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Universidade de Brasília

Faculdade de Direito

O Caso dos Exploradores de Cavernas

Trabalho apresentada pelo aluno


Efinéias Stroppa dos Santos como parte
da avaliação da Disciplina Introdução ao
Estudo do Direito I, sob a orientação da
Professora. Dra. Claudia Rosane Roesler.
Brasília, novembro/2010

O CASO DOS EXPLORADORES DE CAVERNAS

1.Os fatos
Cinco membros da Sociedade Espeleológica estavam explorando uma caverna quando
houve um desmoronamento que bloqueou a saída. No 20° dia entraram em contato com o
mundo exterior e souberam então que o resgate demoraria pelo menos mais 10 dias e que não
tinham suprimentos que permitissem a todos sobreviver durante tanto tempo. Um dos
elementos do grupo, Whetmore, consultou pelo rádio os médicos da equipe de resgate sobre a
possibilidade de sobrevivência do grupo se eles se alimentassem da carne de um deles.
Recebeu uma resposta positiva sobre essa possibilidade, mas ninguém quis aconselhar sobre
se eles deviam ou não agir assim.

Do depoimento dos acusados, soube-se que Whetmore foi o primeiro a propor que se
alimentassem da carne de um deles para sobreviverem e que possuía uns dados que poderiam
ser utilizados para a escolha de quem seria sacrificado. Após uma hesitação, os outros
concordaram com o plano. Porém, no momento de lançar os dados, Whetmore desistiu do
acordo e propôs que esperassem mais uma semana para executar o plano. Apesar disso, os
acusados seguiram com o plano e a sorte recaiu sobre Whetmore que foi sacrificado.

Após o resgate os sobreviventes foram presos e julgados, sendo condenados em


primeira instancia por violação ao texto da lei que diz: “Quem quer que intencionalmente
prive a outrem da vida será punido com a morte”. § 12-A do N.C.S.A. Apelaram então para a
suprema corte do país.

2.Os votos.
Compõe a Suprema Corte cinco juízes cujos votos serão aqui sintetizados:

2.1. Presidente Truepenny, C. J.

Em seu voto defende que a decisão de condená-los é errada e não sábia, mas a única
possível diante do texto legal. Acredita ele que o texto legal não permite nenhuma exceção e
vincula o juiz a condená-los. Como saída para não se cometer uma injustiça, ele aponta o
caminho da clemência executiva, esperando que o chefe do executivo dê aos acusados alguma
forma de clemência. Assim, segundo ele, seria feita justiça sem debilitar a lei.

• Análise:

O voto do presidente do tribunal é claramente positivista. Mesmo não gostando do


resultado da aplicação da lei, considera ele que ela deve ser aplicada literalmente. A solução
para as injustiças da lei estaria dentro da própria lei no instituto da clemência executiva a ser
aplicada por outro poder. Portanto, cabe ao judiciário apenas aplicar a lei em sua interpretação
mais óbvia.

2.2. Foster, J.

Foster absolve os réus baseado em dois fundamentos independentes.

O primeiro deles é que o direito positivo não poderia ser aplicado a esse caso, pois
quando os acusados cometeram o crime eles não estavam vivendo na sociedade civil. Sustenta
Foster que na ocasião do crime, estavam os acusados vivendo em um “estado de natureza”, e
assim o direito positivo deixou de ser aplicável a eles. Nesse contexto, foi feito um contrato
aceito por todos e esse contrato passou a regular as relações entre eles neste período em que
viveram fora da sociedade. Assim, a consequência deste contrato, a morte de Whetmore, não
é um crime punível pelo direito positivo da sociedade civil.

O segundo fundamento usado por Foster é que o juiz precisa encontrar o propósito da
norma para interpretá-la. Aceitando que o direito positivo é aplicável ao caso, Foster vai
buscar qual o propósito da norma em questão, concluindo que é dissuadir os homens da
prática do assassinato. Citando como precedente o instituto da legitima defesa, que não é
punido pela jurisprudência, Foster defende que em situações onde a lei é ineficaz na
prevenção do crime, ela não é aplicável também para puni-lo. Assim, tanto na legitima defesa,
quanto no caso dos acusados, a situação de viver ou morrer não dá outra escolha que não
praticar o crime, então como a lei é ineficaz no seu propósito refreador não deve ser aplicável
punitivamente.

• Análise

Foster adota uma postura jus-naturalista. Para ele o direito positivo é derivado de um
contrato social, nos moldes do imaginado por Rosseau e Hobbes. Portanto estando os
acusados fora da sociedade estavam eles liberados do contrato social e novamente submetidos
ao estado de natureza, tal qual o inicial descrito por Hobbes. Assim, o pacto deles
estabelecendo uma forma imparcial de escolher quem seria morto, e a submissão deles
voluntariamente (pelo menos a princípio) a este pacto, pode ser entendida como uma
refundação de um “Estado” válido entre eles. Essa argumentação é fortemente baseada em
Hobbes.

Na segunda parte de seu voto usa o artifício de interpretar a lei partindo de um


propósito que teria o legislador ao formulá-la, contrariando assim as posições positivistas de
alguns de seus colegas.

2.3. Tating, J.

Tating usa seu voto para tentar desconstruir os argumentos de Foster. Para ele o
fundamento do “estado de natureza” é fantasioso. A princípio aponta dificuldades de se
determinar em que momento os réus entraram neste estado de natureza. Depois continua
argumentando que eles são juízes do tribunal do país e, portanto, deve aplicar as suas leis.
Aponta ele também a contradição de existir um direito natural onde contratos ganhem mais
valor que a vida humana.

Atacando o segundo fundamento do voto de Foster, Tating diz que a prevenção não é
o único propósito da lei penal, e que na existência de vários propósitos torna-se difícil julgar
com base nestes.

Aponta ele também outra interpretação para a excludente da legítima defesa. Para ele,
esta não é punida pois quem pratica não o faz intencionalmente, diferentemente dos acusados
no qual a intenção de matar é clara.

Preocupa-se Tating com as consequências que teria este precedente se vitoriosos os


argumentos de Foster. Por outro lado, choca-se ele com a condenação a morte de homens cujo
resgate custou a vida de 10 operários. Para ele o representante do Ministério Público não
devia tê-los acusado.

Resolve Tating, diante das dúvidas que o assediam, abster-se de participar da decisão
do caso.

• Análise
Percebe-se que Tatting é partidário da aplicação literal da lei. Mas percebe-se também
que ele acredita na existência de um direito natural que neste caso seria contrariado com sua
aplicação, tornando a decisão injusta. Assim, havendo descompasso entre o direito positivo e
o direito natural, revela-se ele incapaz de escolher entre eles. Por isso, não vota.

2.4. Keen, J.

Keen inicia seu voto atacando o voto do presidente. Diz ele que a decisão do tribunal
deve ser orientada pelas leis do país e que não deve o judiciário dar instruções ao executivo de
como proceder no julgamento da clemência executiva. Entretanto, diz ele que concederia
clemência total se tivesse de tomar esta decisão.

Passa então a atacar o voto de Foster. Para Keen, deve o judiciário se submeter ao
texto da lei em respeito ao poder legislativo. Ele diz que não lhe agrada a aplicação da lei a
este caso, mas que é dever dele como membro do poder judiciário aplica-la. Para ele é
soberano na ordem jurídica do país o principio da soberania do ramo legislativo. Deste
principio decorre a obrigação do Poder Judiciário de aplicar a lei escrita e interpretá-la de
acordo com seu significado mais evidente.

Para ele, Foster usou um artificio para reformar um texto legal que lhe desagrada. Tal
artificio consiste em buscar um propósito para a lei, encontrar na lei uma lacuna e finalmente
preencher esta lacuna como lhe convier.

Para ele, a lei não tem um “propósito”, mas reflete a convicção de que o assassinato é
injusto e quem o comete deve ser punido. Assim, deve ela ser aplicada ao caso em julgamento
condenando-se os réus.

Ataca ele também o juiz Tating, pois segundo ele ao tentar combinar desejos pessoais
com a fidelidade a lei, fracassou completamente no desempenho da função judicial, deixando
de votar. É impossível ao juiz aplicar a lei como ela está redigida e também atender seus
desejos pessoais.

Defende ele que a exceção ao cumprimento da lei provoca mais mal do que a eventual
injustiça causada pela sua aplicação. E que essas injustiças colaboram para o aprimoramento
do texto legal através de revisão feita pelo legislativo.

• Análise
Keen adota uma posição bastante semelhante a da “escola da exegese”. Para ele o
legislador deve apenas aplicar a lei ao caso concreto, sem fazer deduções que corram o risco
de contrariar a vontade do legislador. Seu voto é fortemente influenciado por Montesquieu,
para quem a decisão do juiz deve ser uma reprodução fiel da lei em respeito a separação dos
poderes, não deixando ao juiz qualquer liberdade. Para Montesquieu:

“se o juiz pudesse modificar a lei com base em critérios


equitativos ou outros, o princípio da separação dos poderes seria
negado pela presença de dois legisladores: o verdadeiro e próprio e o
juiz que poria sub-repticiamente suas normas, tornando assim vãs as
do legislador.” (apud BOBBIO, p. 40).
Esse pensamento é coerente com o apresentado pelo juiz Keen em seu voto.

2.5. Handy, J.

Handy defende a aplicação do senso comum a resolução do caso. Para ele quanto mais
se analisar e dissecar o caso, mais complexo ele parecerá. Mas que a solução justa é clara,
tanto é assim que nenhum de seus colegas tem vontade de condenar os réus.

Apoia-se ele também na opinião pública e diz que deve haver uma harmonia razoável
entre a decisão do tribunal e o que quer o povo. Para ele, o descompasso entre o desejo do
povo e as decisões do governo levam a destruição da sociedade.

Ataca ele os colegas que votaram pela condenação mas fazem pressão no executivo
pela clemência. Para ele se parece justo que sejam os réus absolvidos, é dever deles como
juízes absolvê-los.

Vota então pela absolvição dos réus.

• Análise

O voto do Juiz Handy é o que mais difere dos outros. Ele entende que o caso deve ser
solucionado com sabedoria prática. Vota ele independentemente da existência de uma lei
positiva, ou de um direito natural, aplicando ao caso o que a maioria da sociedade julga ser o
correto. Assim como um bom governo é aquele que faz a vontade do povo por ele governado,
também o judiciário deve levar em consideração essa vontade em suas decisões. Para ele o
direito não deve ser indiferente a realidade social. Portanto, vota evitando os extremismos
tanto do jus-naturalismo quanto do positivismo.
3.Desfecho.
Com o empate, prevaleceu a decisão de primeira instância e os réus foram
condenados.

4.Voto Pessoal
É interessante notar como todos os juízes que votaram pela condenação dos réus neste
caso o fizeram apenas por fidelidade a lei, mas expressam que pessoalmente gostariam que
fosse dada clemência aos réus. Esta fidelidade absoluta ao direito positivo já se provou
nefasta. Não existe justiça quando é necessário ao julgador abandonar as suas convicções
pessoais e o conceito de justo e injusto de toda uma sociedade para seguir a letra da lei.

Vemos na história o quanto de atrocidades já foram cometidas em regimes autoritários


e ditatoriais por juízes que alegaram simplesmente estarem seguindo a lei. É inconcebível a
qualquer senso de Direito que o juiz possa dar uma decisão sabidamente injusta apenas para
seguir a letra da lei. A decisão feita apenas para atender a lei é perfeita formalmente, mas não
deixa de ser injusta e socialmente desajustada.

A alegação de submissão ao poder legislativo não é justificativa para abrir mão de seu
próprio senso de justiça ao tomar uma decisão. Nenhum legislador pode prever todas as
consequências de sua norma. E cabe ao poder judiciário aplicar a norma aos casos em que ela
faça justiça e descartá-la quando não é assim. Caso o legislador esperasse do poder judiciário
apenas a aplicação da lei, poderia substituir o juiz por um sistema informatizado que aplicasse
o direito positivo aos casos concretos, ganhando com isso rapidez, incorruptibilidade entre
outros benefícios. Se assim não o faz é porque espera que o poder judiciário interprete a
norma de tal forma que o sentimento de justiça do juiz não seja contrariado pela exigência da
lei.

No presente caso meu senso de justiça pede que se absolva os réus. A decisão de
matar neste caso foi tomada em situação extrema na qual não se podia esperar dos réus que
não se cometesse o crime apenas por respeito a lei. Os réus estavam nos limites de
sobrevivência, submetidos a escuridão, isolamento, fome etc. Com certeza essas condições
abalaram psicologicamente os réus de tal forma que não se pode esperar deles o padrão de
comportamento que teriam se estivessem vivendo normalmente na sociedade. Importante
destacar que não havia muita esperança de sobrevivência para eles caso não tomassem a
decisão de sacrificar um entre eles. Se podiam ter esperado mais tempo antes de tomarem tal
atitude é coisa que não cabe a nós que não estamos na situação extrema em que estiveram
avaliar.

Eu acredito que existem valores superiores ao direito positivo. Não se trata aqui do
direito natural, de conceituação tão difícil que jamais saberíamos quais são seus termos para
julgarmos por eles. Mas valores que toda a sociedade considera justos e corretos. As leis
existem para proteger esses valores e às vezes a mera aplicação literal delas contraria
justamente o valor que buscavam proteger.

É o que ocorre no caso em questão. Essa lei protege a vida humana, mas o que houve
foi o sacrifício de uma vida para salvar quatro. Se considerarmos a morte dos 10 operários
que morreram durante o resgate, vemos que a sociedade aceitou o sacrifício deles para salvar
os mesmos quatro. Assim, o sacrifício de vidas humanas para salvar outras é plenamente
compatível com os valores de nossa sociedade. Já a condenação dos réus é uma violação do
direito a vida não só dos réus, mas também de todas as que já foram sacrificadas por eles.

Condená-los fere os valores de nossa sociedade, tanto é assim que ela clama pela
absolvição dos réus, como se pode perceber nas pesquisas de opinião pública. Tal decisão
ofende a sociedade porque ela sacrificou dez vidas para salvar a deles. Ofende a todos nós
porque nos vemos incapazes de tomar decisão diferente se estivéssemos na mesma situação.

Assim, por não ver como uma decisão que condene a morte esses réus possa ser justa,
absolvo-os.
5.Bibliografia
BOBBIO, N. Teoria do Direito: primeiras lições. São Paulo: Ícone, 1995.

FULLER, L. O Caso dos Exploradores de Cavernas. Porto Alegre: Sergio Antonio


Fabris, 1993.

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