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A Itália e a campanha da

xenofobia
por The Observer — publicado 02/03/2018 14h53
A ultradireita italiana, as vésperas das eleições políticas,
enxerga na imigração o mal do país
Fabio Falcioni/Ropi/ZUMA Press/fotoarena

O atentado de Macerata contra os imigrantes provoca o repúdio de uma manifestação de 30 mil

pessoas

Por Angela Giuffrida


Pape Diaw, nascido no Senegal, chegou em Florença (centro da Itália) para
estudar engenharia no fim dos anos 1970. Parte de um grupo de 15 estudantes
africanos, ele causou curiosidade entre seus colegas italianos e na comunidade
em geral, mas nunca enfrentou racismo. “Lembro que andava pela rua e as
pessoas pediam para tirar fotos”, observou ele.
“Éramos vistos como uma novidade, mas nunca fomos insultados. Quando
íamos processar nossas licenças de residência, os policiais nos ofereciam
café. Sim, a Itália pode estar atrás (de outros países) no que se refere à
mentalidade, mas fomos bem recebidos.”
Outros tempos. Diante das eleições nacionais em 4 de março, o discurso
xenofóbico está dominando uma campanha que se tornou ofensiva e divisiva. As
coisas assumiram um viés tóxico no início de fevereiro, quando Luca Traini, 26
anos, feriu seis imigrantes africanos em um tiroteio por motivos raciais na cidade
de Macerata, no centro do país.
Traini tinha sido candidato nas eleições locais no ano passado, pela Liga Norte,
um dos dois partidos anti-imigrantes que formam a coalizão variada liderada pelo
Forza Italia, de Silvio Berlusconi. Tanto a Liga como seu aliado menor, Irmãos
da Itália, estão em cruzada com a plataforma “Italianos Primeiro”, que ataca os
600 mil imigrantes que chegaram às praias do sul da Itália nos últimos quatro
anos, fugindo da guerra, da pobreza e da opressão.
Para os imigrantes mais antigos, a crescente hostilidade em relação aos
estrangeiros foi um acontecimento profundamente deprimente depois de anos
de integração gradual.
Diaw, que ajuda a integrar imigrantes recém-chegados em nome da Il Cenacolo,
uma cooperativa social sediada em Florença, situa a mudança de sentimento
sobre os imigrantes em 2007, ano em que a crise financeira se instalou. “Quando
os italianos estão bem, quando eles têm dinheiro e trabalho, não se preocupam
com os imigrantes. Mas, quando eles sofrem, perdem a cabeça e procuram
alguém para culpar.”
A profundidade da crescente animosidade, capaz de atingir níveis tresloucados,
ficou clara em dezembro de 2011, quando Gianluca Casseri, um militante do
grupo neofascista CasaPound, atirou contra dois mercados centrais em
Florença, matando dois vendedores de rua senegaleses e ferindo outros três,
antes de voltar a arma contra si mesmo. Um dos sobreviventes está paralisado
do pescoço para baixo.
O clima político na época era tão tenso quanto é hoje: o surto de imigrantes
provocado pela Primavera Árabe havia começado mais cedo naquele ano, e a
Itália estava entre dois governos, depois que Berlusconi foi obrigado a renunciar
de seu terceiro mandato como primeiro-ministro, em meio a uma aguda crise da
dívida.
Outros situam a mudança ainda antes. Johanne Affricot, nascida em Roma de
mãe haitiana e pai ganense-americano, teve a primeira noção da subcorrente
racista em 1994, quando tinha apenas 11 anos. Foi o ano em que Berlusconi
assumiu o poder pela primeira vez, em uma coalizão formada pela Liga Norte e
a Aliança Nacional, partido que havia surgido do Movimento Social Italiano, pós-
fascista. A Aliança Nacional mais tarde tornou-se o Irmãos da Itália.

Disponível em 31/08/2018 no site: https://www.cartacapital.com.br/revista/993/a-


italia-e-a-campanha-da-xenofobia
A ex-ministra Kyenge : “Eles trabalham, pagam impostos...” (Foto: Fabio
Falcioni/Ropi/ZUMA Press/fotoarena)

“Na escola, eu era a única pessoa negra na classe, mas não sentia racismo dos
colegas”, afirmou ela. “No entanto, lembro que vi o noticiário na tevê e houve
uma manifestação organizada pela Liga. Quando um jornalista perguntou às
pessoas por que estavam ali, elas disseram que queriam preservar a identidade
italiana. Foi um momento que me fez pensar que talvez as coisas fossem um
pouco diferentes para mim.”
Affricot é fundadora da Griot, uma revista online em italiano que celebra a cultura
africana e a diversidade criativa. Ela disse que o ataque em Macerata a fez sentir
medo não só pelos imigrantes, mas pela sociedade italiana como um todo.
“Essa campanha ajudou a promover os partidos de extrema-direita e abriu um
precedente que será muito difícil de consertar”, disse ela. “Tenho medo da
retaliação contra os imigrantes recentes e também contra os que nasceram ou
vivem aqui há anos.”
As redes sociais estão ajudando a ampliar a toxicidade da campanha. Em
janeiro, Attilio Fontana, um candidato da Liga a governador da Lombardia,
afirmou que o influxo de imigrantes ameaça eliminar “a nossa raça branca”.

Na semana passada, a foto de um passageiro negro em um trem no trajeto


Roma-Milão foi postada no Facebook, com a mensagem anexa afirmando que
ele embarcou sem passagem. O homem foi acusado de não saber falar italiano
e não ter “dinheiro nem bagagem”, embora o autor tenha notado que ele “possui
um Samsung S8”.
A postagem circulou rapidamente antes que o condutor se apresentasse para
confirmar que o homem tinha uma passagem válida. Diaw e Affricot estão entre
os 5 milhões de pessoas de origem estrangeira que têm cidadania italiana ou
permissão para residir no país.
Leia também:
Os traumas dos jovens que cruzaram o Mediterrâneo
“Eles trabalham, pagam impostos, contribuem para a sociedade... mas nós
nunca falamos sobre essas pessoas”, disse Cécile Kyenge, uma deputada do
Parlamento Europeu que se mudou da República Democrática do Congo para a
Itália, em 1983, para estudar medicina.

“Mas se faz um estardalhaço quando 12 imigrantes se mudam para uma cidade.”


Kyenge já teve bananas atiradas contra ela e foi comparada a um orangotango
durante seu breve período como ministra da Integração do governo de Enrico
Letta, em 2013.
Ela sempre afirmou que a Itália é um país tolerante e que os ataques vêm de um
pequeno grupo de pessoas ignorantes. Mas o país hoje é multicultural, disse ela,
e deve fazer mais em termos de integração. Sua função foi eliminada
quando Matteo Renzi, líder do Partido Democrático, de centro-esquerda, se
tornou primeiro-ministro em 2014.
Diaw põe a culpa pelas divisões raciais no governo, em particular nos partidos
de esquerda enfraquecidos. “Este é um período muito feio, porque os partidos
de esquerda costumavam ser muito fortes, também na luta contra o racismo e a
discriminação. Hoje eles estão fracos.”

Mas ele se sente animado pelo modo como 30 mil pessoas foram às ruas de
Macerata, no último fim de semana, para marchar contra o fascismo.

“Foi lindo... especialmente ver tantos jovens italianos lá. Só podemos esperar
que essas eleições tomem um rumo diferente daquele que nós tememos.”

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