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LAUAND, L. Jean. A Álgebra como Ciência Árabe. Conferência no Departamento de


Estudos Árabes e Islâmicos da Universidade Autônoma de Madrid. 14-4-98. Tradução
livre de Lucia Maria Aversa Villela e Wanderley Moura Rezende. Texto disponível em
http://www.webislam.com/numeros/2002/163/Temas/Álgebra_Árabe.htm1. Acesso em
03/08/2010.

A Álgebra como Ciência Árabe


Por L. Jean Lauand (Revisão: Concha Pinero
Valverde) Conferência no Departamento de
Estudos Árabes e Islâmicos da Universidade
Autônoma de Madri, 14-4-98.

1. A Ciência e seu contexto cultural


Analisaremos a Álgebra como ciência árabe.
Comecemos por antecipar alguns pontos de discussão sobre que significado
pode ter falar de una ciência desta ou daquela nacionalidade ou cultura – além do mero
fato de indicar o nível de desenvolvimento ou a produção dos cientistas de uma
determinada nacionalidade, como quando se diz, por exemplo: “a Física russa está
muito desenvolvida e tem ganhado muitos Prêmios Nobel" ou "só a Medicina americana
consegue fazer tal transplante", etc.
Ordinariamente tendemos a pensar que o conhecimento científico é
independente de latitudes e de culturas: uma fórmula química ou um teorema de
geometria são os mesmos em latim, em francês ou em chinês e, sendo a comunicação o
único problema - assim se pensa, em um primeiro momento-, bastaria com uma boa
tradução dos termos próprios, do jargão de cada ciência e tudo estaria resolvido (assim,
‘theory of sets’ se diz teoria dos conjuntos ou ‘theorie des ensembles’ e ja está!).
Na realidade, sabemos que as coisas não são tão simples e não há necessidade de
muito esforço para concordar-se que a evolução de uma ciência esbarra em muitas
interferências histórico-culturais, que condicionam desde a criação dessa ciência até o
reconhecimento de um resultado ou a adoção de um modo de proceder científico...

1
Outro endereço: http://www.hottopos.com/collat2/el_coran_y_la_ciencia.htm
2

É conhecido, por exemplo, o fato de que espíritos tão revolucionários como


Galileu ou Descartes insistiram no “dogma científico" da aversão ao ‘vazio’2; e que só
Pascal - na mesma época e após ter resistido muito - tenha conseguido superar esse erro.
Descartes, em seu ‘Princípios da Filosofia’ – o tratado que começa por afirmar
que faz falta duvidar radicalmente de tudo, ainda mesmo que possa apresentar o menor
grau de incerteza possível - toma como uma intuição indiscutível da razão a ideia
tradicional de que a natureza tenha aversão ao vazio...
Os condicionantes de surgimento de uma ciência são de diversas ordens.
Assim, ao dizer que a Geometria (geometria, em grego) é ciência grega ou que a
Álgebra (aljabr) é ciência árabe3, estamos dizendo algo mais que a “casualidade” de que
tenham sido uns senhores gregos (ou árabes...) seus fundadores ou promotores.
Aproximamo-nos mais do sentido da expressão "ciência árabe" quando
pensamos em casos paralelos. Diz-se, por exemplo, que a caligrafia é uma "arte árabe",
porém não se diz que a pintura ou o fato de que haja muitos e muito talentosos
calígrafos árabes (ou na correspondente escassez de pintores...), senão em uma
“conexão de sentido" entre a arte caligráfica e fatores como: a atitude muçulmana para a
escritura (e sua relação, digamos, com o modo como o Corão considera os ayyat, os
senhores de Deus); a desconfiança semita para com a imagem; em resumo: que estamos
pensando em condicionantes como a língua, a religião, a mentalidade etc.
No caso da Álgebra, não é casual que ela tenha nascido no califado abássida ("os
abássidas - ao contrário dos omeyas -, querem aplicar com rigor a lei religiosa à vida
cotidiana"4), não é casual que tenha surgido no seio da “Casa da Sabedoria” (Bayt al-
Hikma) de Bagdad, promovida pelo califa Al-Ma'amun5, uma ciência nascida em língua
árabe e criada por AlKhwarizmi, que é não só um dos fundadores da ciência árabe,
senão um antagonista da ciência grega.
Desde logo, a Álgebra que se estuda hoje nas modernas matemáticas - essa que
estudais aqui na universidade - com seus corpos, anéis, espaços vetoriais etc., o que a
moderna matemática entende por Álgebra bem pode parecer uma fria e objetiva

2
NT: No original, “horror al vacio”. Optamos por este significado, por conta do que, historicamente, está
posto com relação ao que Descartes e Galileu acreditavam. Galileu, por exemplo, assumia o contínuo
como um somatório de elementos indivisíveis. Será que existem espaços vazios entre eles?
3
Neste trabalho, nos referimos sobre tudo aos casos paradigmáticos de Geometria em Os Elementos de
Euclides e Álgebra, tal como fundada por Al-Khwarizmi.
4
ANAWATI, M-M e GARDET, Louis. Introduction a la Théologie Musulmane. Paris: Vrin, 1981, p.
44.
5
Não é impróprio a nosso tema o fato de que esse califa tenha feito parte de uma particular doutrina, a
mu'atazilita, a teologia oficial do Império.
3

axiomática - uma mera sintaxe de estruturas operatórias sem alcance semântico. Porém
esta Álgebra de hoje é o produto de uma evolução - em desenvolvimento contínuo - da
velha al-jahr, que nasceu em um ambiente cultural ao qual não são impróprios
elementos que vão desde as estruturas gramaticais do árabe até a teologia muçulmana de
então...

2. Al-jabr e al-muqabalah

Muhammad Ibn Musa Al-Khwarizmi foi membro da “Casa da Sabedoria",


aquela notável academia científica de Bagdad, que tenha alcançado seu esplendor de
acordo com Al-Ma'amun (califa 813-833). A esse califa, Al-Khwarizmi dedicou sua Al-
Kitab al-muhktasar fy hisab al-jabr wa al-muqaba-lah (“Libro breve para o cálculo da
jabr e da muqabalah”), o livro fundador da Álgebra.
Fixemo-nos, primeiramente, no fato de que as palavras que dão nome à nova
ciência, al-jabr e al-muqabalah – ainda que Al-Khwarizmi as empregou no sentido
técnico -, eram (e o são ainda) termos tomados da linguagem corrente árabe (é
importante dar-se conta além de que todo o léxico original da Álgebra foi obtido da
linguagem cotidiana). O radical trilítero j-b-r (e, como se sabe, o radical tri-consonantal
é o que contem em si a determinação de sentido fundamental no árabe...) está associado
aos seguintes significados:
- Força: por exemplo, o anjo Gabriel, Jibryl, é, literalmente, força-de-Al-lâh. No
Corão (59, 23), Al-Jabar, é forte, aquele que realiza sua vontade - é um dos nomes de
Al-lâh.
- Força que arrasta, que impõe: o Corão em diversos passagens (11, 59; 14, 15;
28, 19; 40, 35; etc.) emprega j-b-r para significar “tiranizar”, “tirano” etc. E não é casual
que a escola teológica muçulmana que nega o livre arbítrio do homem – e em seu lugar
põe o inevitável destino predeterminado - tenha sido chamada jabariyah... E o serviço
militar obrigatório é ij-bary...
- Restabelecer: por (ou voltar a por) algo em seu lugar, em seu devido lugar,
restabelecer uma normalidade. Daí que tajbir (sempre o radical j-b-r..) seja ortopedia e
jibarah, redução de una fratura, no sentido médico de reconduzir: a força que reconduz
o osso ao seu devido lugar (talvez engessando o braço...). A Espanha, ainda no século
4

XVI, no tempo em que os barbeiros acumulavam funções, se podia ler em cartazes:


“Fulano, Barbeiro, Algebrista e Sangrador6”.
- Por que Al-Khwarizmi elege a palavra jabr para o procedimento fundamental
de sua nova ciência?
Precisamente porque - tal como em ortopedia - Álgebra é "obrigar por força cada
termo - cada termo de uma equação - a ocupar seu devido lugar”.
Já no começo de seu Kitab – Al-Khwarizmi distingue seis formas de equações às
quais, toda equação dada pode ser reduzida (e, por tanto, canonicamente resulta).
Em notação atual:
1. ax2 = bx
2. ax2 = c
3. ax=c
4. ax2+bx=c
5. ax2+c=bx
6. bx+c=ax2
Al-jabr é a operação que adiciona um mesmo fator (com o sinal + de adição) a
ambos os membros de uma equação para eliminar um fator afetado pelo sinal -.
Por outro lado temos a operação que suprime termos iguais das duas partes da
equação: al-mugabalah (de q-b-l, cujo significado é: estar na frente de, cara a cara – daí
a qiblah na mesquita é o que indica aa direção de Meca”- e qabila é beijar, confrontar;
equiparar etc.).
Tomemos por exemplo um problema em que os dados podem ser dispostos
sobre a forma (em notação da álgebra atual):
2x2+ 100 - 20x = 58.
Al-Khwarizmi procedia do seguinte modo:
2x2 + 100 = 58 + 20x (por al-jabr).
Em seguida divide por 2 e reduz os termos semelhantes:
x2 + 21 = 10x (por al-muqabalah).
E o problema está já canonicamente equacionado.
Por trás desta digressão técnica, podemos analisar (ou melhor aludir, indicar...)
as relações e conexões de sentido que se dão entre a Álgebra e alguns traços da cultura
árabe.

6
KLINE, Morris. Mathematical Thought from Ancient to Modern Times. New York: Oxford
University Press, 1972, p. 192.
5

3. A Álgebra nos quadros do Islã: o religioso e o temporal

Começamos pelos fundamentos das necessidades práticas da sociedade. Em seus


estudo "L'lslam et l'epanouissement des sciences exactes"7, Roshdi Rashed, para ensinar
a conexão, o enlace entre O Corão, a ciência e a vida prática, exemplifica precisamente
com a Álgebra: ‘ilm alfara’id (ciência da repartição, da herança). Os juristas
muçulmanos se referem à Álgebra como hisab al-fara'id, o cálculo da herança, cálculo
feito segundo a lei corânica.
E precisamente aí teremos já uma primeira condicionante histórico-cultural,
própria do Islã.
Para estudar o Islã, o caso da herança é emblemático, especialmente
representativo da sólida união que se dá, no Islã, entre a ordem religiosa e a ordem
temporal.
Por feliz coincidência, o mesmíssimo problema da herança (que, para o
muçulmano, fica sobre a direta legislação de Allah) é proposto a Jesus Cristo. Jesus
Cristo, que declara - algo impensável na visão do mundo muçulmano – “A Cesar o que
é de Cesar; a Deus o que é de Deus", se nega a estabelecer concretamente os termos de
repartição da herança.
Trata-se de uma passagem evangélica de aparência pouco importante;
muitíssimo mais conhecida é, por exemplo, aquele outro versículo da mesma passagem:
"Olhai os lírios do campo...". Porém me atreveria a dizer que mais importante é o
episódio esquecido que, entretanto, é a chave para entender por quê Jesus Cristo
convida a olhar os lírios ou as aves do céu...
De fato, quase nada se cogita sobre a razão pela qual Jesus Cristo convida a
olhar as aves do céu...
O fato é que -o afirma o evangelho de Lucas -"um da multidão" se aproxima de
Jesus Cristo e lhe faz um pedido: que Jesus se valha de sua autoridade para convencer a
seus irmãos a repartirem com ele a herança (Lc 12, 13). Para surpresa daquele homem
(e contra a mentalidade antiga e oriental, que ligava o poder religioso a questões
temporais...), Jesus Cristo se nega categoricamente a tomar parte dessa questão, como se
nega também a dar qualquer critério concreto sobre este problema. E diz: "Homem,

7
In Quatre conférences publiques organisées par l'Unesco, UNESCO, 1981, p. 152.
6

quem me estabeleceu árbitro ou juiz de vossa divisão? (Lc 12, 14). A única coisa que
faço é uma condenação genérica da cobiça, da avareza, da injustiça e conto a esses
irmãos a parábola do homem rico cujos campos haviam produzido abundante fruto etc.
E conclui com o célebre: "Olhai os lírios do campo...".
Muito diferentes são as coisas no mundo muçulmano. Roger Garaudy, no
capítulo "Fé e Política" ensina como a tawhid8 (unidade, dogma central islâmico) se
projeta sobre a política, o direito e a economia: “Allah é o único proprietário e é o único
legislador. Este é o princípio fundamental do Islã em sua visão de unidade (tawhid).
Naturalmente, não se trata (não há sacerdotes...) de uma teocracia clerical a modo
ocidental, senão que o Islã favorece uma forte e enraizada teocracia própria: não é
casual que o chefe político se intitula ayyatullah, “sinal de Al-lâh".
Em todo caso, o Corão (4, 11 e ss.) afirma, sim, concretamente: "Allah os ordena
o seguinte no que toca a vossos filhos: que a porção do varão equivalha à de duas filhas.
Se estes são mais de dois9, lhes corresponderão dois terços da herança. Se é filha única,
a metade. Se deixar filhos, corresponderá um sexto da herança a cada um dos pais;
porém se não tem filhos e lhe herdam só seus pais, um terço é para a mãe. Etc., etc.".
E conclui: "De vossos ascendentes ou descendentes, não sabeis quais os são
mais úteis. Esta é obrigação de Allah. Allah é onisciente, sábio".
Contrastemos isto com a doutrina cristã.
Naturalmente, para um cristão, o mundo é criação de Deus e obra de Sua
Inteligência: o mundo foi criado pelo Verbo e, por tanto, conhecer o mundo é conhecer
sinais de Deus. E mais: cada criatura é porque é criada inteligentemente por Deus,
participa do ser de Deus. O Deus cristão é - por diversos títulos - Emmanuel, Deus
conosco, e pela Encarnação, a eternidade de Deus irrompe na temporalidade e Cristo
encabeça, recapitula (como diz o novo Catecismo da Igreja Católica) toda a realidade
criada.
É daí que a Igreja defende com tenacidade as leis morais, como leis naturais da
dignidade de ser do homem, dignidade que lhe foi fornecida pelo ato criador do Verbo.
Porém, precisamente por essa mesma concepção teológica, o cristão deve assegurar a
mais radical autonomia das realidades temporais: porque o mundo é obra do Verbo, a

8
GARAUDY, Roger. Promessas do Islã, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988, p. 70.
9
E se só há filhas...
7

realidade temporal tem sua própria verdade, suas próprias leis, naturais, deixando de
fora o clericalismo 10.
Assim, se quero ocupar-me, digamos, de produzir laranjas, não devo recorrer aos
bispos nem à Bíblia, mas sim deve estudar “laranjologia”: porque o Verbo criou
inteligentemente as laranjas e lhes deu leis: devo plantá-las – que sou eu? - em tal mês,
colhê-las em tal outro etc.
O curioso é que a autonomia das realidades temporais tem um fundamento na
teologia da Trindade...
Esta é inclusive a doutrina oficial da Igreja que rechaça igualmente o
clericalismo e o laicismo (que pretende deixar Deus fora da realidade social). Na mesma
passagem (4, 36) em que a Lumen Gentium afirma: "nenhuma atividade humana pode
ser excluída do domínio de Deus". Nesta mesma passagem se acrescenta: “há que
reconhecer que a cidade terrena, a quem são confiados os cuidados temporais, se rege
por princípios próprios".
E a Gaudium et Spes (1,3,36): “Se por autonomia das realidades terrestres se
entende que as coisas criadas e as mesmas sociedades gozam de leis e valores próprios,
que devem ser conhecidos, empregados e ordenados gradualmente pelo homem, então é
absolutamente necessário exigir essa autonomia. E isto não é não é só uma exigência
dos homes de nosso tempo, mas sim é a vontade do Criador. Pela mesma condição da
criação, todas as coisas são dotadas de fundamento próprio, de verdade, bondade, leis e
ordem específicos. O homem deve respeitar tudo isto, reconhecendo os métodos
próprios de cada ciência e arte.
No extremo oposto está um Ayyatulah Khomeini11: "Se dizer que a religião deve
estar separada da política e que as autoridades religiosas não se devem meter em
assuntos de Estado. (...) Tais afirmações são próprias de ateus: são ditadas e
disseminadas pelos imperialistas. Acaso estava a política separada da religião no tempo
do Profeta? (Que Al-lâh o bendiga a ele e a seus fiéis) (p. 27). “O Islã tem preceitos para
tudo o que diz respeito ao homem e à sociedade. Esses preceitos procedem do
Onipotente e são transmitidos por seu Profeta e Enviado. (...) Não há tema sobre o qual
o Islã não tenha emitido seu juízo” (p. 19). “A instauração de uma ordem política
secular equivale a impedir o progresso da ordem islâmico. Todo poder secular, seja qual

10
Tratamos mais detidamente desse tema em Tomás de Aquino hoje, Curitiba - S. Paulo, PUC-PR GRD,
1993.
11
Em seus Princípios políticos, filosóficos, sociais e religiosos. Rio de Janeiro: Record, 1980.
8

for a forma pela qual se manifeste, é necessariamente um poder ateu, obra de Satanás. É
um dever nosso extingui-lo e combater seus efeitos. (...) Não há outra solução senão a
de derrubar todos os governos que não se assentem sobre os puros princípios islâmicos,
sendo, por tanto, corruptos e corruptores (...) Este é o dever, não só dos iranianos, como
de todos os muçulmanos do mundo" (p.23).
Naturalmente, nem todos os muçulmanos pensam assim, porém há no Islã uma
inclinação para a confusão entre o religioso e o político. Como também uma coisa é a
doutrina oficial da Igreja e outra - muito diferente - a escassa consciência que muitos
católicos têm da autonomia da ralidade temporal...
O Islã tende a reduzir o temporal ao religioso. Ao contrário do cristianismo, o
Islã afirma uma absoluta transcendência de Al-lâh (transcendência sobrepujada pela
doutrina mu'atazilita, oficial na época de al-Khwarizmi) e uma revelação ditada,
“baixada” (em árabe, o verbo nazala, que se aplica à revelação divina, significa ainda
por cima - e originariamente – “baixar”).
A revelação de Al-lâh e seu tawhid estão indicadas por sinais no12 mundo. E o
princípio da unidade não se aplica só à política, como também às ciências.
Primeiramente, as ciências estão a serviço da fé13, não só como sinais místicos de Al-lâh
mas antes de tudo de um modo prático: uma sociedade sobre a forte e urgente
necessidade de obedecer às leis do Altíssimo, necessita operacionalizar “tornar
operativas...” as soluções dos graves problemas de repartição de herança.
A Álgebra é uma ciência que nasce para dar solução a esse problema
estabelecido pelo Corão14.
Cabem aqui um par de sugestivas observações:
1. É significativo o fato de que precisamente a parte dedicada a problemas práticos de
herança - a parte III do Kitab - , que ocupa mais da metade do livro de Al-

12
Ayyat significa não só sinal, mas ainda por cima versículo do Corão...
13
*Deus, em sua misericórdia infinita, confiou o Alcorão a Seu profeta, para que o homem possa decifrar
a natureza e, desta forma, transcende-la. O estudo do Alcorão e uma iniciação ao estudo da natureza. O
estudo da natureza é uma procura de Deus. Os fenômenos naturais são cifras que significam Deus. O
Alcorão fornece os testes de verificação para os esforços decifradores da pesquisa da natureza. O
homem pode comparar a natureza ao Alcorão, porque sua mente participa do espírito divino. A origem
divina da mente humana é vivenciada justamente por sua capacidade de adequação do Alcorão à
natureza. Por sua capacidade algébrica e decifradora, a mente humana tem a estrutura da mente divina”
(FLUSSER, V. A mesquita e a escrita. Revista de Estudos Árabes, DLO-FFLCHUSP, v. 1, n. 2, 1993,
p. 33).
14
Cfr. por exemplo: YOUSCHKEWITCH, A. P. Les mathematiques arabes, Paris, Vrin-CNRS, 1976.
DALMEDICO, A.; PEIFFER, J. Une histoire des mathematiques, Paris, Seuil, 1988; WAERDEN, B.
L. van der A History of Algebra, New York, Springer Verlag, 1985.
9

Khwarizmi, é suprimida nas traduções latinas - de meados do século XII - de


Roberto de Ghester - em Segovia - e de Gerardo de Cremona, em Toledo.
2. A Álgebra de Al-Khwarizmi é completamente retórica e não emprega símbolos: os
números simples são designados por dirham, a unidade de moeda (o dó1ar, diríamos
hoje em dia); la incógnita, o x, se designa pela palavra árabe xay, coisa, e, se é de
ordem quadrada, mal (riqueza, bens, fortuna).
Mas voltemos às ligações entre ciência e fé. De um modo intrínseco: “o
princípio da tawhid, o ponto capital da experiência islâmica de Al-lâh, exclui a
separação entre ciência e fé. Se tudo, na natureza, é ayyat ‘sinal’ da presença divina, o
conhecimento da natureza se torna (...) um acesso a Al-lâh. (...) A sabedoria da fé reata,
integra todas as ciências em um conjunto orgânico, pois todas têm um objetivo no
mundo que, em sua totalidade, é uma 'teofania', uma revelação dos 'senais de Al-lâh. O
universo é um 'ícone' no qual o Uno se revela por meio do múltiplo por mil símbolos”15.
Nesse sentido, a Álgebra adquire extraordinária importância como instrumento
de enlace entre as ciências. Referindo-se à época em que surge a Álgebra de Al-
Khwarizmi, Roshdi Rashed disse:

O começo do século IX é um grande momento de expansão da


matemática helenística em língua árabe. É precisamente nesse período
e nesse ambiente (o da “Casa da Sabedoria" de Bagdá) que
Muhammad Ibn Musa al-Khwarizmi escreve um livro com matéria e
estilo novos: nasce a Álgebra como disciplina matemática distinta e
independente.
Tal surgimento - e já os contemporâneos se dão conta disso - fuoi
de importância crucial, seja pelo estilo dessa matemática pela
ontologia de seu objeto e, ainda mais, pela riqueza de possibilidades
que com ela se abrem. O estilo é, ao tempo, algorítmico e
demonstrativo e, com essa álgebra , imediatamente se deixa entrever a
imensa potencialidade que as Matemáticas terão desde então: a
aplicação mútua entre as disciplinas matemáticas”16.

4. A Álgebra no sistema língua/pensamento árabe.

Não só com a religião: a Álgebra se relaciona ainda por cima - de modo mais ou
menos direto - com o - para empregar a expressão de Johannes Lohmann17 - sistema
língua/pensamento árabe.

15
GARAUDY, op. cit. p. 81, 84-85.
16
Modernidade Clássica e Ciência Árabe, Revista de Estudos Árabes, DLO-FFLCHUSP, v.1, n. 1,
1993, p. 9.
17
LOHMANN, Johannes. Santo Tomas e os Árabes - Estruturas linguísticas e formas de pensamentos.
Revista de Estudos Árabes, Centro de Estudos Árabes/FFLC~USP, Sao Paulo, Ano lII, n. 5-6, p.
10

Analisando a língua poderemos ter uma melhor compreensão de aspectos da


Álgebra como ciência árabe e de sua evolução em contraposição à Geometria, como
ciência grega.
Um importante primeiro ponto nas relações entre língua e “forma de
pensamento" (Lohmann) é a de que “o que importa não são as línguas em si, mas as
línguas na medida em que predeterminam certa concepção de mundo para o falante, ou
como disse Heidegger, eine Erschlossenheit des Daseins”18.
Ou seja, que, de algum modo, o alcance do pensamento se condiciona pela
linguagem. Não só pelo maior ou menor número e acuidade de conceitos e potencial
expressivo dos vocábulos, mas também (e sobre tudo) pelas estruturas peculiares de
cada língua ou família de línguas. Assim cabe falar de sistema língua/pensamento, que,
no caso do grego, é justamente designado por logos e, no caso do árabe, por ma'na.
O conceito de ma'na, ‘intencionalidade’19; é tão característica da maneira árabe
de pensar como o é, em sua concepção original, a noção específica do termo grego
logos para a forma de pensar do grego clássico. E, ainda por cima, precisamente por
essas duas noções, ou, de outra maneira, sobre a influência dessas duas noções, é que
essas duas formas de pensamento, representadas, cada qual em sua língua - o grego
clássico e o árabe clássico – tem-se expressado em filosofia20. E podemos acrescentar:
tem-se expressada ainda por cima a Álgebra e a Geometria.
O sistema grego, logos, busca estabelecer uma exata correspondência entre
pensamento e realidade. Correspondência biunivoca já programaticamente estabelecida
por Parmênides quando afirma: Tò gàr auto noein estin te kai einai (“Pensar e ser são o
mesmo”).
Tal proposta de pensamento é possibilitada por diversos fenômenos de
linguagem. Assinalamos somente dois para poder fazer o contraste com o árabe.

1) Contrariamente ao árabe, no centro semântico do sistema grego, “se encontra


o verbo esti (ser), que, segundo Aristóteles, esta implicitamente contido em qualquer

3351. Tit. orig.: Saint Thomas et les Arabes (Structures linguistiques et formes de pensée), Revue
Philosophique de Louvain, t. 74, fev. 1976, p. 30-44. Trad.: Ana L. Carvalho Fujikura e Helena
Meidani.
18
Art. cit. p. 38.
19
No sentido técnico-filosófico de intentio, apresentado por Lohmann.
20
Art. cit. p. 35-36.
11

outro vcrbo”21. O verbo ser, característica central do sistema logos (e de todo o


indoeuropeu), permitiria o enlace exato entre a realidade mesma e o pensamento: pelo
verbo ser, o pensamento homo-loga o real.
Um exemplo nos ajudará a compreender essa relação. Suponhamos que venham
aqui os peritos em normas de seguros contra incêndio que vão homo-logar este edifício.
Então, há uma norma ideal que prescreve – como é este imóvel? - que haja tantos e tais
extintores, que haja tantas e tais saídas de emergência etc. Eles dispõem de um logos, de
um corpo de normas técnicas racionalmente estabelecidas e, inspecionando um edifício,
vão verificar se a realidade (a presença de tantos e tais extintores, de portas metálicas
etc.) daquele edifício está no mesmo logos (homo-logos) da norma. Deste mesmo modo,
para o sistema grego, o pensamento está em homo-logia com a realidade.
2) A língua grega flexiona temas (enquanto o árabe flexiona a mesma raiz de
uma palavra). No exemplo tradicional das gramáticas elementares de latim (e,
obviamente, o mesmo ocorre no grego), o radicai ros de rosa permanece fixo, pois uma
rosa é uma rosa; qualquer outro fator (qualquer coisa que suceda à substância rosa, seu
relacionamento com o mundo exterior, suas qualidades etc.): da cor da rosa (genitivo) à
mosca que nela pousa (ablativo), se registra nas desinências rosam, rosarum, rosae etc.
Porém o radical (que corresponde à ousia, à substância) permanece intocável.
Com o árabe, tudo é diferente: para o árabe não há radicais fixos: o radical
trilítero - por exemplo: S-L-M- é intra-flexionado: SaLaM; iSLaM; SaLyM; muSLiM
etc.
Lohmann interpreta este fato do seguinte modo:

O árabe, como o semítico em geral, de uma parte; e o grego, de outra,


estabelecem relações com o mundo respectivamente pela audição e
pelo olhar. Tal fato conduziu o falante semita a uma preponderância
da religião, enquanto o grego se voltava a inventar a teoria. Dali
decorre (ou procede?...) uma diferença análoga das correspondentes
línguas, quanto a seu tipo de expressão. Cada um desses dois tipos se
caracteriza por um procedimento gramatical específico: flexão de
raízes no semítico e flexão de temas no indoeuropeu antigo.

A onipresença do verbo ser e a flexão de temas, como agudamente indica


Lohmann, favorecem um sistema logos (“ocular”, “especular”) de correspondência

21
Art. cit. p. 35.
12

exata entre pensamento y realidade que, como veremos, é característica também da


Geometria grega.
O árabe se inclina para o sistema ma´na - pensamento “auricular”,
“pensamiento confundente22”pela ausência das amarras do verbo ser como verbo de
ligação, pela indeterminação semântica de seus radicais trilíteros etc. Há, assim, uma
despretensão de alcançar a ousia, la substantia. Tal despretensão é confirmada pela
religião e, em especial, pela doutrina mu'atazilita, o pensamento teológico imposto
oficialmente por Al-Ma'amun em Bagdad. Se podem aplicar à Álgebra as considerações
de Lohmann sobre a “distorção” na recepção da filosofia grega pelos árabes e,
especialmente, por Averroes:

(Um aspecto) que se deve ter em conta para compreender a intenção


do Comendador (em sua interpretação de Aristóteles) é a noção de
essentia (como tradução da palavra árabe dhat). Dhat - conceito
profundamente enraizado no aristotelismo árabe na especulação
teológica islâmica do século IX, em Bagdad - é a essência de Deus,
em oposição a seus atributos, por cuja mediação, se fala de Deus no
Corão. A essência de Deus, segundo a doutrina mu´tazilita é
absolutamente transcendente em oposição a esses atributos. Essa
transcendência absoluta de Deus – expressa pela noção dhat e
traduzida em latim por essentia - , em oposição a todas as noções
descritivas (sifat, em árabe) (...) se tornou uma transcendência da coisa
real em relação ao intelecto humano.

A tudo isso, aplique-se ainda o critério - por certo não casual - de seleção de
fontes do mesmo Al-Khwarizmi. Solomon Gandz, o moderno editor de Al-Khwarizmi,
considera essencial, no fundador da Álgebra, seu caráter oriental, não-grego e ainda
anti-grego. Vale a pena transcrever sua introdução ao capítulo “Mensuração” do Kitab:

5. Al-Khwarizmi, o antagonista do influxo grcgo

Na universidade de Bagdá, fundada por Al-Ma'a-mun (813-33), a Bayt al-


Hikma, donde Al-Khwarizmi trabalhou sob o patrocínio do Califa, floresceu também
um antigo companheiro, Al-Hajjaj ibn Yu-suf ibn Matar. Este era o chefe da corrente
favorável à recepção da ciência grega por parte dos árabes. Dedicou toda sua vida a
traduzir para o árabe as obras gregas. Ainda no califado de Harun al-Rashid (786-809),

22
No sentido técnico que Ortega e Julian Marias dão a essa expressão.
13

Al-Hajjaj havia traduzido Os Elementos de Euclides (...). Posteriormente (829-830),


traduzio o Almagesto. Mas, Al-Khwarizmi nunca menciona seu colega e nem sequer
suas obras. Euclides e sua Geometria, mesmo que disponíveis pela boa tradução de seu
companheiro, são de todo ignorados por Al-Khwarizmi, quando ele escreve sobre
Geometria. E no “Prefácio” de sua Álgebra, Al-Khwarizmi claramente enfatiza seu
propósito de escrever um tratado popular que, ao contrário da matemática teórica grega,
sirva a fins práticos do povo em seus negócios de heranças e legados, em seus assuntos
jurídicos, comerciais, de exploração da terra e de escavação de canais. Al-Khwarizmi é
em tudo o contrário de um discípulo dos gregos: é o adversário de AI-Hajjaj e da escola
grega. Ele é o representante das ciências populares nativas. Na Academia de Bagdá, Al-
Khwanzmi representa uma reação contrária à introdução da matemática grega. Sua
Álgebra produz uma impressão de protesto contra a tradução de Euclides e contra toda a
tendência de acolhida das ciências gregas23.

6. Árabe x Grego: os conceitos de razão e proporção

La geometria grega é o modelo acabado do sistema grego, de uma “língua de


visão”, em correspondência tanto quanto possível, bijetiva com o real.
Esse “tanto quanto possível” impõe seus limites: na matemática grega, não
encontraremos o número zero (o zero não tem correspondente-logos com o real) e é
conhecido o escândalo histórico que se produz depois da descoberta da
incomensurabilidade de grandezas (o número irracional, para os gregos a-logos!, entra
em contradição com o mesmo sistema de pensamento). Por outra parte, Euclides24
afirma que o um é a realidade e a unidade é aquilo pelo qual se diz de cada um dos entes
que são, que é um.
Bem distintas são as coisas para o árabe: seu sistema língua/pensamento não é
logos, porém ma´na: prevalece não a pretensão de que a linguagem acompanhe pari
passu o ente, porém o sentido mental (intentio, ma´na), independente da
correspondência-logos com o real.

23
Cit. porWaerden, B. L. op. cit., pp. 14-15.
24
Livro Vll, def. 1. Citaremos pela ed. de Heath, Thomas L. The Thirteen books of Euclid's Elements,
translated frorn the text of Heibery with Intr. and Comm. New York, Dover, 2nd. ed., s.d., vol. l-lll.
14

Daí que a ciência árabe, por antonomásia, seja a Álgebra (com zero e números
negativos etc.). E o irracional, na incomensurabilidade geométrica, é aceito com total
naturalidade pelo árabe.
É oportuno nesse sentido descrever – mesmo que de modo breve - a superação
do sistema logos no caso paradigmático da acolhida árabe dos conceitos matemáticos de
razão e proporção25.
Essa superação tem um importante marco no famoso matemático e poeta Omar
Khayyam, que abre el caminho para o estabelecimento dos números irracionais.
Para analisar os conceitos de razão e proporção nos Elementos, comecemos pela
observação de Heath: “É digno de atenção, o fato de que a teoria das proporções recebe
duplo tratamento em Euclides: se refere a grandezas em general, no livro V, e só ao caso
particular de números, no livro V11”26.
Para Heath, Euclides segue a tradição: reproduzindo a antiga teoria de
proporções (anterior à crise dos incomensuráveis) e também à nova, atribuída a Eudoxo
(a do libro V). Esta definição (V, def. 5) afirma:

Se diz que magnitudes estão na mesma razão - a primeira para a


segunda e a terceira para a quarta - quando: para quaisquer
equimúltiplos que sejam tomados da primeira e da terceira
comparados a quaisquer equimúltiplos que sejam tomados da segunda
e da quarta; os primeiros equimúltiplos coincidem em superar (ou
igualar ou inferar) os segundos equimúltiplos respectivamente
tomados em ordem correspondente.

Vuillemin faz notar que esta teoria permite evitar o problema dos irracionais27: o
conceito de razão se subtrai ao âmbito da medida (e se evita, por tanto, o escândalo dos
incomensuráveis).
E é precisamente essa definição de razão a que será objeto de crítica por parte de
Omar Khayyam: para ele, Euclides não houvera atinado com o verdadeiro significado
de razão, que se encontra no processo de medida de uma grandeza por outra28.

25
Un estudo todo dedicado à recepção do conceito euclidiano de razão pelos árabes é o de PLOOIJ, E. B.
Al-Djajjâni - Commentary on Ratio in Euclid's conception of Ratio as criticized by arabian
commentators, Rotterdam, Uitgeuerij W.J. van Hengel, 1950.
26
Op. cit. v.11, p. 113.
27
VUILLEMIN, Jules. De la Logique a la Théologie. Paris: Flammarion, 1967, pp. 12 e ss.
28
Como observa Dirk J. Struik em "Omar Khayyam Mathematimatician”. The Mathematics
Teacher, April 1958: "Omar is here on the road to the extension of the number concept which
leads to the notion of the real number".
15

Assim, Omar Khayyam define A : B = C : D

Todos os múltiplos da primeira são retirados da segunda, até que se


chegue a um resto menor que a primeira e, igualmente, todos os
múltiplos da terceira são retirados da quarta, até que se chegue a um
resto menor que a terceira. E o número de múltiplos da primeira na
segunda é igual ao número de múltiplos da terceira na quarta. E mais:
se extrai da primeira, todos os múltiplos do resto da segunda, até obter
um novo resto menor que o resto da segunda e igualmente, se extrai da
terceira, todos os múltiplos do resto da quarta, até obter um novo resto
menor que o resto da quarta. E o número de múltiplos do resto da
segunda é igual ao número de múltiplos do resto da quarta. Etc.
E assim, ad infinitum. Então, a razão entre a primeira e a
segunda é necessariamente a que se dá entre a terceira e a
quarta. Esta é a verdadeira proporcionalidade a modo
geométrico29.

Este processo” - já mencionado por Aristóteles - é o que os gregos chamam


antanairesis ou antiphayresis:
La quantidade menor, digamos B, é subtraída de A, com resto R1.
E assim R1 =A – q1 B.
Em seguida, R1 é subtraído - tanto quanto possível - de B.
R1 = B – q2R1
E desse modo se procede indefinidamente...

Depois de afirmar l excelência da antiphayresis, Omar Khayyam estabelece a


questão decisiva para o estabelecimento dos números irracionais: se a razão deve ser
entendida como um tipo de número.
Desprendidos do enraizamento grego na correspondência pensamento/realidade,
autores árabes como Nasir ad-Din at-Tusi não terão inconveniente em considerar todas
as razões (e os irracionais, como limites das antiphayresis) como números.
Uma tal acolhida só é possível em sistema ma´na...

29
Cit. por Waerden, B. L. v. der A History of Algebra - From al-Khwarizmi to Emmi Noether, N. York,
Springer Verlag, 1985, p. 30.

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