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DOMINIQUE FINGERMANN

O tempo na
experiência da
psicanálise
DOMINIQUE
FINGERMANN
PRELÚDIO
é psicanalista e
autora, com Mauro
Mendes Dias, de uando, no mundo globalizado, o tempo
Por Causa do Pior
(Iluminuras). transforma-se em mercadoria – “time is
money” –, quando a ciência, a tecnologia e
o mercado juntam-se para nos fazer ganhar
tempo a qualquer preço, a psicanálise continua
insistindo com um método que proporciona
uma experiência do tempo na contramão da
experiência subjetiva do “tempo que passa”,
inflacionada pelos tempos que correm.
Entre o“Já foi!”e o“Pode ser?”, o tempo que
a consciência apreende é a sucessão irreversível
do passado ao futuro, passando pelo instante
presente, sempre fugidio e inapreensível. As
modalidades subjetivas desse a priori tempo-
ral de toda experiência declinam a vivência
do tempo com matizes que vão da nostalgia
até a esperança, com versões “patológicas”
conhecidas como angústia, mania, melan-
colia, tédio, que testemunham uma maneira
outra de vivenciar o tempo. Os “tempos que
correm” e sua ciência implacável pretendem
remediar essas modalidades existenciais e os
afetos consequentes. A psicanálise preconiza
outro tratamento: dar-se um tempo.
De fato, ela propicia o acesso a uma
estranha temporalidade. Desde o início das
entrevistas preliminares – embora a fala
que se desdobra e se descobre aí quase que seja encontrado: o momento oportuno do
imediatamente tenha uma estrutura tempo- desejo, quando não escoa na deriva e no
ral diacrônica e esteja se desenvolvendo adiamento, e lança mão do ato que faz do
na forma linear da sucessividade –, desde instante evento.
as primeiras voltas nos ditos, abre-se uma Pretendo mostrar como a medida do
temporalidade atordoante para quem chega tempo numa análise é o seu tempo 1 , a
desprevenido e fica aturdido. Um tempo pulsação, o ritmo dos cortes nos ditos do
“sem pé nem cabeça” inaugura-se aí, já sujeito, o ato que produz, no final das contas,
que nessa ficção, que artificia a verdade do o limite, a conclusão da série infinita dos
sujeito, o presente se anuncia, atropelado ditos: topar com a finitude propicia gozar
por um futuro suposto, formatado por um do “instante-já”.
passado hipotético que nunca foi.
O tempo do cronos – que devora sua
cria: os instantes evanescentes, à medida que
nascem – não é suficiente para explicar essa A INTEMPORALIDADE
temporalidade que Freud descobriu no fun-
damento e no funcionamento dos processos FREUDIANA: “O SISTEMA
inconscientes, intemporais – diz ele.
A psicanálise revela uma estranha INCONSCIENTE É ZEITLOS”
temporalidade que Lacan põe em função
na direção da cura, como “tempo lógico”: As reminiscências das histéricas, o “fora
o ato analítico produzindo, extraindo, da do tempo” da pulsão, o retorno do recalcado
repetição, essa outra dimensão do tempo, do sintoma, a persistência do trauma, a va-
conhecida pela filosofia da Grécia até na lidação après-coup da sua inscrição como
China: o kairos, “o momento oportuno”. irreversível, a inércia da fantasia, as voltas
O tempo na psicanálise (a sua duração, a da repetição, o caleidoscópio dos sonhos que
frequência e tempo das sessões) decorre da compõem as suas cenas numa confusão total
temporalidade do sujeito do inconsciente da cronologia, a reedição transferencial de
(intemporal), e do manejo adequado desse laços anacrônicos: quando Freud descobriu
tempo depende a eficácia da psicanálise, e formalizou a psicanálise, ele constatou
ou seja, sua efetividade nos tempos de que a temporalidade do sujeito do incons-
hoje. ciente contestava a temporalidade linear
A psicanálise não está mais na moda cronológica, que atormentava a consciência
up-to-date; no entanto, se ela permanece dos humanos, apressada e pressionada,
nas agendas das pessoas apressadas é por num presente fugidio, espremido entre um
causa de sua eficácia. Quem se atreve passado já remoto e um futuro incerto. Por
hoje a ficar algumas vezes por semana no isso, ao formalizar suas descobertas, desde
consultório do analista, por um tempo às o início, e várias vezes, Freud afirmou a
vezes muito menor que o tempo que de- intemporalidade (Zeitlos) dos processos
morou para chegar lá, espera o que dessa psíquicos inconscientes.
experiência que desafia a “modernidade” Em 1915, no artigo “O Inconsciente”,
nas margens do trânsito exorbitante do explica:
progresso?
Há dois males que os remédios pro- “Os processos do sistema inconsciente
duzidos pelo progresso científico não são intemporais; isto é, não são ordena-
curam: a busca do tempo perdido e o dos temporalmente, não se alteram com
1 Tempo (música) aqui en- adiamento do momento oportuno. Uma a passagem do tempo; não têm absoluta-
tendido como “unidade
abstrata de medida do experiência psicanalítica trata desses mente qualquer referência ao tempo. A
tempo musical, a par tir mal-estares do homem da civilização e, referência ao tempo vincula-se, mais uma
da qual se estabelecem as
relações rítmicas; pulsação”
no fim, no final de todas as voltas de seu vez, ao trabalho do sistema consciente”
(Dicionário Houaiss). método terapêutico, permite que o tempo (Freud, 1915).

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Em 1932, nas “Novas Conferências de futuro também marca o passado, validando
Psicanálise”, insiste e precisa: seus acontecimentos – nachträglich – como
presentes e atuais.
“No id, não existe nada que corresponda Constatemos como, dessa forma, o
à ideia de tempo; não há reconhecimento ser humano encontra-se estruturalmente
da passagem do tempo, e — coisa muito tomado numa temporalidade de antecipa-
notável e merecedora de estudo no pensa- ção-retroação. A representação antecipa
mento filosófico – nenhuma alteração em a possibilidade de inscrever o real do
seus processos mentais é produzida pela corpo e do afeto, mas a representação
passagem do tempo. Impulsos plenos de sempre falha retroage sobre o que faltou
desejos, que jamais passaram além do id, e em ser representado, resto pulsional que
também impressões, que foram mergulha- impulsiona a procura de uma nova repre-
das no id pelas repressões, são virtualmente sentação. Os mecanismos de substituição
imortais; depois de se passarem décadas, e deslocamento regem as redes de encadea-
comportam-se como se tivessem ocorrido mento das representações que, apesar da
há pouco” (Freud, 1932). sua criatividade e exuberância ilimitada,
acabam sempre voltando ao mesmo lugar.
Freud argumenta com sua obra inteira a A fantasia fundamental molda e modela o
posição do inconsciente e suas consequên- desejo (a relação com a falta primordial
cias manifestas, que objetam as conjecturas de representação) e, assim, condiciona
filosóficas, em particular Kant, que coloca e formata a dita “indestrutibilidade do
o espaço e o tempo como “representações desejo”.
necessárias” (Kant, 1987), formas a priori da Quando, em 1932, nas “Novas Confe-
sensibilidade que condicionam toda experi- rências”, Freud continua insistindo sobre a
ência: ao contrário, na psicanálise o tempo se intemporalidade dos mecanismos incons-
revela relativo e sensível à experiência. cientes, vemos que ele aponta agora para a
As formações do inconsciente – so- incidência da clínica psicanalítica sobre essa
nhos, atos falhos, sintomas – flagram essa supostamente inegável intemporalidade,
intemporalidade para quem quiser prestar lamentando não ter explorado melhor essa
ouvidos às suas mensagens. As mensagens característica do inconsciente na teoria e,
das formações do inconsciente são notícias consequentemente, na clínica:
do “desejo indestrutível”, notícias ao mes-
mo tempo do recalque e da inscrição. São “Só podem ser reconhecidos como perten-
mensagens cifradas do ser, insistindo nas centes ao passado, só podem perder sua
declinações de sua falta a ser. Os traços importância e ser destituídos de sua catexia
mnêmicos inscrevem algo que não tem de energia, quando tornados conscientes
registro – o rastro de uma vivência (Erleb- pelo trabalho da análise, e é nisto que, em
nis) –, a “experiência de satisfação”. As grande parte, se baseia o efeito terapêutico
representações testemunham esse algo da do tratamento analítico.
pulsão, do ser vivo, que não se inscreve, Muitíssimas vezes, tive a impressão de que
mas produz e orienta seus complexos en- temos feito muito pouco uso teórico desse
cadeamentos. fato, estabelecido além de qualquer dúvida,
Uma falha na origem – recalque originá- da inalterabilidade do reprimido com o
rio – determina o retorno do recalcado, mo- passar do tempo. Isto parece oferecer um
delando o futuro com as marcas do passado, acesso às mais profundas descobertas. E,
que “não cessam de se inscrever” (Lacan, infelizmente, eu próprio não fiz qualquer
1975, p. 86). Mas essa Urverdrangung progresso nessa parte” (Freud, 1932).
– recalque originário, algo que “não cessa
de não se inscrever” – legitima também que O progresso na clínica psicanalítica não
o passado sem sentido, traumático, possa pode se reduzir à leitura e à descoberta do
adquirir uma significação après-coup. O desejo indestrutível, mas, como aponta e

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aposta Freud nessa conferência, uma aná- introdução do tempo na direção do trata-
lise deve conduzir um sujeito a uma outra mento, como o demonstram seus primeiros
vivência do tempo que passa. textos fundamentais: “O Tempo Lógico e a
O trabalho e a experiência de uma aná- Asserção de Certeza Antecipada” (1945),
lise orientam-se a partir da construção e “Intervenção sobre a Transferência” (1951),
do desvelamento da fantasia fundamental “A Direção da Cura e os Princípios de seu
que exime o sujeito de sua relação com Poder” (1958), “Função e Campo da Fala
o tempo presente e condiciona a dita in- e da Linguagem” (1953). Podemos ler,
temporalidade das formações do incons- desde esses primeiros textos, o manejo da
ciente. Tal finalidade tem forçosamente transferência, a interpretação, o desejo do
consequências na relação do sujeito com analista como intervenções, intrusões, pre-
a temporalidade e conduz o tempo de uma cipitadoras do psicanalista com o tempo e
análise até seu termo. no tempo do sujeito. Mostraremos como o
tempo2 do ato do analista, ao produzir uma
suspensão no sentido da neurose, dirige a
análise até seu termo lógico: o momento
LACAN: O TEMPO LÓGICO NA de concluir.
A redução do ensino de Lacan à questão
CLÍNICA do “tempo lógico” não é tão abusiva quanto
parece, e vale proceder à elucidação dessa
É, antes de tudo, na direção da cura que opção clínica e de seu lastro teórico. No-
Lacan vai fazer uso da descoberta freudiana temos que os dois últimos seminários que
da estranha temporalidade do sujeito do ele proferiu anunciaram mais uma vez a
inconsciente. Ele utilizou a “inalterabili- premência da questão do tempo na clínica
dade do reprimido” como manifestação da psicanalítica: “O Momento de Concluir”
estrutura do sujeito que lhe ofereceu “um (1978) e “O Tempo e a Topologia” (1979).
acesso às mais profundas descobertas”, Dos primeiros textos aos últimos seminá-
com consequências clínicas radicais para rios, Lacan retoma a questão deixada por
a lógica da cura, tanto nos meios quanto Freud em 1932: a incidência da clínica
nos fins da experiência psicanalítica. “Wo psicanalítica no tempo do sujeito, questão
es war”, “Onde isso era”, mera repetição que ecoa no seu “testamento clínico” de
– Lacan faz advir o ato. Onde se encontra- 1937: “Análise Finita, Infinita” (Freud,
va inalterada a repetição do mesmo e da 1937). Quando Lacan concluiu seu ensino,
mesmice, ele introduz o ato do analista que a suspensão de sua enunciação interrompeu
produz a repetição como escansão de pura a série de seus seminários, que responderam
alteridade, que faz diferente, e faz diferen- durante mais de trinta anos ao compromisso
ça no termo de uma análise. É no ponto no qual ele se engajou quando, no texto
mesmo da “inalterabilidade do reprimido” inaugural da sua posição clínica e ética
que ele insere o “tempo lógico” produtor (“Função e Campo…”), declara, no capítulo
do momento de concluir, como interrupção III – “Les Résonances de l’Interprétation
da diacronia infinitiva. O ato do analista et le Temps du Sujet dans la Technique
introduz aí uma descontinuidade, expondo, Psychanalytique” :
flagrando, esvaindo a suposição síncrona
2 Idem.
que espera uma solução de continuidade. A “[La psychanalyse] ne donnera des fon-
3 “[A psicanálise] só dará atualidade do analista, o seu ato “em tempo”, dements scientifiques à sa théorie comme
fundamentos científicos
à sua teoria como à sua o seu corte no tempo da sessão, tem uma à sa technique qu’en formalisant de façon
técnica ao formalizar de incidência clínica na intemporalidade do adéquate ces dimensions essentielles de
forma adequada estas di-
mensões essenciais de sua sujeito do inconsciente. son expérience qui sont, avec la théorie
experiência que são, com a Como é sabido, Lacan inaugurou suas historique du symbole : la logique intersub-
teoria histórica do símbolo:
contribuições na formalização da clínica jective et la temporalité du sujet” (Lacan,
a lógica intersubjetiva e a
temporalidade do sujeito.” psicanalítica focalizando a questão da 1966, p. 298)3.

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O texto de 1945 “O Tempo Lógico e
a Asserção de Certeza Antecipada” lança
ESTRUTURA DO SIGNIFICANTE,
mão da questão (e de sua resposta): o
tratamento do sujeito pelo discurso ana-
TEMPO DO SUJEITO E LÓGICA
lítico é questão de tempo; não um tempo
cronológico, que engole os instantes na
DA CURA
corrida do passado ao futuro, mas um
tempo lógico que faz valer o instante como O manejo do tempo na experiência
decisivo. “S’il est quelque chose que notre analítica tem consequências para o sujeito
expérience nous commande d’inclure… e sua relação com o tempo, ludibriada pela
c’est le temps… à trois dimensions” (La- “intemporalidade” da fantasia, que produz
can, 1964-65, p. 82)4: o instante de ver, o a fixidez neurótica do desejo nas suas ver-
tempo para compreender e o momento de sões de insatisfação, impedimento e impos-
concluir. O tempo operativo na análise, sibilidade. Essa intervenção pelo tempo e
que inclui esse tempo em três dimensões, no tempo tem efeito porque, de fato, ela
é lógico e coerente com a temporalidade incide sobre a estrutura do sujeito, que se
lógica da constituição do sujeito. desdobra na cena analítica da “associação
Em “O Tempo Lógico e a Asserção livre” orientada pela transferência.
de Certeza Antecipada” (1945), Lacan
apresenta e desenvolve o famoso sofisma
dos três prisioneiros5, que comprova que, Alienação
se o raciocínio que antecede uma decisão
pode se elaborar numa lógica intersubjetiva A estrutura do sujeito, produzida num
(tempo para compreender), o momento de primeiro tempo pela sua alienação/sujeição
concluir (“asserção do sujeito”) se produz ao aparelho da linguagem, é ela mesma
num instante de decisão em que o sujeito se determinada pela lógica temporal de sua
desprende da suposição atribuída ao outro. estrutura.
Com efeito, é no momento da hesitação Lembremos que o aparelho simbólico
dos outros prisioneiros, na suspensão de da linguagem é constituído a partir das
seu saber, que se precipita a decisão num articulações e conexões das unidades sig-
ato que confirma e produz a asserção do nificantes discretas e descontínuas segundo
sujeito. Esse texto é fundamental para a duas dimensões temporais disjuntas, cuja
clínica e essencial no ensino de Lacan, que conjunção produz a significação: é na dia-
nunca mais vai cessar de retornar a essa cronia e na sincronia (Saussure, 1997) que
referência, remanejando e atualizando, a são possíveis as operações de combinação
cada vez, os seus desdobramentos e con- e de seleção em que a enunciação do su-
sequências de acordo com o movimento de jeito recorta os enunciados. “A estrutura
suas elaborações teóricas, conforme desen- fundamental da cadeia significante submete
volvido por Eric Porge no livro Le Temps toda manifestação da linguagem à condição
4 “Se há algo que nossa
Logique de Jacques Lacan (1989). O maior de estar regulada por uma sucessão, por experiência nos manda
remanejamento precisa que o momento de uma diacronia, algo que se desenrola no incluir… é o tempo… em
três dimensões.”
concluir se precipite radicalmente, não mais tempo”, explica J. Lacan (1958-59, p. 20)
em decorrência ou em continuidade com a no Seminário 6. Mas, ao mesmo tempo, 5 O “sofisma” apresentado
por Lacan no texto de 1945
suposição feita a respeito do Outro, mas em “o significante se define por sua relação supõe três prisioneiros, 5
descontinuidade, como conclusão, apesar com outro significante de um sistema de discos: 3 brancos e dois
pretos. O diretor da prisão
e a partir do não-sabido – a partir da falta oposição significante – este se desenvolve assegura a liberdade de
de saber: “A questão toda é saber como numa dimensão que implica certa sincro- quem pode afirmar a cor
de seu disco afixado nas
concluir onde o saber falta, não somente nia”. O entrelaçamento desses dois eixos costas que os dois outros
para o sujeito mas também para o Outro”, temporais da linguagem para produzir veem mas ele mesmo não.
Como concluir apesar da
escreve Colette Soler (2008, p. 142) no uma significação introduz uma dimensão falta de saber é a questão
texto “O Tempo que Falta”. topológica: o encruzamento dos dois eixos do apólogo .

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desenhando superfícies que encerram um enquanto a outra vertente retroage s(A)
furo: a impossibilidade do significante A, permitindo que, a partir de um corte, se
abarcar o significado (impossibilidade que precipite uma significação s(A). Significa-
Saussure escreveu com a barra que separa ção que ricocheteia na sua precariedade,
o significado do significante). pois o enunciado nunca pode comportar
a enunciação e, portanto, esbarra com a
Grafo completo: incompletude do Outro que limita o sujeito
S(A) e orienta o seu desejo (d), o que pro-
pulsa o segundo “andar” do grafo, que figura
a cadeia significante inconsciente.
O grafo do desejo foi construído por
Lacan para explicitar as consequências
da estrutura do significante (conjunção e
separação entre significante e significado
para constituir o signo linguístico) na cons-
tituição do sujeito e seus desdobramentos
no que diz respeito ao desejo. Esse modelo
topológico permite ler tanto a lógica do
sujeito quanto a lógica da cura.

Separação
No eixo sincrônico opera-se uma sele- No entanto, o sujeito, na sua singularida-
ção e qualquer significante escolhido para de, não é todo determinado pelo Outro e seu
representar o sujeito será metafórico, ou aparelho significante. A sua distinção como
seja, substitutivo, enquanto no eixo diacrô- sujeito único se produz pelo viés de uma
nico da combinação dos significantes cada segunda operação de causação do sujeito:
um representa apenas uma parte do todo a operação “separação”, ou seja, como,
(metonímia) e, por isso mesmo, deixa a além da alienação, o sujeito inclui na sua
desejar: portanto, o que coordena e ordena constituição o que não se sujeita ao Outro.
a sequência de significantes que represen- O tempo de produção do sujeito se desdo-
tam um sujeito (1, 1, 1…) é uma falta de bra segundo uma temporalidade lógica, já
representação (-1). Constatemos como a que a operação “alienação” (Lacan, 1966,
estrutura do significante e os mecanismos p. 840), identificação ao significante do
de produção da significação permitem Outro, remete ao tempo para compreender,
reler com os instrumentos da linguística e a operação “separação”, ao momento de
os desenvolvimentos freudianos sobre as concluir, sem o Outro.
representações e seu recalque.
O “grafo do desejo”, dito igualmente
“grafo do sujeito”, construído por Lacan6, Discurso do Mestre Discurso da Universidade
explicita o cruzamento das duas linhas tem- S1 S2 S2 a
porais, diacrônica e sincrônica, da estrutura
do significante no sistema da linguagem
S a S1 S
para produzir o momento da fala, revelando
a sua divisão fundamental entre enunciado
Discurso da Histérica Discurso do Analista
e enunciação.
Uma vertente da cadeia significante S S1 a S
6 O grafo do desejo foi cons-
truído por Jacques Lacan a s(A) A antecipa a significação vetorizada
partir de 57 e prosseguida
durante dez anos de seu pelo ponto A, o “grande” Outro, o sistema a S2 S2 S1
ensino. do significante que valida a mensagem,

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O modelo matemático dos “discursos”, nunca acontecido (“foracluído”), -1, como
elaborado a partir de 1968, permite incluir a causador da sua singularidade: terei sido,
partir, mas mais além da lógica do significante tempo real – que a repetição não cessa de
(mais além do princípio de prazer…), um inscrever: 1, 1, 1…
terceiro tempo da constituição do sujeito: o Lacan soube fazer uso do recado freu-
momento de concluir, momento de separação diano a respeito da “inalterabilidade do
em relação à determinação pelo Outro. reprimido” que oferecia “um acesso às
Os quatro “discursos” são baseados no mais profundas descobertas”: o desenvol-
modelo matemático da estrutura de grupo, vimento de seu ensino vai explicitar que
que implica e determina mutações possíveis não é o passado que estorva e atravanca o
a partir dos giros dos termos na sequência presente, é o real. O real é algo que “não
das posições. O “discurso do mestre” é a cessa de não se inscrever” (Lacan, 1975)
apresentação da estrutura de discurso do su- (-1, -1, -1,), segundo a formulação lacaniana
jeito do inconsciente. O discurso do analista da modalidade do impossível; impossível
é a movimentação que a intervenção do ana- de subjetivar, impensável, inimaginável do
lista causa no discurso do sujeito. Podemos sujeito que condiciona o que Lacan nomeia
utilizar esses “matemas” para ler a lógica objeto. “Objeto a”, para marcar, com uma
temporal da constituição do sujeito. letra, o real do sujeito, que escapa à subje-
O significante S1 é que representa o su- tivação pelo significante e sua aparelhagem
jeito S, ou seja, o significante ao qual este simbólica; é um resto atemporal, que não
se submete e aliena, para ser representado passa com o tempo, não cessa. Um resto que
e inscrito no Outro, sistema simbólico, S2, causa e constrange o sujeito na repetição e
como distinto dos outros. É o traço S1 que na intemporalidade do que “não cessa de
marca o rastro apagado da experiência e da se inscrever”, modalidade necessária dos
presença do sujeito S. O rastro apagado da sintomas, que não cessam de inscrever esse
primeira experiência de satisfação é o “ins- objeto que falta ao sujeito. Em termos freu-
tante de ver” do tempo lógico da constituição dianos, poderíamos dizer que a pulsão de
do sujeito, validado pelo “tempo para com- morte que “não cessa de não se inscrever”,
preender”, S1 S2: o tempo da inscrição do algo da pulsão que permanece silencioso
traço – traço unário que identifica o sujeito a e não se liga, determina a tenacidade dos
partir dos significantes (representações) do avatares pulsionais que não cessam de pro-
Outro, sempre outros, em relação ao primeiro duzir soluções de compromisso.
rastro da existência. O produto da operação, Há um tempo que falta, atemporal, que
a, “momento de concluir” a constituição se manifesta com fenômenos intemporais,
do sujeito, a sua “asserção” existencial, é o que “não são ordenados temporalmente,
terceiro tempo da operação. É o momento de não se alteram com a passagem do tempo”,
“separação”, que retrocede sobre o que falta, etc. (Freud, 1915).
-1, ao traço (S1) para poder concluir sem o É notável que os matemas lacanianos
saber e afirmar a existência distinta, anteci- (grafo, S, S1, S2, a, discurso), que desenvol-
pada pelo rastro. No momento de concluir vem e escrevem a estrutura do significante,
essa temporalidade lógica da constituição do permitam desdobrar tanto a estrutura do
sujeito, o cálculo do dito “objeto a” positiva sujeito quanto a lógica da cura. O manejo
essa falta primordial e determina a sua sin- da cura é o manejo do sujeito via manejo do
gularidade, como algo que não é sujeito e tempo no desdobramento da fala do anali-
sujeitado à representação do Outro. sante que, na associação livre, desenrola a
O “objeto a”, marco de uma falha funda- estrutura e a topologia do significante.
mental que causa o desejo como atemporal, A prática clínica conhecida como o “tem-
é encoberto pela fantasia com revestimentos po lógico” é o uso feito por Lacan desse fato
que se manifestam como intemporais. de estrutura – o tempo real – atemporal, no
A estrutura do significante inaugura, manejo clínico da estrutura do sujeito nos
na estrutura do sujeito, um tempo perdido diversos tempos de uma análise.

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alternado, abre-e-fecha, “pulsação temporal
OS TEMPOS DE UMA ANÁLISE do inconsciente”. Ao ritmo da batuta do ato
analítico, que rege a cura em direção à sua
saída, ou seja, à sua finitude, produz-se um
Continuidade-descontinuidade vaivém, uma sessão (secção) após a outra,
alienação/ separação: o sujeito fala e cala;
Podemos abordar a questão dos tempos de entre dito e dizer, um interdito, abre-e-fecha,
uma análise de diversas maneiras: a duração um intervalo… um silêncio que causa. Por
da análise (sempre longa demais), o tempo esse motivo, para ilustrar um seminário de
da sessão (sempre curto demais), o início e o Luis Izcovich em São Paulo sobre “Os Tem-
fim, o tempo necessário para chegar ao fim; pos da Análise”7, escolhemos um quadro
os tempos da transferência, seus movimentos, de Hammershoi representando uma fileira
suas inércias e sua relação com a escansão de portas entreabertas: o que melhor que as
interpretativa; os tempos da construção da portas do consultório do analista, que abrem
fantasia – seus desdobramentos, seus contos, e fecham (quanto tempo? quantas vezes?)
cantos e recantos e outros encantamentos; poderia representar essa temporalidade des-
a persistência anacrônica dos sintomas; o contínua do manejo da transferência pelo
tempo de suspensão da angústia; o tempo ato analítico? Quantas vezes se interrompe
linear da associação livre e o instante do a suposição de saber no outro para que caia
ato, etc. Mas, na diversidade dessas questões a ficha da sua inconsistência?
clínicas, podemos destacar duas modalidades
temporais: de um lado, fenômenos que se
desenrolam na continuidade e outros que Do início ao fim
irrompem na descontinuidade. Os tempos de
uma análise, do início ao fim, são tensionados Há uma primeira vez em que se abre a
fenomenologicamente entre a duração e o porta e uma última: a gente nunca esquece!
instante: a fala do sujeito que se desenrola Como explicar essa passagem do início
na associação livre é paradigmática da du- até o fim?
ração, enquanto a intervenção do analista O instante da entrada e o momento
produz uma descontinuidade no instante de do fim (que separa, em geral, um longo
sua intervenção, de seu ato. tempo para compreender) são dois tempos
Todas essas manifestações fenomenoló- paradigmáticos da incidência do discurso
gicas do tempo na clínica são manifestações analítico, que produz movimentação e
da temporalidade do sujeito, todas eviden- mutação na estrutura. Lacan recorta esses
ciam que a dimensão diacrônica da fala é dois momentos na “Proposição sobre o
marcada e vetorizada por uma falha – a Psicanalista de Escola” (1967), pois, como
atemporalidade –, que a intempestividade no xadrez, esses lances são exemplares e
do ato analítico vai patentear, fazer valer determinantes do que se produz ao longo de
como real; atemporalidade que orquestra os uma análise, quando o discurso do analista
avatares da repetição. O ato analítico pode maneja a transferência.
reduzi-los à sua função lógica de causa.
O discurso do analista manifesta-se na
clínica como esse batimento, escansão, Instante de ver: o instante da
ruptura, intrusão, silêncio, pausa, descon-
tinuidade, resumindo: como corte que se
entrada
intromete nas intermitências do sujeito,
fazendo valer as intermitências, interditos, O instante da entrada é produzido pelo
7 Seminário de Luis Izcovich intervalos, como causador, como causa, tempo das entrevistas preliminares. Lacan
(“O Tempo na Clínica Ana- como instância do dizer. insiste sobre essa precedência, que indica a
lítica”), realizado em São
Paulo no dia 18 de agosto A temporalidade singular da psicanálise entrada em análise não como consequência
de 2007. tem esse ritmo da escansão, do batimento cronológica, mas como momento de con-

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cluir uma virada, uma subversão do sujeito, tada pela transferência. A associação livre,
como tempo lógico de báscula – “retificação ou seja, o blablablá aparentemente linear,
subjetiva” (Lacan, 1966, p. 601), diz ele –, desenrola, na diacronia, o que a sincronia
vacilo inaugural do sujeito, prenúncio da do instante de ver apreendeu. A estrutura
“destituição subjetiva” do fim, ponto inicial própria da fala desenrola nos ditos as con-
de giro de um discurso ao outro (destituir sequências do dizer, o que não está contido
o Um de seu lugar de mestre). em nenhum dito, mas fomenta e orienta
Se as próprias entrevistas preliminares toda a série recorrente dos ditos. Cada dito
podem ser decompostas com os três tempos a mais, +1, contorna a impossibilidade do
– instante de ver, tempo para compreender, dizer que, no final das contas, pode se de-
momento de concluir, (assim como todas duzir como sua causa.
as sequências temporais da análise: sessão, Que se fale de sonhos, temores, lem-
momentos cruciais…) –, a sua conclusão branças, ficções, relatos e fatos, tremores,
precipita o instante de ver inaugural da ex- anseios, ansiedades, inibições, sintomas,
periência. A entrada depende da operação angústias, as associações do sujeito nas
do discurso do analista; não há entrada sem sessões de análise tentam circundar a im-
entrada do analista, é o seu ato que produz a possibilidade do dizer esse atemporal mal
conclusão e, no convite para o divã, concre- dito do sujeito. Todos os ditos se apresentam
tamente bascula a posição. Num momento como demanda de sentido.
de deixa8 do sujeito, o analista lança mão A associação livre desdobra, estica, infla,
do ato, anuncia a carta com a qual vai jogar pinça, desinfla, costura e recorta o espaço
a partida: de agora em diante, ele marcará topológico da estrutura do sujeito, tornando
presença com esse naipe (voz – silêncio patentes suas descontinuidades, seus furos,
– corte), o naipe do objeto que causa. O suas vizinhanças. Pouco a pouco, as voltas
instante de ver da entrada – momento de dos ditos (as demandas), contornando o 8 Deixa, no sentido em que a
deixa – é um momento de interrogação a oco do desejo, configuram e exibem o es- palavra é utilizada no teatro,
ou seja, “indicação visual ou
respeito do desejo do Outro (S de A) que o paço topológico da neurose: um toro, logo sonora que faculta ao ator
analista valida enquanto emergência real. O apreensível como enodado com outro toro a identificação do instante
correto de entrar, falar ou
instante de ver das entrevistas preliminares do qual ele preenche e escamoteia o furo agir em cena” (Dicionário
consiste num topar com o real, e com a en- estrutural (Lacan, 1961-62). Houaiss).
trada em jogo do discurso analítico.
O “instante de ver” da entrada inclui a
emergência do real no jogo que, após o con-
sentimento do sujeito em causa, possibilita o
seu manejo na análise: o manejo da transfe-
rência. A entrada é a inauguração do sintoma
como analítico, ou seja, a enrolação do real 1- As voltas dos ditos
pelo “sujeito suposto saber”, “primeiro tempo
da análise” (Lacan, 1970, p. 425).
O jogo tem uma regra, o tempo seguinte
– o tempo para compreender – é modulado
e modelado por essa regra: a associação
livre e seus efeitos.
2- O toro do neurótico

O tempo para compreender:


as voltas dos ditos
A estrutura do sujeito se desdobra na
cena analítica da “associação livre”, orien- 3- A volta não contada

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Esse toro do sujeito neurótico, enlaçado vetorizado pela transferência. A transferên-
com o toro do Outro, é o enredo principal cia atribuindo tanto o saber faltante quanto
da novela familiar, moldada pela fantasia a causa que manca para completar o ser, ao
fundamental que, encobrindo o atemporal, Outro, no lugar ocupado pelo analista, revela
condiciona as manifestações intemporais uma dimensão temporal de espera, anteci-
das formações do inconsciente. A novela pação e atribuição: a espera do advento do
familiar é sempre uma história mal con- ser confere ao analista uma capacidade de
tada, ela gira em torno de uma volta não complemento e de sentido.
contada – falha na suas contas dos ditos É nesse sentido que, como diz Lacan, a
que o étourdi – o avoado – vai atribuir ao transferência é uma relação essencialmente
Outro, ligando sua falta-a-ser à falta, falha, ligada ao tempo e seu manejo:
pecado, mancada do Outro da sua história
e, daí, sua suposição de que o seu tempo “L’attente de l’avènement de cet être dans
perdido está no saber do Outro. son rapport avec ce que nous désignons
A transferência acolhe essa suposição, comme le désir de l’analyste dans ce qu’il
é ela que orienta a associação livre, por a d’inaperçu, au moins jusqu’à ce jour, de
isso “o sujeito suposto saber é o pivô da sa propre position, voilà le ressort vrai et
transferência”. dernier de ce qui constitue le transfert.
É o discurso do analista – o ato (a no C’est pourquoi le transfert est une relation
lugar do agente) e a interpretação (o saber essentiellement liée au temps et à son
como meio dizer da verdade S2) que esse maniement” (Lacan, 1966, p. 844).
ato condiciona, que vai operar nessa apre-
sentação topológica do sujeito os cortes Nesse tempo para compreender, o ana-
necessários para fazer aparecer a estrutura: lista se cala, faz silêncio. Primeiro, para não
uma volta do dito (l’étourdit) que inclui fazer barulho, para que se destaque o Outro
a volta não contada, o tempo perdido do suposto saber que o analisante na transfe-
l’étourdi (o avoado): o seu dizer. rência espera como complemento dos ditos
É necessário um tempo (“Il faut le furados da associação livre; depois, para
temps”) para que a associação livre, apa- acolher e escancarar o resto transferencial,
rentemente linear, desenrole, na diacronia, que não cabe no saber e que o neurótico
o que a sincronia do instante de ver apre- modela à medida do tempo do Outro. Nesse
endeu: “le temps qui faut” – o tempo que tempo para compreender, o analista maneja
falta (Lacan, 1970, p. 425). o tempo de espera da transferência com suas
Lacan, em seu escrito “L’Étourdit”, escansões, cortes e interpretações que, ao
explicita os diversos cortes que o discurso desconcertar a suposição de saber, produ-
do analista deve operar para transformar zem a demonstração lógica da impossibili-
um toro do neurótico em banda de mœ- dade de completar aquilo que “não cessa de
bius, que escancara a estrutura do sujeito não se inscrever” e dirigem a análise para
(a volta do dito e sua volta não contada), o seu momento de concluir.
e seu complemento pela fantasia, como
apresenta a estrutura topológica do cross
cap. Quantos cortes e suturas são necessá- O momento de concluir
rios para construir o cross cap, ou seja, a
fantasia do sujeito, como superfície formada O momento de concluir é ato do analisan-
e sustentada a partir do enrolamento das te quando, após o tempo para compreender
voltas dos ditos que incluem e escondem, que não há como se assegurar no Outro de
na sua asfera, a volta não contada, o tempo um saber sobre si mesmo, ele se separa, ato
perdido, na sua estrutura . que cumpre sua “asserção de sujeito”. O
Associação livre, novela familiar, cons- ato do analista produz, no desenrolar apa-
trução da fantasia ocupam, desenrolam e rentemente linear das cadeias significantes
montam a cena do tempo para compreender, impulsionadas pela regra fundamental da

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análise, uma descontinuidade: o “tempo” Da mesma forma o andamento de uma
da análise que, amplificando e incidindo análise do começo até o fim resulta do seu
sobre o atemporal do sujeito, proporciona tempo, recortando instantes que isolam
a temporalidade da análise como finita. O sequências, que produzem consequências.
momento de concluir uma análise conjuga O tempo, conduzido pela batuta do desejo
o momento lógico de dedução da impossi- do analista, produz o tempo de uma análise,
bilidade de resposta no Outro, ao momento a medida de sua duração.
ético de decidir a saída, ato do analisante A cadência da entrada do analista – nos
que sela a mudança radical da sua relação ditos do sujeito – condiciona uma descon-
com o tempo: o instante é já! Precisamos tinuidade que produz, em ato, no final das
desenvolver como o “tempo” do ato do contas, o limite, a conclusão, fazendo da
analista produz o termo da análise: momento “série sem fim dos ditos uma sequência
de concluir do analisante. finita” (Soler, 2008). Por isso “Il faut le
temps” (Lacan, 1970, p. 425) – um tempo
é necessário, para extrair do tempo que
passa o tempo que falta e o transformar no
O “TEMPO” DA ANÁLISE: tempo que resta9.
A temporalidade peculiar e necessária
O TEMPO LÓGICO DOS de uma análise permite passar de um tem-
po perdido até o tempo encontrado. Não o
PSICANALISTAS LACANIANOS tempo “reencontrado”, isto é, o tempo que
se encontra numa análise não é o tempo
O “tempo”, em música, é o movimento da busca do tempo perdido, é o tempo en-
característico com o qual se executa uma contrado enquanto encontro com o real, é
obra musical, é o seu ritmo, o seu “anda- o tempo achado, com o qual a gente “topa”
mento”. Os movimentos (adágio, andante, como “trouvaille” (Proust, 1987).
moderato) são definidos pela duração de Onde isso era – repetição –, Lacan faz
uma nota batida certo número de vezes por advir o ato como descontinuidade no sentido
minuto. É essa distribuição de uma duração da neurose. É no ponto mesmo da “inalte-
em uma sequência de intervalos regulares, rabilidade do reprimido” (Freud, 1932-36)
tornados sensíveis pelo retorno periódico que ele insere o tempo lógico, produtor do
de algum marco que produz o ritmo de uma momento de concluir, intrusão do analista
sequência musical. e de suas cartas (silêncio, voz, presença,
Por extensão o “tempo” é o ritmo do corte) que orienta e conduz a análise até sua
desenrolamento de uma ação (filme, obra conclusão. É assim que podemos apreender
literária) do começo ao fim. Com sequências como o ato do analista produz, no final das
melódicas, pausas, arranjos harmônicos contas, o momento de concluir da análise:
(simultâneos), disposição regular de tem- o ato do analisante.
pos fortes, contratempos e contrapontos, Como? Como o manejo pelo desejo
repartição dos acentos, e cesuras, o ritmo do analista do instante do corte na sessão,
faz a obra. O tempo, o andamento, faz a obra como a produção do instante do corte cau-
ao explorar e atravessar as suas possíveis sa a duração da análise como finita e não
modulações via repartição de descontinui- infinita? A medida de uma análise, o seu
dade, num fluxo contínuo. Essa cadência, tempo, a sua finitude depende da marca-
repartição da descontinuidade no fluxo ção do “tempo” pelos cortes das sessões.
contínuo (de sons, imagens, significantes), Uma análise não se mede em anos, nem
recorta instantes, distribuindo silêncios e horas, nem minutos: a sua medida é o
evidenciando sequências, parece produzir corte. Quantos cortes sua análise durou?
a efetivação, progressiva e irremediável, (donde a importância da frequência das 9 Referência ao título da obra
de Giorgio Agamben, Le
do ponto de conclusão. Passado esse ponto, sessões que acolhe a alternância sessão- Temps qui Reste (Paris, Payot
qualquer música seria litania fastidiosa. corte-intervalo.) O ato “fait d’une pierre & Rivages, 2004).

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deux coups” 10 causa efeitos de sujeito: a esse dizer, por definição fora do sentido,
surpreende, evidencia e esvazia a suposição será atribuído um sentido, cujo segredo está
do sujeito no Outro e, ao mesmo tempo, alojado no Outro e sua leis: 8, 13, 21… 34!
surpreende e evidencia o sujeito como Vamos suspender!
resposta do real. Quantas vezes se interrompe a suposição
O analista, todas as vezes, corta as de saber no Outro para que caia a ficha da
sessões, sejam de tempo variável ou ses- sua inconsistência?
sões curtas (tema de nossos debates). É O desejo do analista que suporta o corte
imprevisível: é responsabilidade intem- da sessão valida o intervalo, como instância
pestiva do ato analítico. Ao suspender do dizer. “Cette dimension temporelle est
a continuidade, isola-se uma sequência l’angoisse, cette dimension temporelle est
na qual pode ser lida uma suposição do celle de l ‘analyse.C’est parce que le désir
sujeito. O que se ouviu? O que foi dito? de l’analyste suscite en moi cette dimension
1, 2, 3? Ou 21.34? Ou 5, 8, 13? Em que de l’attente que je suis pris dans l’efficace
ponto eu parei mesmo? 8, 13, 21!! 144? de l’analyse” (Lacan, 1962-63, p. 204)12.
Não entendi! Não fez nenhum sentido para O analista em ato – actualy –, suscitando
mim a sua interrupção da minha última a dimensão da espera, faz valer as intermi-
sessão! 0, 0, 1? É isso? Reconhecemos tências – os interditos como causadores,
nessas sequências trechos de uma série de como causação do sujeito. A atualidade do
Fibonacci, uma série matemática infinita analista, o seu a-tempo tem uma incidência
na qual cada elemento é construído a partir clínica na intemporalidade do sujeito do
da soma dos dois números precedentes11; inconsciente. O ato analítico produz, extrai,
é simples como princípio de recorrência, da repetição, essa outra dimensão do tempo,
mas, quando se escutam esses trechos, o kairos, “o momento oportuno”.
é necessário um tempo antes de poder No fim, o momento de concluir é ato
concluir o tempo que falta, o cálculo do do analisante. O momento de concluir in-
intervalo entre um e outro. “Assim, a lin- terrompe a diacronia da associação livre,
guagem faz uma novação do que revela do interrompe, insuccès de l’une-bévue (Lacan,
gozo e faz surgir a fantasia que ele realiza 1976-77). A interrupção da sua sucessão
por algum tempo. Ela só se aproxima do é da ordem do ato que se faz sem o saber
real à medida que o discurso reduz o dito suposto ao Outro e produz a sua suspensão.
a cavar um furo em seu cálculo”. “Vamos suspender!”
Apesar de todos os uns dos enunciados No fim, é o momento de concluir que a
10 Em português, “faire d’une que se agregam um a um (1, 1, 1…), um indecidibilidade da partida se transforma
pierre deux coups” equivale tempo sempre faz falta para o sujeito: ele numa carta na mão do analisante – não
à expressão “matar dois
coelhos numa cajadada nunca recupera o um-a-mais (Lacan, 1968- o “mico preto”, carta da impotência que
só”. 69, pp. 361-74) (a volta que falta), mas estorva o jogo e impede a partida (separa-
11 Criada pelo matemático sempre tenta resgatar o tempo perdido na ção), mas a carta que chega a seu destino
italiano Leonardo de Pisa sua demanda, no seu “blablablá”, na sua na forma de uma letra.
(1175-1250), a relação de
recorrência da série de suposição de um Outro. Como demonstra Quanto tempo necessário para chegar
Fibonacci: cada termo da Lacan em “L’Étourdit” (Lacan, 1972, pp. ao fim! “Ce n’est qu´après un long détour
série é a soma dos dois
termos precedentes: F0 = 449-95), é o corte do analista, na série que peut advenir pour le sujet le savoir
0, F1 = 1; logo, F2 = F0+F1, infinita da associação livre, nas voltas dos de son rejet original” (Lacan, 1961-62,
ou seja, F2 = 0+1, isto é, F2
= 1, F3 = 2, F4 = 3 e assim
ditos, que faz aparecer o “tempo” da neu- p. 181).
sucessivamente. rose e suspende, por um tempo, a sua razão Mas ainda falta um tempo, até que o
12 “Essa dimensão temporal é fantasmática: “vamos suspender!” “tempo” do analista produza, à medida de
a angústia, essa dimensão A interrupção produz o corte mediano seus golpes, a espera, ou seja, a falha no
temporal é a da análise. É
porque o desejo do ana- da fita de Mœbius, realiza o dizer que não tempo do Outro onde o sujeito é flagrado
lista suscita em mim essa está nos ditos. “Que se diga permanece es- como resposta do real: “Il faut le temps pour
dimensão da espera que
estou preso na eficácia da quecido atrás do que se diz no que se ouve” faire trace de ce qui a défailli à s’avérer
psicanálise”. (Lacan, 1972). Mas, de novo, na sequência d’abord” (Lacan, 1970).

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