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INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DE NIETZSCHE

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Por Amauri Ferreira


http://escolanomade.org

Dezembro de 2006

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SUMÁRIO

Preâmbulo 4
Vontade de Potência. Ativo e Reativo 8
Ressentimento e Má Consciência 19
O Sentido da Cultura 29
Niilismo e Eterno Retorno 35
Epílogo 53
Notas 58
Agradecimentos 66

3
“Minha filosofia traz o pensamento vitorioso com o qual toda outra maneira de
pensar acabará por sucumbir. É o grande pensamento aprimorador: as raças que não o
suportam estão condenadas; as que o sentem como o maior dos benefícios estão
votadas à dominação.” 1

Preâmbulo

Viver em um mundo humano sob o império do niilismo não é, de modo algum,


uma objeção ao pensamento – o que tem o pensamento a ver com objeções! Percebemos
que é exatamente aí, nesse ambiente lúgubre, que a necessidade de exercermos a plena
potência do pensamento torna-se indispensável para criarmos novos modos de construir
o mundo. Dessa forma, o pensamento poderá impor-se diante da mediocridade,
afastando para longe muitas noções corrompidas como, por exemplo, o “bem-estar” tão
cultuado pela civilização moderna. Criar modos de “bem-viver” é muito mais
interessante: viver e não apenas sobreviver... Trazer para si a tarefa de tornar-se o que
se é: esta é a provocação da filosofia de Nietzsche. Ler Nietzsche e, principalmente,
viver nietzscheanamente em um mundo niilista, exige boas doses de prudência e
desintoxicação. No lugar do ar impuro daquilo que degenera ao nosso redor, sentimos a
pureza da atmosfera do devir; no lugar do corpo rígido, surge o corpo flexível: nasce em
nós uma nova sensibilidade. 2 Produzir um novo corpo e um novo pensamento: isso não
se trata mais de um “humano”, mas de um além-do-humano.
Enquanto não acessamos esse outro corpo e esse outro pensamento através das
nossas próprias experiências, reproduzimos apenas os produtos carimbados pela
negação da vida. Corremos o risco de nos resignarmos por vivermos apenas como uma
função social e não como uma alegre produção de nós mesmos. Teremos uma existência
insossa, que torna a vida um grande fardo. Contra isso, Nietzsche fez da sua filosofia
um verdadeiro combate em si mesmo contra os valores morais:

“Tanto quanto Wagner, eu sou um filho desse tempo; quer dizer, um décadent: mas eu
compreendi isso, e me defendi. O filósofo em mim se defendeu.”3

4
Ao contrário do plebeu, que necessita desesperadamente de uma identidade para
se defender, Nietzsche defendeu-se da seriedade mórbida do europeu da sua época ao
experimentar intensidades onde a identidade é aniquilada. Grande riqueza de alguém
que aprendeu a não levar o “eu” a sério... Saber dançar, jogar e rir, são provas de uma
vida que singularizou-se por não fixar-se nas identificações sociais. A respeito disso,
Pierre Klossowski diz: “[...] querer ser outro diferente do que se é para se tornar o que
se é.”4 É evidente que a emoção psicológica experimentada nesses estados de dissolução
da identidade não é – ao contrário do que o plebeu pensa – uma enfermidade, mas
expressa uma natureza saudável que conquistou o direito de não se identificar com
formas a priori. A capacidade de mutação é uma grande saúde. Por isso que essa
natureza mutante é incapturável pelos sistemas de poder vigentes; é impossível detê-la
numa classificação “racional” qualquer. O que se costuma dizer como “verdadeiro”,
“eu”, “imóvel”, “ideal”, ou então, “esquizofrênico”, “normal”, “bem”, “mal”, são
mentiras que o homem, já capturado, utiliza como escudos contra a vida... Eis a
denúncia de Nietzsche contra uma moral que está a serviço da covardia.

“A mentira do ideal foi até agora a maldição sobre a realidade, através dela a
humanidade mesma tornou-se mendaz e falsa até seus instintos mais básicos.”5

Com algumas exceções (entre elas, especialmente, Espinosa), a história da


filosofia nos mostra o que prevaleceu na produção filosófica, de Sócrates até hoje: a
depreciação da vida, a necessidade de julgá-la, de adquirir uma sabedoria como abrigo.
É o filósofo como agente do Estado, como reprodutor de falácias institucionalizadas há
tempos, como sintoma de um cansaço da vida. Atento a esses sintomas, Nietzsche
colocou a nu o que move a produção de um sistema filosófico metafísico, dialético por
excelência: a negação do devir como fundadora dos valores morais.

“Em todos os tempos os grandes sábios sempre fizeram o mesmo juízo sobre a vida: ela
não vale nada... Sempre e por toda parte se escutou o mesmo tom saindo de suas bocas.
Um tom cheio de dúvidas, cheio de melancolia, cheio de cansaço da vida, um tom
plenamente contrafeito frente a ela. O próprio Sócrates disse ao morrer: ‘viver significa
estar há muito doente’ [...] O próprio Sócrates estava enfastiado da vida. O que isso
demonstra? Para onde isso aponta?”6

5
O plebeu, para Nietzsche, é quem não transmuta e, por isso, degenera.7 O nobre,
ao contrário, tem a capacidade de metamorfosear-se. É importante nos atentarmos a isto:
Nietzsche não quer dizer que a nobreza e a plebe são classes sociais; a distinção que ele
faz é muito mais refinada: é de postura de vida, é do elemento que dá valor aos valores,
que pode ser de afirmação ou de negação da vida.8 Ao negar a vida, somente o plebeu
dá um aspecto fúnebre a ela.
Ao lermos Nietzsche é necessário interpretarmos o sentido que ele utilizou para
as palavras: há, de fato, deslocamentos de sentido para as mesmas palavras em um
mesmo texto ou aforismo. Podemos interpretar de várias maneiras, por exemplo, os
sentidos das críticas de Nietzsche com relação aos judeus: como um ataque ao sacerdote
judaico – o caluniador da existência ao criar a forma do ressentimento – que foi
desejado, em determinadas circunstâncias, pelo seu povo; ou, então, como o povo mais
forte existente numa Europa decadente do século XIX.9 Portanto, as críticas de
Nietzsche se dirigem a tudo o que é elevado e baixo, nobre e plebeu, ativo e reativo na
vida humana, sem dirigir-se diretamente a identidades raciais, religiosas, sociais ou
políticas, mas ao modo de vida dominante que está em devir... E o devir da humanidade
é o do ressentimento e da má consciência, percorrendo até aos nossos dias. Podemos,
então, compreender que a civilização moderna foi erigida por instintos vingativos.
“Plebeu”, “escravo”, “Judéia”, podem significar “baixo”, “impotente”, “ressentido”.
“Aristocrata”, “senhor”, “grego”, podem significar “elevado”, “potente”, “trágico”.

“A Judéia conquistou com a Revolução Francesa mais uma vitória sobre o ideal clássico
[...] nunca se ouviu na terra júbilo maior, nem entusiasmo mais estridente!”10

“Não deixemos de notar as quase benévolas nuances que a aristocracia grega, por
exemplo, põe em todas as palavras com que distingue de si mesma o povo baixo [...] ao
ponto de quase todas as palavras que aludem ao homem comum terem enfim
permanecido como expressões para ‘infeliz’, ‘lamentável...’”11

Há trechos em que Nietzsche usou palavras como “vingança”, “violência”,


“ofensa”, “exploração”, referindo-se ao homem reativo; em outros trechos essas
mesmas palavras foram utilizadas para referir-se ao homem ativo ou ao modo de
produção da vida:

6
“[...] a vida mesma é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do que é estranho e
mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias, incorporação e, no mínimo
e mais comedido, exploração – mas por que empregar sempre essas palavras, que há
muito estão marcadas de um intenção difamadora? [...] A exploração não é própria de
uma sociedade corrompida, ou imperfeita e primitiva: faz parte da essência do que vive,
como função orgânica básica, é uma conseqüência da própria vontade de potência, que
é precisamente vontade de vida.”12

Para encontrarmos o máximo que podemos da potência dos escritos de


Nietzsche, implica apreendermos a região onde a força dá o sentido e a vontade dá o
valor à coisa. Interpretar e avaliar é a tarefa do filósofo do futuro, diz Nietzsche. Esse
filósofo é um genealogista porque avalia o valor dos valores e interpreta o sentido das
forças que estão em relação... Dos diversos comentadores de Nietzsche, podemos
avaliar o uso que cada um fez da obra dele e interpretá-los pelos caminhos que foram
traçados, para distinguirmos onde o pensamento nietzscheano caiu numa rede
representativa, e onde foram criadas aberturas que potencializaram o seu pensamento.
Gilles Deleuze produziu uma obra indispensável sobre Nietzsche, chamada “Nietzsche e
a Filosofia”, de 1962; repetindo a dose, com uma obra menor, “Nietzsche”, de 1965.
Não há dúvida de que houve um bom encontro entre eles, um diálogo espiritual. Diz
Deleuze, na conclusão do livro de 1962: “Tentamos neste livro romper alianças
perigosas. Imaginamos Nietzsche retirando a sua jogada de um jogo que não é o seu.”13
E qual é a aliança que Deleuze tentou romper? A aliança que a filosofia moderna tentou
– e ainda tenta – fazer com Nietzsche: com a dialética. As adaptações que a filosofia
niilista tenta fazer com a filosofia nietzscheana são bizarras: Hegel com Nietzsche. Mas
o pensamento extemporâneo de Nietzsche sempre escapa de alianças com aquilo que a
sua filosofia sempre combateu. Por isso torna-se necessário a importância do “quem”:
quem faz o uso do pensamento nietzscheano? Quem deseja utilizá-lo para o poder;
quem deseja utilizá-lo para a potência? O plebeu ou o nobre? É para adaptá-lo àquilo
que Nietzsche combateu ou para levá-lo ainda mais longe na sua crítica radical dos
valores?... A avaliação e a interpretação do que em nós é dominante pode nos permitir
que também tenhamos um bom encontro com a obra de Nietzsche. E já que ele nos diz
sobre a desconstrução do sujeito em nós, isso quer dizer que podemos afastar o déspota
em nós, o poder em nós, para encontrarmos a criança em nós que sabe jogar...

7
“Aquilo que eternamente tem de retornar, como um vir-a-ser que não conhece nenhuma
saciedade, nenhum fastio, nenhum cansaço –: esse meu mundo dionisíaco do
eternamente-criar-a-si-próprio, esse mundo secreto da dupla volúpia, esse meu ‘para
além de bem e mal’, sem alvo, se na felicidade do círculo não está um alvo, sem
vontade, se um anel não tem boa vontade consigo mesmo –, quereis um nome para esse
mundo?... – Esse mundo é a vontade de potência – e nada além disso! E também vós
próprios sois essa vontade de potência – e nada além disso!” 14

Vontade de Potência. Ativo e Reativo

Há em Nietzsche, antes de tudo, uma filosofia que implica o modo como


sentimos o nosso próprio corpo, ou seja, como agimos e reagimos no contato com os
outros corpos. Tocar, cheirar, saborear, ouvir: experimentações que vivemos num
mundo onde não há origem nem conclusão, mas misturas, passagens, relações entre
forças, metamorfoses. É neste mundo que podemos experimentar aquilo que nos diz
Deleuze: “a vida ativa o pensamento e o pensamento, por seu lado, afirma a vida.”15 Ao
contrário da metafísica ocidental, Nietzsche afirma que o único mundo que existe é
somente este – o mundo da imanência, das sensações e das mudanças ininterruptas. O
corpo como “porta de entrada” dos novos fluxos, como capacidade para o
conhecimento. Na filosofia nietzscheana não há espaço para um outro mundo, fechado
em si mesmo, imutável, contemplativo, transcendente e, por isso, “verdadeiro”. Como
somos produtos da nossa relação com a realidade (aspecto reativo, consciente), há
também em nós uma capacidade de produção desconhecida (aspecto ativo,
inconsciente), que não obedece a nenhuma forma a priori. Tudo que é produzido no
mundo não é o resultado de uma adaptação a um determinado modelo de perfeição: o
que é afirmado é a capacidade relacional das forças. As relações entre as forças
produzem a realidade. Mas em toda relação de forças há uma vontade – necessariamente
relacional –, o que leva Nietzsche a dizer que o mundo é vontade de potência. E o que a
potência quer? Acumular forças, aumentar a potência. Quando a potência aumenta, há a
sensação de prazer; quando diminui, sente-se desprazer.

8
“A vida [...] aspira a um sentimento máximo de potência: ela é, essencialmente, uma
aspiração a maior quantidade de potência: aspirar não é outra coisa senão aspirar à
potência: o que existe de mais subjacente e de mais interior é essa vontade.”16

A imanência é eternamente produzida pelas relações; ela é eternamente “volúpia,


ambição de domínio, egoísmo”17: assim falou Zaratustra sobre o aumento de potência,
onde não há limites pré-estabelecidos, pois a potência aumentada expande os limites.
Então, já que uma força está sempre em relação com outra força, nunca há igualdade
entre elas, porque necessariamente existe uma que é dominante e outra que é dominada.
E como uma relação nunca se repete do mesmo modo, o filósofo genealogista sempre
reinterpreta o sentido das forças, sem querer encontrar um objetivo para elas.

“[...] de que algo existente, que de algum modo chegou a se realizar, é sempre
reinterpretado para novos fins, requisitado de maneira nova [...] de que todo
acontecimento do mundo orgânico é um subjugar e assenhorear-se, e todo subjugar e
assenhorear-se é uma nova interpretação, um ajuste, no qual o ‘sentido’ e a ‘finalidade’
anteriores são necessariamente obscurecidos ou obliterados [...] Logo, o
‘desenvolvimento’ de uma coisa, um uso, um órgão, é tudo menos o seu progressus em
direção a uma meta [...] Se a forma é ‘fluida’, o sentido é mais ainda...”18

Como toda força existe em relação, até o mais covarde dos homens é,
simultaneamente, produto (ele é afetado) e produtor (afeta outros corpos) de realidade.
Não há como existirmos fora da imanência. O que nunca deixará de existir é sempre o
mais imediato, que está sempre aberto a novas interpretações e avaliações. Por isso a
realidade pode gerar angústias e aflições, mas também pode ser fonte de diferenciação
alegre e prazerosa.
É necessário distinguirmos as duas qualidades da vontade de potência: negação
e afirmação. Dominada pelo aspecto negativo, a vontade de potência nega a imanência.
Dessa negação primeira, a vontade de potência passa a afirmar os valores que já estão
estabelecidos. Mas o que está estabelecido são os valores produzidos por uma postura
de vida negativa, que julga a vida ao necessitar de um artigo de fé – a crença no ideal
ascético. Portanto, somente essa vontade de negar precisa de uma referência moral. A
afirmação, nesse caso, é secundária, tendo apenas a função de afirmar um subterfúgio
que já foi criado pela negação, servindo como um sentido para a vida, mesmo que esse

9
sentido seja direcionado a uma ficção. Antes de cair em um nada de sentido, surge
algum sentido para a vida. Justifica-se a existência através de um modelo separado da
imanência: temos o “bem”, o “belo”, o “justo”, a “verdade”, como “idéias puras”,
transcendentes. A moral define o mundo em que vivemos como inferior, por ser o
mundo das aparências, da falsidade, já que tudo muda, nada é concluído... “É preciso
acreditar em um mundo onde nada mude e, por isso, seja verdadeiro”, assim diz essa
vontade de negação – assim dirigiu-se Platão com sua vontade de idéias puras. Portanto,
esse outro mundo é afirmado. Nesse ponto, é necessário, mais uma vez, que o
genealogista avalie os valores que estão em curso:

“[...] faz parte disso avaliar os lados unicamente afirmados da existência;


compreender de onde provém essa valoração e quão pouco ela é obrigatória para uma
medição de valor dionisíaca das coisas: eu extraí e compreendi o que propriamente
diz sim aqui (o instinto dos que sofrem, em primeiro lugar, o instinto do rebanho por
outro lado, e aquele terceiro, o instinto da maioria contra as exceções –)”19

Mas a vontade de negação pode ter um outro uso que proporciona a sua própria
transmutação em uma vontade de afirmação plena. Nesse caso, a negação serve apenas
como função da afirmação, precede a afirmação destinada a dominar: não mais os meios
quereres (um querer moral, de utilidade pública 20), mas um querer inteiro... Os
produtos da negação são negados (os subterfúgios que a humanidade afirma para
suportar a existência); o inédito, o que não obedece a nenhuma forma prévia, em suma,
o devir, é afirmado. Eis a diferença fundamental: enquanto o plebeu nega a vida para
afirmar uma ficção, o nobre afirma a vida ao afirmar o devir. O lado “proibido” da vida
(constatação niilista) é considerado inocente ao ser, enfim, desejado.

“Disso faz parte compreender os lados até agora negados da existência, não somente
como necessários, mas como desejáveis: e não somente como desejáveis em vista dos
lados até agora afirmados (eventualmente, como seus complementos ou condições
prévias), mas em função de si próprios, como os mais poderosos, mais fecundos, mais
verdadeiros, lados da existência, nos quais sua vontade se enuncia com maior
clareza.”21

Podemos também fazer a distinção das duas características que constituem uma
relação entre as forças: obedecer e comandar. Entendemos por “obedecer” uma

10
capacidade receptiva da força; por “comandar” uma capacidade de agir (veremos que o
sentido de “obedecer” e de “comandar” difere-se totalmente conforme a qualidade da
vontade dominante). A força reativa é receptiva, reguladora, distributiva, conservadora.
A força ativa é expansiva, agressiva e criativa 22. Para Nietzsche, há uma hierarquia
entre as qualidades das forças: a força ativa é primária. Mas uma força ativa somente
triunfa quando há uma vontade de potência afirmativa dominante. Surge um devir ativo
das forças, caracterizado pelo domínio da força ativa sobre a força reativa. É a noção de
criação como qualidade primária à noção de adaptação:

“[...] a primazia fundamental das forças espontâneas, agressivas, expansivas, criadoras


de novas formas, interpretações e direções, forças cuja ação necessariamente precede a
‘adaptação’.”23

Essa relação entre as forças é invertida quando a adaptação torna-se primária.


Isso se dá com o triunfo da vontade de negação e das forças reativas; surge, então, um
devir reativo das forças. Constitui-se um casamento bizarro entre a negação e a reação:
os filhos desse casamento são produzidos por aqueles que apenas conhecem o aspecto
utilitário da vida.

“[...] colocou-se em primeiro plano a ‘adaptação’, ou seja, uma atividade de segunda


ordem, uma reatividade; chegou-se mesmo a definir a vida como uma adaptação
interna, cada vez mais apropriada, a circunstâncias externas.”24

Através dessa inversão, a vida humana submete-se apenas à sua conservação e,


para isso, tem a constante necessidade de controlar as forças ativas. Os valores que são
gerados e mantidos passam a servir apenas para manter a sobrevivência de um modo de
vida que precisa investir em “idéias puras”, separadas da realidade. Princípio do
julgamento da vida: a realidade é dura, violenta, cruel e, portanto, deve ser julgada... É o
nascimento do lugar do juízo.
O aumento de potência na obediência e no comando, pela vontade de negação,
apresenta um cenário totalmente doentio: o prazer é sempre algo que falta e, por isso,
experimenta-se a incômoda sensação de que a vontade nunca é saciada totalmente.
Trata-se da vontade psicológica: relacionada a uma ficção, essa vontade teria a sua
plena satisfação e felicidade no inalcançável “outro mundo” ou, então, neste mundo,
através de uma vontade que teria a “origem” no sujeito e seria “concluída” em um

11
objetivo alcançado – o “projeto” atingiria o seu happy end... Há em Nietzsche um
ataque explícito ao livre-arbítrio:

“[...] a moral do povo discrimina entre a força e as expressões da força, como se por trás
do forte houvesse um substrato indiferente que fosse livre para expressar ou não a força.
Mas não existe um tal substrato: não existe ‘ser’ por trás do fazer, do atuar, do devir; o
‘agente’ é uma ficção acrescentada à ação – a ação é tudo.”25

Ora, se tudo que existe na imanência está em relação, o “sujeito” que antecederia
a ação seria algo separado da realidade, sem relacionar-se com nada, ensimesmado, o
que é um absurdo total! Como poderia algo existir – e ter uma vontade – sem estar na
experimentação, sem afetar e ser afetado? É o mesmo que dizer que o ser está separado
do devir! É o que leva Nietzsche a dizer simplesmente que não existe tal substrato (o
que é, evidentemente, um ataque à filosofia kantiana); portanto, o substrato é uma
ficção. Por isso Nietzsche diz que a ação é tudo.
Mas mesmo naquele que precisa acreditar no “sujeito”, essa falsa cria, continua
a ter uma vontade de potência (de volúpia, ambição de domínio e egoísmo), mas sob o
signo da carência. Através da obediência, o homem reativo busca algum prazer – ou
aumento de potência – na sua conservação e, igualmente, espera que através disso
consiga impedir os sentimentos de dor e de tristeza – ou diminuição de potência: daí a
necessidade de buscar uma proteção através da moral. “Você será bom se, no mínimo,
não me causar tristeza; mas será mau se isso acontecer”, é o seu julgamento.
Inevitavelmente, obedecer, ou receber, possui apenas um sentido para ele: carregar.
Carregar valores estabelecidos, tornar-se cada vez mais útil ao modo gregário de viver,
tornar-se cada vez mais competente... O homem reativo conhece apenas a obediência às
leis instituídas – sejam divinas ou humanas –, limitando-se numa “livre” escolha entre o
“bem” e o “mal”, “útil” e “inútil”, “justo” e “injusto”, “falso” e “verdadeiro”.
Já é possível compreendermos o que é o sintoma de degeneração do homem para
Nietzsche. A avaliação dos valores passa a priorizar tudo que é útil à conservação; o
sentido é o da adaptação às forças exteriores. Experimenta-se a vida apenas sob o seu
aspecto utilitário. E somente a partir desse ponto o homem reativo pode esperar duas
coisas para a sua vida: proteção do acaso e doses de prazer.
O homem reativo tem uma grande resistência para receber o novo, o estranho.
Extremamente diligente, ele não sabe mais o que é experimentar. Ele se mantém nessa

12
via sedentária porque encontra vantagens, pequenas felicidades, acreditando ser essa
postura muito mais cômoda do que criar para si as condições de gozo.

“A cega diligência, essa típica virtude de um instrumento, é apresentada como [...] a


mais saudável droga para o tédio e as paixões: mas silencia-se a respeito de seu perigo,
de sua suprema periculosidade.”26

“Muito freqüentemente observo que sim, a cega diligência traz riquezas e honras, mas
também priva os órgãos daquela finura que tornaria possível a fruição de riquezas e
honras, e noto, igualmente, que esse grande antídoto para o tédio e as paixões torna
embotados os sentidos e faz o espírito refratário a estímulos novos.”27

Ser ativo, para o homem reativo, é agir em vista de uma finalidade, em busca de
uma premiação, de um reconhecimento. A ação, nesse caso, precisa ser autorizada pelo
poder; justamente por isso, é uma falsa atividade. Trabalha-se demais, não se tem tempo
para nada e, quando há um tempo livre, não sabe o que fazer com ele. Ele sempre tem
necessidade de sentir-se “ativo”:

“Eles são ativos como funcionários, comerciantes, eruditos, isto é, como representantes
de uma espécie, mas não como seres individuais e únicos; neste aspecto são indolentes.
– A infelicidade dos homens ativos é que sua atividade é quase sempre um pouco
irracional. Não se pode perguntar ao banqueiro acumulador de dinheiro, por exemplo,
pelo objetivo de sua atividade incessante: ela é irracional. Os homens ativos rolam tal
como pedra, conforme a estupidez da mecânica.”28

Para o homem reativo, as ações passam a ter equivalência com o “dinheiro”, o


“prestígio” e o “bem-estar” que ele sonha obter. O que estiver excluído disso, ele não
dará a menor importância, não irá perder tempo com coisas “inúteis”. Cursos,
profissões, livros, filmes, sexo, suas relações precisam ser mediadas pelo poder para que
ele sinta-se garantido por pertencer a uma realidade previsível. A depressão, que
sempre o ameaça, é constantemente varrida para debaixo do tapete nas horas dedicadas
ao entretenimento em frente à televisão, nos passeios com a família, nas relações
extraconjugais.
Resumindo: “receber”, para o homem reativo, significa obedecer às ordens de
um poder. Mas todo aquele que diz "sim" aos produtos da negação, vive endividado

13
com quem lhe “protege”. O engodo de qualquer poder é exatamente a oferta de proteção
e de prazer: isso o poder promete, na medida em que os homens se submetem às suas
leis.

“Certamente, existem as veredas e as pontes e os semideuses inumeráveis que se


oferecerão para te levar para o outro lado do rio, mas somente na medida em que te vendesses
inteiramente: tu te colocarias como penhor e te perderias.”29

De fato, o devir reativo dá as cartas, triunfa. O Estado, Deus, igreja, família,


escola... Não há como não ter uma sensação de desperdício ao vermos muitos jovens
desejando receber um aprendizado absolutamente asqueroso nas universidades: já
preparados desde o berço, eles chegam às universidades com a única intenção de
conseguir o tão desejado diploma. O ensino transformou-se numa reprodução em massa
de escravos, que não podem pensar por si próprios: seu sistema de avaliação serve
apenas para fornecer credenciais utilitárias à sociedade reativa. Forma(ta)dos,
reproduzem, nas suas atividades profissionais, tudo o que sustenta os valores vigentes.

“Aprender a pensar: não se tem mais em nossas escolas nenhuma noção do que isso
significa [...] não há agora a mais remota lembrança de que é necessário ao pensamento
uma técnica, um plano de estudo, uma vontade de domínio – de que o pensar deve ser
aprendido, como o dançar é aprendido, como um tipo de dança...”30

Num excelente filme-documentário, Estamira diz que as pessoas vão à escola


para copiar. 31 É essa a função da escola nas sociedades capitalistas: reproduzir
trabalhadores e cidadãos obedientes, injetando esperanças de um futuro promissor. Mas
já deveriam saber o que é esse “futuro promissor”: ser obediente na empresa, no lar, na
sociedade, para realizar os “sonhos de uma vida melhor” – acumular quinquilharias
dentro de casa; aos domingos, levar o filho ao parque e fazer compras com a família;
receber a visita dos pais e sentir um carinhoso tapa nas costas, acompanhado de um
sorriso de aprovação de um pai que diz: “Parabéns meu filho! Estou orgulhoso de
você!”... Sim, é pelos pequenos prazeres que o homem reativo suporta a sua
existência...
E como a sua vontade está sempre carente, esse “representante de uma espécie”
– a mais baixa espécie – vai desejar cada vez mais o poder. “Ter o poder para ter maior

14
prazer e, finalmente, conquistar a felicidade!”, assim imagina esse animal doente.
Comandar, para ele, vira um objetivo a ser conquistado a qualquer preço. “Chega de ser
servo, agora chegou o grande momento de ser senhor!” Ele sente que viver de pequenos
prazeres à custa de sofrimento e obediência não é mais o suficiente para lhe dar a
“grande felicidade”. Dinheiro, prestígio, glória: há em todo servo uma forte tendência
para tornar-se senhor. O poder como algo que lhe falta... E como é fácil dar-lhe um
sinal de que a vida pode ser muito mais interessante! Basta fornecer-lhe o chicote para
que ele sinta-se bem melhor... Momentaneamente, o homem reativo imagina que fez as
pazes com a vida... O seu aumento de potência segue refém da representação: o
deslocamento de servo para senhor não passa de uma grande ilusão! Uma simulação de
comando – é disso que se trata. Pela incapacidade de receber, o homem reativo imagina
que comanda, que pode "dar" (“Você deve ser grato a mim porque eu pago o seu
salário”). Ele está sempre à espera das vantagens, de que o outro se submeta aos seus
interesses mesquinhos. Eis a moral dos escravos, que se merecem: os que procuram
proteção e prazer sob as asas de um poder e os que procuram alcançar o poder para
fruir, o máximo possível, as riquezas e as honras... É importante que isto seja dito: é
impossível que o homem reativo seja dadivoso, pois o seu modo de vida é,
inevitavelmente, parasitário. Por trás de máscaras sociais como “pessoa de bem”,
“trabalhadora”, “justa”, “grande profissional”, “bom marido”, “boa esposa”, existe um
ódio contra todos aqueles que ousam desobedecer as suas regras... Sintoma de
degeneração do homem, perda do sentido da cultura... Nietzsche dizia que o seu saber
vinha das narinas: ele farejava a decomposição. Isto quer dizer: quem não cria,
degenera.
A inversão desse cenário pavoroso acontece quando a força ativa adestra a força
reativa, triunfando na obediência e no comando. A adaptação surge apenas como efeito
desse processo. No trecho seguinte, Nietzsche nos diz sobre a primazia da vontade de
potência afirmativa e das forças ativas:

“Os fisiólogos deveriam refletir, antes de estabelecer o impulso de autoconservação


como o impulso cardinal de um ser orgânico. Toda criatura viva quer antes de tudo dar
vazão a sua força – a própria vida é vontade de potência – : a autoconservação é apenas
uma das indiretas, mais freqüentes conseqüências disso.”32

15
Um homem é ativo porque experimenta a arte de obedecer (ou de receber) e de
comandar (ou de agir), fora da representação. Portanto, a força reativa passa a cumprir,
de fato, a sua função secundária, que é receber e processar fluxos. A função primária é
cumprida pela força ativa e dominadora. Ao contrário da obediência do homem reativo,
o homem ativo, nas relações com as forças do acaso, experimenta as variações da sua
potência – as intensidades – para ter ciência daquilo que ele pode no encontro.
Receptivo ao inédito, pela experiência ele aprende a selecionar os encontros que o
tornam mais forte e a evitar os que o enfraquecem. Note-se bem: “evitar”, aqui, não
quer dizer “negar”, porque não se trata de julgamento moral, mas, sobretudo, de
experimentar os encontros que, na maioria das vezes, não dependem de nós para
acontecer. O ressentimento não o domina... Há excelentes passagens no “Ecce Homo”
sobre o cuidado que Nietzsche tinha com a escolha da alimentação, do clima, dos livros.
Trata-se de um cuidado de si mesmo, que podemos reaprender:

“Aquele ‘fatalismo russo’ de que falei mostrou-se em mim no fato de que durante anos
apeguei-me tenazmente a situações, paragens, moradas, companhias quase
insuportáveis, uma vez que me haviam sido dispostas pelo acaso – era melhor do que
mudá-las, do que senti-las como mutáveis – do que revoltar-se contra elas...”33

“[...] essas pequenas coisas – alimentação, lugar, clima, distração, toda a casuística do
egoísmo – são inconcebivelmente mais importantes do que tudo o que até agora tomou-
se como importante. Nisto exatamente é preciso começar a reaprender.”34

Somos produzidos pelas relações que experimentamos a todo instante – relações


que não obedecem à ordem de um poder divino ou de um sujeito que organiza a
realidade à sua maneira. O homem ativo aprende a fazer a distinção entre a obediência
ao poder e a obediência à potência. Todo “tu deves” é um mandamento de natureza
negativa e reativa, sendo, portanto, de subtração das forças ativas. Ora, o homem ativo
aprende que a religião, a política, a ciência, estão banhados de valores adaptativos e de
subjugação dos tipos fortes. Isso é insuportável para ele. Daí a necessidade que ele sente
de priorizar os encontros que ressoam com a sua singularidade. Um livro, uma música,
um filme, um indivíduo, enfim, ele quer sugar o máximo que pode das forças que
atingem o seu corpo, para transformá-las em aliadas. Há um prazer em ver, ouvir,
cheirar, saborear, em acumular riquezas: obedecer à potência, e não ao poder, lhe torna
fecundo... Nisto a palavra “humildade” tem toda a sua nobreza... Certos afetos aceleram

16
a sua metamorfose: daqui a algum tempo, o veremos escrever e falar de modo diferente;
sua postura irá mudar, sua voz estará mais forte, o seu olhar estará mais confiante. 35

Esse espírito livre é sábio porque encontra as idéias mais ousadas, os lugares mais
acolhedores. A arte do encontro é a sua especialidade. Ao contrário do homem reativo,
ele está livre da inveja (afinal, o que há para ele invejar se a sua vontade não é a da
falta?). Portanto, o espírito livre pode admirar e amar aquilo que é grande... Ele sabe
escolher os seus alimentos e por isso ama-os... Zaratustra já dizia que o espírito é um
estômago. Saber selecionar a alimentação é um sintoma de saúde:

“De que aprenderam mal e não o que havia de melhor e tudo cedo demais e demasiado
depressa: de que comeram mal, daí lhes proveio aquele estômago estragado – um
estômago estragado, com efeito, é seu espírito: esse lhes aconselha a morte! Porque na
verdade, meus irmãos, o espírito é um estômago! [...] Conhecer: este é o prazer para
quem tem a vontade do leão!”36

Amor ao conhecimento é amor à obediência... Pois somente assim o espírito


livre pode comandar e distribuir. Ele torna-se grande demais para exigir algo em troca,
porque transborda de riquezas... Virtude dadivosa: o espírito livre sente que é eterno no
seu esgotamento ao doar-se; e suas obras passam a viver por si próprias, alimentando os
espíritos que sabem recebê-las. As obras sobrevivem à sua carne e seu sangue. Não há
estoques – pois os estoques não sobreviverão a ele –, nenhum arquivo erudito: tudo é
prazerosamente distribuído... Comunismo cosmológico: a vida que ama a si mesma se
produz dadivosamente.

“Tornar-vos vós mesmos oferendas e dádivas, é essa a vossa sede; e, por isso, tendes
sede de acumular, na vossa alma, todas as riquezas. Insaciável, aspira vossa alma a
tesouros e jóias, porque insaciável é a vossa virtude em querer dar presentes. Obrigais
todas as coisas a ir a vós e a estar em vós, para que voltem a fluir do vosso manancial
como dádivas do vosso amor.”37

Já o homem reativo sobrevive de modo mesquinho, precisou criar uma estranha


imagem do amor e, por isso, vive infeliz. Leva a sua existência de modo fúnebre, não
cansa de pensar na morte – e esse é o seu perigo para o espírito livre: ele é um
reprodutor de infelicidade... 38 E qual é a saída que esses mortos-vivos inventaram para

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afastar de si toda perspectiva suicida? Inventaram a felicidade como refúgio das
inquietações diárias.

“[...] tudo isso o oposto da felicidade no nível dos impotentes, opressos, achacados por
sentimentos hostis e venenosos, nos quais ela aparece essencialmente como narcose,
entorpecimento, sossego, paz, ‘sabbat’, distensão do ânimo e relaxamento dos
membros, ou, numa palavra, passivamente.”39

Os senhores, ao contrário, vivem felizes porque sabem que a felicidade faz parte
da ação. Para eles, a felicidade é uma superação 40: o aumento de potência cria novos
modos de interpretar e de avaliar.

“[...] sendo homens plenos, repletos de força e portanto necessariamente ativos, não
sabiam separar a felicidade da ação – para eles, ser ativo é parte necessária da
felicidade.”41

Os senhores libertam a existência do tédio e da degeneração. Abrem novos


horizontes existenciais, derrubam regras que foram estabelecidas há muito tempo. Eis a
importância da distinção real entre senhores e escravos. Pura sensibilidade do filósofo
genealogista.

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“E nenhuma chama nos devora tão rapidamente quanto os afetos do
ressentimento. O aborrecimento, a suscetibilidade doentia, a impotência
de vingança, o desejo, a sede de vingança, o revolver venenos em todo
sentido[...] O ressentimento é o proibido em si para o doente – seu mal:
infelizmente também sua mais natural inclinação.” 42

Ressentimento e Má Consciência

A humanidade, como a conhecemos, é constituída por um devir reativo das


forças. Portanto, é fundamental pensarmos sobre como isso se deu. Vimos que os
valores foram invertidos através da nociva aliança entre a vontade de negação e a força
reativa. Mas há também dois sintomas essenciais que constituem esse devir reativo: o
ressentimento e a má consciência. Sobre isso, diz Deleuze: “Honra a Nietzsche por ter
sabido isolar essas duas plantas, o ressentimento e a má consciência.”43
Em razão disso, é importante pensarmos sobre as relações de poder. Um
pensador francês do século XVI, Etienne de La Boétie, tocou num dos pontos principais
da filosofia: por que as multidões vêem alguma vantagem em prover o poder? No
“Discurso da Servidão Voluntária”, ele diz:

“Por hora gostaria apenas de entender como pode ser que tantos homens, tantos burgos,
tantas cidades, tantas nações suportam às vezes um tirano só, que tem apenas o poderio
que eles lhe dão [...] Como diremos que isso se chama? Que infortúnio é esse? Que
vício, ou antes, que vício infeliz ver um número infinito de pessoas não obedecer mas
servir, não serem governadas mas tiranizadas, não tendo nem bens, nem parentes,
mulheres ou crianças, nem sua própria vida que lhes pertença; aturando os roubos, os
deboches, as crueldades, não de um exército [...] mas de um só; não de um Hércules
nem de um Sansão, mas de um só homenzinho [...] No entanto, não é preciso combater
esse único tirano, não é preciso anulá-lo; ele se anula por si mesmo, contanto que o país
não consinta a sua servidão; não se deve tirar-lhe coisa alguma, e sim nada lhe dar [...]
Portanto são os próprios povos que se deixam, ou melhor, se fazem dominar.”44

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“[...] os homens nascidos sob o jugo, mais tarde educados e criados na servidão, sem
olhar mais longe, contentam-se em viver como nasceram; e como não pensam ter outro
bem nem outro direito que o que encontraram, consideram natural a condição de seu
nascimento”45

La Boétie não chegou a produzir uma crítica radical que nos leve a entender
melhor esse estranho fenômeno de um povo que busca a sua própria servidão. Mas
encontramos essa crítica em Espinosa e Nietzsche: são os pensadores que mais foram a
fundo na crítica da servidão humana. Em Nietzsche, o problema é colocado da seguinte
forma: quem, em nós, é cúmplice do poder? Quem, em nós, quer obedecer ao poder e
almeja, também, ter o poder?...
Nos encontros que experimentamos, há uma tendência do domínio das forças
reativas ao fixarem-se em imagens – em toda imagem há afeto. Podemos querer
encontrar uma causa exterior aos desprazeres ou prazeres que experimentamos, já que a
imagem, em vez de ficar no estado latente – de “digestão”, inconsciente –, fixa-se
temporariamente na consciência. Assim, a imagem torna-se, momentaneamente, um
bloqueio para novos fluxos que o corpo recebe. Ressentir a imagem pode ser uma
experiência prazerosa ou um verdadeiro tormento. Mas isso é apenas o primeiro aspecto
do ressentimento (que pode se tornar venenoso), o que Nietzsche chama de psicologia
animal: um momentâneo deslocamento das forças reativas, caracterizando um estado
bruto. 46 Para quem é ativo, ou seja, quando a força ativa está no comando, o
ressentimento não chega a dominar: a imagem desloca-se da superfície (“consciência é
superfície”47) para a profundidade. Eis o que Nietzsche chama de verdadeira reação, “a
dos atos”48, que acelera o processo: a força ativa adestra a força reativa para receber as
excitações novas, e não para ruminar as imagens do passado que sobem à superfície.
Não há tempo para ficar atolado na lama da conservação das marcas; o homem ativo
passa por esse processo rapidamente. Um excesso de força ativa e um querer inteiro
constituem a sua saúde.

“Fechar temporariamente as portas e janelas da consciência [...] para que novamente


haja lugar para o novo.”49

“Mesmo o ressentimento do homem nobre, quando nele aparece, se consome e se


exaure numa reação imediata, por isso não envenena: por outro lado, nem sequer

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aparece, em inúmeros casos em que é inevitável nos impotentes e fracos. Não conseguir
levar a sério por muito tempo seus inimigos, suas desventuras, seus malfeitos inclusive
– eis o indício de naturezas fortes e plenas, em que há um excesso de força plástica,
modeladora, regeneradora, propiciadora do esquecimento.”50

A reação a esse primeiro aspecto do ressentimento caracteriza-se através de duas


maneiras: cozinhar o acaso na panela para transformá-lo num alimento 51 (reação ativa)
ou sentir-se um injustiçado, uma vítima do destino, que quer encontrar uma causa pelo
que sofreu (reação reativa). Na segunda reação, não há dúvida de que “a lembrança é
uma ferida supurante”52. O mundo torna-se cinzento, um mar de injustiças, um
sofrimento interminável: o devir tornar-se algo abominável. Os fluxos que chegam são
interpretados pelas imagens do passado: tudo o que é novo é submetido ao velho.
Gradualmente, o esquecimento, como força inibidora, deixa de funcionar.

“O homem no qual esse aparelho inibidor é danificado e deixa de funcionar pode ser
comparado (e não só comparado) a um dispéptico – de nada consegue ‘dar conta’...”53

Esse dispéptico precisa de um alívio para o seu sofrimento, de uma causa para o
seu infortúnio, de um antídoto para esse veneno. Já podemos entender melhor o que
acontece: os momentos em que podemos ter uma inclinação a um domínio da vontade
de negação e da força reativa – um niilismo emergente – são quando as marcas alojam-
se na consciência. O envenenamento ocorre quando se perde o devir ativo para entrar
em um devir reativo, ou seja, de ruminação das marcas, tornando a vida pesada... O
ressentido não se abre mais às experimentações inocentes do devir por medo de
aumentar o seu sofrimento, de que se repita o que, antes, deu errado: é o lamuriento.
Então, essa ovelha doente vai precisar de um pastor – e o pastor vai precisar dessas
ovelhas ressentidas para formar o seu rebanho. Nietzsche introduz o agente fundamental
no processo de fomentação de doentes: o sacerdote ascético judaico 54. Em um cenário
propício para que uma moral seja desejada, o sacerdote cumpre aquilo que faltava para
o seu triunfo: ele dá forma ao ressentimento (o segundo aspecto do ressentimento). Isso
quer dizer o seguinte: a fundação do poder sacerdotal judaico surge através da tristeza
das massas, atoladas no ressentimento, utilizando-as como matéria-prima para o
estabelecimento do seu domínio. Através do ideal ascético, “o sofrimento era
interpretado; a monstruosa lacuna parecia preenchida; a porta se fechava para todo

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niilismo suicida”55. Percebemos que não há poder que não se mantém sem a vida
impotente: quanto maior o número de fracos, melhor. Fórmula básica para a formação
de igrejas, por exemplo... O mundo passa a ser interpretado pelos signos: acredita-se
que no signo abriga toda a explicação do que acontece... O que não pode ser controlado,
o simulacro, passa a ser a causa das injúrias. O sacerdote, que é também um ressentido,
encontra, através do poder, uma maneira de direcionar o desejo dos seus sofredores,
dando um sentido à vida deles. 56
A moral é o lugar do juízo, com valores que interessam somente à vida dos
“malogrados, atrofiados, amargurados, envenenados”57. Ocorre a inversão do “bom e
ruim”, para o “bom e mau”. Ao contrário da distinção que os homens ativos
estabeleceram entre “bom” (o criador, o comandante) e “ruim” (o animal de carga, o
sofredor), o sacerdote inventou a distinção moral entre “bons” (nós, as vítimas) e
“maus” (eles, os culpados). Portanto, através dessa visão invertida, toda ovelha que
segue o seu pastor imagina o seu oposto como “mau”. E quem é o oposto? O animal de
rapina, aquele que age sem pensar nas conseqüências, que não segue o que está
estabelecido e, por isso, é uma ameaça ao rebanho. Por ser obediente ao sacerdote que
lhe “protege” do acaso, o homem do ressentimento se considera “bom” porque, antes de
tudo, o seu oposto é “mau”.

“Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a


moral escrava diz Não a um ‘fora’, um ‘outro, um ‘não-eu’ – e este Não é seu ato
criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores – este necessário dirigir-se para
fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento: a moral escrava
sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto –
sua ação é no fundo reação.”58

“[...] imaginemos ‘o inimigo’ tal como o concebe o homem do ressentimento – e


precisamente nisso está seu feito, sua criação: ele concebeu ‘o inimigo mau’, ‘o mau’, e
isto como conceito básico, a partir do qual também elabora, como imagem equivalente,
um ‘bom’ – ele mesmo!...”59

A moral do ressentimento expande-se através da acusação aos homens ativos.


“Tudo que é diferente a ‘nós, os bons’, deve ser acusado como ‘mau e culpado’”, assim
diz o pastor para as suas ovelhas – o paralogismo do homem do ressentimento. Mas
Nietzsche diz que impedir uma força de se expressar é um absurdo:

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“Exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-dominar, um
querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos, resistências, triunfos, é tão
absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como força [...] apenas sob a sedução
da linguagem [...] a qual entende ou mal-entende que todo atuar é determinado por um
atuante, um ‘sujeito’ é que pode parecer diferente.”60

A acusação do homem do ressentimento dirige-se sempre a uma ação, ou a uma


força que, ao se expressar, causou-lhe algum dano. Ele imagina que a realidade, em
algum momento, voltou-se contra ele – ele, uma pessoa tão “boa”, que “escolheu” o
caminho do “bem”, tornou-se “vítima” de alguém que poderia ter “escolhido” o mesmo
caminho da subtração das forças ativas, respeitando o “direito” dos outros, dos seus
iguais, da sua comunidade. Mas o que está em jogo é sempre uma relação entre forças:
dominado pela força reativa, essa “vítima” do acaso não pode, de fato, agir – e fez disso
uma virtude. O homem do ressentimento “tomou a roupagem pomposa da virtude que
cala, renuncia, espera, como se a fraqueza mesma dos fracos [...] fosse um
empreendimento voluntário, algo desejado, escolhido, um feito, um mérito.”61 O homem
ativo, ao contrário, apenas age pela natureza das suas forças agressivas:

“O homem ativo, violento, excessivo, está sempre bem mais próximo da justiça que o
homem reativo; pois ele não necessita em absoluto avaliar seu objeto de modo falso e
parcial, como faz, como tem que fazer o homem reativo.”62

O forte sempre está em real perigo. Através da acusação dos fracos (que
encontram no forte a causa de algum desprazer sofrido, por não ter respeitado os
sentimentos deles, por não ter pensado na felicidade do rebanho, etc.), há o risco
permanente de entrar em um devir reativo. É o que leva Nietzsche alertar que “os
doentes são o maior perigo para os sãos”63. Nota-se o enorme risco do homem forte ser
contaminado pelo veneno mortal do ressentimento (o que pode transformá-lo também
num morto-vivo), porque ao ser acusado (principalmente por pessoas tão próximas a ele,
que querem apenas o “bem” dele... a instituição familiar, neste ponto, é insuperável...),
corre um gigantesco risco de envergonhar-se da sua ação e sentir-se culpado pelo seu
ato...64 A multiplicação do rebanho e a expansão dos valores nocivos à vida apenas
tornam-se possíveis pela subtração das forças ativas dos fortes. Através de um terrível

23
sistema de aniquilação dos homens ativos, o poder sacerdotal cresce a tal ponto que os
tipos saudáveis tornam-se cada vez mais escassos. É possível constatarmos que o
mundo humano que conhecemos foi constituído por doses cavalares do veneno
rancoroso contra tudo o que é alegre e saudável por si mesmo.

“São para mim desagradáveis as pessoas nas quais todo pendor natural se transforma em
doença, em algo deformante e ignominioso - elas nos induziram a crer que os pendores
e impulsos do ser humano são maus; elas são a causa de nossa grande injustiça para
com a nossa natureza, para com toda natureza! Há pessoas bastantes que podem se
entregar a seus impulsos com graça e despreocupação: mas não o fazem, por medo
dessa imaginária ‘má essência’ da natureza!”65

Os fracos não suportam a felicidade dos fortes. O que os ressentidos não


conseguem entender é que os saudáveis não têm vergonha de rir, de ser egoístas, de
estarem felizes no meio de tantos sofredores. Por não saberem o que é o amor, o que
eles mais desejam é o amor de alguém – até de Deus. Querem ser cada vez mais
mimados, nunca se dão por satisfeitos, e esse é o perigo deles: quando os agrados
cessam, eles acusam quem quer que seja de não amá-los mais, injetando doses do
mortífero veneno da culpa...
Mas o triunfo das forças reativas não elimina as forças ativas dos fracos. Por não
estarem no comando, as forças ativas tomam uma outra direção, voltando-se para
dentro do homem.

“Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro – isto é o
que chamo de interiorização do homem [...] A hostilidade, a crueldade, o prazer na
perseguição, no assalto, na mudança, na destruição – tudo isso se voltando contra os
possuidores de tais instintos: esta é a origem da má consciência.”66

Esse movimento de interiorização das forças ativas, segundo a hipótese de


Nietzsche, somente foi possível através do surgimento do Estado. Não nos fundadores
de Estado, mas como conseqüência da magnitude desse ato.

“Neles [os fundadores de Estado] não nasceu a má consciência, isto é mais do que claro
– mas sem eles ela não teria nascido, essa planta hedionda, ela não existiria se, sob o
peso dos seus golpes de martelo, da sua violência de artistas, um enorme quantum de

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liberdade não tivesse sido eliminado do mundo, ou ao menos do campo da visão, e
tornado como que latente. Esse instinto de liberdade tornado latente à força – já
compreendemos –, esse instinto de liberdade reprimido, recuado, encarcerado no
íntimo, por fim capaz de desafogar-se somente em si mesmo: isto, apenas isto, foi em
seus começos a má consciência.”67

As forças ativas, não vazadas, não cessam de multiplicar as dores. Ao ser


domesticado pelo Estado, o homem tornou-se, gradualmente, um animal cruel consigo
mesmo.68 Como é evidente, todo aquele que sofre quer livrar-se das suas dores. No
ressentimento, já como aspecto formal, o culpado é identificado e punido. A esperança
daquele que sofre é que, após a consumação da vingança, as dores desapareçam, já que
o culpado teve o “fim que mereceu”.

“[...] pois todo sofredor busca instintivamente uma causa para seu sofrimento; mais
precisamente, um agente culpado suscetível de sofrimento – em suma, algo vivo, no
qual possa sob algum pretexto descarregar os seus afetos [...] pois a descarga de afeto é
para o sofredor a maior tentativa de alívio, de entorpecimento, seu involuntariamente
ansiado narcótico para tormentos de qualquer espécie.”69

Mas, apesar disso, o sofrimento não vai embora. Por mais que os culpados sejam
punidos, permanecer vivo ainda continua a ser um fardo. Dominado pelas forças
reativas, o sofredor continua a não agir, tornando-se obediente, preocupando-se em
respeitar as regras estabelecidas. É a ovelha que todo pastor gosta porque está sempre
prestativa.
Esse movimento de interiorização das forças ativas é o primeiro aspecto da má
consciência. Enquanto que no homem ativo a interiorização das forças, quando surge,
não chega a dominá-lo, no homem reativo essa interiorização pode se multiplicar a
níveis insuportáveis. Ele acredita que tudo que faz dá errado, que é um frustrado, que
não consegue fazer sozinho muitas coisas. Temos nesse cenário um emergente
sentimento de que a dívida para com o poder cresce, de que “algo de errado acontece
com a vida dessa ovelha”, de que “ela precisa cada vez mais de ajuda”. É aí que o
sacerdote cristão interpretará a dor como uma dívida, um pecado... A dor sob a
perspectiva da culpa... Pois a culpa que, outrora, era da ave de rapina (“sofro, portanto

25
alguém deve ser culpado”), volta-se contra a própria ovelha... Antes mesmo que o ódio
do ressentimento se dirija contra o próprio sacerdote, ele inverte a direção da acusação:

“De fato, ele defende muito bem o seu rebanho enfermo, esse estranho pastor – ele o
defende também de si mesmo [...] ele combate, de modo sagaz, duro e secreto, a
anarquia e a autodissolução que a todo momento ameaçam o rebanho, no qual aquele
mais perigoso dos explosivos, o ressentimento, é continuamente acumulado.
Descarregar este explosivo, de modo que não faça saltar pelos ares o rebanho e o pastor,
é a sua peculiar habilidade, e suprema utilidade; querendo-se resumir numa breve
fórmula o valor da existência sacerdotal, pode-se dizer simplesmente: o sacerdote é
aquele que muda a direção do ressentimento.”70

O sacerdote cristão diz para o sofredor: “Você é o único culpado por estar
sofrendo! Somos todos pecadores, por isso viver na Terra é uma enfermidade!”. Ele deu
um novo sentido para a dor (“Adão”, “pecado original”...); este movimento é o segundo
aspecto da má consciência, que é o aspecto formal. Através dessa fabulação inventada
por Paulo de Tarso 71, o cristianismo, ao contrário do judaísmo, universalizou-se,
espalhando-se por outros cantos do mundo: a interpretação da dor como pecado foi
suficientemente contagiosa para expandir o seu poder.

“Paulo [...] contra Roma, contra o ‘mundo’, o judeu, o judeu errante par excellence... O
que ele adivinhou foi o modo como poderia atear um ‘incêndio universal’ com a ajuda
do pequeno movimento sectário dos cristãos, à parte do judaísmo; como com o símbolo
‘Deus na cruz’ conseguira reunir num poder imenso tudo quanto era inferior.”72

E para manter o seu reino, o sacerdote fere para depois “curar.”73 E qual é a
“cura” que ele oferece? Expiar a culpa, não pelo ódio, mas pela compaixão... O
sacerdote cristão serve-se disso para fundar o seu reino: a fórmula “Jesus morreu pelos
nossos pecados” foi forte o suficiente para reverter o ódio do Deus judaico para o amor
do Deus cristão – “Perdoai-os Pai, pois eles não sabem o que fazem!”. Nietzsche diz
que esse “amor” foi o golpe de gênio do cristianismo:

“[...] o próprio Deus se sacrificando pela culpa dos homens, o próprio Deus pagando a si
mesmo, Deus como o único que pode redimir o homem daquilo que para o próprio

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homem se tornou irredimível – o credor se sacrificando por seu devedor, por amor (é de
se dar crédito?), por amor a seu devedor!...”74

O credor é “fiel”, tem os pecadores “dentro do seu coração”... A dívida atinge


proporções estratosféricas. O mundo dos doentes constitui-se pelo “amor ao próximo”,
que é o amor do fraco pelo mais fraco... Com que interesse? Para salvar a própria
alma! No dia do “juízo final”, o céu será a recompensa para aqueles que, apesar de
terem levado uma existência sofrível, permaneceram fiéis às palavras de Deus; já o
inferno será o destino inevitável dos pecadores incuráveis, possuídos pelas forças
demoníacas. Vitória da insanidade, da doença, da fraqueza sobre a Terra. Multiplicação
dos malogrados; o poder como a única coisa que resta para os enfermos se agarrarem...
As igrejas estão de portas abertas para abrigar os seus “clientes”: o mau-cheiro que sai
de dentro delas é insuportável para quem está acostumado a atmosferas mais
saudáveis...
O sacerdote diz: “livrai-vos das tentações da carne”. Quando isso não acontece
(o que é inevitável – e isso as igrejas usam muito bem...), o doente vê a dívida
aumentar, pois, afinal de contas, o risco de viver a dor que ele sente nesta vida numa
outra vida, eternamente no inferno, causa-lhe um grande tormento! A sua salvação é
correr em direção ao sacerdote para confessar os seus pecados na esperança de redimir-
se. Grande estratégia do poder sacerdotal: rolar a dívida, tornando-a impagável, para
manter o devedor sempre sob o seu jugo – e o uso dos desejos sexuais, por exemplo,
estão a serviço desse nefasto sistema de aprisionamento da vida. Sem a instauração do
mecanismo da dívida impagável, não há poder... Não há como o poder se sustentar sem
o arrependimento dos seus servos... O penitente abaixa a cabeça diante do sacerdote
para pedir-lhe clemência... O que é a cruz, senão um símbolo da culpa que está
espalhado por todos os cantos para quer o devedor nunca se esqueça da sua dívida?...
Indo mais além: o que é a dívida familiar, ou seja, a dívida para com os nossos pais?
Com o empregador? Com a sociedade? São armadilhas do poder... Não foi por acaso
que Nietzsche disse que a má consciência é uma planta hedionda...
Já podemos entender melhor a receita para o estabelecimento do insano
investimento no poder. Os ingredientes são: ressentimento (marcas alojadas na
consciência, bloqueio das novas experimentações), vontade de negação (a realidade
torna-se dura demais para ser afirmada), triunfo das forças reativas (conservação dos
modos de vida estabelecidos), má consciência (interiorização das forças ativas), o

27
sacerdote (o médico das almas doentes e guia indispensável para “resolver” as
infelicidades da existência), ressentimento e má consciência como aspectos formais (a
culpa é do outro, a culpa é minha) e o ideal ascético (a salvação da alma, a esperança de
alcançar uma vida feliz)... Por isso Nietzsche diz que “o homem é, em termos relativos,
o animal mais falhado, o mais doente, o mais perigosamente desviado dos seus instintos
– sem dúvida também, com tudo isso, o mais interessante!”75 A obediência, o comando,
o amor, a felicidade, o prazer, enfim, tudo é invertido pelas ficções que a vida
impotente, obstinadamente, não cessa de reproduzir.

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“Como gostaríamos de aplicar à sociedade e a seus fins um ensinamento que
pudesse ser extraído da consideração de todas as espécies do reino animal e vegetal –
para elas, somente importa o exemplar individual superior, o mais incomum, o mais
poderoso, o mais complexo, o mais fecundo –, que prazer não haveria aí, se os
preconceitos enraizados pela educação quanto à finalidade da sociedade não
oferecessem uma pertinaz resistência!” 76

O Sentido da Cultura

Na “Genealogia da Moral”, Nietzsche diz que durante o mais longo período do


homem – a pré-história –, o trabalho do homem sobre o homem foi o meio para a
produção de um tipo mais corajoso, soberano, capaz de prometer o futuro. Trata-se da
cultura como produção do gênio... Nas sociedades primitivas a justiça é “a atividade
genérica que adestra as forças reativas do homem”77. O castigo é o meio utilizado para
que o indivíduo soberano seja produzido; somente aquele que domina as suas forças
reativas pode se tornar um legislador. Trata-se, portanto, do sentido e do valor que o
castigo possui para a atividade genérica.
Já nas sociedades históricas – sociedades com Estado, igrejas, etc. –, a justiça
nasce da planta venenosa do ressentimento e o castigo produz a planta da má
consciência: nelas, o sentido da justiça é para vingar-se de um dano sofrido, e o do
castigo é para produzir a culpa naquele que sofre a punição. Ora, se nas sociedades com
Estado o castigo visa produzir a culpa, está claro que o que se pretende com isso é
aumentar a dívida para com o poder, de maneira que aquele que sofre o castigo, ao
sentir-se culpado pelo seu ato, continue submetido às normas vigentes. Por isso
Nietzsche ataca os genealogistas da moral reativos, que “descobrem no castigo uma
‘finalidade’ qualquer, por exemplo a vingança, ou a intimidação”78. Nas sociedades
históricas, além do castigo ter a finalidade de produzir a culpa no criminoso, serve para
impedir que os outros sigam o mesmo caminho (“se mexer com o poder, vai levar!”).
Na atividade pré-histórica, isso não acontece: o castigo serve para que o torturado pague

29
a sua dívida, e não para que a má consciência seja inoculada nele. Por isso diz
Nietzsche que:

“A ‘má consciência’, a mais sinistra e mais interessante planta da nossa vegetação


terrestre, não cresceu nesse terreno – de fato, por muitíssimo tempo os que julgavam e puniam
não revelaram consciência de estar lidando com um ‘culpado’. Mas sim um causador de danos,
com um irresponsável fragmento do destino.” 79

Nesse caso, o castigo, como ritual de crueldade, serve para equivaler a dor ao
dano causado para a comunidade. Com isso, consegue-se produzir no torturado uma
outra memória, que é a memória de que há sempre um trabalho – o maior de todos – a
ser realizado: o da produção ética do futuro. Produzir um tipo forte, para uma sociedade
forte, é o que deseja a justiça primitiva.

“‘Como fazer do bicho-homem uma memória? Como gravar algo indelével nessa
inteligência voltada para o instante, meio obtusa, meio leviana, nessa encarnação do
esquecimento?’... Esse antiqüíssimo problema, pode-se imaginar, não foi resolvido
exatamente com meios e respostas suaves; talvez nada exista de mais terrível e
inquietante na pré-história do homem do que sua mnemotécnica.”80

Não há um sentimento de revolta naquele que sofre um ritual de crueldade. E


porque essa revolta não acontece, já que o nosso mundo civilizado apenas conhece o
castigo no seu uso mais vulgar, ou seja, reprimir para produzir o sentimento da culpa?
Porque nos rituais de crueldade não é um Estado ou um sujeito injustiçado que exerce o
poder de castigar, mas sim a própria tribo que, nesses rituais, demonstra toda a sua
alegria através das suas grandes festas... Há um grande gozo coletivo; fazer sofrer dá
prazer à tribo... Ao contrário da má consciência – que é o sentido interno da dor – a dor
no mundo primitivo tem um sentido externo: ela é sempre a alegria de alguém que a
contempla... Segundo Nietzsche, era assim também no antigo mundo grego, onde a dor
era a ocasião para os deuses rirem:

“Com que olhos pensam vocês que os deuses homéricos olhavam os destinos dos
homens? Que sentido tinham no fundo as guerras de Tróia e semelhantes trágicos
horrores? Não há como duvidar: eram festivais para os deuses.”81

30
“Por muito e muito tempo, esses gregos se utilizaram dos seus deuses precisamente para
manter afastada a ‘má consciência’, para poder continuar gozando a liberdade da alma:
uso contrário, portanto, ao que o cristianismo fez do seu Deus.”82

No mundo pré-histórico, a dor serve como um excitante, como uma nova


disposição das forças, como uma reação, como uma maneira de produzir um homem
forte, como uma alegria para os deuses. A dor é uma oportunidade para prestar
homenagens à vida, como uma das condições indispensáveis para que um povo possa
superar-se. Portanto, tem o sentido contrário ao da moral judaica-cristã, onde a dor é
sempre uma oposição à vida.
O castigo, na atividade genérica, é utilizado para potencializar as forças do
torturado. Ao adestrar as suas forças reativas, o torturado paga a sua dívida para com a
tribo, porque, afinal de contas, o que o credor mais deseja é que a dívida seja paga, o
que não acontece, vale recordar, com o credor das sociedades históricas... No mundo
primitivo, os torturados podem pensar assim: “algo aqui saiu errado” e não “eu não
devia ter feito isso”83... A tribo fica mais forte ao produzir alguém responsável pelas
suas forças reativas, adestrando-as para prometer o futuro. Memória da produção da
cultura. E para que isso aconteça, a lei da tribo é inscrita no próprio corpo do torturado.
Na esteira de Nietzsche, Pierre Clastres diz:

“De uma tribo a outra, de uma a outra região, diferem as técnicas, os meios, os objetivos
explicitamente afirmados da crueldade; mas a meta é sempre a mesma: provocar o
sofrimento.” 84

“Entretanto, depois da iniciação, já esquecido todo o sofrimento, ainda subsiste algo,


um saldo irrevogável, os sulcos deixados no corpo pela operação executada pela faca ou
a pedra, as cicatrizes das feridas recebidas [...] A marca é um obstáculo ao
esquecimento, o próprio corpo traz impressos em si os sulcos da lembrança – o corpo é
uma memória [...] Que sabem agora o jovem caçador guayaki, o jovem guerreiro
mandan? ‘És um dos nossos e não te esquecerás disso’.”85

É possível constatarmos que a luta dessa atividade genérica é contra o Estado;


mas também podemos afirmar: ela luta contra o ressentimento e a má consciência.

31
“[...] eis a utilidade do esquecimento, ativo, como disse, espécie de guardião da porta,
zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta: com o que logo se vê que não poderia
haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento [...]
Precisamente esse animal que necessita esquecer [...] desenvolveu em si uma faculdade
oposta, uma memória [...] uma memória da vontade.”86

Ao produzir essa memória da vontade, a atividade genérica produz alguém que é


capaz de domar as suas paixões e fazer delas forças aliadas à criação: desse processo
poderá surgir o indivíduo soberano, responsável por suas forças, que poderá responder
por si. Produzir o gênio significa produzir aquele que irá superar um estágio da
humanidade. Somente o indivíduo soberano, como produto da cultura, pode estabelecer
uma nova justiça, já que a justiça que o produziu é suprimida 87. Nasce o indivíduo livre
para criar novas leis.

“Mas coloquemo-nos no fim do imenso processo, ali onde a árvore finalmente sazona
seus frutos, onde a sociedade e sua moralidade do costume finalmente trazem à luz
aquilo para o qual eram apenas o meio: encontramos então, como o fruto mais maduro
da sua árvore, o indivíduo soberano, igual apenas a si mesmo, novamente liberado da
moralidade do costume, indivíduo autônomo supramoral [...] o que pode fazer
promessas – e nele encontramos, vibrante em cada músculo [...] uma verdadeira
consciência de poder e liberdade, um sentimento de realização [...] O orgulhoso
conhecimento do privilégio extraordinário da responsabilidade, a consciência dessa rara
liberdade, desse poder sobre si mesmo e o destino, desceu nele até sua mais íntima
profundeza e tornou-se instinto, instinto dominante.” 88

“[...] posto que a humanidade pode tomar consciência da sua finalidade, ela tem de
buscar e instaurar as circunstâncias favoráveis que permitiriam o nascimento destes
grandes homens redentores [...] pois esta [a cultura] é a filha do conhecimento de si, e
da insatisfação de si, de todo indivíduo. Aquele que apela para ela exprime isto dizendo:
‘Vejo acima de mim algo de mais elevado e mais humano do que eu; ajudem-me todos
a chegar aí, assim como ajudarei a qualquer um que reconheça a mesma coisa e sofra
com ela, para que, enfim, renasça o homem que se sentirá completo e infinito no
conhecimento e no amor [...] se agarrará à natureza e se inscreverá nela como juiz e
medida do valor das coisas’.”89

32
Ao contrário do socialismo da sua época, Nietzsche via na luta por igualdade de
direitos um sintoma de decadência. Ele não se preocupou em fazer meras distinções
sócio-econômicas entre classes sociais; não perdeu tempo com isso. O que lhe
interessava era a distinção do tipo fisiológico – aquele que tem excesso ou diminuição
de forças, ou seja, quem pode dominar e quem pode ser dominado.

“Em toda sociedade sã, distinguem-se três tipos fisiológicos que entre si se
condicionam, mas são de diversa gravitação, dos quais cada um tem a sua própria
higiene, o seu próprio domínio de trabalho e a sua própria espécie de sentimento de
perfeição e mestria [...] A casta superior – a quem chamo os poucos – como a mais
perfeita, tem também os privilégios do menor número: cabe-lhe representar sobre a
Terra a felicidade, a beleza e a bondade [...] Os homens mais espirituais, por serem os
mais fortes, encontram a sua felicidade onde os outros deparariam com a sua ruína [...]
A tarefa difícil surge-lhes como privilégio; brincar com pesos que oprimem os outros é
para eles recreação... [...] Dominam, não porque queiram dominar, mas porque são [...]
Os segundos: estes são as sentinelas do direito, os guardiães da ordem e da segurança,
os nobres guerreiros [...] são os executivos dos espirituais [...] a desigualdade dos
direitos é a primeira condição para que em geral haja direitos. Um direito é um
privilégio.”90

Certamente, para o olhar domesticado do homem moderno e democrático, tais


palavras são abomináveis. Por isso confundem Nietzsche como se ele fosse um terrível
tirano, um sanguinário, um precursor do nazismo. Afastando essas interpretações
equivocadas, podemos pensar sobre o que Nietzsche diz sobre a desigualdade dos
direitos. Vejamos: ele diz que é a natureza que faz a separação. O que ele quer dizer
com isso? É importante recordarmos que uma força nunca é igual a outra. A diferença
entre as forças somente é constituída na relação. Essa diferença é a qualidade da força,
portanto, sempre haverá uma dominante e outra dominada. Não há uma qualidade “em
si” da força, que seria separada de uma relação com outra força.

“É virtuoso que uma célula se transforme numa função de outra célula mais forte? Ela
tem de fazê-lo. E é mau que a mais forte a assimile? Ela tem de fazê-lo também; é
necessário que o faça, pois procura abundante substituição e quer regenerar-se. Alegria
e desejo coexistem no mais forte, que quer transformar algo em função sua; alegria e
vontade de ser desejado, no mais fraco, que gostaria de tornar-se função.”91

33
Dizer que não há igualdade na natureza é o mesmo que dizer que não há um
equilíbrio das forças. O desequilíbrio é absolutamente necessário. Um suposto
equilíbrio seria a conclusão do universo, o que é um absurdo. O que se coloca, então, é
o problema ético da dominação: é para o poder ou para a potência? É a dominação do
homem ativo ou do reativo? Conhecemos o mundo sob a dominação do niilismo, que é
o domínio do ressentimento, da má consciência e do ideal ascético. O triunfo do devir
reativo é o triunfo da moral judaica-cristã, do sacerdote que fez dos sentimentos de ódio
da vida impotente a oportunidade para expandir o seu poder. Ele acolheu todos os
excluídos do privilégio da vida nobre – os do terceiro tipo fisiológico – para adoecê-los
ainda mais. A multiplicação dos rebanhos, os valores de negação da vida passaram a
dominar a vida humana. Mas já vimos do que se trata esse domínio: uma simulação de
comando, nada mais além disso. É o rancor presente nos discursos humanistas dos
falsos ídolos da nossa época, desses homens pequenos que precisam do poder para ter
alguma credibilidade. Querem tudo tirar, porque nada podem dar. O sentido da cultura
se perdeu: no lugar da atividade genérica, veio a história, os Estados, as igrejas e todas
as formas parasitárias inventadas pelo homem reativo para se proteger do acaso.
Numa comunidade sã, não há espaço para o déspota. O poder é constantemente
esconjurado 92. Os homens saudáveis são desejados, e não amaldiçoados. Por isso
existem “as sentinelas do direito”, os “nobres guerreiros” (os do segundo tipo
fisiológico), que servem como funções dos homens dominadores, a “casta superior” (os
do primeiro tipo fisiológico), dos que podem criar valores ainda mais interessantes para
uma comunidade, porque potencializam a vida... Os dominadores podem amar a si
mesmos, por isso são dadivosos, por isso são verdadeiramente bons, por isso
conquistaram o direito de serem responsáveis...

34
“Quais são os que se demonstrarão os mais fortes? Os mais comedidos. Aqueles que
não necessitam de artigos de fé extremados. Aqueles que não somente admitem mas
amam uma boa parte de acaso, de insensatez, aqueles que podem pensar no homem
com um significativo comedimento de seu valor, sem com isso tornarem-se pequenos e
fracos: os mais ricos de saúde, os que estão à altura do maior dos malheurs e por isso
não têm medo dos malheurs – seres humanos que estão seguros de sua potência e que
representam, com consciente orgulho, a força alcançada do homem.

Como um tal homem pensaria no eterno retorno?” 93

Niilismo e Eterno Retorno

A vontade de nada possui vários disfarces, ela é traiçoeira. Sabemos que o


niilismo constitui-se com o triunfo da vontade de negação e das forças reativas.
Também sabemos que a abertura da vida – o seu ineditismo – pode fazer do homem um
ousado artesão, mas também pode torná-lo um fugitivo da vida; e, antes que esse
fugitivo se afogue no imenso mar do nada, numa existência sem sentido algum, o ideal
ascético serve como o invólucro desse mesmo nada – um invólucro atrativo para a
vontade de nada, sem dúvida, mesmo que seja um grande dragão com escamas de ouro.

“Não se diz ‘nada’: menciona-se em seu lugar ‘o além’, ou ‘Deus’, ou ‘a verdadeira


vida’; ou ainda Nirvana, redenção, beatitude... Esta inocente retórica, proveniente do
domínio da idiossincrasia religiosa e moral, revela-se logo muito menos inocente
quando se elucida qual a tendência que ali se abriga, sob o manto de sublimes palavras:
a tendência hostil à vida.” 94

Para o niilista, viver na Terra apenas passa a ter algum sentido somente enquanto
o seu olhar segue dirigindo-se para longe, para o alto, para o além. Ele quer acreditar
que vive neste mundo apenas como uma passagem, para que uma vida melhor, perfeita,
feliz, seja realizada no “mundo ideal”.

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“Mas apesar de tudo – o homem estava salvo, ele possuía um sentido, a partir de então
não era mais uma folha ao vento, um brinquedo do absurdo, do sem-sentido, ele podia
querer algo – não importando no momento para que direção, com que fim, com que
meio ele queria: a vontade mesma estava salva [...] tudo isso significa, ousemos
compreendê-lo, uma vontade de nada, uma aversão à vida, uma revolta contra os mais
fundamentais pressupostos da vida, mas é e continua sendo uma vontade!...”95

Para Nietzsche, há três estados psicológicos do niilismo 96. Com relação ao


primeiro estado psicológico, ele diz:

“O niilismo como estado psicológico terá de ocorrer, primeiramente, quando tivermos


procurado em todo acontecer por um ‘sentido’ que não está nele [...] Aquele sentido
poderia ter sido: o ‘cumprimento’ de um cânone ético supremo em todo acontecer, a
ordenação ética do mundo [...] ou a aproximação de um estado de felicidade universal.
O que há de comum em todos esses modos de representação é que algo deve, através do
processo, mesmo, ser alcançado.”97

Importante constatação de Nietzsche: qualquer sentido que é atribuído ao


acontecimento que não esteja no próprio acontecimento, é a causa do niilismo. A
vontade de nada quer expulsar do acontecimento toda a sua inocência. É possível
entendermos porque o homem reativo é niilista: ele recusa o devir porque crê que a
imanência é a maior prova de que este mundo é caótico, já que, afinal de contas, tudo
muda, tudo nasce e morre, o devir é implacável... Qual é a saída que ele encontra?
Explicar o acontecimento pela imaginação: os signos, encadeados, ajudam-no a
encontrar um sentido exterior ao acontecimento. Ao julgar a vida, o ideal ascético lhe
serve para “ordenar” o caos... Definitivamente, não há pressuposto mais covarde: a vida,
a priori, é objeto de acusação por não haver “ordem” neste mundo; daí a tarefa de impor
à vida uma “ordem divina”. O delírio do homem reativo parece não conhecer limites.
Tudo o que acontece neste mundo é explicado através da vontade de um Deus que
existe fora deste mundo! Uma explicação plausível e durável... Mas quem é que
aplaude? Quem é que precisa acreditar nessa ficção? Já sabemos: os moribundos...
Conhecemos a missão do sacerdote nesse processo: ele dirige toda a sua vontade
na formação de rebanhos, sustentada com fabulações que fizeram do mundo uma
imagem desoladora, e com um povo que espera, angustiado, por um salvador. A criação

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de um Deus todo poderoso, onisciente, eterno, lá no alto, diminuiu a vida humana,
dando-lhe um aspecto de mera aparência.
Podemos dizer que isso é loucura: os fracos e oprimidos iniciam a sua jornada
rumo ao absurdo, partindo da realidade das sensações corpóreas que experimentam a
todo instante – julgando-as como apenas “efeitos de um mundo falso” –, para afirmar a
existência de um mundo “verdadeiro”, porém, não experimentado...

“Os motivos que fizeram com que se designasse ‘este’ mundo como aparente
fundamentam muito mais sua realidade. – Um outro tipo de realidade é absolutamente
indemonstrável.”98

Nesse primeiro estado psicológico do niilismo, a servidão humana torna-se a


norma. Quem possui a suprema vontade é Deus, originando o universo, a Terra, os
animais e, finalmente, os humanos. Somente Deus tem o poder de dar a vida, e também
de tirá-la. Os indivíduos também têm vontade, mas nada comparada à vontade infinita
de Deus. Deus tem livre-arbítrio, cria as coisas quando e como quer, de acordo com o
seu estado de humor. Enfim, tudo que acontece na vida humana é justificada por uma
sucessão de estórias pitorescas. Não é necessário aqui recorrermos aos tantos absurdos
que a vida impotente criou, basta entendermos a importância que esse encadeamento de
signos possui para a formação de um rebanho qualquer.
Já no segundo estado psicológico do niilismo, há uma reação aos valores
divinos:

“O niilismo como estado psicológico ocorre, em segundo lugar, quando se tiver


colocado uma totalidade, uma sistematização, ou mesmo uma organização, em todo
acontecer e debaixo de todo acontecer.”99

A idéia do universal contra o singular persiste. A lei universal, antes divina,


torna-se humana: é a organização gregária “racional” do mundo. Igualdade de todos
perante à lei. Direitos humanos. Democracia. Última tentativa desesperada da
humanidade para tentar controlar todo acontecimento. O homem racional faz cálculos,
medidas, probabilidades, previsões: meras tentativas para impedir que o resultado do
lance de dados lhe seja desfavorável. É o início do mito do “progresso”, em um mundo

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que se orgulha não precisar mais de Deus. Diz o “homem louco”, no mercado, à procura
de Deus:

“Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para
onde nos movemos nós? [...] Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não
sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está
morto! Deus continua morto! E nós o matamos! E como nos consolar, a nós, assassinos
entre os assassinos?”100

O lugar do juízo permanece, mas agora ocupado pelo homem. A “origem” da


vontade, anteriormente divina, torna-se humana, demasiado humana: parte de um
sujeito para ser finalizada numa construção neste mundo. O homem, dotado da
racionalidade, acredita que poderá, enfim, construir a sua felicidade aqui... É
fundamental percebermos que esse processo é apenas mais um disfarce, bastante sutil,
da vontade de nada, agora sob o traje da “razão”. É a consciência, diz Nietzsche, que
quer interferir no resultado do lance de dados:

“Depois que se desaprendeu de acreditar nesta [a autoridade sobre-humana], procura-se


no entanto, segundo o velho hábito, por uma outra autoridade, que soubesse falar
incondicionalmente e pudesse comandar alvos e tarefas. A autoridade da consciência
entra agora em primeira linha (quanto mais emancipada da teologia, mais imperativa se
torna a moral), como indenização por uma autoridade pessoal. Ou a autoridade da
razão.”101

O próprio homem encarrega-se, agora, de ser o senhor absoluto sobre a natureza;


ele mesmo outorgou a si essa autoridade! Ora, ora... Após milênios de escravidão
religiosa, de ignorância dos acontecimentos deste mundo, o homem moderno pode
vangloriar-se do seu ateísmo, da sua virada de mesa, das suas certezas!... Mas observem
esse outro disfarce da vontade de nada: uma vontade de verdade.

“Também do ponto de vista fisiológico a ciência pisa no mesmo chão que o ideal
ascético: um certo empobrecimento da vida é o pressuposto, em um caso como no outro
– as emoções tornadas frias, o ritmo tornado lento, a dialética no lugar do instinto,
seriedade impressa nos rostos e gestos [...] Esta ‘ciência moderna’ – abram os olhos! é
no momento a melhor aliada do ideal ascético, precisamente por ser a mais involuntária,

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inconsciente, secreta, subterrânea! [...] o ideal ascético não foi de maneira alguma
vencido, tornou-se ainda mais forte, ou seja, mais inapreensível, espiritual, insidioso
[...] É certo que, desde Kant, os transcendentalistas de toda espécie ganharam
novamente a partida – eles se emanciparam dos teólogos: que felicidade! – Kant lhes
mostrou o caminho secreto através do qual podem, por iniciativa própria e com o maior
decoro científico, perseguir doravante os ‘desejos do seu coração’.”102

O que há antes de todo acontecimento na imaginação do homem moderno? O


sujeito do conhecimento (ele precisou inventá-lo...). E no final, o que existe? O objeto
(o ideal, também inventado...). E no meio, o que há? Aquilo que é amaldiçoado, que faz
as suas pernas tremerem, que não é previsível, que é a única realidade: o devir... O
acontecimento é superfície; tudo que se coloca antes ou debaixo dele – nas profundezas
– é ficção... O homem moderno vive entre dois pólos fictícios: o da memória das
marcas (o que está registrado) que constituem o seu “eu” (uma mentira terrível), e o do
projeto como busca do preenchimento de um desejo carente. Nesse movimento
contínuo, estimulado pelo seu meio social (as instituições todas se encarregam desse
trabalho imundo...), ele não vive de fato, mas apenas sobrevive.
A ciência é produto desse segundo estado psicológico do niilismo: a psicologia,
a sociologia, a antropologia, a biologia, a física, etc., são ciências reativas, porque são
produzidas pelo homem reativo. Apenas conhecem e atendem as necessidades da vida
reativa. Buscam sempre um início e uma finalidade em tudo que examinam (a “origem”
e a “morte” do universo; a “intenção” de alguém ao cometer um crime, etc.). Com o
fácil acesso a livros e a diversas informações, o homem moderno orgulha-se da sua
cultura erudita, da sua intelectualidade, da sua capacidade de avaliar “objetivamente” os
fenômenos sociais, econômicos, políticos, naturais e psicológicos, dividindo e
classificando tudo. 103 Freud, por exemplo, criou uma estrutura (id, ego e superego)
para explicar a forma que o inconsciente funciona. Entretanto, assim como o sacerdote
ascético, ele explicou pela imaginação. O que é o Id freudiano (que “contém os nossos
desejos primitivos e perversos”) senão uma ficção? E se o desejo é perverso, justifica-se
a moral para controlá-lo! O Estado agradece a Freud! Como resultado desse
adestramento nasce um “eu saudável”, que renunciou aos seus desejos primitivos para
não perder a proteção da sociedade... O sacerdote cristão diz: “o nosso desejo é pecador,
mas podemos nos salvar se seguirmos as palavras do Senhor”. Na modernidade, esse
discurso se repete, mas agora com autoridade “científica”: Freud precisou do Édipo para

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dizer que o desejo é incestuoso e parricida (que disparate!), e que, por isso, devemos
nos conformar com a repressão, pois a vida é assim mesmo, não podemos ter tudo que
desejamos... Como saída para evitarmos o caminho do nada, devemos direcionar o
nosso desejo na produção social através de uma profissão, da conjugalidade, da fruição
dos bens de consumo, para experimentarmos os prazeres que a vida proporciona... Que
maravilha! Nada melhor para o capitalismo do que o falso discurso de um desejo
sempre carente de um objeto, pois, afinal, o que seria do consumismo sem essa
convicção?
No mundo moderno, é comum encontramos discursos entusiasmados dos
especialistas da felicidade sobre a “importância das experiências”, “de construir a si
mesmo”, “de ter consciência daquilo que desejamos”, “de que estamos sempre numa
relação com o outro”, etc. No período mais estéril da história humana – a nossa época –
o homem moderno ainda busca agüentar a si mesmo através das receitas enlatadas dos
gurus do sexo, dos livros de auto-ajuda, das técnicas de rejuvenescimento, das inúmeras
opções de entretenimento, das dietas saudáveis, da malhação, das viagens, enfim, tudo
que sirva como um alívio para que ele não entre em colapso... Mas, gradualmente, o
ânimo diminui, o cansaço da busca por felicidade começa a se tornar cada vez maior...
Ceticismo... Afinal, desejar para quê?...
Assim como os deuses apodrecem, os valores modernos também. Um espectro
ronda a civilização – o espectro da depressão... Decomposição acelerada dos modos de
vida reativos. Grito de desespero dos homens de negócio. Os valores humanos
começam a exalar um mau-cheiro insuportável... Eis o terceiro estado psicológico do
niilismo:

“O niilismo como estado psicológico tem ainda uma terceira e última forma [...] O
sentimento da ausência de valor foi alvejado, quando se compreendeu que nem com o
conceito ‘fim’, nem com o conceito ‘unidade’, nem com o conceito ‘verdade’ se pode
interpretar o caráter global da existência. Com isso, nada é alvejado e alcançado; falta a
unidade abrangente na pluralidade do acontecer [...] Em suma: as categorias ‘fim’,
‘unidade’, ‘ser’, com as quais tínhamos imposto ao mundo um valor, foram outra vez
retiradas por nós – e agora o mundo parece sem valor...”104

O mundo imanente, como “vontade e representação” (como o de Schopenhauer),


torna-se uma ilusão insuportável, a vida mesma passa a ter um aspecto de um grande

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“em vão”, que caminha à ausência total de sentido... Neste sentido, Schopenhauer é um
pensador interessante, pois quis levar até ao fim a sua filosofia niilista, que é a
destruição da vontade:

“[...] da mesma forma que se nega e que se sacrifica a Vontade, todos os fenômenos têm
igualmente que ser suprimidos [...] suprimidas, enfim, as formas gerais do fenômeno, o
tempo e o espaço; suprimida a forma suprema e fundamental da representação, a de
sujeito e objeto. Já não existe nem vontade, nem representação, nem universo.” 105

Observamos que nessas palavras há ainda um querer, que é o querer destruir


aquilo que quer, ou seja, a supressão da representação do sujeito e objeto (e todas as
outras representações) torna-se o meio encontrado para alcançar um nada de vontade:

“Daqui para frente, resta diante de nós apenas o nada [...] consideremos aqueles que se
elevaram acima do mundo e em quem a vontade, chegada à mais alta consciência de si
mesma, se reconheceu em tudo que existe, para se negar, em seguida, a si mesma
livremente: agora já só esperam uma coisa, ver a última marca dessa vontade aniquilar-
se com o próprio corpo que ela anima; então, em vez da impulsão e da evolução sem
fim, em vez da passagem eterna do desejo ao receio, da alegria à dor, em vez da
esperança nunca farta, nunca extinta [...] nós percebemos essa paz mais preciosa que
todos os bens da razão, esse oceano de quietude, esse repouso profundo da alma [...] Já
só existe o conhecimento, a vontade dissipou-se [...] No entanto, esta contemplação é a
única coisa que nos pode consolar de uma maneira durável, uma vez que reconhecemos
que o fenômeno da Vontade, o universo, é apenas dor irremediável em miséria infinita,
e que, por outro lado, vemos o mundo dissipar-se com a vontade, só o nada subsistir
diante de nós.”106

Percebemos que não há nenhum esforço de Schopenhauer para “salvar” a


vontade. A solução apresentada por ele mostra-nos o que move, essencialmente, a
vontade de nada: a sua autodestruição. Sabemos que a vontade de nada tem os seus
disfarces. Pois bem, Schopenhauer ousou despir a vontade de nada... Mas se
Schopenhauer nos mostrou o caminho da destruição, é importante dizer que se trata de
uma autodestruição passiva. Para Nietzsche, essa autodestruição passiva é promovida
pelo último homem:

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“Vou, portanto, falar-lhes do que há de mais desprezível: ou seja, o último homem [...]
Ai de nós! Aproxima-se o tempo em que o homem não mais arremessará a flecha do seu
anseio para além do homem e que a corda do seu arco terá desaprendido a vibrar! [...]
Ai de nós! Aproxima-se o tempo do mais desprezível dos homens, que nem sequer
saberá mais desprezar-se a si mesmo.”107

Schopenhauer manteve-se fiel ao seu niilismo, e isso é louvável. Ele desejou


seguir adiante no seu caminho para o nada. Não escondeu a amargura que sentia pela
vida, filosofou com honestidade. Era um budista, em suma. 108 Se Freud realmente
chegou a ler Schopenhauer, é provável que tenha ficado com os pêlos arrepiados ao se
deparar com uma filosofia que faz uma apologia do nada. Talvez o “velhinho de Viena”
tenha exclamado: “Tenho que impedir que isso aconteça!”... “Curar a alma” era o desejo
de Freud, não há dúvida. Mas Freud não conseguiu livrar-se de uma imagem da
vontade, algo como a pedra de Sísifo: um jogo interminável e doloroso, pois a cada
objetivo alcançado, mais uma vez um longo percurso de sofrimento – e de falta – é
reiniciado... A diferença básica entre Schopenhauer e Freud é que, para Freud, o
objetivo pode ser alcançado, o que vale dizer o mesmo que “a vida também tem os seus
momentos de felicidade” (aqui, os publicitários assinam embaixo...).
Essa imagem da vontade não é a mesma vontade de potência afirmativa que nos
diz Nietzsche. Essa distinção é fundamental. A primeira é efeito de uma negação do
acontecimento – surge um falso “sim”, uma vontade de representação, uma vontade de
pendurar-se no ideal ascético; a segunda é a afirmação de todo acontecimento. O
problema ético, então, consiste em como a destruição é realizada, se é de forma passiva
ou ativa. O sujeito e o objeto, artimanhas da representação, vão de qualquer modo
perecer. A questão que se coloca é a qualidade da destruição... Passivamente:
caracterizada pela dissolução dos valores humanos, levando a humanidade a crer que a
existência é um imenso vazio, que tudo é uma grande uma ilusão, tornando-se numa
vontade de cair no nada. 109 Ativamente: os valores humanos são destruídos por uma
outra negação, que precede a afirmação. Triunfo da vontade de potência que cria novos
valores. Acréscimo de forças suficientes para produzir a superação do niilismo: desse
processo surge o super-homem.
A vida não tem sentido: tal afirmação é verdadeira demais, dura demais, real
demais para que essa humanidade possa suportar. Mas esse sem-sentido da existência é
exatamente a abertura que o homem ativo encontra para exercitar a sua força ao

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derrubar valores para poder criar outros. Isso quer dizer o seguinte: o sentido é para ser
criado... E para ser criado, é necessária a efetuação de uma destruição radical. Ora, o
terceiro estado psicológico do niilismo torna evidente a posição extrema que o niilismo
alcança: um nada de vontade. A destruição ativa implica uma outra posição extrema,
que é inversa a esse terceiro estado psicológico. Trata-se da posição extrema inversa do
niilismo ativo.

“Posições extremas não são revezadas por posições comedidas, mas outra vez por
extremas, mas inversas. E assim a crença na absoluta imoralidade da natureza, na
ausência de fim e de sentido, é a emoção psicologicamente necessária, quando a crença
em Deus e em uma ordenação essencialmente moral não pode ser mais mantida.” 110

“‘Deus, moral, resignação’, eram meios de cura em graus terrivelmente profundos da


miséria: o niilismo ativo aparece em condições que se configuram relativamente muito
mais favoráveis.”111

Podemos afirmar que os três estados psicológicos do niilismo são os estados de


impotência diante do que acontece: o ressentimento, a má consciência e o ideal ascético
constituem os dois primeiros estados, e o nada de valor constitui o terceiro estado. A
fórmula de Nietzsche para inverter esse domínio da negação e da reatividade é a posição
extrema inversa ativa, que é o Não à posição extrema inversa passiva que constitui o
terceiro estado psicológico do niilismo. O niilismo ativo é uma autodestruição ativa,
porque o que se destrói é o domínio em si mesmo das forças reativas. A superação do
niilismo somente é efetivada pela dureza imposta às forças reativas.

“[...] cada conquista do conhecimento decorre do ânimo, da dureza contra si, do anseio
para consigo [...] Uma filosofia experimental, tal como eu a vivo, antecipa
experimentalmente até mesmo as possibilidades do niilismo radical; sem querer com
isso que ela se detenha em uma negação, no não, em uma vontade de não. Ela quer, em
vez disso, atravessar até ao inverso – até a um dionisíaco dizer-sim ao mundo, tal como
é, sem desconto, exceção e seleção -, quer o eterno curso circular -: as mesmas coisas, a
mesma lógica e ilógica do encadeamento. Supremo estado que um filósofo pode
alcançar: estar dionisiacamente diante da existência – minha fórmula para isso é amor
fati.”112

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Nas “três metamorfoses do espírito” 113, Nietzsche nos diz sobre o espírito que
se transforma em camelo e que, ao caminhar pelo deserto, suporta as cargas mais
pesadas. Esses fardos são os valores morais, divinos e humanos. Constituem os dois
primeiros estados psicológicos do niilismo. Assim, o camelo caminha para o seu próprio
deserto: podemos entender que esse momento constitui o terceiro estado psicológico do
niilismo, que é a vontade de cair no nada. A realidade é um imenso e terrível deserto – o
mais ermo dos desertos. Nele, o camelo metamorfoseia-se em leão. É aqui que
Nietzsche nos mostra a inversão de uma negação que constitui o niilismo dos três
estados anteriores para a negação ativa que opera a segunda metamorfose do espírito.
Mesmo no deserto do nada, há ainda uma vontade. É por isso que Zaratustra diz:

“Eu vos digo: é preciso ter ainda caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela
dançante. Eu vos digo: há ainda caos dentro de vós”114.

Derradeiro momento da longa história de um erro. Trata-se da inversão do


último homem para o homem que quer morrer. E o que este homem quer que morra
nele? A sua negação de todo acontecimento, a sua reatividade. É o Não destruidor do
leão... O que torna real essa inversão é a força que o Não do leão possui para negar o
“não” da dialética. Ora, a dialética parte do “não” ao devir para o “sim” aos valores
estabelecidos – é o “I-A” do burro, em “Assim Falou Zaratustra”. E o que são os valores
estabelecidos? Também já sabemos: o ideal ascético que serve para “explicar” qualquer
acontecimento.
A revolução tão cantada pela dialética não deixa de emergir desse “não”. Por
isso são necessárias duas negações para ocorrer a revolução dialética: a primeira
negação, que é ao devir, e a segunda negação, que é aos valores estabelecidos. Na
passagem do primeiro estado psicológico do niilismo para o segundo, os valores divinos
são negados e substituídos pelos valores humanos. Mas os valores que substituem os
antigos continuam a ter o mesmo elemento gerador de valores, que é a negação do
acontecimento. Pelo movimento dialético de mudanças de valores, é inevitável que a
revolução seja, de fato, malograda, pois a vida continua a ser julgada e o homem
permanece separado da sua capacidade de afirmá-la. O contrário disso se passa com o
artista trágico, que se distingue claramente da inversão impotente promovida pela
dialética:

44
“Pois a ‘aparência’ significa aqui uma vez mais a realidade; só que sob a forma de uma
seleção, de uma intensificação, de uma correção... O artista trágico não é nenhum
pessimista. Ele diz justamente sim a tudo que é digno de questão e passível mesmo de
produzir terror, ele é dionisíaco...”115

Nietzsche não acreditava na revolução socialista ou qualquer outro movimento


de transformação social que possui, no seu âmago, a negação do devir. A
transvaloração de todos os valores apenas torna-se possível através do Não de um
animal rapinante. De tal ato grandioso, surge a criança e o seu sagrado dizer Sim, que
pode criar novos valores porque ela é o elemento afirmativo.

“Criar novos valores – isso também o leão ainda não pode fazer; mas criar para si a
liberdade de novas criações – isso a pujança do leão pode fazer.”116

“Sim, meus irmãos, para o jogo da criação é preciso dizer um sagrado ‘sim’: o espírito,
agora, quer a sua vontade, aquele que está perdido para o mundo conquista o seu
mundo.”117

O Não destruidor do leão é a emoção psicológica da posição extrema inversa que


constitui o niilismo ativo. Portanto, a supressão do niilismo ocorre pelo próprio
niilismo. Para o budista, o “sem sentido” da existência é ainda um estado de sofrimento,
de resignação, de brandura. Não há mais culpados, ele apenas diz “sofro”... Mas aquele
que encontra no “sem sentido” da existência a emoção psicológica necessária para poder
criar novos valores, opera a inversão do niilismo. Por isso que, mais do que tudo, é
necessário pensarmos a abertura que o “sem sentido” da existência nos oferece:

“Pensemos esse pensamento em sua forma mais terrível: a existência, assim como é,
sem sentido e alvo, mas inevitavelmente retornando, sem um final no nada: ‘o eterno
retorno’. Essa é a mais extrema forma do niilismo: o nada (o ‘sem sentido’) eterno!”118

O eterno retorno é o pensamento seletivo, porque ele retorna apenas para aquele
que encontra no eterno retorno do “sem sentido” a sua capacidade singular de criar
sentido para a sua existência. Dominado por um pensamento que é, segundo Nietzsche,
“a mais elevada forma de afirmação que se pode em absoluto alcançar”119, podemos
dizer: “Que presente maravilhoso que a vida nos deu: ela não tem sentido! Pois se ela

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tivesse um, não haveria nada para se criar no mundo! Estar vivo, aí sim, seria um
terrível fardo!”
O pensamento do eterno retorno expulsa qualquer pensamento do negativo: estar
livre dos valores morais – os sentidos ascéticos estabelecidos – e também de uma
vontade de cair no nada, é a liberdade alcançada para criar novos valores. Mas também
podemos dizer que “sim, a vida tem um sentido eterno!”, quando pensamos que o único
sentido que é eterno é o do “sem-sentido”! Esse pensamento, sem dúvida, pode ser
terrível para os moribundos, a ponto de esmagá-los, mas pode ser uma dádiva para os
saudáveis. Por isso Nietzsche diz que o pensamento do eterno retorno é o “mais
poderoso dos pensamentos”120. O eterno retorno é a lei cosmológica seletiva e, por isso,
absolutamente necessária.

“‘A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente – e você com ela,
partícula de poeira!’ [...] Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você é,
ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, ‘Você quer
isso mais uma vez e por incontáveis vezes?’, pesaria sobre os seus atos como o maior
dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não
desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela?”121

O eterno retorno é também o ser seletivo: diante dele, os moribundos sucumbem


inevitavelmente. Não há dúvida de que a vida é impiedosa para com os fracos. Com os
valores ascéticos dissolvidos, os moribundos se vêem diante daquilo que os apavora,
que é o “nada eterno” da existência. O domínio dos valores dos fracos chega ao seu
ponto crucial: expulsos pelo eterno retorno, são selecionados os verdadeiros senhores.
Por isso Nietzsche diz que aqueles que afirmam o eterno retorno são necessariamente os
dominadores, obedecendo a uma ordem hierárquica cosmológica, e não moral. O eterno
retorno purifica...

“A mais insalubre espécie de homens na Europa [...] sentirá a crença no eterno retorno
como uma maldição, e sentirá que quem é atingido por ela não recua mais diante de
nenhuma ação.”122

“O valor de uma tal crise é que ela purifica, que ela condensa os elementos aparentados
e os faz corromperem-se uns aos outros, que ela encaminha os homens de maneiras de
pensar opostas a tarefas comuns – trazendo também à luz, entre eles, os mais fracos,

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mais inseguros, e assim põe em marcha uma ordenação hierárquica das forças, do
ponto de vista da saúde: reconhecendo mandantes como mandantes, obedientes como
obedientes. Naturalmente, à margem de todas as ordenações vigentes.”123

Percebemos que a “casta superior”, a “aristocracia”, os “nobres”, são os ousados,


os que amam a vida. E a vida também ama os guerreiros, por isso ela os elege como os
verdadeiros comandantes. Sobre essa seleção do eterno retorno, Klossowski diz que “O
Senhor e o escravo são estados que resultam, respectivamente, de uma prova. E essa
prova continua sendo a adesão ao signo do Círculo Vicioso, ou a sua rejeição. Portanto,
o signo do Círculo vicioso – do Eterno Retorno – continua sendo o limite e a mola dos
projetos ditos de adestramento e seleção.”124 Não há dúvida de que o eterno retorno
trata-se de uma grande dimensão política ao selecionar os que, gradualmente, foram
adestrados a essa suprema doutrina. Por isso Nietzsche diz que, através do eterno
retorno, a noção de política mudará radicalmente:

“Pois quando a verdade sair em luta contra a mentira de milênios, teremos comoções,
um espasmo de terremotos, um deslocamento de montes e vales como jamais foi
sonhado. A noção de política estará então completamente dissolvida em uma guerra dos
espíritos, todas as formações de poder da velha sociedade terão explodido pelos ares –
todas se baseiam inteiramente na mentira: haverá guerras como ainda não houve sobre a
Terra. Somente a partir de mim haverá grande política na Terra.”125

Os senhores, no comando da geração de valores, inventam novos sentidos


imanentes à vida; portanto, não são sentidos morais porque não são dirigidos a uma
finalidade... Ora, se o mundo é vontade de potência, sem origem e finalidade, qual é o
sentido que a vida passa a ter? Todo sentido que aumenta a potência! Esse é o valor...

“Não há nada na vida que tenha valor, a não ser o grau de potência – suposto,
justamente, que a vida mesma é vontade de potência.”126

Já que nós somos um grau de potência, o que pode a nossa potência? Não
sabemos, pois não existe modelo a seguir, não existe “objetivo”, “ideal”. Então, o que
nos resta? Criar sentido para a nossa vida! E como somos um grau de potência singular,
criar sentido é singularizar-se. Ao afirmar a nossa diferença, modificamo-nos para devir

47
ainda mais. Não querer conservar-se numa identidade é o princípio básico para ocorrer
uma expansão da potência, ou seja, um grau de potência expande-se por não seguir
modelos universais; como não há formas a priori, a singularização acontece na
experimentação, naquilo que apenas a vida singular percebe com o que se passa com a
sua potência – se ela diminui ou aumenta. A vida singular dá o valor para si mesma. Ela
é feliz porque ousa criar sentido para si, não precisa imitar outro estilo de vida ao
construir o seu caminho. E como ela se alegra com as suas próprias obras!... Portanto,
não há comparação possível a ser feita entre graus de potência singulares... Para ser
fértil, a vida singular não precisa de qualquer tipo de reconhecimento, e por isso passa
quase despercebida num mundo infestado de subjetivação e de significação.

“Mas a desproporção entre a grandeza de minha tarefa e a pequenez de meus


contemporâneos manifestou-se no fato de que não me ouviram, sequer me viram. Vivo
do meu próprio crédito...”127

Ao conquistar o seu mundo, a vida singular deseja o seu eterno retorno – e nada
além disso. É importante pensarmos sobre isto: o eterno retorno do “sem sentido” da
existência coage a criarmos sentido e valor. Ou criamos ou perecemos, não há outro
caminho. Se o artista vivesse num mundo acabado, não teria o que criar... De fato, como
poderia haver criação se, anteriormente, não fossem destruídos os mais pesados fardos?
O sentido da existência que é criado nos mostra o ineditismo de um estilo, pois somente
uma vida pode experimentar as intensidades da sua potência – ela é a única testemunha
daquilo que sente e pensa...

“Cada traço característico fundamental que está no fundamento de cada acontecer, que
se exprime em cada acontecer, se fosse sentido por um indivíduo como seu traço
característico fundamental, teria de impelir esse indivíduo a achar bom, triunfante, cada
instante da existência universal. Isso dependeria, justamente, de sentir em si esse traço
característico fundamental como bom, valioso, com prazer.”128

Tornamo-nos o que somos no devir. Isso nos força a pensarmos o devir. Mas a
dificuldade que podemos encontrar para pensá-lo surge do hábito moral de que em todo
acontecimento há sempre alguma explicação exterior a ele 129. Mas podemos também
criar o hábito inverso: pensar o devir e o acontecimento sem origem e finalidade.

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Pensar o devir é um problema que Nietzsche já encontrava, por exemplo, em
Anaximandro. Segundo Anaximandro, havia a dualidade de dois mundos totalmente
antagônicos: o do ser eterno e o do devir; o da unidade eterna e o da multiplicidade.
Portanto, o devir seria conseqüência do ser, caindo numa realidade de “injustiças”130. É
evidente que Nietzsche descarta essa hipótese de Anaximandro, como também descarta
uma outra hipótese bastante comum (cristã, inclusive) de que o devir, em algum
momento, concluir-se-á no “ser”:

“Se o mundo tivesse um alvo, teria de estar alcançado. Se houvesse para ele um estado
terminal não intencional, teria igualmente de estar alcançado. Se fosse em geral apto a
um perseverar, tornar-se rígido, apto a um ‘ser’, se em todo o seu vir-a-ser tivesse
apenas por um único instante essa aptidão ao ‘ser’, mais uma vez, há muito teria
terminado todo vir-a-ser, e portanto também todo pensar, todo ‘espírito’. O fato do
‘espírito’ como um vir-a-ser prova que o mundo não tem nenhum alvo, nenhum estado
terminal, e é inepto a ser.”131

O que poderia ser a conclusão do devir? O Nada? – é possível imaginá-lo?...


Ora, se o devir tivesse uma conclusão, necessariamente teria uma origem. Mas, então,
essa hipótese nos obriga a pensarmos no que originou a origem!... Então, a origem
inicial não seria mais a origem?... Constata-se que uma especulação absurda de imagens
tenta explicar o que não existe: início e conclusão no devir. E o que existe? O que está
no meio, o que não falta nada, o que “eternamente tem de retornar, como um vir-a-ser
que não conhece nenhuma saciedade, nenhum fastio, nenhum cansaço”132 : a vontade de
potência.
Contemplar o devir: tal postura afirmativa Nietzsche encontrou em Heráclito.
Heráclito levantou a cortina deste espetáculo sublime, diz Nietzsche. O espetáculo da
criança que joga, da afirmação do lance de dados... Mas o “cume da contemplação do
ser” é atingido quando o ser é afirmado do devir. Através da emoção psicológica do
“sem sentido” da existência, algo em nós ainda se passa, mesmo numa vida com
ausência de sentido, pois o absurdo do devir segue inexoravelmente. Portanto, é
exatamente aí, através do “sem sentido” absoluto e eterno da existência, que o ser é
afirmado do devir, porque o ser é afirmativo! A fonte de toda criação, eterna e absoluta,
é pensada por nós, ou melhor, pensa em nós! O ser não se nega ao pensar o “sem
sentido” da existência! Esse pensamento torna-nos criadores de eternidade! Daí

49
Nietzsche dizer que quem é atingido por esse pensamento não recua mais diante de
nenhuma ação... Por isso que o ser pode ser afirmado por todas as singularidades. E
através da multiplicidade o uno é afirmado. E em todo acaso (inclusive a morte),
afirma-se a sua necessidade, já que não há negação no ser. É a dupla afirmação de
Ariadne 133. “Suprema constelação do ser!”

[...] Suprema constelação do ser!


Mesa das visões eternas!
És tu que vens a mim? –
O que ninguém viu,
a tua muda beleza. –
como é que ela não foge diante dos meus olhares?

Símbolo da necessidade!
Mesa das visões eternas!
– Mas tu sabe-lo bem:
o que todos odeiam,
o que eu sou o único a amar,
sabes bem que és eterna!
que és necessária!

O meu amor não se inflama,


eternamente, senão com a necessidade.
Símbolo da necessidade!

Constelação suprema do ser!


– que nenhum voto pode atingir,
que nenhuma negação macula,
eterna afirmação do ser,
eternamente sou a tua afirmação:
porque te amo, ó eternidade! 135

Tornamo-nos uma diferença que afirma todas as diferenças. Tornar-se o que se é


não é torna-se uma identidade fixa, mas tornar-se diferente do que era num estágio
anterior. Esse homem trágico, por ser obediente à potência, não é coerente e, tampouco,
incoerente: que tem a vontade de potência a ver com coerência e incoerência! O que

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para ele importa é a intensidade, apenas isso. Ela é o seu “guia espiritual”. O homem
trágico sabe que a sua vontade o liberta das prisões morais 136.

“Meu ensinamento diz: viver de tal modo que tenhas de desejar viver outra vez, é a
tarefa – pois assim será em todo caso! Quem encontra no esforço o mais alto
sentimento, que se esforce; quem encontra no repouso o mais alto sentimento, que
repouse; quem encontra em subordinar-se, seguir, obedecer, o mais alto sentimento, que
obedeça. Mas que tome consciência do que é que lhe dá o mais alto sentimento, e não
receie nenhum meio! Isso vale a eternidade!” 137

Ser trágico é viver perigosamente. O homem trágico “afirma ainda o mais acerbo
sofrer: ele é forte, pleno, divinizante o bastante para isso”138... Ao contrário do homem
reativo, que desperdiça o seu tempo ao falar de coisas inúteis, que vive atolado na lama
do ressentimento e da má consciência, o homem trágico sabe que as outras tarefas são
secundárias diante da tarefa, são apenas auxiliares da tarefa, servem como meios
fomentadores da tarefa... E qual é essa tarefa? Tornar-se o que se é... Ele também tem
seus momentos de angústias e aflições, mas a dor, para ele, não é uma oposição à vida
139; vive a realidade do afeto, balança, processa o golpe, e resgata as suas energias
focando novamente nos alimentos que ele encontra no devir, ultrapassando rapidamente
o terrível estágio da acusação. Saúde de uma vida que sabe esquecer, de uma
consciência lisa, aberta ao frescor das novidades. O homem trágico ama o eterno
ineditismo dos afetos que experimenta.

“Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas: -
assim me tornarei um daqueles que fazem belas as coisas. Amor fati [amor ao destino]:
seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero
acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que a minha única negação seja
desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que
diz Sim!”140

Ele desvia o olhar para tudo o que lhe torna mais fraco, para não envenená-lo: a
negação serve apenas como efeito de uma afirmação primeira, dominante, que não leva
a sério os espinhos, que aprendeu a rir... O riso liberta 141. Essa postura de vida não se
importa com o resultado do lance de dados, porque todos os resultados são necessários.

51
Por isso o homem trágico aprende o tempo necessário para processar o que lhe atinge. É
a virtude da paciência.

“Eu sou Zaratustra, o ímpio. Cozinho na minha panela todo e qualquer acaso; e somente
quando está bem cozido, dou-lhes as boas-vindas como meu alimento. E, na verdade,
mais de um acaso veio a mim com modos imperiosos; mas, com modos ainda mais
imperiosos, expressei-lhe a minha vontade – e já lá estava ele de joelhos, implorando –
implorando que lhe desse pousada e benévola acolhida e acrescentando, em tom
bajulador: ‘Vê, Zaratustra, somente um amigo vem ter assim com um amigo!’”142

52
“Filosofia, como até agora a entendi e vivi, é a voluntária procura também dos lados
execrados e infames da existência. Da longa experiência, que me deu uma tal andança
através de gelo e deserto, aprendi a encarar de outro modo tudo o que se filosofou até
agora: - a história escondida da filosofia, a psicologia de seus grandes nomes, veio à
luz para mim. ‘Quanto de verdade suporta, quanto de verdade ousa um espírito?’ – isso
se tornou para mim o autêntico medidor de valor.” 143

Epílogo

No mundo moderno, o capitalismo é, sem dúvida, o grande símbolo da perda do


sentido da cultura superior. Os sentidos dos homens tornaram-se embotados, não se
sabe mais o que é experimentar. O capital está aí, funcionando vorazmente. Mas ele não
é o resultado de uma “conspiração” burguesa, mas algo produzido por nós... Então, será
que estamos condenados a reproduzi-lo cada vez mais?
Vimos, durante este trabalho, que o poder é abastecido pela vida impotente, a
vida resignada. É a vida infeliz com a sua “profissão” que, por conseqüência, procura
por um alívio. E assim é mantido o sistema de satisfação efêmera do desejo e suas
perigosas conseqüências... Nietzsche dizia que a sua doença o libertou de um incômodo
sentimento de “falta de si”, que surgia em razão de um trabalho erudito extremamente
desgastante (a filologia), levando-o a desejar entorpecer-se através da arte de Wagner:

“Foi então que atinei também pela primeira vez a relação entre uma atividade escolhida
contra o próprio instinto, uma assim chamada ‘profissão’, que é o que menos
professamos – e aquela necessidade de entorpecimento da sensação de vazio e de fome
através de uma arte narcótica – por exemplo, através da arte de Wagner. Olhando em
torno com maior cuidado, descobri que existe o mesmo infortúnio para um grande
número de jovens: uma contranatureza provoca formalmente uma segunda.”144

“Naquela época, meu instinto decidiu-se inflexível pelo fim daquele ceder, seguir,
confundir-se com outros. Qualquer espécie de vida, as condições mais desfavoráveis,
doença, pobreza – tudo me pareceu preferível àquela indigna ‘falta de si’, na qual havia

53
caído por ignorância, por juventude, e na qual havia depois permanecido por letargia,
pelo chamado ‘sentimento do dever’ [...] A doença libertou-me lentamente: poupou-me
qualquer ruptura, qualquer passo violento e chocante [...] A doença deu-me igualmente
o direito a uma completa inversão de meus hábitos; ela permitiu, ela me ordenou
esquecer; ela me presenteou com a obrigação à quietude, ao ócio, ao esperar e ser
paciente... Mas isto significa pensar!”145

“Valor da doença - O homem que jaz doente na cama talvez perceba que em geral está
doente de seu ofício, de seus negócios ou de sua sociedade, e que por causa dessas
coisas perdeu a capacidade de reflexão sobre si mesmo: ele obtém esta sabedoria a
partir do ócio a que sua doença o obriga.”146

O ato criativo não tem hora e lugar certo para surgir. É o contrário do que
acontece com as exigências que uma profissão obriga: carga horária, normas de
conduta, prazos, obrigações que impedem que o pensamento se desenvolva. O
capitalista exige competência, qualificações absurdas, compromissos inadiáveis, para
pagar um salário ao seu funcionário – e esse mesmo salário serve para que este tenha
acesso aos narcóticos... Uma contranatureza (realizar uma tarefa que não dá prazer)
gera uma outra contranatureza (as inúmeras válvulas de escape oferecidas; a cultura da
falta, em suma). Uma atividade contra o próprio instinto diminui a potência de existir:
as forças ativas são interiorizadas, há um sentimento de desprazer e de abatimento
fisiológico. Um indivíduo dedicado a uma tarefa irracional, chega ao nível do
insuportável, deseja instantes de respiro, pois ainda quer agarrar-se à vida...
“Contranatureza” quer dizer contra a natureza de uma vida singular... A vida, agora
“amputada”, experimenta doses de aumento de potência nas relações que (bingo!)
também vão contra a sua natureza! Nessas experiências, a vida amputada sente que
pode mais, e torna-se cada vez mais dependente das relações que lhe dão prazer,
mantendo-a em um permanente estado de carência.
Durante o nosso percurso existencial, a maior de todas as tarefas, “tornar-se o
que se é”, é invertida pela moral através do “tornar-se o que os outros querem”. Tornar-
se o que a moral quer é tornar-se uma ovelha obediente, que abandona a si mesma para
honrar os seus compromissos com o social. E qual social? O dos parasitas. Diz
Nietzsche: “Olhando em torno com maior cuidado, descobri que existe o mesmo
infortúnio para um grande número de jovens”. Jovens que nem se deram conta de que

54
não há caminho a seguir, a não ser o caminho construído pela vida singular. Estão
distantes, distantes, cada vez mais distantes do Não do leão. E quando, em raros
momentos, essa vida atinge um certo grau de regeneração (o que é perigoso para os
moralistas), ela é novamente amputada...
É importante salientarmos o que Nietzsche diz a respeito do valor da sua doença:
ela o libertou lentamente... Ter paciência, conhecer o nosso próprio tempo – assim
podemos romper lentamente com o processo de obediência ao poder para obedecermos
à potência. Nesse processo de crescimento espiritual, o que antes era considerado
extremamente indispensável, perde o encanto – tornou-se inteiramente dispensável
diante da tarefa... A vontade de potência expande-se para além daquilo que
anteriormente tinha alguma função. É assim também com o organismo:

“Mesmo no interior de cada organismo não é diferente: a cada crescimento essencial do


todo muda também o ‘sentido’ dos órgãos individuais – em certas circunstâncias a sua
ruína parcial, a sua diminuição em número (pela destruição dos componentes
intermediários, por exemplo) pode ser um signo de crescente força e perfeição [...] A
magnitude de um ‘avanço’, inclusive, se mede pela massa daquilo que teve de lhe ser
sacrificado.”147

Insistir em manter alguma coisa que já está seca e que não pode dar mais nada é
um evidente sintoma de definhamento do conjunto de uma vida (uma sociedade assim
corrompe-se...). Saber desprezar é um ato de amor... Manter-se em devir ativo é o lema
nietzscheano. Por isso é importante recordarmos a seguinte frase de Nietzsche: “Mas
que tome consciência do que é que lhe dá o mais alto sentimento, e não receie nenhum
meio! Isso vale a eternidade!” Podemos, então, começar pelas seguintes questões: o que
nos faz sentir? Onde é que está a intensidade? Quais são os alimentos que nos torna
mais aptos a desenvolvermos uma atividade que nos dá prazer? Qual é o melhor
ambiente para essa ou aquela atividade? Quais as companhias que não são mais úteis
para o nosso crescimento?... Ao ativar a nossa sensibilidade para o que é estranho e
desprezado por todos, pode ser um princípio básico para o cultivo da nossa
singularidade.

55
Certamente por não existir esse cultivo idiossincrático, observamos o
pensamento de Nietzsche ser cada vez mais adaptado a interesses suspeitos. Surge um
“Nietzsche pop”, presente na mídia e nas artes. Salvo raras exceções, é comum
observarmos tentativas de transformar Nietzsche em um produto “digerível” para um
grande público – com explícito apelo mercadológico. O resultado dessa adaptação é um
Nietzsche insosso, sem vigor. Não é nem sombra do grande Nietzsche, com toda a sua
agressividade destruidora de todos os valores vigentes – os mesmos valores que, hoje,
tentam amansá-lo... Nietzsche na mídia é uma coisa medonha... O homem reativo não
suporta a agressividade do autêntico pensamento e por isso tenta – através de todos os
meios que ele consegue encontrar – transformar o que lhe é estranho em um objeto
consumível e, portanto, útil à vida impotente... Não nos opomos à divulgação do
pensamento nietzscheano, mas o critério que invocamos já foi fornecido no preâmbulo
deste trabalho: quem fala sobre Nietzsche?... E o uso das suas idéias é para o poder ou
para a potência?... Observamos freqüentemente a filosofia de Nietzsche ser comentada
através de uma linguagem institucional gregária, que torna a assimilação mais fácil,
atendendo perfeitamente aos interesses vulgares de um público enfermo, que exige uma
transmissão de idéias sem complicações... Trata-se de um atentado contra o pensamento
de Nietzsche... Por covardia de perderem os “benefícios” que um “eu” lhes oferece,
muitos comentadores não vivem aquilo que Nietzsche nos convida (a vida autônoma);
por conseqüência, contentam-se em esmiuçar detalhes menos importantes no contexto
do seu pensamento, deixando de lado as idéias que mais lhes incomodam...
Conciliar Nietzsche com os mais diversos interesses egoístas e mercadológicos,
é uma postura profundamente asquerosa, que não pode deixar de ser denunciada.
Portanto, para não nos contaminar pelos modismos intelectuais que, através da roda do
eterno retorno, perecerão inevitavelmente, encerramos este trabalho com um convite à
construção ética do mundo:

“Homens preparatórios. – Eu saúdo todos os sinais de que se aproxima uma época mais
viril, guerreira, que voltará a honrar acima de tudo a valentia! Ela deve abrir caminho
para uma época ainda superior e juntar as forças de que esta precisará – a época que
levará heroísmo para o conhecimento e travará guerras em nome dos pensamentos e das
conseqüências deles. Para isto são agora necessários muitos homens preparatórios
valentes, que certamente não podem surgir do nada – muito menos da areia e do lodo da
atual civilização e educação citadina; homens que, silenciosos, solitários, resolutos,

56
saibam estar satisfeitos e ser constantes na atividade invisível; homens interiormente
inclinados a buscar, em todas as coisas, o que nelas deve ser superado; homens cuja
animação, paciência, singeleza e desprezo das grandes vaidades seja tão característica
quanto a generosidade na vitória e a indulgência para com as pequenas vaidades dos
vencidos; homens de juízo agudo e livre acerca dos vencedores e do quinhão de acaso
que há em toda vitória e toda glória; homens com suas próprias festas, dias de trabalho e
momentos de luto, habituados e seguros no comandar e também prontos a obedecer,
quando for o caso, igualmente orgulhosos nas duas situações, igualmente servindo a
própria causa; homens mais ameaçados, mais fecundos e felizes! Pois, creiam-me! – o
segredo para colher da vida a maior fecundidade e a maior fruição é: viver
perigosamente! Construam suas cidades próximo ao Vesúvio! Mandem seus navios por
mares inexplorados! Vivam em guerra com seus pares e consigo mesmos! Sejam
salteadores e conquistadores enquanto não puderem ser governantes e possuidores,
vocês, homens do conhecimento! Logo passará o tempo em que podiam se contentar de
viver ocultos nas florestas, como cervos amedrontados! Enfim o conhecimento
estenderá a mão para o que lhe é devido: – ele quererá dominar e possuir, e vocês
juntamente com ele!” 148

57
NOTAS

Foto da capa: “Friedrich Nietzsche”, 1906, pintura a óleo de Edvard Munch.

1. Vontade de Potência. Coleção “Os Pensadores – Nietzsche”, pág. 447. Nova Cultural.
2. O Anticristo, Prólogo. Edições 70: “Ouvidos novos para uma nova música.”
3. O Caso Wagner, Prólogo. Companhia das Letras.
4. KLOSSOWSKI, Pierre. Nietzsche e o Círculo Vicioso, Tentativa de uma explicação científica do
eterno retorno, pág. 120. Pazulin. No mesmo livro, Klossowski cita uma carta de Nietzsche a Jacob
Burckhardt, de 5 de Janeiro de 1889: “Eu sou Prado, sou o pai de Prado, ouso dizer que sou também
Lesseps [...] O que é desagradável e incomoda minha modéstia é que, no fundo, cada nome da história sou
eu.” (pág. 266)
5. Ecce Homo, Prólogo, 2. Companhia das Letras.
6. Crepúsculo dos Ídolos, O problema de Sócrates, 1, Relume Dumará.
7. Idem, 3: “Sócrates era plebe.”
8. Genealogia da Moral, Primeira dissertação, 10: “A rebelião escrava na moral começa quando o
próprio ressentimento se torna criador e gera valores.”
9. Além do Bem e do Mal, 251. Companhia das Letras: “Mas os judeus são, sem qualquer dúvida, a raça
mais forte, mais tenaz e mais pura que atualmente vive na Europa.”
10. Genealogia da Moral, Primeira dissertação, 16.
11. Idem, Primeira dissertação, 10.
12. Além do Bem e do Mal, 259.
13. DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia, Conclusão. Rés.
14. Vontade de Potência. Coleção “Os Pensadores” – Nietzsche”, pág. 450. O tradutor, Rubens
Rodrigues Torres Filho, preferiu utilizar a palavra “vir-a-ser”, em vez de “devir”. Embora tenha utilizado
durante todo o trabalho a palavra “devir”, mantive a expressão utilizada pelo tradutor por entender que
não há maiores problemas na apreensão do conceito.
15. DELEUZE, Gilles. Nietzsche, pág. 18. Edições 70.
16. Trecho de um fragmento póstumo de Nietzsche extraído de Nietzsche e o Círculo Vicioso, de Pierre
Klossowski, pág. 134.
17. Assim Falou Zaratustra, Dos três males. Círculo do Livro.
18. Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 12.
19. Vontade de Potência. Coleção “Os Pensadores – Nietzsche”, pág. 445.

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20. Trata-se de um “querer-agradar-aos-outros”, com enorme prejuízo para o diligente, conforme A Gaia
Ciência, 21. Companhia das Letras.
21. Vontade de Potência. Coleção “Os Pensadores – Nietzsche”, pág. 445.
22. No livro Nietzsche e a Filosofia, Deleuze faz uma profunda exposição sobre as duas qualidades das
forças, no capítulo 2, “Activo e Reativo”.
23. Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 12.
24. Idem, Segunda dissertação, 12.
25. Idem, Primeira dissertação, 13.
26. A Gaia Ciência, 21.
27. Idem, 21.
28. Humano, Demasiado Humano, 283. Companhia das Letras.
29. 3º Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador, 1. Edições Loyola
30. Crepúsculo dos Ídolos, O que falta aos alemães, 7. Ainda sobre a crítica do ensino, no mesmo texto,
seção 5: “E por toda parte reina uma pressa indecente, como se fosse um falta grave para o homem jovem
ainda não estar ‘pronto’ aos 23 anos, ainda não saber responder à ‘pergunta principal’: que profissão
escolher? – Um tipo superior de homem, seja dito com vossa permissão, não ama ‘profissões’,
exatamente pelo fato de se saber diante de um chamamento... Ele tem tempo, ele toma o tempo para si, -
ele não pensa de modo algum em ficar ‘pronto’. Com trinta anos se é, no sentido da cultura superior, um
principiante, uma criança.”
31. Estamira, filme-documentário de Marcos Prado, 2005. É interessante como Estamira desconstrói o
discurso do poder, seja divino (“Deus e sua quadrilha”) ou humano (o ataque à Psiquiatria, aos cientistas
“trocadilos”). Ela tocou no problema da cumplicidade que alimenta as relações de poder ao dizer que não
há mais “inocentes” e, sim, “espertos ao contrário”. Sem cair nas distinções vulgares das relações entre
classes sociais, ela diz que o “homem inventou Deus”, mostrando que os homens não são vítimas, mas
cúmplices ao colocarem-se como penhor.
32. Além do Bem e do Mal, 13. Na tradução brasileira utilizada, de Paulo César de Souza, está escrito
“vontade de poder”. Alguns tradutores brasileiros (como Rubens Rodrigues Torres Filho) deram
preferência para “vontade de potência”, já que a palavra “poder” pode levar o leitor a remeter ao poder
que Nietzsche tanto atacou. O “poder”, no sentido afirmativo, refere-se a um aumento da capacidade de
existir, uma espécie de “poder mais” do que se podia num estado anterior (embora isso também aconteça
no sentido da impotência, ou seja, o poder da representação também fornece essa sensação, efêmera, de
“poder mais”, que pode ser definida como “vontade de ter o poder” pela representação). Como eu utilizei
a palavra “potência” durante todo este trabalho, tomei a liberdade de alterar a tradução apenas nessa
expressão.
33. Ecce Homo, Por que sou tão sábio, 6.
34. Idem, Por que sou tão inteligente, 10.
35. Ecce Homo, Sobre “Humano, demasiado humano”, 1. “Humano, demasiado humano é o monumento
de uma crise. Ele se proclama um livro para espíritos livres: quase cada frase, ali, expressa uma vitória –
com ele me libertei do que não pertencia à minha natureza [...] um espírito tornado livre, que de si
mesmo de novo tomou posse. O tom, o timbre da voz mudou inteiramente...”

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36. Assim Falou Zaratustra, De velhas e novas tábuas, 16.
37. Idem, Da virtude dadivosa, 1.
38. 2º Consideração Intempestiva, 1. Relume Dumará: “Quem não pode se instalar no limiar do instante,
esquecendo todo passado, quem não consegue firmar pé em um ponto como uma divindade da vitória sem
vertigem e sem medo, nunca saberá o que é felicidade, e ainda pior: nunca fará algo que torne os outros
felizes.”
39. Genealogia da Moral, Primeira dissertação, 10.
40. O Anticristo, 2. Edições 70: “O que é a felicidade? – O sentimento de que a potência cresce, de que
uma resistência foi vencida”. Na tradução de Artur Morão está escrito “sentimento de que o poder
cresce”. Troquei a palavra “poder” por “potência” pelo mesmo motivo da nota 32.
41. Genealogia da Moral, Primeira dissertação, 10.
42. Ecce Homo, Por que sou tão sábio, 6.
43. DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia, Conclusão.
44. LA BOÉTIE, Etienne de. Discurso da Servidão Voluntária, pág. 12, 13 e 14. Editora Brasiliense.
45. Idem, pág. 20.
46. Deleuze vai chamar esse estado bruto de aspecto topológico. O aspecto tipológico é quando o
ressentimento toma forma (conforme Nietzsche e a Filosofia, Do ressentimento à má consciência, pág.
186). Veremos que esses dois aspectos também existem na má consciência.
47. Ecce Homo, Por que sou tão inteligente, 9.
48. Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 1.
49. Idem, Segunda dissertação, 1. O oposto dessa reação, a reativa, é o não esquecimento das imagens,
re-agindo às imagens alojadas na consciência.
50. Idem, Primeira dissertação, 10.
51. Assim Falou Zaratustra, Da virtude amesquinhadora, 3
52 Ecce Homo, Por que sou tão sábio, 6.
53. Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 1.
54. Idem, Terceira dissertação, 28: “A falta de sentido do sofrer, não o sofrer, era a maldição que até
então se estendia sobre a humanidade – e o ideal ascético lhe ofereceu um sentido!”
55. Idem, Terceira dissertação, 28.
56. Idem, Terceira dissertação, 15.
57. Idem, Primeira dissertação, 11.
58. Idem, Primeira dissertação, 10. Aqui, Nietzsche utiliza a expressão “moral nobre” (como modo de
vida ativo) apenas para contrapor à “moral dos escravos”, já que é evidente o que significa a “moral” na
filosofia de Nietzsche: o lugar do “bem” e do “mal”.
59. Idem, Primeira dissertação, 10. Neste outro trecho (Genealogia da Moral, Primeira dissertação, 13),
Nietzsche nos diz sobre como a vingativa astúcia da impotência imagina: “‘[...] sejamos outra coisa que
não os maus, sejamos bons! E bom é todo aquele que não ultraja, que a ninguém fere, que não ataca, que
não acerta contas, que remete a Deus a vingança, que se mantém na sombra como nós, os pacientes,
humildes, justos’.”
60. Idem, Primeira dissertação, 13.

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61. Idem, Primeira dissertação, 13.
62. Idem, Segunda dissertação, 11.
63. Idem, Terceira dissertação, 14.
64. A Gaia Ciência, 273. Causar vergonha como meio para diminuir as forças ativas do outro: “A quem
você chama de ruim? – Àquele que quer sempre envergonhar”. No aforismo seguinte, 274, do mesmo
livro, Nietzsche nos mostra que o homem nobre age de modo oposto: “Qual a coisa mais humana para
você? – Poupar alguém da vergonha.”
65. Idem, 294.
66. Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 16.
67. Idem, Segunda dissertação, 16.
68. Idem, Segunda dissertação, 22. Sobre a espiritualização da dor, como dívida para com Deus: “[...]
essa vontade de torturar, essa crueldade reprimida do bicho-homem interiorizado, acuado, dentro de si
mesmo, aprisionado no ‘Estado’ para fins de domesticação, que inventou a má consciência para se fazer
mal, depois que a saída mais natural para esse querer-fazer-mal fora bloqueada – esse homem da má
consciência se apoderou da suposição religiosa para levar seu automartírio à mais horrenda culminância.
Uma dívida para com Deus: este pensamento tornou-se para ele um instrumento de suplício.”
69. Idem, Terceira dissertação, 15.
70. Idem, Terceira dissertação, 15.
71. O Anticristo, 42: “[...] com Paulo, o sacerdote quis mais uma vez o poder – e só podia utilizar
conceitos, doutrinas, símbolos, por meio dos quais se tiranizam as multidões e se formam rebanhos”.
72. Idem, 58.
73. Genealogia da Moral, Terceira dissertação, 15. “Ele traz ungüento e bálsamo, sem dúvida: mas
necessita primeiro ferir, para ser médico; e quando acalma a dor que a ferida produz, envenena no mesmo
ato a ferida.”
74. Idem, Segunda dissertação, 21.
75. O Anticristo, 14.
76. 3º Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador, 6.
77. DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia, pág. 204.
78. Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 12.
79. Idem, Segunda dissertação, 14.
80. Idem, Segunda dissertação, 3.
81. Idem, Segunda dissertação, 7.
82. Idem, Segunda dissertação, 23.
83. Idem, Segunda dissertação, 15.
84. CLASTRES, Pierre. A Sociedade Contra o Estado. Da tortura nas sociedades primitivas. Cosac &
Naify, pág. 199. Na mesma edição da Cosac & Naify (2003), há uma entrevista de Pierre Clastres que,
entre outros assuntos, fala sobre a influência de Nietzsche no texto “Da tortura nas sociedades
primitivas”: “Posso reconhecer e afirmar claramente a influência de Nietzsche, sobretudo da Genealogia
da Moral [...] A gente percebe que alguém como Nietzsche, que provavelmente desconhecia e era

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indiferente (com razão) à etnologia de sua época, via com clareza infinitamente maior que todos em sua
época a questão da memória, da marca...” (pág. 265).
85. Idem, Da tortura nas sociedades primitivas, pág. 201.
86. Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 1.
87. Idem, Segunda dissertação, 10.
88. Idem, Segunda dissertação, 2.
89. 3º Consideração Intempestiva, 6.
90. O Anticristo, 57.
91. A Gaia Ciência, 118.
92. Na obra Sociedade Contra o Estado, Pierre Clastres nos mostra os diversos mecanismos que as
sociedades primitivas utilizam para esconjurar o Estado. O principal mecanismo é fazer com que o chefe
da tribo não se torne um déspota, ao obrigá-lo a executar tarefas que o impedem de exercer um poder
central.
93. Vontade de Potência. Coleção “Os Pensadores – Nietzsche”, pág. 436.
94. O Anticristo, 7.
95. Genealogia da Moral, Terceira dissertação, 28.
96. Ou “categorias da razão”, conforme Vontade de Potência, Coleção “Os Pensadores – Nietzsche”, pág.
431: “A crença nas categorias da razão é a causa do niilismo – medimos o valor do mundo por
categorias, que se referem a um mundo puramente fictício”.
97. Idem, pág. 430.
98. Crepúsculo dos Ídolos, A “razão” na filosofia, 6.
99. Vontade de Potência. Coleção “Os Pensadores – Nietzsche”, pág. 430. Também em Crepúsculo dos
Ídolos, Como o “mundo verdadeiro” acabou por se tornar fábula: “O mundo verdadeiro – inatingível? De
qualquer modo não atingido. E, enquanto não atingido, também desconhecido. Conseqüentemente
tampouco consolador, redentor, obrigatório: Ao que é que algo de desconhecido poderia nos obrigar?...”
100. A Gaia Ciência, 125.
101. Vontade de Potência. Coleção “Os Pensadores – Nietzsche”, pág. 432.
102. Genealogia da Moral, Terceira dissertação, 25.
103. O que é hoje, por exemplo, a história? Apenas uma “objetividade” que serve para subjugar o
passado, conforme a 2º Consideração Intempestiva, 6, pág. 51: “Aqueles historiadores ingênuos chamam
‘objetividade’ à mensuração de opiniões e feitos passados a partir das opiniões mais disparatadas do
momento; aqui eles encontram o cânone de todas as verdades; seu trabalho é adequar o passado à
trivialidade contemporânea.”
104. Vontade de Potência. Coleção “Os Pensadores – Nietzsche”, pág. 431.
105. SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação, livro IV, pág. 430.
Contraponto.
106. Idem, pág. 430.
107. Assim Falou Zaratustra, Livro I: O prólogo de Zaratustra, 5.
108. O budismo, para Nietzsche, “é cem vezes mais realista do que o cristianismo” (O Anticristo, 20),
embora também seja uma religião niilista. Livrar-se dos afetos nocivos do ressentimento, respeitar as

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outras doutrinas religiosas, por exemplo, fazem do budismo uma espécie de “higiene” (Ecce Homo, Por
que sou tão sábio, 6).
109. Vontade de Potência. Coleção “Os Pensadores – Nietzsche”, pág. 435: “O sucumbir se apresenta
como um se-fazer-sucumbir, como uma instintiva seleção daquilo que destrói necessariamente. Sintomas
dessa autodestruição dos enjeitados: a autovivissecção, o envenenamento, embriaguez, romantismo [...] a
vontade de destruição como vontade de um instinto ainda mais profundo, o instinto de autodestruição, a
vontade de cair no nada.”
110. Idem, pág. 433. Nietzsche diz isso no contexto do terceiro estado psicológico do niilismo. A posição
extrema inversa desse niilismo refere-se à descrença nos valores divinos e humanos, mas ainda de modo
passivo. Utilizei este fragmento póstumo para entendermos que podemos pensar numa outra posição
extrema inversa ativa, que é a do niilismo ativo, ou seja, um niilismo radical. Podemos dizer também que
a “emoção psicológica” do niilista passivo (o “nada” eterno), difere-se radicalmente da “emoção
psicológica” experimentada pelo niilista ativo.
111. Idem, pág. 435.
112. Idem, pág. 445.
113. Assim Falou Zaratustra, Livro I: Das três metamorfoses.
114. Idem, O prólogo de Zaratustra, 5. Mas isso não quer dizer que, necessariamente, ocorrerá esta
reversão (embora ela ocorra no discurso das “Três Metamorfoses”). Daí o alerta de Zaratustra: “Ai de
nós! Aproxima-se o tempo em que o homem não dará mais à luz nenhuma estrela.” (O prólogo de
Zaratustra, 5). Portanto, a superação do homem apenas se dará pelo niilismo ativo. O problema que
levantamos aqui é a importância do homem em alcançar este estado de suprema negação.
115. Crepúsculo dos Ídolos, A “razão” na filosofia, 6.
116. Assim Falou Zaratustra, Livro I: Das três metamorfoses. Outro trecho sobre a importância do Não
do leão: “Conquistar o direito de criar novos valores – essa é a mais terrível conquista para o espírito de
suportação e de respeito. Constitui para ele, na verdade, um ato de rapina e tarefa de animal rapinante”.
117. Idem, Livro I: Das três metamorfoses.
118. Vontade de Potência. Coleção “Os Pensadores – Nietzsche”, pág. 433.
119. Ecce Homo. Sobre Assim Falou Zaratustra, 1.
120. Fragmentos Póstumos (1881). Coleção “Os Pensadores – Nietzsche”, pág. 442: “Guardemo-nos de
ensinar um tal ensinamento como um súbita religião! Ele tem de embeber lentamente, gerações inteiras
têm de edificar nele e nele tornar-se fecundas –, para que ele se torne uma grande árvore, que dê sombra a
toda a humanidade que virá! O que são alguns milênios, nos quais o cristianismo se conservou! Para o
mais poderoso dos pensamentos é preciso muitos milênios –, por muito, muito tempo ele tem de ser
pequeno e impotente.”
121. A Gaia Ciência, 341.
122. Vontade de Potência. Coleção “Os Pensadores – Nietzsche”, pág. 435.
123. Idem, pág. 436.
124. KLOSSOWSKI, Pierre. Nietzsche e o Círculo Vicioso. O círculo vicioso como doutrina seletiva.
pág. 148.
125. Ecce Homo. Por que sou um destino, 1.

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126. Vontade de Potência. Coleção “Os Pensadores – Nietzsche”, pág. 434.
127. Ecce Homo, Prólogo.
128. Vontade de Potência. Coleção “Os Pensadores – Nietzsche”, pág. 434.
129. Idem, pág. 447: “O velho hábito, porém, de pensar alvos em todo acontecer e um deus criador e
dirigente no mundo é tão poderoso que o próprio pensador tem dificuldade para não pensar a ausência de
alvo no mundo, mais uma vez como intenção”.
130. A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos, IV: “Primeiro [Anaximandro], pergunta a si mesmo: ‘Se
há, em geral uma unidade eterna, como é que a multiplicidade é possível?’ E recebe a resposta do caráter
contraditório desta multiplicidade que a si se devora e se nega. A existência desta multiplicidade torna-se
para ele um fenômeno moral; não se justifica, mas expia-se incessantemente pelo declínio. Mas então
ocorre-lhe a questão: ‘Porque é que tudo o que entrou no devir não pereceu já há muito, uma vez que já
se passou uma eternidade de tempo? De onde provém a torrente sempre renovada do devir?’ Ele só sabe
livrar-se desta questão mediante novas hipóteses místicas: o devir eterno só pode ter a sua origem no ser
eterno, as condições que levam o ser a cair num devir em injustiça são sempre as mesmas, a constelação
das coisas é feita de maneira a não se poder prever termo algum para esta agressão do ser individual do
seio do ‘indefinido’. Anaximandro ficou por aqui: quer dizer, ficou nas sombras profundas que cobriam
como fantasmas gigantescos o cume de uma tal contemplação do mundo.”
131. Vontade de Potência. Coleção “Os Pensadores – Nietzsche”, pág. 447.
132. Idem, pág. 450.
133. A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos, V. Sobre Heráclito, diz Nietzsche: “[...] já não distingue
um mundo físico e um mundo metafísico, um domínio de qualidades definidas e um domínio da
indeterminação indefinível. Após este primeiro passo, também já não pôde coibir-se de uma maior
audácia da negação: negou o ser em geral [...] Heráclito exclamou mais alto do que Anaximandro: ‘Só
vejo o devir. Não vos deixeis enganar! É à vossa vista curta e não à essência das coisas que deve o fato de
julgardes encontrar terra firme no mar do devir e da evanescência.Usais os nomes das coisas como se
tivessem uma duração fixa; mas até o próprio rio, no qual entrais pela segunda vez, já não é o mesmo que
era da primeira vez’.”
134. DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. O Mistério de Ariadne Segundo Nietzsche. Editora 34.
135. Ditirambos Dionisíacos, extraído do livro Nietzsche, de Gilles Deleuze, pág. 79.
136. Assim Falou Zaratustra, Nas ilhas bem-aventuradas: “Tudo aquilo que em mim sente, sofre de estar
numa prisão; mas a minha vontade chega sempre como libertadora e portadora de alegria.”
137. Fragmentos Póstumos (1881). Coleção “Os Pensadores – Nietzsche”, pág. 442.
138. Idem, pág. 447.
139. Crepúsculo dos Ídolos, Sentenças e setas, 8: “O que não me mata torna-me mais forte.”
140. A Gaia Ciência, 276.
141. Genealogia da Moral, Primeira dissertação, 10: “Um homem tal sacode de si, com um movimento,
muitos vermes que em outros se enterrariam.”
142. Assim Falou Zaratustra, Da virtude amesquinhadora, 3.
143. Vontade de Potência. Coleção “Os Pensadores – Nietzsche”, pág. 444 e 445.
144. Ecce Homo, Sobre “Humano, demasiado humano”, 3.

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145. Idem, Sobre “Humano, demasiado humano”, 4.
146. Humano, Demasiado Humano, 289.
147. Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 12.
148. A Gaia Ciência, 283.

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AGRADECIMENTOS

Valter A. Rodrigues
Luiz Fuganti
Valéria Bernardes Ferreira
Amigos da Escola Nômade e do L’arco Baleno

Com afeto,

Amaurévski Ferreiravich

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