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Outro endereço: http://www.hottopos.com/collat2/el_coran_y_la_ciencia.htm
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NT: No original, “horror al vacio”. Optamos por este significado, por conta do que, historicamente, está
posto com relação ao que Descartes e Galileu acreditavam. Galileu, por exemplo, assumia o contínuo
como um somatório de elementos indivisíveis. Será que existem espaços vazios entre eles?
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Neste trabalho, nos referimos sobre tudo aos casos paradigmáticos de Geometria em Os Elementos de
Euclides e Álgebra, tal como fundada por Al-Khwarizmi.
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ANAWATI, M-M e GARDET, Louis. Introduction a la Théologie Musulmane. Paris: Vrin, 1981, p.
44.
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Não é impróprio a nosso tema o fato de que esse califa tenha feito parte de uma particular doutrina, a
mu'atazilita, a teologia oficial do Império.
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axiomática - uma mera sintaxe de estruturas operatórias sem alcance semântico. Porém
esta Álgebra de hoje é o produto de uma evolução - em desenvolvimento contínuo - da
velha al-jahr, que nasceu em um ambiente cultural ao qual não são impróprios
elementos que vão desde as estruturas gramaticais do árabe até a teologia muçulmana de
então...
2. Al-jabr e al-muqabalah
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KLINE, Morris. Mathematical Thought from Ancient to Modern Times. New York: Oxford
University Press, 1972, p. 192.
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In Quatre conférences publiques organisées par l'Unesco, UNESCO, 1981, p. 152.
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quem me estabeleceu árbitro ou juiz de vossa divisão? (Lc 12, 14). A única coisa que
faço é uma condenação genérica da cobiça, da avareza, da injustiça e conto a esses
irmãos a parábola do homem rico cujos campos haviam produzido abundante fruto etc.
E conclui com o célebre: "Olhai os lírios do campo...".
Muito diferentes são as coisas no mundo muçulmano. Roger Garaudy, no
capítulo "Fé e Política" ensina como a tawhid8 (unidade, dogma central islâmico) se
projeta sobre a política, o direito e a economia: “Allah é o único proprietário e é o único
legislador. Este é o princípio fundamental do Islã em sua visão de unidade (tawhid).
Naturalmente, não se trata (não há sacerdotes...) de uma teocracia clerical a modo
ocidental, senão que o Islã favorece uma forte e enraizada teocracia própria: não é
casual que o chefe político se intitula ayyatullah, “sinal de Al-lâh".
Em todo caso, o Corão (4, 11 e ss.) afirma, sim, concretamente: "Allah os ordena
o seguinte no que toca a vossos filhos: que a porção do varão equivalha à de duas filhas.
Se estes são mais de dois9, lhes corresponderão dois terços da herança. Se é filha única,
a metade. Se deixar filhos, corresponderá um sexto da herança a cada um dos pais;
porém se não tem filhos e lhe herdam só seus pais, um terço é para a mãe. Etc., etc.".
E conclui: "De vossos ascendentes ou descendentes, não sabeis quais os são
mais úteis. Esta é obrigação de Allah. Allah é onisciente, sábio".
Contrastemos isto com a doutrina cristã.
Naturalmente, para um cristão, o mundo é criação de Deus e obra de Sua
Inteligência: o mundo foi criado pelo Verbo e, por tanto, conhecer o mundo é conhecer
sinais de Deus. E mais: cada criatura é porque é criada inteligentemente por Deus,
participa do ser de Deus. O Deus cristão é - por diversos títulos - Emmanuel, Deus
conosco, e pela Encarnação, a eternidade de Deus irrompe na temporalidade e Cristo
encabeça, recapitula (como diz o novo Catecismo da Igreja Católica) toda a realidade
criada.
É daí que a Igreja defende com tenacidade as leis morais, como leis naturais da
dignidade de ser do homem, dignidade que lhe foi fornecida pelo ato criador do Verbo.
Porém, precisamente por essa mesma concepção teológica, o cristão deve assegurar a
mais radical autonomia das realidades temporais: porque o mundo é obra do Verbo, a
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GARAUDY, Roger. Promessas do Islã, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988, p. 70.
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E se só há filhas...
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realidade temporal tem sua própria verdade, suas próprias leis, naturais, deixando de
fora o clericalismo 10.
Assim, se quero ocupar-me, digamos, de produzir laranjas, não devo recorrer aos
bispos nem à Bíblia, mas sim deve estudar “laranjologia”: porque o Verbo criou
inteligentemente as laranjas e lhes deu leis: devo plantá-las – que sou eu? - em tal mês,
colhê-las em tal outro etc.
O curioso é que a autonomia das realidades temporais tem um fundamento na
teologia da Trindade...
Esta é inclusive a doutrina oficial da Igreja que rechaça igualmente o
clericalismo e o laicismo (que pretende deixar Deus fora da realidade social). Na mesma
passagem (4, 36) em que a Lumen Gentium afirma: "nenhuma atividade humana pode
ser excluída do domínio de Deus". Nesta mesma passagem se acrescenta: “há que
reconhecer que a cidade terrena, a quem são confiados os cuidados temporais, se rege
por princípios próprios".
E a Gaudium et Spes (1,3,36): “Se por autonomia das realidades terrestres se
entende que as coisas criadas e as mesmas sociedades gozam de leis e valores próprios,
que devem ser conhecidos, empregados e ordenados gradualmente pelo homem, então é
absolutamente necessário exigir essa autonomia. E isto não é não é só uma exigência
dos homes de nosso tempo, mas sim é a vontade do Criador. Pela mesma condição da
criação, todas as coisas são dotadas de fundamento próprio, de verdade, bondade, leis e
ordem específicos. O homem deve respeitar tudo isto, reconhecendo os métodos
próprios de cada ciência e arte.
No extremo oposto está um Ayyatulah Khomeini11: "Se dizer que a religião deve
estar separada da política e que as autoridades religiosas não se devem meter em
assuntos de Estado. (...) Tais afirmações são próprias de ateus: são ditadas e
disseminadas pelos imperialistas. Acaso estava a política separada da religião no tempo
do Profeta? (Que Al-lâh o bendiga a ele e a seus fiéis) (p. 27). “O Islã tem preceitos para
tudo o que diz respeito ao homem e à sociedade. Esses preceitos procedem do
Onipotente e são transmitidos por seu Profeta e Enviado. (...) Não há tema sobre o qual
o Islã não tenha emitido seu juízo” (p. 19). “A instauração de uma ordem política
secular equivale a impedir o progresso da ordem islâmico. Todo poder secular, seja qual
10
Tratamos mais detidamente desse tema em Tomás de Aquino hoje, Curitiba - S. Paulo, PUC-PR GRD,
1993.
11
Em seus Princípios políticos, filosóficos, sociais e religiosos. Rio de Janeiro: Record, 1980.
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for a forma pela qual se manifeste, é necessariamente um poder ateu, obra de Satanás. É
um dever nosso extingui-lo e combater seus efeitos. (...) Não há outra solução senão a
de derrubar todos os governos que não se assentem sobre os puros princípios islâmicos,
sendo, por tanto, corruptos e corruptores (...) Este é o dever, não só dos iranianos, como
de todos os muçulmanos do mundo" (p.23).
Naturalmente, nem todos os muçulmanos pensam assim, porém há no Islã uma
inclinação para a confusão entre o religioso e o político. Como também uma coisa é a
doutrina oficial da Igreja e outra - muito diferente - a escassa consciência que muitos
católicos têm da autonomia da ralidade temporal...
O Islã tende a reduzir o temporal ao religioso. Ao contrário do cristianismo, o
Islã afirma uma absoluta transcendência de Al-lâh (transcendência sobrepujada pela
doutrina mu'atazilita, oficial na época de al-Khwarizmi) e uma revelação ditada,
“baixada” (em árabe, o verbo nazala, que se aplica à revelação divina, significa ainda
por cima - e originariamente – “baixar”).
A revelação de Al-lâh e seu tawhid estão indicadas por sinais no12 mundo. E o
princípio da unidade não se aplica só à política, como também às ciências.
Primeiramente, as ciências estão a serviço da fé13, não só como sinais místicos de Al-lâh
mas antes de tudo de um modo prático: uma sociedade sobre a forte e urgente
necessidade de obedecer às leis do Altíssimo, necessita operacionalizar “tornar
operativas...” as soluções dos graves problemas de repartição de herança.
A Álgebra é uma ciência que nasce para dar solução a esse problema
estabelecido pelo Corão14.
Cabem aqui um par de sugestivas observações:
1. É significativo o fato de que precisamente a parte dedicada a problemas práticos de
herança - a parte III do Kitab - , que ocupa mais da metade do livro de Al-
12
Ayyat significa não só sinal, mas ainda por cima versículo do Corão...
13
*Deus, em sua misericórdia infinita, confiou o Alcorão a Seu profeta, para que o homem possa decifrar
a natureza e, desta forma, transcende-la. O estudo do Alcorão e uma iniciação ao estudo da natureza. O
estudo da natureza é uma procura de Deus. Os fenômenos naturais são cifras que significam Deus. O
Alcorão fornece os testes de verificação para os esforços decifradores da pesquisa da natureza. O
homem pode comparar a natureza ao Alcorão, porque sua mente participa do espírito divino. A origem
divina da mente humana é vivenciada justamente por sua capacidade de adequação do Alcorão à
natureza. Por sua capacidade algébrica e decifradora, a mente humana tem a estrutura da mente divina”
(FLUSSER, V. A mesquita e a escrita. Revista de Estudos Árabes, DLO-FFLCHUSP, v. 1, n. 2, 1993,
p. 33).
14
Cfr. por exemplo: YOUSCHKEWITCH, A. P. Les mathematiques arabes, Paris, Vrin-CNRS, 1976.
DALMEDICO, A.; PEIFFER, J. Une histoire des mathematiques, Paris, Seuil, 1988; WAERDEN, B.
L. van der A History of Algebra, New York, Springer Verlag, 1985.
9
Não só com a religião: a Álgebra se relaciona ainda por cima - de modo mais ou
menos direto - com o - para empregar a expressão de Johannes Lohmann17 - sistema
língua/pensamento árabe.
15
GARAUDY, op. cit. p. 81, 84-85.
16
Modernidade Clássica e Ciência Árabe, Revista de Estudos Árabes, DLO-FFLCHUSP, v.1, n. 1,
1993, p. 9.
17
LOHMANN, Johannes. Santo Tomas e os Árabes - Estruturas linguísticas e formas de pensamentos.
Revista de Estudos Árabes, Centro de Estudos Árabes/FFLC~USP, Sao Paulo, Ano lII, n. 5-6, p.
10
3351. Tit. orig.: Saint Thomas et les Arabes (Structures linguistiques et formes de pensée), Revue
Philosophique de Louvain, t. 74, fev. 1976, p. 30-44. Trad.: Ana L. Carvalho Fujikura e Helena
Meidani.
18
Art. cit. p. 38.
19
No sentido técnico-filosófico de intentio, apresentado por Lohmann.
20
Art. cit. p. 35-36.
11
21
Art. cit. p. 35.
12
A tudo isso, aplique-se ainda o critério - por certo não casual - de seleção de
fontes do mesmo Al-Khwarizmi. Solomon Gandz, o moderno editor de Al-Khwarizmi,
considera essencial, no fundador da Álgebra, seu caráter oriental, não-grego e ainda
anti-grego. Vale a pena transcrever sua introdução ao capítulo “Mensuração” do Kitab:
22
No sentido técnico que Ortega e Julian Marias dão a essa expressão.
13
23
Cit. porWaerden, B. L. op. cit., pp. 14-15.
24
Livro Vll, def. 1. Citaremos pela ed. de Heath, Thomas L. The Thirteen books of Euclid's Elements,
translated frorn the text of Heibery with Intr. and Comm. New York, Dover, 2nd. ed., s.d., vol. l-lll.
14
Daí que a ciência árabe, por antonomásia, seja a Álgebra (com zero e números
negativos etc.). E o irracional, na incomensurabilidade geométrica, é aceito com total
naturalidade pelo árabe.
É oportuno nesse sentido descrever – mesmo que de modo breve - a superação
do sistema logos no caso paradigmático da acolhida árabe dos conceitos matemáticos de
razão e proporção25.
Essa superação tem um importante marco no famoso matemático e poeta Omar
Khayyam, que abre el caminho para o estabelecimento dos números irracionais.
Para analisar os conceitos de razão e proporção nos Elementos, comecemos pela
observação de Heath: “É digno de atenção, o fato de que a teoria das proporções recebe
duplo tratamento em Euclides: se refere a grandezas em general, no livro V, e só ao caso
particular de números, no livro V11”26.
Para Heath, Euclides segue a tradição: reproduzindo a antiga teoria de
proporções (anterior à crise dos incomensuráveis) e também à nova, atribuída a Eudoxo
(a do libro V). Esta definição (V, def. 5) afirma:
Vuillemin faz notar que esta teoria permite evitar o problema dos irracionais27: o
conceito de razão se subtrai ao âmbito da medida (e se evita, por tanto, o escândalo dos
incomensuráveis).
E é precisamente essa definição de razão a que será objeto de crítica por parte de
Omar Khayyam: para ele, Euclides não houvera atinado com o verdadeiro significado
de razão, que se encontra no processo de medida de uma grandeza por outra28.
25
Un estudo todo dedicado à recepção do conceito euclidiano de razão pelos árabes é o de PLOOIJ, E. B.
Al-Djajjâni - Commentary on Ratio in Euclid's conception of Ratio as criticized by arabian
commentators, Rotterdam, Uitgeuerij W.J. van Hengel, 1950.
26
Op. cit. v.11, p. 113.
27
VUILLEMIN, Jules. De la Logique a la Théologie. Paris: Flammarion, 1967, pp. 12 e ss.
28
Como observa Dirk J. Struik em "Omar Khayyam Mathematimatician”. The Mathematics
Teacher, April 1958: "Omar is here on the road to the extension of the number concept which
leads to the notion of the real number".
15
29
Cit. por Waerden, B. L. v. der A History of Algebra - From al-Khwarizmi to Emmi Noether, N. York,
Springer Verlag, 1985, p. 30.