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Direito público e processo

Alexandre Levin
Doutor e Mestre em Direito do Estado pela PUC-SP. Professor do Curso de Especialização em
Direito Administrativo da COGEAE/PUC-SP. Procurador do Município de São Paulo. Advogado
em São Paulo.

Sumário: 1 Considerações preliminares – 2 Conceito jurídico e funções do processo – 3 Fundamentos


para uma teoria geral do processo – 4 Processo como categoria jurídica do direito público – 5 Processo
legislativo – 6 Processo jurisdicional – 7 Processo administrativo – 8 Processo e procedimento – 9 Panorama
das garantias constitucionais das pessoas nos processos estatais – Referências

1  Considerações preliminares
Esse capítulo destina-se à abordagem de um conceito jurídico fundamental para
o estudo do direito público.
Trata-se do conceito de processo. Esse será o objeto de investigação nas pági-
nas seguintes.
Contudo, antes de iniciar o tratamento da matéria, vamos delimitar o nosso
objeto de estudo.
Toda investigação científica deve passar por esse momento inicial de definição
do objeto a ser examinado. Esses limites podem ser mais facilmente definidos se
soubermos formular as perguntas corretas sobre o que será abordado.
Pois bem. Neste trabalho, buscar-se-á responder as seguintes questões:
a) qual o conceito jurídico de processo? b) processo é uma categoria jurídica
presente somente no direito público? c) há uma teoria geral do processo? d) quais
são as características comuns a todas as espécies de processo previstas no ordena-
mento (processo legislativo, processo administrativo e processo jurisdicional)? e) há
aspectos comuns a todas as modalidades de processo, a ponto de concluirmos pela
existência da teoria geral do processo? f) quais as diferenças entre essas espécies
de processo? g) qual é função do processo? h) quais são os princípios jurídicos fun-
damentais do direito processual?
Buscaremos responder a todas essas questões, não necessariamente na or-
dem apresentada.

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2  Conceito jurídico e funções do processo


Processo é ação continuada, realização contínua e prolongada de alguma ati-
vidade; seguimento, curso, decurso.1 Uma sucessão de acontecimentos, de altera-
ções. A vida de cada um de nós é um processo, que se inicia com o nascimento e
termina com a morte.
Ocorre que há processos que são regidos por normas, ou seja, há casos em que
esse fluxo de fatos é disciplinado por regras. Essas regras transformam o processo
em uma sucessão ordenada de atos e fatos, que visa atingir um objetivo específico.
Para o estudo do direito, é essa modalidade de processo que interessa. O
processo como categoria jurídica funciona desse modo. Há regras jurídicas que disci-
plinam essa sequência de atos e fatos, com vistas a alcançar uma finalidade especí-
fica, também determinada por lei.2
Perceba que utilizamos a expressão “sequência de atos e fatos”. Isso quer
dizer o seguinte: o processo como categoria jurídica (processo legislativo, processo
jurisdicional e processo administrativo) é formado não só por atos de vontade (a
aprovação de uma lei no Congresso, uma sentença judicial, um ato administrati-
vo), mas também por outros fatos jurídicos, cuja ocorrência influencia o andar da
carruagem processual – por exemplo, o transcurso do prazo para contestar a ação
judicial, que torna o réu revel; a perda do prazo de interposição de recurso, da qual
resulta o trânsito em julgado da decisão; a publicação do edital de um concurso
público no Diário Oficial, que faz iniciar o prazo para a inscrição dos candidatos; ou
a intimação via postal de um motorista para apresentar recurso contra a aplicação
de uma multa de trânsito. É certo que, em verdade, ato jurídico é uma espécie de fato
jurídico.3 Portanto, para facilitar o nosso estudo, passemos a chamar simplesmente

1
Grande Dicionário Houaiss. Disponível em: <https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v3-0/html/index.
htm#1>. Acesso em: 2 maio 2017.
2
Para Celso Antônio Bandeira de Mello, procedimento administrativo ou processo administrativo é uma
sucessão itinerária e encadeada de atos administrativos que tendem, todos, a um resultado final e conclusivo.
Para o autor, isto significa que para existir o procedimento ou processo cumpre que haja uma sequência
de atos conectados entre si, isto é, armados em uma ordenada sucessão visando a um ato derradeiro (...)
(BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2008,
p. 477). Perceba que o autor utiliza como sinônimos os termos processo e procedimento. A distinção entre
ambos será objeto de posterior análise neste trabalho.
3
Explica Maria Helena Diniz que o fato jurídico pode ser natural ou humano. O fato natural advém de fenôme-
no natural produtor de efeito jurídico, como a morte, por exemplo. Já o fato humano é o acontecimento que
depende da vontade humana. Pode ser: a) voluntário, se produzir efeitos jurídicos desejados pelo agente (ato
jurídico); ou b) involuntário, se produzir efeitos jurídicos alheios à vontade do agente (ato ilícito que gera obri-
gação de indenizar. O ato jurídico, por sua vez pode ser unilateral (ato jurídico em sentido estrito) ou bilateral
(negócio jurídico) (DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p.
376-377). Há o fato jurídico processual (preclusão, trânsito em julgado, revelia) e o ato jurídico processual
(decisão judicial, decisão em recurso administrativo, sanção a um projeto de lei). Fato jurídico processual e ato
jurídico processual são aqui denominados de eventos processuais.

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de eventos processuais o conjunto de atos e fatos jurídicos que compõem o proces-


so como categoria jurídica.4
Tome-se como exemplo o processo legislativo. A Constituição Federal prescreve
diversas regras a respeito de como as leis devem ser produzidas. A edição de cada
um dos atos normativos indicados no art. 59 da Carta5 é o resultado de um processo,
isto é, de uma sequência de acontecimentos ordenados e destinados ao atingimento
de um objetivo. Há a fase da propositura do projeto de lei, da aprovação, da sanção,
da promulgação, da publicação. Nesse caso, a meta é produzir um ato normativo vá-
lido (por exemplo, uma lei ordinária), que deverá ser obedecido pelos seus destinatá-
rios, justamente porque sua edição respeitou as normas que disciplinam o processo
legislativo. A lei editada pode ser materialmente constitucional, ou seja, seu conteúdo
pode estar perfeitamente de acordo com o que prescreve a Constituição, mas se o
seu processo de criação não obedecer às regras que o disciplinam, o diploma legal
será inválido, formalmente inconstitucional.
O processo administrativo também se enquadra no conceito de processo acima
apresentado. A função administrativa do Estado é exercida, em regra, por meio do pro-
cesso administrativo,6 também aqui entendido como um conjunto ordenado de even-
tos destinado à produção de um ato administrativo final.7 Pensemos em um processo
de licitação realizado por um Município, que vise à contratação de uma empresa para

4
Nesse sentido a lição de Carlos Ari Sundfeld, que define o processo como o encadeamento necessário e
ordenado de atos e fatos destinado à formação ou execução de atos jurídicos cujos fins são juridicamente
regulados. Explica o autor que o processo não é um ato, mas a reunião, o complexo, de atos e fatos que
se produzem no tempo e que, não obstante cada etapa do processo cumprir sua própria função, há ligação
entre elas: servem logicamente como antecedentes e consequentes umas das outras (SUNDFELD, Carlos Ari.
Fundamentos de direito público. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, pp. 94-95).
5
Os arts. 59 a 69 da Constituição Federal regulam o processo legislativo e a Lei Complementar nº 95/98 dispõe
sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único
do art. 59 da Constituição Federal.
6
A função administrativa é exercida por meio da expedição de atos administrativos, os quais, por sua vez, são
produzidos por meio de um procedimento administrativo. Ou seja, em regra, a edição de um ato administrativo
obedece a um rito procedimental. Mas há uma exceção: trata-se, nos dizeres de Ricardo Marcondes Martins,
dos chamados atos solitários. O exemplo clássico, segundo o autor, é a ordem dada por um guarda de trânsi-
to: ao apitar ou fazer um gesto com as mãos, o guarda determina ao motorista de um veículo que pare. Essa
prescrição é um ato administrativo que não exige a prévia prática de qualquer outro ato jurídico; não tem, pois,
um requisito procedimental (MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios dos atos administrativos. São
Paulo: Malheiros, 2008, p. 149). Diogo de Figueiredo Moreira Neto utiliza a denominação ato administrativo
isolado para designar o ato administrativo que não apresenta vinculação necessária com ato anterior, nem
necessita de ato posterior para que venha a produzir todos os seus normais efeitos, desejados pelo agente.
Ainda segundo o autor, o ato administrativo articulado, ao contrário, é o que exige manifestação de vontade
antecedente ou consequente, ou ambas, pressupondo a existência de um procedimento administrativo. Nesse
último caso, as ações administrativas, por decorrerem de um processo, se submetem a critérios de controle
mais rigorosos (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo: parte introdutória, parte
geral e parte especial. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 168).
7
Para Silvio Luís Ferreira da Rocha, processo é uma relação jurídica formada por uma sucessão determinada
e concatenada de atos voltados a um resultado final e conclusivo. No processo administrativo, normalmente,
esse resultado é uma decisão ou a prática de um ato administrativo de ordenação ativa (ROCHA, Silvio Luís
Ferreira da. Manual de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 276).

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construir um hospital público. O procedimento licitatório8 é uma sucessão de eventos


(atos e fatos) ordenada por lei, que visa a um resultado final, qual seja, a contrata-
ção da obra. Note: o contrato (resultado final) somente será válido se as regras que
disciplinam a licitação tiverem sido respeitadas. Não importa o quão vantajosa seja a
contratação para o Poder Público: se o processo licitatório não foi realizado segundo
as regras que o disciplinam, o contrato é inválido, ilegal, e não pode produzir efeitos.
O mesmo ocorre em relação aos processos judiciais. O processo civil, o pro-
cesso penal, o processo trabalhista, o processo eleitoral, enfim, os processos que
tramitam junto aos diversos órgãos do Poder Judiciário são constituídos de atos e
fatos ordenados por meio de um rito legalmente estabelecido, que leva à produção
de um ato normativo denominado sentença, seu resultado final.9
Note o seguinte: as três formas de processo indicadas têm como meta a produ-
ção de um ato decisório, ou seja, um ato de poder que interfere na esfera jurídica de
terceiros, a criar direitos e obrigações. A lei que cria um imposto, por exemplo, institui
a obrigação de pagar aquele tributo, caso ocorrido o fato gerador previsto em seu
texto. O ato administrativo que decide um processo administrativo disciplinar deter-
mina a aplicação de determinada penalidade ao servidor público faltoso; o processo
administrativo tributário pode resultar na aplicação de multa à empresa fiscalizada.
Já a sentença é o ato que encerra o processo judicial, e pode condenar o réu a, por
exemplo, pagar determinada quantia ao autor, no caso do processo civil, ou à pena
de reclusão (prisão), na hipótese de processo penal.
Do exposto, sugerimos o seguinte conceito jurídico de processo: processo é a
sequência de eventos, regulada por lei, que visa à produção de um ato de poder do
Estado que interfere na esfera jurídica de terceiros, a criar direitos e obrigações.

2.1  Exercício dos poderes estatais por meio do processo


É possível afirmar que os poderes públicos são exercidos, portanto, por meio do
processo.10 Por meio do processo são produzidos tanto os atos normativos primários

8
A diferença entre processo e procedimento será tratada em outro momento.
9
Kelsen defende que a aplicação do Direito se dá tanto na produção de normas jurídicas gerais (leis e
costumes) como na edição de atos administrativos e nos contratos (atos jurídico-negociais). Afirma ainda que
os tribunais aplicam as normas jurídicas gerais ao estabelecerem normas individuais, determinadas, quanto
ao seu conteúdo, pelas normas jurídicas gerais, e nas quais é estatuída uma sanção concreta: uma execução
civil ou uma pena (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 263). A
sentença judicial é, pois, uma espécie de norma jurídica individual (vale apenas para as partes que litigam no
processo judicial).
10
Ao defender a existência de uma teoria geral do processo, Cândido Rangel Dinamarco afirma que direito
processual estatal é a disciplina do exercício do poder estatal pelas formas do processo legalmente instituídas
e mediante a participação do interessado, ou interessados (DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentali-
da­de do processo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 84). O poder estatal é exercido por meio do pro­
cesso, seja ele jurisdicional, administrativo ou legislativo.

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(atos legislativos) quanto os atos secundários (a sentença judicial e o ato adminis-


trativo). É por meio do processo que se editam atos gerais (por exemplo, as leis)11
ou individuais (a licença para construir, por exemplo). Em outros termos, do processo
resulta uma prescrição normativa, seja uma lei, seja uma decisão judicial, seja um
ato administrativo.12
Assim, por intermédio do processo, o Estado cumpre suas três funções: função
legislativa (processo legislativo), função jurisdicional (processo judicial) e função admi-
nistrativa (processo administrativo).13 O processo é, desse modo, instrumento do poder
público, ferramenta de que se vale o Estado para cumprir seus deveres constitucionais.
Em outras palavras, o Estado exerce suas competências legais mediante a
expedição de atos decisórios, que resultam da tramitação de processos. Perceba:
os processos são constituídos por atos de vontade do Estado e por atos materiais
(atos de execução), mas o seu resultado é uma decisão que cria, de forma unilateral,
direitos e obrigações.14

11
O certo é que, no processo legislativo em regime democrático e constitucional, há procedimentos a serem
observados, com a marca da legalidade e participação dos interessados, entendendo-se que ao legiferar
a maioria exerce o poder estatal; a abertura à participação do povo no processo legislativo através dos
representantes é a norma que legitima essa espécie de processo estatal não-jurisdicional (DINAMARCO,
Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 83-84).
12
De acordo com a teoria da construção escalonada elaborada por Hans Kelsen, as normas de um ordenamento
jurídico não estão todas no mesmo nível hierárquico. Há normas superiores e normas inferiores. As inferiores
dependem das superiores. Subindo das normas inferiores àquelas que se encontram mais acima, chega-se a
uma norma suprema, que não depende de nenhuma outra norma superior, e sobre a qual repousa a unidade do
ordenamento. Essa norma suprema é a norma fundamental (BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.
5. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1994, p. 49). Nesse sentido, são consideradas normas jurídicas não
somente a Constituição e as leis, mas também as sentenças e os atos administrativos. Todas essas espécies
normativas fazem parte do ordenamento jurídico e estão hierarquicamente organizadas, conferindo unidade ao
ordenamento jurídico. É por isso que se costuma descrever o ordenamento jurídico como uma pirâmide de
normas. No topo da pirâmide está a Constituição, seguida das leis (normas gerais e abstratas), e na base estão
as sentenças judiciais, os atos administrativos e os negócios jurídicos (normas individuais e concretas). Mas,
independentemente do grau hierárquico, leis, sentenças e atos administrativos são todas espécies de normas
jurídicas, produzidas por meio de um processo. Esse processo de produção de normas é regulado, por sua
vez, por outras normas jurídicas, que Bobbio classifica como normas de estrutura ou de competência (BOBBIO,
Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 5. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1994, p. 33). Na lição de Hans
Kelsen, legislação e costume são frequentemente designados como as duas ‘fontes’ do Direito, entendendo-
se aqui por Direito apenas as normas gerais do Direito estadual. Mas as normas jurídicas, prossegue o autor,
pertencem tanto ao Direito, são tão parte da ordem jurídica, como as normas jurídicas gerais com base na qual
são produzidas (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 258-259).
13
Afirma Cândido Rangel Dinamarco que o poder exercido pela Administração Pública por meio do processo
administrativo é o mesmo poder que os juízes exercem ‘sub specie jurisdictionis’, tendo-se verdadeiro pro-
cesso estadual lá e cá (DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 15. ed. São Paulo:
Malheiros, 2013, p. 83). Nas palavras de Cassio Scarpinella Bueno, o processo é característica da atuação do
Estado como um todo, assim entendidas as diversas funções do Estado. Também o ‘Estado-legislador’ (Poder
Legislativo) atua processualmente. Também o ‘Estado-administração’ (Poder Executivo) atua processualmen-
te. Assim, tanto o Poder Judiciário emite seus atos (sentenças) mediante ‘processo’, como o Poder Legislativo
emite seus atos (leis) mediante processo. E a Administração Pública não é alheia ou arredia a este ‘atuar
regrado’, este atuar ‘processualizado’. Ela também deve expedir seus atos, os atos administrativos, mediante
‘processo’ (BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito
processual civil. vol. 1. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 354).
14
Mesmo nos casos de processos de jurisdição voluntária, há a expedição de um ato normativo de competência
do judiciário – uma ordem ao cartório por exemplo. Já a expedição de certidões não produz atos administrativos,
já que a certidão não é uma declaração de vontade do Estado.

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Ora, em um Estado Democrático de Direito, o poder estatal deve ser limitado,


com vistas a evitar as arbitrariedades típicas de um Estado totalitário. Se o processo
é o instrumento do poder estatal, do agir do Estado, é possível concluir que as regras
que regulam o processo são, na realidade, um modo de limitar o poder estatal.15
Posto de outra forma: o processo é, ao mesmo tempo, instrumento do poder
público e um limite ao exercício desse poder.

2.2  Processo como limite ao poder estatal


À primeira vista, a conclusão a que chegamos no item anterior pode parecer pa-
radoxal. Como algo pode viabilizar o exercício do poder e, ao mesmo tempo, limitá-lo?
A resposta a essa questão está em outro conceito jurídico fundamental: o con-
ceito de função.16 Função é sinônimo de poder-dever.17 Isso significa que o Estado
utiliza os poderes de que goza, e que lhe são atribuídos pela lei, como instrumentos
para o cumprimento dos seus deveres, também previstos no ordenamento jurídico.
Dessa forma, o poder que o Estado tem de criar obrigações a terceiros (pessoas
físicas e jurídicas que se encontram em solo brasileiro) por meio do processo (legis-
lativo, administrativo e judicial) existe exatamente para viabilizar o cumprimento dos
deveres estatais.
O Estado adquire bens imóveis de particulares para construir obras públicas, e
o faz mediante o processo administrativo de desapropriação (função administrativa).
Edita leis que criam ao cidadão e às empresas a obrigação de pagar impostos, aten-
dendo às normas constitucionais que definem as competências tributárias (função

15
Especificamente sobre o processo administrativo, Canotilho explica que, na atualidade, a procedimentalização
é idéia corrente relativamente à função administrativa, devendo a atividade administrativa estar sujeita a
um procedimento que, sem aniquilar a eficiência da atividade administrativa, garanta a proteção jurídica dos
administrados (procedimento administrativo) (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e
Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998, p. 855).
16
O conceito de função não é exclusivo do direito público. Está presente também no direito privado. O curador
exerce sua função em prol do curatelado. O tutor em benefício do tutelado. Os pais em benefício de seus
filhos (poder familiar). De acordo com a já clássica lição de Santi Romano, as funções (‘officia’, ‘munera’)
são os poderes que se exercem não por interesse próprio, ou exclusivamente próprio, mas por interesse de
outrem ou por um interesse objetivo. Deles se encontram exemplos mesmo no direito privado (o pátrio-poder,
o ofício do executor testamentário, do tutor etc.), mas no direito público sua figura é predominante. Com
efeito, os interesses objetivos tutelados pelo Estado e os que nele se personificam são também interesses da
coletividade considerada no seu conjunto e prescindindo de cada um dos que a compõe: os poderes do Estado
são, em regra, funções (ROMANO, Santi. Princípios de Direito Constitucional Geral. Tradução de Maria Helena
Diniz. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1977, p. 145).
17
Ou dever-poder, como quer Celso Antônio Bandeira de Mello, para realçar o caráter instrumental dos poderes
da Administração. Nas palavras do autor, existe função quando alguém está investido no dever de satisfazer
dadas finalidades em prol do interesse de outrem, necessitando, para tanto, manejar os poderes requeridos
para supri-las. Logo, tais poderes são instrumentais ao alcance das sobreditas finalidades. Sem eles, o sujeito
investido na função não teria como desincumbir-se do dever posto a seu cargo. Donde, quem os titulariza
maneja, na verdade, ‘deveres-poderes’, no interesse alheio (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de
Direito Administrativo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, pp. 71-72).

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legislativa).18 Profere sentenças que decidem litígios entre pessoas, a cumprir o seu
dever de dizer o direito no conflito submetido ao seu julgamento (função jurisdicional).
Em suma: as funções (poderes-deveres estatais) são exercidas por meio de
decisões proferidas em um processo. O Estado não profere esses atos decisórios por
vontade própria e sim porque a lei assim determina.
É nesse sentido que deve ser entendida a afirmação de que o Estado exerce
seu poder por meio do processo: há, na realidade, o cumprimento de um poder-dever
e não simplesmente o exercício de um poder estatal.
Ocorre que o exercício das funções estatais gera, como visto, obrigações a ter-
ceiros, de forma unilateral. É por essa razão que o processo de tomada das decisões
dos poderes públicos deve ser regulado por lei. As normas que disciplinam os pro-
cessos estatais – que são, como visto, fontes de atos decisórios que repercutem na
esfera de direito alheio –, permitem que o exercício dos poderes-deveres do Estado
seja controlado. O direito processual figura, assim, como uma garantia ao cidadão.19
Busca-se afiançar que a esfera jurídica de qualquer pessoa somente seja atingida por
decisões proferidas em procedimentos regidos por regras pré-constituídas e bem de-
finidas. As regras do jogo devem ser claras. Independentemente do acerto ou não da
decisão final, é necessário que as normas que regulam o processo decisório sejam
respeitadas.20
Assim, a decisão do Estado de aplicar uma multa ambiental apenas poderá
ser considerada legítima se tiverem sido observadas as normas procedimentais do
processo administrativo ambiental sancionatório, especialmente as que asseguram
ao acusado a ampla defesa (CF, art. 5º, LV). Veja: ainda que a infração ao meio am-
biente tenha sido, de fato, cometida (desmatamento ilegal, por exemplo), a decisão
final do processo punitivo (ato administrativo que determina a aplicação da sanção ao

18
CF, arts. 153 a 156.
19
Cassio Scarpinella Bueno explica que o processo como método inerente à atuação do Estado – à produção da
vontade do Estado (uma vontade vinculada a determinados fins preestabelecidos, uma ‘vontade funcional’,
portanto) – deve ser entendido, amplamente, como forma de proteção dos direitos dos destinatários do ato,
ao mesmo tempo em que garante o melhor cumprimento das finalidades a serem perseguidas pelo próprio
Estado (BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito
processual civil. vol. 1. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 354). É por isso que o processo, diz o autor, é
método de atuação não de qualquer Estado, mas do Estado Democrático de Direito, em que o Poder Público
age “processualmente”, isto é, em consonância com um modelo prefixado que permita o escorreito exercício
do poder (BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito
processual civil. vol. 1. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 352).
20
Seja ao legislar ou ao realizar atos de jurisdição, o Estado exerce seu poder, o poder estatal. E, assim como
a jurisdição desempenha uma função instrumental perante a ordem jurídica substancial (para que esta se
imponha em casos concretos), assim também toda a atividade jurídica exercida pelo Estado (legislação e
jurisdição, consideradas globalmente) visa a um objetivo maior, que é a pacificação social. É antes de tudo
para evitar ou eliminar conflitos entre pessoas, fazendo justiça, que o Estado legisla, julga e executa (o escopo
social magno do processo e do direito como um todo). O processo é, nesse quadro, um instrumento a serviço
da paz social (CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel.
Teoria Geral do Processo. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 64).

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infrator) não será válida, caso as regras e princípios que disciplinam o procedimento
administrativo não forem respeitadas.21
O mesmo ocorre com o processo legislativo. Imagine uma lei que determine
o aumento da remuneração de certa categoria de servidores públicos da adminis-
tração direta federal. O aumento pode ser legítimo e permitido pela Constituição.
Pode haver, inclusive, verba orçamentária disponível para o aumento de despesa
com pessoal, dentro dos limites impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei
Complementar nº 101/2000, art. 18). Porém, se o projeto de lei tiver sido proposto
por um deputado federal, haverá um vício procedimental que torna inconstitucional o
diploma aprovado. Haverá flagrante invalidade no processo legislativo. Isso porque a
Constituição Federal determina ser privativa do Presidente da República a iniciativa da
lei que aumenta a remuneração dos servidores da administração direta (CF, art. 61,
§1º, II, a). Uma lei não pode ser editada sem o pleno respeito às normas que regulam
o seu processo de criação.
No processo judicial não é diferente. Há leis processuais (Código de Processo
Civil, Código de Processo Penal, dentre outras) que definem o rito procedimental que
deve ser obedecido, sob pena de invalidade da decisão final. É nulo o processo cível
no caso de ausência de citação do réu, ainda que a pretensão do autor da ação seja
legítima. É nula a sentença proferida no processo penal, caso o réu tenha sido conde-
nado exclusivamente com base em provas colhidas ilicitamente (escuta telefônica e
quebra de sigilo bancário não regularmente autorizadas, por exemplo).
Diante de tudo o que foi exposto, é possível afirmar a existência de uma teoria
geral do processo, que condensa as características comuns a todas as modalidades
de processo de que vale o Estado para o exercício dos seus poderes constitucional-
mente assegurados.22 Esses traços comuns serão objeto de análise a seguir.

21
E o sistema processual administrativo, no Estado-de-direito, regido por garantias e grandes princípios consti-
tucionalmente instalados, inclui a limitação do exercício do poder, definidos os seus limites em uma ordem
de legalidade que assegura a prevalência da cláusula ‘due process of law’; existem formas institucionalizadas
nos procedimentos administrativos, que não podem negar a participação do interessado (ou interessados),
nem o respeito à igualdade quando pertinente (v.g., licitações públicas), nem a ampla defesa (processo dis-
ciplinar). Tais e tantos pontos comuns, entre os muitos que marcam a analogia com o processo jurisdicional,
impõem que se inclua o direito processual administrativo na teoria geral do processo (modalidade ‘processo
estatal não-jurisdicional) (DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 15. ed. São Paulo:
Malheiros, 2013, p. 83).
22
Teoria geral do processo é um sistema de conceitos e princípios elevados ao grau máximo de generalização útil
e condensados indutivamente a partir do confronto dos diversos ramos do direito processual. É também, por
outro aspecto, a condensação metodológica dos princípios, conceitos e estruturas desenvolvidos setorialmente
com vistas a cada um desses ramos, considerados aqueles em seus respectivos núcleos essenciais e comuns
a todos eles, sem descer às peculiaridades de cada um. Ela transcende a dogmática processual, não lhe
sendo própria a indagação ou formulação de regras ou normas de direito positivo (CINTRA, Antonio Carlos de
Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 31. ed. São Paulo:
Malheiros, 2015, p. 29). Para Cassio Scarpinella Bueno, ‘Teoria Geral do Processo’, sem qualquer adjetivação
para ‘processo’, isto é, nem processo civil, nem processo penal, nem processo trabalhista, quer significar, no
contexto das reflexões presentes, uma teoria que busque descrever o método de atuação do Estado como um

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3  Fundamentos para uma teoria geral do processo


Os processos estatais (processo legislativo, processo jurisdicional e processo
legislativo) são regulados por regras que, como dito, funcionam como garantia às pes-
soas atingidas pelas decisões dos poderes públicos proferidas nesses processos.23
Afinal, são decisões que interferem diretamente na esfera jurídica das pessoas, a
criar direitos e obrigações.

3.1  Formalidades procedimentais


Todos esses processos obedecem a formalidades procedimentais criadas para
garantir o respeito aos direitos fundamentais previstos constitucionalmente: ampla
defesa, contraditório, respeito à intimidade, liberdade de locomoção, liberdade de
iniciativa econômica, respeito à propriedade privada, dentre outros.24 A formalidade
também garante o controle sobre a legalidade da atuação dos poderes públicos.25 A
forma prescrita em lei impõe a documentação de todos os fatos e atos jurídicos que
compõem o procedimento, a permitir a fiscalização por parte dos órgãos de controle
(Ministério Público, Tribunais de Contas, dentre outros) e dos cidadãos em geral
sobre as atividades administrativa, legislativa e jurisdicional do Estado. A autuação
do processo, ou seja, a reunião de todos os documentos produzidos no decorrer da
tramitação, em ordem cronológica, em uma pasta ou em arquivo digital, permite a sua
consulta a qualquer momento pelos interessados.

todo, precisando os princípios e o regime jurídico que vinculam o exercício de qualquer função estatal (BUENO,
Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil. vol.
1. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 355). Nas palavras de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, cada um dos
processos estatais está sujeito a determinados princípios próprios, específicos, adequados para a função que
lhes incumbe. Não podem ser iguais o processo legislativo e o processo judicial, e um e outro não podem ser
iguais ao processo administrativo. Porém todos eles obedecem, pelo menos, aos princípios da competência,
da formalidade, da predominância do interesse público sobre o particular, o que permite falar na existência
de uma teoria geral do processo (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 28. ed. São Paulo:
Atlas, 2015, p. 764).
23
Sempre que se trate de procedimentos realizados mediante o exercício de poder por um agente que se sobre-
põe aos demais, ali se tem processo e não mero procedimento, legitimando-se pois sua inserção no âmbito
da teoria geral do processo. A referência ao poder como centro de emanação de decisões imperativas é o ele-
mento de convergência responsável pela imposição das garantias constitucionais do processo, notadamente
a doa devido processo legal (...) (CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO,
Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 29-30).
24
Os direitos fundamentais individuais e coletivos estão previstos, em especial, no art. 5º da Constituição Fe-
deral de 1988. Sobre a questão, Canotilho aborda o papel do procedimento constitucional – e não apenas do
procedimento legislativo – como garantidor de direitos fundamentais. Para o autor, a proteção dos direitos fun-
damentais através do procedimento se tornou um ‘leit motiv’ central da moderna juspublicística (CANOTILHO,
José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998, p. 857).
25
Nesse sentido, a Lei 8.666/93, que regula a licitação em âmbito nacional, determina que o procedimento
licitatório é ato administrativo formal e que todos os que participem do certame têm direito público subjetivo à
fiel observância do procedimento estabelecido em lei, podendo qualquer cidadão acompanhar o seu desenvol-
vimento (art. 4º e parágrafo único).

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3.2  Regras de competência


As regras de competência também se fazem presentes em todas essas mo-
dalidades processuais. A Constituição Federal e as leis processuais indicam qual o
agente público competente para instaurar e decidir cada tipo de procedimento. É o
chefe do executivo a autoridade competente para apresentar projeto de lei que cria
cargos públicos (CF, art. 61, §1º, II, a). É o agente indicado na lei local o responsável
pelo julgamento do recurso interposto contra multa de trânsito. É competente para
instruir e julgar o processo penal, em regra, o juízo criminal do local em que se consu-
mou a infração (Código de Processo Penal, art. 70). É o Supremo Tribunal Federal o
órgão do Poder Judiciário competente para o julgamento de crimes comuns praticados
pelo Presidente da República (CF, art. 102, I, b). A definição da competência é, desse
modo, outro traço comum entre os procedimentos – mais um fundamento, portanto,
para que se reconheça a existência de uma teoria geral do processo.

3.3  Interesse coletivo X direitos fundamentais


Por outro lado, percebe-se que os processos decisórios são marcados pela con-
traposição entre os poderes-deveres estatais e os direitos individuais. O Estado deve
cumprir suas funções (fazer leis, julgar litígios, prestar serviços públicos, exercer o po-
der de polícia), mas deve cumpri-las com a devida observância aos limites impostos
pelos direitos dos indivíduos. Os Poderes Públicos devem fazer prevalecer o interesse
coletivo, mas sem desrespeitar direitos fundamentais previstos constitucionalmente.
Por exemplo, o Estado tem o poder de desapropriar (adquirir compulsoriamente) um
imóvel particular, para construir obra pública do interesse de toda a coletividade (uma
estação de tratamento de esgoto, por exemplo). Trata-se de exercício da função ad-
ministrativa, que permite à Administração impor limitações à propriedade privada em
prol do interesse público. Ocorre que, ao desapropriar, o Poder Público deve respeitar
o direito de propriedade da pessoa atingida pelo ato expropriatório. A Constituição
Federal garante, nesse sentido, que o pagamento pela perda do imóvel desapropriado
seja feito em dinheiro e de forma prévia à perda do bem (CF, art. 5º, inc. XXIV).
O processo de desapropriação deve obedecer a um rito estabelecido legalmente
(Decreto-lei nº 3.365/41, Lei nº 4.132/62), que se destina justamente a defender
o indivíduo atingido pelo ato expropriatório contra o confisco de sua propriedade, ou
seja, contra a aquisição forçada do bem pelo Estado sem o pagamento de justa e
prévia indenização.
Essa é mais uma característica comum entre todas as espécies de processos
decisórios: há sempre uma contraposição entre o interesse público e os direitos dos
indivíduos atingidos pelas decisões estatais proferidas por meio desses processos.

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Direito público e processo

No processo administrativo sancionatório há a contraposição entre o poder de polícia


estatal e a liberdade individual – afinal, ninguém quer ser multado, mas o Estado tem
o dever de fazê-lo, se necessário, a fim de que o interesse coletivo seja respeitado. O
mesmo ocorre no processo judicial: ninguém deseja ser preso ou compelido a pagar
uma dívida, mas o Poder Público tem o dever de impor tais medidas, na busca da
ordem e da pacificação social. O processo legislativo, por sua vez, também é marcado
pelo antagonismo entre o interesse público e o particular. Afinal, a atividade legislati-
va deve ter em mente o atendimento ao interesse coletivo, muitas vezes contraposto
diretamente ao privado, como no caso em que a lei cria um tributo ou uma limitação
de altura das edificações situadas em terrenos particulares.
Mas o interesse público encontra no rol dos direitos fundamentais, previstos
constitucionalmente (CF, art. 5º e outros),26 um escudo que defende o indivíduo contra
decisões arbitrárias tomadas pelo Estado em processos administrativos, jurisdicio-
nais ou legislativos. A lei, por exemplo, não pode criar um imposto que ofenda normas
constitucionais de proteção ao contribuinte, como a anterioridade e a vedação ao
confisco (CF, art. 150, incs. III e IV).
O choque entre o interesse público e o privado é um aspecto comum às várias
espécies de processos estatais. Trata-se de mais um elemento que demonstra a
existência de uma teoria geral do processo.
As regras que definem os diversos processos decisórios têm como norte evitar
que os direitos fundamentais do indivíduo sejam menosprezados. É por essa razão
que, por exemplo, o Chefe do Executivo deve vetar projetos de lei inconstitucionais
(CF, art. 66, §1º), que a ampla defesa e o contraditório são garantidos no processo
administrativo (CF, art. 5º, inc. LV) e que os princípios do juiz natural (CF, inc. XXXVII)
e do duplo grau de jurisdição incidem em defesa do réu no processo jurisdicional (CF,
art. 5º, inc. LV).

4  Processo como categoria jurídica do direito público


Ora, a oposição entre o interesse público e os direitos do indivíduo, tratada no
item anterior, é o objeto central do direito público. Em outros termos: as normas de
direito público visam, fundamentalmente, regular o equilíbrio entre os poderes esta-
tais e os direitos individuais.

26
O rol dos direitos fundamentais do art. 5º da Constituição não é exaustivo. Como bem aponta Manoel Gonçalves
Ferreira Filho, além desses direitos explicitamente reconhecidos, a Constituição Federal admite existirem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte (CF, art. 5º, §2º) (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitu-
cional. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 254).

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Por tais razões, afirma-se que o direito processual é um ramo do direito público.
As regras que disciplinam as diversas modalidades de processos estatais têm como
objetivo proteger o indivíduo contra arbitrariedades cometidas pelo Estado. Destinam-
se a garantir o equilíbrio entre o interesse coletivo, defendido pelo Poder Público, e os
direitos fundamentais de todo aquele submetido ao poder estatal.
Em resumo, o processo deve ser entendido como uma categoria fundamental do
Direito Público, já que as normas processuais se destinam a harmonizar o interesse
público com os direitos individuais.
Não se deve ignorar que nas relações de direito privado também há processo,
ou seja, também existem sucessões de acontecimentos concatenados que levam
a uma decisão final. É só pensarmos na eleição para o cargo de conselheiro de um
clube ou para o conselho deliberativo de uma sociedade anônima, ou mesmo na
aplicação de penalidade a um aluno de escola privada pela própria diretoria. Em todos
esses casos, há processo, mas não há, em regra, a presença estatal em um dos
polos da relação jurídica, não há o embate entre o interesse coletivo e o privado, não
incidem as regras de competência próprias do direito público.
Nas relações de direito privado, as partes mantêm posição de igualdade. Não
há supremacia de um interesse sobre o outro. Desde que não atuem contra expressa
previsão legal, os partícipes da relação são livres para decidir de acordo com suas
vontades.
Como dito, os procedimentos utilizados pelo direito privado não contam, em
regra, com a participação do Estado em um dos polos da relação jurídica. E mesmo
quando a Administração Pública participa dessa relação, o faz em situação de igual-
dade com o particular. Um exemplo clássico é o contrato de aluguel de imóveis para
instalação de órgãos públicos. Em um contrato como esse, o Poder Público não está
em situação de superioridade em relação ao locador, proprietário do imóvel locado.
Trata-se de uma relação de direito privado, em que não ocorre o referido embate entre
o interesse público e o privado. Os interesses das partes envolvidos são, nesse caso,
particulares.
Por tais razões, a teoria geral do processo é examinada, exclusivamente, sob a
ótica do direito público.27
Mas os autores que se debruçam sobre o direito processual costumam encon-
trar outros argumentos para incluir o direito processual como um dos ramos do direito
público. José Frederico Marques, por exemplo, discorrendo especificamente sobre o
processo jurisdicional, afirma que os direitos subjetivos criados pelas leis processuais
têm caráter público, ou seja, são direitos públicos subjetivos. Como exemplos, o

27
Cf. MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. Campinas: Millennium, 1999, p. 30-31.

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Direito público e processo

autor cita o direito de ação, o direito de apresentar defesa e o direito de recorrer.


Ressalta, ainda, que em um dos polos da relação jurídica processual está o Estado
e que não se pode compreender que uma das funções estatais, a jurisdição, esteja
subordinada a preceitos de ordem privada.28
Com efeito, ainda que a ação judicial tenha sido proposta com fundamento no
desrespeito às cláusulas de um contrato de direito privado (um contrato de locação,
por hipótese), a partir do momento em que a pretensão é deduzida em Juízo (uma
ação de despejo, por exemplo) surge nova relação jurídica: a relação jurídica proces-
sual. O Estado é provocado para exercer sua função jurisdicional e as partes passam
a se submeter à sua vontade. Essa relação entre os sujeitos da lide (autor e réu) e o
Estado-juiz é marcada pela supremacia da vontade estatal, típica do direito público.
O mesmo ocorre no processo administrativo, em que a vontade do Poder Público
prevalece; é o Estado que dá a palavra final em um processo disciplinar movido em
face de um servidor público, por exemplo, ainda que por meio de decisão sujeita a
revisão judicial. Também no processo legislativo é a vontade do Estado-legislador que
prepondera por meio do ato normativo editado, de observância obrigatória. Perceba
que, por caminhos um pouco diferentes, chega-se à mesma conclusão: o processo é
uma categoria jurídica do direito público.
Muito bem.
Examinadas as características comuns às várias modalidades de processo es-
tatal, passemos a abordar os traços essenciais de cada uma dessas espécies.
Comecemos pelo processo legislativo.

5  Processo legislativo
Processo legislativo é a sequência de eventos que visa à produção dos atos
normativos indicados no art. 59 da Constituição Federal, a saber: I) emendas à
Constituição; II) leis complementares; III) leis ordinárias; IV) leis delegadas; V) medi-
das provisórias; VI) decretos legislativos; e VII) resoluções.29

28
Cf. MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. Campinas: Millennium, 1999, p. 30-31.
Na mesma linha, Cassio Scarpinella Bueno explica que relação jurídica veiculada para solução pelo Estado-juiz
não se confunde com o ‘processo’ porque elas existem em planos diversos: a situação de lesão ou ameaça
a direito se verifica no plano do direito material. O atuar do Estado-juiz, o processo, portanto, está no plano
processual (BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito
processual civil. vol. 1. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 356).
29
Na verdade, como bem anota Manoel Gonçalves Ferreira Filho, a Seção VIII da Constituição Federal, que tem
início no seu art. 59, regula não apenas a elaboração de leis em sentido estrito, mas também a criação de
outras espécies de atos normativos que não são nem material nem formalmente leis. Há dispositivos dessa
Seção que regulam, por exemplo, a produção de emendas constitucionais, que são leis materialmente, mas que
formalmente destas devem ser distinguidas, por serem manifestação de um poder distinto, que é o de revisão.
Já os decretos legislativos e as resoluções, também indicados no art. 59, são leis apenas sob o aspecto formal,
visto que não editam regras jurídicas gerais e abstratas. Por essa razão, conclui o autor que o título e a matéria

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O processo legislativo é uma das espécies de processo como categoria jurídica.


Perceba que essa definição de processo legislativo cabe perfeitamente na definição
de processo apresentada no início deste estudo. Vale lembrar que definimos pro-
cesso como a sequência de eventos, regulada por lei, que visa à produção de um
ato de poder do Estado, que interfere na esfera jurídica de terceiros, a criar direitos
e obrigações. O processo legislativo é exatamente isso: uma sequência de eventos
(atos e fatos) que visa à produção de um ato de poder do Estado, que criará direitos
e obrigações aos seus destinatários.30
As características gerais do processo como categoria jurídica estão presentes.
Em primeiro lugar, o processo de produção dessas espécies legislativas deve obede-
cer a um procedimento, a um rito, que é definido pelos arts. 59 a 69 da Constituição
Federal.31

5.1  Procedimento legislativo


Esses dispositivos da Constituição Federal citados no item anterior trazem regras
para a elaboração de Emendas Constitucionais, determinando, por exemplo, que a pro-
posta de emenda deve ser discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional
(Câmara dos Deputados e Senado Federal), em dois turnos, e será aprovada se obtiver
três quintos dos votos dos respectivos membros (Deputados Federais e Senadores)
(CF, art. 60, §2º). Há, ainda, previsão no sentido de que, após a aprovação do proje-
to pelos parlamentares, a emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da
Câmara e do Senado, ou seja, o projeto não será submetido à sanção ou veto do Chefe
do Poder Executivo, como no procedimento legislativo ordinário (CF, art. 60, §3º).
Há regras, também, a respeito da edição de leis ordinárias (CF, art. 61);32 de
leis complementares, as quais exigem maioria absoluta para sua aprovação (CF, art.

da seção não estão de pleno acordo (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 23.
ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 159-160).
30
André Ramos Tavares, após diferenciar os sentidos sociológico e jurídico da expressão processo legislativo,
afirma que, juridicamente, o processo legislativo insere-se na noção ampla de processo, de Direito Processual.
Para o autor, o processo legislativo é o processo pelo qual ocorre a criação das leis (em sentido amplo). Os
arts. 59 a 69 da Constituição Federal (Seção VIII – Do processo legislativo) regulam, portanto, uma sequência
definida de atos e etapas que se cumprem no intuito de estabelecer novas normas jurídicas (TAVARES, André
Ramos. Curso de direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 907).
31
Nas palavras de José Afonso da Silva, procedimento legislativo é o modo pelo qual os atos do processo
legislativo se realizam (SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 23. ed. São Paulo:
Malheiros, 2004, p. 527). Note que o procedimento legislativo é composto por atos, mas o processo legislativo
é composto tanto por atos procedimentais como por fatos, como, por exemplo, as discussões sobre projetos
de lei que ocorrem nas Comissões Parlamentares do Senado e da Câmara. É por isso que afirmamos que o
processo é o conjunto de eventos (atos e fatos) que visa à produção de um ato de poder do Estado.
32
Vale ressaltar que salvo disposição constitucional em contrário, as deliberações de cada Casa e de suas
Comissões serão tomadas por maioria de votos, presente a maioria absoluta de seus membros (CF, art. 47).
A aprovação das leis ordinárias se dá dessa forma, por maioria simples. Presente metade mais um dos mem-
bros de cada Casa Legislativa, o projeto será aprovado se contar com mais da metade dos votos.

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69);33 de medidas provisórias, que são atos normativos, com força de lei, expedidos
pelo Presidente da República em caso de relevância e urgência (CF, art. 62); de leis
delegadas, que são elaboradas pelo Presidente da República a partir de delegação
outorgada pelo Congresso Nacional (CF, art. 68); enfim, a Constituição da República
prevê as normas gerais que definem o procedimento de elaboração desses atos
legislativos.34

5.2  Espécies de procedimento legislativo


Na realidade, como bem aponta José Afonso da Silva, é possível distinguir, no
direito brasileiro diferentes espécies de procedimento legislativo. Há o procedimento
legislativo ordinário, o procedimento legislativo sumário e os procedimentos legisla-
tivos especiais.35

5.2.1  Procedimento legislativo ordinário


Procedimento ordinário é procedimento comum. É composto por seis diferentes
fases: a) iniciativa; b) discussão; c) deliberação; d) sanção ou veto; e) promulgação;
e f) publicação.36
A iniciativa é o ato que desencadeia o processo legislativo. De acordo com
a Constituição Federal, a iniciativa é, em regra, concorrente,37 ou seja, o projeto
pode ser apresentado por qualquer Deputado Federal ou Senador, pelas Comissões
da Câmara ou do Senado ou pelo Presidente da República (CF, art. 61). O Texto
Constitucional prevê, ainda, a possibilidade de ser exercida a iniciativa popular, hipó-
tese em que o projeto de lei é apresentado diretamente pela população, por meio de
ato subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo

33
A lei complementar deve ser aprovada pela por mais da metade de todos os membros das duas Casas
Legislativas (Câmara e Senado). Ou seja, exige um quórum maior para a aprovação do que a lei ordinária.
34
Por sua vez, a Lei Complementar nº 95/98 dispõe sobre as técnicas de elaboração, redação e alteração das leis.
35
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 527.
36
Essas fases são indicadas por Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior (ARAUJO, Luiz Alberto
David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Verbatim, 2011, p.
399-406.). Optamos por essa denominação neste trabalho por parecer a mais completa do ponto de vista cien-
tífico, mas vale ressaltar que outros constitucionalistas atribuem outras denominações às diferentes fases do
procedimento legislativo. A existência dessa série de etapas, levou Manoel Gonçalves Ferreira Filho a conside-
rar a lei ordinária um ato complexo, já que produzida mediante a fusão de vontades de diferentes órgãos em
uma só vontade, idônea a produzir determinado efeito jurídico (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de
direito constitucional. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 164). Com efeito, há no procedimento legislativo a
participação de órgãos do Executivo e do Legislativo. Está clara a vontade do constituinte de estabelecer um
sistema mútuo de controle entre os Poderes da República no processo de elaboração das leis, o chamado
checks and balances, em respeito ao princípio da separação dos poderes (CF, art. 2º). O Legislativo não pode
produzir leis sem a participação do Executivo e vice-versa.
37
ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo:
Verbatim, 2011, p. 401.

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menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores
de cada um deles (CF, art. 61, §2º).
Mas há casos em que a iniciativa é reservada, isto é, hipóteses em que a
Constituição reserva a apenas um agente político ou a um órgão a competência para
iniciar o processo legislativo. São, por exemplo, de iniciativa privativa do Presidente
da República as leis que criam cargos, funções ou empregos na administração pú-
blica direta e autárquica e as que impõem aumento da remuneração dos servidores
públicos.38 Há, ainda, disposições constitucionais que atribuem a órgãos do Poder
Judiciário a iniciativa de leis que tratem de matérias relacionadas às funções que
exercem. É de competência do Supremo Tribunal Federal, dos Tribunais Superiores
e dos Tribunais de Justiça estaduais, por exemplo, a iniciativa de lei que crie cargos
de juízes e serventuários da Justiça ou que altere suas remunerações (CF, art. 96,
inc. II, b).
Pois bem.
Depois de iniciado o processo legislativo, passa-se à fase da discussão. O
projeto apresentado é discutido nas comissões permanentes da Câmara e do Senado
e nos plenários das duas casas. Discute-se tanto o conteúdo do projeto como a
compatibilidade do seu texto com a Constituição Federal. É nessa fase, também, que
podem ser apresentadas emendas pelos parlamentares, ou seja, modificações ao
projeto inicial submetido à discussão.
Após discutido, o projeto segue para a votação no plenário de cada Casa
Legislativa. A aprovação dependerá do quórum estabelecido pela Constituição Federal
para cada espécie de ato normativo. Para a aprovação de uma emenda constitucional,
por exemplo, são necessários três quintos dos votos dos deputados e senadores; e a
votação ocorre em dois turnos, ou seja, são duas votações em cada uma das Casas
do Congresso Nacional (CF, art. 60, §2º). Já o projeto de lei complementar somente
será aprovado se contar com a aquiescência da maioria absoluta dos parlamentares
(CF, art. 69).
Vale notar que, em virtude do sistema bicameral que vigora no Brasil, o projeto
de lei aprovado por uma Casa deve ser revisto pela outra (CF, art. 65). Portanto, o
projeto iniciado e aprovado pela Câmara segue para o Senado para deliberação e
vice-versa.39 Ou seja, o projeto de lei aprovado por uma Casa deve ser revisto pela
outra, em regra. A revisão não ocorre, todavia, nos casos em que os projetos estejam

38
CF, art. 61, §1º, II, a. No mesmo sentido, a proposta de emenda constitucional somente pode ser apresentada
por: a) um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; b) pelo
Presidente da República; e c) por mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação,
manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros (CF, art. 60, inc. I a III).
39
De acordo com o Texto Constitucional, a discussão e votação dos projetos de lei de iniciativa do Presidente
da República, do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores terão início na Câmara dos Deputados
(art. 64).

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Direito público e processo

relacionados a matérias de competência exclusiva da Câmara dos Deputados (CF,


art. 51) ou do Senado Federal (CF, art. 52). Nestas hipóteses, cada Casa delibera
em votação única sobre os projetos apresentados e a espécie normativa criada é a
resolução (Resolução da Câmara ou Resolução do Senado).
O projeto de lei aprovado será, em seguida, enviado ao Presidente da República,
que sancionará ou vetará o projeto (CF, art. 66). O veto ocorrerá caso o Chefe do
Executivo considere o projeto, no todo ou em parte, inconstitucional ou contrário ao
interesse público (CF, art. 66, §1º). Mas o veto, parcial ou total, será objeto de apre-
ciação em sessão conjunta da Câmara e do Senado e poderá ser derrubado pelo voto
da maioria absoluta dos Deputados e Senadores.40
Derrubado o veto ou sancionado o projeto de lei, será ele promulgado pelo
Presidente da República. Por meio da promulgação, atesta-se que a lei existe e que
deve ser aplicada. Por fim, deve a lei ser publicada na Imprensa Oficial, para que
todos tenham ciência da existência do novo ato normativo e para que se inicie o
período de vacância, o qual, salvo disposição em sentido contrário, é de quarenta e
cinco dias.41
Há na Constituição Federal a previsão de um procedimento legislativo sumário,
utilizado nos casos em que o Presidente da República solicita urgência para aprecia-
ção de projetos de sua iniciativa (CF, art. 64, §1º). Nesse caso, Câmara e Senado
Federal terão até quarenta e cinco dias, cada um, para apreciar a proposição do
Chefe do Executivo, sob pena de serem sobrestadas (suspensas) todas as demais
deliberações legislativas da respectiva Casa (CF, art. 64, §2º).
O prazo total do procedimento legislativo sumário, portanto, é de 90 dias.
Nesse período deve haver o pronunciamento das duas casas, salvo se o projeto for
emendado no Senado Federal. Nesse caso, a Câmara dos Deputados deverá apreciar
as emendas do Senado no prazo de dez dias, circunstância que aumentará para cem
dias o prazo total de conclusão do procedimento.42

40
CF, art. 66, §4º. Vale ressaltar que a matéria constante de projeto de lei rejeitado somente poderá constituir
objeto de novo projeto, na mesma sessão legislativa, mediante proposta da maioria absoluta dos membros de
qualquer das Casas do Congresso Nacional (art. 67). A sessão legislativa ocorre no intervalo de 2 de fevereiro
a 17 de julho e de 1º de agosto a 22 de dezembro de cada ano (CF, art. 57).
41
ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo:
Verbatim, 2011, p. 406. É o Decreto-lei nº 4.657/1942, art. 1º, que determina que salvo disposição contrária,
a lei começa a vigorar em todo o país quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada.
42
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 528.

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5.2.2  Procedimentos legislativos especiais


Estão previstos no Texto Constitucional, também, procedimentos legislativos es-
peciais, como os estabelecidos para elaborar emendas constitucionais, leis financeiras
(lei do plano plurianual, lei de diretrizes orçamentárias e lei do orçamento anual), leis
delegadas e medidas provisórias.43
Em todos esses procedimentos, há peculiaridades que os distinguem do proce-
dimento legislativo ordinário. A emenda constitucional, por exemplo, somente pode
ser proposta por: a) um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados
ou do Senado Federal; b) pelo Presidente da República; e c) por mais da metade das
Assembleias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma
delas, pela maioria relativa de seus membros (CF, art. 60, inc. I a III). Por outro lado,
a discussão do projeto de emenda deve ocorrer em cada Casa do Congresso Nacional
em dois turnos e somente será aprovada se obtiver, em ambas, três quintos dos
votos dos respectivos membros (CF, art. 60, §2º). Trata-se de um quórum especial-
mente qualificado, tendo em vista se tratar de alteração do Texto Constitucional pelo
Poder Constituinte Derivado.
Por sua vez, as leis delegadas são elaboradas pelo Presidente da República, a
partir de delegação outorgada pelo Congresso Nacional. Em outras palavras, o Chefe
do Poder Executivo solicita ao Congresso que lhe delegue a função de elaborar de-
terminada lei (CF, art. 68).44 Ou seja, a lei delegada é elaborada pelo Poder Executivo
e não pelo Poder Legislativo, diferentemente da lei produzida mediante o processo
legislativo ordinário.45
As medidas provisórias também são produzidas mediante um procedimento le-
gislativo especial. São editadas diretamente pelo Presidente República, com força de
lei, em casos de relevância e urgência. Imediatamente após sua expedição, o Chefe
do Executivo deve submeter a medida provisória à apreciação do Congresso Nacional
(CF, art. 62). Haverá, em seguida, a apreciação do texto por cada uma das Casas do
Congresso Nacional, que aprovarão ou rejeitarão a medida. Mas as medidas provi-
sórias perderão eficácia se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias,
prorrogável uma vez por igual prazo (CF, art. 62, §3º). Percebe-se a excepcionalidade
da medida, posto que a lei, nesse caso, é produzida pelo Poder Executivo, não obs-
tante deva ser submetida, depois de editada, à apreciação do Poder Legislativo.

43
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 529.
44
A delegação ao Presidente da República terá a forma de Resolução do Congresso Nacional, que deverá
especificar seu conteúdo e os termos do seu exercício (CF, art. 68, §2º).
45
José Afonso da Silva adverte que a delegação legislativa já existe no constitucionalismo pátrio há mais de vinte
anos e jamais foi usada, porque havia decreto-lei, e vai continuar a não ser usada, porque existem as medidas
provisórias que acabam sendo mais convenientes para o Executivo (SILVA, José Afonso da. Curso de direito
constitucional positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 529).

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Direito público e processo

Já o procedimento especial de elaboração das leis financeiras (lei do plano


plurianual, lei de diretrizes orçamentárias e lei do orçamento anual) está estabele-
cido, em termos gerais, nos arts. 165 e ss. da Constituição Federal. Dentre outras
peculiaridades, está previsto pelo Texto Constitucional que o regimento comum das
duas Casas do Congresso Nacional estabelecerá o rito de apreciação dos projetos
de lei referentes às leis financeiras (CF, art. 166). Também está prevista a existência
de uma Comissão mista permanente de Senadores e Deputados, à qual caberá exa-
minar e emitir parecer sobre os projetos de lei (CF, art. 166, §1º, inc. I) e sobre as
emendas ao projeto de lei orçamentária (CF, art. 166, §2º).

5.3  Enquadramento na categoria ampla de processo estatal


Desse breve resumo sobre as regras estabelecidas pela Constituição Federal
para a produção dos atos legislativos, nota-se a presença de todos os elementos
indicados no item 3 supra na constituição do processo legislativo, o que nos permite
enquadrá-lo na categoria ampla de processo jurídico.
Com efeito, estão presentes as formalidades procedimentais, que visam garan-
tir a ampla participação no processo decisório,46 o respeito aos direitos fundamentais
previstos constitucionalmente e o controle de constitucionalidade dos atos produzi-
dos pelo Poder Legislativo. As diversas espécies legislativas produzidas mediante o
processo legislativo (CF, art. 59) são atos de poder do Estado que obrigam a todos,
mas não podem ferir direitos fundamentais. As regras procedimentais do processo
têm a função de evitar a contrariedade a esses direitos. A análise pelas comissões,
a sanção e o veto, a publicidade de todo o procedimento, enfim, as diversas fases
do rito procedimental existem para viabilizar o controle sobre o processo legislativo.
O respeito à forma prescrita na Constituição Federal permite aos órgãos de
controle e aos cidadãos em geral fiscalizar o modo pelo qual são feitas as leis que,
afinal, contêm comandos normativos aplicáveis a todos.
As regras de competência também se fazem presentes e são parte essencial
do processo legislativo, já que estão diretamente relacionadas ao modo como o pro-
cesso será iniciado. Em regra, como visto, o projeto de lei pode ser apresentado por
qualquer Deputado Federal ou Senador, pelas Comissões da Câmara ou do Senado
ou pelo Presidente da República (CF, art. 61). Há, entretanto, exceções previstas no
próprio Texto Constitucional. São de iniciativa privativa do Presidente da República,
por exemplo, as leis que fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas (CF,
art. 61, §1º, inc. I).

46
O Brasil é um Estado Democrático de Direito, em que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição (CF, art. 1º, caput, e parágrafo único).

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As normas relativas à competência para instaurar o processo de elaboração


das leis devem ser observadas, sobre pena de nulidade do processo legislativo. A
lei produzida em desacordo com as regras de competência estabelecidas constitu-
cionalmente está eivada de inconstitucionalidade e deve ser, portanto, retirada do
sistema normativo, mediante a aplicação dos instrumentos do controle formal de
constitucionalidade.47
O processo legislativo também é marcado pelo antagonismo entre o interesse
público e o particular, que está presente, como visto, em todas as espécies de pro-
cesso. Afinal, a atividade de produção das leis deve ter em mente o atendimento ao
interesse coletivo, muitas vezes contraposto diretamente ao privado, como na hipóte-
se em que a lei cria um tributo ou uma limitação de altura das edificações situadas
em terrenos particulares.
O interesse coletivo, porém, encontra no rol dos direitos fundamentais um escu-
do que defende o indivíduo contra decisões arbitrárias tomadas pelo Estado, inclusive
em processos legislativos. A lei não pode, por exemplo, prever a possibilidade de
quebra de sigilo de dados e comunicações telefônicas de determinado indivíduo por
ordem de autoridade policial. Afinal, a Constituição garante que o sigilo somente
pode ser quebrado por ordem judicial, para fins de investigação criminal ou instrução
processual penal (CF, art. 5º, inc. XII).

6  Processo jurisdicional
Recordemos uma vez mais o conceito jurídico de processo indicado linhas aci-
ma. Processo é a sequência de eventos, regulada por lei, que visa à produção de um
ato de poder do Estado que interfere na esfera jurídica de terceiros, a criar direitos
e obrigações (item 2). As características do processo jurisdicional amoldam-se com
perfeição a esse conceito.
Com efeito, o processo jurisdicional é o instrumento pelo qual o Estado cumpre
uma de suas funções, a jurisdição.48 O Estado tem a função, ou seja, o dever-poder
de resolver os litígios submetidos à sua apreciação. O Estado-juiz deve buscar, de

47
Nas palavras de Paulo Bonavides, o controle formal de constitucionalidade é, por excelência, um controle
estritamente jurídico. Confere aos órgãos que o exerce a competência de examinar se as leis foram elaboradas
de conformidade com a Constituição, se houve correta observância das formas estatuídas, se a regra
normativa não fere uma competência deferida constitucionalmente a um dos poderes, enfim, se a obra do
legislador ordinário não contravém preceitos constitucionais pertinentes à organização técnica dos poderes
ou às relações horizontais e verticais desses poderes, bem como dos ordenamentos estatais respectivos,
como sói acontecer nos sistemas de organização federativa do Estado (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito
Constitucional. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 268).
48
Jurisdição ou função jurisdicional são termos tomados aqui como sinônimos. As outras funções estatais são
a função legislativa (elaborar as leis) e a função administrativa (executar as leis).

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Direito público e processo

forma imparcial e com fundamento no direito objetivo, a solução dos conflitos que
surgem entre particulares ou entre os particulares e o próprio Estado.
É sabido que das diversas relações jurídicas materiais havidas entre diferentes
sujeitos49 surgem controvérsias das mais variadas. Uma dívida não paga, um imóvel
invadido, uma mercadoria não entregue no prazo estipulado, um tributo cobrado in-
devidamente, uma multa de trânsito aplicada de forma equivocada, horas-extras não
pagas pelo empregador, um empregado que falta frequentemente ao trabalho, enfim,
são muitos os conflitos que podem surgir das relações de direito privado (contratos
entre particulares, contratos de trabalho etc.) ou de direito público (cobrança de tribu-
tos, de multas etc.).
Como resolver esses conflitos? Em alguns casos, é possível o exercício da
autotutela, ou seja, o sujeito resolve a controvérsia com o uso da própria força, sem
necessidade de ordem judicial. Trata-se de meio excepcional de solução dos litígios
e somente pode ser utilizado em situações específicas, previstas em lei ou emergen-
ciais. Por exemplo, o Poder Público municipal pode retirar pessoas que residem em
área de risco, que estejam sob perigo iminente de desabamento, mesmo sem prévia
ordem judicial.50 Outra hipótese é o desforço imediato, previsto no art. 1.210, §1º,
do Código Civil; nesse caso, aquele que teve sua posse turbada (sua propriedade
invadida por terceiros, por exemplo), pode utilizar da própria força para expulsar os
invasores, sem necessidade de mandado expedido por um juiz.51 52 Há, ainda, o caso

49
Pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado, ou mesmo entes despersonalizados como condomí-
nios edilícios, massas falidas e espólios.
50
Trata-se, no caso, de um dos atributos do poder de polícia do Estado: a autoexecutoriedade. Explica Hely
Lopes Meirelles que a autoexecutoriedade autoriza a prática do ato de polícia administrativa pela própria
Administração, independentemente de mandado judicial. Assim, por exemplo, quando a Prefeitura encontra
uma edificação irregular ou oferecendo perigo à coletividade, ela embarga diretamente a obra e promove sua
demolição, se for o caso, por determinação própria, sem necessidade de ordem judicial para esta interdição e
demolição. O autor esclarece que, nesses casos, não seria possível condicionar os atos de polícia à aprovação
prévia de qualquer outro órgão ou poder estranho à Administração. Se o particular sentir-se agravado em seus
direitos, sim, poderá reclamar, pela via adequada, ao Judiciário (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal
brasileiro. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 475-476.).
51
Código Civil, art. 1.210, §1º. O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua
própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável
à manutenção, ou restituição da posse. Explica Maria Helena Diniz que, o possuidor esbulhado, ao exercer
o seu direito ao desforço imediato, deve agir pessoalmente, embora possa receber auxílio de amigos ou de
serviçais, empregando meios necessários, inclusive armas, para recuperar a posse perdida. Mas essa ação
deverá ser imediata e não poderá ir além do indispensável à restituição da posse (DINIZ, Maria Helena. Código
Civil anotado. 15. ed. São Paulo; Saraiva, 2010, p. 830).
52
Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández traçam um comparativo entre a autotutela privada (que
no Brasil está prevista, por exemplo, no art. 1.210, §1º, do Código Civil, sob o título de desforço) e a autotutela
administrativa. Para os autores, as características de excepcionalidade e de caráter puramente facultativo da
primeira não estão presentes na segunda. A autotutela da Administração é, em primeiro lugar, geral e define
um âmbito necessário de autonomia jurídica em que o juiz não pode interferir (ENTERRÍA, Eduardo García;
FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de derecho administrativo. 12. ed. Madrid: Civitas Ediciones, 2004, p.
516). Os autores se referem ao poder de autotutela administrativa, que permite à Administração anular seus
próprios atos eivados de nulidade.

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da prisão em flagrante delito, em que as autoridades administrativas (ou qualquer


pessoa do povo) podem realizar a prisão sem necessidade de ordem judicial.53
Mas a autotutela é excepcional. Como o Estado tem o monopólio da força, as
controvérsias surgidas entre as pessoas devem ser levadas ao Estado-juiz, que é
em regra constituído pelos órgãos do Poder Judiciário,54 para que os litígios sejam
resolvidos e a paz social prevaleça. Os conflitos que surgem das relações intersub-
jetivas não podem ficar eternamente sem solução. A eterna indefinição pode agravar
essas controvérsias e levar os envolvidos a resolvê-las por conta própria. É preciso
que o Estado diga quem tem razão naquele caso concreto: se a dívida realmente
existe, se o réu realmente cometeu o crime e deve ser preso, se o tributo é devido.
Só o Estado-juiz pode decidir de forma definitiva o litígio surgido a partir das relações
interindividuais. E essa função estatal (função jurisdicional, de dizer o direito no caso
concreto) é realizada por meio do processo.
Aliás, o Estado não deve somente dizer quem está com a razão, de acordo
com o direito posto e com os fatos que lhe são apresentados. Deve, também, dar ao
vencedor da lide o que lhe é de direito, garantindo que a decisão judicial se cumpra.
O Estado tem a obrigação, por exemplo, de garantir que a dívida reconhecida judicial-
mente seja paga, determinando a penhora dos bens do devedor que não se dispôs
a pagar espontaneamente, para que sejam depois vendidos em leilão e o fruto da
arrematação seja transferido ao credor. Deve, também, expedir mandado de prisão,
nos casos em que acata a pretensão punitiva do Ministério Público e condena o réu a
pena privativa de liberdade. Deve, ainda, determinar a indisponibilidade dos bens de
quem tenha causado danos ao erário, para que os danos sejam ressarcidos. Essas
ações executórias também são realizadas mediante processo.
Perceba que tanto nos casos em que diz quem tem o direito no caso concreto
(“juris-dicção”) como na hipótese em toma as providências necessárias ao cumpri-
mento do julgado, o Estado se utiliza do processo. No primeiro caso, fala-se em
processo de conhecimento e no segundo em processo de execução.55
Mas todos esses processos têm como resultado a produção de um ato de
poder do Estado, que interfere na esfera jurídica de terceiros, a criar direitos e obri-
gações. Com efeito, a sentença proferida em um processo de conhecimento impõe

53
Código de Processo Penal, art. 301. Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes
deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito.
54
A função jurisdicional é típica dos órgãos do Poder Judiciário. Todavia, de forma atípica, outros órgãos estatais
podem exercer função jurisdicional. É o caso do julgamento do Presidente e do Vice-Presidente da República
pelo Senado Federal, no caso de prática de crimes de responsabilidade (CF, art. 52, inc. I).
55
Ensina Antonio Araldo Ferraz Dal Pozzo explica que o processo de execução também é atividade jurisdicional.
Nas palavras do autor, é preciso fazer com que aquele comado concreto (o autor refere-se à sentença) seja
efetivamente obedecido, ainda que contra a vontade do obrigado: aqui a atividade jurisdicional ainda se faz
necessária (DAL POZZO, Antonio Araldo Ferraz. Teoria Geral do novo Processo Civil brasileiro. São Paulo: Con-
tracorrente, 2016, p. 49).

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Direito público e processo

à parte vencida o cumprimento de determinada obrigação (de fazer, de não fazer, de


dar) ou mesmo a restrição à sua liberdade, no caso do processo penal. No processo
de execução, a decisão judicial, por exemplo, torna indisponíveis os bens do execu-
tado, bloqueia seus ativos financeiros, apreende seus veículos, aliena seus imóveis
em hastas públicas. Em todos esses casos há manifestação do poder estatal, mais
especificamente do poder jurisdicional.

6.1  Procedimentos jurisdicionais


Esses atos de poder do Estado-juiz devem ser expedidos de acordo com um
procedimento preestabelecido em lei. Essa sequência de eventos (atos e fatos) de-
nominada processo deve ser regrada por legislação específica. Há diplomas legais
específicos que regulam cada espécie de processo jurisdicional, como o Código
de Processo Penal (Decreto-lei nº 3.689/1941), o Código de Processo Civil (Lei nº
13.105/2015), a Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei nº 9.099/1995),
dentre outras.
Essas leis processuais preveem diferentes procedimentos para cada espécie
de processo. O rito do processo civil de conhecimento, por exemplo, é definido pelos
arts. 318 a 770 do Código de Processo Civil (incluindo aí os procedimentos especiais
de conhecimento). Já o processo civil de execução é tratado nos arts. 771 a 925 do
mesmo codex.
Note bem: todas essas normas processuais existem para garantir tanto a efi-
cácia da função jurisdicional como o respeito aos direitos fundamentais das partes
que litigam e que serão atingidas pela decisão. As regras jurídicas que regulam o
processo devem estar bem definidas, de forma prévia à sua instauração, e devem ser
do conhecimento de todos os contendores.
Regras sobre a citação do réu, sobre as intimações, sobre os requisitos da peti-
ção inicial, audiências de instrução e julgamento, prazos e requisitos da contestação,
efeitos da revelia, provas que podem ser produzidas, prazos processuais, efeitos da
sentença, recursos a instâncias superiores, enfim, as normas que prescrevem de que
forma o processo jurisdicional será realizado devem constar de diplomas legais espe-
cíficos. Afinal, o resultado dessa sequência de atos e fatos influenciará diretamente
na esfera de direitos de alguém.

6.2  Coisa julgada: característica exclusiva do processo


jurisdicional
O respeito às regras procedimentais assume especial importância no processo
jurisdicional, já que a sentença judicial (o resultado do processo) faz coisa julgada. Isto

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é, depois de transitada em julgado, a decisão judicial torna-se imutável, independen-


temente do seu acerto, de ser justa ou injusta. O decurso do prazo sem interposição
de recurso pela parte interessada ou o esgotamento de todos os recursos previstos
legalmente, transformam a decisão final do processo em um ato imodificável. Ou
seja, a dívida foi reconhecida de forma definitiva, o réu foi absolvido definitivamente,
o contribuinte não pode mais discutir sua dívida com o Fisco.56
A coisa julgada foi elevada à categoria de direito fundamental pelo Constituinte
de 1988 (CF, art. 5º, inc. XXXVI). Trata-se, portanto, de cláusula pétrea da Constituição
Federal, inalterável pelo poder constituinte derivado (CF, art. 60, §4º, inc. IV). O funda-
mento da coisa julgada é o princípio da segurança jurídica, que, apesar de não estar
expressamente positivado no Texto Constitucional, permeia muitos dos seus disposi-
tivos e fundamenta vários institutos jurídicos, como a prescrição, a decadência, o ato
jurídico perfeito, a usucapião, dentre outros.57
Ora, quem se submete, voluntaria ou forçadamente, a um processo judicial
quer ter a certeza de que a decisão que lhe cria direitos ou obrigações é definitiva.
Quem perdeu ou quem foi condenado quer ter a certeza de que não será novamente
processado pelo mesmo fato. Quer saber exatamente qual é a sua obrigação e como
cumpri-la. Aquele que ganhou ou que foi absolvido, quer ter a certeza de que não será
proferida outra decisão em sentido contrário. O cidadão que teve sua dívida tributária
extinta por um juiz não pode ficar eternamente sujeito à revisão daquele julgado. Em
algum momento, a decisão proferida no processo deve ser definitiva, resolvendo de
vez a controvérsia, de forma imutável. É isso que trará a pacificação social, finalidade
primeira da função jurisdicional do Estado. Essa é a razão de ser da coisa julgada.
Perceba a importância do processo jurisdicional, que é o único que produz deci-
sões imutáveis. O que foi nele decidido permanecerá por tempo indeterminado, sem
possibilidade de modificação. Uma sentença equivocada (ilegal), depois do trânsito
em julgado, não pode ser alterada, não obstante a sua contrariedade com a ordem

56
No processo penal é possível encontrar exceção à coisa julgada, no que toca à sentença condenatória. Nas
palavras de Julio Fabbrini Mirabete, a autoridade da coisa julgada encontra sua atuação mais completa no
tocante à sentença absolutória, contra a qual não se admite revisão, do que na sentença condenatória que,
mesmo diante do trânsito em julgado, pode ser modificada por várias maneiras: mediante habeas corpus
(CPP, art. 648, VI), por meio de revisão criminal (CPP, art. 621), pela superveniência de causa extintiva da
punibilidade etc. (MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 472). Com
efeito, o art. 621, inc. III, do Código de Processo Penal permite a revisão dos processos findos quando, após
a sentença, se descobrirem novas provas de inocência do condenado ou de circunstância que determine ou
autorize diminuição especial da pena.
57
Rafael Valim ressalta que o princípio da segurança jurídica vem corrigir algumas deformações do princípio da
legalidade decorrentes do esquecimento de que sua origem radica na proteção dos indivíduos em face do
Estado, e não o contrário. Por isso, quando em certo caso concreto prevalece o princípio da segurança jurídica,
não há ruptura da ordem jurídica ou preterição do princípio da legalidade, senão que afirmação do princípio
da legalidade (VALIM, Rafael. O princípio da segurança jurídica no direito administrativo brasileiro. São Paulo:
Malheiros, 2010, p. 50).

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Direito público e processo

jurídica. Daí a enorme importância assumida pelo rito procedimental no processo


judicial. É ele que garante, tanto quanto possível, que as decisões sejam legítimas.
O direito processual, ao criar e regular os diferentes procedimentos jurisdicio-
nais, garante que réu terá o seu direito de defesa assegurado, que não serão pro-
duzidas provas ilícitas, que as partes terão oportunidade de se manifestar sobre as
provas realizadas, que o direito ao recurso possa ser exercido, enfim, que o devido
processo legal, que é direito fundamental previsto constitucionalmente (CF, 5º, inc.
LIV), seja respeitado.
O resultado do processo judicial, a sentença, torna-se imodificável após o decur-
so do prazo para recurso, razão pela qual as garantias do indivíduo que sofre os seus
efeitos devem ser plenamente asseguradas. O indivíduo deve ser defendido contra
arbitrariedades cometidas pelo Estado-juiz da forma mais contundente possível, já
que será atingido por um ato definitivo do Poder Público; um ato que, ainda que ilegal,
será eternizado pela coisa julgada.
A coisa julgada é característica exclusiva do processo jurisdicional. Inexiste no
processo administrativo, cujas decisões podem sempre ser objeto de revisão pelo
Poder Judiciário. E aqui há de se fazer referência a um dos fundamentos do Estado
brasileiro: o princípio da inafastabilidade da jurisdição.
Esse princípio está estampado no art. 5º, inc. XXXV, da Constituição Federal,
que prevê que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça
a direito.
Trata-se de um direito fundamental e, ao mesmo tempo, de um dos alicerces da
organização estatal brasileira, já que impõe que a última palavra sobre a existência
de um direito pertence aos órgãos que compõem o Poder Judiciário. Na tripartição de
funções que decorre do Texto Constitucional pátrio (CF, art. 2º), a derradeira decisão
sobre uma controvérsia jurídica é, sempre, do Judiciário.
Essa, na verdade, é uma característica típica de países de jurisdição una.58 Há
países em que litígios envolvendo o Estado são submetidos a uma jurisdição especial,
que produzirá decisões imutáveis, não sujeitas à apreciação pelos órgãos do Poder
Judiciário. Diz-se que a jurisdição, nesses casos, é dual.59 Os efeitos da coisa julgada
abrangem, nessas nações, tanto as decisões proferidas pelo Poder Judiciário como
as proferidas pela Jurisdição Administrativa. Tudo depende da natureza do litígio que

58
Ricardo Marcondes Martins explica que no sistema de jurisdição única, ou inglês, todos os atos administrativos,
sem exceção, são passíveis de exame pelo Poder Judiciário. Vigora com toda a força, sem admitir exceções,
o princípio do não afastamento do controle judiciário ou, em outras palavras, o direito fundamental à ação
jurisdicional (art. 5º, XXXV, da Constituição) (MARTINS, Ricardo Marcondes. O conceito científico de processo
administrativo. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, 235: 321-381, jan./mar. 2004).
59
Celso Antônio Bandeira de Mello cita como exemplos de países com dualidade de jurisdição a Itália e a
França (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 25. ed., São Paulo: Malheiros,
2008, p. 935).

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se apresenta ao Estado: alguns são solucionados pelos tribunais administrativos e


outros pelos órgãos judiciais.
Não é o caso do Brasil. Aqui, qualquer indivíduo pode recorrer ao Poder Judiciário
sempre que se sentir lesado (CF, art. 5º, inc. XXXV). Alguém que é multado no trânsito
pode até interpor recurso administrativo se assim o desejar, mas, se preferir, pode
buscar a anulação da multa diretamente no Poder Judiciário. Ninguém é obrigado, em
regra, a buscar junto à administração pública a reforma da decisão que lhe é desfa-
vorável para só então, após esgotada a via administrativa, recorrer ao Judiciário. O
esgotamento dos recursos administrativos, no direito brasileiro, não é condição de
acesso ao Poder Judiciário.60

6.3  Enquadramento na categoria ampla de processo


Diante de tudo que vimos até aqui, fica fácil enquadrar o processo jurisdicional
no conceito de processo que expusemos linhas acima. Para compatibilizar o conceito
genérico de processo às peculiaridades do processo jurisdicional, podemos dizer que
o processo jurisdicional é uma sequência de eventos, regulada por lei, que visa à pro-
dução de uma sentença judicial, que interfere na esfera jurídica de terceiros, a criar
direitos e obrigações. A diferença essencial dessa espécie de processo é que o ato
jurisdicional se torna imutável, ao contrário do ato produzido mediante um processo
administrativo.
Estão aqui presentes as características essenciais do processo como categoria
jurídica: formalidade, ou seja, o rito procedimental que funciona como garantia daque-
le que é atingido pela decisão; a competência, diretamente relacionada ao princípio
do juiz natural, que também é uma garantia fundamental do jurisdicionado (CF, art. 5º,
incs. XXXVII e LIII); e o conflito entre o interesse público e o privado. A presença dessa
última característica é facilmente percebida: ninguém quer ser condenado a pena de
reclusão, mas é do interesse público punir quem pratica crimes; ao mesmo tempo,
todos querem que criminosos sejam presos, mas isso não será possível se os direi-
tos individuais do réu não forem respeitados. Não há quem fique feliz em ver os seus

60
Há exceções ao princípio da inafastabilidade da Jurisdição. O art. 217, §1º, da Constituição Federal, por exem-
plo, prevê que o Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após
esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei. Assim, questões relacionadas a competi-
ções desportivas devem ser discutidas em primeiro lugar em instâncias administrativas, e só posteriormente
encaminhadas, se o caso, ao Poder Judiciário. Cuida-se, na verdade, de uma mitigação ao princípio e não pro-
priamente de uma exceção. Ou, poder-se-ia dizer, de uma exceção que confirma a regra, visto que, de qualquer
forma, o acesso ao Judiciário não está negado nesses casos; é apenas e tão somente postergado. Sobre o
tema, a Súmula Vinculante nº 28 do Supremo Tribunal Federal prescreve que é inconstitucional a exigência de
depósito prévio como requisito de admissibilidade de ação judicial na qual se pretenda discutir a exigibilidade
de crédito tributário. A exigência de depósito prévio, segundo o entendimento que fundamenta essa Súmula,
inibiria o acesso ao Poder Judiciário, a negar o exercício do direito fundamental previsto no art. 5º, inc. XXXV,
da Constituição da República (inafastabilidade da jurisdição).

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Direito público e processo

bens penhorados: essa possibilidade é prevista na lei processual para garantir que
os contratos sejam respeitados e a economia funcione. Mas não há como executar
o devedor sem antes lhe garantir a ampla defesa e o contraditório, até mesmo para
assegurar que não haja excessos na cobrança.
Enfim, o processo jurisdicional, como todo processo jurídico, é formado por um
conjunto de regras que permite a compatibilização entre o interesse coletivo e o priva-
do. Esse grupo de normas pode ser denominado devido processo legal (CF, art. 5º, inc.
LV). É essa a vontade da Constituição de um Estado Democrático de Direito como o
nosso: o poder-dever do Poder Judiciário de dizer o direito de forma definitiva há de ser
balizado pelos direitos fundamentais do indivíduo que é atingido por suas decisões.

7  Processo administrativo
Vimos nos itens anteriores que o Estado exerce sua função legislativa por meio
do processo legislativo e sua função jurisdicional por meio do processo jurisdicional.
Nesse mesmo sentido, podemos dizer que a função administrativa é exercida
por meio do processo administrativo.
Pois bem. Estão aí indicadas as três funções estatais e o instrumento para o
seu exercício: o processo.
O processo administrativo, assim como as outras espécies de processo, tam-
bém é uma sequência de eventos, regulada por lei, que visa à produção de um ato
de poder do Estado que interfere na esfera jurídica de terceiros, a criar direitos e
obrigações (item 2).
Imagine que um Município resolva realizar um concurso público para o provimen-
to de cargos vagos (CF, art. 37, inc. II-IV). Há uma sequência de eventos (publicação
do edital, inscrições, provas, classificação, fase recursal, análise de títulos, classifi-
cação definitiva, homologação etc.), regulada normativamente (inclusive pelo edital
do concurso), que visa à produção de um ato de poder estatal (nomeação dos apro-
vados) que interfere na esfera jurídica de terceiros (os candidatos aprovados passam
a ter direito à nomeação, dentro do número de vagas).61 62

61
De acordo com entendimento consolidado do Supremo Tribunal Federal, os candidatos aprovados dentro
do número de vagas previsto no edital do concurso têm direito subjetivo à nomeação. Sobre o tema, há o
acórdão proferido pelo Pleno do STF no RE 598.099-MS em repercussão geral (Relator o Min. Gilmar Mendes,
j. 10.08.2011), cuja ementa é a seguinte: Recurso extraordinário. Repercussão geral. Concurso público.
Previsão de vagas em edital. direito à nomeação dos candidatos aprovados. 1. Direito à nomeação. Candidato
aprovado dentro do número de vagas previstas no edital (...).
62
Oswaldo Aranha Bandeira de Mello também utiliza o concurso para provimento de cargos públicos como
exemplo de procedimento administrativo. Para o autor, o procedimento do concurso engloba uma série de atos
jurídicos autônomos, preparatórios, para culminar no ato jurídico de nomeação, razão última do procedimento,
que ainda se completa com outros atos jurídicos (BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios gerais de
direito administrativo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, vol. I, pp. 547-548).

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Alexandre Levin

Da mesma forma, sempre que a administração pública pretenda adquirir um


bem, construir uma obra ou contratar um serviço deverá, em regra, realizar licitação
(CF, art. 37, inc. XXI). A licitação é um procedimento administrativo que visa à contra-
tação mais vantajosa para a Administração e que, ao mesmo tempo, busca garantir
o tratamento isonômico a todos os que desejam contratar com o Poder Público. Aqui
também há uma sequência de eventos (publicação do edital, classificação, julgamen-
to, habilitação, adjudicação, homologação), regulada por lei e pelo edital do certame,
que produz um ato de poder estatal (a adjudicação do objeto da licitação ao seu
vencedor) que interfere na esfera jurídica de terceiros, a criar direito e obrigações (cria
ao vencedor do certame o direito de não ser preterido em caso de contratação e, ao
mesmo, a obrigação de assinar o contrato com a Administração).

7.1  Procedimento administrativo


Assim como nas outras espécies de processo, o processo administrativo tam-
bém contém formalidades que servem como garantia aos direitos fundamentais dos
administrados. Busca-se garantir que esses direitos sejam respeitados nas relações
estabelecidas com os diferentes órgãos e entidades da administração pública.
Pense no dono de um terreno que deseje construir nele uma edificação. Ele pre-
cisa requerer ao Município a expedição de uma licença para construir (alvará), caso
contrário não poderá edificar no imóvel. Essa licença é um ato de poder do Estado
(um ato administrativo), que confere ao seu titular o direito de construir no terreno de
sua propriedade.
Perceba que o pleno exercício do direito de propriedade do interessado está a
depender de um ato estatal. Em outras palavras: há um direito fundamental (o direito
de usar e gozar da coisa), estampado no art. 5º, inc. XXII, da Constituição Federal,
que somente pode ser exercido na sua plenitude se o Estado expedir o alvará de
construção (afinal, de nada adianta manter o terreno vazio para sempre). É por isso
que a lei deve prever um procedimento administrativo que garanta ao proprietário que
o seu direito seja respeitado.
Ele precisa saber, com a maior precisão possível, como exercer regularmente o
seu direito de edificar, quais são os documentos necessários para ter o seu projeto
de construção aprovado, qual o prazo para apresentar o projeto de edificação, em
quanto tempo deve a Administração analisar o pedido, de que modo ele será notifica-
do acerca da aprovação ou rejeição do pleito, como fará para exercer o seu direito de
recorrer em caso de indeferimento. Enfim, as regras procedimentais para o exercício
do seu direito fundamental devem ser claras, transparentes, objetivas. Regramentos
obscuros podem resultar na prática de arbitrariedades por parte dos órgãos públicos

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Direito público e processo

competentes. Regras procedimentais confusas trazem insegurança jurídica e deixam


o cidadão à mercê da boa vontade estatal.
Não é por outra razão que a União, Estados e Municípios têm editado leis que
regulam o processo administrativo, com normas sobre procedimentos, competência,
atos processuais, comunicação dos atos, instrução probatória, recursos administra-
tivos, prazos para decidir etc.63
O respeito ao procedimento administrativo fixado em lei garante a prevalência
dos direitos fundamentais do indivíduo submetido à ação do Estado. Nesse sentido,
a Constituição Federal garante aos litigantes em processo judicial ou administrativo o
respeito ao contraditório e à ampla defesa, com os recursos a ela inerentes (CF, art.
5º, inc. LV). Não é permitido ao Poder Público, portanto, aplicar sanções administra-
tivas (multa de trânsito, multa ambiental, multa tributária, interdição de imóveis etc.)
sem o respeito ao direito de defesa da pessoa autuada.
Esse conjunto de características comuns aproxima muito o processo administra-
tivo do processo jurisdicional. Mas há diferenças fundamentais.

7.2  Diferenças entre o processo administrativo e o processo


jurisdicional
A principal diferença entre essas duas espécies de processo é que a decisão
proferida no processo administrativo não é atingida pelos efeitos da coisa julgada. Ao
contrário da sentença proferida no processo jurisdicional, os efeitos do ato adminis-
trativo que põe fim ao processo administrativo não se tornam imutáveis. Em um siste-
ma de jurisdição una como o nosso, a decisão administrativa estará sempre sujeita à
apreciação pelo Poder Judiciário. Isso porque vigora no Brasil, como visto, o princípio
da inafastabilidade da jurisdição (CF, art. 5º, inc. XXXV), segundo o qual a lei não pode
excluir da apreciação dos órgãos jurisdicionais lesão ou ameaça de lesão a direito.
Pense no seguinte exemplo: servidor público é demitido por decisão tomada em
um processo administrativo disciplinar. Considerou-se que a falta cometida por ele
foi grave, a ponto de ensejar sua demissão. Imagine que todas as etapas do proce-
dimento disciplinar foram cumpridas regularmente64 e não há mais possibilidade de
interposição de recurso administrativo.
Veja que, ao contrário do processo jurisdicional, esse tipo de decisão proferida
em processo administrativo não faz coisa julgada, ou seja, ainda que não haja mais
possibilidade de interposição de recurso administrativo, pode o servidor apenado

63
No âmbito federal, foi editada a Lei 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração
Pública Federal direta e indireta.
64
No âmbito da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional, o processo administrativo disci-
plinar é regulado pela Lei 8.112/90 (arts. 143 e ss.).

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Alexandre Levin

ingressar em Juízo buscando a anulação do ato de demissão e a sua reintegração


ao cargo do qual era titular. A decisão jurisdicional de invalidação do ato demissório
e de reintegração do agente, essa sim, fará coisa julgada e deverá ser acatada pela
Administração Pública (CF, art. 41, §2º).
Perceba que no processo administrativo o Poder Público é parte e, ao mesmo
tempo, encarregada de proferir a decisão final. Não há a figura do julgador imparcial
e equidistante das partes, como no processo jurisdicional. A Administração conduz
o processo e é diretamente interessada no seu resultado. Por exemplo, o órgão de
trânsito que aplica a multa é o mesmo que julga o recurso interposto pelo interessa-
do. Em uma relação dessa espécie, não seria possível afastar o controle jurisdicional
posterior, esse sim dotado de imparcialidade.
Outra diferença importante entre o processo administrativo e o processo ju-
risdicional é que no primeiro não vigora, como no segundo, o princípio da inércia
da Jurisdição. De acordo com esse princípio, o magistrado não pode instaurar o
processo por iniciativa própria. A Jurisdição é inerte: deve aguardar a provocação pelo
interessado para começar a agir. O autor, ao exercer o seu direito de ação, retira o
Poder Judiciário do seu estado inercial, pleiteando ao Estado-juiz que utilize de sua
força para corrigir uma violação à ordem jurídica.65
Já o processo administrativo pode ser instaurado de ofício pela Administração
Pública. É plenamente reconhecido, inclusive em sede jurisprudencial, o direito que a
Administração tem de rever os próprios atos, quando eivados de ilegalidade.66 Imagine
que determinada autoridade administrativa constate ter havido fraude em concurso
para provimento de cargos públicos. O agente competente não precisa aguardar a
propositura de ação judicial por parte de algum interessado: pode ele mesmo anular
total ou parcialmente o exame e punir os responsáveis, diante da irregularidade exis-
tente. Esse é o chamado poder de autotutela da Administração Pública: o processo
administrativo do qual resultará a anulação de um ato inválido pode ser instaurado de
ofício, sem necessidade de provocação, ao contrário do que ocorre com o processo
jurisdicional.

65
O princípio da inércia da Jurisdição incide tanto no processo civil (Código de Processo Civil, art. 2º) quanto no
processo penal (Código de Processo Penal, arts. 24, 28 e 30). O juiz criminal, por exemplo, não pode determi-
nar de ofício a instauração de ação penal contra um infrator: deve aguardar seja apresentada a denúncia pelo
Ministério Público.
66
É sempre lembrada, nesse sentido, a Súmula 473 do Supremo Tribunal Federal: A administração pode anular
seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos;
ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada,
em todos os casos, a apreciação judicial. Na mesma direção, o art. 53 da Lei 9.784/99 (regula o processo
administrativo no âmbito da Administração Pública Federal), segundo o qual a Administração deve anular
seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou
oportunidade, respeitados os direitos adquiridos.

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Direito público e processo

7.3  Enquadramento na categoria ampla de processo


A existência de um procedimento preestabelecido em lei, garantidor dos direitos
fundamentais do administrado, é um dos elementos que, como vimos, torna possível
enquadrar o processo administrativo na categoria ampla de processo jurídico-estatal,
ou seja, de instrumento jurídico de manifestação de poder do Estado.
Mas não é só.
A competência também é elemento essencial do processo administrativo, as-
sim como nos processo jurídico-estatais em geral. Deve ser fixada em lei e é atribuída
a uma autoridade específica, que atua junto a determinado órgão público. As regras
de competência também funcionam como garantia ao administrado: a partir delas,
ele é capaz de saber qual autoridade poderá lhe impor determinado dever e quais são
os limites dentro dos quais esse poder poderá ser exercido.
As normas de competência não servem apenas para conferir poderes à auto-
ridade administrativa, para que ela possa cumprir, como agente estatal, as funções
atribuídas pela Constituição e pelas leis à Administração Pública. Elas funcionam,
também, como limitação a esse poder. Como o Estado não age por vontade própria,
mas em cumprimento ao que diz a lei, os agentes estatais devem se ater às regras
de competência que dizem exatamente quais são os seus poderes, ou melhor, os
seus poderes-deveres.
É por isso que a multa aplicada por autoridade incompetente é inválida e que
o uso do poder além dos limites legais torna o ato ilegal. A autoridade que pratica
o ato com abuso ou excesso de poder ofende uma regra essencial do processo, a
competência, que constitui, como dito, uma garantia do administrado.
A Lei nº 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito da
Administração Pública Federal, prevê algumas regras sobre competência, dentre elas,
o art. 11, segundo o qual a competência é irrenunciável e se exerce pelos órgãos
administrativos a que foi atribuída como própria, salvo os casos de delegação e avo-
cação legalmente admitidos. Em outras palavras, a autoridade não pode abdicar da
titularidade da competência que lhe foi outorgada por lei; pode apenas delegar a sua
execução a um subordinado.67 Perceba a importância que a lei federal dá à compe-
tência no âmbito administrativo. Assim como no processo jurisdicional, o interessado
no resultado de um processo administrativo (licitação, concurso público, disciplinar
etc.) deve saber quem será a autoridade que decidirá a controvérsia e quais os limites
em que o seu poder será exercido. A competência também funciona, aqui, como uma
garantia ao administrado.

67
Mas há limites ao poder de delegação. Nos termos do art. 13 da Lei 9.784/99, não podem ser objeto de
delegação: I – a edição de atos de caráter normativo; II – a decisão de recursos administrativos; III – as
matérias de competência exclusiva do órgão ou autoridade.

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Alexandre Levin

O embate entre o interesse público e o privado também está presente no pro-


cesso administrativo, assim como em qualquer espécie de processo jurídico-esta-
tal.68 Pense no processo de desapropriação: é raro encontrar alguém que não se
importe em ter o seu imóvel expropriado. Trata-se de uma intervenção estatal de grau
máximo na propriedade privada, pois o imóvel é retirado de seu proprietário e passa
compulsoriamente às mãos do Estado. O Poder Público necessita do imóvel para
construir obras públicas e impõe sua força para expropriar o bem do particular, ainda
que esse deseje permanecer no domínio da coisa expropriada. É um exemplo clássico
de supremacia do interesse público sobre o particular. Mas até em situações como
essa o Estado tem de agir no sentido de fazer prevalecer os direitos fundamentais
previstos no Texto Constitucional. Na hipótese, incidem os dispositivos constantes
do art. 5º, incisos XXII e XXIV, da Constituição Federal; o primeiro deles prevê o direito
fundamental à propriedade privada e o segundo estabelece que a desapropriação
somente poderá ser efetivada mediante justa e prévia indenização em dinheiro. Isso
quer dizer que o próprio Texto Constitucional tratou de equacionar o conflito entre o
poder expropriatório do Estado e os direitos do proprietário: o processo de desapro-
priação somente poderá ser levado a efeito se o Poder Público pagar um preço justo
pelo imóvel. E pagá-lo antes que o domínio seja transferido em definitivo ao ente
expropriante.
Perceba que o processo administrativo de desapropriação funciona como uma
garantia ao indivíduo: uma garantia de que ninguém perderá seu imóvel para o Estado
sem que uma justa e prévia indenização seja paga. Essa é a função do processo: as-
segurar a prevalência dos direitos fundamentais, constitucionalmente assegurados.
Não resta dúvida, portanto, acerca da inclusão do processo administrativo na
categoria de processo jurídico-estatal. O processo também funciona, aqui, ao mesmo
tempo, como instrumento e como limite ao poder do Estado.

8  Processo e procedimento
Deixamos propositalmente para este momento a abordagem acerca da diferen-
ça entre as expressões processo e procedimento, porque, depois de tudo o que foi
exposto até aqui, torna-se possível visualizar melhor a diferença entre os termos.

68
Diogenes Gasparini define o processo administrativo como o conjunto de medidas jurídicas e materiais pratica-
das com certa ordem e cronologia, necessárias ao registro dos atos da Administração Pública, ao controle do
comportamento dos administrados e de seus servidores, a compatibilizar, no exercício do poder de polícia, os
interesses público e privado, a punir seus servidores e terceiros, a resolver controvérsias administrativas e a
outorgar direitos a terceiros (GASPARINI, Diogenes. Direito administrativo. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p.
934). Perceba a referência ao embate entre o interesse público e o privado, presente, na verdade, em qualquer
processo estatal.

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Direito público e processo

Há uma intensa discussão doutrinária a respeito. Existem autores que consi-


deram processo e procedimento termos sinônimos, ou seja, utilizam indistintamente
uma e outra expressão.69
Digno de nota é o entendimento de Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari sobre
a questão. Os autores manifestam sua opção pelo uso da expressão processo admi-
nistrativo e o fazem por razões lógicas, normativas e axiológicas. Explicam que, em
primeiro lugar, se o direito processual em geral diferencia as duas expressões, não
há porque usar, no direito administrativo, o termo procedimento administrativo para
nominar, a um só tempo, o processo e o procedimento. Sob o ponto de vista norma-
tivo, argumentam que a Constituição Federal utiliza o termo processo administrativo
(CF, art. 5º, inc. LV) e, sob a ótica axiológica, consideram inaceitável a generalização
do uso do rótulo ‘procedimento administrativo’ para indicar, a um só tempo, o iter
que leva à formulação e exteriorização da vontade administrativa e a relação jurídica
que as emoldura, já que a própria Constituição outorgou ao processo administrativo
a mesma índole e o mesmo alcance do processo judicial, no que diz respeito às
garantias da cidadania, em atenção aos reclamos históricos da doutrina que sempre
tratou do assunto.70
O tema assume especial relevância porque a Constituição Federal trata de for-
ma diversa as duas expressões, ao menos no que tange à edição de regras sobre o
processo jurisdicional. No seu art. 22, inc. I, o Texto Constitucional estabelece que é
competência privativa da União legislar sobre direito processual, enquanto que no art.
24, inc. XI, prescreve que compete à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios legislar concorrentemente sobre procedimentos em matéria processual.
Ricardo Marcondes Martins, ao discorrer sobre esses dispositivos, afirma que
o constituinte elaborou um sistema de difícil compreensão. De um lado, só a União
pode legislar sobre direito processual (competência privativa), mas, de outro, Estados e
Municípios também podem legislar sobre procedimentos, desde que se limitem a editar

69
Celso Antônio Bandeira de Mello observa que a nomenclatura mais comum no Direito Administrativo é
procedimento, mas que, como a Lei Federal 9.784/99 (que regula o processo administrativo no âmbito da
Administração Federal direta, autárquica e fundacional) utiliza a expressão processo, passou-se a se empregar
com mais frequência esse termo. O autor, como não há pacificação doutrinária sobre esse tópico, utiliza
indistintamente uma e outra nomenclatura (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo.
25. ed., São Paulo: Malheiros, 2008, p. 478). Para se ter uma ideia do tamanho da controvérsia, o Professor
Romeu Felipe Bacellar Filho apresenta um rol de onze posições doutrinárias diversas sobre o tema, da lavra de
autores nacionais e estrangeiros (BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Processo administrativo disciplinar. 4. ed.
São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 41-48).
70
FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo administrativo. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, pp.
37-41. Outro autor que se debruça sobre o tema é José dos Santos Carvalho Filho. Para o autor, processo e
procedimento não são coisas antagônicas, mas sim figuras intrinsecamente ligadas entre si: todo processo
demanda um procedimento – que é a tramitação dos atos –, da mesma forma que todo o procedimento só tem
existência se houver o respectivo processo –, este indicando a relação jurídica firmada entre aqueles que dele
participam (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 28. ed. São Paulo: Atlas,
2015, p. 1007).

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Alexandre Levin

normas suplementares às normas gerais editadas pela União (competência concor­


rente).71 No entender do autor, em razão dessas previsões, a Constituição dissociou
claramente processo e procedimento, ao menos para o exercício da competência. Em
matéria de procedimento, a competência da União limita-se a editar normas gerais,
enquanto que tudo o mais da matéria processual que não se restrinja aos procedimentos,
ou seja, a disciplina da relação jurídica processual, é competência privativa da União. A
conclusão a que chega é que há uma sequência de atos normativamente encadeados,
em que cada ato é consequente do posterior e decorrente do anterior, denominada
procedimento, e uma relação jurídica entre os interessados e o Poder Público, abran­
gente de todas as situações que surjam durante o procedimento. Portanto, a matéria
processual é composta por a) disciplina da relação jurídica e b) procedimento. Portanto,
relação jurídica processual (processo) e procedimento são coisas diversas.72
A opinião do autor sobre o tema nos parece irretocável. Com efeito, o processo
jurídico-estatal é uma sequência de atos jurídicos estabelecida em lei (procedimento),
mas é também todas as outras relações jurídicas estabelecidas entre o Estado e
o indivíduo sujeito ao poder estatal, relações essas que surgem do exercício das
funções estatais (legislar, administrar, julgar), que se dá justamente mediante o
processo, como visto no decorrer deste texto.73
Pense no processo de licitação. Ele é formado não somente pelo procedimento
(publicação do edital, classificação, julgamento, habilitação, adjudicação, homo­lo­ga­
ção), mas também pelas relações jurídicas que surgem entre o ente público licitante
e todos os interessados no certame. E entenda-se por interessados no certame não
somente os que participam da licitação para conseguir contratar com a Administração
Pública, mas também o indivíduo que impugna o edital,74 os órgãos de fiscalização
(Tribunais de Contas, Ministério Público) que apontam irregularidades, os servidores

71
Na competência concorrente, a União edita normas gerais e Estados, Distrito Federal e Municípios normas su-
plementares (CF, art. 24, §1º, e 30, inc. II). Os aspectos gerais da matéria são tratados pela União, de maneira
uniforme para todo o território nacional, enquanto que as peculiaridades regionais e locais sobre o assunto são
objeto da legislação específica de cada Estado e de cada Município.
72
MARTINS, Ricardo Marcondes. O conceito científico de processo administrativo. Revista de Direito Administra-
tivo. Rio de Janeiro, 235: 321-381, jan./mar. 2004.
73
Teresa Arruda Alvim Wambier afirma que para a noção de processo, interessam fundamentalmente as ideias
de relação jurídica – que é a que se estabelece entre os sujeitos do processo: autor, juiz e réu – e a da finalida-
de – no sentido de vocação do fluxo dos atos consecutivos e interligados, que porão em movimento a relação
já referida, vocação esta que consiste, concretamente, na obtenção de um pronunciamento judicial de caráter
definitivo. À concepção da noção de procedimento dizem respeito as noções de movimento dessa relação
jurídica no tempo e, mais especificamente, o aspecto exterior desta movimentação, ou seja, de que atos se
trata, como se entrelaçam etc. (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Nulidades do processo e da sentença. 4. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 21).
74
A Lei 8.666/93, norma geral de licitações e contratos, prevê que qualquer cidadão é parte legítima para
impugnar edital de licitação por irregularidade na aplicação desta Lei (art. 41, §1º).

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Direito público e processo

que compõem a comissão de licitação, enfim, todos os que se relacionam diretamente


com o Estado em virtude do certame licitatório.
A realidade maior é o processo. Tudo o que o Estado faz é por meio do proces-
so.75 Mas dentro dessa realidade maior está o procedimento, que tem como objetivo
assegurar que a relação jurídica processual se desenvolva com o pleno respeito aos
direitos fundamentais da pessoa atingida pelo poder estatal. O procedimento, regu-
lado por lei, se desenvolve no interior de um processo estatal, seja ele legislativo,
administrativo ou jurisdicional.
É por essa razão que, nos diversos capítulos deste trabalho, procuramos dedicar
um tópico às várias categorias de processo e outro aos respectivos procedimentos.

9  Panorama das garantias constitucionais das pessoas nos


processos estatais
Como tivemos a oportunidade de afirmar inúmeras vezes ao longo deste traba-
lho, o processo em si já constitui uma garantia à pessoa contra o abuso de poder
estatal. Em outras palavras, o processo, como categoria jurídica, é um escudo nas
mãos do indivíduo, a ser utilizado na defesa contra eventuais arbitrariedades cometi-
das pelo Estado no exercício dos poderes que lhe foram legalmente atribuídos.
O procedimento estabelecido legalmente, as formalidades processuais, a com-
petência definida no ordenamento são todos elementos da relação processual que
visam estabelecer regras claras sobre como o poder estatal incidirá sobre o indiví-
duo. O empresário que deseja iniciar uma atividade comercial em determinado imóvel
quer regras claras a respeito do processo administrativo de expedição do alvará de
funcionamento (prazo, documentos necessários, autoridade competente); aquele que
é réu em processo criminal quer saber como e quando poderá produzir provas em
sua defesa; o autor de uma ação judicial quer saber os prazos e os recursos de que
dispõe em caso de improcedência dos pedidos formulados.
Pois bem. Diante da importância que tem o processo para o legítimo desem-
penho do poder estatal e não obstante o sistema de regras processuais constante

75
Maria Sylvia Zanella Di Pietro explica que processo administrativo e procedimento administrativo não se con-
fundem. O processo existe sempre como instrumento indispensável para o exercício de função administrativa,
ou seja, tudo o que a Administração faz, o faz mediante processo. Já o procedimento é o conjunto de for-
malidades que devem ser observadas para a prática de certos atos administrativos; equivale a rito, a forma
de proceder; o procedimento se desenvolve dentro de um processo administrativo (DI PIETRO, Maria Sylvia
Zanella. Direito administrativo. 28. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 766). Outra posição digna de destaque é
a de Romeu Felipe Bacellar Filho. Diz que jurista que todo processo é procedimento, porém a recíproca não
é verdadeira: nem todo procedimento converte-se em processo. Ora nem sempre o exercício da competência
envolve a atuação de interessados sob a incidência do contraditório e ampla defesa. Para o autor, portanto,
processo é o procedimento em que se dá o contraditório e a ampla defesa (BACELLAR FILHO, Romeu Felipe.
Processo administrativo disciplinar. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 52-53).

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da legislação ordinária, o Poder Constituinte houve por bem incluir no Texto da Carta
de 1988 diversos dispositivos veiculadores de garantias às pessoas submetidas à
decisão processual.
Veremos nas linhas seguintes, ainda que de forma um tanto resumida, dadas as
limitações deste escrito, um panorama geral acerca dessas garantias constitucionais.

9.1  Devido Processo legal


Consta do art. 5º, inc. LIV, da Constituição Federal que ninguém será privado da
liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Ou seja, o respeito ao devido
processo legal é um direito fundamental do indivíduo.
Trata-se do princípio mais importante do direito processual e serve como fun-
damento para todos os outros princípios e regras processuais.76 Respeitar o devido
processo legal equivale a obedecer às normas que disciplinam os processos esta-
tais. Esses regramentos existem, como visto, para viabilizar o exercício das funções
públicas (legislativa, administrativa e jurisdicional) e, ao mesmo tempo, proteger a
pessoa submetida ao poder do Estado. Portanto, observar o devido processo legal
equivale a respeitar os direitos fundamentais de todos aqueles atingidos pelos efei-
tos das decisões estatais, sejam leis, sentenças ou atos administrativos.
Perceba que o princípio do devido processo legal há de ser observado em todas
as espécies de processo estatal. As regras do procedimento legislativo, as normas
de competência do processo judicial, as formalidades do processo administrativo,
enfim, em todas as categorias processuais há regramentos que dão forma ao devido
processo legal e que devem ser acatadas justamente para garantir a prevalência do
princípio. Há, portanto, o devido processo legislativo, o devido processo jurisdicional e
o devido processo administrativo. Todos eles são constituídos por regras e princípios
jurídicos específicos que precisam ser devidamente respeitados, sob pena de nulida-
de do ato final proferido pelo Estado em cada um desses processos. Desobedecer às
leis processuais significa desrespeitar o direito fundamental de se sujeitar apenas a
decisões estatais proferidas de acordo com o devido processo legal.77

76
No entender de Nelson Nery Junior, bastaria a Constituição Federal ter previsto o princípio do devido processo
legal (expressão oriunda da inglesa due processo of law), para que daí decorressem todas as consequências
processuais que garantiriam aos litigantes o direito a um processo e a uma sentença justa. É, por assim dizer,
o gênero do qual todos os demais princípios constitucionais do processo são espécies (NERY JUNIOR, Nelson.
Princípios do processo civil na Constituição Federal. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 60).
77
A doutrina atual defende que cláusula do devido processo legal deve ser entendida sob o aspecto material e
processual. Fala-se, portanto, em substantitve due process e procedural due process (NERY JUNIOR, Nelson.
Princípios do processo civil na Constituição Federal. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 65). O
primeiro, o devido processo legal substantivo, refere-se a normas de direito material que devem ser seguidas por
toda autoridade pública que profere um ato de poder. O segundo é relativo às regras que disciplinam o processo
de produção de atos normativos estatais (sentença, lei e ato administrativo). Assim, o agente deve decidir com
observância tanto do direito processual quanto do direito material, tendo como norte, especialmente, os valores

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Direito público e processo

9.2  Ampla defesa e contraditório


A ampla defesa e o contraditório são dois dos princípios que compõem o devido
processo legal. Estão expressamente previstos no art. 5º, inc. LV, da Constituição
Federal, segundo o qual, aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos
acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e
recursos a ela inerentes. Perceba que o Texto Constitucional foi explícito ao estender
a incidência desses princípios também ao processo administrativo.
O processo de decisão estatal não pode ser considerado válido sem a observân-
cia dessas duas normas principiológicas. Vamos a elas.

9.2.1  Ampla defesa e duplo grau de jurisdição


A ampla defesa consiste em possibilitar aos interessados a chance de se defen-
der das acusações da forma mais ampla possível, utilizando todos os meios de prova
legalmente admitidos. Tanto o réu no processo jurisdicional (civil ou penal) como o
acusado em processo administrativo (por exemplo, servidor acusado em processo
disciplinar)78 têm direito a contestar as acusações que lhe são imputadas e a apre-
sentar elementos que infirmem sua responsabilidade.
São várias as regras processuais fundamentadas no princípio. No processo juris-
dicional, estão previstas, por exemplo: a) normas acerca da apresentação formal da
acusação no processo criminal (Código de Processo Penal, art. 41);79 b) regras sobre
o interrogatório do acusado, a ser realizado na presença do defensor (CPP, art. 185);80

jurídicos fundamentais albergados pelo Texto Constitucional. Sobre o tema, explica Lúcia Valle Figueiredo que
o due process of law também tem um conteúdo material e não somente formal. Nas palavras da autora, os
processualistas da atualidade entendem que está contido, no ‘due process of law’, conteúdo material. Somente
respeitará o ‘due processo of law a lei – e assim poderá ser aplicada pelo magistrado – se não agredir, não
entrar em confronto, não entrar em testilha, com a Constituição, com seus valores fundamentais (FIGUEIREDO,
Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 443). Imagine a existência de
uma lei que permitisse a prática da tortura para obter confissões do réu e das testemunhas em um processo
penal. A ofensa ao devido processo legal substantivo seria evidente e a lei não poderia ser aplicada pelos
Juízes, posto contrariar frontalmente um valor jurídico introduzido na Constituição Federal, qual seja, a proibição
à tortura e ao tratamento desumano ou degradante (CF, art. 5º, inc. III).
78
Sobre a ampla defesa nos processos administrativos em andamento perante os Tribunais de Contas, vale
ressaltar que a Súmula Vinculante nº 3 do Supremo Tribunal Federal impõe que nos processos perante
o Tribunal de Contas da União asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder
resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da
legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão.
79
CPP, Art. 41. A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias,
a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime
e, quando necessário, o rol das testemunhas. A peça inicial do processo criminal (denúncia ou queixa) deve
conter, portanto todos os elementos que permitam ao réu conhecer as acusações que lhe são imputadas e se
defender contra elas.
80
CPP, art. 185. O acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, será
qualificado e interrogado na presença de seu defensor, constituído ou nomeado.

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c) citação do réu (Código de Processo Civil, arts. 238 a 259;81 CPP, arts. 351 a 369);
d) nomeação de defensor dativo para o réu que não tenha constituído advogado (CPP,
art. 263);82 e) nomeação de curador especial ao incapaz que não tenha representante
legal, ao réu preso revel e ao réu citado por edital ou com hora certa, enquanto não
for constituído advogado (CPC, art. 72); f) a possibilidade de empregar na defesa do
réu todos os meios de prova legalmente admitidos.83
Nas leis que regulam o processo administrativo também há várias regras funda-
mentadas no princípio da ampla defesa. Por exemplo, o art. 3º da Lei nº 9.784/99,
que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal,
determina que o administrado tem o direito de: a) ser cientificado da tramitação dos
processos administrativos em que tenha a condição de interessado; b) ter vista dos
autos, obter cópias e documentos neles contidos e conhecer as decisões proferidas;
c) formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, que serão objeto
de consideração pelo órgão competente; d) fazer-se assistir, facultativamente, por
advogado, salvo quando for obrigatória a representação, por força de lei. No pro-
cesso administrativo disciplinar, que é instaurado para verificar a responsabilidade
funcional do servidor público, o princípio também prevalece. Por exemplo, a Lei nº
8.112/90, que dispõe sobre o regime jurídico aplicável aos servidores públicos civis
da Administração Federal direta, autárquica e fundacional, assegura ao servidor acu-
sado, o direito de acompanhar o processo pessoalmente ou por intermédio de pro-
curador, arrolar e reinquirir testemunhas, produzir provas e contraprovas e formular
quesitos, quando se tratar de prova pericial.84
Decorrência direta do princípio da ampla defesa, o princípio do duplo grau de juris-
dição está previsto de forma implícita na Constituição Federal. O Texto Constitucional
atribui competência recursal a vários órgãos do Poder Judiciário (CF, art. 102, inc.
II; art. 105, inc. II; art. 108, inc. II) e institui expressamente, sob a denominação

81
Prevê o Código de Processo Civil que a citação é o ato pelo qual são convocados o réu, o executado ou o
interessado para integrar a relação processual (art. 238) e que, para a validade do processo, é indispensável
a citação do réu ou do executado, ressalvadas as hipóteses de indeferimento da petição inicial ou de
improcedência liminar do pedido (art. 239). A citação é ato processual destinado a garantir que o réu saiba da
existência da ação judicial e que possa se defender das acusações que lhe são imputadas.
82
CPP, art. 263. Se o acusado não o tiver, ser-lhe-á nomeado defensor pelo juiz, ressalvado o seu direito de, a
todo tempo, nomear outro de sua confiança, ou a si mesmo defender-se, caso tenha habilitação.
83
CPC, art. 369. As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos,
ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a
defesa e influir eficazmente na convicção do juiz.
84
Explica Antonio Carlos Alencar Carvalho que, como o processo administrativo disciplinar envolve a possível
punição de servidor, não se pode convir que a Administração Pública, pretendendo consumar seu intento
prévio de penalizar o acusado, crie instrumentos voltados a dificultar a dialética processual, com vistas e
impedir ou cercear o direito do imputado de produzir provas e contraprovas, de oferecer razões defensórias,
de participação ativa e passiva na atividade instrutória, tudo como meio de o Estado converter o procedimento
(que deveria ser democrático e contraditorial) num instrumento arbitrário e unilateralista (CARVALHO, Antonio
Carlos Alencar. Manual de processo administrativo disciplinar e sindicância: à luz da jurisprudência dos
Tribunais e da casuística da Administração Pública. 4. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 297).

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de tribunais, órgãos judiciais de segundo grau (CF, art. 93, inc. III).85 Obviamente,
o Constituinte não introduziria tais previsões se não desejasse garantir, de forma
plena, o exercício do direito de recorrer pela parte interessada.
A norma que garante o direito ao recurso parte da presunção de que o juiz de
primeira instância pode proferir decisão equivocada, que deve ser reformada pelo
Juízo superior. A parte vencida deve ter a chance de ter o seu pedido novamente
analisado por outro julgador, que poderá reformar ou manter a primeira decisão, mas
que, certamente, contribuirá para que a decisão estatal seja tomada dentro do que
prescreve o ordenamento jurídico.

9.2.2  Princípio do contraditório (dialética processual)


O princípio do contraditório, por sua vez, impõe seja a decisão da autoridade
tomada a partir do diálogo entre as partes envolvidas no processo. O juiz no processo
jurisdicional e a autoridade no processo administrativo não podem tomar decisões
sem dar oportunidade de manifestação a todos os interessados sobre as alegações
apresentadas e as provas produzidas durante a instrução processual. Assim, ao réu
deve ser garantida a possibilidade de contestar as alegações do autor; ao autor e ao
réu deve ser dada oportunidade de se manifestar sobre as provas produzidas pela
outra parte (manifestação sobre laudo pericial e sobre as declarações das testemu-
nhas, por exemplo); às partes deve ser assegurada a chance de se manifestar sobre
as razões de recurso apresentadas pelo outro litigante.86
Perceba que o contraditório deve existir ainda que acusador e julgador sejam a
mesma pessoa. Isso acontece no processo administrativo, em que o Poder Público,
ao mesmo tempo, instaura e julga o processo sancionatório. Mas tal não afasta a
exigência de que as alegações apresentadas pelo acusado sejam levadas em conta
pela autoridade administrativa, que deve apresentar os motivos pelos quais não as
aceitou como fundamento de absolvição.
As regras a respeito da intimação das partes no decorrer do processo estão di-
retamente ligadas ao princípio do contraditório. Autor e réu no processo jurisdicional e
as partes interessadas no processo administrativo devem ser devidamente intimadas
para apresentar suas alegações finais, produzir provas, participar da oitiva de tes-
temunhas, oferecer quesitos ao peritos e assistentes técnicos. Essas regras estão

85
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do
Processo. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 99.
86
Nas palavras de Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari, o princípio do contraditório exige um diálogo: a alternância
das manifestações das partes interessadas, durante a fase instrutória. A decisão final deve fluir da dialética
processual, o que significa que todas as razões produzidas devem ser sopesadas, especialmente aquelas
apresentadas por quem esteja sendo acusado, direta ou indiretamente, de algo sancionável (FERRAZ, Sérgio;
DALLARI, Adilson Abreu. Processo administrativo. 2. ed. São Paulo: Malheiros 2007, pp. 92-93).

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previstas tanto para o processo jurisdicional (CPC, arts. 269 a 275; CPP, arts. 370
a 372) como para o processo administrativo (Lei nº 9.784/99, arts. 26 a 28). Vale
destacar a previsão contida do art. 26, §5º, da Lei nº 9.784/99, que regula o proces-
so administrativo em âmbito federal. De acordo com esse dispositivo, as intimações
serão nulas quando feitas sem observância das prescrições legais, mas o compare-
cimento do administrado supre sua falta ou irregularidade. Perceba a importância da
intimação como ato garantidor do contraditório processual: a inobservância das re-
gras relativas à intimação dos interessados pode gerar a nulidade do procedimento.87
Ainda sobre o contraditório no processo administrativo, cumpre destacar a pre-
visão do art. 38 da Lei nº 9.784/99, que permite ao interessado, na fase instrutória
e antes da tomada de decisão, juntar documentos e pareceres, requerer diligências
e perícias, bem como aduzir alegações referentes à matéria objeto do processo. E o
§1º do mesmo dispositivo prescreve que os elementos probatórios deverão ser con-
siderados na decisão administrativa. Essa é outra faceta do princípio do contraditório:
não basta à autoridade dar oportunidade de manifestação às partes; é necessário
levar em consideração os argumentos apresentados, apresentando expressamente
as razões que levaram à sua desconsideração.
O princípio do contraditório pode ser considerado uma decorrência do princípio
da igualdade, insculpido no art. 5º, caput, da Constituição Federal. O Poder Público
deve tratar igualmente as partes no âmbito do processo, seja jurisdicional ou adminis-
trativo. Assim, os interessados devem ter as mesmas oportunidades de apresentar
suas alegações e contribuir com a autoridade para a justa solução da controvérsia
apresentada.88 Aquele que julga não pode ter convicções preestabelecidas: deve ouvir
e levar em consideração, efetivamente, as alegações das partes, antes de proferir a
decisão que porá fim ao processo.

9.3  Princípio da imparcialidade


A autoridade que decide uma controvérsia, no âmbito administrativo ou juris-
dicional, deve atuar de forma imparcial. Não podem ser concedidos privilégios para

87
De acordo com o Código de Processo Civil, se anulada a intimação, considerar-se-ão de nenhum efeito todos
os subsequentes que dele dependam, todavia, a nulidade de uma parte do ato não prejudicará as outras que
dela sejam independentes (CPC, art. 281).
88
Lembra Vicente Greco Filho que o conceito de igualdade processual não é absoluto. Nos dizeres do autor, não
viola o princípio da igualdade o tratamento diferenciado dado a menores e incapazes que têm a assistência
do Ministério Público, à Fazenda Pública, que tem o prazo em dobro para recorrer (...) e o reexame obrigatório
das sentenças que lhe forem desfavoráveis (GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. São
Paulo: Saraiva, 2002, pp. 63-64). Nas hipóteses indicadas pelo autor, o discrímen legal é convivente com o
princípio da isonomia, presente, conforme lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, uma correlação lógica
entre os fatores diferenciais existentes e a distinção de regime jurídico em função deles, estabelecida pela
norma jurídica (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São
Paulo: Malheiros, 2008, p. 41).

84 R. bras. de Infraestrutura – RBINF | Belo Horizonte, ano 6, n. 12, p. 45-92, jul./dez. 2017

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Direito público e processo

essa ou aquela parte; o julgador não pode beneficiar de forma ilegítima qualquer um
dos interessados na solução da controvérsia. Não pode haver interesse pessoal por
parte da autoridade que julga no deslinde da questão; caso contrário, ela decidirá de
acordo com seus próprios interesses. Nos processos administrativos não sanciona-
tórios, como a licitação, os interessados também devem ser tratados de forma impar-
cial, isto é, a Administração não pode favorecer ilegalmente esse ou aquele licitante.
Os critérios objetivos de julgamento estabelecidos no edital devem ser fielmente
observados, a fim de que vantagens indevidas não sejam concedidas a qualquer um
dos concorrentes.
A Constituição Federal promove o princípio da imparcialidade do juiz à categoria
de direito fundamental. No art. 5º, inc. XXXVII, prevê que não haverá juízo ou tribunal
de exceção e no inc. LIII do mesmo dispositivo determina que ninguém será proces-
sado nem sentenciado senão pela autoridade competente.
A proibição da existência de juízo ou tribunal de exceção corresponde ao cha-
mado princípio do juiz natural. De acordo com esse princípio, um órgão julgador não
pode ser criado para a apreciação de controvérsia já ocorrida ou para o julgamento de
alguém que já tenha cometido a infração.89 O surgimento de instância julgadora para
apreciar um fato jurídico já ocorrido afasta a garantia de que a autoridade apreciará
os fatos com isenção: o Juízo ad hoc pode ter sido nomeado exclusivamente para
beneficiar ou para prejudicar de forma ilegítima o réu ou acusado.90
As regras de competência, estabelecidas na Constituição Federal e nas leis pro-
cessuais, também são uma garantia de imparcialidade, na medida em que proíbem
a escolha discricionária da autoridade julgadora depois de ocorrido o fato. Em outras
palavras, o Juízo competente para a apreciação de determinada controvérsia deve ser
definido com base em regras pré-definidas, a fim de que se evite seja direcionado o
caso, de forma arbitrária e casuística, a esse ou àquele magistrado.91
É por essa razão que, proposta a ação judicial, será ela distribuída de forma
automática, por sorteio, a um dos Juízes competentes. Não pode ser indicado um

89
Nas palavras de Fernando da Costa Tourinho Filho, juiz natural é o Juiz previsto explícita ou implicitamente na
Constituição, instituído previamente por lei para um determinado setor de relações, de fatos ou de pessoas.
Juiz natural é aquele que tem competência ‘ante factum’ (TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Prática de
processo penal. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 62).
90
Pondera Antonio Araldo Ferraz Dal Pozzo que o princípio do juiz natural é uma garantia dos cidadãos, mas é
também uma garantia do próprio juiz¸ que não pode ter uma causa subtraída de sua competência (DAL POZZO,
Antonio Araldo Ferraz. Teoria Geral do novo Processo Civil brasileiro. São Paulo: Contracorrente, 2016, p. 111).
91
Explica Arruda Alvim que a função jurisdicional, poder-função enraizado na própria soberania (art. 2º da CF/1988)
é naturalmente abstrato e que sua concretização se dá por meio da previsão das regras de competência. Pela
competência, atribui-se a função jurisdicional a um ou mais órgãos do Poder Judiciário, o que possibilita àquele
ou àqueles órgãos (quando mais de um órgão for abstratamente competente), com exclusividade, o exercício
desse poder, a partir do momento em que nele se fixe a competência, com a propositura da ação e com a
ocorrência da prevenção (ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil. 16. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2013, p. 294).

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juiz específico para o julgamento, sob pena de ameaça à imparcialidade que deve
caracterizar a atuação do Poder Público.92
As regras de impedimento e suspeição, válidas tanto para o processo juris-
dicional como para o administrativo,93 também são fundamentadas no princípio da
imparcialidade. Autoridades impedidas ou suspeitas não possuem a neutralidade
necessária para decidir com isenção.

9.4  Princípio da proibição da prova ilícita


De acordo com o art. 5º, inc. LVI, da Constituição Federal são inadmissíveis,
no processo, as provas obtidas por meios ilícitos. Isso quer dizer que a autoridade
competente não pode fundamentar sua decisão em provas obtidas de forma ilegal,
isto é, provas colhidas com desrespeito a outros direitos e garantias fundamentais.94
Note: a Constituição Federal prescreve que a casa é asilo inviolável do indivíduo
e que ninguém nela pode entrar sem consentimento do morador, salvo em caso de
flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determina-
ção judicial (CF, art. XI). Assim, prova colhida mediante busca e apreensão realizada
sem mandado judicial é ilícita, não pode ser considerada para a solução da contro-
vérsia levada ao Judiciário. Isso porque, no caso, a prova foi obtida com violação ao
direito fundamental à inviolabilidade de domicílio. É ilícita a prova obtida por meio de
ação que desrespeite direito fundamental do indivíduo.
Da mesma forma, prova obtida por meio de interceptação telefônica realizada
sem autorização judicial viola o direito fundamental ao sigilo das comunicações telefô-
nicas, previsto no art. 5º, XII, da Constituição Federal. Esse dispositivo constitucional
foi regulado pela Lei nº 9.296/96, segundo a qual a interceptação de comunicações
telefônicas, de qualquer natureza, para prova em investigação criminal e em instrução
processual penal, observará o disposto nesta Lei e dependerá de ordem do juiz com-
petente da ação principal, sob segredo de justiça (art. 1º).

92
Entre os juízes pré-constituídos vigora uma ordem imperativa de competências que exclui qualquer alternativa
deferida à discricionariedade de quem quer que seja (CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada
Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 76).
93
A Lei 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito federal, prevê que é impedido de atuar
em processo administrativo o servidor ou autoridade que: I – tenha interesse direto ou indireto na matéria;
II – tenha participado ou venha a participar como perito, testemunha ou representante, ou se tais situações
ocorrem quanto ao cônjuge, companheiro ou parente e afins até o terceiro grau; III – esteja litigando judicial ou
administrativamente com o interessado ou respectivo cônjuge ou companheiro (art. 18).
94
Explica Gilmar Ferreira Mendes que o âmbito de proteção da garantia quanto à inadmissibilidade da prova
ilícita está em estreita conexão com outros direitos e garantias fundamentais, como o direito à intimidade e
à privacidade (art. 5º, inc. X), o direito à inviolabilidade do domicílio (art. 5º, XI), o sigilo de correspondência
e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas (art. 5º, XII) e o direito ao sigilo
profissional (CF, art. 5º, XIII e XIV, in fine), ao devido processo legal (art. 5º, LIV) e à proteção judicial efetiva,
entre outros (BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 10. ed.
São Paulo: Saraiva, 2015, p. 548).

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Direito público e processo

Esse diploma legal prevê que a interceptação telefônica somente poderá ser ad-
mitida se houver indícios razoáveis de autoria ou participação em infração penal e se
for impossível realizar a prova por outros meios. Caso esses requisitos não estiverem
presentes, a prova colhida mediante interceptação será considerada ilícita e deverá
ser desconsiderada. Afinal, repita-se, é ilegítima a prova obtida por meio de ação que
desrespeite direito fundamental do indivíduo. A prova ilícita não serve para formar a
convicção do julgador.95

9.5  Princípio da publicidade dos atos processuais


Outra garantia processual prevista no Texto Constitucional é o princípio da publi-
cidade dos atos processuais, alçado à categoria de direito fundamental pelo art. 5º,
inc. LX, da Constituição Federal.
Reza o dispositivo que a lei só poderá restringir a publicidade dos atos proces-
suais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem. Os processos
estatais (jurisdicionais, administrativos ou legislativos) são públicos, isto é, salvo
exceções previstas em lei, deve ser franqueado a todos o livre acesso a todos os
atos processuais.
No mesmo sentido, o art. 93, inc. IX, da Constituição determina que todos os
julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas
as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determina-
dos atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos
quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o
interesse público à informação.
A ampla publicidade viabiliza o controle de legalidade dos atos do Poder Público,
seja pelos órgãos oficiais de controle (Ministério Público, Tribunais de Contas etc.),
seja pelos cidadãos em geral. Torna-se possível verificar se as decisões estatais
são tomadas de acordo com o que prescreve o ordenamento jurídico e se o seu
conteúdo não desrespeita os direitos e garantias fundamentais previstos no Texto
Constitucional.96

95
Nas palavras de Cassio Scarpinella Bueno, a prova ilícita ou obtida de forma ilícita deve ser entendida como
não produzida perante o magistrado. Ela não pode ser levada em conta pelo magistrado na formação de sua
convicção (BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito
processual civil. vol. 1. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 151). O autor pondera, entretanto, que como
a vedação decorre de princípio constitucional, a aparente rigidez desta vedação pode admitir exceções ou
temperamentos consoante as necessidades de cada caso concreto. Assim, por exemplo, não é equivocado o
entendimento de que a prova lícita obtida de forma ilícita pode ser utilizada válida e eficazmente se ela for o
único meio de provar o fato que diga respeito a interesses maiores, à segurança pública, por exemplo, ou se
ela puder beneficiar o acusado (BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil:
teoria geral do direito processual civil. vol. 1. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 151-152).
96
Vale lembrar que a publicidade é princípio da atividade administrativa, conforme art. 37, caput, da Constituição
Federal.

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Na legislação ordinária, o princípio da publicidade está previsto, por exemplo, no


art. 2º, parágrafo único, inc. V, da Lei nº 9.784/99, que prescreve que nos processos
administrativos serão observados, entre outros, critérios de divulgação oficial dos
atos administrativos, ressalvadas as hipóteses de sigilo previstas na Constituição.
Assim, os atos administrativos devem ser publicados na imprensa oficial e, se a lei
específica exigir, em jornais de grande circulação. Editais de concursos públicos, de
licitação, deferimento de licenças, aplicação de penalidades a servidor público, julga-
mentos de recursos, enfim, todos os atos expedidos pela administração no decorrer
de um processo administrativo devem ser publicados na imprensa oficial (Diários
Oficiais da União, dos Estados e dos Municípios, onde houver). A publicação não só
permite o controle sobre os atos da Administração, como também permite às partes
envolvidas diretamente no processo conhecer das decisões e, se for o caso, exercer
seu direito de recurso.97

9.6  Princípio da motivação


Já nos referimos aqui ao disposto no art. 93, inc. IX, da Constituição Federal,
que determina que todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão pú-
blicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei
limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados,
ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do
interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação. Note que o dis-
positivo faz referência não só ao princípio da publicidade, como também ao princípio
da motivação.
De acordo com esse princípio, não basta ao magistrado decidir a lide que lhe é
apresentada. Faz-se necessário que os motivos que o levaram àquela decisão sejam
devidamente demonstrados. Em outras palavras, o juiz tem o dever de explicitar as
razões de fato e de direito que fundamentaram a sentença. Deve o julgador comprovar
que decidiu de acordo com o que prescreve o ordenamento e conforme os fatos que
lhe foram apresentados.
A motivação permite ao interessado conhecer as razões da decisão estatal,
o que torna possível o controle sobre a legitimidade da atuação do Poder Público e
viabiliza a interposição de recurso contra o ato decisório.
O princípio tem plena aplicabilidade também ao processo administrativo. Está
expressamente previsto na Lei nº 9.784/99, que regula o processo administrativo em

97
Nesse sentido, o art. 3º, inc. II, da Lei 9.784/99, determina ser direito do administrado ter ciência da tramita-
ção dos processos administrativos em que tenha a condição de interessado, ter vista dos autos, obter cópias
de documentos neles contidos e conhecer as decisões proferidas.

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Direito público e processo

âmbito federal. O art. 2º dessa lei federal arrola a motivação como um dos princípios
da Administração Pública e o seu parágrafo único, inc. VII, determina que, nos pro-
cessos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de indicação dos
pressupostos de fato e de direito que determinarem a decisão. A motivação dos atos
proferidos no decorrer do processo administrativo possibilita o controle de legitimida-
de da atividade administrativa, inclusive o controle popular, realizado pelos cidadãos
em geral, que também podem (e devem) fiscalizar o funcionamento do Estado.98
Assim, por exemplo, os interessados devem saber os motivos pelos quais fo-
ram multados, as razões de sua desclassificação em concurso público para preen-
chimento de cargos ou mesmo os fatos que levaram à sua inabilitação em certame
licitatório. Conhecendo as razões da decisão, poderão exercer seu direito de recurso,
corolário do princípio da ampla defesa, buscando a refirma do ato decisório que lhe
foi desfavorável.
Ainda sobre a motivação no âmbito do processo administrativo, destaca-se o
previsto no art. 93, inc. X, da Carta de 1988. O dispositivo prescreve que as decisões
administrativas dos tribunais serão motivadas e em sessão pública, sendo as discipli-
nares tomadas pelo voto da maioria absoluta de seus membros. Trata-se do exercício
de função administrativa (atípica) pelos órgãos do Poder Judiciário: os atos expedidos
no âmbito dos processos administrativos levados a cabo por esses órgãos devem ser
devidamente motivados, sob pena de nulidade.

9.7  Duração razoável do processo


A Emenda Constitucional nº 45/2004 incluiu no rol dos direitos fundamentais
constante do art. 5º da Constituição o direito de todos à razoável duração do proces-
so e à utilização dos meios que garantam a celeridade de sua tramitação. O direito
vale tanto no âmbito judicial como no administrativo, conforme expressamente prevê
o mesmo dispositivo.
A finalidade da norma é evitar que o processo dure indefinidamente, frustrando
as expectativas dos interessados na solução definitiva da controvérsia em que es-
tão envolvidos. Meras formalidades burocráticas não devem representar entraves ao
bom andamento do processo, que deve chegar ao seu final de forma, tanto quanto
possível, célere.

98
Sobre o controle popular da Administração, cumpre lembrar que a Constituição Federal prevê a propositura da
ação popular, que pode ser proposta por qualquer cidadão em defesa da legalidade no trato da coisa pública.
Nessa direção, prevê o art. 5º, inc. LXXIII, da Constituição Federal que qualquer cidadão é parte legítima para
propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado partici-
pe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo
comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.

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Trata-se, na verdade, de aplicação do princípio da eficiência, que incide no exer-


cício da função administrativa (CF, art. 37, caput) e jurisdicional (CF, art. 5º, inc.
LXXVIII) do Estado.
Mas é crucial recordar que a rapidez da decisão deve ser compatibilizada com
os demais princípios que regem os processos estatais. A ampla defesa e o contradi-
tório, por exemplo, não podem ser afastados em benefício da eficiência.99 A utilização
de todos os instrumentos de defesa deve ser garantida, ainda que isso cause uma
demora maior no andamento processual. A eficiência deve andar em paralelo com
a segurança jurídica e com a legalidade. O açodamento pode resultar em decisões
insuficientemente motivadas e prejudicar a busca pela verdade, que deve pautar a
atividade estatal.
De qualquer modo, cumpre evitar a excessiva duração do processo de tomada de
decisões pelo Estado, o que pode prejudicar interesses individuais legítimos. Pense
no exemplo de um proprietário que requer a expedição de alvará de construção, a fim
de exercer o direito de edificar no seu terreno. Meras formalidades procedimentais
e exigências descabidas por parte do órgão licenciador podem resultar em prejuízos
irreparáveis ao interessado, que vê o seu direito de propriedade, constitucionalmente
assegurado (CF, art. 5º, inc. XXII), ser indevidamente restringido.
Com vistas a evitar a demora excessiva do processo administrativo, a Lei
nº 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito federal, determina que
inexistindo disposição específica, os atos do órgão ou autoridade responsável pelo
processo e dos administrados que dele participem devem ser praticados no prazo de
cinco dias, salvo motivo de força maior (art. 24) e que o parecer de órgão consultivo,
quando necessário para resolver a controvérsia, deverá ser emitido no prazo máximo
de quinze dias, salvo norma especial ou comprovada necessidade de maior prazo
(art. 42).

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BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo:
Malheiros, 2008.

99
Afirmam Irene Patrícia Nohara e Thiago Marrara que o formalismo moderado que guia o processo administrativo
não pode passar por cima das garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do
contraditório, que são aplicadas integralmente ao âmbito administrativo (NOHARA, Irene Patrícia; MARRARA,
Thiago. Processo administrativo: Lei nº 9.784/99 comentada. São Paulo: Atlas, 2009, p. 68).

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

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