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13731-Texto Do Artigo-16707-1-10-20120517
13731-Texto Do Artigo-16707-1-10-20120517
O tempo na
experiência da
psicanálise
DOMINIQUE
FINGERMANN
PRELÚDIO
é psicanalista e
autora, com Mauro
Mendes Dias, de uando, no mundo globalizado, o tempo
Por Causa do Pior
(Iluminuras). transforma-se em mercadoria – “time is
money” –, quando a ciência, a tecnologia e
o mercado juntam-se para nos fazer ganhar
tempo a qualquer preço, a psicanálise continua
insistindo com um método que proporciona
uma experiência do tempo na contramão da
experiência subjetiva do “tempo que passa”,
inflacionada pelos tempos que correm.
Entre o“Já foi!”e o“Pode ser?”, o tempo que
a consciência apreende é a sucessão irreversível
do passado ao futuro, passando pelo instante
presente, sempre fugidio e inapreensível. As
modalidades subjetivas desse a priori tempo-
ral de toda experiência declinam a vivência
do tempo com matizes que vão da nostalgia
até a esperança, com versões “patológicas”
conhecidas como angústia, mania, melan-
colia, tédio, que testemunham uma maneira
outra de vivenciar o tempo. Os “tempos que
correm” e sua ciência implacável pretendem
remediar essas modalidades existenciais e os
afetos consequentes. A psicanálise preconiza
outro tratamento: dar-se um tempo.
De fato, ela propicia o acesso a uma
estranha temporalidade. Desde o início das
entrevistas preliminares – embora a fala
que se desdobra e se descobre aí quase que seja encontrado: o momento oportuno do
imediatamente tenha uma estrutura tempo- desejo, quando não escoa na deriva e no
ral diacrônica e esteja se desenvolvendo adiamento, e lança mão do ato que faz do
na forma linear da sucessividade –, desde instante evento.
as primeiras voltas nos ditos, abre-se uma Pretendo mostrar como a medida do
temporalidade atordoante para quem chega tempo numa análise é o seu tempo 1 , a
desprevenido e fica aturdido. Um tempo pulsação, o ritmo dos cortes nos ditos do
“sem pé nem cabeça” inaugura-se aí, já sujeito, o ato que produz, no final das contas,
que nessa ficção, que artificia a verdade do o limite, a conclusão da série infinita dos
sujeito, o presente se anuncia, atropelado ditos: topar com a finitude propicia gozar
por um futuro suposto, formatado por um do “instante-já”.
passado hipotético que nunca foi.
O tempo do cronos – que devora sua
cria: os instantes evanescentes, à medida que
nascem – não é suficiente para explicar essa A INTEMPORALIDADE
temporalidade que Freud descobriu no fun-
damento e no funcionamento dos processos FREUDIANA: “O SISTEMA
inconscientes, intemporais – diz ele.
A psicanálise revela uma estranha INCONSCIENTE É ZEITLOS”
temporalidade que Lacan põe em função
na direção da cura, como “tempo lógico”: As reminiscências das histéricas, o “fora
o ato analítico produzindo, extraindo, da do tempo” da pulsão, o retorno do recalcado
repetição, essa outra dimensão do tempo, do sintoma, a persistência do trauma, a va-
conhecida pela filosofia da Grécia até na lidação après-coup da sua inscrição como
China: o kairos, “o momento oportuno”. irreversível, a inércia da fantasia, as voltas
O tempo na psicanálise (a sua duração, a da repetição, o caleidoscópio dos sonhos que
frequência e tempo das sessões) decorre da compõem as suas cenas numa confusão total
temporalidade do sujeito do inconsciente da cronologia, a reedição transferencial de
(intemporal), e do manejo adequado desse laços anacrônicos: quando Freud descobriu
tempo depende a eficácia da psicanálise, e formalizou a psicanálise, ele constatou
ou seja, sua efetividade nos tempos de que a temporalidade do sujeito do incons-
hoje. ciente contestava a temporalidade linear
A psicanálise não está mais na moda cronológica, que atormentava a consciência
up-to-date; no entanto, se ela permanece dos humanos, apressada e pressionada,
nas agendas das pessoas apressadas é por num presente fugidio, espremido entre um
causa de sua eficácia. Quem se atreve passado já remoto e um futuro incerto. Por
hoje a ficar algumas vezes por semana no isso, ao formalizar suas descobertas, desde
consultório do analista, por um tempo às o início, e várias vezes, Freud afirmou a
vezes muito menor que o tempo que de- intemporalidade (Zeitlos) dos processos
morou para chegar lá, espera o que dessa psíquicos inconscientes.
experiência que desafia a “modernidade” Em 1915, no artigo “O Inconsciente”,
nas margens do trânsito exorbitante do explica:
progresso?
Há dois males que os remédios pro- “Os processos do sistema inconsciente
duzidos pelo progresso científico não são intemporais; isto é, não são ordena-
curam: a busca do tempo perdido e o dos temporalmente, não se alteram com
1 Tempo (música) aqui en- adiamento do momento oportuno. Uma a passagem do tempo; não têm absoluta-
tendido como “unidade
abstrata de medida do experiência psicanalítica trata desses mente qualquer referência ao tempo. A
tempo musical, a par tir mal-estares do homem da civilização e, referência ao tempo vincula-se, mais uma
da qual se estabelecem as
relações rítmicas; pulsação”
no fim, no final de todas as voltas de seu vez, ao trabalho do sistema consciente”
(Dicionário Houaiss). método terapêutico, permite que o tempo (Freud, 1915).
Separação
No eixo sincrônico opera-se uma sele- No entanto, o sujeito, na sua singularida-
ção e qualquer significante escolhido para de, não é todo determinado pelo Outro e seu
representar o sujeito será metafórico, ou aparelho significante. A sua distinção como
seja, substitutivo, enquanto no eixo diacrô- sujeito único se produz pelo viés de uma
nico da combinação dos significantes cada segunda operação de causação do sujeito:
um representa apenas uma parte do todo a operação “separação”, ou seja, como,
(metonímia) e, por isso mesmo, deixa a além da alienação, o sujeito inclui na sua
desejar: portanto, o que coordena e ordena constituição o que não se sujeita ao Outro.
a sequência de significantes que represen- O tempo de produção do sujeito se desdo-
tam um sujeito (1, 1, 1…) é uma falta de bra segundo uma temporalidade lógica, já
representação (-1). Constatemos como a que a operação “alienação” (Lacan, 1966,
estrutura do significante e os mecanismos p. 840), identificação ao significante do
de produção da significação permitem Outro, remete ao tempo para compreender,
reler com os instrumentos da linguística e a operação “separação”, ao momento de
os desenvolvimentos freudianos sobre as concluir, sem o Outro.
representações e seu recalque.
O “grafo do desejo”, dito igualmente
“grafo do sujeito”, construído por Lacan6, Discurso do Mestre Discurso da Universidade
explicita o cruzamento das duas linhas tem- S1 S2 S2 a
porais, diacrônica e sincrônica, da estrutura
do significante no sistema da linguagem
S a S1 S
para produzir o momento da fala, revelando
a sua divisão fundamental entre enunciado
Discurso da Histérica Discurso do Analista
e enunciação.
Uma vertente da cadeia significante S S1 a S
6 O grafo do desejo foi cons-
truído por Jacques Lacan a s(A) A antecipa a significação vetorizada
partir de 57 e prosseguida
durante dez anos de seu pelo ponto A, o “grande” Outro, o sistema a S2 S2 S1
ensino. do significante que valida a mensagem,
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