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Estou convencido de que as melhores ideias filosóficas provém de um coração quebrado.

Talvez não só as filosóficas, mas também as ideias em geral. Acontece de ser a mim as filosóficas já
que é na filosofia que dispenso todo meu amor não-quisto após não ter onde enfiá-lo, considerando
que esse amor seja algum tipo de energia que você tem o dever de gastar. Perceba que o Amor
mesmo é uma coisa que só faz sentido se é bem definido como hipótese antes da gente começar a
falar de algo que o envolva. E quando existem diversas definições de hipótese é sinal de que essa
hipótese está meio estragada. Mas isso não vem ao caso. Seja lá o que você pense que seja amor, o
que eu tenho pra dizer, pelo menos nesse texto em específico, vai servir.
Eu acho facilmente crível que as melhores obras literárias, descobertas científicas, esculturas
arquitetônicas, entre outras coisas, vieram da cabeça e do esforço de alguém com o coração partido.
Não só as melhores dessas coisas, mas as piores também. Porém, quero deixar os holofotes sobre as
melhores, porque quase ninguém se importa em fazer algo que é o pior, o que já uma ótima crítica.
Se você é desses que só faz o pior, um beijo pra você, continue assim. E também quero pontuar de
antemão que toda essa minha argumentação aqui presente depende totalmente do contexto moderno
ou contemporâneo, porque antes dessa idade o coração humano era inquebrável. Sim, antes ali do
século XVIII, por aí, ainda não tinham inventado o romance e, se não há romance, não há corações
partidos. Isso parece um absurdo; como assim a gente não sempre amou romanticamente desde que
a humanidade existe? Pois é, mas é assim que é.
Dados os contextos, posso prosseguir na defesa da minha afirmação.
Todos os nossos gênios e heróis modernos e contemporâneos estavam desenvolvendo suas
obras enquanto balbuciavam e limpavam as lágrimas de suas anotações. Certo, talvez não o
fizessem assim, logo após a tragédia do coração partido, com todos aqueles sentimentos a flor da
pele. Mas com certeza em algum momento após. Nunca antes. O que é difícil porque já na infância
você costuma ter o coração partido, então formar um tempo indefinido de “depois da quebra do
coração” parece servir pra qualquer coisa. E se algo serve pra qualquer coisa, na filosofia, ela não
serve pra nada. Então vamos levar em consideração que esta quebra é ainda impactante de alguma
forma durante o tempo de criação.
Não quero porém, de forma alguma, dar crédito ao amor pelas grandes(ou pequenas) obras
concebidas. Perceba que antes de o Amor existir, obras já haviam sido feitas. Mas então, o que se
ganha com tal conhecimento, com tal afirmação? E daí que Foucault estava com o coração arrasado
quando compilou seus livros? Se ganha que se descobre o desejo secreto que permeia a
contemporaneidade. E esse desejo é o desejo pela morte em vida.
Todo mundo busca a morte em vida. A morte em vida, apesar de soar de uma forma
assustadora, simplesmente atrai desde sempre a tudo e todos. O amor faz parte da morte em vida,
mas a morte em vida vem antes do amor. Antes do Amor nascer, lá no século XVIII, por aí, a morte
em vida já era objetivo de vida da humanidade havia milênios. E é até hoje. Mas sempre foi?
Passa-se a vida econômica buscando poder monetário o suficiente para que não se precise
mais buscar poder monetário. Porém, como trata-se de poder, acaba por você sair de uma armadilha
e ir para outra. E você nunca alcança a morte em vida, mas é pensando nela que você entra na
primeira armadilha. E é pensando na morte em vida que você compra um sofá, uma casa própria e
sei lá mais o quê que o sistema te diz que você precisa. Mas que delícia um sofázinho para se jogar
em cima, uma televisãozinha pra se alienar e uma sombra eterna para ter sobra a cabeça. Deitado,
sem pensar em nada e na sombra. Praticamente um caixão, porém com grandes dimensões. E aqui
está a morte em vida. Buscamos o conforto de não ter que fazer nada, e por conseguinte, viver como
se estivéssemos mortos. A morte em vida é prazerosa. É deliciosíssima. Mas nem mesmo a morte
em vida, essa coisa toda maravilhosa, sempre foi objetivo de vida. Pois é, houve ali em algum
momento, um lapso onde a humanidade percebeu que não ter que fazer nada era a melhor maneira
de viver. Perceberam que buscar, lutar, aprender, construir, saber, caçar, se relacionar, entre tudo que
se é possível fazer enquanto vivo, era um esforço. Pelo menos comparado a não se fazer nada. Não
fazer nada, contemporaneamente, é sempre melhor. É sinônimo de boa vida. É o que todo mundo
busca. Não ter que fazer mais nada. Não ter que viver. Morrer em vida.
E onde entra o coração quebrado nisso tudo?
O Amor contemporâneo simplesmente tem o poder magnânimo de ofuscar a busca da morte
em vida. Mas é porque, ele por si só, é uma parte dessa morte. O amor que está bem colocado, bem
consagrado e é visto como realizado, se estabelece entre duas pessoas que decidiram não mais
buscar por outras. E em certo ponto, nem por si mesmas. É o conforto de não ter que se preocupar
em achar outro parceiro. É a morte da vida romântica. Veja como a concretização de algo é capaz de
matá-lo. Um relacionamento onde tudo está de acordo é o relacionamento que não há mais o desejo
trágico da impossibilidade romântica. Tudo está em paz. E então acontece a morte em vida. É o que
se busca, mesmo. E uma pessoa que está inserida numa tão poderosa morte em vida, não vai
sucumbir a ideia de voltar a viver. Estar morto é simplesmente bom demais. Não fazer nada é
simplesmente o que a contemporaneidade nos ensinou que é o melhor a se fazer enquanto vivo e
que, quando muito, o que é válido de se fazer é o que, esperançosamente, irá te fazer em breve não
ter que fazer mais nada. Se o nada não pode ser o que é pra ser feito agora ele tem que, pelo menos,
ser o objetivo do que se está sendo feito. Uma pessoa num grau tão alto de objetivo de vida jamais
vai largar mão de seu prêmio, a morte em vida, pra poder escrever um livro. É preciso primeiro que
o coração quebre.
E este deve ser louvado. Porque o coração quebrado é a flecha certeira que ressuscita o
morto. É a lembrança de que você tem que buscar de novo e de que a concretude te deixara cego, te
deixara morto em vida. E não que estar morto em vida tenha sido um sentimento ruim, nem de
longe, mas que, pelo menos, você agora pensa em outra coisa. Pensa: por que estar morto era tão
bom? E aí você problematiza. Porque nada que é bom demais é realmente bom, é assim que
funciona o mundo. Então você decide que vai viver. Mas não pela morte em vida, mas pelo prazer
do que antes era esforço. E aí, sim, nasce, dessa humanidade que quer viver, as obras mais belas.

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