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Retrato de João Cabral por Percy Deane

PSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO
COMA
FÁBULA DE ANFION
E
ANTIODE

1946-1947
POESIA / PSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO

A Lauro Escorei FÁBULA DE ANFION

1. 0 DESERTO
"Riguroso horizonte.",
Jorge Guillén Anfion
chega ao
deserto

O deserto
JOÃO CABRAL DE MELO NETO / ÜBRA COMPLETA POESIA / PSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO
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Sua mudez está assegurada Anfion pensa


Ali, é uma terra branca
se a flauta seca: ter encontrado
e ávida
será de mudo cimento, a esterilidade
como a cal.
não será um búzio que procurava
Ali, não há como pôr vossa tristeza
como a um livro a concha que é o resto
na estante.) de dia de seu dia:
exato, passará pelo relógio,
* como de uma faca o fio.
Ao sol do deserto Sua flauta
seca 2. ÜACASO
no silêncio atingido
como a uma amêndoa,
No deserto, entre os Encontro
sua flauta seca:
esqueletos do antigo com o acaso
sem a terra doce vocabulário, Anfion,
de água e de sono;
sem os grãos do amor no deserto, cinza
trazidos na brisa, e areia corno um ·
lençol, há dez dias
sua flauta seca:
como alguma pedra da última erva
ainda branca, ou lábios que ainda o tentou
ao vento marinho. acompanhar, Anfion,
* no deserto, mais, no
O sol do castiço linho do
(O sol do deserto
não intumesce a vida deserto meio-dia, Anfion,
corno a um pão.
agora que lavado
O sol do deserto de todo canto,
não choca os velhos em silêncio, silêncio
ovos do mistério.
desperto e ativo como
Mesmo os esguios, uma lâmina, depara
discretos trigais o acaso, Anfion.
não resistem a
*
ó acaso, raro O acaso ataca
o sol do deserto,
lúcido, que preside animal, força e faz soar
a essa fome vazia.) de cavalo, cabeça a flauta
que ninguém viu;
ó acaso, vespa
POESIA / PSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO 91
JOÃO CABRAL DE MELO NETO / ÜBRA COMPLETA
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entreTebas, entre
oculta nas vagas
mãos frutíferas, entre
dobras da alva
a copada folhagem
distração; inseto
vencendo o silêncio
como um camelo de gestos, no verão
sobrevive à sede, que, único, lhe resta
ó acaso! O acaso e cujas rodas
súbito condensou:
em esfinge, na quisera fixar
cachorra de esfinge nas, ainda possíveis,
que lhe mordia secas planícies
a mão escassa;
que lhe roía da alma, Anfion,
o osso antigo ante Tebas, como
logo florescido a um tecido que
da flauta extinta:
áridas do exercício buscasse adivinhar
puro do nada. pelo avesso, procura
o deserto, Anfion.
*
Diz a mitologia Tebas se faz *
(arejadas salas, de "Esta cidade, Tebas, Lamento diante
nítidos enigmas não a quisera assim de sua obra
povoadas, mariscos de tijolos plantada,
ou simples nozes
cuja noite guardada que a terra e a flora
à luz e ao ar livre procuram reaver
persiste, sem se dissolver) a sua origem menor:
diz, do aéreo
parto daquele milagre:
como já distinguir
onde começa a hera, a argila,
Quando a flauta soou ou a terra acaba?
um tempo se desdobrou
do tempo, como uma caixa
Desejei longamente
de dentro de outra caixa.
liso muro, e branco,
puro sol em si
3; ANFION EM TEBAS
como qualquer laranja;
Entre Tebas, entre Anfion busca leve laje sonhei
a injusta sintaxe em Tebas largada no espaço.
que fundou, Anfion, o deserto perdido
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Onde a cidade
volante, a nuvem
civil sonhada?"
*
"Uma flauta: como Anfion e
dominá-la, cavalo aflauta PSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO
A Antonio Rangel Bandeira
solto, que é louco?

Como antecipar
a árvore de som
Saio de meu poema
de tal semente?
como quem lava as mãos.
daquele grão de vento
Algumas conchas tornaram-se,
recebido no açude
que o sol da atenção
a flauta cana ainda? cristalizou; alguma palavra
que desabrochei, como a um pássaro.
Uma flauta: como prever
suas modulações, Talvez alguma concha
cavalo solto e louco? dessas (ou pássaro) lembre,
côncava, o corpo do gesto
Como traçar suas ondas
extinto que o ar já preencheu; '
antecipadamente, como faz,
no tempo, o mar? talvez, como a camisa
vazia, que despi.
A flauta, eu a joguei
aos peixes surdos- II
mudos do mar." ALêdoivo

Esta folha branca


me proscreve o sonho,
me incita ao verso
nítido e preciso.

Eu me refugio
nesta praia pura
onde nada existe
em que a noite pouse.

Como não há noite


cessa toda fonte;
como não há fonte
cessa toda fuga;
POESIA / PSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO 95
JOÃO CABRAL DE MELO NETO / ÜBRA COMPLETA
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(O descuido ficara aberto
como não há fuga de par em par;
nada lembra o fluir um sonho passou, deixando
de meu tempo, ao vento fiapos, logo árvores instantâneas
que nele sopra o tempo. coagulando a preguiça.)
III
V
Neste papel
pode teu sal Vivo com certas palavras,
virar cinza; abelhas domésticas.

pode o limão Do dia aberto


virar pedra; (branco guarda-sol)
o sol da pele, esses lúcidos fusos retiram
o trigo do corpo o fio de mel
virar cinza (do dia que abriu
também como flor)
(Teme, por isso,
a jovem manhã que na noite
sobre as flores (poço onde vai tombar
da véspera.) a aérea flor)
persistirá: louro
Neste papel
sabor, e ácido,
logo fenecem contra o açúcar do podTe.
as roxas, mornas
flores morais;
VI
todas as fluidas
flores da pressa;
todas as úmidas Não a forma encontrada
flores do sonho. como uma concha, perdida
nos frouxos areais
(Espera, por isso, como cabelos;
que a jovem manhã
te venha revelar não a forma obtida
as flores da véspera.) em lance santo ou raro,
tiro nas lebres de vidro
IV do invisível;
O poema, com seus cavalos,
mas a forma atingida
quer explodir como a ponta do novelo
teu tempo claro; romper que a atenção, lenta,
seu branco fio, seu cimento
desenrola,
mudo e fresco.
--~~··· ·~------------

POESIA / PSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO 97


JOÃO CABRAL DE MELO NETO/ ÜBRA COMPLETA

Cultivar o deserto
aranha; como o mais extremo como um pomar às avessas:
desse fio frágil, que se rompe
ao peso, sempre, das mãos então, nada mais
enormes. destila; evapora;
onde foi maçã
VII
resta uma fome;
É mineral o papel
onde foi palavra
onde escrever
(potros ou touros
o verso; o verso
contidos) resta a severa
que é possível não fazer.
forma do vazio.
São minerais
as flores e as plantas,
as frutas, os bichos
quando em estado de palavra.

É mineral
a linha do horizonte,
nossos nomes, essas coisas
feitas de palavras.

É mineral, por fim,


qualquer livro:
que é mineral a palavra
escrita, a fria natureza

da palavra escrita.

VIII

Cultivar o deserto
como um pomar às avessas.

(A árvore destila
a terra, gota a gota;
a terra completa
cai, fruto!

Enquanto na ordem
de outro pomar
a atenção destila
palavras maduras.)
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Depois, eu descobriria
que era lícito
te chamar: flor!
(Pelas vossas iguais
ANTIODE
(contra a poesia dita profunda) circunstâncias? Vossas
gentis substâncias? Vossas
A doces carnações? Pelos
virtuosos vergéis
Poesia, te escrevia:
flor! conhecendo de vossas evocações?
que és fezes. Fezes Pelo pudor do verso
como qualquer, - pudor de flor -
por seu tão delicado
gerando cogumelos
(raros, frágeis cogu- pudor de flor,
melos) no úmido que só se abre
calor de nossa boca. quando a esquece o
sono do jardineiro?)
Delicado, escrevta:
flor! (Cogumelos Depois eu descobriria
serão flor? Espécie que era lícito
estranha, espécie te chamar: flor!
(flor, imagem de
extinta de flor, flor
duas pontas, como
não de todo flor,
uma corda). Depois
mas flor, bolha
eu descobriria
aberta no maduro.)
as duas pontas
Delicado, evitava da flor; as duas
o estrume do poema, bocas da imagem
seu caule, seu ovário, da flor: a boca
suas intestinações. que come o defunto

Esperava as puras, e a boca que orna


transparentes florações, o defunto com outro
nascidas do ar, no ar, defunto, com flores,
como as brisas. - cristais de vômito.
POESIA / PSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO 101
100 JOÃO CABRAL DE MELO NETO/ ÜBRA COMPLETA

espera de que se
c apodreça em poema,
prévia exalação
Como não invocar o da alma defunta.
vício da poesia: o
corpo que entorpece D
ao ar de versos?
Poesia, não será esse
(Ao ar de águas o sentido em que
mortas, injetando ainda te escrevo:
na carne do dia flor! (Te escrevo:
a infecção da noite.)
flor! Não uma
Fome de vida? Fome flor, nem aquela
de morte, freqüentação flor-virtude - em
da morte, como de disfarçados urinóis.)
algum cinema.
Flor é a palavra
O dia? Árido. flor, verso inscrito
Venha, então, a noite, no verso, como as
o sono. Venha, manhãs no tempo.
por isso, a flor.
Flor é o salto
da ave para o vôo;
Venha, mais fácil e o salto fora do sono
portátil na memória, quando seu tecido
o poema, flor no
colete da lembrança. se rompe; é uma explosão
posta a funcionar,
Como não invocar, como uma máquina,
sobretudo, o exercício uma jarra de flores.
do poema, sua prática,
sua lânguida horti- E

cultura? Pois estações Poesia, te escrevo


há, do poema, como agora: fezes, as
da flor, ou como fezes vivas que és.
no amor dos cães; Sei que outras

palavras és, palavras


e mil mornos
impossíveis de poema.
enxertos, mil maneiras
Te escrevo, por isso,
de excitar negros
fezes, palavra leve,
êxtases; e a morna
JOÃO CABRAL DE MELO NETO / ÜBRA COMPLETA
102

contando com sua


breve. Te escrevo
cuspe, cuspe, não
mais; tão cuspe

como a terceira
(como usá-la num
poema?) a terceira
das virtudes teologais.

FIM DE "PSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO"

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