Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
M.N., J.C. Psicologia Da Composição
M.N., J.C. Psicologia Da Composição
PSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO
COMA
FÁBULA DE ANFION
E
ANTIODE
1946-1947
POESIA / PSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO
1. 0 DESERTO
"Riguroso horizonte.",
Jorge Guillén Anfion
chega ao
deserto
O deserto
JOÃO CABRAL DE MELO NETO / ÜBRA COMPLETA POESIA / PSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO
88
entreTebas, entre
oculta nas vagas
mãos frutíferas, entre
dobras da alva
a copada folhagem
distração; inseto
vencendo o silêncio
como um camelo de gestos, no verão
sobrevive à sede, que, único, lhe resta
ó acaso! O acaso e cujas rodas
súbito condensou:
em esfinge, na quisera fixar
cachorra de esfinge nas, ainda possíveis,
que lhe mordia secas planícies
a mão escassa;
que lhe roía da alma, Anfion,
o osso antigo ante Tebas, como
logo florescido a um tecido que
da flauta extinta:
áridas do exercício buscasse adivinhar
puro do nada. pelo avesso, procura
o deserto, Anfion.
*
Diz a mitologia Tebas se faz *
(arejadas salas, de "Esta cidade, Tebas, Lamento diante
nítidos enigmas não a quisera assim de sua obra
povoadas, mariscos de tijolos plantada,
ou simples nozes
cuja noite guardada que a terra e a flora
à luz e ao ar livre procuram reaver
persiste, sem se dissolver) a sua origem menor:
diz, do aéreo
parto daquele milagre:
como já distinguir
onde começa a hera, a argila,
Quando a flauta soou ou a terra acaba?
um tempo se desdobrou
do tempo, como uma caixa
Desejei longamente
de dentro de outra caixa.
liso muro, e branco,
puro sol em si
3; ANFION EM TEBAS
como qualquer laranja;
Entre Tebas, entre Anfion busca leve laje sonhei
a injusta sintaxe em Tebas largada no espaço.
que fundou, Anfion, o deserto perdido
JOÃO CABRAL DE MELO NETO / ÜBRA COMPLETA POESIA / PSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO 93
92
Onde a cidade
volante, a nuvem
civil sonhada?"
*
"Uma flauta: como Anfion e
dominá-la, cavalo aflauta PSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO
A Antonio Rangel Bandeira
solto, que é louco?
Como antecipar
a árvore de som
Saio de meu poema
de tal semente?
como quem lava as mãos.
daquele grão de vento
Algumas conchas tornaram-se,
recebido no açude
que o sol da atenção
a flauta cana ainda? cristalizou; alguma palavra
que desabrochei, como a um pássaro.
Uma flauta: como prever
suas modulações, Talvez alguma concha
cavalo solto e louco? dessas (ou pássaro) lembre,
côncava, o corpo do gesto
Como traçar suas ondas
extinto que o ar já preencheu; '
antecipadamente, como faz,
no tempo, o mar? talvez, como a camisa
vazia, que despi.
A flauta, eu a joguei
aos peixes surdos- II
mudos do mar." ALêdoivo
Eu me refugio
nesta praia pura
onde nada existe
em que a noite pouse.
Cultivar o deserto
aranha; como o mais extremo como um pomar às avessas:
desse fio frágil, que se rompe
ao peso, sempre, das mãos então, nada mais
enormes. destila; evapora;
onde foi maçã
VII
resta uma fome;
É mineral o papel
onde foi palavra
onde escrever
(potros ou touros
o verso; o verso
contidos) resta a severa
que é possível não fazer.
forma do vazio.
São minerais
as flores e as plantas,
as frutas, os bichos
quando em estado de palavra.
É mineral
a linha do horizonte,
nossos nomes, essas coisas
feitas de palavras.
da palavra escrita.
VIII
Cultivar o deserto
como um pomar às avessas.
(A árvore destila
a terra, gota a gota;
a terra completa
cai, fruto!
Enquanto na ordem
de outro pomar
a atenção destila
palavras maduras.)
JOÃO CABRAL DE MELO NETO / ÜBRA COMPLETA POESIA / PSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO 99
Depois, eu descobriria
que era lícito
te chamar: flor!
(Pelas vossas iguais
ANTIODE
(contra a poesia dita profunda) circunstâncias? Vossas
gentis substâncias? Vossas
A doces carnações? Pelos
virtuosos vergéis
Poesia, te escrevia:
flor! conhecendo de vossas evocações?
que és fezes. Fezes Pelo pudor do verso
como qualquer, - pudor de flor -
por seu tão delicado
gerando cogumelos
(raros, frágeis cogu- pudor de flor,
melos) no úmido que só se abre
calor de nossa boca. quando a esquece o
sono do jardineiro?)
Delicado, escrevta:
flor! (Cogumelos Depois eu descobriria
serão flor? Espécie que era lícito
estranha, espécie te chamar: flor!
(flor, imagem de
extinta de flor, flor
duas pontas, como
não de todo flor,
uma corda). Depois
mas flor, bolha
eu descobriria
aberta no maduro.)
as duas pontas
Delicado, evitava da flor; as duas
o estrume do poema, bocas da imagem
seu caule, seu ovário, da flor: a boca
suas intestinações. que come o defunto
espera de que se
c apodreça em poema,
prévia exalação
Como não invocar o da alma defunta.
vício da poesia: o
corpo que entorpece D
ao ar de versos?
Poesia, não será esse
(Ao ar de águas o sentido em que
mortas, injetando ainda te escrevo:
na carne do dia flor! (Te escrevo:
a infecção da noite.)
flor! Não uma
Fome de vida? Fome flor, nem aquela
de morte, freqüentação flor-virtude - em
da morte, como de disfarçados urinóis.)
algum cinema.
Flor é a palavra
O dia? Árido. flor, verso inscrito
Venha, então, a noite, no verso, como as
o sono. Venha, manhãs no tempo.
por isso, a flor.
Flor é o salto
da ave para o vôo;
Venha, mais fácil e o salto fora do sono
portátil na memória, quando seu tecido
o poema, flor no
colete da lembrança. se rompe; é uma explosão
posta a funcionar,
Como não invocar, como uma máquina,
sobretudo, o exercício uma jarra de flores.
do poema, sua prática,
sua lânguida horti- E
como a terceira
(como usá-la num
poema?) a terceira
das virtudes teologais.