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A leitura da gripe.

Fernando Chiavassa

S ó da operação, passava assoviando! Imagina lembrar a


aflição de não encontrar o médico escolhido, um susto depois de
outro; agora, com o médico de confiança, alívio! Penso nas
perguntas dos meus queridos todos! Tudo embaralha rápido na
minha memória, quando penso nas minhas perguntas, na vida de
hoje. Madrugada virando a porta, você vai pra internação
preocupado, em casa dormindo a mulher, filhos e sonhos. Antes de
apagar a luz, repara na pintura que depois termina. Nem pensar
que não, vou voltar! Parte confiante, já tendo arrumado esquema
financeiro técnico-médico, plano de saúde, reembolso tratado. Mas e
daí? Jejum. Sem pressa, desliza no espaço do asfalto, perdendo de
vista a visão nublada da torre iluminada que mostra nem um gato
na Avenida Paulista. Fome, pago o táxi – tão rápido cheguei –,
obrigado, Tavinho, que não tava pra conversa... Boa sorte, obrigado,
devo uma cerveja. Frio. Recepção. Muita sede, todos os olhos para
si, internação, todo mundo dorme no hospital, enquanto ele assina
com sono papéis comprometedores, se tudo der errado você é que
concordou com tudo. Segue-se a escolta ao elevador. Quarto.
Avental, corrente, aliança, injeção lombar. Agora deitado que é
melhor prá mim, apenas esperando que me levem. Quanto tempo?
Tchau, O que? Tempo. Equipe cirúrgica – sete exames sofisticados
–, estratégia, anestesia, mesa, luz, ação, três furos, instrumentos,
insuflamento de gases nada que vi, nem nada senti, ainda bem, toda
uma cirurgia indireta, vídeo-laparoscopia. Juiz firme: cartão
vermelho para quatro hérnias indisciplinadas, três surpresas em
campo, era só uma, centroavante de seleção em campo, longe do
Felipão, mas mesmo assim a bola não entra tão fácil. Em seguida,
discussão com os peritônios revoltosos, soltas as fibras, demais
artérias e canais, acerto de contas impondo ao congestionamento
regras facilmente aplacadas, depois as cauterizações, a fixação das
redes de proteção grampeadas nas traves, nos ossos, esvaziamento,
fechamento, recuperação, tudo que nada vi, quase na flauta! Fim de
pauta. Avisado quando tudo acabou, apenas um a zero, como num
sonho, nascido de novo – dor nenhuma –, me vi deitado inteiro. É
sou eu mesmo: safos! Amém! E aí, tudo bem? Não, não, tramal não
quero, que vomito, manda um Tylenol. Sério? Quarto, luz, café,
almoço, sobremesa, terraço, vista da cidade, sol... Anda, que um
pouco de exercício faz bem, não? Daí brinca – essa é fácil –, sério,
anda mais ainda, vai pra lá, conversa e sonha que delícia, vê um
futebol colorido, que lindo que é o futebol colorido, sem o Felipão!
Livre! Então, senta feliz, mas logo levanta que exercício é bom.
Depois, banho, ducha escocesa, massagens, mas chega, quer saber,
vamos pra casa! Pode? Legal! Roupas, rampas, elevadores, fácil,
difícil os buracos nas ruas, as freadas, os pneus em cama elástica, as
crateras e dores, os ui! Ai, devagar! Desanimado, ui, entra em
casa... Em casa... Não vê pintura nenhuma, ai, chupa com cuidado a
coriza e deita. Silêncio, ai! Vira, desvira que sua frio, espirra qual
carneirinho, às cinco e cinquenta e cinco, finge que não tosse, ui,
mas cuidado que amanhã tem Ruffato. Anda pela casa, senta à mesa
amarela e lê até confundir o texto com sol. Acordou, às dez, pesando
uma tonelada. Prepara as sonhadas perguntas impressas em dedos
atrasados, corre que hoje tem Ruffato. Um sonho na Casa das
Rosas, perguntas sobre toda uma vida que mal bem começa, ficção,
amigos, que não conta como vai te pegar. Volta pra casa, que já deu,
ficar quietinho agora, chiu! Em casa... Lenço de papel, dor de
cabeça, suores frios – quase febre! Cacete, que merda, tá doendo
aonde, a barriga? Que barriga nada, é a cabeça que explode, o corpo,
não a barriga, a barriga não dói, já disse! Não espirra que estoura!
Operação. Segura espirro, não dorme, anda pela casa, não sonha,
não vê pintura nenhuma, nem pinta, nem lembra, nem nada...
Ruffato. Gripa a gripe, que agora desiste! Fosse só da operação,
passava assoviando!

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