibilitam a geração de
complementaridades de recursos e habilidades. As redes constroem
e reafirmam relações de confiança e busca de objetivos
coletivamente definidos em meio à produção de benefícios comuns;

• As redes tendem a gerar processos decisórios caracterizados por


maior nível de democratização, uma vez que operam por meio da
produção de consenso entre os participantes, sendo a circulação de
informações o recurso estratégico nas decisões;

• Uma vez definidos os objetivos coletivamente, as redes permitem


rápido acesso a fontes de informação seguras, além de mais
eficientes em situações de incerteza, transformações bruscas,
elevada complexidade ou caracterizadas por adversidades de
gestão;

• Ao contrário das hierarquias, onde uma falha de performance numa


instância elevada pode bloquear a organização, as redes possuem
maior capacidade de reação a possíveis falhas de centros de gestão
devido à diversidade de conexões, o que possibilita a substituição de
funções;

• Enquanto as hierarquias concentram as principais habilidades e


recursos em determinados centros estratégicos, dos quais a
organização torna-se dependente, as redes são caracterizadas pela

89
complementação e suplementação entre os membros componentes,
diversificando e democratizando os processo de produção de
políticas e programas públicos;

• Membros de uma rede são enriquecidos pela diversidade presente,


proporcionando uma série de possibilidades de inovações a partir de
uma sugestão ou idéia individualmente gerada. Assim, proporcionam
economia de tempo em situações de necessidade de reação rápida,
como no caso de calamidades públicas, desastres, epidemias, e
outras situações marcadas por elevado risco social;

• As redes constituem ambientes mais abertos à expressão da


pluralidade de valores e interesses, conformando canais de
construção de uma cidadania plural, uma vez que não está presente
um centro capaz de impor padrões culturais ou normas de
comportamento;

• As redes possuem ampla versatilidade de posicionamento de atores


e recursos, uma vez que as funções e a relevância desempenhadas
por estes variam de acordo com os objetivos fixados, podendo haver
re-alocações de acordo com mudanças de objetivos;

O relatório enfatiza ainda que, embora as redes tenham limitações, o seu


emprego como forma de governança no interior da União Européia permite
responder a dois desafios essenciais. O primeiro refere-se à garantia da natureza
democrática da Comunidade em de sua legitimidade frente a um crescente
processo de incorporação de populações com diferentes referenciais sócio-
culturais. O segundo consiste em proporcionar uma base operacional, o permite
aos gestores da UE manter suas funções e responsabilidades enquanto garantem
a construção de objetivos comuns e a performance de projetos coletivos.

90
Agranoff e Mcguire (2001a) apontam a singularidade das redes como
sistemas de integração de provedores de bens e serviços públicos. Segundo os
autores, dado o contexto de descentralização e inserção de provedores privados e
semipúblicos nos sistemas de proteção social, os desafios de gestão somente
podem ser enfrentados com sucesso por meio de da organização em rede. Citam,
como exemplo, os arranjos de provisão resultantes do processo de
desinstitucionalização da saúde mental nos Estados Unidos, enfatizando o
potencial exclusivo das redes como forma de coordenação dessas estruturas:

Once direct provision of government services in hospitals was


viewed as an unacceptable policy instrument and,
consequently, vertical integration of services through one
provider was no longer appropriate, service implementation
networks became the only therefore the best, organizational
form through which mental health services could be
delivered. Given the type of policy instrument adopted by
governments, networks indeed produce results that otherwise
would not have occurred (AGRANOFF e MCGUIRE, 2001a,
P. 320).

Assim, diversos estudos apontam não só as vantagens operacionais para


responder os desafios presentes no atual contexto da administração pública, mas
também o potencial das redes como forma de coordenação social e política capaz
de orientar a gestão pública em direção a maior eficácia e eficiência respeitando e
mantendo princípios democráticos e de construção de uma cidadania plural.

91
92
Capítulo 3 – Construindo uma Tipologia para Identificação e a Análise da
Interdependência em Rede

Este capítulo tem por objetivo construir uma estrutura de analise de


interdependências interorganizacionais a partir dos elementos fornecidos pela
literatura internacional sobre redes em administração pública. Tal estrutura de
análise possibilita diferenciar a interdependência em rede tanto de formações
interorganizacionais de menor composição coletiva quanto de formações
caracterizadas por elevada centralização decisória. A introdução apresenta a
formação de relações de coordenação interorganizacional como o requisito
essencial que caracteriza o surgimento da rede, enquanto a seção 3.2 demonstra
que a formação desta envolve a construção de um padrão de governança
caracterizado por autonomia, flexibilidade decisória e constantes processos de
pactação, envolvendo a necessidade de se obter compartilhamento de
percepções, ajuste de interesses, e a articulação coletiva de estratégias de ação.
Finalmente, a seção 3.3 desenvolve uma estrutura analítica composta por
elementos que caracterizam o padrão de interdependência em rede e o distingue
de demais formações interorganizacionais. Esta estrutura será utilizada na análise
do padrão de interdependência municipal fomentado pelas diretrizes da Norma
Operacional de Assistência à Saúde – NOAS.

3.1 - Introdução

Como afirmado na seção referente à fundamentação conceitual básica de


redes (perspectiva generalizante) – Capítulo 2 - estas consistem num fenômeno
organizacional que, além dos aspectos fundamentais como composição por atores
autônomos, interdependência e padrões estáveis de relacionamento, desenvolve
uma institucionalidade voltada especificamente para o aprofundamento da
interdependência existente. Ainda segundo a argumentação conduzida na
mesma seção, esta institucionalidade se compõe em torno do planejamento
deliberado da divisão do trabalho e da articulação estratégica voltada para a

93
manipulação do ambiente em que opera a rede, ou, como nas palavras de Keast
et al (2004, p. 364), a rede se desenvolve pelo trabalho coletivo especificamente
planejado a partir de um padrão horizontal de interdependências (‘in a network
structure people must actively work together’).
Assim, é fundamental entender que a literatura em administração pública
aponta a rede como um campo organizacional cuja composição pressupõe o
desenvolvimento de uma estrutura, o que indica que a rede não consiste num
arranjo policêntrico qualquer, ou seja, não é simplesmente a composição
multicêntrica a característica que lhe confere singularidade. A composição
multicêntrica é uma condição necessária, mas não suficiente para a emergência
plena da rede na manifestação de suas potencialidades.
O desenvolvimento da estrutura envolve um processo de institucionalização
da interdependência existente entre os atores que compõem a rede. Este
processo é de suma relevância, uma vez que consiste numa precondição para que
a rede possa desenvolver as potencialidades apontadas na seção 2.4 do Capítulo
2. Assim, de acordo com a argumentação desenvolvida na literatura, as
capacidades especiais da rede somente poderão ser exploradas se houver uma
institucionalidade mínima para combinar, explorar e potencializar as múltiplas
capacidades provenientes dos atores ou organizações componentes.
Logo, a interdependência consiste no fator de orientação para o
desenvolvimento do processo de institucionalização da rede, uma vez que será
sobre os elementos que impulsionam a interdependência que a estrutura da rede
se desenvolverá.
No entanto, a existência de interdependência entre uma diversidade de
atores não configura condição suficiente para a proporcionar a emergência da
rede, uma vez que existem diversos níveis de interdependência. Assim, torna-se
necessário que haja uma intenção deliberada de aprofundar e canalizar esta
interdependência para a realização de objetivos que proporcionam o mútuo
fortalecimento dos atores envolvidos.
A seção 2.3 apresentou os processos mínimos de estruturação da rede
como campo organizacional desenvolvido especificamente para aprofundar a

94
interdependência existente entre os atores componentes. Assim, a formação de
estruturas interorganizacionais compostas por mecanismos e estratégias de
articulação e coordenação de base de produção de bens e serviços constitui um
impulso inicial para a institucionalização da rede. Esta estrutura
interorganizacional visa proporcionar canais de intercâmbio de recursos
individualmente articulados e pactuados.
No entanto, como argumentado, a existência de estratégias e mecanismos
de intercâmbio de recursos não é suficiente para conferir institucionalidade ao
processo de aprofundamento de interdependência, ou seja, não contém elementos
suficientes para dar estrutura à rede, de acordo com a literatura em administração.
Como conseqüência, a presença de desafios como a necessidade de
legitimação do monitoramento coletivo do ciclo das políticas previamente
estabelecidas, a redução das incertezas entre aos atores envolvidos, a
necessidade de planejamento estratégico para o emprego racional da base
econômica, torna essencial o desenvolvimento de instâncias de estratégia
coletivamente construídas, como etapa fundamental na institucionalização
necessária à emergência da rede. Tais instâncias visam, sobretudo, conferir
racionalidade sistêmica à estrutura de coordenação interorganizacional.
No entanto, a percepção de que o campo organizacional da rede configura
um campo de forças políticas que resulta na formação de padrões de
compartilhamento de poder coloca desafios ao processo de institucionalização da
rede, na medida em que as instâncias de estratégia não são espaços voltados
para a articulação do processo político entre os atores que compõe a rede. Ou
seja, o processo de institucionalização da rede necessita da composição de forças
entre os grupos de poder envolvidos.
Logo, como condição para proporcionar base política de sustentação da
rede, torna-se necessária a presença de espaços internos de pactação
instituídos especificamente com o propósito tanto de permitir a representatividade
direta dos grupos de interesse internos à rede, quanto de ampliar a equidade na
capacidade de representação entre os grupos, por meio de regras coletivamente
construídas de representatividade. Tais espaços ou instâncias, na medida em que

95
possibilitam assimilar construtivamente o campo de forças políticas impulsionando
a formação de padrões de compartilhamento de poder, contribui expressivamente
no processo de institucionalização da rede.
Finalmente, a articulação externa da rede completa o processo de
institucionalização desta por meio da interação com as instâncias, arenas e atores
externos de relevância para sua dinâmica. Sendo assim, o desenvolvimento de
canais externos de articulação, subjacentes às relações de interdependência
externa, torna-se essencial à integração da rede, uma vez que possibilita
articulações externas de poder e ação conjunta.
Assim, estes processos mínimos de estruturação da rede permitem que se
forme, pela composição das forças políticas que atuam no espaço da rede, uma
institucionalidade voltada especificamente para o aprofundamento da
interdependência existente, ou como argumentou O’TOOLE (1997a), tais
processos impulsionam o desenvolvimento do que ele caracterizou de ‘single
multiunit structure’ (O’TOOLE, 1997a, p. 45).
Como resultado da emergência de uma base de institucionalidade, a
natureza da relação existente entre os atores e organizações componentes da
rede transforma-se adquirindo uma dimensão caracterizada por padrões de
interdependência diferentes dos predominantes anteriormente. O padrão de
interdependência anterior ao processo de institucionalização da rede envolvia a
construção apenas de relações de cooperação interorganizacional entre os
atores envolvidos, sendo que o novo padrão de relações de interdependência em
rede envolve principalmente a formação de relações de coordenação
interorganizacional, entendendo esta tal qual definida por Rogers e Whetten:

[...] We define Interorganizational Coordination as the


process whereby two or more organizations create and/or
use existing decision rules that have been established to deal
collectively with their shared task environment. This definition
is useful because it: (1) emphasizes that decision rules can
be established by a third party or created by participants; (2)

96
underlines the importance of shared task environment; (3)
focuses on the role of collectivity and its attainment of a
unique level of goals; and (4) stresses joint decision making
and action (ROGERS e WHETTEN, 1982, p. 12).

Logo, a institucionalização da rede envolve a emergência de um padrão de


interdependência onde os atores desenvolvem ações coletivamente planejadas e
deliberadamente orientadas para a ênfase nos objetivos comuns. A estrutura
institucionalizada busca integrar forças políticas de forma a permitir que a relação
com o ambiente da rede se desenvolva reorientando a distribuição e a utilização
de recursos. Esse processo envolve não só a formalização compartilhada de
relações internas de intercâmbio e o desenvolvimento de regras específicas para
gerir tais relações, como a definição de parâmetros que são também
estabelecidos em arenas externas à rede. Nesse sentido, tornam-se relevantes
não só as instâncias de estratégia e os espaços internos de pactação, mas
também os canais externos de articulação.
Da mesma forma, esta nova dinâmica de relações, marcada por um
processo de coordenação interorganizacional, aprofunda-se e diferencia-se da
anterior, caracterizada somente por um processo de cooperação
interorganizacional, devido à presença de regras decisórias, grau de
formalização presente, tipos de objetivos enfatizados, quantidade de recursos
envolvida, tipo de atores diretamente relacionados e implicações para as
articulações verticais e horizontais dos atores. A Tabela 8 apresenta a
comparação entre os dois padrões de interdependência de acordo com os critérios
relacionados.
No novo padrão de interdependência em rede, onde predomina um
processo de coordenação interorganizacional, o fortalecimento da estabilidade
das relações e a necessidade de desenvolver certo nível de divisão do trabalho
implicam no estabelecimento formalizado de determinadas normas e parâmetros.

97
Esta necessidade impõe-se uma vez que o novo padrão de
interdependência enfatiza a obtenção de ações e objetivos comuns estabelecidos
coletivamente, o que demanda certo nível de regulação.
Da mesma forma, tais regras e parâmetros formalizados visam orientar o
emprego dos recursos de forma a gerar estratégias de redução dos riscos e das
incertezas envolvidas nesta nova relação, uma vez que a quantidade de recursos
envolvidos torna-se maior num processo de coordenação interorganizacional.

Tabela 8 – Comparação de Padrões de Interdependências


CRITÉRIOS COOPERAÇÃO COORDENAÇÃO
Construção coletiva de
Regras e Formalidade Sem regras formais
regras formais
Metas e Atividades Ênfase nas ações e Ênfase nas ações e
Enfatizadas objetivos individuais objetivos conjuntos
Implicações em termos Sem implicações para as Transformação das
de articulações verticais articulações verticais ou articulações verticais ou
e horizontais horizontais horizontais
Nível dos Recursos Poucos recursos Maior nível de recursos
Envolvidos intercambiados intercambiados
Poucos atores – presença Maior quantidade de
Atores Diretamente de atores do nível atores – envolvimento de
Envolvidos operacional e tático atores dos níveis tático e
(pouco freqüente) estratégico
Maior grau de
Compartilhamento de
Pouco compartilhamento compartilhamento de
Poder
poder
Fonte: adaptado de Rogers e Whetten (1982, p. 13).

98
O estabelecimento de um padrão de interdependência em rede resulta na
transformação das articulações de cada ator ou organização envolvidos, uma vez
que sua inserção num processo deliberado de coordenação interorganizacional
altera o status de relacionamento com os atores internos e externos
horizontalmente estabelecidos, quanto com os atores externos de maior poder e
prestígio.

Da mesma forma, devido à quantidade de recursos direcionados por cada


ator ou organização, torna-se necessário que os atores ou instâncias de maior
poder dentro de cada organização estejam diretamente envolvidos nas
articulações e processos de pactação coletiva.

Portanto, o estabelecimento de uma institucionalidade que faz emergir a rede


como forma de coordenação interorganizacional para o aprofundamento das
interdependências envolve um pacto profundo de compartilhamento de poder,
tornando a rede um fenômeno gerencial que torna inseparáveis a administração e
a política, colocando amplos desafios à condução do processo de coordenação
interorganizacional. Cabe então entender o que motiva a coesão dos atores e
organizações em torno de um padrão de interdependência em rede sustentado
sob processo de coordenação interorganizacional, para em seguida buscar
quais as implicações sobre o formato organizacional e político da rede. A
delimitação deste formato consiste em compor um padrão de coordenação
característico de espaços interorganizacionais dispostos em rede, ou seja, cabe
definir em que consiste um padrão de interdependência em rede.

3.2 – Coesão Sistêmica e a Natureza da Governança em Rede

A constituição das redes envolve a presença de diversos atores públicos


(locais, regionais e federais), privados, organizações não governamentais, cada
um deles sujeito a ambientes institucionais diferentes, o que proporciona
orientações diversas e objetivos distintos. A multiplicidade de atores presentes no

99
contexto de organização das redes ressalta a necessidade de se construir
convergência a partir de pluralidade e autonomia:

While we speak in general about managing in the


network, public managers are usually operating in several
networks. Public administrators and other government official
operate in networks that involve officials from within the same
government but representing another agency, representatives
of profit making or non-profit organizations located within the
jurisdiction, and representatives from organizations in all
sectors located outside of the jurisdiction. The form and
content of these multiple networks – which can be vertical
and based in more traditional intergovernmental linkages, or
horizontal and based in collaboration to establish basic policy
strategies and projects – varies depending on the policy area,
the specific task to be accomplished, and the instruments
utilized to achieve the policy goal (AGRANOFF e MCGUIRE,
1999, p. 23).

Como resultado dos diferentes referenciais, emergem percepções


diversificadas sobre o conteúdo e a condução de programas e políticas públicas. A
presença de diversos padrões de interação entre os atores envolvidos na rede
implica no desenvolvimento de estratégias nem sempre compatíveis e voltadas
para a obtenção de objetivos especificamente desenhados. Devido à inserção de
atores provenientes de jurisdições diferentes, o conjunto de regras (marcos legais)
a que cada um está sujeito complexifica ainda mais e impulsiona a fragmentação
do conjunto. Assim, coloca-se a questão de como obter a convergência em torno
de objetivos comuns e a coordenação na construção das metas fixadas
coletivamente. As repostas a esta questão variam de acordo com o referencial de
conceituação de redes empregado, embora haja convergência sobre a percepção

100
de que as redes se formam a partir de clusters de recursos que delimitam sua
extensão pelo grau de dependência entre os atores que detém estes recursos.

Os estudos que conceituam redes como sistemas de intermediação de


interesses ou como sistemas de centros decisórios subjacente às políticas
públicas, em geral assumem que a dependência de recursos e o interesse comum
entre os atores fornecem o fator de coesão (a segunda abordagem admite que a
capacidade da gestão pode construir coesão, mas de forma secundária). Tais
abordagens, principalmente a primeira, consideram redes como estruturas de
interdependência de recursos e motivadas por interesses mútuos, onde grupos
dotados de certa coesão emergem de clusters de recursos determinados e
buscam inserir seus interesses junto ao Estado e influenciar as decisões tomadas
a respeito das políticas setoriais que os afetam.

Da mesma forma que há diferenças em torno dos fatores de coesão,


também se colocam percepções e questões de pesquisa diferentes para o tema
da coesão. Na perspectiva da intermediação de interesses ou dos sistemas
decisórios, os estudos entendem coesão como a capacidade de convergência de
determinada comunidade de atores setoriais (grupos de interesse) na sustentação
de percepções e objetivos comuns. Logo, tais estudos buscam entender como a
coesão das redes afeta as decisões e o resultado final das políticas públicas.

Por sua vez, os estudos que empregam o conceito de redes como sistemas
de provisão de bens e serviços (arranjos locais de produção) ou como principio de
governança (alternativo a hierarquias e mercados), estabelecem que os fatores de
coesão podem ser outros além da interdependência de recursos, como propósitos
comuns, confiança, lideranças e capacidade de gestão (AGRANOFF e MCGUIRE,
2001a). Para a perspectiva da rede como sistemas de provisão de bens e
serviços, a coesão representa a capacidade de coordenação interorganizacional
entre os diversos provedores organizados localmente, formando bases de
provisão em torno das quais os atores desenvolvem estratégias de intercâmbio
eficiente de recursos. Sob esta perspectiva, o trabalho de maior impacto na
literatura de administração pública dos anos noventa consiste no estudo

101
desenvolvido por Provan e Milward (1995) em quatro sistemas locais de provisão
de serviços de saúde mental no Estados Unidos. A partir de uma abordagem da
teoria organizacional, os autores buscaram elaborar uma teoria preliminar de
efetividade das redes interorganizacionais, relacionando indicadores estruturais e
contextuais com os de performance. As evidências apresentadas por Provan e
Milward (1995) sugerem que a presença de agências de coordenação das
atividades em rede desenvolvidas pelos diversos provedores consiste no fator
essencial para integração e performance, uma vez que a articulação e
coordenação da rede por uma agência central em Providence (estado de Rhode
Island) implicaram em resultados comparativamente superiores às demais redes
analisadas.

Finalmente, os estudos que concebem redes como sistemas singulares de


governança entendem coesão como o potencial de cooperação de uma
comunidade política em torno da resolução de problemas de política pública, onde
o intercâmbio de recursos e a convergência de interesses exercem papel decisivo
para o resultado final das políticas. Embora guarde certa semelhança com a
coesão na concepção de redes como sistemas decisórios, esta última enfatiza a
dinâmica da decisão enquanto a primeira enfatiza o processo de mobilização de
atores dispersos e recursos escassos (LE GALÈ, 2001). Uma vez que esta
perspectiva entende que os sistemas políticos contemporâneos encontram
fragmentados e dispersos em subsistemas de poder pela redução da coordenação
centralizada do Estado, os estudos buscam entender como emergem estratégias
de coordenação horizontal ente os subsistemas de intercâmbio de recursos:

The emergency of these subsystems is closely


connected with the ascendance of formal organizations
forming interorganizational relations with other organizations
on which they depend from resources. In politics, private
organizations dispose of important resources and have
therefore become increasingly relevant for the formulation

102
and implementation of public policies. In this structural
context, policy networks present themselves as a solution to
co-ordination problems typical of modern society (BORZEL,
1998, p. 260).

A autora argumenta que a necessidade do emprego de um processo de


coordenação mais horizontalizado consiste no formato inerente à estrutura em
rede, mas pode conduzir, em alguns casos, à produção de resultados sub-ótimos,
uma vez que a presença de sub-sistemas de organização política caracterizados
por certo grau de autonomia restringe a possibilidade da emergência de coesão
sistêmica, impedindo a formação de consenso necessário à realização de ganhos
coletivos.

Segundo ela, existem duas questões centrais relativas à obtenção de


processos de convergência de esforços discutidas na literatura, que se referem a
situações nas quais racionalmente verifica-se maior recompensa para os atores
que se abstiverem de cooperar pelo risco de enormes perdas (dilema do
prisioneiro), ou pela própria natureza estrutural do processo de coordenação
horizontal, onde emerge o conflito entre compromissos estabelecidos de forma
intra e interorganizacional (dilema estrutural). Nesta perspectiva, situações de
ocorrência de coesão parecem ser exceções onde determinadas condições
especiais devem estar presentes. Nestas situações, a literatura sugere que o
desenvolvimento de confiança e de processos constantes de comunicação e
pactação constituem fatores essências à construção de coesão necessária ao
consenso político (SIZE, 1993; BRINKERHOFF, 1999). Neste sentido, a presença
de espaços e instâncias de suporte ao processo de formalização de coalizões
entre os atores dispostos ao redor do cluster de recursos torna-se um fator
essencial.
Klijn e Koppenjan (2000) argumentam que o fato da literatura enfatizar a
construção de cooperação entre atores mutuamente dependentes não significa
que este processo se realize sem conflitos. Os autores admitem as assimetrias

103
implícitas no processo decisório em rede devido à existência de diferenças
estruturais (recursos) e relacionais (padrões de interação):

The lack of a dominant actor does not imply that resources


are equally distributed among actors. Also, rules may operate
to the advantage of some, and to the disadvantage of other
actors. This is implied by the fact that rules have been formed
during earlier interactions. […] In short: the differences in the
distribution of resources matter. Actors will use them to
influence the process and the substance of the interaction. A
project developer or a municipality will generally be able to
wield more influence over building plans than citizens’
organizations. Citizens lack the ‘know how’ and
organizational capacity to be present throughout the process
and provide input (KLIJN e KOPPENJAN, 2000, p. 147).

No entanto, os autores afirmam que, apesar das diferenças de poder,


atores com menos recursos também são capazes de influenciar a direção e o
conteúdo do processo decisório, uma vez que como unidades autônomas podem
acionar seu poder de veto ou mobilizar recursos visando construir impasses e
bloqueios decisórios, obrigando atores de maior poder a ajustar suas expectativas
e objetivos. No entanto, advertem para a possibilidade de casos onde atores
menos poderosos não possuam poder de veto ou sejam deliberadamente
excluídos do processo decisório, afirmando ainda que a gestão de redes pelo
Estado pode tornar-se um poderoso vetor de redução das assimetrias e prevenção
da exclusão de percepções plurais, na medida em que este pode organizar
espaços democráticos em torno dos quais o poder de veto pode ser exercido de
forma garantida, evitando a preponderância de atores com maior poder econômico
sobre os demais.

104
Le Galès (2001), num estudo sobre a capacidade de articulação política de
elites urbanas na cidade de Rennes (França), demonstrou como redes podem ser
direcionadas e instrumentalizadas em regimes de governança supostamente
horizontalizados. O autor argumenta que a literatura européia sobre processos
recentes de reestruturação política tem enfatizado a redução da coordenação
centralizada do Estado, em direção à ampliação de um processo de redistribuição
da autoridade ao longo de diversas redes de políticas, do desenvolvimento de
mecanismos de regulação negociados e da mediação de conflitos pela construção
de confiança e compromisso entre os diversos atores setorialmente organizados
no espaço político regional. Este processo gera reflexos em termos de
organização política das cidades européias, o que têm contribuído para
impulsionar a difusão de reformas nos mecanismos de coordenação política local,
no sentido de ampliar a capacidade de governança urbana:

There is a strong argument to be made that one of the main


problem for European cities and regions in increasing their
political capacity is that policy networks go through them and
contribute to the fragmentation of the political arena without
integration. Our basic hypothesis for cities […] is that in
Europe, and in France in particular, some cities face,
increasing political fragmentation as a result of either the lack
of local actors and organized interests or weak integration
process owing to the structuring of policy networks which are
relatively autonomous. However, in order to go against these
trends, many leaders in different cities are trying to develop
ways to integrate various interests and networks within
collective strategies and long-term policies (LE GALÈS, 2001,
p. 170).

105
A reação de lideranças resulta, segundo Le Galès, de coalizões de poder
entre elites políticas e empresarias no sentido de reorganizar as instâncias e
estratégias de domínio do espaço político urbano. Neste sentido, a fragmentação
da capacidade de governança urbana relacionada à expansão das redes de
políticas proporciona uma oportunidade de rearticulação de interesses
dominantes, especialmente para o desenvolvimento de projetos de cidades como
centros de competitividade econômica. Ao mesmo tempo em que a fragmentação
e dispersão dos sistemas políticos afrontam a governança tradicional centralizada,
também abrem espaço um novo formato de governança por estarem articulados
entre si em diversos subsistemas autônomos de poder dispostos em torno de
clusters de recursos.

Dessa forma, segunda a literatura de redes como sistemas de governança,


estas são caracterizadas pela ausência de atores legítimos dominantes
(coordenação centralizada do Estado). A argumentação de Le Galès conduz à
percepção de que a dinâmica do poder em redes caracteriza-se pela construção
de projetos hegemônicos no sentido apontado por Gramsci (BUCI-GLUGSMANN,
1980), por traz da aparente fragmentação e dispersão descrita na literatura, no
sentido de que estes atores convergem para a formação de coalisões em torno
dos clusters de recursos conformando uma governança localmente consolidada.
De forma conclusiva, os estudos sobre redes em administração pública,
independente da perspectiva, explicam a emergência destas como um fenômeno
estrutural no sentido de que se desenvolvem pela percepção dos múltiplos atores
da sua interdependência em relação aos demais. Assim, as perspectivas
dominantes na literatura de administração pública concebem a coesão como um
elemento estrutural que reflete a composição dos clusters de recursos subjacentes
às redes, uma vez que estas são conceituadas como ‘structures of
interdependency’ (O’TOOLE, 1997, p. 45), ‘stable relationships [based on]
interdependent nature’ (BORZEL, 1998, p. 254), ‘more or less patterns of social
relations between mutually dependent actors which form themselves around policy
problems or clusters of resources’ (KLIJN, KOPPENJAN e TERMEER, 1995, p.

106
439), ‘network structure is typified by [...] joint, strategically interdependent action’
(KEAST et al, 2004, p. 364).
A constatação oferecida pela literatura em administração pública de que as
redes se formam a partir de clusters de recursos que fornecem os limites
estruturais de composição do campo de forças políticas, no interior do qual
emergem coalizões por meio de processo de pactação e composição de
estratégias hegemônicas, resulta em implicações decisivas para a composição
organizacional das políticas públicas dispostas em rede, no sentido de que tais
estruturas adquirem maior legitimidade quando fundamentadas especificamente
sobre tais arranjos de poder.
Portanto, a composição da institucionalidade da rede emerge e se
consolida orientada pela distribuição dos recursos que compõem sua base
estrutural, ao nível da qual se organiza o processo político que fornece
legitimidade às decisões relativas à alocação de recursos para a composição de
metas coletivas. Esta constatação pode ser verificada pelo fato de que a ação
centralizada da autoridade do Estado nas democracias ocidentais mostra-se cada
vez menos capaz de determinar os rumos das políticas públicas, sendo que o
processo decisório relativo a essas políticas transformou-se um jogo marcado pela
constante necessidade de construção de um padrão de governança
descentralizado, caracterizado por Koppenjan e Klijn (2004) como um padrão de
governança em rede.
Neste padrão a concepção do ciclo de políticas públicas torna-se
completamente diferente do modelo clássico onde estas são vistas como etapas
seqüenciais onde os processos de implementação e execução seguem as
prescrições desenvolvidas durante a fase de elaboração.
Segundo Koppenjan e Klijn (2004), enquanto os modelos de processo
decisório hierarquizado concebem a tomada de decisão como uma atividade
analítica, os modelos em rede a transformam num jogo estratégico. Esta
diferenciação produz impactos em diversos aspectos como a forma de utilização
das informações, a constituição do processo, a fundamentação das decisões, a
natureza das incertezas, os critérios de determinação do sucesso das políticas e

107
programas, entre outros. A Tabela 9 apresenta, de forma resumida, as
comparações entre as duas formas de composição do processo decisório:

Tabela 9 – Modelos Decisórios de Governança Centralizada e em Rede


Atividade Analítica
Estratégia de Jogos
(governança
(governança em rede)
hierárquica)
Processo de design
Jogo de poder político
Desenvolvimento de intelectual
dominado por
Políticas, Programas e freqüentemente
considerações
Projetos interrompido por
estratégicas
considerações políticas
Ator central que resolve
problemas com relativa Atores mutuamente
autonomia e cuja dependentes que
Perspectiva percepção do problema é procuram solução por
tomada como ponto de processos de discussão e
partida para a análise e o negociação
design das soluções
Processo errático em zig-
zag no qual informações,
Processo seqüencial que
meios e objetivos são
pode ser subdividido em
Processo intercambiados e as
fases e etapas com início
soluções coletivas são
e fim definidos
obtidas de forma
incremental
Respostas cientificamente Compromissos políticos
fundamentadas onde problemas são
Decisão direcionadas a problemas ocasionalmente ajustados
bem definidos, no qual a soluções existentes e os
apropriados são meios co-determinam a

108
visualizados com base escolha de objetivos
num dado objetivo

Emergem de ausência de Advém do comportamento


objetivos e informação dos atores direcionados
Incertezas
sobre a natureza do por seus interesses,
problema e das soluções posições e preferências
Ênfase no acúmulo de Uso seletivo do
conhecimento científico. conhecimento para
O emprego do fornecer suporte de
Informação
conhecimento resulta em argumentação a posições
melhores soluções de das diversas partes
problemas envolvidas
Redução da diferença
entre a situação problema Progresso na posição do
e os critérios definidos atores envolvidos quando
Critérios de Sucesso
como ótimos; obtenção comparados com a
dos objetivos formulados situação problema
ex ante
Falta de informações
sobre as relações
Processo inadequado de
causais; ausência de uma
interação e troca de
estrutura clara d
Fatores de Falha informação de forma que
avaliação; planejamento
soluções mútuas não são
inadequado, ausência de
desenvolvidos
meios, excesso de atores
envolvidos

Mais informações e Aperfeiçoamento das


Prescrições pesquisas; clarificação e condições de cooperação
priorização de objetivos; e construção conjunta de

109
ampliar entrelaçamento percepções por meio de
entre planejamento e facilitação, mediação e
centralização; limitar e arbitragem
estruturar a participação
Fonte: Koppenjan e Klijn (2004, p. 46).

Desta forma, o processo decisório em redes requer além da percepção


efetiva da interdependência pelos atores envolvidos, uma transformação relativa
aos fundamentos culturais de relacionamento entre as partes envolvidas, o
desenvolvimento de estratégias e mecanismos de construção de consenso e de
compartilhamento de percepções, e a instituição de instâncias organizacionais de
suporte e intermediação entre os atores envolvidos. Como parte essencial desse
processo apresentam-se estratégias de gestão por meio do monitoramento das
relações e da construção de incentivos à formação de coalisões no interior dos
clusters descentralizados de atores que possuem os recursos necessários à
operacionalização das políticas em questão.
Dessa forma, a natureza da governança em rede resulta em diretrizes
organizacionais para sua estruturação, no sentido de que a composição de
suporte político, necessária ao aprofundamento da interdependência a ponto de
conduzir a formação de estruturas de coordenação interorganizacional, deve
ser buscada ao nível dos atores que se distribuem em torno do cluster de
recursos, sob pena de perda de legitimidade que pode produzir impactos
negativos sobre a eficácia e a eficiência das políticas públicas.

3.3– Implicações para a Composição Estrutural da Rede

Como argumentado na seção 3.1, a emergência da rede envolve, além da


presença de atores autônomos, interdependência e padrões estáveis de
relacionamento, a composição de uma institucionalidade a partir da qual os atores
aprofundam a interdependência pelo desenvolvimento de ações coletivamente

110
planejadas e deliberadamente orientadas para a ênfase na realização de objetivos
comuns ao mesmo tempo em que mantém sua autonomia de gestão.
Ainda segundo a seção 3.1, esse processo envolve não só a formalização
compartilhada de relações internas de intercâmbio e o desenvolvimento de regras
específicas para gerir tais relações, como a definição de parâmetros que são
também estabelecidos em arenas externas à rede, conformando uma estratégia
de coordenação interorganizacional. Nesse sentido, tornam-se relevantes não
só as instâncias de estratégia e os espaços internos de pactação, mas
também os canais externos de articulação como suportes organizacionais à
consolidação deste novo padrão de interdependência.
Como resultado da emergência de uma base de institucionalidade, a
natureza da relação existente entre os atores e organizações componentes da
rede transforma-se adquirindo uma dimensão caracterizada por padrões de
interdependência diferentes dos predominantes anteriormente, uma vez a
formação de relações de coordenação interorganizacional ampliou o caráter
coletivo das relações de intercâmbio de recursos e planejado das atividades
desenvolvidas, gerando uma complementaridade e um equilíbrio entre a busca
por objetivos individuais e as metas comuns resultantes de decisões
compartilhadas.
No entanto, a profundidade das relações de coordenação
interorganizacional e, conseqüentemente, o nível de institucionalidade possuem
limites, uma vez que as redes são organizações que emergem de atores
autônomos, cujas bases de poder, como visto na seção 3.2, encontram-se
compostas em torno de clusters de recursos que delimitam o núcleo de
governança da rede.
Logo, as reflexões sobre governança, conduzida na seção anterior, como
afirmado na oportunidade, produzem impactos em termos de organização política
da rede. Sendo que a governança emerge da coesão propiciada pela
interdependência gerada no interior do cluster de recursos, o suporte político para
a legitimidade das estruturas institucionais de coordenação interorganizacional
tem nestes clusters suas bases de sustentação. Uma vez que a capacidade de

111
ação das instâncias de suporte organizacional da rede está intrinsecamente
relacionada com o nível de governança política que a legitima, quanto mais
próximas estas instâncias estiverem destas bases, maior será seu suporte político
e maior sua capacidade de impulsionar transformações:

Networks develop during the course of time through frequent


interactions in one or more arenas, and they are more
encompassing and generally more durable than arenas.
Networks, however, are not separate from arenas: arenas are
activated parts of networks around a concrete issue or policy.
Networks make interaction, cooperation and learning
between parties in policy games and arenas easier because
they provide the institutional arrangements that support these
activities (BUEREN, KLIJN e KOPPENJAN, 2003, p. 195).

Como expõem claramente os autores acima citados, as instâncias


institucionais são núcleos de ativação das redes (‘arenas are activated parts of
networks’), no sentido de que são canais internos e externos de suporte político
decisório e de composição de estratégias de racionalidade sistêmica e de
planejamento. Nesse sentido, a estruturação das instâncias ao nível do cluster de
recursos da rede possibilita a ampliação da governança necessária à consolidação
das relações de coordenação interorganizacional, indispensáveis à emergência
da institucionalidade da rede.
A percepção de que a estruturação da governança política que sustenta o
desenvolvimento das políticas públicas nas democracias ocidentais compõem-se
cada vez mais ao nível de cada cluster de atores e recursos diretamente
envolvidos com a política pública em questão, implica na alteração da forma de
inserção do Estado na gestão das políticas públicas. Uma vez que as redes são
um suporte essencial no processo de construção das políticas públicas (FLEURY,
2002), e que a natureza da governança destas impede a ação de padrões de

112
coordenação centralizada e vertical, a relação do Estado com as políticas públicas
tem sido radicalmente transformada.
Como resultado, desde os anos iniciais da crise do Estado na década de
setenta, sua capacidade de planejamento e implementação centralizada de
políticas públicas, baseada numa estrutura hierárquica, tem sido contestada. Por
conta dessa suposta perda de eficácia da ação do Estado como ator central na
coordenação social, a ênfase foi deslocada para a existência de um novo
paradigma de gestão caracterizado pela ação conjunta de diversos atores de
forma descentralizada, onde o Estado se insere como mediador e facilitador. A
resolução de questões de políticas públicas passou a ser objeto das redes
interorganizacionais compostas por diversos atores (públicos, semipúblicos e
privados) atuando em diversas esferas (local, regional, nacional e mesmo
internacional), por meio de múltiplos arranjos de coordenação integrados por
interdependências de recursos e propósitos comuns.
No processo de composição de uma rede de políticas, o papel de gestor
pode ser exercido pelo governo central (ou regional) caso este integre o cluster de
recursos subjacente à rede, sendo que a maioria dos autores considera que este
pode situar-se apenas como facilitador e mediador, uma vez que a governança da
rede é descentralizada e exercida ao nível do cluster de recursos onde se situa o
núcleo político e estratégico da rede.
Há trabalhos que indicam que a ação das esferas regional e federal pode ir
além do papel de mediador e facilitador, como no caso de Johansson e Borell
(1999) que, num estudo sobre a reforma do sistema de cuidados ao idoso na
Suécia – Reforma Ädel – produziram evidências que indicam que o papel da
esfera central em relação às redes situa-se bem além do daquele estabelecido na
teoria. A Reforma Ädel de 1992 na Suécia buscou estruturar um sistema
específico de cuidados com bases municipais, onde o processo de compor e
estruturar o novo sistema envolveu a presença de estratégia verticais na
elaboração de instrumentos de avaliação, monitoramento e suporte de garantia da
qualidade, no qual o governo central forneceu o desenho geral de condução e
implementação das redes.

113
Da mesma forma, Klijn e Koppenjan (2000) argumentaram sobre a posição
especial do Estado frente às redes. Para estes autores, em situações especiais o
Estado pode agir transformando a rede ou estruturando-a de forma a estabelecer
padrões desejáveis de eficácia, eficiência e equidade.
No entanto, este padrão de relação das esferas central ou regional com as
redes, apresentado pelos dois trabalhos acima mencionados, é raro na literatura
sobre redes em administração pública, o que indica que a ação do Estado de
forma vertical somente pode ocorrer no início de sua formação ou em situações
especiais em que se justifique a intervenção para restabelecer determinados
princípios éticos.
Desta forma, a difusão do conceito de redes pela literatura internacional em
administração pública indica a ênfase colocada sobre a eficiência dessa forma de
organização dos sistemas de provisão de bens e serviços públicos, em contraste
com o modo burocrático de gestão. A maioria dos estudos sobre redes enfatiza a
necessidade de composição das redes em contextos locais marcados pela
descentralização dos sistemas decisórios, onde diversos atores encontram-se e
estabelecem padrões regulares de relacionamento, intercâmbio de recursos e
resolução de problemas conjuntamente, onde as instâncias de formulação,
implementação e execução das políticas estão estruturadas a partir do cluster de
atores e recursos que fornece suporte econômico e político.
Neste contexto, o governo central (ou regional) exerce funções de
mediador e facilitador por meio do estabelecimento de condições propicias ao
desenvolvimento da estrutura da rede construindo regras para regular os padrões
de interação na execução de programas intergovernamentais, subsidiando e
cobrindo riscos de investimentos locais, introduzindo incentivos à cooperação,
reduzindo incertezas presentes no ambiente, difundindo informações e facilitando
o processo de comunicação, entre outros (KOPPENJAN e KLIJN, 2004; HALL e
O´TOOLE, 2000 e 2004; KEAST et al, 2004; VAN BUEREN, KLIJN e
KOPPENJAN, 2003; KLIJN, 2001; O´TOOLE, 1997a; FLEURY, 2002; entre
outros).

114
Desta forma, para fins de organização de políticas públicas em rede, a
natureza da governança destas implica em limites em termos do nível de
institucionalidade que orienta as relações de intercâmbio de recursos, de
compartilhamento do processo decisório e de construção de objetivos comuns.
Por um lado, como afirmado pela literatura em administração pública, a
composição da rede envolve a formação de uma institucionalidade a partir da qual
os atores aprofundam a interdependência de forma conjunta (planejamento e
ação) no interior de instâncias de estratégia, espaços internos de pactação e
canais externos de articulação voltados tanto para a formalização compartilhada
de relações internas de intercâmbio e o desenvolvimento de regras específicas
para gerir tais relações, quanto para a definição de parâmetros que são também
estabelecidos em arenas externas à rede.
Por outro lado, uma vez que a governança da rede emerge da coesão
propiciada pela interdependência gerada no interior do cluster de recursos, e que
o suporte político para a legitimidade das estruturas de coordenação
interorganizacional tem nestes clusters de atores autônomos suas bases de
sustentação, a ampliação da institucionalidade implica em perda de legitimidade
que pode produzir impactos negativos sobre a eficácia e a eficiência das políticas
públicas. Logo, a natureza autônoma dos atores que compõem a rede requer que
as instâncias sejam estruturadas em bases organizacionais definidas pelos
próprios atores, o que proporcionaria maior suporte político às estratégias
negociadas e ao processo de implantação, execução e monitoramento destas. A
governança da rede está intrinsecamente relacionada ao processo de
desenvolvimento da institucionalidade da rede, que é extremamente dinâmico e,
portanto, incapaz de ser determinado ou moldado em regras formais e estruturado
estaticamente como na composição de um sistema:

Institutionalization processes are constantly developing


because actors regularly interpret and reinterpret the
structural characteristics of the network. They are constantly
trying to figure out which rules are appropriate to the game

115
situation they are in, and they are constantly drawing upon
resources in the networks to achieve end or create (new)
game situations. In doing this, they recreate and sustain the
rules and resources that constitute the network. Both rules
and resources are important in the constitution and recreation
of networks (KLIJN, 1996, p. 101).

Neste sentido, o estabelecimento de estratégias de coordenação


interorganizacional sem suporte em instâncias estruturadas ao nível do cluster de
recursos da rede requer maior grau de institucionalidade podendo conformar
padrões com características hierárquicas de organização. Neste sentido, cada
rede possui singularidades de organização e gestão que devem ser estabelecidas
em termos de pactações internas, podendo ser acordados externamente
parâmetros mínimos de organização no caso da rede integrar redes mais amplas
ou sistemas maiores. No entanto, a natureza autônoma de cada formação em
rede requer a construção própria de suas estratégias e mecanismos de
coordenação interorganizacional, uma vez que as motivações e questões variam
de acordo como contexto de inserção da rede.

3.4 – O Padrão de Interdependência em Rede

Portanto, uma vez que a rede envolve o desenvolvimento de uma


institucionalidade mínima para combinar, explorar e potencializar as múltiplas
capacidades provenientes dos atores ou organizações componentes, formando
relações de coordenação interorganizacional para o aprofundamento das
interdependências, e que a natureza das relações de governança da rede impõem
limites ao grau de institucionalização e coordenação vertical do intercâmbio de

116
recursos, torna-se possível desenvolver uma tipologia básica capaz de delinear as
características fundamentais de uma organização em rede.
Sendo que a emergência de um nível mínimo de institucionalidade, visando
aprofundar a interdependência existente entre os atores e organizações
relacionados, envolve a construção de relações de coordenação
interorganizacional, mediante a formação de um pacto de poder e governança
ao nível do cluster de recursos como condição fundamental de suporte político,
deve-se buscar as características de composição da rede nestes dois aspetos
fundamentais. Estes dois aspectos definem os parâmetros de institucionalidade,
na medida em que, ao mesmo tempo que indicam a necessidade de compor um
nível mínimo, impõem limites ao seu aprofundamento.
Sendo assim, as dimensões de análise em termos de estratégia de
coordenação interorganizacional consistem em o que coordenar, como coordenar
e quem irá coordenar as relações interorganizacionais (ROGERS e WHETTEN,
1982). Uma vez que tais processos devem ter como referência o suporte político
oferecido pelos processos de governança em rede, torna-se essencial determinar
a que nível coordenar as atividades, quais são as estruturas de coordenação
relevantes, como são construídas as regras de coordenação, de que forma tais
regras são implantadas e monitoradas, qual o nível de recursos envolvido, qual o
foco de poder e controle resultantes, entre outros.
O primeiro elemento consiste em determinar qual é o foco gerencial, ou
seja, consiste na definição de qual será o conjunto de atividades a ser coordenada
pela rede. De acordo com a literatura em administração pública, em organizações
e atores dispostos em rede a ênfase é colocada na coordenação de atividades e
programas que geram complementaridade (PROVAN e MILWARD, 1995; KEAST,
2004), sendo que cada organização mantém o foco em suas próprias atividades,
mas integra seletivamente a rede nas atividades que são definidas como
essenciais à produção de metas coletivas. A presença de pouca institucionalidade
impossibilita esta integração seletiva resultando apenas no desenvolvimento de
atividades conjuntas de forma esparsa e buscando somente aperfeiçoar metas
particulares, relacionadas à própria organização ou aos serviços prestados a

117
clientes. Por outro lado, um nível de integração e formalização elevado resulta na
perda de autonomia, uma vez que redireciona o foco enfatizando as atividades de
caráter coletivo implicando na redução de atividades voltadas para os objetivos
particulares:

In contrast, network settings are not based in a central and


cannot be guided by a single organizational goal. [...] While
networks coordinate and facilitate, rarely is real authority
granted to a manager across the network of organizations as
a whole. Nor is such a move possible or feasible. Each
organization representative brings and keeps his/her
authority, managing together (AGRANOFF e MACGUIRE,
1999, p. 21).
Desta forma, o espaço interorganizacional sobre o qual emerge a
institucionalidade da rede consiste em atividades complementares ou que
envolvem recursos que geram complementaridade entre as organizações
envolvidas, sem, no entanto, exigir a supremacia das atividades coletivas sobre as
particulares de cada organização.
O tipo de atividade que forma o espaço interorganizacional no qual a rede
se desenvolve indica quais são os atores que deverão estar envolvidos e qual a
amplitude de inserção exigida para fomentar e garantir a articulação dos recursos
envolvidos.
Uma vez que em espaços interorganizacionais caracterizados por baixa
institucionalidade, as atividades planejadas, decididas e realizadas de forma
conjunta são poucas, específicas e limitadas no tempo, os principais atores que
exercem tais atividades são normalmente apenas atores do nível operacional
dotados de baixa capacidade decisória.
No entanto, quando o espaço interorganizacional é caracterizado por maior
densidade e envolve um conjunto consistente de atividades coletivamente
planejadas e articuladas de duração constante, torna-se necessário introduzir
neste espaço maior capacidade decisória para evitar constantes impasses e

118
indeterminações (BUEREN, KLIJN e KOPPENJAN, 2003; KLIJN, KOPPENJAN e
TEERMER, 1995).
Ou seja, uma vez que uma estrutura em rede se forma com base em
atividades complementares e que tais atividades possuem impactos sobre os
objetivos dos atores e organizações envolvidos, é evidente que deverão estar
envolvidos diretamente na condução das atividades da rede os representantes das
organizações ou atores que detém maior capacidade decisória:

The ability to manage externally is related to the internal


condition of the manager’s primary organization. Facility in
city government networking for government development
requires the executive branch to attain the cooperation of the
city council and encourage it to participate in strategy
sessions and represent the city in formal partnerships. It
involves a comfort level in approaching state and federal
government and asking for more funds or for a special
adjustment that will help the city. It involves a willingness on
the part of the government officials to conduct an open and
continuous dialogue with existing and potential partners,
letting them in on city process and plans. Effective networking
also involves a jurisdiction-wide time and agenda
commitment to networking, with key officials understanding
that external contacts, commitment and resources are
important for the governance and development of the city.
The crowded schedule of the public manager must include
room for these support-building activities. External actions
should be encouraged and supported throughout an
organization, but the chief executive officer, who is the most
visible of the city network actors, provides the most important
support mechanism for managers (AGRANOFF e
MACGUIRE, 1999, p. 25).

119
Assim, a presença de maior capacidade decisória torna-se essencial e
justifica-se também pela natureza do processo decisório em rede, visto que o ciclo
de políticas ocorre, como apresentado na Tabela 9, por meio de jogos sucessivos
onde os atores envolvidos procuram empregar estratégias visando
constantemente influenciar o resultado das políticas. Assim, quanto maior o nível
de capacidade decisória do ator envolvido nas atividades da rede, maior será seu
poder de mobilizar recursos na garantia de seus interesses (DAUGBJERG, 1998).
Da mesma forma, a composição da rede, mediante a atuação de atores de
maior capacidade decisória, resulta do fato de que o desenvolvimento de uma
institucionalidade decorre de e está direcionado especificamente a formar um
potencial de transformação social além daquele proporcionado pelo trabalho
isolado das organizações envolvidas (MANDELL e STEELMAN, 2003). Na medida
em que a rede se forma voltada diretamente para promover mudanças sociais por
meio de formas inovadoras de políticas públicas (FLEURY, 2002), torna-se
necessário ativar e envolver (AGRANOFF e MCGUIRE, 2001c) os atores capazes
de impulsionar tais mudanças pelo trabalho planejado coletivamente, que são
aqueles de maior poder no interior de cada organização componente.
Como parte essencial deste processo torna-se necessário também que a
amplitude de inserção seja suficiente para ativar os principais atores e
organizações que compõem o cluster de recursos da rede:

This refers to the membership in the arrangement and the


impact of member’s involvement. Membership can be narrow
(i.e. limited participation) or comprehensive (i.e. broad
participation). […]. Although membership may often change
in an interorganizational arrangement, breadth of effort also
relates to the degree to which members are open to these
changes in participation. In types of arrangements there is a
need to recognize and include the key players. For most
innovative arrangements participation can remain relatively

120
narrow and still be effective. In a network structure, however,
unless participation is comprehensive enough to include all
relevant participants, the effectiveness of this type of
interorganizational innovation will be limited (MANDELL e
STEELMAN, 2003, p. 207).

Este envolvimento de atores decisivos é indispensável a partir do momento


em que se formou uma estrutura em rede mediante um processo de
institucionalização dos vínculos de intercâmbio existentes num determinado
espaço interorganizacional, entretanto, resulta em implicações para a forma como
este é trabalhado na estrutura decisória da rede, ou seja, dependendo da estrutura
de governança a ser adotada pode gerar certo grau de verticalidade. Isto porque
há assimetrias em termos de domínio de recursos e de capacidade de mobilização
(KLIJN e KOPPENJAN, 2000), podendo impulsionar certa instrumentalização de
outros atores de menor expressão (LE GALÈS, 2001), uma vez que, por motivos
políticos, determinados atores podem ser excluídos. Deve haver, segundo KLIJN
e KOPPENJAN (2000), sempre mecanismos de promoção do poder de veto para
assegurar que não haja instrumentalização. Desta forma, colisões de poder
fortemente institucionalizadas podem ameaçar a autonomia dos atores e
organizações envolvidos, na medida em que o foco gerencial envolve estratégias
que privilegiam a ação dos níveis tático e estratégico das organizações.
Um terceiro aspecto relacionado diretamente à estratégia de coordenação
de políticas públicas em rede consiste no grau de formalização subjacente ao
processo de institucionalização. A questão central sob este prisma refere-se à
obtenção de um certo equilíbrio que proporcione uma base mínima de parâmetros
de orientação para sustentar o trabalho coletivo e que permita a manutenção da
flexibilidade característica das redes.
O aspecto essencial a ser definido consiste na presença das regras como
elemento fundamental na composição da estrutura da rede, ou seja, o processo de
institucionalização, acima referido diversas vezes, desenvolve-se por meio das
interações constantes que, ao adquirir certo padrão de sustentabilidade, fornecem

121
estabilidade à rede pela definição de regras formais que se apresentam como
parâmetros mínimos de interação e ação coletiva:

Rules give a network certain stability. Because rules only


change if a reasonable segment of the actors stop following
the rules, they usually change gradually. The fact that
interactions in games would be very difficult if actors began to
questions all the rules in a network is at stake. Stability is also
created by the fact that new rules mostly develop gradually
over time. Rules are a by-product of normal game interaction
and not created consciously in special separate games. Only
in special situations can explicit games be traced in which
only the rules of a network are at stake. These games
primarily concern formal rules (KLIJN, 1996, p. 104).

Sendo assim, a construção coletiva e interativa de regras formais e


informais constitui um processo dinâmico, a partir do qual a estrutura da rede é
construída como institucionalidade mínima direcionada especificamente para
fornecer suporte organizacional às atividades de planejamento, decisão e ação
coletivos (KLIJN, 2001; KEAST, 2004). Este arcabouço normativo mínimo, que
forma a estrutura da rede, consiste num dos principais elementos que distinguem
a rede de uma série de outros arranjos interorganizacionais (MANDELL e
STEELMAN, 2003). Neste sentido, a constituição de regras representa uma
condição essencial para a institucionalização da rede, e necessita estar presente
para que se torne possível o desenvolvimento desta como estrutura singular capaz
de se auto-regular e promover transformações rápidas em sua organização:

Rules form a sort of an infrastructure for networks. They


make interactions and mutual action possible and provide
actors with a context and basis for their actions. They are
[…] one of the robust characteristics of networks. But the

122
logical conclusion is that when rules are formed by actors
through interactions, they can also be changed by
interactions. And when rules change, so do the frameworks
and self-evident assumptions that actors use to work with and
make and elaborate strategies. In short, changes in the
network rules will lead different strategies and interaction
patterns and, thus, to different solutions (KOPPENJAN e
KLIJN, 2004, p. 215).

Desta forma, a presença de regras como condição de emergência de uma


‘estrutura de rede’ não significa que as normas construídas são marcos legais
caracterizados por elevada rigidez, embora manifestem certa estabilidade durante
o tempo.
Assim, enquanto em espaços interorganizacionais caracterizados por baixa
institucionalidade, a presença de regras resume-se a conteúdos informais e sem
estabilidade, a ampliação do caráter coletivo na busca de objetivos comuns
característico no desenvolvimento das redes produz estabilidade e
aprofundamento da interdependência existente, mediante a construção de regras
mínimas de organização do trabalho coletivo e composição da governança.
No entanto, tais regras coletivamente construídas e negociadas não podem
regular a ação dos aspectos mais operacionais e relacionados ao processo de
produção diário no interior das redes, sendo que tais processos são orientados por
diretrizes construídas e reconstruídas constantemente, de acordo com a dinâmica
de produção de objetivos coletivamente definidos (KLIJN, KOPPENJAN e
TERMEER, 1995). Este limite de institucionalização relaciona-se não só à
composição da governança, mas também à eficiência da estrutura produtiva da
rede, uma vez que a ampliação do caráter formal das regras sobre aspectos
operacionais mais específicos implica na construção de padrões burocráticos de
regulação do trabalho conjunto, o que não é compatível com a dinâmica das
redes:

123
Network management involves managing flexible structures
toward collective efficiency. While traditional bureaucratic
structure is known to be more rigid, rule-bound and
predictable, the network offers the potential for rapid
adaptation to changing conditions, flexibility of adjustment,
and the capacity for innovation. When relationships among
network members are established, goals are agreed upon,
and operation are fruitful for all concerned, the wide spectrum
of expertise and perspective that comprise a network offer
great potential for flexibility and adaptation. Networks are no
less stifle this flexibility, like incomplete knowledge or goal
conflicts, than are bureaucratic structures, but
multiorganizational networks do offer the most potential for
flexibility and adaptation of any social form (AGRANOFF e
MACGUIRE, 1999, p. 25).

Este balanço entre a necessidade de formação de uma estrutura para


compor um suporte organizacional indispensável ao planejamento, decisão e ação
de forma coletiva e manutenção de uma dinâmica flexível impulsionada pela
autonomia das partes é que torna a rede uma estrutura direcionada
especificamente para a resolução de problemas de política pública com
capacidade resolutiva superior às organizações burocráticas centralizadas e aos
mercados instáveis. Logo o grau de formalização deve sempre se orientar pelos
dois limites de institucionalização da rede.
O quarto elemento relativo ao desenho da rede como suporte de
coordenação interorganizacional de políticas públicas reside na distribuição de
recursos e no foco de poder. Estes devem ser analisados de forma conjunta
porque estão relacionados diretamente ao padrão de interdependência subjacente
à estrutura da rede. Isto se justifica, como demonstrado na seção 2.5.1, porque a
composição da institucionalidade da rede emerge e se consolida sobre a
distribuição dos recursos que compõem sua base estrutural, ao nível da qual se

124
organiza o processo político que fornece legitimidade às decisões relativas à
alocação de recursos para a composição de metas coletivas. Ou seja, a
distribuição de recursos influencia o padrão de interdependência entre os atores, e
este, como visto, orienta a distribuição de poder no interior da rede.

The structure of organizational interdependencies in a


network is defined by the distribution of resources across
network members. The positional resources of policy
making—legal authority, funding, organization, materials,
needed support services, expertise, information, and
experience—are at the disposal of many different
organizations […]. Each party literally possesses some level
of resources that will make a policy work. Just as
organizations can adapt their structures to the environment
[…] so, too, network managers will shape the structure and
membership based on resource dependencies (MCGUIRE,
2002, p. 605).

Sendo assim, uma vez que os recursos essenciais à formação da estrutura


da rede são de diversos tipos e encontram-se dispersos ao longo de uma série de
organizações e atores, a configuração do campo de poder tende a reproduzir a
distribuição apresentada pelo cluster de recursos. Da mesma forma, o exercício
deste poder manifesta-se de forma dispersa e reflete as possibilidades de cada
ator de acordo com as assimetrias de domínio de recursos.
Este padrão de configuração do campo de forças e do exercício do poder é
extremamente acentuado em espaços interorganizacionais caracterizados por
baixa institucionalidade, uma vez que as atividades interorganizacionais
envolvendo intercâmbio de recursos são resultado de relações diretas envolvendo
apenas parcerias limitadas no tempo (MANDELL e STEELMAN, 2003; ROGERS e
WHETTEN, 1982).

125
No entanto, em espaços interorganizacionais compostos por relações de
intercâmbio em rede, este padrão de configuração do campo de forças e de foco
disperso de poder tende a convergir para formas e estratégias de
compartilhamento decisório, em detrimento da dispersão de poder (KOPENJAN e
KLIJN, 2004; ALEXANDER, LEE e BAZZOLI, 2003; FLEURY, 2002; MCGUIRE,
2002; PROVAN e MILWARD, 1995).
Como é consenso na literatura, uma vez que a rede consiste num arranjo
policêntrico que se desenvolve em torno de problemas complexos de política
pública, sua ação eficaz depende de dois fatores que são essenciais como
impulsionadores do processo de institucionalização das relações de intercâmbio.
Esses fatores consistem na extensão dos esforços e na intensidade dos vínculos
(MANDELL e STEELMAN, 2003). Estes dois elementos são encontrados como
fundamentais para a constituição da rede em toda a literatura internacional em
administração pública desde o início da década de noventa, sendo que, na maioria
das vezes, são encontrados de forma implícita nos textos.
De acordo com Mandell e Steelman (2003, p. 208), a extensão dos esforços
refere-se à propensão dos atores a manter o status quo ou a promover
transformações na forma de condução do ciclo de políticas. Em espaços
interorganizacionais de baixa institucionalidade, onde as relações
interorganizacionais estão voltadas para a obtenção de metas específicas, os
esforços conjuntos não visam transformações maiores. No entanto, em relações
de intercâmbio em rede, onde há a necessidade buscar a resolução de problemas
complexos, a extensão dos esforços deve ser maior, uma vez que está
direcionada e promover transformações sociais (FLEURY, 2002).
Como resultado, a intensidade dos vínculos também deve ser mais
acentuada, visto que se torna necessário um estreitamento entre os componentes
da rede em busca de empenho conjunto no planejamento, na decisão e nas
atividades diárias:

In this sense, intensity of linkages is related to the degree to


which members view themselves as independent of or

126
mutually interdependent with each other. In some
arrangements members may agree to work together, but they
maintain a strong hold on their individual existence. In other
arrangements, members recognize their mutual
interdependence and basically agree to make adjustments to
their individual existence. Loose linkages mean that the
members interact at arm’s length (i.e. through contractual
arrangements or loose coordinating mechanisms) with a high
degree of independence, as in the case with intermittent
coordination. Tighter linkages mean that members interact
with a higher degree of interdependence. Tight linkages (i.e.
formation of task forces or network structures) usually require
some kind of new or revised structural agreement for the
arrangement to survive (MENDELL e STEELMAN, 2003, p.
205).

Na medida em que a institucionalização da rede requer maior extensão dos


esforços e intensidade dos vínculos na constituição de ações coletiva em torno da
resolução de problemas política pública, torna-se necessário compor formas de
compartilhamento de poder e de recursos capazes de sustentar essa
institucionalidade. Dessa forma, o foco de poder em rede tende a ser
descentralizado, mas compartilhado.
No entanto, como as redes são compostas por organizações e atores
autônomos, que podem exercer seu poder de veto sempre que o processo
decisório esteja sendo direcionado por atores de maior poder, a ampliação do
nível de institucionalidade em direção a formas de governança hierarquizadas
resulta em redução da intensidade dos vínculos e da extensão dos esforços:

The network approach assumes that policy outcomes are the


result of interaction of strategies of various actors. The
involvement of these actors is a consequence of the fact that

127
they possess resources that require their involvement in the
handling and solution of a particular problem. They can block
interaction processes by withdrawing their resources: they
have veto power. Replacement of these resources is not
always possible and when it is, it might be costly and time
consuming. The same can be said for attempts to coerce co-
operation, for instance by ordering a municipality to change
its zoning plan if it does not do so of its own accord (KLIJN e
KOPPENJAN, 2000, p. 143).

Desta forma, a intensificação do processo de institucionalização dos


vínculos estabelecidos num espaço interorganizacional em rede resulta em
relações de coerção, onde atores de maior domínio de recursos estabelecem
direções em detrimento dos demais atores, sendo incompatível com a dinâmica de
estruturação da rede.
Estreitamente relacionado à distribuição de recursos e ao foco de poder,
apresenta-se a questão relativa ao controle das atividades desenvolvidas no
interior da rede. Uma vez que a obtenção de objetivos e metas coletivas de
maneira eficaz e eficiente consiste no principal processo que qualifica a rede como
forma singular de organização das políticas públicas, torna-se essencial monitorar
o trabalho coletivo de forma a garantir que os resultados sejam concretizados e
que haja accountability relativa aos recursos empregados.
No entanto, as discussões envolvendo os processos e estratégias de
controle em espaços interorganizacionais em rede, na literatura internacional em
administração pública na década de noventa, não registraram evolução, como
observaram Agranoff e Mcguire (1999) num artigo onde sugerem tópicos para o
avanço da agenda de pesquisas sobre redes:

A concluding issue involves the question of loss of control or


difficult in assessing network accountability. This is one of the
most frequent raised questions in the public management

128
field. […]. Everyone is somewhat in charge and therefore,
everyone is somewhat responsible. As a result, all network
participants appear to be accountable. It is certainly
problematic. Managers within city governments inform us that
they often have to “trade” control over development and
normal accountability to the city council in exchange for
operations and financing spread through several different
organizations (AGRANOFF e MCGUIRE, 1999, p. 34).

Embora o tema tenha sido pouco abordado na literatura em administração


pública durante a década de noventa, é possível estabelecer as características
básicas do controle em rede a partir dos textos disponíveis direta e indiretamente
relacionados. O caráter autônomo das partes que compõem a rede revela-se
plenamente na dificuldade de estabelecer mecanismo de controle e estratégias de
accountability capazes de assegurar o completo monitoramento das atividades
desenvolvidas conjuntamente no interior da rede. A questão central, neste caso,
consiste em determinar quem possui legitimidade suficiente para controlar os
demais atores e organizações inseridos no trabalho coletivo.
Embora existam atores com maior poder no interior das redes, como já
afirmado, este aspecto não configura relação de hierarquia capaz de proporcionar
autoridade para o exercício de controle estrito. Esta constatação consiste no
aspecto fundamental para se pensar a função do controle, visto que os sistemas e
estratégias intraorganizacionais clássicos mostram-se inadequados, como afirmou
O´Toole (1997a):

First, standard nostrum of public administration does not


apply. Managers in network settings do not supervise most
those of whom their own performance relies, monitoring
channels are typically diffuse and unreliable, and common
organizational culture exercises a limited indirect influence.
[…]. Perhaps most important, networks themselves are

129
sufficiently complex that their impact on performance is
somewhat unpredictable for all involved. Managing in this
world implies significant adjustment of the conventional
wisdom. Indeed, the very notion of management may have to
be modified. Needed forms of management may be
counterintuitive. That is, actions guided by the hierarchy
assumption are likely to lead not just to ineffectual but
counterproductive outcomes (O´TOOLE, 1997a, p. 47).

A possibilidade de implicar em redução da eficácia e da eficiência dos


resultados coloca as estratégias tradicionais de controle num papel oposto ao
exercido em contextos intraorganizacionais, consistindo num elemento capaz de
limitar o grau de flexibilidade da rede.
O debate toma, assim, outra direção, no sentido de que promover
adaptações na forma de compor sistemas de controle tradicionais parece não ser
a solução adequada, sendo necessário redefinir sua concepção. Este processo
deve iniciar-se com uma investigação sobre quais são as limitações do controle
como função relacionada às atividades de monitoramento, avaliação e
responsabilização em ambientes caracterizados por organizações em rede. Num
dos raros trabalhos sobre controle em redes, Acar e Robertson (2004) resumem o
debate e apresentam tais limitações:

1) Inexistência de unidade central para estabelecer os processos de controle


das atividades, ou seja, os gestores precisam influenciar e motivar os
componentes da rede sem deter autoridade hierárquica para tal;
2) A variedade de atores na rede implica na existência de amplas assimetrias
de poder e diferentes capacidades de influenciar o resultado das políticas;
3) A inserção de cada componente na rede demonstra variações em termos
de comprometimento com objetivos, resultando em dificuldades fixar
responsabilização;

130
4) As redes constituem arranjos interorganizacionais voluntários, cuja
autonomia reduz o poder de estabelecer responsabilidades sobre o
cumprimento de metas;
5) O amplo espectro de composição da rede implica na existência de diversas
culturas e diferenças de dinâmica gerencial, sendo difícil estabelecer
parâmetros comuns de avaliação e accountability;
6) Determinados vínculos no interior da rede são apenas temporários em
virtude do próprio desenho desta, necessitando de mecanismos especiais
de monitoramento e avaliação;
7) A natureza dinâmica da composição da rede implica em constantes
entradas e saídas de atores e organizações, o que reduz significativamente
a capacidade de estabelecer responsabilidades e conduzir avaliações;
8) Redes são organizações desenvolvidas em resposta a problemas
complexos de política pública, sendo que estes, por sua natureza, impõem
limites sobre a fixação de tempos e expectativas de relativas a metas. Da
mesma forma, avaliar apenas com base em metas particulares, não capta o
impacto de esforços conjuntos;

Estes reflexos confirmam a necessidade de transformar a concepção de


controle no interior das redes. Entretanto, visto que a rede tem como foco
gerencial atividades complementares ou que envolvem recursos que geram
complementaridade entre as organizações envolvidas, e que tais atividades
possuem impacto sobre os objetivos estabelecidos de forma coletiva, o controle é
essencial como função de promoção de eficácia e eficiência da rede. Neste
sentido o controle ganha uma nova dimensão, ampliando seu componente de
apoio às atividades desenvolvidas coletivamente em detrimento de seu caráter de
função fiscalizadora.
Sendo assim, as perspectivas sobre a redefinição do controle tornam-se
factíveis, na medida em que este adquiri um caráter estratégico de suporte à
dinâmica gerencial cotidiana da rede na produção de bens e serviços. Como
função de análise e promoção da inteligência operacional, o controle se insere no

131
processo de institucionalização da rede impulsionando o emprego articulado e
racional da base de recursos disponível ao longo dos vários atores e organizações
que compõem a rede.
As questões relativas à responsabilização e comprometimento com
objetivos coletivos estarão sendo direcionadas e trabalhadas de forma diferente
sem relação direta com as atividades de controle. Estas questões ganham ênfase
em ambientes de pouca institucionalidade, onde o controle ainda possui uma
conotação de fiscalização, estando disperso em diversos processos de
intercâmbio sem compartilhamento de poder decisório.
No entanto, em espaços interorganizacionais caracterizados por
interdependência em rede, na medida em que a institucionalização desta requer a
maior extensão dos esforços e intensidade dos vínculos na constituição de ações
coletiva e de compartilhamento de poder, como visto no tópico anterior, as
questões relativas à responsabilização e comprometimento devem ser
equacionadas em espaços internos de pactação específicos.
Cabe ao controle uma nova função que consiste na de dinamizar o
processo de planejamento e decisão coletivamente organizado e integrado,
fomentando e fornecendo suporte de articulação e de integração ao
estabelecimento de padrões regulares de relacionamento, intercâmbio de recursos
e resolução de problemas. Neste sentido o foco central do desenvolvimento do
controle em redes reside na formação de complementaridade entre as partes no
sentido de articular bases de suporte decisório especificamente relacionadas às
atividades que são desenvolvidas em rede, ou seja, as atividades consideradas
como complementares.
O aprofundamento do processo de articulação entre as bases de suporte
decisório para além do foco gerencial da rede pode gerar um elevado grau de
institucionalização e configurar a centralização de informações, típico de
hierarquias. Ou seja, a ampliação do nível de institucionalidade em direção a
formas hierarquizadas retoma a dimensão fiscalizadora do controle.
Outro elemento essencial na composição de um padrão de
interdependência em rede que emerge de um processo de institucionalização

132
consiste na determinação do foco de objetivo dos atores e organizações
envolvidos. A questão central consiste em compreender por que tais atores e
organizações convergem para a formação de tal padrão aprofundado e
institucionalizado de interdependência de modo a formar o que Mandell (1999b)
denominou de estrutura de rede (“network structure”):

Network structures occur when working separately,


even while maintaining linkages with each other, is not
enough. Individuals representing themselves, public, not-for-
profit and private organizations realize that working
independently is not enough to solve a particular problem or
issue area. A network structure forms when these people
realize that they […] are only one small piece of the total
picture. It is a recognition that only by coming together to
actively work on accomplishing a broad, common mission will
something be accomplished (MANDELL, 1999b, p. 7).

Assim, o processo de emergência dessa ‘estrutura de rede’ envolve a


formação de um determinado comportamento relativo à forma de buscar os
objetivos de política pública almejados. Somente quando há a percepção de que
os objetivos compartilhados devem ser perseguidos por meio do engajamento
integrado dos atores e organizações envolvidas, torna-se possível aprofundar a
interdependência em direção a um padrão de organização em rede.
O aspecto essencial consiste em compreender que a formação de uma
estrutura de coordenação interorganizacional que envolve, como visto até aqui,
foco gerencial em atividades complementares, atores com elevada capacidade
decisória, desenho de regras mínimas de estabilidade e orientação do trabalho
coletivo, composição compartilhada de recursos e de poder, e foco estratégico e
complementar de controle, possui como processo subjacente o desenvolvimento
de uma percepção compartilhada sobre a necessidade de convergir em torno de
um objetivo maior que é comum a todos:

133
Em relação aos atores devemos considerar que estão em
uma situação de interdependência em uma rede, gerada pela
necessidade de compartilhar recursos para atingir um
objetivo comum. Cada ator específico tem seus objetivos
particulares, mas seria limitado imaginar que sua
participação seria conseqüência de suas carências e do
mero comportamento maximizador para atingir seu objetivo
pessoal ou organizacional. A construção de uma rede
envolve mais do isto, ou seja, requer a construção de um
objetivo maior que passa a ser um valor compartilhado, para
além dos objetivos particulares que permanecem (FLEURY,
2002, p. 15).

Portanto, a convergência em torno de um ‘objetivo comum maior como


valor compartilhado’ torna-se um elemento fundamental de coordenação
interorganizacional no processo de institucionalização da rede. Ou seja, enquanto
em espaços interorganizacionais de baixa institucionalidade permanece o foco em
torno dos objetivos particulares dos atores e organizações, em espaços
interorganizacionais caracterizados por padrões de interdependência em rede o
foco é dual, mediante a construção de um objetivo coletivo sem que haja a perda
de autonomia das partes.
Este aspecto do desenvolvimento de redes é amplamente afirmado na
literatura, consistindo numa unanimidade entre os autores, sendo constantemente
enfatizados mecanismos para fomentar percepções comuns, interesses
compartilhados, estratégias conjuntas, valores básicos compartilhados,
consensos, missão, etc. (KLIJN, KOPPENJAN E TERMEER, 1995; KLIJN, 1996;
BÖRZEL, 1998; MARSH, 1998; DAUGBJERG, 1998; AGRANOFF e MCGUIRE,
1999; MANDELL, 2001; KEAST, 2004). Portanto, como resultado desses diversos
processos de compartilhamento e convergência coletiva desenvolve-se entre os

134
componentes da rede um compromisso com objetivo(s) considerado(s)
superior(es):

Commitment to goals refers to whether members feel e


commitment to their own individual (organizational) goals only
or whether they are committed to overriding goals that all
members agree upon. Although individual (organizational)
goals do not go away in any type of interorganizational
innovation, in some types they are superseded by an
overriding or shared goal among members […]. In
arrangements involving linkages or intermittent coordination,
members can remain committed to their own goals and never
have to adopt a commitment to an overriding goal. […]. In a
network structure, however, members must adopt a
commitment to an overriding goal to be effective (MANDELL
e STEELMAN, 2003, p. 206).

Dessa forma, a construção de um compromisso em torno de objetivos


maiores, a partir dos objetivos particulares de cada ator ou organização, torna-se o
elemento fundamental no desenvolvimento de um padrão de interdependência em
rede. No entanto, este aspecto traz em si um potencial de conflito que necessita
de um processo de gestão voltado especificamente para regular o nível de
institucionalidade, no sentido que uma ênfase exagerada nos aspectos coletivos
pode centralizar atividades e processos e ameaçar a autonomia dos atores e
organizações envolvidos.
Sendo assim, a construção de objetivos maiores compartilhados impulsiona
o desenvolvimento de uma institucionalidade, na medida em que emerge a
percepção coletiva de que atividades isoladas e sem coordenação de esforços
resulta em ações de pouca eficácia e eficiência (PROVAN e MILWARD, 1995).
A argumentação conduzida neste capítulo desenvolveu, até o presente
momento, os fundamentos que caracterizam um padrão de interdependência em

135
rede ao longo de seis elementos de coordenação interorganizacional: foco
gerencial, atores envolvidos, formalização, composição de recursos e de poder, e
foco de controle de objetivo. O padrão composto ao longo destes elementos
emerge entre atores autônomos, envolvidos por interdependência em padrões
estáveis de relacionamento, e que desenvolvem uma institucionalidade voltada
especificamente para o aprofundamento da interdependência existente, ou
seja, emerge num espaço interorganizacional que ganha certa densidade pela
articulação constante em torno do planejamento deliberado da divisão do trabalho
e da articulação estratégica na resolução de problemas de política pública
(MANDELL, 1990, 1999 e 2001; PROVAN e MILWARD, 1995; KLIJN, 1996 e
2001; O´TOOLE 1997a e 1997b; AGRANOFF e MACGUIRE, 1999, 2001 a e
2001c; KLIJN e KOPPENJAN, 2000; KOPPENJAN e KLIJN, 2004; entre muitos
outros).
Cabe então complementar a formação deste padrão de coordenação
interorganizacional que expressa a interdependência em rede, de acordo com a
literatura internacional em administração pública, para cumprir o objetivo deste
capítulo, que consiste em determinar quais são os elementos gerenciais que
caracterizam um padrão de interdependência em rede.
Na medida em que o desenvolvimento deste padrão de interdependência
envolve um processo de institucionalização, e que este processo, como afirmado
no Capítulo 2, requer bases de suporte organizacional, cabe, então, entender
como estas bases institucionais se articulam no interior da estrutura da rede
impulsionado o planejamento e a ação coletivos, sem induzir formações
burocráticas e centralizadas de organização de políticas públicas.
De acordo com o exposto no Capítulo 2, estas bases de suporte
institucional consistem em instâncias de estratégia, espaços internos de
pactação e canais externos de articulação. A presença destas bases sustenta
o processo de institucionalização da rede fornecendo-lhe uma estrutura por meio
da qual torna-se possível articular e integrar de forma eficiente o conjunto de
recursos subjacente à rede, bem como impulsiona o desenvolvimento de
estratégias de sustentabilidade política tanto no interior do cluster de atores,

136
quanto externamente em arenas cujas decisões impactam sobre a dinâmica da
rede. A Tabela 9 resume o conteúdo exposto no Capítulo 2 sobre essas bases
institucionais apresentando os fatores de motivação, o tipo de suporte fornecido à
rede e os objetivos de cada uma delas.
Uma vez que essas bases institucionais são essenciais para a formação da
estrutura de rede, e que, como argumentado nas seções 3.1 e 3.2, a emergência
de um nível mínimo de institucionalidade, visando aprofundar a interdependência
existente entre os atores e organizações relacionados, envolve a construção de
relações de coordenação interorganizacional, mediante a formação de um
pacto de poder e governança ao nível do cluster de recursos como condição
fundamental de suporte político, a ação dessas bases tem no cluster de recursos
seus alicerces de desenvolvimento. Logo, a inserção dessas bases deve tomar
como infra-estrutura a dinâmica do cluster local e se organizar a partir dessa
dinâmica.

Tabela 10 – Bases Institucionais da Rede Fundamentadas em Instâncias


Coletivas
Tipo de
Tipos de
Fatores de Motivação Suporte Objetivos
Base
Institucional
- Necessidade de - Promoção de
articular e integrar racionalidade sistêmica na
bases de recursos e de alocação de recursos;
Instâncias competências - Garantia de flexibilidade
Técnico e
de - Busca por eficácia e operacional;
Operacional
Estratégia eficiência - construção de elementos
- Necessidade de (informações, relatórios,
acompanhar a evolução estudos, etc.) de suporte
das etapas das políticas decisório.

137
públicas

- Compor estratégias de
- necessidade de
ampliação de
inserção de interesses
representatividade
plurais;
Espaços - Desenvolver estratégias
- necessidade de
Internos de compartilhamento
construir suporte político Político
de decisório
ao nível do cluster de
Pactação - Compor consensos e
atores e recursos
projetos hegemônicos
- redução de
Prevenir bloqueios e
assimetrias de poder
impasses
- Necessidade de inserir
demandas e interesses - Gerir relações com atores
Canais da rede em arenas externos à rede
externos decisórias externas que - Inserir a rede nos
de produzem impacto Político processo de definição de
Articulaçã sobre a rede parâmetros da política
o - Necessidade de pública nos níveis regional
mobilizar recursos e nacional
externos
Fonte: elaboração própria.
Da mesma forma, como afirmado na seção 3.2, tais bases ou instâncias
institucionais são núcleos de ativação das redes (‘arenas are activated parts of
networks’), no sentido de que são canais internos e também externos de
composição de estratégias de racionalidade sistêmica, de planejamento e de
suporte político decisório (BUEREN, KLIJN e KOPPENJAN, 2003, p. 195). Nesse
sentido, a estruturação das instâncias ao nível do cluster de recursos da rede
possibilita a ampliação da governança necessária à consolidação das relações de
coordenação interorganizacional, indispensáveis à emergência da
institucionalidade da rede. Neste sentido, as instâncias de estratégia, os

138
espaços internos de pactação e os canais externos de articulação atuam
como núcleos orientadores do processo de institucionalização, na medida em que
são parte deste processo, porque emergem de e impulsionam a dinâmica de
construção da estrutura da rede (KLIJN e KOPPENJAN, 2004).
No caso das instâncias de estratégia, como apresenta a Tabela 10 , estas
estão voltadas para a promoção de racionalidade sistêmica, flexibilidade
operacional e acompanhamento das etapas de política pública, sendo que em
espaços interorganizacionais de baixa institucionalidade predominam estratégias
isoladas e limitadas de articulação da base de recursos e competências que
sustentam a rede. O desenvolvimento de instâncias de estratégia permite compor
um suporte organizacional mínimo para tornar a rede capaz de desenvolver e
transformar mecanismos de articulação das bases de serviços fornecendo
racionalidade sistêmica, eficiência e eficácia de forma compatível com a dinâmica
da rede.
A estruturação de tais instâncias de estratégia inseridas no cluster de atores
de organizações que compõem a rede permite definir e redefinir constantemente
as diretrizes de orientação e organização do trabalho coletivo, uma vez que cada
rede possui sua própria dinâmica de intercâmbio de recursos. Ou seja, uma vez
que a rede consiste numa organização extremamente dinâmica, a velocidade de
adaptação das estratégias de articulação e integração de recursos torna-se um
elemento essencial na garantia de flexibilidade operacional (AGRANOFF e
MCGUIRE, 2001; KEAST, 2004).
Neste sentido, a definição de estratégias e mecanismos de articulação e
integração das bases de recursos deve ser realizada em instâncias inseridas
diretamente no interior das redes, na medida em que necessitam ser redefinidas
constantemente de acordo com as transformações na dinâmica relacional da rede.
Portanto, em espaços interorganizacionais de elevada institucionalidade, como
sistemas corporativos de intermediação de interesses (SCHMITTER, 1974) ou
sistemas centralizados de proteção social, as estratégias, mecanismos e
parâmetros de organização e gestão são definidos em instâncias acima e fora do

139
cluster que forma a rede. Neste caso, configura-se uma centralização das
estratégias não compatível como desenvolvimento de redes.
Por sua vez, os espaços internos de pactação relacionam-se à dinâmica de
poder que se desenvolve subjacente à rede e que fornece sustentabilidade política
a esta. A composição de forças políticas em torno de um objetivo comum como
condição de formação da rede consiste num processo de difícil construção. Em
espaços interorganizacionais de baixa institucionalização das relações de
interdependência, há predominância de interesses particulares (organizacionais)
que podem e freqüentemente geram conflitos que resultam em impasses e
bloqueios na execução de políticas públicas. Estes impasses e bloqueios estão
associados à presença de incerteza estratégia, ou seja, resultam de diferenças
nos interesses, percepções e estratégias de ação dos componentes da rede
(BUEREN, KLIJN e KOPPENJAN, 2003). A incerteza estratégica gera uma
dinâmica política resistente à formação de projetos hegemônicos:

This strategic uncertainty causes a situation where solving


complex problems is more than a single game of negotiation
in which a number of players of diverging interests and
objectives arrive at a compromise through an exchange of
objectives and means. There is another source of uncertainty
that makes it even more difficult to satisfactorily conclude
policy games: the fragmented nature of policy game itself
(KOPPENJAN e KLIJN, 2004, p. 51).

Logo, torna-se necessário, de acordo com os autores, um processo de


aprendizagem estratégica no interior da rede, onde constantes ajustes de
percepção e objetivos buscam evitar a ocorrência de comportamentos
oportunistas. O desenvolvimento de um padrão de interdependência em rede
envolve, portanto, um processo de aprendizagem estratégica mediante
movimentos freqüentes de composição de estratégias de ampliação de
representatividade dos atores da rede, o desenvolvimento de estratégias de

140
compartilhamento decisório, a composição de consensos e projetos hegemônicos,
etc.
Em ambientes de elevada institucionalidade o processo de convergência e
formação de estratégias comuns é conduzido externamente por um ator central
com maior poder e pouco é delegado aos atores internos da rede (ROGERS e
WHETTEN, 1982).
Finalmente, os canais externos de articulação são bases institucionais que
conectam a rede com os atores e arenas decisórias de relevância para a rede.
Como esta é parte de um sistema nacional de provisão de serviços públicos e
proteção social, estes canais externos de articulação compõem, como afirmado no
Capítulo 2, importantes instrumentos de construção da governança democrática.
É por meio destes canais que são definidos parâmetros de composição
institucional da rede, ou seja, as regras mínimas de estruturação e organização
geral. Na medida em que estes canais conectam a rede com arenas decisórias
nacionais, possibilitam, como mostra a Tabela 9 gerir relações com atores
externos à rede e inseri-la nos processos de definição de parâmetros de
orientação geral da política pública nos níveis regional e nacional.
Em espaços interorganizacionais de baixa institucionalidade coletiva
predominam relações caracterizadas por incerteza institucional, ou seja,
predominam relações sem parâmetros mínimos de condução e regulação do
intercâmbio de recursos, resultando em dificuldades de sustentação destas
relações no longo prazo, e o desenvolvimento apenas de relações baseadas em
troca típicas de mercado. A emergência de um padrão de interdependência em
rede envolve a construção de referências mínimas institucionais capazes de
regular e orientar os demais processos de negociação e formação compartilhada
de estratégias de políticas, onde os canais de articulação externa constituem
importantes núcleos de ativação por impulsionar o processo de aprendizagem
institucional:

We define institutional learning as the degree to which parties


in policy games are able to use or develop relations, rules,

141
meaning languages and trust that will support and make their
interactions more predictable. […] Parties and networks
become linked and the further evolution of the policy game(s)
that develop around new problems or proposals for solutions
develops in a relatively uncomplicated context. There are now
provisions that facilitate and support the interaction between
parties. Parties know where to find one another, know how to
deal with one another, and can better shape their interaction
(KOPPENJAN e KLIJN, 2004, p. 128).

Logo, em espaços de interdependência em rede a ação dos canais


externos de articulação envolve especificamente a definição compartilhada com
atores externos à rede dos parâmetros mínimos relativos ao formato institucional
da rede, bem como a homologação das estratégias e consensos construídos ao
nível da rede nos espaços internos de pactação.
Entretanto, em espaços interorganizacionais de elevada institucionalidade,
como sistemas mais centralizados de proteção social, não só os parâmetros
mínimos relativos ao formato institucional da rede são definidos em instâncias
acima e fora do cluster que forma a rede, mas também as estratégias de
coordenação e o desenvolvimento de consensos coordenados por um ator central.
Este formato esvazia os espaços internos de pactação e, conseqüentemente
reduz a capacidade de construção de governança no interior da rede, aspecto este
essencial para a sustentabilidade institucional da rede.
Uma vez que se encontra definida a forma como as bases institucionais se
articulam no interior da estrutura da rede ativando e impulsionado o planejamento
e a ação coletivos, torna-se possível sintetizar os fundamentos que caracterizam a
composição de um padrão de interdependência em rede, tal como expresso na
literatura internacional em administração pública desde o início da década de
noventa. A Tabela 11 resume a argumentação desenvolvida durante este capítulo
e apresenta tal padrão de interdependência.

142
Tabela 11 - Elementos Institucionais de um Padrão de Interdependência em
Rede
Baixa
Dimensões de Interdependência Institucionalidad
Institucionalidad
Análise em Rede e Elevada
e
Atividades Supremacia do
Atividades
Foco Gerencial particulares caráter coletivo
complementares
(organizacionais) das atividades
Nível operacional,
Atores envolvidos Nível operacional tático e Níveis tático e
e amplitude de e tático estratégico; estratégico
Inserção Inserção limitada Ampla inserção de Inserção seletiva
atores
Construção
coletiva de regras
Nível de
Poucas regras gerais e interativa Alta formalidade
Formalização
de regras
operacionais
Nível médio de
recursos
comprometidos
Poucos recursos Domínio elevado
Desenvolvimento
Recursos comprometidos de recursos por
de estratégias de
envolvidos Gestão dispersa um ator específico
mecanismos de
dos recursos ou poucos atores
gestão
compartilhada dos
recursos

143
Dispersos e
exercido de forma
Construção de
direta
formas e
Tende a enfatizar
estratégias de
as possibilidades
compartilhamento
Foco de Poder de cada ator de Poder centralizado
decisório
acordo com as
Foco de poder
assimetrias de
descentralizado e
domínio de
compartilhado
recursos.

Centralização de
Foco informações e
complementar de mecanismos de
Foco fiscalizador
sistemas racionalidade
disperso em
articulados sistêmica, típica
Foco de controle diversos
Caráter de hierarquias
processos de
estratégico de Ênfase na
intercâmbio
suporte à dinâmica dimensão
gerencial fiscalizadora do
controle
Ênfase exagerada
Foco principal nas Construção de um
nos aspectos
metas singulares compromisso em
coletivos podendo
de cada torno de objetivos
centralizar
organização maiores a partir
Objetivos atividades e
Realização de dos objetivos
processos, em
objetivos isolados particulares de
detrimento dos
e sem cada ator ou
objetivos
coordenação organização
particulares.

144
Ausentes ou Estruturadas
Inseridas no
pouco estabelecidas fora
cluster da rede
desenvolvidas e acima da rede
Instâncias Definição flexível e
Articulação Definição externa
estratégicas de compartilhada de
insipiente da base e mais rígida de
coordenação estratégias,
de recursos estratégias,
interorganizacion mecanismos e
Ausência de mecanismos e
al parâmetros de
estratégia de parâmetros de
articulação da
racionalidade articulação da
base de recursos
sistêmica base de recursos
Inseridas no
cluster da rede
Estabelecidas fora
Processo de
do cluster da rede
Aprendizagem
Coordenação
Ausentes ou estratégica
política
pouco Definição e
centralizada
Espaços internos desenvolvidos redefinição
Definição externa
de pactação Predomínio de constante e
de objetivos,
incerteza compartilhada de
estratégias e
estratégica objetivos
projetos de política
Formação e
pública
redefinição de
projetos
hegemônicos
Apenas Processos de Determinação
informalmente definição externa dos
desenvolvidos compartilhada dos principais
Canais externos
(articulação parâmetros parâmetros,
de articulação
informal) mínimos relativos estratégias e
Predomínio de ao formato mecanismos de
incerteza institucional da coordenação da

145
institucional rede rede
Homologação das
estratégias e
consensos
construídos ao
nível da rede
Fonte: elaboração própria.

Desta forma, como poder ser apreendido da análise da Tabela 11, o


desenvolvimento de uma estrutura de rede envolve a construção de uma base de
institucionalidade que transforma as relações de interdependência mediante a
constituição de estratégias de e instância de coordenação interorganizacional e
pactação política coletiva. Este processo amplia o caráter coletivo das relações
de intercâmbio de recursos e planejado das atividades desenvolvidas, gerando,
como já afirmado, uma complementaridade e um equilíbrio entre a busca por
objetivos individuais e as metas comuns resultantes de decisões compartilhadas
para a resolução de problemas complexos de política pública (KEAST, 2004).
Como resultado, a composição de uma estrutura em rede se diferencia de uma
série de arranjos colaborativos ou mesmo formalizados de alcance temporal
limitado como parcerias, cooperativas, joint venture, intermittent coordination,
temporary task forces, regular coordination, coalizões, entre outros arranjos
interorganizacionais caracterizados por baixa institucionalidade coletiva
(MENDELL e STEELMAN, 2003).

No entanto, a profundidade das relações de coordenação


interorganizacional e, conseqüentemente, o nível de institucionalidade possuem
limites, uma vez que as redes são organizações que emergem de atores
autônomos, cujas bases de poder encontram-se compostas em torno de clusters
de recursos que delimitam o núcleo de governança da rede, diferenciando a rede
de organizações de caráter corporativo ou hierárquico de composição.

146
A estrutura analítica desenvolvida na Tabela 11 apresenta tipos ideais de
formações interorganizacionais que emergem de relações de interdependência de
recursos, tipos estes que hipoteticamente se situam sobre um continuum que,
como dito, compreende desde parcerias de curta duração, num extremo, até
formações interorganizacionais de elevado grau de verticalização e centralização
decisória, como estruturas burocráticas ou corporativas.

A utilidade da tipologia acima construída reside na sua capacidade de


oferecer suporte para a análise do potencial, implícito às estratégias de política
pública, tanto de mobilização de trabalho coletivo quanto da promoção de relações
de intercâmbio flexível e eficiente de recursos a partir de atores e organizações
autônomos. Assim, dada uma determinada formação interorganizacional, é
possível verificar, por meio da qualificação de suas características sobre a
estrutura de análise da Tabela 11, a qual dos três tipos ideais esta se aproxima. O
aspecto relevante reside no fato de que a proximidade a um dos tipos ideais
resulta em implicações gerenciais quanto a sua capacidade de composição de
trabalho coletivo e de sustentabilidade política.

De acordo com os estudos sobre redes publicados na literatura


internacional de administração pública examinada, em contextos compostos por
atores e organizações caracterizados por autonomia decisória somente é possível
desenvolver respostas eficazes e eficientes aos problemas complexos de política
pública (saúde, educação, exclusão social, habitação urbana, etc.) quando estes
atores e organizações se associam num padrão de interdependência de recursos
em rede, padrão este que manifesta as características organizacionais descritas
na coluna central da estrutura apresentada na Tabela 11.

Assim, somente quando a interdependência existente adquire um


determinado grau de aprofundamento, mediante a composição de
institucionalidade coletiva com bases organizacionais legitimamente definidas,
torna-se possível desenvolver as potencialidades apresentadas no Capítulo 2
(seção 2.4), tais como elevada velocidade de aprendizagem, maior capacidade de
inovação, ganhos de escala econômica, velocidade de mobilização e variedade de

147
combinação de recursos, etc. Isto porque, na medida em que estão presentes as
características que compõem um padrão de interdependência em rede, tal como
apresentadas na Tabela 11, torna-se possível desenvolver um potencial de
organização do trabalho coletivo sem comprometer a sustentabilidade política,
uma vez que em espaços interorganizacionais compostos por entes autônomos a
governança se constrói em processos constantes de pactação e ajustes
simultâneos de percepções e interesses, sem a presença de uma autoridade
central que determina as estratégias e conduz o trabalho coletivo.

De forma contrária, quando determinada formação interorganizacional


manifesta características que a aproximam de um dos outros dois tipos ideais
reduz-se seu potencial de promoção e sustentação de interdependência.

No primeiro caso, em formações interorganizacionais que apresentam


traços típicos de um padrão de interdependência caracterizado por baixa
institucionalidade, o potencial de composição de trabalho coletivo apresenta-se de
forma insuficiente diante da complexidade dos problemas de política pública,
sendo baixa a capacidade de mobilização de recursos, além de reduzido o
potencial de composição de objetivos coletivos.

Sendo assim, na medida em que tais formações interorganizacionais se


compõem a partir de uma pequena amplitude de inserção de atores e
organizações, e somente desenvolvem atividades específicas e de caráter limitado
temporalmente, a estabilidade das relações de intercâmbio de recursos é baixa.
De forma resumida, como resultado do desenvolvimento de uma institucionalidade
coletiva baixa, a intensidade dos vínculos interorganizacionais e a extensão dos
esforços de política pública é insuficiente para impulsionar uma ação eficaz e
eficiente do Estado.

No outro extremo estão as formações interorganizacionais que apresentam


características que as aproximam do tipo ideal classificado como de elevada
institucionalidade. Nestes casos os obstáculos não residem em sua formação
coletiva incipiente e em seu baixo potencial de trabalho coletivo, mas sim em sua
capacidade de promover sustentabilidade política, uma vez que a centralização

148
decisória e da condução dos principais instrumentos e estratégias de organização
do trabalho coletivo em espaços interorganizacionais formados por atores e
organizações com autonomia implica em constantes conflitos de governança.

Como visto no Capítulo 3 (seção 3.2), a natureza da governança em rede


envolve a composição constante de hegemonia devido ao caráter horizontal das
relações de intercâmbio de recursos, sem que se verifiquem relações de
autoridade entre os atores e organizações envolvidos. Assim, a composição e
dinâmica dos instrumentos e das estratégias de organização do trabalho coletivo
são orientadas por processos de compartilhamento de poder e etapas decisórias
coletivamente constituídas, onde um único ator ou organização não possui a
preponderância política.

Desta maneira, formações interorganizacionais que manifestam


características de elevada institucionalidade tendem a reduzir a estabilidade de
seus vínculos constitutivos pela intensificação dos conflitos entre os atores e
organizações situam-se em posições centralizadas e as demais. Isto porque a
autonomia decisória dessas últimas impossibilita a composição dirigida de
estratégias e a condução centralizada de instrumentos e processos de trabalho
coletivo, gerando constantes conflitos e a redução da sustentabilidade política da
formação interorganizacional.

149
Capítulo 4 – A Estratégia de Regionalização da NOAS: Interdependência
Municipal, Territorialização e Planejamento Integrado

O texto da Portaria MS/GM 373/02, que acompanha a publicação da NOAS,


define como sendo os objetivos desta a ampliação das responsabilidades dos
municípios na atenção básica, o estabelecimento da regionalização como
estratégia de hierarquização dos serviços de saúde e de maior equidade, a
criação de mecanismo para o fortalecimento da capacidade de gestão do SUS, e a
atualização dos critérios de habilitação de estados e municípios. A NOAS é
composta por cinco capítulos mais os anexos referentes à operacionalização das
disposições estabelecidas ao longo do texto.
O conteúdo da NOAS 01/02 (doravante somente NOAS) referente ao
aprofundamento da interdependência municipal definida como estratégia de
regionalização, encontra-se nos dois capítulos iniciais. Nestes estão contidas as
disposições que se referem tanto à definição e à operacionalização do processo
de regionalização em si (capítulo 1), quanto ao fortalecimento da capacidade de
gestão do SUS (capítulo 2), que impacta indiretamente sobre a construção do
processo de regionalização da saúde. Portanto, a descrição e a análise da
estratégia de aprofundamento da interdependência municipal estarão restritas ao
disposto nesses dois capítulos iniciais da NOAS.
A estratégia de aprofundamento da interdependência municipal da NOAS é
construída a partir da instituição do planejamento territorialmente delimitado das
referências intermunicipais, ou seja, é definida como base de planejamento das
políticas de assistência uma determinada configuração espacial que estabelece
como os municípios estarão dispostos em termos dos vínculos
interorganizacionais que estabelecem, inicialmente, o posicionamento (papel
assistencial) de cada município na relação de interdependência e orientam a
formação de futuros arranjos assistenciais onde os papéis iniciais podem ser
redirecionados. Sob este olhar, a regionalização da saúde na NOAS consiste num
processo dinâmico onde a configuração da interdependência municipal é mutável
de acordo com as linhas de orientação do planejamento delimitadas na busca de
materialização dos princípios da integralidade e equidade de acesso. Desta forma,

150
os princípios fundamentais do SUS devem direcionar e redirecionar a configuração
da interdependência municipal numa visão global da assistência à saúde:

O processo de regionalização deverá contemplar uma lógica de


planejamento integrado, compreendendo as noções de territorialidade, na
identificação das prioridades de intervenção e de conformação de
sistemas funcionais de saúde, não necessariamente restritos à
abrangência municipal, mas respeitando seus limites como unidade
indivisível, de forma a garantir o acesso dos cidadãos a todas as ações e
serviços necessários para a resolução de seus problemas de saúde,
otimizando os recursos disponíveis (BRASIL, 2002, p. 9).

A definição do processo de regionalização, estabelecida pelo texto da


NOAS, fornece os elementos principais a partir dos quais estão sendo construídos
os arcabouços operacionais que irão orientar o desenvolvimento do padrão de
interdependência organizacional desejado entre os municípios na garantia de
acesso universal, eqüitativo e integral à saúde.
Na visão expressa na NOAS, o planejamento territorialmente referenciado
consiste no processo através do qual torna-se possível construir sistemas
funcionais de saúde orientados por prioridades e capazes de garantir o acesso
universal, eqüitativo e integral por meio do emprego eficiente de recursos.
Portanto, como argumentado na seção anterior, se a estratégia da NOAS na
garantia de princípios como equidade e integralidade consiste no aprofundamento
da interdependência entre os municípios, tal estratégia necessariamente está
direcionada pelo processo de planejamento territorialmente referenciado, como
mostra a figura 2 abaixo:

151
Figura 1 – Lógica de Regionalização da NOAS

Processos-chave Estratégia Objetivos Almejados

APROFUNDAMENTO  UNIVERSALIDADE
 TERRITORIALIZAÇÃO DA  EQUIDADE
INTERDEPENDÊNCIA  INTEGRALIDADE
 PLANEJAMENTO MUNICIPAL  EFICIÊNCIA
 RESOLUTIVIDADE

Fonte: elaboração própria com base na NOAS (BRASIL, 2002).

Desta forma, torna-se essencial compreender como as disposições


contidas na NOAS estruturam os processos de territorialização e de planejamento
da atenção à saúde, uma vez que estes são os elementos essenciais para
entender qual o padrão de interdependência municipal fomentado pela estratégia
de regionalização da atenção à saúde. Assim, o padrão de interdependência
impulsionado pela NOAS será estruturado por fluxos de relações motivados
essencialmente pelos processos de territorialização e planejamento da atenção,
ou seja, no decorrer do processo de implementação da norma, as relações
desencadeadas irão adquirir certo padrão de estabilidade conformando um
formato de interdependência específico, a ser analisado na seção 4.3.

4.2.1 – O Processo de Territorialização

A territorialização da saúde consiste na delimitação das unidades


fundamentais de referenciamento a partir das quais serão estruturadas as funções
relativas ao conjunto da atenção à saúde envolvendo a organização e gestão do
sistema, a alocação de recursos e a articulação das bases de provisão de serviços
por meio de fluxos de referência intermunicipais. Assim, a territorialização, como
processo de delineamento da configuração espacial da interação entre atores,

152
organizações e recursos, consiste no movimento que fixa as linhas e vínculos de
estruturação do campo relacional subjacente à dinâmica da realidade sanitária do
SUS a nível local.

A relevância do processo de territorialização da saúde pode ser melhor


compreendida quando percebemos que diferentes configurações de organização
territorial podem originar padrões de interdependência diferentes, uma vez que o
recorte territorial define qual o conjunto de atores e organizações que terão suas
relações intensificadas por meio tanto da ampliação da freqüência de interação
quanto da expansão de fluxos de recursos. Ou seja, diferentes recortes formam
conjuntos de atores diferentes com padrões de distribuição e intercâmbio de
recursos diferentes.

Este processo é de extrema relevância no movimento inicial de


estruturação das redes tal qual definido pelos estudos internacionais sobre redes
em administração pública:

Networks gradually emerge because actors begin interacting.


[…] this occur because actors are mutually dependent. If
actors want to achieve goals, which are interesting and
valuable to them, this dependency forces them into
interaction. This interdependency establishes patterns of
interactions and actors perceptions emerge. Through
interdependency and repetitiveness of interaction, stable
interaction patterns are created in networks. These patterns
are often quite logical in the sense that actors who interact
frequently with each other must also deal with each other
when goals and organizational identity are taken into
consideration. In various policy sectors, such as health care,
public housing, justice, traffic and transport, etc., many actors
are linked since they are part of a chain of policy plans

153
leading toward concrete products or services (KOPPENJAN e
KLIJN, 2004, p. 70).

Ao referenciar espacialmente a dinâmica de organização do trabalho


sanitário, o processo de territorialização definido pela NOAS define quais serão as
áreas, no interior das quais, os atores e organizações que compõem o sistema de
saúde terão suas interações e relações de intercâmbio intensificadas. Desta
forma, a lógica de composição de “clusters” de atores e organizações a partir de
bases territoriais delimitadas, sobre as quais se fundamentam a organização, a
gestão e o financiamento da atenção à saúde, constitui-se num processo que
desencadeia um fluxo de intensificação das relações de interdependência já
existentes.

Desta forma, relações pré-existentes de intercâmbio de recursos entre


atores localizados numa mesma base territorial são estimuladas pela
convergência de esforços de política pública que visam alocar recursos,
estratégias e instrumentos de gestão para a construção de bases geograficamente
delineadas. Tais impulsos proporcionados pela atuação governamental, definida
no texto da NOAS, no decorrer do processo de regionalização da atenção à
saúde, representam importante ação no sentido de conferir estabilidade às
relações pré-existentes entre os atores destas bases. Logo, o aprofundamento das
interdependências municipais possui, no processo de territorialização da atenção
à saúde, um de seus elementos essenciais. Logo, cabe entender como se
estrutura o processo de territorialização de acordo com as disposições da NOAS,
e como este processo impulsiona o aprofundamento de interdependências.

A estruturação do processo de territorialização da atenção à saúde toma


como ponto de partida as unidades de composição da federação, embora de
forma não estrita uma vez que a NOAS entende que a disposição da organização
da atenção à saúde no nível local transcende as delimitações político-
administrativas.

154
Tomando como ponto de partida o espaço que corresponde ao território dos
estados, são identificadas subdivisões deste que consistem nas unidades
fundamentais de referenciamento a partir das quais deverão ser articulados os
atores, organizações e recursos de forma a compor sistemas funcionais de saúde.
Ou seja, tais subdivisões serão as áreas, no interior das quais, os atores e
organizações que compõem o sistema de saúde terão suas interações e relações
de intercâmbio intensificadas mediante a ação das instâncias decisórias de
produção das políticas de saúde nos três níveis do SUS:

REGIÃO DE SAÚDE – base territorial de planejamento da


atenção à saúde, não necessariamente coincidente com a
divisão administrativa do estado, a ser definida pela
Secretaria Estadual de Saúde, de acordo com as
especificidades e estratégias de regionalização da saúde em
cada estado, considerando as características demográficas,
sócio-econômicas, geográficas, sanitárias, epidemiológicas,
oferta de serviços, relações entre municípios, entre outras.
Dependendo do modelo de regionalização adotado, um
estado pode se dividir em macrorregiões, regiões e/ou
microrregiões de saúde. Por sua vez, a menor base territorial
de planejamento regionalizado, seja uma região ou uma
microrregião de saúde, pode compreender um ou mais
módulos assistenciais (BRASIL, 2002, p. 10).

Desta forma, a NOAS estabelece uma unidade mínima de territorialização,


que pode ser uma região ou microrregião de acordo com a estratégia de cada
estado, como locus privilegiado para a articulação dos atores, organizações e
recursos mediante fluxos intermunicipais de referenciamento de serviços,
informações e relações produtivas e políticas no interior do SUS.
O próprio delineamento de uma região/microrregião de saúde consiste
numa estratégia de aprofundamento da interdependência entre os municípios que

155
a compõem, uma vez que esta delimitação toma como ponto de partida um
conjunto de critérios que demonstram a existência de fluxos relacionais de
interdependência que se manifestam por meio de várias dimensões da estrutura
social subjacente ao conjunto municípios componentes de uma região. Assim, o
aprofundamento da interdependência municipal na estratégia da NOAS busca na
estrutura social a fonte de potencialização de sua ação, pois ao intensificar as
relações no universo sanitário, estas interagem com outros campos de relações de
interdependência como o econômico, o político, o cultural, entre outros.
Da mesma maneira, a lógica que orienta a estruturação assistencial de uma
região/microrregião de saúde impulsiona a intensificação da interdependência no
interior destas, uma vez que procura tornar tais unidades territoriais uma base de
provisão caracterizada pela garantia de acesso da população ao maior grau de
integralidade possível de acordo com a infra-estrutura disponível. Este aspecto é
de extrema relevância, uma vez que, quanto maior o grau de integralidade
oferecido pelo sistema interno à região/microrregião, menor será o fluxo externo e
maior o interno, ampliando a interdependência entre os atores e organizações que
compõem tais unidades territoriais.
Para tal, a estruturação assistencial das regiões/microrregiões envolve três
estratégias que visam proporcionar maior capacidade de integralidade. A primeira
refere-se à homogeneização do acesso a média complexidade pela instituição de
‘módulos assistenciais’ como unidades assistenciais mínimas de subdivisão das
regiões/ microrregiões:

MÓDULO ASSISTENCIAL – módulo territorial com


resolubilidade correspondente ao primeiro nível de
referência, definida no item 8 – Capítulo 1 desta Norma,
constituído por um ou mais municípios, com área de
abrangência mínima a ser estabelecida para cada Unidade
da Federação, em regulamentação específica, e com as
seguintes características:

156
 Conjunto de municípios, entre os quais há um
município-sede, habilitado em Gestão Plena do Sistema
Municipal/GPSM ou em Gestão Plena da atenção Básica
Ampliada (GPAB-A), com capacidade para ofertar a
totalidade dos serviços de que trata o item 8 – Capítulo I
desta Norma, com suficiência, para sua população e para a
população de outros municípios a ele adscritos; ou

 Município em Gestão Plena do Sistema Municipal ou


em Gestão Plena da atenção Básica Ampliada, com
capacidade de ofertar com suficiência a totalidade dos
serviços de que trata o Item 8 – Capítulo I para sua própria
população, quando não necessitar de desempenhar o papel
de referência para outros municípios (BRASIL, 2002, p.10).

Desta forma, a instituição dos ‘módulos assistenciais’ garante e


homogeneiza o acesso a média complexidade dentro da região/microrregião, uma
vez que articula um grupo de municípios em torno de um município-sede com
capacidade de provisão de um conjunto mínimo de serviços de média
complexidade, chamado de ‘primeiro nível de referência intermunicipal’, com
garantia de acesso a toda a população no âmbito do módulo. Um vez que o
‘módulo assistencial’ consiste na unidade mínima de subdivisão de uma
região/microrregião, logo o acesso ao ‘primeiro nível de referência intermunicipal’,
que compreende determinadas atividades ambulatoriais de apoio diagnóstico e
terapêutico(chamado de M1) e de internação hospitalar1, torna-se garantido para
toda a população da região/microrregião.
A segunda estratégia consiste na identificação de bases de serviços
especializados no interior dos módulos assistenciais que possam ser tomadas
como centros de referência. Estes são chamados de ‘municípios-pólo’ e consistem

1
O conjunto de atividades que compõem o ‘primeiro nível de referência intermunicipal’ encontra-se definido
no Anexo III da NOAS, podendo ser consultado no Anexo I deste livro.

157
em atores essenciais na ampliação do potencial de integralidade do sistema
interno às regiões/ microrregiões.
A terceira estratégia de ampliação da capacidade de integralidade na
provisão de serviços reside na obrigatoriedade de composição ascendente de
complexidade por unidade territorial agregada. A microrregião ou região consiste
na unidade mínima para qualificação da assistência de acordo como estabelecido
pela NOAS, no entanto, é possível que sejam estabelecidos vários níveis de
organização assistencial na divisão do território do estado. Assim, cada nível de
assistência estabelecido acima do ‘módulo assistencial’ deve conter serviços
especializados além dos previstos neste. A Figura 2 representa esta estratégia e
resume a lógica de estruturação assistencial da NOAS.

Figura 2– Estruturação Assistencial Estabelecida pela Estratégia da NOAS

UNIDADES TERRITORIAIS DE DEFINIÇÕES


REFERÊNCIA DA REGIONALIZAÇÃO

POSSÍVEL UNIDADE
TERRITORIAL
ADICIONAL DE
MACRORREGIÃO PLANEJAMENTO
Complexidade
Ascendente: REGIONALIZADO

A partir do
Módulo
BASES TERRITORIAIS
Assistencial, o
MÍNIMAS DE
Adicional de
REGIÃO PLANEJAMENTO
complexidade é
REGIONALIZADO –
definido de
NÍVEL DE
acordo com a
COMPLEXIDADE ACIMA
estratégia de
DO MÓDULO
regionalização
adotada por MICRORREGIÃO
cada estado
1º NÍVEL DE
REFERÊNCIA DEFINIDO
MÓDULO ASSISTENCIAL PELA NOAS

Fonte: elaboração própria com base na NOAS (BRASIL, 2002).

158
Desta maneira, a forma como se estrutura a atenção à saúde, mediante a
articulação e integração das bases de serviços orientadas pelo princípio da
territorialização constitui um impulso significativo que, ao se solidificar durante o
processo de implantação da NOAS, contribui de forma decisiva para o
aprofundamento da interdependência entre os municípios.
Além da forma de estruturação da assistência à saúde, o critério de
territorialização estabelecido na NOAS motivou o desenvolvimento de uma série
de processos gerenciais de consolidação da estratégia de regionalização da
atenção à saúde visando conformar sistemas de saúde funcionais e resolutivos,
estruturados para a garantia de acesso universal, eqüitativo e integral. Tais
processos, construídos para orientar a ação dos gestores públicos nas três
esferas de governo, são elementos essenciais para a materialização das políticas
de saúde sob o SUS e, de acordo com a NOAS, todos passam a ser
operacionalizados tendo na região/microrregião de saúde sua base de ação. A
Tabela 13 apresenta um conjunto descritivo desses processos e de seu tempo de
ação na estratégia de territorialização da atenção à saúde.

Tabela 13 – Região/Microrregião como Base de Aprofundamento das


Interdependências Municipais
Item
Processos gerenciais que Tomam a
da Tempo de
Região/Microrregião como Base de Ação e
NOA Ação
Aprofundam Interdependências Municipais
S
 Elaboração, implementação, operacionalização e Curto, médio e
3
ajuste do Plano Diretor de Regionalização longo prazos
 Identificação de prioridades de intervenção e Médio e longo
planejamento da assistência o impacto regional 6b
prazos
destas
 Articulação constante dos serviços de forma Curto, médio e
6f
hierarquizada longo prazos
 Estabelecimento e monitoramento de mecanismos Curto, médio e
e fluxos intermunicipais de referência e contra- 6e
longo prazos
referência
 Elaboração do Plano Diretor de Investimentos – Médio e longo
6c
PDI prazos

159
 Alocação de investimentos em infra-estrutura 6c e
Médio e longo
visando tornar a Região/Microrregião sistemas de 6.1.1
prazos
saúde resolutivos e funcionais b
 Redistribuição geográfica de e recursos 6.1.1 Médio e longo
tecnológicos e humanos b prazos
 Estudos e análises constantes para projeção do
6.1.1 Médio e longo
futuro desenho da configuração estadual e nacional
b prazos
da atenção à saúde
 Emprego de estratégias adicionais e específicas de
cada estado, além das previstas na NOAS, Curto, médio e
11
direcionadas à garantia do acesso aos serviços de longo prazos
média complexidade do ‘1º nível de referência’
 Alocação de fluxos de financiamento federal para
Curto, médio e
custeio do fornecimento dos serviços de média 14
longo prazos
complexidade do 1º nível de referência’
 Emprego de estratégias adicionais e específicas de
cada estado, além das previstas na NOAS,
Curto, médio e
direcionadas à garantia do acesso aos serviços de 11
longo prazos
média complexidade além do ‘1º nível de
referência’
 Composição, organização e operacionalização da
9.4, Curto, médio e
Programação Pactuada e Integrada Estadual nos
22 longo prazos
diversos níveis de atenção
 Realização de acordos específicos de assistência
envolvendo o município-sede e qualquer município
em GPAB-A para provisão temporária de 15 Curto prazo
determinados serviços do ‘1º nível de referência’
pelo próprio município
 Emprego de estratégias previstas na NOAS para a 21.1
Curto, médio e
organização dos serviços de média complexidade a
longo prazos
de acordo com a PPI 21.3
 Emprego de estratégias não previstas na NOAS e
específicas de cada estado para a organização dos 18 Curto, médio e
serviços de média complexidade de acordo com o e19 longo prazos
PDR
 Utilização de estratégias de racionalidade sistêmica
Médio e longo
para a distribuição de serviços de média 22.1
prazos
complexidade
 Programação, organização, definição de
prioridades de investimento, avaliação, controle e Curto, médio e
30
regulação dos fluxos intermunicipais referentes à longo prazos
assistência de alta complexidade
 Alocação de recursos para investimentos Porta
provenientes de celebração de convênios com o ria Médio e longo
Ministério da saúde visando compor novos módulos MS prazos
assistências de acordo com as necessidades da 544,

160
população de 16
abr/0
1
33.3
 Definição de limites financeiros para a assistência Curto, médio e
a
estadual longo prazos
33.7
 Estabelecimento de termos de compromisso para 4 e Curto, médio e
referenciamento fora da microrregião 37 longo prazos
 Orientação do planejamento e atuação das centrais Curto, médio e
48
de regulação longo prazos
Fonte: elaboração própria com base na NOAS (BRASIL, 2002).

Como visto na Tabela 13 acima, a ação desses processos ocorre por meio
de atividades de elaboração, programação, organização, implantação, execução,
monitoramento, regulação e avaliação cobrindo um ciclo tradicional de produção
políticas públicas. Tais atividades, na medida em que visam consolidar a
estratégia de territorialização da atenção à saúde, compõem um conjunto de
padrões institucionalizados de interação que representam impulsos constantes ao
aprofundamento das interdependências municipais. Desta forma, os atores e
organizações que se relacionam na arena sanitária de uma região/microrregião
têm suas relações de intercâmbio intensificadas na medida em que desempenham
seus papéis nos processos instituídos pela NOAS.
O tempo de ação de cada processo consiste numa variável importante, uma
vez que está relacionado à continuidade do impulso fornecido pelo processo, ou
seja, sua capacidade de fomentar relações estáveis de interdependência entre os
atores e organizações de uma região/microrregião, o que representa um
movimento essencial na institucionalização das redes conforme argumentado nos
Capítulos 2 e 3. Como pode ser visto na Tabela 13, a quase totalidade dos
processos apresenta um tempo de ação envolvendo o curto, o médio e o longo
prazos.
De forma conclusiva, a análise conduzida acima demonstrou como o
processo de territorialização da assistência, componente fundamental da
estratégia de regionalização da NOAS, possui um potencial expressivo no
aprofundamento da interdependência municipal, tanto devido à lógica que orienta
a estruturação assistencial como pela instituição de processos de composição do

161
ciclo de políticas públicas. O aprofundamento da interdependência municipal via
territorialização da assistência é expressamente construído pela ênfase nas
relações horizontais impulsionando a convergência em torno da garantia dos
princípios da universalidade, equidade e integralidade. Cabe na seqüência
entender em que consiste o processo de planejamento sob a NOAS, como este se
estrutura e qual seu efeito sobre o aprofundamento das interdependências
municipais.

4.2.2 – O Processo de Planejamento Integrado

O processo de planejamento integrado consiste no elemento que,


associado à territorialização, possibilita, na percepção da NOAS, construir
sistemas funcionais de saúde orientados por prioridades e capazes de garantir o
acesso universal, eqüitativo e integral por meio do emprego eficiente de recursos.

Uma vez que a territorialização da saúde consiste na delimitação das


unidades fundamentais de referenciamento, a partir das quais serão estruturadas
as funções de política pública, a estratégia de regionalização proposta pela NOAS
constata que a configuração atual da distribuição dos serviços de saúde e a
articulações das funções estatais citadas não se encontram posicionadas de forma
a convergir para a materialização dos princípios de universalidade, equidade e
integralidade.

Esta percepção da necessidade de transformação imprime ao processo de


regionalização da saúde uma caracterização essencialmente dinâmica, o que
significa dizer que ação dos atores que interagem nas arenas do SUS deve se
desenvolver no sentido de conformar um projeto consistente de rearticulação
eficiente das bases de provisão de serviços aos cidadãos. Somente o processo de
territorialização não é suficiente para gerar elementos dinâmicos capazes de
materializar os princípios de universalidade, equidade e integralidade, ou seja,

162
torna-se necessário redimensionar as relações entre os atores de forma a
potencializar o processo de territorialização como vetor de transformação.

No âmbito da estratégia proposto pela NOAS, este papel de transformação,


potencializando a territorialização, é atribuído ao processo de planejamento
integrado como função preponderante realizada pelo Estado e a Sociedade Civil,
de forma compartilhada conforme o formato institucional do SUS. Assim, o
processo de planejamento não consiste apenas numa atividade prévia de política
pública para ampliar o grau de eficácia da ação pública, mas amplia-se ganhando
status de processo principal com ação constante por meio do qual são elaboradas
todas as demais funções gerenciais como controle, programação, organização,
implantação, execução, monitoramento, regulação e avaliação.

O planejamento torna-se uma função que intensifica o fluxo de relações


entre os atores que compõem o sistema, na medida em que a visão da
regionalização como um processo dinâmico e transformador exige a ação conjunta
constante em torno do intercâmbio de informações e recursos, da construção de
estratégias e da reafirmação de compromissos, entre outros. Assim, o
planejamento alimenta constantemente as demais funções gerenciais e é por elas
enriquecido, consistindo num motor que aprofunda a interdependência entre os
atores e exige a construção de novas relações.

Logo, cabe entender como se estrutura o processo de planejamento de


acordo com as disposições da NOAS, e como este processo altera a relação entre
os atores do SUS e impulsiona o aprofundamento de interdependências.

O elemento instituído pela NOAS que insere o planejamento como função


primordial no processo de regionalização da assistência, integrando-o ao processo
de territorialização, consiste no Plano Diretor de Regionalização:

PLANO DIRETOR DE REGIONALIZAÇÃO (PDR) –


instrumento de ordenamento do processo de regionalização
da assistência em cada estado e no Distrito Federal,
baseado nos objetivos de definição de prioridades de

163
intervenção coerentes com as necessidades de saúde da
população e da garantia de acesso dos cidadãos a todos os
níveis de atenção.

O PDR fundamenta-se na conformação de sistemas


funcionais e resolutivos na assistência à saúde, por meio da
organização dos territórios estaduais em
regiões/microrregiões e módulos assistenciais; da
conformação de redes hierarquizadas de serviços; do
estabelecimento de mecanismos e fluxos de referência e
contra-referência intermunicipais, objetivando garantir a
integralidade da assistência e o acesso da população aos
serviços de saúde de acordo com suas necessidades
(BRASIL, 2002, p. 9).

Desta forma, o PDR torna-se o instrumento através do qual é pensada,


definida, elaborada, implantada, monitorada e avaliada toda estratégia de
regionalização em cada estado, em torno da qual estarão sendo alocados os
recursos para o financiamento da saúde no país. Uma vez que a definição da
configuração territorial é construída com base nas diretrizes e estratégias definidas
no PDR, este adquire um status estratégico no interior do processo de
regionalização, pois para este converge uma série de informações e análises que
irão orientar a ação dos atores no interior do sistema visando um quadro futuro
almejado de organização da assistência.

Sendo assim, o PDR, pela definição da NOAS, torna-se o centro das


atenções no movimento de regionalização da saúde, na medida em que os atores
estarão posicionados de forma a articular seus interesses no processo de
elaboração, implantação, monitoramento e avaliação deste.

164
Articulados em torno do PDR, dois aspectos verificados no texto da NOAS
acima apresentado, demandam ênfase devido à sua relevância para o sucesso da
regionalização como estratégia visando o cumprimento dos princípios do SUS.

O primeiro consiste na deliberação de ordenar o processo de regionalização


o que resulta na necessidade de instituir instâncias que possam conduzir, dentro
dos parâmetros decisórios do SUS, o processo por meio de certa unificação das
atividades relativas ao PDR. Este ordenamento, ainda segundo o texto da NOAS,
visa garantir que a configuração desenvolvida mediante a territorialização das
bases municipais de provisão de serviços tenha efetividade (‘garantia de acesso
dos cidadãos a todos os níveis de atenção’), o que implicará na composição de
um pacto de compromisso como elemento imprescindível no sucesso da
estratégia de regionalização da saúde. Logo, a decisão de ordenar as atividades
do processo de regionalização visa gerar condições para que as instâncias que
conduzem o PDR sejam também as responsáveis por comandar o pacto de
compromisso, uma vez que, de acordo com o desenho do processo de
planejamento, estas instâncias são as que detêm as condições monitorar o
desenvolvimento da regionalização.

O segundo aspecto a ser ressaltado no texto da NOAS reside na


concepção do PDR como um instrumento voltado para a ampliação da
racionalidade sistêmica (‘configuração de sistemas funcionais’), na medida em que
o processo de planejamento deve ser orientado de forma a desenvolver uma
distribuição assistencial fundamentada na eficiência microeconômica. A obtenção
de racionalidade sistêmica demanda domínio amplo de informações sobre a
distribuição de recursos ao longo da configuração territorial das bases de provisão
e extrema capacidade de análise dessas informações para redimensionar o
emprego dos recursos de acordo com as prioridades verificadas. Novamente
verifica-se a necessidade da presença de instâncias capazes de materializar este
aspecto do PDR tido como fundamental pela NOAS. A busca pela ampliação da
racionalidade sistêmica redimensiona a programação da assistência e confere
novo status a Programação Pactuada e Integrada – PPI.

165
Sendo assim, devido à relevância que assume tanto o PDR quanto os
aspectos a ele estreitamente relacionados – pacto de compromisso e
racionalidade sistêmica - no processo de planejamento da regionalização da
saúde sob a NOAS, cabe entender como este é construído para em seguida
analisar como os dois aspectos se articulam na estratégia de planejamento da
NOAS. Por meio dessas análises mostra-se como o processo de planejamento
aprofunda interdependências entre os atores envolvidos.

De acordo as disposições da NOAS, o PDR consiste num processo de


elaboração conjunta que envolve prioritariamente, de forma direta e constante, o
intercâmbio técnico e político dos municípios com a esfera estadual:

Cabe às Secretarias de Saúde dos Estados e do Distrito


Federal a elaboração do PDR, em consonância com o Plano
Estadual de Saúde, que deverá contemplar a uma lógica de
planejamento que envolva os municípios na definição de
espaços regionais/microrregionais de assistência à saúde,
dos fluxos de referência, bem como dos investimentos para a
conformação de sistemas de saúde resolutivos e funcionais.

O PDR deve contemplar a perspectiva de redistribuição


geográfica de recursos tecnológicos e humanos, explicitando
o desenho futuro e desejado da regionalização estadual,
prevendo os investimentos necessários para a conformação
destas novas regiões/microrregiões e módulos assistenciais,
observando assim a diretriz de possibilitar o acesso do
cidadão a todas as ações e serviços necessários para a
resolução de seus problemas de saúde, o mais próximo
possível de sua residência (BRASIL, 2002, p. 11).

166
Assim, a instituição das secretarias da saúde dos estados e do Distrito
Federal como instâncias de condução do PDR impulsiona a alteração do padrão
de relacionamento entre as três esferas de governo, o que origina uma
configuração extremamente inovadora em termos de relações
intergovernamentais no processo de construção do SUS. A partir da NOB 01/93,
com a criação do sistema de habilitação municipal envolvendo transferências
diretas aos municípios, desenvolveu-se um padrão de relações
intergovernamentais com ênfase no intercâmbio direto entre a esfera federal e a
municipal. Este padrão consolidou-se como parte do processo de descentralização
do SUS durante toda a década de noventa. Embora a NOB 01/96, ao instituir a
Programação Pactuada e Integrada, tenha contribuído para impulsionar o papel do
gestor estadual como coordenador do processo de referenciamento da assistência
intermunicipal, não foi o suficiente para sobrepor o padrão vigente.

Portanto, a forma de condução do processo de planejamento adotada pela


NOAS, via convergência estadual do PDR, insere os estados e o Distrito Federal
como atores primordiais no aperfeiçoamento da performance do SUS, na medida
em que o PDR consiste no instrumento-base para o desenvolvimento de um
sistema que garanta o acesso universal, eqüitativo e integral.

Torna-se importante ressaltar que este processo não configura uma


exclusividade decisória dos rumos da regionalização sistema na esfera estadual,
uma vez que o formato institucional do SUS prevê instâncias de decisão
compartilhada como a CIB, que impede que o gestor estadual tome decisões sem
a legitimação mínimas dos municípios, e a CIT, que insere as três esferas no
processo decisório conjunto. A própria NOAS enfatiza o caráter compartilhado e
democrático do processo decisório sob o SUS, ao fixar o fluxo de tramitação do
PDR desde sua elaboração até o a homologação:

167
Figura 2 – Fluxo de Tramitação do Plano Diretor de Regionalização

ESFERA ESTADUAL ESFERA FEDERAL

CONSELHO ESTADUAL DE
SAÚDE MINISTÉRIO DA SAÚDE
Secretaria de Secretaria de
 Apreciação e deliberação Assistência à Políticas de
Saúde Saúde

 Análise de conteúdo e
viabilidade

COMISSÃO INTERGESTORA
BIPARTITE
 Análise e aprovação
COMISSÃO INTERGESTORA
TRIPARTITE
 Encaminhamento inicial ao MS;
 Deliberação e homologação após
análise do MS;
SECRETARIA DE SAÚDE (SES)  Em caso de necessidade de
alteração do PDR, encaminhamento à
 Elaboração conjunta com SES para reinício do fluxo.
os municípios

Fonte: elaboração própria.

No entanto, o desenvolvimento da regionalização envolve uma série de


tarefas complexas relativas à definição de toda uma estratégia de ampliação da
capacidade de gestão do SUS que devem estar definidas no PDR, uma vez que
este abrange todas as táticas e atividades de planejamento instituídas pela NOAS.
Assim, todo o processo de planejamento, que envolve fluxos de informações, de
consulta técnica, de processo de decisório, de relações políticas, de legitimação,
entre outras, converge para as arenas do sistema estadual de saúde fortalecendo
suas instâncias de gestão e de decisão compartilhada.

Este movimento de planejamento conjunto entre o estado e os municípios


impulsiona a formação direta de vínculos e intercâmbio de recursos que, com a

168
implantação e consolidação do processo de regionalização da saúde, aprofunda e
confere estabilidade às relações de interdependência que se formam no interior
desse processo. Esta dinâmica apresenta-se como um elemento essencial no
processo de aprofundamento da interdependência que precede a formação de
redes, uma vez que confere sentido e gera parâmetros de regulação do
intercâmbio de recursos:

Because of their sustainable interactions, actors create


patterns of interactions and perceptions as well as networks
structures, i.e. rules and resources. Rules emerge during
interactions and may be formal or informal (consciously
created) or informal (produced together during the course of
interaction). Rules, as fixed and generalizable procedures,
can provide actors with an anchor in relations to questions
such as who belongs in the network, what is the position of
certain actors, what is the identity of different actors, and also
what is regarded as a qualitative good product.

While network rules constitute interaction and meanings in


networks, in a longer-term perspective, they are also formed
and sustained by, and changed through these interactions
(KOPPENJAN e KLIJN, 2004, p. 72).

Desta forma, as relações estimuladas pelo processo de planejamento da


regionalização, via PDR, impulsionam a formação e o aprofundamento da
interdependência entre a esfera estadual e a municipal como relação
predominante dentro do novo formato de relações intergovernamentais instituído
pela NOAS. Esta ação conjunta de planejamento envolve a composição de uma
série de atividades cujos resultados produzem impacto sobre os mais variados
aspectos da gestão do SUS, como pode ser visualizado na Tabela 12. Uma vez
que, de acordo com os critérios estabelecidos por esta norma, o desenvolvimento

169
do PDR constitui um dos requisitos obrigatórios para habilitação dos estados em
qualquer uma das duas modalidades estabelecidas (Gestão Avançada ou Plena
do Sistema Estadual), esta relação de interdependência e o padrão que a sustenta
tendem a adquirir maior consistência.

Tabela 14 – Atividades Conjuntas entre Municípios e a Esfera Estadual na


Regionalização
Atividades de Planeja mento e Gerência Conjuntos Necessários à
Composição e Operacionalização do PDR

 Descrição da organização do território estadual em regiões/microrregiões


de saúde e módulos assistenciais, com a identificação dos muncípios-
sede e municípios pólo e dos demais municípios abrangidos;
 Definição do cronograma de implantação do PDR;
 A identificação das prioridades de intervenção em cada
região/microrregião;
 Elaboração do Plano Diretor de Investimentos contendo a descrição por
região/microrregião dos investimentos necessários para atender as
prioridades identificadas e conformar um sistema resolutivo e funcional de
atenção à saúde, preferencialmente identificando cronograma e fontes de
recursos;
 Definição da inserção e do papel de todos os municípios nas
regiões/microrregiões de saúde, com identificação dos municípios sede,
de sua área de abrangência e dos fluxos de referência;
 Desenvolvimento dos mecanismos de relacionamento intermunicipal com
organização de fluxos de referência e contra referência e implantação de
estratégias de regulação visando à garantia do acesso da população aos
serviços;
 Elaboração de proposta de estruturação de redes de referência
especializada em áreas específicas;
 Identificação das necessidades e formulação de proposta de fluxo de
referência para outros estados, no caso de serviços não disponíveis no
território estadual;
Fonte: elaboração própria com base no Anexo 6 da NOAS.

Esta sistemática de planejamento conjunto que envolve não só aspectos


relativos à dinâmica atual da gestão do sistema, mas fundamentalmente à
projeção de uma futura configuração sistêmica desejável, não consiste num

170
processo a ser desempenhado apenas para a elaboração do PDR. Uma vez que o
processo de qualificação das regiões/microrregiões, que segue o mesmo trâmite
do PDR, tem como base a configuração efetivada na versão deste homologada
pela CIT, as relações de interdependência entre estado e municípios no padrão
estabelecido pela NOAS tendem a adquirir maior estabilidade com a
regionalização.

Da mesma forma, na medida em que a regionalização é concebida como


um processo dinâmico que visa conformar sistemas funcionais e garantir o acesso
universal, eqüitativo e integral, as interações do planejamento com a
programação e a garantia da assistência consistem nos eixos fundamentais
instituídos pela NOAS na ação transformadora da realidade sanitária. Como já
abordado acima, estes dois eixos se articulam em torno do PDR, aprofundando as
relações de interdependência entre o estado e os municípios, e resultando na
instituição de uma estratégia de racionalidade sistêmica e de um pacto de
compromisso. Cabe analisar separadamente em que consiste cada um e com
estes aprofundam interdependências.

A instituição do PDR como um instrumento de convergência do processo de


regionalização envolve ampliação do conhecimento da distribuição dos recursos,
ou seja, da configuração das bases de provisão de serviços e de sua alocação
tendo em vista o grau de necessidade de redistribuição em resposta as
prioridades identificadas. A concepção da regionalização como um processo que
visa ‘conformar sistemas funcionais de saúde’ e ‘otimizar os recursos disponíveis’
de acordo com as ‘prioridades de intervenção’ apresenta-se claramente como uma
estratégia orientada pela eficiência microeconômica, visando alocar e redistribuir
recursos para obter um nível desejado de racionalidade sistêmica.

Além do Plano Diretor de Investimentos (que envolve a análises de


capacidade instalada, a identificação de prioridades de intervenção, etc.) e das
atividades que sustentam o zoneamento territorial que resulta nas
regiões/microrregiões de saúde (distribuição espacial da oferta entre municípios,
análises epidemiológicas, demográficas, sanitárias, etc.), a programação da

171
assistência via PPI e as atividades de controle, regulação e avaliação consistem
nos processos fundamentais na obtenção de racionalidade sistêmica.

Como afirmado acima, a obtenção de racionalidade sistêmica demanda


domínio amplo de informações sobre a distribuição de recursos ao longo da
configuração territorial das bases de provisão e conhecimento apurado da
realidade sanitária, visando orientar a oferta de acordo com a demanda por meio
do planejamento estratégico voltado estritamente para redimensionar o emprego
dos recursos de acordo com as prioridades verificadas. Na medida em que este
processo deve ser sustentado por bases organizacionais de planejamento, por
demandar capacidade de coleta e processamento de dados para geração de
informações e análises, torna-se essencial a presença de instâncias capazes de
sustentar este processo. A NOAS, replicando a forma de condução do processo
de planejamento via convergência estadual do PDR, instituiu a preponderância da
esfera estadual como base organizacional de sustentação das atividades voltadas
para a obtenção de racionalidade sistêmica:

Cabe a SES a coordenação da programação pactuada e


integrada no âmbito do estado, por meio do estabelecimento
de processos e métodos que assegurem:

a) que as diretrizes, objetivos e prioridades da política


estadual de saúde e os parâmetros de programação,
em sintonia com a Agenda de Saúde e Metas
Nacionais, sejam discutidos no âmbito da CIB com os
gestores municipais, aprovados pelos Conselhos
Estaduais e implementados em fóruns regionais e/ou
microrregionais de negociação entre gestores;

b) a alocação de recursos centrada em uma lógica de


atendimento às reais necessidades da população e

172
jamais orientada pelos interesses dos prestadores de
serviços;

c) a operacionalização do Plano Diretor de Regionalização


e de estratégias de regulação do sistema, mediante a
adequação dos critérios e instrumentos de alocação e
pactuação dos recursos assistenciais e a adoção de
mecanismos que visem a regular a oferta e a demanda
de serviços, a organizar os fluxos e a garantir o acesso
às referências (BRASIL, 2002, p. 21).

Dessa forma, a instituição da estratégia de regionalização, buscando


‘conformar sistemas funcionais de saúde’ orientada pela eficiência
microeconômica, redimensionou o processo de programação da assistência e
conferiu novo status a Programação Pactuada e Integrada - PPI. A PPI consiste
num instrumento instituído pela NOB 01/96 voltado para a negociação
intermunicipal onde os gestores de municípios com oferta excedente de serviços
oferecem a possibilidade de utilização desta para os municípios com escassez,
em troca do remanejamento de recursos ao teto financeiro destes municípios feito
pelo gestor estadual.

Como já afirmado no Capítulo 1, a PPI estabeleceu as bases materiais para


o aprofundamento das interdependências municipais como alicerce do
aperfeiçoamento da performance gerencial do SUS, uma vez que o intercâmbio de
recursos impulsiona o processo de interação entre os gestores de diversos
municípios ampliando a universalidade, a equidade e a integralidade do sistema.
Dessa forma a PPI permite coordenar as referências intermunicipais em busca de
maior racionalidade sistêmica, uma vez que cada município elabora sua
programação contendo os fluxos pactuados tanto de recebimento quanto de
encaminhamento, os quais após aprovação pelos Conselhos Municipais de
Saúde, são integrados pelo gestor estadual incorporando as referências sob sua
gestão direta para posterior aprovação na CIB e homologação no CES.

173
A instituição do PDR como núcleo do processo de regionalização
redimensiona a relevância da PPI uma vez que essa constitui um instrumento
central na compatibilização entre demanda e oferta, na alocação investimentos e
na regulação dos sistemas de referências intermunicipais. Sendo que o
planejamento apresenta-se como a função primordial na visão da NOAS, onde o
PDR é o instrumento que ordena o processo de regionalização, o diálogo
constante com a PPI amplia a capacidade de materialização das projeções
constantes do PDR. Da mesma forma, a PPI deixa de ser apenas um instrumento
de compatibilização de referências intermunicipais e adquire um status de meio
pelo qual a regionalização é operacionalizada, monitorada e avaliada.

Na definição da NOAS, a PPI torna-se tanto uma fonte essencial de


informações para o conhecimento dos atuais fluxos de referências intermunicipais
e mecanismos de intercâmbio de recursos para elaboração do PDR, quanto um
instrumento de operacionalização das projeções desenvolvidas para a
configuração das regiões/microrregiões que conformam o PDR. Portanto, o
diálogo constante entre os instrumentos de planejamento e operacionalização
consiste na estratégia central em busca da obtenção de racionalidade sistêmica,
onde a lógica da eficiência microeconômica orienta a alocação de recursos:

A Programação Pactuada e Integrada, aprovada pela


Comissão Intergestores Bipartite, deverá nortear a alocação
de recursos federais da assistência entre municípios pelo
gestor estadual, resultando na definição de limites financeiros
para todos os municípios do estado, independente de sua
condição de habilitação (BRASIL, 2002, p. 21).

Esta lógica de orientação pela racionalidade sistêmica redimensiona


também as atividades de controle, regulação e avaliação, uma vez que a
instauração do planejamento como a função primordial no desenvolvimento da
estratégia de regionalização da saúde confere ênfase a estas atividades:

174
As funções de controle, regulação e avaliação devem ser
coerentes com os processos de planejamento, programação
e alocação de recursos em saúde tendo em vista sua
importância para a revisão de prioridades e contribuindo para
o alcance de melhores resultados em termos de impacto na
saúde da população.

As funções de Controle, Regulação e Avaliação são definidas


conforme as pactuações efetuadas pelos três níveis de
governo (BRASIL, 2002, p. 24).

Embora a NOAS ressalte a autonomia das esferas de governo na


construção de instrumentos próprios de controle, regulação e avaliação definidas
de forma conjunta, a preponderância do processo de planejamento no interior da
estratégia da NOAS confere maior capacidade ao gestor estadual na performance
dessas funções, na medida em que as demais esferas, principalmente os
municípios, ao desenvolver suas atividades, terão de ampliar as
interdependências com o gestor estadual para compatibilizar os planos de
controle, regulação e avaliação com as diretrizes estabelecidas no PDR e na PPI.
Dessa forma, a esfera estadual ao ser instituída pela NOAS como coordenadora
do processo de regionalização, por concentrar as atividades relativas ao PDR,
adquire papel fundamental no desempenho das funções de controle, regulação e
avaliação no interior do SUS.

Sendo assim, o desenvolvimento de uma lógica de racionalidade sistêmica


como fundamento intrínseco ao processo de planejamento motiva a emergência
de estratégias e mecanismos que estimulam a interdependência entre os gestores
estadual e os gestores municipais. Este fluxo de interdependência ratifica o padrão
motivado pela forma de planejamento da regionalização tanto pelo fato de que as
atividades de controle, regulação e avaliação se desenvolvem a partir do processo

175
de planejamento, centralizado no PDR, quanto pela instituição da SES como
instância única que compõe as bases organizacionais de coordenação da PPI.

A ação dos instrumentos e atividades relativas à busca pela racionalidade


sistêmica visa ampliar a capacidade e a velocidade de transformação pretendida
pela estratégia de regionalização, concebida como um processo dinâmico que visa
conformar sistemas funcionais de saúde e garantir o acesso universal, eqüitativo e
integral. Neste sentido, a configuração territorial das bases de provisão de
serviços, desenvolvida na elaboração do PDR, incorpora certa racionalidade
sistêmica e torna o planejamento o motor da transformação.

No entanto, o formato institucional sob o qual se estrutura o SUS, como


visto no Capítulo 1, pressupõe que qualquer decisão tomada no interior do sistema
tenha amplo suporte político, uma vez que o processo decisório é compartilhado
entre as esferas e permeabilizado pela Sociedade Civil. Da mesma maneira, visto
que a estratégia assistencial da regionalização se constrói sobre a articulação
intermunicipal das bases de provisão de serviços, a necessidade de suporte
político é ainda maior, uma vez que os municípios são entes autônomos não
estando sob a autoridade hierárquica das demais esferas.

Nesse sentido, para garantir que a configuração desenvolvida mediante a


territorialização das bases municipais de provisão de serviços tenha efetividade,
ou seja, para assegurar que o processo de planejamento expresso no PDR,
desenvolvido mediante a ação conjunta dos atores, ganhe expressão real e
materialize os princípios de universalidade, equidade e integralidade, torna-se
necessária à composição de um pacto de compromisso como elemento
imprescindível no sucesso da estratégia de regionalização da saúde.

Esse processo de concretização do planejamento expresso no PDR exige


que as regiões/microrregiões estabelecidas sejam qualificadas nas instâncias
estaduais e federais, no mesmo trâmite do PDR (Figura 2), o que significa atestar
que estão desenvolvidos os instrumentos gerenciais necessários à
operacionalização do processo de regionalização da saúde:

176
A qualificação compreende o reconhecimento formal da
constituição das regiões/microrregiões, da organização dos
sistemas funcionais de assistência à saúde e do
compromisso firmado entre o estado e os municípios
componentes dos módulos assistenciais, para a garantia do
acesso de toda a população residente nestes espaços
territoriais a um conjunto de ações e serviços
correspondentes ao nível da assistência à saúde relativo ao
M1, acrescido de um conjunto de serviços com complexidade
acima do módulo assistencial, de acordo com o definido no
PDR (BRASIL, 2002, p. 14).

Dessa forma, a NOAS institui como condição para que haja o


reconhecimento das instâncias competentes, e a conseqüente alocação federal do
financiamento de cada módulo assistencial, a instauração de um pacto de
compromisso entre a esfera estadual na figura da SES e os municípios-sede e
pólo de cada região/microrregião a ser qualificada. Este pacto de compromisso
envolve o estabelecimento de um instrumento jurídico chamado Termo de
Compromisso para a Garantia de Acesso cujo objeto consiste em assegurar
que as bases de serviços forneçam atendimento aos fluxos de referência
projetados para aquele município. Da mesma forma, estão previstos nesse termo
uma série de obrigações mútuas que envolvem o trabalho conjunto para que os
mecanismos a instrumentos desenvolvidos para obter racionalidade sistêmica
tenham efetividade, como mostra a Tabela 15.

177
Tabela 15 – Compromissos Entre os Gestores Estadual e Municipal previstos
pela NOAS
Compromissos do Gestor Estadual com o Municipal (Município-sede e/ou
pólo)

 Apoiar a SMS a implementar estratégias e instrumentos que facilitem o


acesso da população referenciada aos serviços localizados no município.
 Revisar e realizar ajustes na programação físico-financeira das referências,
de forma a assegurar o acesso da população a todos os níveis de atenção,
de acordo com a periodicidade e critérios estabelecidos;
 Acompanhar as referências intermunicipais, inclusive por meio de auditoria
do sistema municipal;
 Nos casos de constatação de existência de barreiras de acesso ou
tratamento discriminatório aos residentes em outros municípios, suprimir a
parcela do limite financeiro do município relativa às referências
intermunicipais;
 Comunicar ao MS o valor do limite financeiro da assistência do município,
explicitando o montante relativo à população própria e à população
referenciada - conforme definido na PPI - bem como quaisquer alterações,
seja na parcela da população própria quanto na parcela de referência
decorrente de revisões, ajustes ou sanções previstos no Termo de
Compromisso de Garantia de Acesso.

Compromissos do Gestor Municipal (Município-sede e/ou pólo) com o


Estadual

 Disponibilizar os serviços constantes, em relatório específico da PPI, à


população referenciada por outros municípios, sem discriminação de
acesso e de qualidade do atendimento prestado (escolha do prestador,
forma de pagamento ou valores diferenciados de acordo com a
procedência, etc.);
 Organizar no município o acesso dos usuários às ações e serviços de
referência;
 Prever nos contratos dos prestadores e na programação físico-financeira
dos estabelecimentos de saúde situados em seu território, a realização dos
atendimentos à população de outros municípios;
 Exercer as ações de controle e avaliação, de auditoria e outras
relacionadas
à garantia de qualidade dos serviços ofertados em seu território;
 Alimentar regularmente o SIA/SUS e o SIH/SUS, bem como organizar
internamente as informações relativas aos atendimentos prestados à
população residente em outros municípios, de forma a facilitar as revisões
dos acordos de referências intermunicipais;

178
 Encaminhar trimestralmente a SES relatório contendo informações mensais
sobre os atendimentos prestados às referências intermunicipais,
discriminando natureza e quantidade de procedimentos, origem do
paciente, valores pagos, e outras questões que forem estabelecidas no
Termo de Compromisso de Garantia de Acesso.

Fonte: elaboração própria com base no Anexo 4 da NOAS.

Desta forma, o pacto de compromisso estabelecido jurídica e politicamente


entre o gestor estadual e o municipal visa tanto garantir a configuração regional da
assistência intermunicipal quanto reforçar a estratégia de obtenção de
racionalidade sistêmica, mediante a obrigação mútua de operacionalizar os
mecanismos desenvolvidos para tal. É evidente que as instâncias que coordenam
o processo de planejamento da regionalização são as que detêm as melhores
condições para monitorar e garantir o desenvolvimento desta. Este processo
intensifica a relação de interdependência direta da esfera estadual com os
municípios, uma vez que a NOAS, ao instituir a SES como instância
organizacional responsável tanto pela coordenação do PDR como da PPI e das
atividades de controle, regulação e avaliação, optou também por estabelecer a
esfera estadual como responsável por comandar o pacto de compromisso:

O Ministério da Saúde assume de forma solidária com as


Secretarias de Saúde dos estados e do Distrito Federal, a
responsabilidade pelo atendimento a pacientes referenciados
entre estados.

A garantia de acesso da população aos serviços disponíveis


em seu município de residência é de responsabilidade do
gestor estadual, de forma solidária com os municípios de
referência, observados os limites financeiros, devendo o

179
mesmo organizar o sistema de referência utilizando
mecanismos e instrumentos necessários, compatíveis com a
condição de gestão do município onde os serviços estiverem
localizados (BRASIL, 2002, p. 23).

Desta forma, o pacto de compromisso tem no gestor estadual o ator


preponderante, uma vez que a NOAS o institui como ordenador do processo de
regionalização, sendo que suas atribuições envolvem desde a elaboração do PDR
até a responsabilidade pela garantia do acesso projetado.

Uma vez que a NOAS insere a esfera estadual como responsável pela
condução do aprofundamento das interdependências municipais previstas no
processo de territorialização das bases de provisão de serviços, também lhe são
assegurados os meios financeiros para coordenar tal processo e dar suporte ao
gestor estadual na condução do pacto de compromisso. A qualificação de cada
região/microrregião resulta na alocação do financiamento federal para assegurar a
sustentação econômica dos módulos assistenciais, que são a base da estratégia
de regionalização na garantia da média complexidade:

Após a homologação na CIT do processo de qualificação de


uma microrregião, o montante de recursos correspondente
ao financiamento dos procedimentos [...] destinados à
cobertura da população do município-sede de módulo,
acrescido do montante de recursos referentes à cobertura da
população residente nos municípios a ele adscritos, passam
a ser transferidos por uma das duas formas: (i) fundo a fundo
ao estado habilitado quando o município-sede de módulo for
habilitado em GPAB-A; (ii) fundo a fundo ao município-sede
de cada módulo assistencial quando este for habilitado em
GESTÃO PLENA DO SISTEMA MUNICIPAL de acordo com
a Norma Operacional da Assistência `a Saúde, sendo que,

180
neste caso, a parcela relativa à população residente nos
municípios adscritos estará condicionada ao cumprimento do
Termo de Compromisso para a Garantia de Acesso [...]
(BRASIL, 2002, p. 23).

Sendo assim, direta ou indiretamente, dependendo da modalidade de


habilitação do município-sede ou município-pólo, o formato de condução do pacto
de compromisso adotado pela NOAS assegura ao gestor estadual os meio de
garantia da materialização da configuração territorial de referências
intermunicipais desenvolvida no PDR.

De uma forma mais ampla, o pacto de compromisso envolve ainda uma


série de etapas necessárias ao desenvolvimento da estratégia de regionalização
como um processo de planejamento conjunto entre as esferas estadual e
municipal. Estas etapas exigem constantes envolvimentos entre os gestores de
ambos os lados visando a obtenção de convergência em torno de uma série de
aspectos relativos à futura configuração da atenção á saúde desde a análise de
informações até a avaliação das atividades resultantes da operacionalização do
PDR. Uma vez que estas etapas devem ser executadas de forma conjunta entre o
gestor estadual e os municipais, a Comissão Intergestores Bipartite torna-se a
principal arena não só para a concretização do processo de regionalização, mas
também na decisão de qual será o formato desta regionalização. Todas as
atividades relativas à concepção e elaboração do PDR, que definem os
parâmetros e estratégias de desenvolvimento da regionalização, apresentadas na
Tabela 16 são produto da pactação entre as esferas estadual e municipal no
interior da CIB. Além destas podem ser visualizadas uma série de outras decisões
importantes que são igualmente decisivas para o sucesso da regionalização como
estratégia de obtenção dos princípios de universalidade, equidade e integralidade,
as quais estão listadas na Tabela 16 abaixo:

181
Tabela 16– Decisões Relevantes que Exigem a Pactação na CIB
Item da
Atividades Negociadas na CIB
NOAS
Análise a aprovação das solicitações referentes à habilitação dos
municípios em Gestão Plena da Atenção Básica Ampliada – GPAB-
7.5
A e Gestão Plena do Sistema Municipal – GPSM, nos termos da
NOAS (condição prévia para a operacionalização do PDR);
Análise e aprovação das solicitações de qualificação das
regiões/microrregiões, envolvendo: a comprovação dos municípios-
sede da capacidade de ofertar os serviços fixados pela NOAS (1º 13.1 e
nível de referência da média complexidade) para a população Anexo 7
própria e dos demais municípios adjacentes, e dos municípios-pólo
de ofertar serviços adicionais além dos fixados pela NOAS;
Análise e aprovação dos mecanismos de regulação da garantia de
acesso da população aos serviços de referência intermunicipal
Anexo 7
(condição prévia para aprovação do CES e da CIT da qualificação
das regiões/microrregiões);
Análise e aprovação da PPI estadual, com definição dos limites 33 e Anexo
financeiros para todos os municípios do estado; 7

Análise e aprovação das alterações necessárias na alocação das


38
parcelas do financiamento relativo às referências intermunicipais;

Análise e Aprovação do cronograma de ajuste do comando único


25,2
sobre prestadores de serviços;
Fonte: elaboração própria.

Dessa forma, as principais questões relacionadas diretamente ao sucesso


da regionalização como estratégia de aperfeiçoamento da performance do SUS
são definidas em etapas de negociação sucessivas no interior da CIB. As decisões
resultantes envolvem questões relativas a todas as etapas do ciclo tradicional de
produção de políticas públicas, desde a elaboração até a avaliação e alteração
dos parâmetros e atividades desenvolvidas na operacionalização do processo de
regionalização.

Sendo assim, uma vez que a CIB apresenta-se, no formato de


planejamento instituído pela NOAS, como a principal arena de convergência das
forças políticas de suporte à estratégia de regionalização da atenção à saúde,
torna-se também a arena na qual se desenvolvem as principais as estratégias e

182
coalizões políticas que determinam e moldam o formato possível da
regionalização.

Portanto, da mesma forma que o processo de planejamento via PDR e a


coordenação das estratégias de racionalidade sistêmica, a instituição do gestor
estadual como condutor do pacto de compromisso, por meio do Termo de
Compromisso de Garantia de Acesso e das negociações políticas na CIB,
fomentam e reforçam uma relação de interdependência direta entre as esferas
estadual e municipal. Assim, na medida em que os atores municipais desenvolvem
estratégias de afirmação de seus interesses, e coalizões para suportar tais
estratégias, consolidam um padrão de governança onde as instâncias estaduais
são preponderantes.

Sendo assim, o pacto de compromisso, como componente essencial na


garantia de materialização das estratégias e planos de regionalização de acordo
com o formato escolhido pela NOAS, estreitam os vínculos entre os atores
municipais e a esfera estadual, visando garantir a interdependência assistencial
entre os municípios.

183
Capítulo 5 – Analisando a Estratégia de Regionalização da NOAS: qual o
padrão de governança?

Torna-se indispensável, a esta altura do texto, sintetizar a exposição


conduzida na seção 4.2, referente às estratégias e mecanismos estabelecidos
pela NOAS visando aprofundar a interdependência entre os municípios com o
objetivo de garantir a materialização dos princípios da integralidade e equidade de
acesso. Esta síntese propicia as bases para se proceder à análise do padrão de
interdependência promovido pela NOAS à luz do referencial desenvolvido no
Capítulo 2.

Como já afirmado, a estratégia de regionalização iniciada oficialmente a


partir de 2001, com a edição da NOAS, assume como elemento fundamental para
obtenção dos princípios de equidade e integralidade a ampliação do grau de
integração entre as bases municipais de serviços de saúde. Este processo de
construção da integralidade e da equidade somente torna-se possível mediante a
construção de estratégias de promoção da interdependência municipal. A seção 2
demonstrou que a NOAS impulsiona este aprofundamento por meio de dois
grandes eixos que são os processos de territorialização e de planejamento da
atenção à saúde, contendo estes os elementos essenciais para se compreender
qual o padrão de interdependência municipal fomentado pela estratégia de
regionalização da atenção à saúde. Assim, como demonstrado, o padrão de
interdependência impulsionado pela NOAS será estruturado por fluxos de relações
motivados essencialmente pelos processos de territorialização e planejamento da
atenção, ou seja, no decorrer do processo de implementação da norma, as
relações desencadeadas irão adquirir certo padrão de estabilidade conformando
um formato de interdependência específico.

O processo de territorialização da atenção`a saúde consiste na delimitação


das unidades fundamentais de referenciamento, que são as regiões/ microrregiões
de saúde e os módulos assistenciais, a partir das quais serão estruturadas as
funções relativas ao conjunto da atenção à saúde envolvendo a organização e
gestão do sistema, a alocação de recursos e a articulação das bases de provisão

184
de serviços por meio de fluxos de referência intermunicipais. Assim, a
territorialização, como processo de delineamento da configuração espacial da
interação entre atores, organizações e recursos, consiste no movimento que fixa
as linhas e vínculos de estruturação do campo relacional subjacente à dinâmica da
realidade sanitária do SUS a nível local.

Este processo é de extrema relevância teórica, uma vez que define quais
são as bases de atores, organizações e recursos que formam a rede como
unidade de análise, ou seja, delimita o cluster que terá suas relações de
interdependência aprofundadas. A territorialização envolve três estratégias
principais de aprofundamento das interdependências municipais, que consistem
no estabelecimento da região de saúde como unidade mínima de organização da
atenção da saúde, na lógica de estruturação assistencial e na definição de um
conjunto de processos gerenciais de construção da regionalização da saúde.

O estabelecimento da região de saúde como unidade referencial envolve a


definição desta como lócus privilegiado para a articulação dos atores,
organizações e recursos mediante fluxos intermunicipais de referenciamento de
serviços, informações e relações produtivas no interior do SUS. Ou seja, consiste
numa estratégia de aprofundamento da interdependência entre os municípios que
a compõem, uma vez que tal delimitação toma como ponto de partida um conjunto
de critérios que demonstram a existência de fluxos relacionais de
interdependência que se manifestam por meio de várias dimensões da estrutura
social (o econômico, o político, o cultural, entre outros) subjacentes ao conjunto de
municípios componentes de uma região de saúde.

A lógica de estruturação assistencial de uma região/microrregião de saúde


impulsiona a intensificação da interdependência no interior destas, uma vez que
procura tornar tais unidades territoriais uma base de provisão caracterizada pela
garantia de acesso da população ao maior grau de integralidade possível de
acordo com a infra-estrutura disponível, intensificando o fluxo interno em
detrimento das referências externas. Esta lógica envolve o estabelecimento de
módulos assistenciais (município-sede) que buscam homogeneizar o acesso à

185
média complexidade dentro da região/ microrregião, na fixação de bases de
serviços especializadas (ou municípios-pólo), e na ampliação da capacidade de
integralidade na provisão de serviços mediante a obrigatoriedade de composição
ascendente de complexidade por unidade territorial agregada.

O desenvolvimento de processos gerenciais de consolidação da estratégia


de regionalização da atenção à saúde, envolvendo diversas estratégias para a
organização e transformação da distribuição espacial das bases de serviços e das
referências intermunicipais (Tabela 13), aprofunda a interdependência entre os
municípios na medida em que compõem um conjunto de atividades que terão de
ser desempenhadas por atores e organizações na consolidação da
região/microrregião como unidade de referência para a organização do SUS.

O processo de planejamento consiste no segundo eixo de composição da


regionalização, o qual, associado à territorialização, possibilita, na percepção da
NOAS, construir sistemas funcionais de saúde orientados por prioridades e
capazes de garantir o acesso universal, eqüitativo e integral por meio do emprego
eficiente de recursos. Na media em que a regionalização da saúde configura um
projeto de transformação da atual distribuição espacial das bases de serviços, o
planejamento consiste no processo por meio do qual esta mudança pode ser
materializada. Ou seja, na medida em que a atual distribuição assimétrica das
bases de serviços torna o processo de territorialização insuficiente na
materialização dos princípios de universalidade, equidade e integralidade, o
planejamento consiste no processo capaz de conferir um caráter dinâmico à
estratégia de regionalização da saúde. Portanto, como já afirmado, o
planejamento torna-se uma função que intensifica o fluxo de relações entre os
atores que compõem o sistema, na medida em que a visão da regionalização
como um processo dinâmico e transformador exige a ação conjunta constante em
torno do intercâmbio de informações e recursos, da construção de estratégias e da
reafirmação de compromissos, entre outros. O processo de planejamento, tal qual
concebido pela NOAS, envolve três aspectos principais no estabelecimento da
regionalização que são a concepção, implantação e monitoramento do Plano
Diretor de Regionalização – PDR, o desenvolvimento de uma estratégia de

186
obtenção de racionalidade sistêmica e o estabelecimento de um pacto de
compromisso.

O PDR constitui o instrumento por meio do qual é pensada, definida,


elaborada, implantada, monitorada e avaliada toda estratégia de regionalização
em cada estado. Uma vez que a definição da configuração territorial é construída
com base nas diretrizes e estratégias definidas no PDR, este adquire um status
estratégico no interior do processo de regionalização, uma vez que para este
converge uma série de informações e análises que irão orientar a ação dos atores
no interior do sistema visando um quadro futuro almejado de organização da
assistência. A NOAS define que todo este processo de construção do PDR
envolve o trabalho conjunto e o intercâmbio técnico e político direto entre os
municípios e a esfera estadual, sendo esta a responsável maior que concentra e
conduz todas as atividades.

O desenvolvimento de uma estratégia de racionalidade sistêmica


subjacente ao planejamento emerge como resultado da concepção da
regionalização como um processo que visa ‘conformar sistemas funcionais de
saúde’ e ‘otimizar os recursos disponíveis’ de acordo com as ‘prioridades de
intervenção’, conformando, assim, claramente uma estratégia orientada pela
eficiência microeconômica. A obtenção de racionalidade sistêmica envolve os
processos de desenvolvimento do Plano Diretor de Investimentos, as atividades
que sustentam o zoneamento territorial que resulta nas regiões/microrregiões de
saúde (distribuição espacial da oferta entre municípios, análises epidemiológicas,
demográficas, sanitárias, etc.), a programação da assistência via PPI e as
atividades de controle, regulação e avaliação. Uma vez que estas atividades e
processos estão relacionados ao PDR, a NOAS, replicando a forma de condução
do processo de planejamento via convergência estadual do PDR, instituiu a
preponderância da esfera estadual como base organizacional de desenvolvimento
da estratégia de obtenção de racionalidade sistêmica.

Finalmente, estabelecimento de um pacto de compromisso envolve a


construção de instrumentos e processos de pactação que possam garantir que a

187
configuração desenvolvida mediante a territorialização das bases municipais de
provisão de serviços e expressa no planejamento no PDR tenha efetividade e
possa materializar os princípios de universalidade, equidade e integralidade. Este
pacto de compromisso envolve o estabelecimento jurídico de um Termo de
Compromisso de Garantia de Acesso entre o gestor estadual e os gestores
municipais dos municípios-sede e pólo visando assegurar que estes forneçam o
acesso aos serviços de média complexidade aos municípios a eles adscritos, de
acordo com a configuração inscrita no PDR. Este termo contém ainda uma série
de compromissos mútuos que condicionam a transferência do financiamento
federal relativo às referências intermunicipais para os município-sede e pólo.
Como o gestor estadual conduz todo o processo de planejamento da
regionalização torna-se o ator mais capacitado para monitorar sua efetivação. Da
mesma forma, as etapas de maior relevância da regionalização convergem para
processos de pactação no interior da esfera estadual de gestão do SUS, mais
especificamente no âmbito da CIB, ratificando a inserção privilegiada do gestor
estadual no processo de regionalização da saúde.

Esta síntese permite compor um quadro-resumo que demonstra quais são


os processos empregados pela estratégia de regionalização da NOAS como
elementos que impulsionam o aprofundamento da interdependência municipal, e
que, portanto, devem ser tomados como base para se proceder à análise deste
padrão à luz do referencial desenvolvido no Capítulo 3. Retomando a Figura 2, e
ampliando-a de forma a detalhar os processos de territorialização e planejamento,
é possível obter um diagrama que resume a estratégia de regionalização da
NOAS e que apresenta os principais fundamentos regulatórios que impulsionam o
aprofundamento de um determinado padrão de interdependência entre os
municípios.

188
Figura 3 – Lógica Detalhada de Regionalização da NOAS

Processos-chave Estratégia Objetivos Almejados

TERRITORIALIZAÇÃO
• Definição da Região de
Saúde como referência
• Lógica de Estruturação
Assistencial
• Processos Gerenciais de
Suporte a Regionalização APROFUNDAMENTO
 UNIVERSALIDADE
DA
 EQUIDADE
PLANEJAMENTO INTERDEPENDÊNCIA
 INTEGRALIDADE
• Forma de coordenação do MUNICIPAL
 EFICIÊNCIA
PDR  RESOLUTIVIDADE
• Forma de coordenação das
Estratégias de
Racionalidade sistêmica
• Forma de condução do
Pacto de Compromisso

Fonte: elaboração própria com base na NOAS (BRASIL, 2002).

189
Cabe então proceder à analise do padrão de interdependência fomentado
pela NOAS de acordo com referencial produzido nos Capítulos 2 e 3. O primeiro
aspecto de relevância teórica consiste em determinar quais são as bases de
recursos, atores e organizações que delimitam a existência da rede como unidade
de análise de acordo com a literatura examinada.

De acordo com o exposto no Capítulo 3, as redes são definidas como


estruturas cuja coesão reflete a composição dos clusters de recursos subjacentes,
uma vez que estas são conceituadas como ‘structures of interdependency’
(O’TOOLE, 1997, p. 45), ‘stable relationships [based on] interdependent nature’
(BORZEL, 1998, p. 254), ‘more or less patterns of social relations between
mutually dependent actors which form themselves around policy problems or
clusters of resources’ (KLIJN, KOPPENJAN e TERMEER, 1995, p. 439), ‘network
structure is typified by [...] joint, strategically interdependent action’ (KEAST et al,
2004, p. 364). Portanto, as redes são delimitadas pelo grau de interdependência
fornecido pelo intercâmbio de recursos, sendo que a composição de clusters de
recursos fornece os limites estruturais de composição do campo de forças
produtivas e políticas da rede. Logo, onde há maior nível de interdependência
relacional emerge o espaço interorganizacional da rede.

Neste sentido, o conceito de região de saúde definido na NOAS consiste no


espaço interorganizacional cuja dinâmica social delimita uma estrutura de
interdependência que a diferencia das demais, e a torna uma base de
desenvolvimento de uma estrutura em rede. De acordo com o texto da NOAS, o
processo de definição de uma região de saúde busca a delimitação de um espaço
interorganizacional de maior densidade de intercâmbio relacional, uma vez que tal
delimitação toma como ponto de partida um conjunto de critérios que demonstram
a existência de fluxos de interdependência que se manifestam por meio de várias
dimensões da estrutura social (política, econômica, cultural, epidemiológica, de
atenção à saúde, etc) subjacentes ao conjunto de municípios componentes dessa
região. Logo, a região de saúde consiste na unidade teórica para fins de análise
do padrão de interdependência fomentado pela NOAS, ou seja, a busca pelo

190
aprofundamento da interdependência ocorre majoritariamente no interior da região
de saúde.

Portanto, uma vez que a região de saúde consiste no espaço


interorganizacional que apresenta um potencial para o desenvolvimento de uma
estrutura de rede (MANDELL e STEELMAN, 2003; KEAST, 2004), e que a NOAS,
como visto na seção 4.2, estabelece oficialmente uma estratégia de
aprofundamento da interdependência no interior das regiões de saúde, cabe
analisar se o padrão de interdependência fomentado pela NOAS converge para
um padrão de interdependência em rede. Sendo assim, visto que o referencial
desenvolvido no Capítulo 3 apresenta justamente os elementos extraídos da
literatura que caracterizam um padrão de interdependência em rede, cabe verificar
qual o formato de interdependência fomentado pela NOAS em cada um destes
elementos.

Como demonstrado a partir da análise da literatura de administração


pública no Capítulo 3, a rede consiste num fenômeno organizacional que, além
dos aspectos fundamentais como composição por atores autônomos,
interdependência e padrões estáveis de relacionamento, desenvolve uma
institucionalidade voltada especificamente para o aprofundamento da
interdependência existente. Uma região de saúde, de acordo com a definição da
NOAS apresenta as características básicas que a definem como uma rede em
potencial, uma vez que é composta por atores autônomos (municípios e demais
atores da Sociedade Civil e do Mercado), que mantém relações de
interdependência de recursos (referenciamento intermunicipal no interior do SUS,
e demais intercâmbios econômicos, sociais, políticos, etc) com certa estabilidade.
Uma vez que determinado conjunto de municípios adjacentes são definidos como
sendo uma região de saúde é porque demonstram certo nível de interdependência
de recursos relacionados à atenção à saúde, além de demais fatores sociais,
políticos, econômicos, etc.

A estratégia de regionalização da NOAS visa, então, desenvolver uma


institucionalidade voltada especificamente para o aprofundamento da

191
interdependência existente entre os municípios de forma a compor sistemas
funcionais de saúde que possam materializar os princípios da universalidade,
equidade e integralidade, por meio da integração e articulação das bases de
serviços. Assim, como afirmado no Capítulo 1, a estratégia da NOAS busca
fomentar as potencialidades das redes como forma de coordenação
interorganizacional no aperfeiçoamento do SUS, ou seja, ao definir uma região de
saúde como referência para o planejamento e a ação das políticas de saúde, a
NOAS visa desenvolver em seu interior uma base institucional de aprofundamento
da interdependência existente. Desta forma, a NOAS, como afirmado no Capítulo
1, ratifica a legislação do SUS (Constituição, Lei Orgânica da Saúde, Normas
Operacionais, etc) e pretende operacionalizar seus fundamentos, buscando
compor estratégias que estruturem o sistema sobre bases de organização em
rede. Isto porque, o conceito de redes como forma eficiente de alocação de
recursos e promoção da integralidade sempre esteve presente na legislação do
SUS, sendo que a NOAS consiste na primeira norma que efetivamente propôs sua
operacionalização prática.

Sendo que a região de saúde consiste no espaço organizacional que


corresponde ao cluster de recursos com potencial de formação de uma estrutura
de rede pelo nível de interdependência interno, e que a estratégia da NOAS visa
desenvolver uma institucionalidade voltada especificamente para o
aprofundamento da interdependência existente em seu interior, cabe então
analisar a estratégia da NOAS a partir dos elementos institucionais fomentados
pelos processos-chave desta (Figura 3) e verificar se convergem apara um para
um padrão de interdependência em rede, de acordo como o referencial composto
no Capítulo 3.

Como demonstrado no Capítulo 3, através da análise da literatura, o


desenvolvimento de uma institucionalidade envolve a composição de uma
estrutura de coordenação interorganizacional caracterizada por um padrão de
interdependência em rede, ou seja, esta institucionalidade deve manifestar certos
fundamentos que a diferenciam tanto de uma série de arranjos organizacionais
policêntricos (parcerias, forças, temporárias de trabalho, coordenação intermitente,

192
joint venture, coalizões, etc) quanto de formatos mais centralizados e burocráticos
de organização. Os elementos institucionais que caracterizam o padrão de
interdependência em rede encontram-se reunidos na Tabela 10, ao final do
Capítulo 3.

5.3.1 – Foco Gerencial

O primeiro elemento a ser analisado consiste na determinação do foco


gerencial das atividades desenvolvidas de forma conjunta, ou seja, consiste na
definição de qual será o conjunto de atividades a ser coordenada pela rede. O
conjunto de atividades a ser coordenado pela rede pode ser verificado pela
estratégia da NOAS relacionada a cada nível de atenção da saúde. A NOAS fixa,
de acordo com o nível de complexidade, as atividades que serão coordenadas no
interior de cada município, as que serão coordenadas por referências
intermunicipais no interior de cada região de saúde e aquelas cuja coordenação
transcenderá o âmbito regional, sendo o acesso garantido no âmbito estadual ou
mesmo nacional.

A definição do conjunto de atividades a ser coordenado tanto no interior da


região, portanto pela estrutura de rede fomentada pela NOAS, quanto fora da
região segue a lógica do processo de territorialização.

As atividades de atenção à saúde a serem coordenadas no interior de cada


município consistem naquelas integrantes do nível básico. Neste sentido, a NOAS
redefine as modalidades de habilitação instituídas pela NOB 01/96 de forma a
ampliar o acesso e a qualidade da atenção básica à saúde. Esta última
estabeleceu as modalidades de Gestão Plena da Atenção Básica e Gestão Plena
do Sistema Municipal, sendo que a NOAS redefine estas modalidades e, no se
refere especificamente à atenção básica, amplia o conjunto de ações e estabelece
a Gestão Plena da Atenção Básica Ampliada.

É precisamente no conjunto de atividades referentes à média complexidade


que está o foco das atividades a serem coordenadas pela rede, sendo este

193
processo orientado pela lógica de territorialização estabelecida pela NOAS, mais
especificamente pela lógica de estruturação assistencial Como visto na seção
anterior, a lógica de estruturação assistencial estabelecida pela NOAS envolve o
estabelecimento de módulos assistenciais (município-sede), a definição de bases
de serviços especializadas (ou municípios-pólo), e a ampliação da capacidade de
integralidade na provisão de serviços mediante a obrigatoriedade de composição
ascendente de complexidade por unidade territorial agregada. Estas três
estratégias definam o conjunto de atividades e a forma como este é gerido no
interior da região de saúde.

O estabelecimento do módulo como unidade mínima necessária de


composição de uma região de saúde visa homogeneizar o acesso à média
complexidade no interior desta, uma vez que o módulo assistencial consiste
basicamente num conjunto de municípios entre os quais há um município–sede
com capacidade de oferta, para si e para a população dos demais municípios, de
procedimentos relativos ao chamado ‘1º nível de referência’ de média
complexidade (Anexo III da NOAS, ANEXO I desta dissertação). Esta
homogeneização promove um processo de complementaridade entre as bases de
serviços municipais no interior de uma região de saúde em busca da atenção
integral, uma vez que o estabelecimento da modalidade de Gestão Plena da
Atenção Básica Ampliada expande a capacidade dos municípios no acesso
interno e na qualidade à atenção básica e o módulo assistencial adiciona, a cada
município que o compõe, um conjunto de ações mínimas de média complexidade
por meio de fluxos de referências ao município-sede.

A definição de municípios-pólo no interior de cada região de saúde também


se orienta pela mesma lógica de busca pela integralidade da atenção, uma vez
que consiste num município que representa referência para outros municípios, em
qualquer nível de atenção. Uma vez que a atenção básica é coberta no interior do
município, os municípios-pólo representam bases de referência para a média e a
alta complexidade no interior da região de saúde. Assim complementam as bases
municipais de provisão em ações de complexidade normalmente acima daquelas
estabelecida como de responsabilidade do município-sede.

194
Finalmente, o estabelecimento de uma lógica ascendente de composição
da configuração da estratégia de regionalização contribui para a
complementaridade entre as bases de serviços municipais no interior de uma
região de saúde, uma vez que está é composta por microrregiões, que por sua vez
é formada por um ou mais módulos assistenciais. De acordo com o exposto na
Figura 2, a NOAS estabelece que cada unidade territorial desta deve acrescentar
um conjunto de ações e serviços com complexidade acima daquelas que a
compõem. As ações e procedimentos de média e alta complexidade que não
puderem ser acessadas no interior da região de saúde devem ser buscadas no
âmbito estadual, e mesmo nacional.

Uma vez que a regionalização consiste num processo dinâmico onde a


configuração da interdependência municipal pode ser alterada por meio de
investimentos, tendo em vista as necessidades identificadas na busca por
equidade e integralidade, as relações de referenciamento podem mudar. Da
mesma forma, este processo de transformação pode ocorrer de acordo com as
mudanças em termos de capacidade instalada, a disponibilidade de profissionais
especializados, as alterações em termos de técnica e tecnologia, as variações nos
padrões de custos, entre outros fatores. No entanto, a lógica de promoção da
complementaridade garante que a interdependência se estabeleça de forma a
compor pautas municipais de atenção à saúde caracterizadas por maior
integralidade.

Sendo assim, uma vez que o foco gerencial de interdependência


impulsionado pela NOAS consiste na gestão de atividades e serviços que geram
complementaridade entre os atores e organizações que compõem uma região de
saúde, principalmente no que se refere à média complexidade, a estratégia de
regionalização promovida por esta contribui para a formação de um padrão de
interdependência em rede, de acordo com o referencial desenvolvido no Capítulo
3.

195
5.3.2 – Atores Envolvidos e Amplitude de Inserção

De acordo com o referencial desenvolvido no Capítulo 3, o segundo


elemento de análise consiste na verificação de quais são os atores inseridos no
processo de desenvolvimento da rede. Em arranjos interorganizacionais
caracterizados por baixa institucionalidade coletiva, os atores diretamente
inseridos na construção diária da rede consistem naqueles inseridos
principalmente no nível operacional, ou mesmo tático, das organizações.
Entretanto, quando o espaço interorganizacional é caracterizado por maior
densidade e envolve um conjunto consistente de atividades coletivamente
planejadas e articuladas de duração constante, torna-se necessário introduzir
neste espaço maior capacidade decisória para evitar constantes impasses e
indeterminações, o que demanda a presença de atores não só dos níveis
operacional e tático, mas também estratégico. Da mesma forma, a amplitude de
inserção dos atores relevantes consiste num aspecto fundamental relacionado a
esta temática. A análise destes aspectos pode ser realizada com base na forma
do processo de planejamento instituído pela NOAS.

Este elemento da estruturação das redes, relativo aos atores diretamente


envolvidos e a amplitude de inserção, adquire maior relevância no caso do formato
de regionalização adotado, uma vez que a estratégia estabelecida pela NOAS
envolve a estruturação e a ativação de diversas redes, pois, como argumentado
acima, cada região de saúde consiste numa base potencial de formação da rede.
Neste sentido, como visto na seção 4.2, cabe ao gestor estadual coordenar todo o
processo relativo à regionalização, o que coloca um desafio ainda maior, uma vez
que a região de saúde é concebida apenas como uma categoria de
territorialização sem expressão política. Desta forma, as diversas lideranças de
cada região de saúde, que representam ao atores de maior expressão na arena
sanitária, estão dispersas em bases institucionais municipais, como os Conselhos
Municipais de Saúde e mesmo os gestores municipais, além dos diversos outros

196
atores. Cabe verificar como a NOAS encaminha este desafio, uma vez que ele é
essencial na determinação da trajetória do processo de regionalização.

A primeira questão a ser analisada refere-se a quais são os atores inseridos


em termos de sua origem organizacional (níveis operacional, tático e estratégico).
Este aspecto pode ser analisado tendo como referência a forma de coordenação
do processo de planejamento. Uma vez que a NOAS estabelece estratégias,
mecanismos e atividades de obtenção de racionalidade sistêmica, como a
coordenação da PPI, as atividades controle, regulação e avaliação, o
desenvolvimento do Plano Diretor de Investimentos, entre outros, fica assegurada
a necessidade de participação dos níveis operacional e tático, na medida em que
tais atividades demandam a geração de informações e a performance de atores
diretamente relacionados à concepção e à prestação de serviços.

Da mesma maneira, a forma de coordenação do Plano Diretor de


Regionalização, mediante a ação conjunta dos municípios com o gestor estadual,
implica necessariamente na inserção dos atores municipais do nível estratégico no
trabalho de coordenação das atividades da rede. Esta inserção ocorre tanto por
meio do processo de concepção e elaboração do PDR quanto de sua análise a
aprovação. O primeiro processo demanda integrar e compatibilizar programações
e planos elaborados e decididos pelos gestores municipais, enquanto o segundo
ocorre no interior da CIB, implicando no envolvimento direto dos gestores de
elevada capacidade decisória no interior dos municípios.

Da mesma forma que a coordenação do PDR, a forma de condução do


pacto de compromisso também garante o envolvimento direto e o
comprometimento dos gestores municipais (secretários municipais de saúde dos
municípios-sede e pólo) no desenvolvimento das atividades, uma vez que este
pacto, como visto, envolve o estabelecimento de um Termo de Compromisso de
Garantia de Acesso, onde ambos os gestores (estadual e municipal) se
comprometem com o desenvolvimento de uma série de atividades conjuntas.
Dessa forma, em termos de inserção dos atores de gerenciamento, as diretrizes
contidas na NOAS implicam na inserção dos níveis tanto operacional e tático

197
quanto estratégico dos municípios envolvidos. No entanto, uma ressalva
importante pode ser feita em relação à capacidade decisória dos atores
envolvidos. Sendo que os atores de maior capacidade decisória a nível municipal
são os prefeitos, a literatura em administração pública sobre redes indica que
estes deveriam ser alvo de alguma estratégia específica de inserção no processo
de regionalização de forma a fornecer maior legitimidade às decisões tomadas.

A segunda questão a ser analisada reside na amplitude de inserção


proporcionada pela estratégia da NOAS, ou seja, em sua capacidade de ativar os
atores de maior relevância em torno do projeto da regionalização. Obviamente que
o formato institucional do SUS, como visto no Capítulo 1, garante que qualquer
matéria de relevância referente à atenção à saúde seja decidida de forma conjunta
entre os gestores e compartilhada com a Sociedade Civil. No entanto, uma vez
que a NOAS estabelece a preponderância das instâncias do sistema estadual de
saúde como as arenas de planejamento, decisão e implementação do processo de
regionalização, isto significa que, em termos de atores da arena sanitária dos
municípios, a NOAS privilegia a inserção dos gestores municipais no
desenvolvimento da regionalização. Isto porque a NOAS não institui mecanismos
ou estratégias para a inserção dos atores da Sociedade Civil dos municípios de
forma ativa no processo de regionalização, a não ser de forma indireta por meio
das Conferências de Saúde e da aprovação da PPI nos Conselhos Municipais.
Estes mecanismos, embora de extrema relevância para a regionalização, não
determinam as escolhas em termos de estratégias de composição do PDR e de
gerenciamento da regionalização. As principais etapas do processo de
regionalização são produto de elaboração conjunta da SES com os gestores
municipais (Tabela 14) e de pactação na CIB (Tabela 16), arenas na qual os
atores da Sociedade Civil dos municípios não têm acesso direto e constante.

Portanto, em relação à composição dos atores em termos de nível decisório


e de amplitude de inserção dos diversos atores presentes na arena sanitária, é
possível afirmar, à luz do referencial desenvolvido no Capítulo 2, que as diretrizes
contidas na NOAS contribuem para a formação de um padrão de interdependência

198
em rede, no caso do primeiro aspecto e manifesta características de elevada
institucionalidade em relação ao segundo.

5.3.3 – Nível de Formalização

Prosseguindo a análise do padrão de interdependência fomentado pela


NOAS, cabe analisar o terceiro aspecto definido no referencial teórico, que
consiste no grau de formalização das diretrizes relativas à construção de
parâmetros mínimos de organização do trabalho coletivo e da composição da
governança. Segundo a literatura, o desenvolvimento de regras mínimas ocorre
como parte do processo de institucionalização da rede e fornece estabilidade à
rede ao compor parâmetros mínimos de interação e ação coletiva. No entanto,
tais regras coletivamente construídas e negociadas não podem regular a ação dos
aspectos mais operacionais e relacionados ao processo de produção diário no
interior das redes, sendo que estes são orientados por diretrizes construídas e
reconstruídas constantemente, de acordo com a dinâmica de produção de
objetivos coletivamente definidos. Assim, a ação excessiva da formalização
implica em redução da flexibilidade operacional da rede. Da mesma forma, o
desenvolvimento ou o estabelecimento de regras num contexto de redes adquiri
um caráter extremamente dinâmico, uma vez que as relações de
interdependências mudam constantemente, o que resulta em diferentes
estratégias e padrões de interação entre os componentes da rede.

Neste sentido, torna-se necessário separar em que consistem os


parâmetros mínimos de organização do trabalho coletivo e da composição da
governança das regras que regulam os aspectos operacionais. As regras gerais
consistem na fixação de referências mínimas relacionadas à composição do
formato da rede, à identificação do papel de cada ator neste formato, à
identificação de quais são os resultados esperados de determinadas interações,
critérios de acesso e exclusividade no inteiro da rede, à distribuição de recursos,

199
entre outros. Da mesma forma, consistem regras gerais as que definem o formato
da governança, ou seja, que estabelecem quais as arenas e etapas decisórias,
bem como os critérios acesso e a forma de participação nestas arenas. Estas
regras fornecem estabilidade às interações e orientam o intercâmbio de recursos.
O que transcende a esses parâmetros de institucionalização consiste em atos de
regulação que interferem na flexibilidade operacional da rede, uma vez que visam
determinar a forma de intercâmbio de recursos, padronizar relações de trabalho e
regular fluxos de interação, caracterizando elevada institucionalidade.

No que se refere à estratégia expressa na NOAS, este aspecto de análise


apresenta um desafio complexo, na medida em que torna-se difícil identificar o
impacto de determinadas diretrizes sobre as relações de trabalho coletivo e de
composição da governança. Sendo assim, é necessário analisar ambos os
processos–chave da NOAS, territorialização e planejamento, e identificar o nível
de impacto destes em termos de formalização das relações no interior das regiões
de saúde.

Em termos de composição de regras gerais ou estabelecimento de


parâmetros mínimos de organização do trabalho coletivo, a territorialização
consiste no processo que fixa as bases de estruturação das estratégias de
regionalização, de acordo com o definido na NOAS. O estabelecimento dos
módulos assistenciais, das regiões, microrregiões, módulos assistenciais,
municípios-sede e pólo compõem uma configuração que proporciona orientação
tanto em termos do papel de cada município no interior da rede, quanto de
acessibilidade, distribuição de recursos, resultados esperados em termos de
composição de pautas integrais de assistência, entre outros. Neste sentido, a
territorialização fixa as referências mínimas relacionadas à composição do formato
da rede e do papel que cada município desempenha no processo de
aprofundamento de interdependências.

Enquanto o processo de territorialização proporciona um quadro de


referências que orientam a dinâmica dos atores no interior e fora das regiões de
saúde e confere sentido às ações desempenhadas pelos atores que as realizam, o

200
de planejamento relaciona-se à composição do trabalho coletivo e da governança.
Neste sentido, a construção do PDR consiste num conjunto de diretrizes que
relacionam os atores envolvidos e orientam a forma de compor o trabalho coletivo
identificando os papéis e as atividades serem desempenhados como condição
essencial para a obtenção de objetivos comuns.

Como pode ser constatado por meio da Tabela 14, a NOAS estabelece uma
série de atividades de planejamento e gestão a serem desempenhadas de forma
conjunta entre os municípios e a esfera estadual na composição do PDR, que
consiste no instrumento por meio do qual se materializa a estratégia de
regionalização. Assim, o estabelecimento do PDR como instrumento de
ordenamento do processo de regionalização proporciona diretrizes que orientam
os atores envolvidos e compõem parâmetros mínimos de organização do trabalho
coletivo. Na medida em que torna-se necessário o intercâmbio de informações e
de recursos para desenvolver uma configuração adequada em termos de
referências intermunicipais, somente o trabalho conjunto como os municípios pode
proporcionar bases de planejamento confiáveis, uma vez que são estes que detém
as informações sobre sua capacidade de produção suas carências em termos de
acesso e de investimentos. Logo, o fato da NOAS estabelecer como os municípios
se inserem na elaboração, implantação e monitoramento do PDR proporciona
referenciais que orientam o trabalho coletivo.

Como afirmado acima, o planejamento, como um dos dois processos-chave


da NOAS, também estabelece diretrizes em termos de organização do processo
de governança subjacente à dinâmica da regionalização, no sentido de que
estabelece quais as arenas e etapas decisórias, bem como os objetos de
pactação e a forma de participação nestas arenas. Obviamente que este aspecto
não consiste numa especificidade da NOAS, uma vez que esta somente utiliza as
bases institucionais do SUS como arenas de governança da regionalização. Neste
sentido, visto que a NOAS estabelece a preponderância do sistema de saúde
estadual na condução do processo de regionalização, todos as etapas decisórias
convergem para a CIB, tornando-se esta a arena de referência, em termos de
construção da governança, como demonstra a Tabela 14. Portanto, no que se

201
refere à construção coletiva de regras gerais que orientam e referenciam tanto a
produção do trabalho coletivo e a composição de governança, as diretrizes da
NOAS contribuem para a formação de um padrão de interdependência em rede.
Cabe, então analisar, se as diretrizes da NOAS não interferem na dinâmica
operacional do trabalho coletivo.

A ação mais direta das diretrizes da NOAS sobre a dinâmica operacional do


trabalho coletivo no interior do processo de regionalização provém da forma de
coordenação da estratégia de racionalidade sistêmica. Esta estratégia, como
afirmado na seção 4.2, é parte integrante do processo de planejamento e está
diretamente relacionada a uma concepção dinâmica da regionalização, pensada
como um processo que visa ‘conformar sistemas funcionais de saúde’ e ‘otimizar
os recursos disponíveis’ de acordo com as ‘prioridades de intervenção’. Na
mediada em que a edição da NOAS ocorreu como produto da reflexão sobre a
necessidade de integrar as bases municipais em busca da maior integralidade da
atenção explorando ganhos de escala dos investimentos, torna-se claro que ela
traz implícita uma estratégia de regulação do emprego e da incorporação de
fatores de produção orientada pela eficiência microeconômica.

Os principais processos que compõem a estratégia de obtenção da


racionalidade sistêmica da NOAS, como afirmado na seção 4.2, consistem no
desenvolvimento do Plano Diretor de Investimentos (que envolve a análises de
capacidade instalada, a identificação de prioridades de intervenção, etc.), nas
atividades que sustentam o zoneamento territorial que resulta nas
regiões/microrregiões de saúde (análise da distribuição espacial da oferta de
serviços entre os municípios, análises epidemiológicas, demográficas, sanitárias,
etc.), na programação da assistência via PPI e nas atividades de controle,
regulação e avaliação.

A forma de coordenação desta estratégia de obtenção de racionalidade


sistêmica adotada pela NOAS envolve a centralização na SES de todas
informações necessárias ao desenvolvimento dos processos acima citados. Uma
vez que estes processos buscam redimensionar a configuração das referências

202
assistenciais no interior de cada região de saúde e entre elas, buscando maior
grau de equidade e integralidade, as atividades de estruturação assistencial
intermunicipal passam a se orientar por esses processos, inclusive a realização de
investimentos. Na medida em que as informações que subsidiam as decisões
referentes à estratégia de racionalidade sistêmica provêm da dinâmica relacional
entre os municípios e que esta dinâmica, como visto nos Capítulos 2 e 3,
apresentam elevado grau transformação em curtos períodos de tempo,
necessitando ser atualizados constantemente, a centralização de toda a estratégia
na SES pode gerar não só defasagens em relação à realidade, mas também
dificuldades de interpretação das informações.

Esta forma de coordenação da estratégia de racionalidade sistêmica pode


implicar tanto na falta de efetividade e eficiência das decisões tomadas e dos
investimentos realizados, quanto na redução da flexibilidade operacional do
trabalho coletivo`a nível das regiões de saúde, uma vez que as defasagens podem
geram constantes necessidades de revisão das decisões sobre alocação de
recursos, financiamento de fluxos de referência intermunicipal, incorporação
tecnológica, entre outros. Portanto, as diretrizes da NOAS interferem na dinâmica
operacional do trabalho coletivo.

De forma conclusiva, em termos de grau de formalização, as diretrizes da


NOAS contém aspectos que contribuem para a formação de um padrão de
interdependência em rede (construção coletiva de regras gerais), assim elementos
que caracterizam um padrão de elevada institucionalidade.

5.3.4 – Recursos Envolvidos e Foco de Poder

O quarto e o quinto elementos de análise do padrão de interdependência


fomentado pela NOAS consiste na distribuição de recursos e no foco de poder. De
acordo com o referencial desenvolvido no Capítulo 2, estes elementos devem ser
analisados de forma conjunta, uma vez que estão relacionados diretamente ao
padrão de interdependência subjacente à estrutura da rede. Esta relação se

203
estabelece porque a distribuição de recursos influencia o padrão de
interdependência entre os atores, e este, como visto, orienta a distribuição de
poder no interior da rede.
Conforme demonstrado na ocasião, os recursos essenciais à formação da
estrutura da rede encontram-se dispersos ao longo de uma série de organizações
e atores. Em espaços interorganizacionais de baixa institucionalidade coletiva tal
realidade configura um campo de poder que tende a reproduzir a distribuição
apresentada pelo cluster de recursos. Da mesma forma, o exercício deste poder
manifesta-se de forma dispersa e reflete as possibilidades de cada ator de acordo
com as assimetrias de domínio de recursos.
No entanto, o surgimento de uma estrutura de interdependência em rede
desenvolve, de forma concomitante, estratégias de gestão coletiva de recursos e
de compartilhamento decisório, uma vez que torna-se necessário ampliar a
extensão dos esforços e a intensidade do vínculos na busca por soluções de
problemas complexos de política pública (KOPPENJAN e KLIJN, 2004; KEAST,
2004; O´TOOLE, 1997). Da mesma forma, o estreitamento dos vínculos pode
produzir a intensificação do processo de institucionalização das relações no
espaço interorganizacional em rede, resultando em relações de coerção, onde
atores de maior domínio de recursos estabelecem direções em detrimento dos
demais atores.

Cabe então, conduzir uma análise das diretrizes da NOAS, em termos do


padrão de distribuição de recursos e seu impacto sobre as relações de
interdependência entre os municípios e entre estes e a esfera estadual. Esta
análise pode ser realizada por meio das diretrizes contidas no dois processos-
chave da NOAS, a territorialização e o planejamento.

A primeira tarefa consiste em determinar quais são os recursos


fundamentais em termos da estratégia de regionalização estabelecida na NOAS. A
partir deste ponto, torna-se factível deduzir quais são as relações de
interdependência que se formam tanto no interior da região de saúde, entre si,
portanto, quanto dos municípios com a esfera estadual. Os principais recursos, no
que se refere à estratégia de regionalização estabelecida pela NOAS, consistem

204
na capacidade produtiva (grau de especialização e diversificação da base
municipal de produção de serviços de saúde), domínio de recursos financeiros
(financiamento dos gastos com custeio e com ampliação da capacidade produtiva
via investimentos), capacidade técnica (desenvolvimento e organização de
estratégias de articulação e integração das bases de serviços), e autoridade legal
(legitimidade para coordenar e conduzir o processo). A análise dos processos-
chave da NOAS (territorialização e planejamento) novamente fornece as
informações necessárias.

A estrutura de configuração territorial desenvolvida pela NOAS, como


referência para a articulação e integração das bases de serviços de atenção á
saúde, toma como base a capacidade instalada dos municípios no interior de uma
região de saúde. Assim, a definição de quais serão os municípios que exercerão o
papel de município-sede e município-pólo no interior de uma região de saúde
indica que municípios apresentam maior domínio de recursos em termos de
capacidade produtiva.

Assim, no interior de uma região de saúde, estas duas categorias de


municípios são as que detêm maior poder, uma vez que os municípios a eles
adstritos dependem de suas bases de serviços para ter acesso a ações e
procedimentos de média e alta complexidade (1º nível de referência da média
complexidade – no caso dos municípios-sede – e média e alta complexidade em
geral de acordo com a especialidade apresentada pelo município – no caso dos
municípios-pólo). Obviamente que, no caso de determinados serviços de média
complexidade e, principalmente em termos de alta complexidade, as bases de
serviços podem estar sob domínio das esferas estadual ou federal, sendo estes
também atores poderosos nestes casos. No entanto, no que se refere às relações
de interdependência no interior das regiões de saúde em termos capacidade
produtiva os municípios-sede e pólo são os atores de maior poder. Nestes casos,
a NOAS estabelece que, no interior do estado, o gestor estadual é o responsável
pela gestão das políticas de média e alta complexidade, assumindo uma série de
funções que vão desde a definição de prioridades de investimento até o controle a
avaliação do sistema, principalmente no caso da política de alta complexidade.

205
Sendo assim, o estado, mesmo nos casos onde não é o detentor das bases de
serviços, é o ator de maior poder por estar munido estar estabelecido como
autoridade planejadora e reguladora do emprego das bases de produção de
serviços.

Sobre as relações entre capacidade produtiva e poder no interior da região


de saúde, referente ao processo de regionalização, torna-se necessário frisar que
a integração das bases de produção de serviços gera referências intermunicipais,
cuja pactação resulta na constituição da Programação Pactuada e Integrada –
PPI, instituída pela NOB 01/96. Este processo de pactação é realizado de forma
direta entre os municípios, sendo que as programações são integradas e
compatibilizadas pelo gestor estadual. Sendo assim, esta forma de coordenação
da PPI também estabelece o gestor estadual como ator de relevância. Embora
este processo de pactação, que envolve o compartilhamento de recursos tenha a
CIB como arena de resolução de conflitos, é evidente que o gestor estadual, assim
como os municípios-sede e pólo detêm maior poder sob este formato de
coordenação.

No que se refere à capacidade financeira direcionada a promover a


regionalização, ou seja, relativa tanto ao custeio das ações e procedimentos que
compõem as referências intermunicipais (dos municípios-sede e pólo aos demais
municípios de uma região de saúde), quanto à realização de investimentos
visando ampliar a capacidade de promoção do acesso universal, eqüitativo e
integral, esta provém do governo federal. No entanto, a forma de coordenação
destes recursos coloca o gestor estadual como o ator de maior poder no interior
da estratégia de regionalização.

Além da coordenação da PPI em âmbito estadual, que define a alocação


dos recursos relativa às referências intermunicipais e os tetos financeiros para
todos os municípios do estado, independente da condição de habilitação, cabe a
esfera estadual a coordenação dos procedimentos financeiros que visam garantir
que a configuração desenvolvida por meio da territorialização das bases
municipais de provisão de serviços tenha efetividade, ou seja, para assegurar que

206
o processo de planejamento expresso no PDR seja operacionalizado. Esta forma
de coordenação dos mecanismos financeiros da regionalização, como visto na
seção 4.2, consiste em parte do pacto de compromisso estabelecido entre o
gestor estadual e os municípios de cada região de saúde. O recebimento do
financiamento dos procedimentos relativos ao ‘1º nível de referência’ da média
complexidade, cuja provisão se estabelece no município-sede, está sob a gestão
do gestor estadual. No caso do município-sede do módulo assistencial estar sob a
modalidade de Gestão Plena da Atenção Básica Ampliada, os recursos
provenientes da esfera federal serão repassados fundo a fundo ao estado
habilitado, e no caso do município-sede estar sob habilitação em Gestão Plena do
Sistema Municipal, os recursos serão repassados fundo a fundo ao município. No
entanto, neste último caso, o repasse estará condicionado ao cumprimento do
Termo de Compromisso para a Garantia de Acesso, instrumento jurídico que
estabelece uma série de obrigações entre o município e o gestor estadual, além
do comprometimento do município-sede em prover as ações e procedimentos do
‘1º nível de referência’ da média complexidade aos municípios adjacentes. Assim,
em termos de capacidade financeira, o gestor estadual consiste no ator de maior
poder no interior da estratégia de regionalização estabelecida pela NOAS.

Em relação à capacidade técnica, ou seja, ao domínio de competências


para o desenvolvimento e organização de estratégias de articulação e integração
das bases de serviços, é difícil mensurar quais são os municípios que apresentam
tais competências, uma vez que há enormes variações no contexto federativo
brasileiro. No entanto, partindo do ponto que o domínio de recursos técnicos é
resultado de um processo de aprendizagem voltado especificamente para a
construção de competências que proporcionam o aperfeiçoamento da
performance de gestão (FIGUEIREDO, 2001), é possível inferir que ator ou atores
irão desenvolver maior domínio de capacidade técnica. Como demonstrado na
seção 4.2, a NOAS estabelece que a SES consiste no espaço organizacional onde
se desenvolvem as análises e projeções que irão fundamentar a elaboração,
implementação, execução, o monitoramento e a avaliação relativa ao Plano
Diretor de Regionalização. Neste sentido, uma vez que o gestor estadual é o

207
responsável pelo desenvolvimento do PDR, é o ator que terá que desenvolver
maior esforço de aprendizagem no interior da estratégia de regionalização. Da
mesma forma, o gestor estadual torna-se o ator que terá domínio de maior
quantidade de informações sobre o sistema de saúde no âmbito estadual, uma
vez que o planejamento conjunto com os municípios resulta na convergência de
dados, relatórios e análises para SES.

Assim como o processo de desenvolvimento do PDR, a forma de


coordenação da estratégia de racionalidade sistêmica também impulsiona a
construção de competências no âmbito da SES, na medida em que esta estratégia
está no centro do planejamento diretamente relacionado a uma concepção
dinâmica da regionalização, pensada como um processo que visa ‘conformar
sistemas funcionais de saúde’ e ‘otimizar os recursos disponíveis’ de acordo com
as ‘prioridades de intervenção’. Esta estratégia abrange a elaboração e a
implementação de uma série de critérios e mecanismos voltados para a
organização tanto da média quanto da alta complexidade como qualificação de
profissionais, promoção de economias de escala, definição de prioridades de
investimento, coordenação de processos de regulação, garantia de acesso,
controle, avaliação, alocação orçamentária, entre outros. Portanto, a forma de
coordenação das atividades voltadas para obter racionalidade sistêmica,
centralizada na SES, estimula, de forma ainda mais acentuada, o desenvolvimento
de esforços de aprendizagem e a construção de competências sob domínio do
gestor estadual. Assim, em termos de domínio de recursos técnicos, a estratégia
da NOAS, embora desenvolva formas de compartilhamento de recursos,
estabelece e constrói o gestor estadual como o ator de maior poder no processo
de regionalização.

No que se refere ao domínio de autoridade legal, ou seja, de legitimidade


para coordenar e conduzir a estratégia de regionalização, as diretrizes contidas na
NOAS estabelecem o gestor estadual como responsável por todo o processo de
regionalização, sendo o ator que coordena e conduz todas as etapas de
configuração territorial da regionalização, de construção do PDR, de qualificação
das regiões de saúde, de elaboração e implementação das estratégias de

208
obtenção de racionalidade sistêmica, dos instrumentos relativos ao pacto de
compromisso de garantia de acesso às referências intermunicipais, entre outros.
Embora todo este processo seja desenvolvido de forma compartilhada como
municípios, pactado no interior da CIB e necessite da aprovação da Sociedade
Civil presente no CES, o gestor estadual é o ator que detém maior autoridade
legal de acordo com as diretrizes da NOAS.

A análise do domínio de recursos (capacidade produtiva, recursos


financeiros, capacidade técnica e autoridade legal), proporciona elementos para
delinear o fluxo de interdependência e, conseqüentemente de relações de poder
no interior do processo de regionalização. A primeira constatação possível de ser
extraída consiste no fato de que as diretrizes da NOAS estabelecem estratégias
de gestão coletiva de recursos e de compartilhamento decisório, como resultado
da necessidade de ampliar a extensão dos esforços e a intensidade dos vínculos
na busca por soluções de problemas complexos relacionados à atenção à saúde.
Neste sentido, as diretrizes da NOAS contribuem para a formação de um padrão
de interdependência em rede articulando estruturas institucionalizadas no espaço
interorganizacional do SUS.

No entanto, apesar de promover estratégias de compartilhamento de


recursos e de capacidade decisória, a análise do domínio de recursos demonstra
que as relações de interdependência motivadas pelas diretrizes da NOAS
privilegiam o gestor estadual com o ator de maior poder no interior da estratégia
de regionalização. Assim, como visto na seção 4.2, as diretrizes da NOAS
impulsionam o estabelecimento de relações de interdependência constante e de
forma direta entre os municípios e a esfera estadual. Portanto, por promover o
domínio elevado de recursos num único ator e por contribuir, conseqüentemente,
com a formação de elementos que caracterizam centralização de poder, as
diretrizes da NOAS contribuem para formar um padrão de interdependência
caracterizado por elevada institucionalidade, de acordo com o referencial
desenvolvido no Capítulo 3.

209
5.3.5 – Foco de Controle

Prosseguindo com a análise do padrão de interdependência fomentado


pela estratégia de regionalização estabelecida pela NOAS, o sexto elemento a ser
considerado consiste no foco de controle. Em ambientes intraorganizacionais a
função de controle proporciona capacidade de responsabilizar atores e de
verificação da capacidade de eficiência no emprego dos recursos da organização.
Este padrão de concepção de controle permanece em espaços
interorganizacionais de pouca institucionalidade, onde o controle ainda possui uma
conotação de fiscalização, estando disperso em diversos processos de
intercâmbio sem compartilhamento de poder decisório.

Entretanto, de acordo com o referencial teórico desenvolvido no Capítulo 3,


a concepção de controle em espaços interorganizacionais, caracterizados por
relações de interdependência em rede adquire uma nova dimensão, uma vez que
não há atores capazes de estabelecer procedimentos e mecanismos de
responsabilização e accountability sobre os demais, pois uma estrutura de rede é
formada por componentes caracterizados por autonomia. Da mesma forma, a
diversidade de atores e organizações que estabelecem relações em espaços
interorganizacionais torna praticamente impossível centralizar e uniformizar
procedimentos e parâmetros de mensuração de resultados. Logo, o emprego do
padrão burocrático de controle, além de apresentar sérios obstáculos, resulta em
redução do grau de flexibilidade da rede.

Sendo assim, de acordo com o referencial desenvolvido no Capítulo 2, uma


vez que a rede tem como foco gerencial atividades complementares ou que
envolvem recursos que geram complementaridade entre as organizações
envolvidas, e que tais atividades possuem impacto sobre os objetivos
estabelecidos de forma coletiva, o controle é essencial como função de promoção
de eficácia e eficiência da rede, adquirindo uma dimensão estratégica no suporte
às atividades gerenciais da rede diretamente relacionadas à obtenção dos

210
objetivos maiores coletivamente fixados. Logo, o foco central do desenvolvimento
do controle em redes reside na formação de complementaridade entre as partes
no sentido de articular bases de suporte decisório especificamente relacionadas
às atividades que são desenvolvidas em rede, ou seja, as atividades consideradas
como complementares.

A análise da concepção de controle, como parte componente da estratégia


de regionalização estabelecida pela NOAS, pode ser realizada pelo exame dos
aspectos contidos no processo de planejamento. Como afirmado na seção 4.2, na
estratégia de regionalização estabelecida pela NOAS, o planejamento adquire um
status de centralidade no interior da concepção da regionalização como fenômeno
dinâmico, uma vez que este não consiste apenas numa atividade prévia de política
pública para ampliar o grau de eficácia da ação pública, mas expande sua
dimensão ao ganhar status de processo principal com ação constante. Assim, o
planejamento é a função por meio da qual são elaboradas todas as demais
funções gerenciais como controle, programação, organização, implantação,
execução, monitoramento, regulação e avaliação.

A concepção dinâmica da regionalização, visando conformar ‘sistemas


funcionais’ de atenção à saúde, onde o planejamento atua como motor das
transformações, estabelece entre este e o controle uma relação diferente daquela
predominante nas burocracias. Enquanto nestas, o controle atua com ênfase na
verificação dos processos, na concepção de controle na NOAS, na medida em
que este está subordinado a uma visão de planejamento como vetor da mudança,
a ênfase coloca-se sobre a obtenção dos objetivos e metas coletivamente
construídos. Este aspecto está apresentado explicitamente no texto da NOAS:

As funções de controle, regulação e avaliação devem ser


coerentes com os processos de planejamento, programação
e alocação de recursos em saúde tendo em vista sua
importância para a revisão de prioridades e contribuindo para

211
o alcance de melhores resultados em termos de impacto na
saúde da população.

As atribuições de Controle, Regulação e Avaliação são


definidas conforme pactuações efetuadas pelos três níveis
de governo.

O fortalecimento das funções de controle e avaliação dos


gestores do SUS deve se dar principalmente nas seguintes
dimensões:

a) avaliação da organização do sistema e do modelo de


gestão;

b) relação com os prestadores de serviços;

c) qualidade assistencial e satisfação dos usuários;

d) resultados e impacto sobre a saúde da população


(BRASIL, 2002, p. 24).

Assim, a leitura direta do texto da NOAS revela uma visão do controle como
função assessória ao planejamento voltada para a obtenção de metas coletivas.
Da mesma forma, o fato da norma indicar que as funções de controle, regulação e
avaliação serão definidas em processos de pactuação entre as três esferas de
governo impulsiona a formação de complementaridade no espaço
interorganizacional do SUS, no sentido de articular bases de suporte decisório
especificamente relacionadas às atividades desenvolvidas no interior da estratégia
de regionalização. Sob este aspecto, as diretrizes da NOAS contribuem para a
formação de um padrão de interdependência em rede no interior no interior do
espaço interorganizacional do SUS.

212
Entretanto, como visto na seção 4.2, as funções de controle, regulação e
avaliação são partes da estratégia de obtenção de racionalidade sistêmica, sendo
este fato de extrema relevância na análise da concepção de controle contida nas
diretrizes da NOAS. Uma vez que as funções de controle, avaliação e regulação
devem estar subordinadas diretamente ao processo de planejamento, como diz o
trecho acima citado, e que este processo, como visto na seção 4.2, estabelece a
preponderância do gestor estadual no formato de coordenação do PDR, das
estratégias de racionalidade sistêmica e de condução do pacto de compromisso,
está configurada uma contradição no texto da NOAS.

Embora o texto da NOAS afirme explicitamente a necessidade de compor o


controle por complementaridade entre os entes federados, todos instrumentos
desenhados para tal (PDR, PPI, instituição de complexos regulatórios, Termo de
Compromisso de Garantia de Acesso, entre diversas outras atribuições legais
relacionadas) estão sob coordenação direta do gestor estadual, caracterizando
centralização da função de controle. Ou seja, como afirmado na seção 4.2,
embora a NOAS ressalte a autonomia das esferas de governo na construção de
instrumentos próprios de controle, regulação e avaliação definidas de forma
conjunta, a preponderância do processo de planejamento no interior da estratégia
da NOAS confere maior capacidade ao gestor estadual na performance dessas
funções, na medida em que as demais esferas, principalmente os municípios, ao
desenvolver suas atividades, terão de ampliar as interdependências com o gestor
estadual para compatibilizar os planos de controle, regulação e avaliação com as
diretrizes estabelecidas no PDR e na PPI. Dessa forma, a esfera estadual, ao ser
instituída pela NOAS como coordenadora do processo de regionalização, por
concentrar as atividades relativas ao PDR, adquire papel fundamental no
desempenho das funções de controle, regulação e avaliação no interior do SUS’.

Sendo assim, embora contenha disposições que visam induzir a formação


de complementaridade entre as esferas de governo no estabelecimento de
mecanismos de controle, as diretrizes da NOAS que fundamentam a estratégia de
regionalização contribuem para a conformação da centralização de informações e

213
mecanismos de racionalidade sistêmica, aspecto este característico de padrões de
interdependência de elevada institucionalidade.

5.3.6 – Objetivos Coletivos

O sétimo aspecto a ser analisado, de acordo com o referencial


desenvolvido no Capítulo 3, consiste na convergência em torno de um ‘objetivo
comum maior como valor compartilhado’ (FLEURY, 2002), na medida em que se
apresenta como um elemento fundamental de coordenação interorganizacional no
processo de institucionalização da rede. Em espaços interorganizacionais de baixa
institucionalidade, a ênfase situa-se em torno dos objetivos particulares dos atores
e organizações, sendo que as relações de intercâmbio de recursos estabelecidas
estão direcionadas especificamente para a obtenção destes objetivos. Entretanto,
o desenvolvimento de uma estrutura de rede, pelo estreitamento das relações e
pela ampliação da extensão dos esforços, ocorre em torno da formação de
objetivos comuns.

Este processo envolve a construção de percepções compartilhadas, de


estratégias conjuntas e valores comuns, sendo um aspecto extremamente
complexo e de difícil obtenção, envolvendo a ação de lideranças na mediação de
conflitos e de formação de coalizões em torno de projetos hegemônicos. No
entanto, é de extrema relevância, pois consiste no elemento que impulsiona a
composição de forças em torno do aprofundamento das relações de
interdependência, sustentando o intercâmbio de recursos e competências na
resolução de problemas complexos de política pública. De acordo com a literatura
de administração pública sobre redes, este processo envolve aspectos técnicos e
organizacionais, assim como políticos, na medida em que há a necessidade tanto
de estruturar coletivamente bases organizacionais de condução do trabalho
coletivo quanto de desenvolver a convergência de forças na sustentação política
da estrutura da rede.

214
Desta forma, é um elemento complexo cuja análise demanda a abordagem
por diversas dimensões e envolvem o exame de vários aspectos. Sendo assim, a
análise conduzida neste tópico aborda e enfatiza os aspectos técnicos e de
estratégia, sendo que os demais aspectos organizacionais e políticos serão
abordados ao longo da análise dos demais elementos que integram este Capítulo.

A análise desenvolvida neste tópico procura identificar e examinar


mecanismos e estratégias que compõem a estratégia de regionalização da NOAS,
os quais proporcionem a articulação e a integração dos objetivos e metas
particulares (organizacionais) em torno da composição de objetivos comuns e
metas compartilhadas. Neste sentido, as diretrizes que fundamentam o processo
de planejamento da NOAS fornecem os subsídios necessários.

Como demonstrado na análise do foco gerencial da estratégia de


regionalização estabelecida pela NOAS (1º elemento de análise), o processo de
territorialização das bases de serviços municipais contém elementos que
impulsionam o desenvolvimento de complementaridade assistencial entre os
municípios e destes com as demais esferas. Esta articulação e integração das
bases de serviços no interior da região de saúde, como afirmado na ocasião,
envolvem o estabelecimento de módulos assistenciais (município-sede) que
buscam homogeneizar o acesso à média complexidade dentro da região/
microrregião, a identificação de bases de serviços especializadas (ou municípios-
pólo), e a ampliação da capacidade de integralidade na provisão de serviços,
mediante a obrigatoriedade de composição ascendente de complexidade por
unidade territorial agregada.

No entanto, a efetividade deste processo demanda a ação de instrumentos


e mecanismos tanto no sentido de articular eficientemente as bases atuais quanto
visando projetar e responder às alterações ocorridas na dinâmica de intercâmbio
de recursos. Ou seja, na medida em que a estratégia de regionalização foi
concebida visando ampliar a integralidade no acesso e que a distribuição espacial
das bases de serviços pode mudar como resultado da própria estratégia, os
instrumentos encarregados de promover a integralidade devem ser capazes de

215
articular de forma flexível as necessidades (objetivos) particulares de cada
município com o objetivo maior de promoção da integralidade.

Da mesma forma, as transformações a serem realizadas em termos de


distribuição espacial das bases de serviços devem ser orientadas de forma a
promover integralidade de acordo com as necessidades de cada município, ou
seja, uma vez que a integralidade é o objetivo comum maior, a construção coletiva
desta parte dos objetivos municipais específicos e das possibilidades e limitações
de articulação das bases de serviços no interior de cada região de saúde.

Assim, para que a estratégia de territorialização das bases de serviço tenha


sucesso e seja capaz de reduzir as assimetrias em termos de acesso,
especialmente a níveis mais elevados de complexidade, é necessário que haja
mecanismos e estratégias que promovam a integralidade da assistência como
objetivo comum a partir dos objetivos e recursos assistenciais particulares
(municipais, estaduais e federais). Os instrumentos encarregados de promover
esta construção de objetivos comuns a partir de objetivos particulares consistem
na PPI e no PDR, e na articulação destes entre si.

A PPI permite que os municípios, por meio de um processo de pactação


direta, estabeleçam entre si o planejamento prévio do intercâmbio de serviços
para a cobertura das necessidades em termos de complementação das bases
próprias de serviços, de acordo com a demanda da população de cada município.
Como resultado desta pactação, emerge um conjunto de fluxos de
referenciamento intermunicipal que possibilita ampliar o caráter universal,
eqüitativo e integral do SUS. A PPI, portanto, consiste num instrumento que
integra não só bases de serviços, mas também gestores municipais na construção
de metas coletivas no interior do sistema sanitário.

No entanto, somente a PPI não proporciona a convergência de objetivos em


torno de projetos coletivos comuns, uma vez que seu foco de atuação ocorre
sobre as ações e procedimentos de saúde excedentes em termos de demanda da
população local. Sendo assim, mesmo representando um intercâmbio que fomenta
a complementaridade entre as esferas de governo na produção de relações de

216
interdependência, tais relações assistenciais, somente, não são capazes de
configurar a produção de objetivos maiores com base em metas particulares, uma
vez que o foco da PPI está na metas individuais de cada município. Ou seja,
embora contribua para aperfeiçoar a performance geral do SUS, cada município
se insere em relações de intercâmbio via PPI buscando somente resolver seus
próprios problemas de insuficiência bases de provisão de serviços. Esta seria a
inserção da PPI na estratégia de gestão da assistência nos moldes da NOB 01/96,
estratégia esta também utilizada em caso de referências interestaduais, onde o
governo federal seria o responsável pela integração e compatibilização das PPIs
estaduais.

Entretanto, com a edição da NOAS, onde o planejamento adquire um status


central, a relevância da PPI é redimensionada, uma vez que esta proporciona uma
base consistente de informações relativas às relações intermunicipais fundamental
tanto para o aprofundamento quanto para a projeção de relações de
interdependência. Dessa forma, como afirmado na seção 4.2, a PPI apresenta-se
no interior do processo de planejamento estabelecido pela NOAS como um
instrumento que fundamenta a compatibilização entre demanda e oferta, a
alocação de investimentos, a regulação dos sistemas de referências
intermunicipais, a obtenção de ganhos de escala econômica, entre outros
aspectos.

Assim, na medida em que o planejamento consiste no processo essencial


na estratégia de regionalização, e que o PDR apresenta-se como o instrumento de
convergência deste processo, onde cada região de saúde é tomada como um
conjunto específico, o diálogo constante do PDR com a PPI amplia a capacidade
de materialização das projeções constantes deste e fornece capacidade de
compor metas coletivas com base em objetivos particulares. Ou seja, a relação
entre estes dois instrumentos permite tanto gerir melhor as relações de
intercâmbio existentes e projetar novas quanto monitorar e aperfeiçoar estas
novas relações de intercâmbio. Assim, na medida em que a PPI expressa metas e
objetivos particulares e que o PDR dimensiona o planejamento a nível coletivo, é
possível afirmar que as diretrizes contidas na NOAS apresentam instrumentos e

217
mecanismos que impulsionam a composição de objetivos coletivos a partir de
metas.

Da mesma forma, a própria estruturação do PDR desde sua elaboração até


a avaliação dos resultados implantados envolve a construção de uma série de
estratégias e instrumentos que impulsionam a composição de objetivos coletivos,
como a identificação conjunta de prioridades de intervenção, a identificação de
pontos de estrangulamento para a hierarquização de serviços, o estabelecimento
e monitoramento de mecanismos de referência e contra-referência intermunicipal,
alocação de investimentos para a compor sistemas funcionais e resolutivos, entre
outros.

Apesar de conter os mecanismos, estratégias e instrumentos que


possibilitam a construção de objetivos conjuntos, as diretrizes da NOAS enfatizam
demasiadamente os aspectos assistenciais e individualizados da atenção à saúde,
em detrimento do planejamento direcionado a políticas de prevenção e promoção
de caráter coletivo. Este aspecto assume uma dimensão estratégica no processo
de regionalização, uma vez que as ações e programas relacionados à prevenção
e promoção da saúde apresentam um potencial considerável de trabalho coletivo,
visto que estes podem ser estruturados a partir de bases que transcendem os
limites do município. Esta possibilidade de articulação de esforços se manifesta,
por exemplo, no caráter regional de apresentação dos aspectos epidemiológicos
da atenção à saúde, ou seja, programas e projetos ganham maior eficácia quando
direcionados a regiões, uma vez que estas, como reconhece o próprio texto da
NOAS, possuem singularidades em termos de características demográficas,
socioeconômicas, geográficas, sanitárias, epidemiológicas, entre outras. Este
potencial de ação coletiva não é devidamente explorado pela NOAS, sendo que as
determinações desta praticamente não abordam instrumentos e estratégias neste
sentido.

Por exemplo, de forma conclusiva, em relação a este tópico, referente á


obtenção de objetivos comuns a partir de metas particulares, é possível afirmar
que as diretrizes contidas na NOAS geram impulsos tanto no sentido de compor

218
um padrão de interdependência em rede, pela presença de instrumentos e
mecanismos de assistência à saúde que contribuem neste sentido, quanto no
sentido apenas manter padrões de interdependência caracterizados por baixa
institucionalidade, por não incluir instrumentos e mecanismos voltados para o
trabalho conjunto envolvendo ações e programas coletivos de prevenção e
promoção à saúde.

5.3.7 – Instâncias de Estratégia

Prosseguindo no processo de análise do padrão de interdependência


contido nas diretrizes da NOAS, como demonstrado no Capítulo 3 (seção 3.1), o
desenvolvimento de uma estrutura de rede envolve a institucionalização das
relações de interdependência existentes, processo este que requer a presença de
bases organizacionais como suporte para a organização do trabalho coletivo e a
composição de coalizões políticas internas e externas na construção da
governança da rede. Da mesma forma, como argumentado na análise do
elemento anterior (formação de objetivos coletivos), a estruturação conjunta de
bases organizacionais de suporte e condução do trabalho coletivo e de
desenvolvimento da convergência de forças na sustentação política da estrutura
da rede é parte essencial no processo de construção de objetivos maiores comuns
aos componentes da rede.

Sendo assim, como demonstrado no Capítulo 3 (seção 3.4), a presença


destas bases sustenta o processo de institucionalização da rede, fornecendo-lhe
uma estrutura organizacional tanto para integrar e articular de forma eficiente
atores e organizações, quanto para fomentar a construção de estratégias de
sustentabilidade política. Como afirmado na ocasião, tais bases constituem
núcleos de ativação das redes, no sentido de que a estruturação destas instâncias
ao nível do cluster de recursos, envolvendo atores e organizações diretamente
relacionados às atividades cotidianas da rede, possibilita a ampliação da

219
governança necessária à consolidação das relações de coordenação
interorganizacional. Isto porque a governança emerge da coesão propiciada pela
interdependência gerada no interior do cluster de recursos, tendo nestes seus
pilares de sustentação. Estas bases institucionais consistem nas instâncias de
estratégias, nos espaços internos de pactação e nos canais externos de
articulação. Cabe, então, analisar como as diretrizes das NOAS articulam a
inserção destas bases no interior da estratégia de regionalização, uma vez que
para a construção de um padrão de interdependência em rede torna-se importante
não só a presença destas bases, mas também a forma de inserção destas, como
demonstrado no Capítulo 3.

A primeira base institucional a ser analisada constitui as instâncias de


estratégia, que consistem em suportes organizacionais da rede especificamente
direcionados para a articulação e integração das bases de recursos envolvidas
nas relações de interdependência, de forma a promover racionalidade sistêmica e
flexibilidade organizacional. Enquanto em espaços interorganizacionais de baixa
institucionalidade apresentam-se mecanismos e instrumentos isolados e
temporalmente limitados para a operacionalização de estratégias visando articular
recursos, atores e organizações, a emergência de um padrão de interdependência
em rede envolve e construção de instâncias de estratégia coletivamente definidas
e inseridas no cluster da rede, de forma a possibilitar a composição articulada de
estratégias e instrumentos de promoção da racionalidade sistêmica e da
flexibilidade operacional.

Desta forma, como argumentado no Capítulo 3 (seção 3.4), a composição


de tais instâncias inseridas diretamente no cluster da rede permite definir e
redefinir constantemente as diretrizes de organização do trabalho coletivo, uma
vez que permite acompanhar as transformações na dinâmica relacional da rede,
gerando flexibilidade e eficiência na alocação de recursos. Entretanto, a
estruturação destas instâncias de estratégia fora do cluster da rede, implicando na
definição externa de estratégias mecanismos e parâmetros de articulação de
recursos, atores e organizações, caracteriza a presença de centralização
operacional e decisória.

220
A análise da atuação de instâncias de estratégia como parte da estratégia
de regionalização estabelecida pelas diretrizes da NOAS pode ser realizada com
base nos processos-chave de territorialização e de planejamento descritos na
seção 4.2. Neste caso, a análise do processo de planejamento deve ser realizada
antes e depois combinada com a análise da territorialização.

Desta forma, os elementos que são essenciais no interior do processo de


planejamento consistem na forma de coordenação do PDR e das estratégias de
racionalidade sistêmica, uma vez que nestes estão contidas as diretrizes de
integração e articulação das bases de recursos subjacentes às relações de
interdependência que sustentam o processo de regionalização.

De acordo com as diretrizes da NOAS, a condução do processo de


planejamento da regionalização representa seu ordenamento a partir da
elaboração, implantação, monitoramento e avaliação do PDR. Este processo,
como afirmado na seção 4.2, envolve fluxos de informações, de consulta técnica,
de processo decisório, de composição de estratégias hierarquização de serviços,
de definição de parâmetros de alocação de financiamento de custeio, de
identificação de prioridades de intervenção para realização de investimentos, de
desenvolvimento de análises visando a redistribuição geográfica de recursos
tecnológicos e humanos, entre diversos outros. Estas tarefas, na medida em que
são parte de uma estratégia coletiva definida entre as esferas de governo,
principalmente a estadual e a municipal, configuram a existência de um
planejamento voltado especificamente para a integração e articulação das bases
de recursos, de forma a obter eficiência microeconômica na realização do trabalho
coletivo.

Da mesma forma, a concepção da regionalização como um processo


dinâmico, visando otimizar recursos e conformar sistemas funcionais de saúde,
envolve a composição de uma estratégia de racionalidade sistêmica expressa no
desenvolvimento do Plano Diretor de Investimentos, nas atividades que sustentam
o zoneamento territorial que resulta nas regiões/microrregiões de saúde
(distribuição espacial da oferta entre municípios, análises epidemiológicas,

221
demográficas, sanitárias, etc.), na programação da assistência via PPI e nas
atividades de controle, regulação e avaliação do processo de regionalização, bem
como nos instrumentos desenhados para a realização destas atividades.

Em ambos os casos, a forma de coordenação adotada pela NOAS,


mediante o intercâmbio entre os municípios e a esfera estadual, estabelece a SES
como instância fundamental na materialização do processo de regionalização da
atenção à saúde. Sendo assim, uma vez que a NOAS estabelece a existência e a
construção coletiva de estratégias, instrumentos e mecanismos de integração e
articulação das bases de recursos na promoção de racionalidade sistêmica, e que
estes possuem na SES as bases organizacionais de sua condução, torna-se a
SES a instância estratégica do processo de regionalização. Neste sentido, toda a
estratégia de configuração e materialização do processo de regionalização é
definido no interior da SES, sendo que suas analises são as que fornecem os
fundamentos de orientação do processo decisório referente aos aspectos de maior
relevância para a definição dos rumos da regionalização em cada estado. Desta
forma, a SES é a instância estabelecida pela NOAS para compor e orientar a
realização do trabalho coletivo entre os municípios de cada região de saúde e os
atores da esfera estadual, sendo que todas as etapas do ciclo de políticas
referente à regionalização, desde a elaboração do PDR até a avaliação das
estratégias implementadas, têm na SES sua base de coordenação. Neste sentido,
uma vez que as diretrizes da NOAS estabelecem bases organizacionais definidas
de organização do trabalho coletivo e da composição de uma estratégia de
racionalidade sistêmica na integração e articulação dos recursos e organizações
envolvidos, é possível que tais diretrizes contribuem para formação de um padrão
de interdependência em rede.

Entretanto, como visto nas análises iniciais desta seção, a região de saúde,
tal qual definida pela NOAS, é o conceito que apresenta os elementos essenciais
que caracterizam uma rede em potencial, uma vez que é composta por atores
autônomos (municípios e demais atores da Sociedade Civil e do Mercado), que
mantém relações de interdependência de recursos (referenciamento intermunicipal
no interior do SUS, e demais intercâmbios econômicos, sociais, políticos, etc) com

222
certa estabilidade. Ou seja, uma região de saúde consiste no espaço
interorganizacional que corresponde ao cluster de recursos com potencial de
formação de uma estrutura em rede devido ao seu maior nível de
interdependência interno. Este aspecto é de fundamental importância na análise
em questão, uma vez que o essencial não está somente na presença de
instâncias de estratégia visando o suporte às relações de interdependência, mas
também na forma de inserção destas instâncias no cluster da rede.

Sendo assim, uma vez que a SES consiste na única instância de estratégia,
que orienta o trabalho coletivo no âmbito de todo o estado, e que a região de
saúde possui apenas dimensão territorial, na medida em que não tem expressão
política, decisória ou organizacional, a instância de estratégia está estabelecida
fora do cluster da rede e, portanto, não se insere na dinâmica cotidiana das
relações de interdependência estabelecidas. Como afirmado no Capítulo 3, a rede
consiste numa forma de organização extremamente dinâmica, onde a velocidade
de adaptação das estratégias de articulação e integração das bases de recursos
torna-se um elemento essencial na garantia tanto de racionalidade sistêmica
quanto de flexibilidade operacional. Assim, segundo o referencial teórico
desenvolvido no Capítulo anterior, a estruturação da instância de estratégia, sem
relação direta com o cotidiano e com a dinâmica relacional do cluster de recursos,
atores e organizações, formado por uma região de saúde, compromete a eficácia
e a eficiência de suas estratégias de racionalidade sistêmica e de flexibilidade
operacional. Sendo assim, é possível afirmar que as diretrizes contidas na NOAS
não contribuem para a formação de um padrão de interdependência em rede, uma
vez que as estratégias, mecanismos e instrumentos e parâmetros de articulação
das bases de recursos são definidos em instâncias de estratégia fora do cluster de
recursos da região de saúde, caracterizando um padrão de elevada
institucionalidade.

223
5.3.8 – Espaços Internos de Pactação

De acordo com o referencial desenvolvido no Capítulo 3, a segunda base


institucional a ser analisada constituem os espaços internos de pactação, que
consistem em instâncias de articulação decisória e estão diretamente relacionados
à dinâmica de poder da rede. Neste sentido, o suporte fornecido pelos espaços
internos de pactação visa possibilitar a convergência de forças políticas em torno
de objetivos e projetos coletivamente construídos, ou seja, busca mediar
interesses e gerir conflitos.

Neste sentido, os espaços internos de pactação apresentam-se como


instâncias de redução da incerteza estratégica que predomina em espaços
interorganizacionais de baixa institucionalidade. Assim, a presença de espaços
internos de pactação possibilita o desenvolvimento de um processo de
aprendizagem estratégica, onde os atores e organizações em relações de
interdependência constroem estratégias de compartilhamento do poder decisório,
compõem consensos e projetos hegemônicos mediante processos constantes de
composição de forças, articulações, negociação e ajuste de suas diferenças e
divergências em termos de interesses, percepções e estratégias de ação. Os
espaços internos de pactção, então, consistem nas instâncias onde se constrói a
governança da rede e devem estar articulados e inseridos diretamente em seu
interior, de forma a ampliar a legitimidade das decisões sobre os objetivos maiores
e sobre as estratégias para atingi-los. Neste sentido, as decisões mais relevantes
que produzem impacto sobre as atividades realizadas de forma conjunta ocorrem
nos espaços internos de pactação, sendo que a preponderância decisória é
prerrogativa dos atores e organizações que compõem o cluster da rede, ou seja,
decisões tomadas com base na preponderância de atores externos podem
produzir impasses por insuficiência de legitimidade.

Além da necessidade de promover a preponderância decisória dos atores


que compõem a rede, da mesma forma que as instâncias de estratégia, a inserção
dos espaços internos de pactação no cluster da rede justifica-se também pela

224
natureza dinâmica e específica das relações de interdependência que sustentam
cada rede, exigindo que tais espaços sejam capazes de interpretar as
transformações do cotidiano e responder de forma rápida e adequada.

Neste sentido, tanto flexibilidade decisória quanto autonomia são os


elementos essenciais na construção da governança da rede, sendo estes os
fundamentos de composição dos espaços internos de pactação. Ou seja, na
medida em que a governança da rede possui especificidades, como argumentado
no Capítulo 3, exigindo autonomia decisória, constantes negociações e
flexibilidade de reposta, somente a existência de canais internos de pactação
estruturados a partir da dinâmica local do cluster da rede pode proporcionar bases
institucionais adequadas para o desenvolvimento de um processo de
aprendizagem estratégica.

A análise da construção da governança em espaços de pactação como


parte da estratégia de regionalização estabelecida pelas diretrizes da NOAS pode
ser realizada a partir do processo-chave de planejamento. Como visto na seção
4.2, a concepção da regionalização como um processo dinâmico implica no
desenho de uma série de novos instrumentos e mecanismos que buscam um
conhecimento mais apurado não só da distribuição espacial dos recursos
assistenciais, mas também do intercâmbio destes recursos no interior do SUS. O
conhecimento resultante proporciona bases para projetar uma nova configuração
tanto da distribuição quanto do intercâmbio de recursos de forma a compor
sistemas de saúde dotados de maior capacidade de acesso, equidade e
integralidade. Ou seja, a ação destes instrumentos e mecanismos visa introduzir
racionalidade sistêmica ampliando a velocidade das transformações no
aperfeiçoamento da performance do SUS.

Na medida em que a regionalização envolve essencialmente uma estratégia


de transformação que produz impactos sobre todos os atores envolvidos,
especialmente para os municípios, esta possui um potencial de conflito e de
incerteza estratégica elevado, necessitando de enormes esforços políticos, de
negociação e ajuste de percepções, de convergência de interesses, etc. Neste

225
sentido, como visto na seção 4.2, a NOAS estabelece que, para garantir que o
processo de planejamento da regionalização expresso no PDR, que rearticula
recursos e atores de forma eficiente, ganhe expressão real e possa materializar os
princípios de universalidade, equidade e integralidade, torna-se necessária à
composição de um pacto de compromisso entre o gestor estadual e os gestores
municipais no âmbito de cada estado. Sendo assim, a NOAS delega a construção
do processo de governança da regionalização à relação entre a esfera estadual e
a municipal.

Este pacto de compromisso, como visto na seção 4.2, compreende o


estabelecimento de um acordo juridicamente definido onde estão previstas
diversas obrigações mútuas para garantir a efetividade da estratégia de
regionalização, sendo que ao estado a União entrega os meios financeiros para
conduzir o pacto de compromisso estabelecido como os municípios. No entanto, a
assinatura deste termo jurídico consiste na etapa final do processo de construção
do pacto de compromisso entre estado e municípios. Como afirmado na ocasião,
este pacto de compromisso perpassa todo o processo de construção de
instrumentos e mecanismos de integração e articulação de recursos que
constituem o próprio desenvolvimento da estratégia de regionalização,
configurando um processo de planejamento conjunto entre as esferas estadual e
municipal.

Neste sentido, a governança da regionalização é construída ao longo deste


processo de constantes envolvimentos entre os gestores de ambos os lados
visando a obtenção de convergência em torno de uma série de aspectos relativos
à futura configuração da atenção à saúde, desde a análise de informações até a
avaliação das atividades resultantes da operacionalização do PDR. Sendo assim,
todo este processo é definido coletivamente e, devido ao fato de ser realizado
entre duas esferas de governo, o formato institucional do SUS estabelece que seja
realizado no interior da Comissão Intergestores Bipartite – CIB.

Desta forma, a CIB se apresenta como um espaço de pactação onde se


deve construir a governança da regionalização, possibilitando que ocorra um

226
processo de aprendizagem estratégica entre os atores e organizações envolvidos,
na medida em que na CIB deverão ser resolvidos os impasses, mediados conflitos
de interesses, ajustadas percepções e estratégias de ação. Sendo assim, uma vez
que a NOAS estabelece a existência de espaços de pactação para a convergência
de forças políticas, onde há a construção coletiva do processo decisório, pode-se
dizer que suas diretrizes contribuem para a formação de um padrão de
interdependência em rede.

Entretanto, como afirmado na análise das instâncias de estratégia, a região


de saúde é o conceito que apresenta os elementos essenciais que a caracteriza
como o espaço interorganizacional que corresponde ao cluster de recursos com
potencial de formação de uma estrutura em rede devido ao seu maior nível de
interdependência interno. Sendo assim, como afirmado acima, a natureza da
governança em rede implica na necessidade de compor os espaços de pactação
internamente, ou seja, inseridos no cluster da rede, uma vez que torna-se
necessário ter autonomia, sendo as decisões tomadas com base na
preponderância decisória local, e flexibilidade decisória, onde torna-se essencial a
capacidade de interpretar e responder rapidamente à transformações.

Sendo assim, uma vez que, de acordo com o formato decisório adotado
pela NOAS, a CIB consiste no único espaço de pactação para a convergência de
forças políticas de suporte à regionalização, sendo o espaço exclusivo para o
desenvolvimento das principais estratégias e coalizões necessárias, o espaço de
pactação está estabelecido de forma externa ao cluster da rede, reduzindo seu
potencial de legitimidade decisória e de sintonia com a dinâmica relacional dos
atores e organizações que compõem o cluster da rede. Da mesma forma que as
instâncias de estratégia, a forma de inserção dos espaços de pactação não
confere expressão política e decisória às regiões de saúde, uma vez que as
principais estratégias e projetos no desenvolvimento da regionalização são
definidos sob a condução da esfera estadual, o que confere baixo grau de
autonomia aos municípios que integram as regiões de saúde.

227
Desta forma, o formato de planejamento e processo decisório estabelecido
pela NOAS, com a instituição do gestor estadual como condutor do pacto de
compromisso, por meio do Termo de Compromisso de Garantia de Acesso e da
CIB como espaço único de pactação, configuram uma relação de
interdependência direta entre o gestor estadual e os municípios, estabelecendo,
assim, um padrão de governança caracterizado pela preponderância da esfera
estadual. Esta preponderância estadual é reforçada na medida em que o gestor
estadual é o ator que detém os recursos de maior relevância na definição da
estratégia de regionalização, fato este que reduz a autonomia decisória dos
municípios nas negociações na CIB. Sendo assim, uma vez que as diretrizes da
NOAS não estabelecem espaços internos de pactação ao nível das regiões de
saúde, convergindo o processo de aprendizagem estratégica para as instâncias da
esfera estadual e reduzindo a grau de autonomia e de flexibilidade decisória dos
municípios, é possível afirmar que não contribuem para a formação de um padrão
de interdependência em rede. Isto porque a coordenação política é centralizada
com a definição externa de objetivos e estratégias, caracterizando elevada
institucionalidade.

5.3.9 – Canais Externos de Articulação

Finalmente, para concluir a análise relativa ao padrão de interdependência


fomentado pela NOAS, de acordo com o referencial desenvolvido no Capítulo 3,
cabe examinar a atuação dos canais externos de articulação. Como visto na
ocasião, estes consistem em instâncias externas de articulação dos atores da rede
junto a atores e organizações considerados de relevância em termos de
capacidade decisória e domínio de recursos. Os canais externos de articulação
são os espaços de definição de parâmetros mínimos de composição institucional
do sistema de proteção social, ou seja, de estruturação das regras fundamentais
que estabelecem a forma de organização geral do sistema no qual a rede está
inserida.

228
Sendo assim, os canais externos de articulação permitem inserir os atores
da rede em processos decisórios relativos à definição de formatos institucionais
gerais que produzem impacto sobre a estruturação das redes a nível local. A
definição destes parâmetros e regras gerais de organização e gestão das redes
locais envolve um processo de aprendizagem institucional que tem nos canais
externos de articulação seu suporte organizacional, ao proporcionar uma base
constante de revisão de regras, parâmetros de normalização e diretrizes básicas
de organização, ou seja, fundamentos institucionais que fornecem o formato sobre
o qual se desenvolverão as relações de interdependência de todo o sistema.

Numa perspectiva comparativa com os espaços internos de pactação, os


canais externos de articulação são estabelecidos fora do cluster da rede e estão
relacionados à determinação de aspectos mais profundos do sistema de proteção
social, ou seja, relacionam-se à governança do sistema como um todo, enquanto
os primeiros relacionam-se com o processo de governança á nível da rede. Neste
sentido, os canais externos de articulação são essenciais na medida em que as
decisões que são tomadas nestes definem qual a estrutura geral que irá orientar
as relações de intercâmbio de recursos e de organização coletiva do trabalho
entre os atores e organizações envolvidos. Uma vez que estes canais externos de
articulação são os responsáveis pela condução geral do sistema, estes devem
acompanhar o desenvolvimento das atividades de implantação e organização da
rede, avaliando os parâmetros institucionais desenhados e redimensionando-os na
medida em que a dinâmica o exigir.

Sendo assim, estes canais externos de articulação não avançam sobre as


questões relativas à governança da rede, nem interferem nas estratégias
operacionais desenhadas, que são delegadas aos atores e organizações
localizados ao nível do cluster da rede, atuando somente nas questões relativas à
definição geral dos parâmetros do sistema e monitorando e orientando sua
dinâmica geral. Sendo assim, a forma de ação e de relação dos canais externos
de articulação com as redes interfere no grau de autonomia dos atores e
organizações inseridos no cluster de cada rede. Em espaços interorganizacionais
de elevada institucionalidade, a ação destes canais externos de articulação

229
avança sobre a determinação da governança local da rede, fixando estratégias e
mecanismos de coordenação internos a esta.

A análise ação destes canais externos de articulação no interior da


estratégia de regionalização estabelecida pela NOAS pode ser realizada a partir
do exame da ação das instâncias e atores centrais do SUS no processo-chave de
planejamento. A análise aqui desenvolvida toma como base o Ministério da
Saúde, a Comissão Intergestores Tripartite e o Conselho Nacional de Saúde, na
medida em que são os atores e instâncias que determinam os fundamentos do
sistema.

As diretrizes da NOAS estabelecem que as atividades realizadas de forma


conjunta entre os municípios e o gestor estadual, atividades estas que consistem
na definição das principais estratégias e instrumentos na composição do PDR e
que definem os rumos do processo de regionalização (Tabela 14), sejam
submetidos às instâncias federais do SUS para qualificação. Este processo
envolve, como visto na figura 2, inicialmente uma análise de conteúdo e
viabilidade pelo MS, e posterior deliberação e homologação pela CIT. Dessa
forma, todo o processo de construção dos instrumentos e mecanismos que visam
estruturar, no âmbito de cada estado, uma estratégia de regionalização, mediante
o aprofundamento das relações de interdependência entre os municípios,
necessita ainda da ratificação e sanção das instâncias federais para que haja
autorização destas sobre a alocação dos meios financeiros federais, que
sustentam economicamente todo o processo de regionalização. Portanto, a ação
dos atores e instâncias federais relativas ao processo de elaboração e definição
das estratégias de regionalização envolve não só a determinação de normas e
parâmetros institucionais, mas também a interferência no formato das estratégias
e mecanismos construídos ao nível do cluster das redes locais, que são as regiões
de saúde.

Da mesma forma que o processo de construção dos instrumentos e


mecanismos que compõem o PDR, diversos outros aspectos da estratégia de
regionalização também evidenciam a inserção decisória das instâncias federais do

230
SUS em questões que transcendem a simples determinação dos parâmetros
institucionais gerais do sistema. Estas inserções se verificam de forma enfática
principalmente no processo de qualificação das regiões/microrregiões de saúde e
na definição e gestão da PPI.

A qualificação das regiões de saúde, ou seja, o reconhecimento formal de


que efetivamente houve a organização de intercâmbio de recursos assistenciais
para a garantia de acesso à população residente nos municípios correspondentes,
consiste numa etapa posterior à elaboração e aprovação do PDR. Este processo
de reconhecimento é realizado nas instâncias federais e envolve a verificação de
uma e comprovação de série de requisitos que envolvem principalmente a
avaliação pelas instâncias federais do Termo de Compromisso para Garantia de
Acesso firmado entre o gestor estadual e os municípios e dos mecanismos de
regulação da garantia de acesso às referências intermunicipais construídos
coletivamente entre estado e municípios. Neste caso, a inserção das esferas
federais interfere nas estratégias e mecanismos da governança interna das
regiões de saúde regulando as relações de interdependência entre os municípios,
que são tuteladas pela esfera estadual que detém a preponderância no processo
de planejamento da regionalização. Esta regulação, que envolve a qualificação
das regiões de saúde, consiste na condição para a autorização de financiamento
federal das ações e procedimentos assistenciais relativos às referências
intermunicipais que representam o núcleo da estratégia de regionalização.

A mesma forma de ação das instâncias federais, via financiamento das


atividades que consistem no núcleo da interdependência municipal de acordo com
estratégia estabelecida na NOAS, se reproduz no processo de composição e
gestão da PPI. Segundo a NOAS, a qualificação das regiões de saúde apenas
ocorrerá naquelas onde a PPI estadual tiver definido a alocação dos recursos
destinados ao financiamento dos procedimentos mínimos da média complexidade
(1º nível de referência da média complexidade) no município-sede dos módulos
assistenciais. Desta forma, as esferas federais determinam que o gestor estadual
esteja acompanhando a dinâmica das referências intermunicipais e que forneça

231
uma comprovação deste processo para que seja autorizada a alocação financeira
federal.

Portanto, de forma conclusiva, a ação dos canais externos de articulação


nos moldes, estabelecidos pela NOAS, não só estabelecem parâmetros
institucionais gerais do sistema, mas também interferem na governança interna
das regiões de saúde, configurando elevada institucionalidade, de acordo com o
referencial estabelecido no Capítulo 3.

232
CAPÍTULO 6 – Consolidando as Análises: uma governança em rede?

Neste capítulo serão resumidos os resultados das análises desenvolvidas


ao longo do Capítulo 3, bem como apresentadas as possíveis implicações destes
resultados para a dinâmica gerencial implícita na estratégia de regionalização da
NOAS (seção 5.1). Finalmente serão desenvolvidas, à luz das análises realizadas,
sugestões normativas em termos de diretrizes de redefinição da estratégia de
regionalização da saúde no Brasil.

6.1 – Definindo o padrão de interdependência e governança

Uma vez realizada a análise do padrão de interdependência impulsionado


pela estratégia de regionalização da NOAS, de acordo com os elementos
apresentados pelo referencial produzido no Capítulo 3, torna-se possível sintetizar
os resultados e extrair uma configuração geral deste padrão de interdependência.

Como demonstrado na seção 4.2, as diretrizes da NOAS aprofundam as


relações de interdependência municipal no interior do SUS como estratégia para a
ampliação do caráter universal, eqüitativo e integral das políticas públicas de
saúde. Ao promover a territorialização da política de saúde, a NOAS redefine as
bases relacionais de intercâmbio entre os municípios, intensificando-as, e gerando
um espaço interorganizacional antes inexistente no formato institucional do SUS.
Assim, este espaço interorganizacional envolve principalmente a relação entre
municípios e destes como a esfera estadual, uma vez que o formato de
regionalização adotado na NOAS estabelece o gestor estadual como coordenador
deste processo.

Desta forma, a estratégia da NOAS de composição de sistemas funcionais


de saúde consiste no aprofundamento das relações de interdependência entre os
municípios de forma a integrar as bases assistenciais destes, ampliando o acesso
da população a níveis mais elevados de complexidade de serviços. Assim, as
análises buscaram identificar se as diretrizes estratégicas da NOAS produzem

233
estímulos para a construção de um padrão de interdependência em rede capaz de
manifestar as potencialidades destas como forma de coordenação
interorganizacional no aperfeiçoamento gerencial do SUS, ou seja, se tais
diretrizes contém elementos que impulsionam a composição de bases
consistentes e sustentáveis de organização do trabalho coletivo.

A seção 4.2 (Capítulo 4) identificou os processos-chave de territorialização


e de planejamento como sendo os eixos da estratégia da NOAS, sendo estes os
processos que modelam o formato das relações de interdependência
impulsionadas na composição da regionalização da saúde no Brasil. Com bases
nestes processos-chave, analisou-se o padrão de interdependência fomentado
pela NOAS no Capítulo 5.

A análise demonstrou que, à luz do referencial teórico produzido no


Capítulo 3 a partir da leitura sistemática da literatura internacional sobre redes em
administração pública, as diretrizes da NOAS impulsionam um padrão de
interdependência entre os municípios, no âmbito do sistema estadual de saúde,
caracterizado por:

(1) Foco gerencial em atividades complementares, principalmente no que se


refere à média complexidade;

(2) Envolvimento dos atores dos níveis operacional, tático e estratégico, com
inserção seletiva destes atores (ênfase nos gestores municipais em
detrimento da Sociedade Civil);

(3) Construção coletiva de regras gerais que orientam o trabalho coletivo e a


composição da governança, assim como de normas que interferem na
dinâmica operacional do trabalho coletivo (utilização e emprego de fatores
de produção), caracterizando alta formalidade;

234
(4) Estabelecimento de estratégias de gestão coletiva de recursos e de
compartilhamento decisório, com o domínio elevado de recursos de
recursos por um único ator, caracterizando certo grau de centralização de
poder;

(5) Concepção das funções de controle, regulação e avaliação como parte de


uma estratégica de suporte ao processo de planejamento, caracterizada
pela centralização das informações e mecanismos de obtenção de
racionalidade sistêmica;

(6) Presença de instrumentos e mecanismos que impulsionam a construção de


objetivos comuns relacionados à dimensão assistencial da atenção à
saúde, e ausência destes direcionados a exploração do potencial de
trabalho coletivo referente à prevenção e promoção;

(7) Estabelecimento de bases organizacionais definidas de organização do


trabalho coletivo e da composição de uma estratégia de racionalidade
sistêmica, com a inserção das instâncias de estratégia de forma externa às
regiões de saúde;

(8) Definição de espaços de pactação para construção da governança,


possibilitando que ocorra um processo de aprendizagem estratégica entre
os atores e organizações envolvidos, sendo estes espaços estabelecidos
fora do cluster das regiões de saúde caracterizando um processo de
coordenação política centralizada na esfera estadual; e

(9) Composição compartilhada dos parâmetros relativos ao formato


institucional do sistema, e interferência dos canais externos de articulação

235
no escopo das estratégias e mecanismos construídos para gerenciar as
atividades de coordenação interorganizacional ao nível do cluster das
regiões de saúde.

Estes são os principais elementos que definem o padrão de interdependência


estabelecido pelas diretrizes da NOAS entre os atores e organizações envolvidos
no processo de regionalização da saúde no interior do SUS. Este padrão de
interdependência manifesta, como visto ao longo da análise, ao mesmo tempo
característica de formações interorganizacionais em rede e elementos
desfavoráveis neste sentido, tanto por não estabelecer instrumentos e
mecanismos de ação coletiva na prevenção e na promoção da saúde quanto por
compor um formato de coordenação do processo-chave de planejamento
caracterizado pela preponderância do gestor estadual. Este padrão de
interdependência induzido pelas diretrizes da NOAS pode ser mais bem
compreendido quanto visualizado à luz da tipologia estabelecida no referencial
teórico:

Tabela 17 - Elementos Institucionais do Padrão de Interdependência


Fomentado pela NOAS
Dimensões de Baixa Interdependência Institucionalidade
Análise Institucionalidade em Rede Elevada
Atividades Supremacia do
Atividades
Foco Gerencial particulares caráter coletivo das
complementares
(organizacionais) atividades
Nível operacional,
Atores envolvidos Nível operacional e Níveis tático e
tático e estratégico;
e amplitude de tático estratégico
Ampla inserção de
Inserção Inserção limitada Inserção seletiva
atores
Construção
coletiva de regras
Nível de
Poucas regras gerais e interativa Alta formalidade
Formalização
de regras
operacionais
Poucos recursos Nível médio de Domínio elevado
Recursos
comprometidos recursos de recursos por um
envolvidos
Gestão dispersa comprometidos ator específico ou

236
dos recursos Desenvolvimento poucos atores
de estratégias de
mecanismos de
gestão
compartilhada dos
recursos
Dispersos e
exercido de forma
Construção de
direta
formas e
Tende a enfatizar
estratégias de
as possibilidades
compartilhamento
Foco de Poder de cada ator de Poder centralizado
decisório
acordo com as
Foco de poder
assimetrias de
descentralizado e
domínio de
compartilhado
recursos.

Centralização de
informações e
Foco
mecanismos de
complementar de
Foco fiscalizador racionalidade
sistemas
disperso em sistêmica, típico de
Foco de controle articulados
diversos processos hierarquias
Caráter estratégico
de intercâmbio Ênfase na
de suporte à
dimensão
dinâmica gerencial
fiscalizadora do
controle
Ênfase exagerada
Foco principal nas Construção de um
nos aspectos
metas singulares compromisso em
coletivos podendo
de cada torno de objetivos
centralizar
organização maiores a partir
Objetivos atividades e
Realização de dos objetivos
processos, em
objetivos isolados particulares de
detrimento dos
e sem cada ator ou
objetivos
coordenação organização
particulares
Ausentes ou pouco Inseridas no cluster Estruturadas fora e
desenvolvidas da rede acima da rede
Instâncias Articulação Definição flexível e Definição externa e
estratégicas de insipiente da base compartilhada de mais rígida de
coordenação de recursos estratégias, estratégias,
interorganizaciona Ausência de mecanismos e mecanismos e
l estratégia de parâmetros de parâmetros de
racionalidade articulação da base articulação da base
sistêmica de recursos de recursos
Espaços internos Ausentes ou pouco Inseridas no cluster Estabelecidas fora

237
de pactação desenvolvidos da rede do cluster da rede
Predomínio de Processo de Coordenação
incerteza Aprendizagem política
estratégica estratégica centralizada
Definição e Definição externa
redefinição de objetivos,
constante e estratégias e
compartilhada de projetos de política
objetivos pública
Formação e
redefinição de
projetos
hegemônicos
Processos de
definição
compartilhada dos
Apenas Interferência
parâmetros
informalmente externa nos
mínimos relativos
desenvolvidos principais
ao formato
Canais externos (articulação parâmetros,
institucional da
de articulação informal) estratégias e
rede
Predomínio de mecanismos de
Homologação das
incerteza coordenação da
estratégias e
institucional rede
consensos
construídos ao
nível da rede
Fonte: elaboração própria.
Padrão de Interdependência Impulsionado pela NOAS.

Este padrão de interdependência, segundo a literatura sobre redes, possui


limitações em termos da capacidade de integração dos atores e organizações na
promoção do trabalho coletivo e da governança no inteiro do SUS. Assim, uma
vez que as análises realizadas neste capítulo possibilitaram a definição das
características que delineam o padrão de interdependência impulsionado pelas
diretrizes da NOAS, torna-se possível examinar quais são as implicações para a
dinâmica gerencial do processo de regionalização.

6.2 – Implicações para a Dinâmica Gerencial da Regionalização

238
A partir da análise da Tabela 17, que sumaria os resultados obtidos ao
longo do Capítulo 4, é possível perceber que as diretrizes da NOA estimulam uma
dinâmica de interdependência municipal fundamentalmente caracterizada tanto
por elementos de um padrão de interdependência em rede quanto por um padrão
de elevada institucionalidade. As principais conseqüências para a dinâmica
gerencial do processo de regionalização, de acordo com o referencial teórico
desenvolvido no Capítulo 3, consistem no fato de que a as diretrizes da NOAS
tanto formam bases (instrumentos e estratégias gerenciais) consistentes de
organização do trabalho coletivo quanto geram elementos para a emergência de
conflitos e crises de governança no interior do SUS, principalmente entre as
esferas estadual e municipal.
As bases para a formação de um potencial de trabalho coletivo estão
explicitamente estabelecidas nas diretrizes que fundamentam os processos-chave
de territorialização e de planejamento. Conforme demonstrado ao longo do
Capítulo 4, esses processos-chave são compostos por instrumentos e estratégias
que visam efetivamente a intensificação deliberada e planejada das relações
intermunicipais de intercâmbio de recursos, assim como a integração e a
articulação das bases de provisão de serviços.
Assim, a delimitação de referências territoriais (módulos assistenciais, e
microrregiões, regiões e macrorregiões de saúde) para a composição de políticas,
programas e sistemas organizacionais, a definição de uma lógica ascendente de
complexidade de serviços para a composição dessas referências e a
obrigatoriedade de estruturação das políticas e planos a partir das mesmas
referências são diretrizes que integram a estratégia de territorialização das bases
de organização da saúde da NOAS e possuem um potencial de integração e
articulação intermunicipal sem precedentes no processo de construção do SUS.
Da mesma forma, os instrumentos e mecanismos delineados para fornecer
suporte ao processo de planejamento da regionalização da saúde compõem um
conjunto de elementos com potencial de integração e articulação intermunicipal de
atores e organizações superior aos instrumentos e mecanismos até então
presentes na arquitetura institucional do SUS, com exceção da PPI.

239
Desta maneira, a instituição de instrumentos fundamentais de
planejamento, como o Plano Diretor de Regionalização, o Plano Diretor de
Investimentos, a Programação Pactuada e Integrada para áreas e políticas
específicas, mecanismos diversos de promoção da racionalidade sistêmica
(análises de capacidade instalada, de distribuição espacial desta capacidade,
projeções de realocação otimizada de recursos e investimentos, processos e
mecanismos de controle e regulação de fluxos intermunicipais) entre outros,
fornecem bases de organização do trabalho coletivo bem mais amplas do que as
proporcionadas pelos instrumentos e estratégias disponíveis até então no interior
do SUS.
Assim, como demonstrado pelas análises conduzidas durante o Capítulo 5,
e sumariadas na Tabela 17, o conjunto dos elementos que conforma a estratégia
de regionalização contida na NOAS introduz no espaço intermunicipal do SUS um
potencial de organização do trabalho coletivo capaz de gerar relações de
interdependência em rede, o que significa que existem, nesta estratégia, diretrizes
com capacidade de ampliar o grau de integralidade e equidade das políticas de
saúde. A única exceção consiste na pouca ênfase para a formação de objetivos
coletivos além das metas assistênciais individuais (linha 7 da Tabela 17), uma vez
que a estratégia da NOAS não inclui instrumentos e mecanismos direcionados a
compor ações, atividades e programas coletivos de prevenção e promoção da
saúde. Ou seja, as diretrizes da NOAS enfatizam exclusivamente os aspectos
assistenciais e individualizados da atenção à saúde. Neste sentido, a NOAS
desconsidera todo um potencial de trabalho coletivo que pode ser obtido por meio
da realização de ações, atividades e programas intermunicipais de atenção
primária.
Desta forma, as análises sugerem que as diretrizes da NOAS impulsionam
a composição de atividades complementares entre os municípios, a inserção de
diversos níveis gerenciais, a construção coletiva de regras gerais de orientação do
trabalho coletivo, o compartilhamento de recursos e sua gestão coletiva, o
compartilhamento decisório sobre políticas e programas, a complementaridade
entre sistemas de controle com foco de suporte estratégico às decisões, além do

240
estabelecimento de instância estratégica de coordenação interorganizacional (a
Secretaria Estadual de Saúde) e de espaço de pactação (Comissão Intergestora
Bipartite). De acordo com o referencial teórico produzido no Capítulo 3, a partir da
literatura sobre redes, a presença destes elementos configura a existência de um
considerável potencial de composição de organização de trabalho coletivo.
Entretanto, como também afirma a literatura, a efetivação deste potencial
de trabalho coletivo exige que se construam estratégias de governança
adequadas capazes de fornecer sustentabilidade às relações de interdependência
e intercâmbio de recursos. Como afirmado ao final do Capítulo 3, a presença de
elementos de centralização decisória em formações interorganizacionais em rede
implica na redução do potencial de promoção da sustentabilidade política, uma
vez que a condução dos principais instrumentos, mecanismos e estratégias de
organização do trabalho coletivo, a partir de atores e organizações com
autonomia, implica em constantes conflitos de governança.
Sendo assim, embora a estratégia da NOAS demonstre impulsionar, no
interior do SUS, um potencial de composição de organização de trabalho coletivo
intermunicipal, suas diretrizes também contém elementos explícitos que podem
gerar constantes conflitos de governança, o que implica na possibilidade de
inviabilizar a efetivação desse potencial de trabalho coletivo.
Esses elementos explícitos estão presentes em toda a estratégia de
planejamento instituída pela NOAS. Como pode ser verificado na Tabela 17, o
exame das características que compõem o padrão de interdependência
impulsionado pela NOAS demonstra, quase que em sua totalidade, a presença de
elevada institucionalidade, o que significa a existência de diretrizes que induzem a
condução centralizada de instrumentos e mecanismos de organização do trabalho
coletivo. Assim, a análise realizada no Capítulo 5 apresenta, a cada elemento
examinado, uma tendência à preponderância do gestor estadual na condução da
estratégia de regionalização. Esta preponderância, segundo os estudos sobre
redes, contrasta com a autonomia decisória dos municípios, implicando, assim, na
geração de conflitos de governança.

241
Uma vez que a regionalização é concebida como um processo dinâmico,
cujo sucesso depende da ação conjunta de diversos atores, principalmente os
municípios, convergindo em torno de um projeto consistente de rearticulação
eficiente das bases de provisão de serviços de saúde, seria de se esperar que
estes fossem os atores que efetivamente tivessem a preponderância decisória.
Isto porque se os municípios que compõem uma região/microrregião de saúde,
que consiste no lócus privilegiado pela NOAS para o aprofundamento da
interdependência que sustenta a estratégia de regionalização, são os atores que
compõem o ‘cluster’ do qual emerge a dinâmica interorganizacional que apresenta
o maior potencial de trabalho coletivo, acima referido, o sucesso das estratégias
de rearticulação das bases de serviço depende da legitimação constante destes
municípios.
Desta forma, os municípios, embora estejam inseridos nas arenas
decisórias e participem da elaboração e deliberação das estratégias de integração
e articulação das bases intermunicipais de serviços de saúde, não possuem a
autonomia sobre a condução do processo de organização do trabalho coletivo,
apesar de serem os atores essenciais na efetivação deste. Desta forma, a
preponderância estadual, tanto na definição das estratégias quanto na condução
dos instrumentos e mecanismos de organização do trabalho coletivo
intermunicipal, ao limitar a autonomia dos municípios pode implicar na redução do
grau de legitimidade das estratégias por parte dos municípios, o que seria fatal
para o sucesso da regionalização, pois esses são os atores fundamentais na
materialização desta.
Assim, a análise dos elementos de caracterização do padrão de
governança fomentado pelas diretrizes da NOAS fornece as evidências que
contribuem para a redução da capacidade de governança da estratégia de
regionalização. Quando da análise dos atores envolvidos e da amplitude de
inserção (seção 4.3.2) verificou-se que a estratégia da NOAS, embora busque a
inclusão tanto dos atores dos níveis operacional e tático quanto estratégico dos
municípios envolvidos, não institui mecanismos ou estratégias de inserção dos
atores da Sociedade Civil dos municípios, uma vez que os conselhos municipais

242
não participam de forma direta nas decisões dos principais planos e diretrizes
(PDR, PDI, etc). Isto porque tais decisões são tomados no interior da CIB,
envolvendo somente negociações entre gestores. Este aspecto reduz a
capacidade de governança do SUS por diminuir a legitimidade das decisões e
excluir atores que são fundamentais na construção democrática do SUS,
provocando conflitos entre as esferas na definição de diretrizes.
Da mesma forma, a análise do nível de formalização (seção 4.3.3)
demonstrou que os referenciais que orientam o trabalho coletivo entre a esfera
estadual e os municípios, principalmente no inteiro de uma região de saúde,
regulam também aspectos da dinâmica operacional regular dos municípios, uma
vez que a coordenação centralizada na SES implica na padronização de
processos, instrumentos e mecanismos utilizados no interior de todo o estado.
Assim, a regulação e a padronização do trabalho coletivo reduzem a flexibilidade
operacional, uma vez que cada região de saúde possui sua dinâmica própria de
intercâmbio de recursos e serviços. Ao interferir e regular a dinâmica
intermunicipal de trabalho, a estratégia da NOAS pode provocar constantes
conflitos durante a execução de políticas e programas, assim como constantes
defasagens nos parâmetros de alocação de recursos e realização de
investimentos.
Esta centralização do processo de condução dos principais instrumentos e
mecanismos de coordenação é impulsionada pela estratégia de domínio
concentrado de recursos (capacidade produtiva, recursos financeiros, capacidade
técnica e autoridade legal), que estabelece a preponderância do gestor estadual
no controle e na definição dos critérios de alocação e verificação de eficácia e
eficiência de utilização (seção 4.3.4). Este aspecto da estratégia da NOAS coloca
amplo potencial de direcionamento da dinâmica da regionalização, podendo
configurar restrição de autonomia dos municípios, o que, segundo os estudos
sobre redes, consiste em fonte constante de conflito e redução de potencial de
trabalho coletivo.
Como conseqüência, apesar das diretrizes da NOAS revelarem uma
concepção de controle como função assessória ao planejamento, o que consiste

243
num fator de ampliação da eficiência de trabalho coletivo, também estabelecem a
preponderância do gestor estadual em detrimento da autonomia operacional dos
municípios, uma vez que as funções de controle, avaliação e regulação estão
subordinadas ao processo de planejamento. Dado que os municípios são os
atores que efetivamente constroem (operacionalmente) a estratégia de
regionalização, a manutenção de sua autonomia é essencial para o sucesso
dessa estratégia. Sendo assim, tal contradição pode ser fonte constante de
conflito e redução do potencial coletivo de trabalho.
Quanto ao estabelecimento de bases organizacionais de suporte ao
processo de regionalização, que consistem em elementos fundamentais para a
solidificação do trabalho coletivo intermunicipal, as diretrizes da NOAS
impulsionam uma dinâmica organizacional que não favorece a construção de
bases sólidas de governança, principalmente tendo em vista o formato institucional
do SUS, uma vez que tanto a instância de estratégia (SES) quanto o espaço de
pactação (CIB) estão estabelecidos de forma externa à dinâmica das
microrregiões/regiões de saúde.
Em relação à instância de estratégia, sua capacidade de promover
racionalidade sistêmica, garantir flexibilidade operacional e ampliar a eficiência na
alocação de recursos é maior quando esta se encontra inserida diretamente na
dinâmica de fluxos de intercâmbio. Uma vez que a SES, como instância de
estratégia da regionalização, se encontra distanciada da dinâmica do trabalho
intermunicipal, sua capacidade para as funções acima mencionadas é reduzida
significativamente, o que pode provocar conflitos de estratégia em virtude das
possíveis divergências em termos de informações relativas a parâmetros de
política e o funcionamento de programas, entre outros.
No que refere ao espaço de pactação, da mesma forma, sua instituição de
forma autônoma, sem a preponderância de um ator específico no processo
decisório, amplia seu potencial de compor estratégias democráticas e plurais, de
desenvolver compartilhamento decisório, de compor consensos e de prevenir
bloqueios e impasses. Sendo assim, o estabelecimento da CIB como espaço
único de pactação para todas as regiões/microrregiões de saúde de um estado

244
privilegia a atuação do gestor estadual na composição de estratégias e na tomada
de decisões, reduzindo, assim, o poder de decisão dos municípios na
determinação de suas próprias estratégias, e contribuindo para reduzir a
sustentabilidade política da estratégia de regionalização.
Como afirmado no Capítulo 4 (seção 4.3.8) a sustentabilidade política em
formações interorganizacionais é construída por meio de um processo de
aprendizagem estratégica que envolve constantes articulações e ajustes de
interesse de forma a compatibilizar as demandas dos diversos atores envolvidos,
sem a imposição ou preponderância de posições unilaterais. Assim, a construção
da governança em formações interorganizacionais pressupõe o exercício de
autonomia como fundamento de legitimidade das decisões, autonomia esta que
não é plenamente exercida diante da preponderância do gestor estadual na
estratégia desenhada na NOAS. Logo, o estabelecimento da preponderância
decisória do gestor estadual no processo de aprendizagem estratégica, subjacente
à construção da regionalização, abre espaço para a instituição de
posicionamentos unilaterais, o que consiste em fonte consistente de divergências
e conflitos de governança.
Desta forma, como constatado pela análise dos resultados sumariados na
Tabela 17, embora as diretrizes da NOAS tenham estabelecido instrumentos e
mecanismos com potencial de promoção do trabalho coletivo intermunicipal para o
aperfeiçoamento da performance do SUS, o formato de construção da governança
e da coordenação desses instrumentos e mecanismos instituído pela mesma
norma, que promove a preponderância do gestor estadual em detrimento da
organização autônoma dos municípios diretamente envolvidos, contém elementos
que favorecem claramente o surgimento de conflitos decisórios e a redução da
eficiência e da flexibilidade operacional no intercâmbio de recursos entre os
municípios.
Sendo assim, a análise da estratégia de regionalização contida na NOAS
aponta a necessidade de reformulações no sentido de buscar principalmente
reestruturar as bases de construção da governança intermunicipal. Qualquer
proposta de redefinição da estratégia de regionalização da saúde deve considerar

245
reformulações tanto na forma de condução do processo decisório relativo à
composição dos principais instrumentos como o PDR e o PDI quanto na forma de
coordenação do trabalho coletivo intermunicipal regular, que envolve a condução
de instrumentos como a PPI e os mecanismos de controle, regulação e avaliação,
entre outros.
Como visto, os elementos que contribuem para a redução do potencial de
sustentabilidade das estratégias de coordenação intermunicipal estão
relacionados essencialmente à preponderância da esfera estadual tanto como
detentora de recursos estratégicos quanto em sua centralidade nos processos
decisórios e no comando dos principais instrumentos e mecanismos que ordenam
o trabalho coletivo intermunicipal.
Sendo assim, as possíveis reformulações na estratégia de regionalização
da saúde no âmbito do SUS devem reduzir o papel da esfera estadual,
principalmente do gestor estadual, e ampliar o papel dos municípios tanto no
domínio de recursos quanto na condução dos principais instrumentos e
mecanismos de ordenamento do trabalho coletivo. Tais reformulações não devem
conduzir a eliminação do papel dos estados na estratégia de regionalização, mas
somente numa redefinição de suas funções, deixando de ser um ator que domina
as principais fases do processo para se inserir como um mediador, facilitador e
coordenador com funções de assessoramento e de acompanhamento das
relações intermunicipais de forma diferenciada de acordo com a dinâmica de cada
região/microrregião de saúde.
Quanto à estruturação do processo decisório e à condução dos principais
instrumentos e mecanismos de ordenamento do trabalho coletivo intermunicipal,
ambas podem ser fundamentadas em arranjos institucionais com abrangência
circunscrita à uma região de saúde (ou macrorregião, de acordo com a estratégia
de cada estado), onde os próprios municípios constroem estratégias de
compartilhamento de poder decisório e compõem consensos a partir de
processos constantes de articulação, negociação, ajuste de interesses e
percepções e definição conjunta de estratégias de ação. Tais arranjos
interorganizacionais institucionalizados podem assumir a forma jurídica de

246
consórcios municipais ou adotar um formato inovador especificamente construído
para tal.
A composição institucional deve prever a estruturação de bases
organizacionais mínimas capazes tanto de fornecer suporte técnico e operacional
quanto político e financeiro. Assim, o suporte técnico e operacional pode ser
fornecido por uma secretaria executiva que seria equivalente a uma instância de
estratégia visando o ordenamento operacional intermunicipal de estratégias de
promoção de racionalidade sistêmica e a flexibilização dos mecanismos de
intercâmbio de recursos.
Da mesma forma, todo o processo decisório poderia ser conduzido no
interior de uma comissão intergestores intermunicipal dentro de cada região de
saúde que representaria e responderia pelas atribuições de um espaço interno de
pactação, onde seriam definidas as principais estratégias e direcionamentos de
composição de instrumentos como o PDR e o PDI. Assim, tais comissões
poderiam ser compostas não só por gestores de saúde, mas também pelos
próprios prefeitos, o que ampliaria a capacidade decisória de tais instância e a
legitimidade dos planos e estratégias resultantes.
Como condição tanto de ampliar a legitimidade de tais planos e estratégias
quanto de promover a eficiência e o grau de accountability de tais arranjos
intermunicipais poderiam ser instituídos conselhos intermunicipais de saúde que
seriam responsáveis tanto por atribuições técnicas como as de controle e
avaliação quanto de suporte político democrático.
O suporte financeiro poderia ser constituído pelas mesmas dotações
transferidas pelo governo federal acrescidas de cotas do gestor estadual e dos
municípios componentes de cada região de saúde. O somatório de tais fluxos
financeiros integraria um fundo intermunicipal que estaria sob o comando da
comissão intergestores intermunicipal e sob o controle do conselho intermunicipal
de saúde.

De forma conclusiva, tais arranjos institucionais intermunicipais, de acordo com a


literatura de redes, apresentariam maior potencial de sustentabilidade em termos
de governança o que contribuiria para aprofundar o grau de interdependência

247
entre os municípios, gerando uma maior capacidade de trabalho coletivo. Assim, a
institucionalização de arranjos intermunicipais com maior autonomia decisória e
operacional coordenados pelo gestor estadual seriam capazes de manifestar
maior potencial de obtenção dos princípios de universalidade, integralidade e
equidade do o atual formato estabelecido pela NOAS.

248

Você também pode gostar