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Fernando Chiavassa, Ensaios

Índice

Vida e Literatura

A Beleza Salvará o Mundo

Chico Brasileiro: O Que é Seu de Direito

Estado: Ficção

Dos Livros Que Não Li (Inacabado)

A Mulher do Escritor (Inacabado)

Jogo de Xadrez

Ela Raia Amarela Alerama Rayuela

Aprende-se a Escrever, Pensando

Promavera, Política, educação, Arte e Autoritarismo

Des Curso

A Mãe Terra e Seu Filho

Aproximações entre o Real e o Imagináro em Marguerite Duras

Procura-se Uma Sociedade mais Justa


Vida e Literatura
Fernando Chiavassa

Uma série de textos falando a respeito de escritores que


trabalharam com suas próprias experiências pessoais e coletivas,
transformando a própria vida em fatos literários nos mais diversos
formatos, como cartas, biografias, livros de viagens, memórias,
crônicas, contos e romances, formando uma lista encabeçada por
Virginia Woolf, Charlotte Perkins Gilman, Violette Leduc, Simone
de Beauvoir, Marguerite Duras, Silvia Plath, Juan Rulfo, Jorge
Amado, Júlio Cortázar, Ricardo Piglia, John Maxwell Coetzee, Elias
Canetti, Euclides da Cunha, Mário de Andrade, entre muitos outros.
Um primeira apresentação poderia, por exemplo, ser com a escritora
Marguerite Duras:

Marguerite Duras nasceu na Indochina Francesa em 1914


antigo Vietnã, Laos e Camboja e em sua infância, viveu em estado
de extrema pobreza. Sua mãe, no momento em que ficara viúva,
investiu o pouco dinheiro de sua herança em terras nas quais
pretendia cultivar arroz. Tal investimento mostrou-se catastrófico, já
que a família perdeu todas as suas terras com inundações, episódio
que a autora relata em seu livro “Uma Barragem Contra o Pacífico”
(1950). A família desde então se torna miserável. Apesar de tantos
obstáculos, Duras completou seus estudos e ingressou na faculdade
de Direito a qual abandonou para ser escritora. Percebemos, ao longo
da leitura de muitas de suas obras, a insistente presença do tema da
escrita e deduzimos sua importância na vida de Marguerite Duras. A
escrita, além de ter proporcionado à escritora segurança financeira e
reconhecimento, pareceu se impor para ela como uma paixão
avassaladora, uma presença constante e uma força visceral. Segundo
Duras:
A família era composta pela mãe e três filhos: a menina, seu
irmão mais novo e o irmão mais velho a quem a jovem odiava: Eu
queria matar meu irmão mais velho, queria matá-lo, ter razão contra
ele uma vez, pelo menos uma única vez, e vê-lo morrer. Era para
retirar da frente de minha mãe o objeto de seu amor, esse filho, puni-
la por amá-lo tanto” (DURAS, 2007, p. 11). A protagonista narra ao
longo da trama, a preferência da mãe pelo filho mais velho,
considerado pela menina como assassino e tirano. Embora usasse
drogas e roubasse a família toda para sustentar seu vício, a mãe
nunca se queixara dele e, depois de sua morte, deixou-lhe a maior
parte da herança. Ao morrer, o rapaz foi enterrado junto à mãe, a
pedido dela. A protagonista descreve a imagem da mãe e do irmão
mortos. E definitivamente juntos, plenos: “Estão os dois juntos no
túmulo. Só os dois. É justo. A imagem é de um esplendor
intolerável” (DURAS, 2007, p.59).

“Escrever, essa foi a única coisa que habitou a minha vida e


que me encantou. Eu o fiz. A escrita não me abandonou nunca” (
DURAS,1994, p.15). Sendo esta a única coisa que nunca a
abandonou, Duras afirma que compreendeu cedo em sua vida que
era uma pessoa sozinha em sua escrita. Em seu livro “Escrever”
(1994), Duras relata a angústia que a solidão provoca, mas nos
demonstra que é a partir dela que surge sua criação literária. “Existe
isso no livro: a solidão nele é a solidão do mundo inteiro. Está em
toda parte. Invadiu tudo. Sempre creio nesta invasão. Como todos. A
solidão é aquilo sem o que nada fazemos” (DURAS, 1994, p.29).
Parece-nos ser em torno da solidão e do desamparo irremediáveis,
inerentes ao ser humano, que a arte de Duras faz seu contorno. Aos
70 anos, Marguerite Duras publica “O Amante” (1984), considerado
o seu livro mais autobiográfico, ainda que em vários outros
possamos reconhecer registros subjetivos da história da escritora.

A imagem marcada pela completude esplendorosa da mãe


com o seu filho, alcançada na morte, faz-se insuportável para a
menina. A personagem se recorda de uma certa fotografia da mãe na
qual podemos inferir a imagem desta mulher apreendida pela filha.
Na foto, estão a mãe e os três filhos: minha mãe está no centro da
imagem. Reconheço como ela se sente pouco à vontade, como não
sorri, como espera que logo termine a foto. Por seus traços abatidos,
por um certo desleixo na roupa, pela sonolência do olhar, sei que faz
calor, que ela está cansada e aborrecida (...). Esse grande desânimo
de viver atingia minha mãe todos os dias. Às vezes durava, às vezes
desaparecia à noite. Tive essa sorte de ter uma mãe desesperada de
um desespero tão puro que nem mesmo a felicidade da vida, por
mais intensa que fosse, chegava a distraí-la totalmente dele
(DURAS, 2007, p.16). Desesperada, louca, abatida, indiferente,
amada e odiada: “a porcaria, minha mãe, meu amor” (DURAS,
2007, p.21).

A mãe se configura como o ponto central em torno do qual


gravita toda a trama. Embora o título (“O amante”) e a temática
central do livro seja a história de amor e desejo pelo homem, nota-se
que tal proposta fica obscurecida pelo tema de sua relação com a
mãe, a qual ganha destaque durante toda a narrativa. Segundo a
escritora, em entrevista a Sinclair Dumontais: É certamente o medo
da infância que conto em “O amante”, aquele medo de meu irmão
mais velho e a loucura de minha mãe que me fizeram escrever. A
petrificação dos sentimentos diante da força do outro, descobrir, sob
o rosto calmo da mãe uma torrente, um vulcão, ou pior, uma
ausência, o gelo que já não se move e que nos faz berrar, gritar de
medo. A escrita foi a única coisa à altura dessa catástrofe infantil
(DURAS, 2007, p.89). Percebemos, portanto, que este livro é
produzido diante da ausência e, sobretudo, do excesso implicados no
embate da escritora com a mãe.

A força maior de seus livros estão além de tudo no trânsito


entre o destino dessa família singular e o cenário natural e social em
que ele se dá, na Indochina. As passagens que descrevem a vida
miserável dos nativos, sobretudo das crianças subnutridas, são de
uma força poética terrível, que prenuncia a roteirista e cineasta em
que Duras se transformaria.

"Havia muita criança na planície. Era uma espécie de


calamidade", diz a narradora de “Barragem do Pacífico”. Essa noção
de calamidade inevitável, que vem em ciclos, como as colheitas e as
inundações, impregna todo o livro e engolfa seus personagens. Com
um notável talento narrativo, anterior à sua fase mais experimental,
Duras enreda o leitor nesse mangue pestilento contra o qual
nenhuma barragem dá jeito.

Ou seja, é por meio de sua escrita que Marguerite Duras


(1914-1996) tenta contornar o real imposto pela catástrofe materna,
empreendendo, frente ao excesso do gozo Outro, uma verdadeira
“barragem contra o Pacífico”.
A Beleza Salvará o Mundo
Fernando Chiavassa

“O grande problema, o maior de todos, é que muito poucas


pessoas lêem arquitetura. Poucas sentem o espaço como sentimos.
Ainda pior que isso, poucas pessoas leem qualquer coisa. Não se
respira arte. Muitos compram arte, como quem compra uma flor de
plástico ou de papel para "decorar" comportando-se de maneira
kitsch, sem essência. Ninguém lê, ninguém vê, poucas pessoas tem
bagagem para transcender rumo ao absoluto. Neste século, estamos
perdendo o interesse em abrangências coletivas da existência. Sobra
o individual. Mas, ainda pior, é que quase ninguém procura o
absoluto, que é a grande conquista humana, de encontro ao viver o
belo, numa existência impregnada dos melhores valores humanos.
Valores filosóficos, científicos e artísticos, e porque não mágicos,
míticos e religiosos. A não ser os artistas. Que solidão, amigos
companheiros artistas e arquitetos. O quanto sofremos com a falta de
interesse no absoluto, que é a essência do desenvolvimento humano.
Então, amigos, falta tudo. E para onde vamos? Cada um por sí? Não
é possível. Dostoiewski disse através de vários personagens, que a
beleza salvará o mundo! Acredito mesmo que possamos ir de
encontro ao belo em todos os campos da atividade humana. Mas
como? Façamos a nossa parte, não desacreditando e traduzindo o
belo para todos aqueles que ainda não o sentiram. E não cansemos:
continuemos. Mesmo solitários.”

A Cida postou esta matéria. Eu achei o texto atualíssimo e


de ordem geral: “Ninguém Gosta de Arquitetura, do arquiteto André
Huyer. Assim, eu postei um outro texto, dialogando com ele no face
book, logo após criar um novo álbum com pipas, piões, roupas e
varais todos no céu:

Desejo honestamente que a beleza possa salvar o mundo.


Tempo haverá que não somente artistas buscarão o belo,
obstinadamente. Todos poderão descobrir a beleza não somente nas
estéticas filosóficas, plásticas, literárias ou musicais, mas também
nos mais firmes e humanos ideais, dos mais belos pensamentos e das
mais belas ações. Espero que através da educação a humanidade
possa recuperar seus melhores instintos fraternos e altruístas para se
dirigir a uma nova época, em que a beleza, sempre no sentido
estético espiritual, será procurada e encontrada por todos. Todos
poderão respirar e fazer arte, mesmo porque, a beleza também está
no fragmento, na menor porção do todo. Então, os croquis, os
rascunhos e demais estudos, podem ser tão bons quanto a obra
acabada, porque podem ensejar e revelar o mais íntimo e natural
caráter do artista. Nos esboços e nas palavras enevoadas, mesmo nos
parágrafos mal formados, ainda sem o desígnio da intenção, podem
ser lidas as mensagens mais puras que jamais poderíamos descobrir
na obra finda, corrigida e muitas vezes censurada pela crítica ou pelo
rigor formal ou acadêmico. O caráter espontâneo da arte apresenta
quase sempre a mesma transparência infantil, de quando não
tínhamos receio de sermos nós próprios, inteiros, seguros e livres,
sem autocríticas. Arte e vida, todo e fragmento. Deus está nos
pequenos detalhes; no traço ingênuo; na palavra desenhada; na
palavra soprada e ainda cheia de ar, de vida e de esperança, na sílaba
balbuciada, no sentimento rimado, no borrão e na lágrima ao
agradecer tão maravilhosas experiências sensoriais.
Chico Brasileiro, O Que é Seu de Direito

Fernando Chiavassa

Da “Banda” até o “Leite Derramado”, dá um “Samba” novo


romanceado eterno, cheio de “Bossa”, de nova, de “Sampa” – numa
“Roda Viva” – até “Budapeste”, quanta “Construção”! Sem falar
então da “Tropicália” e dos “Novos Baianos”, “E que tudo mais vá
para o inferno”, porque resta dizer que, “Apesar de você”, “... Não
tem nada não, tenho meu violão! ...“ “... Eu vou!!! ...” “...Sem lenço
sem documento! ...” ... Depois, “... Eu levo a carteira de identidade, e
a leve impressão de que já vou tarde ...” “... Já lhe dei meu corpo,
minha alegria ...” “... Vai passar ... “ “ ... Os doentes do coração,
dançavam na enfermaria, ..., ... ao som de um passarinho espanhol ...
“ “... Sonhei que o fogo gelou ...” Mas... “... Aqui na terra tão
jogando futebol ...”; acabou todo o “... samba e o rock and roll ...” E
levo aqui o Neruda que ninguém lê... Quem não sabe tocar, que
cante; quem pode cantar que escreva e quem não escreve, que pinte
ou grite; ou então não, “... Cale-se ...”, expresse-se! Pois veja, “...
Olha a voz que me resta ...” “... Com açúcar, com afeto, fiz seu doce
predileto ...” Mas vieram os “... Doces Bárbaros e Chuck Berry
Fields forever ...” “... Que onda, que festa de arromba ...”; “... Deixe
a tristeza prá lá ...” A “...Verdade Tropical ...”, é que, “... Sem açúcar
...”, “... passo o domingo olhando o mar, ... , ondas que vêm, ondas
que vão ...” Mas, mesmo sem o “... Tom ...”, por isso, “... Vou voltar
... Sei que ainda vou voltar, Para o meu lugar ...” “... Colher a flor
que já não dá; ouvir a palavra, que já não falo mais... Muda, feita de
luz mais que de vento ...” “... Palavras ...” Chico brasileiro artista de
fato e de direito, faça o que quiser, que estaremos lá para aplaudir!
Estado: Ficção
Fernando Chiavassa

Abismo, absolutismo, anarquismo, academicismo,


bacharelismo, canibalismo, cafajestismo, casualismo, chauvinismo,
colonialismo, comodismo, conformismo, consumismo, caudilhismo,
cinismo, derrotismo, determinismo, egoísmo, elitismo, escapismo,
escravismo, esnobismo, estatismo, estetismo, estrelismo,
exclusivismo, expansionismo, extremismo, fanatismo, favoritismo,
feminismo, feudalismo, formalismo, fundamentalismo, gigantismo,
golpismo, governismo. De a a gê, imagino ismos dos quais queremos
distância. Ânsia. Vigilância.
E de tudo e do nada, nada pior do que edonismo, histerismo,
imediatismo, imobilismo, imperialismo, individualismo,
intelectualismo, intervencionismo, machismo, masoquismo,
mercantilismo, militarismo, modismo, nacionalismo, nervosismo,
niilismo, oportunismo, ostracismo, perfeccionismo, populismo,
proselitismo, racismo, radicalismo, sadismo, segregacionismo,
terrorismo, totalitarismo, unilateralismo, vandalismo. De a a zê,
deixamos para trás milhões de ismos mal queridos e mal amados.
Intocados. Indesejados.
Comunismo, consumismo, socialismo, monarquismo,
capitalismo, globalismo, país totalitário, mal, culpado, ideologia
canhestra, aparelho de estado, sociedade democrática, formas de
manipulação, subliminar, publicidades nacionalistas e comerciais,
imprensa, tendência, moda, influência, entretenimento, consumo,
comércio, slogans e linguagem das mídias, ditador, mercado,
presidente, marionete, repúblicas e bananas, guerrilha e lavagem
cerebral, mascara de liberdade, doutrina. Resistência. A projeção dos
sonhos tem um efeito libertador. Idealismo. Sonho de criança.
Imaginação. Ficção. Ação.
Tanto a democracia, a monarquia, a república ou quanto
qualquer outro regime sócio-econômico jamais criado, tendo sido
imposto ou votado, resultante da sabedoria ou da tirania,
estabelecido de forma organizada ou anárquica, com apoio ou não da
maioria, todas estas formas de governo, são puramente resultantes de
belíssimas obras de ficção. Maquiavélicas criações daqueles que
procuram se beneficiar da máquina administrativa governamental,
para defender interesses próprios.
Nestas reais ficções nacionalistas ou estadistas, ao contrário
de outras ficções como aquelas engendradas pela arte, o povo em
seus anseios imediatos é contido, convidado a se desindividualizar e
levado a esperar por justiça, segurança, alimento, saúde e educação.
Afastado dos meios de produção e da terra, ao povo nada mais se
promete, porque devem servir à indústria local estabelecida e à
globalização. De certa maneira, destituído de vontade própria, acaba
vivo por fora, mas morto por dentro, porque não inventa mais a vida,
não cria, somente reproduz e inconsciente, quase perde esperança,
pela vida que não chega.
Estes regimes ou quaisquer outros inventados - incluindo
toda forma de poder de manipulação de grandes contingentes
humanos, mesmo aquelas religiosas – é que são a droga do povo.
Então, o Estado – assim caracterizado por um poder central e
demagógico –, à medida que tem que se defrontar com gente que não
reza de sua cartilha, que não tem comida, que não tem trabalho e
nem educação e que já perdeu a sua segurança, ou seja, quando o
Estado tem que conter aquêles que já não tem saúde e que por isso
mesmo já perderam a sua esperança; o Estado pune. Prende, enjaula
e encarcera a esperança de uma vida feliz.
Então, como se já não bastasse, o Estado cria também a
injustiça e a maldade. Pune todos aqueles não premiados. Cria
também burocracia, nepotismo e agentes políticos, tornando a
máquina administrativa corrupta e ineficaz. Mantém também outra
ficção, o sistema penitenciário, este uma obra satânica. Portanto, cria
até marginais. Potente, o Estado, cria ainda mais, e cada vez mais,
ficção. Mas a realidade grita e não se adéqua a ficção criada. Então o
Estado faz de conta que não viu, que não vê e nem verá, e se
desculpa. E continua inventando e contando outras histórias. Ma o
povo, acostumado a ouvir histórias, não as ouve mais.
O Estado se distância portanto de tudo aquilo que planejou:
por que o que estabeleceu é pura ficção. Longe da realidade. Ah, se
não fosse a arte do povo: a arte de sobreviver! Pois o próprio Estado
é ficção. Só que o povo, não é invenção: é muito mais que isso. O
povo é mais que arte: é o futuro de uma nação! A sua educação não é
ficção: um povo instruído, jamais será pobre. A alimentação e a
saúde do povo também não são de mentira: como pode um povo
doente e subnutrido sobreviver em comunidade? Moradia e trabalho
não são ficção: são necessidades latente de toda gente.
O Estado não pode mais inventar. O problema social no
Brasil é muito maior que todas as favelas juntas.
Dos Livros que Não Li. (Inacabado)

Fernando Chiavassa

Diante de uma constelação de livros que pude ler, ao


escolher com muito cuidado dentre estes livros estrelados, alguns,
nos quais eu me aprofundei, na verdade permaneço apenas com
alguns poucos capítulos de cada um, para guardar como mensagens
absolutas. Se irrefletidamente estabelecer um critério muito rigoroso,
no qual devam brilhar obras fundamentadas com a essência da
cultura humana, infelizmente conto apenas com limitadas e raras
páginas, das quais guardo para sempre – algumas frases ou
pensamentos – com significados para uma vida inteira. Portanto,
lamentavelmente raras são aquelas obras que puderam tocar
verdadeiramente o meu coração. Naturalmente me encantam
diversos capítulos de um grande número de obras literárias, escritas
por astros laureados, cuja bagagem romântico poética decerto
enriqueceram grandemente a minha existência. Algumas obras
certamente modificaram para sempre meus sentimentos e minha
razão de viver. Outros muitos capítulos de outras obras menos
interessantes, naturalmente marcaram presença no meu ideário
artístico. Até mesmo centenas de páginas de trabalhos menos
profícuos não deixaram de me sensibilizar.
Mas no fundo mesmo, raras são as obras às quais levaria
debaixo do braço rumo ao infinito, em busca da verdadeira
existência neste ou em noutros mundos. Poucos trabalhos literários
me prenderam definitivamente. Poucos livros deleitei folheando e
relendo ao longo dos anos desta minha vida. Não tenho ainda o meu
livro de cabeceira, e nunca jamais poderia eleger nenhum, nem
mesmo que fosse considerado apenas de enfeite.
Desconcertantemente, pouquíssimos os livros que tocaram
profundamente o meu coração. Para um universo de milhões de
publicações, é sem dúvida desanimador pensar na falta de obras
cujas essências aqueçam a minha alma. Serei um obstinado cego,
exigente demais e insensível? Ou então, um chato de galocha? Não,
acho que não. Não mesmo! São mesmo poucos os autores que
reverencio, reduzidas as obras primas que reconheço. Óbvio que me
rendo a alguns clássicos e mesmo a alguns trabalhos
contemporâneos. Mas isso é muito pouco. Quando algumas criações
artísticas de qualidade tocam o meu coração, viajo a poder sair de
mim, sonhando nas palavras dos outros, viajando nas idéias mixadas
e vistas através de leves transparências, olhando a perder de vista
sentimentos mesclados e sensações presentes de outros tempos,
passados ou vindouros.
Então a arte se eleva a mais alta condição humana que é
aquela que permite livrar-nos do ego enganoso para sermos a pura
emoção de sentir a possibilidade da conquista de uma nova realidade
mesmo que sonhada. Não posso deixar de me lembrar de um
excelente professor e crítico literário que nos lembra que Dostoievski
dizia através de seus personagens que a beleza salvará o mundo. A
beleza a que o mestre Todorov se refere é a mesma beleza que serve
de parâmetro para a criação de obras artísticas, filosóficas e
científicas, todas elas direcionadas à vivência e criação do absoluto;
que seria a essência do ser humano refletida em todas as suas ações
éticas, estéticas e civis. Assim, veríamos maravilhados o homem
existindo na plenitude de seus desígnios, praticando o bem, vivendo
em harmonia com o outro e disseminando altruisticamente o belo.
Escrevo no ônibus – o que já é uma aventura – procurando não
deixar escapar estes pensamentos esparsos, mas tão ricos. Não dá
para perdê-los neste redemoinho estonteante das demandas da vida
que tanto tempo tiram de minha melhor essência. Mais tarde
recupero o tempo perdido.
Hoje, espero poder anoitecer debruçado no teclado ao lado
de uma luz reconfortante, apenas à escrever, perdido no tempo, sem
hora para terminar, imiscuído no meu sonho de ter a posse do meu
tempo, para mudar a realidade do meu sonho. Alterar a vida e
transformá-la em sonho, de forma a não mais sonhar para ter que
viver. Quem sabe, com muito carinho, não preparo uma pequena
parte do livro que muitos como eu, esperam ler algum dia. E que
sonho dele? Nada em especial exatamente, senão, nada mais do que
a essência de mim mesmo, refletida esparsamente nas linhas de um
texto que somente sonhando escrevendo é que serei capaz de
traduzir. Então já terei feito tudo que mais importa, que é deixar
expressas as melhores vontades e intenções, de múltiplas almas,
sempre norteadas pelo absoluto do belo. No mínimo, tais parágrafos
testemunham a realidade, para melhor poder transformá-la ao longo
dos capítulos. Então tais sonhos, ainda irreais, servirão de ensejo
para que muitos inconformados possam, encorajados, se aventurar na
criação de uma vida mais rica e gratificante.
A Mulher do Escritor (Inacabado)

Fernando Chiavassa

Faz tempo que deixei maravilhado o meu livrinho de


contos: que experiência extraordinária. Sentir o tempo parado ao
infinito com você esquecido de si mesmo, fora do corpo, numa outra
vida a sentir a maravilha da criação, construindo o elixir do
sentimento humano, amalgamando emoções que resultam num saber
que nos desconhecíamos capazes. Vivendo outras vidas sem saber se
nós, sabendo-nos viventes desconcertados parados implicitamente na
direção de outros mundos, resgatando o mais bonito, registrando um
novo original desfecho para a humanidade, abrindo portas para
novos significantes, e talvez descobrindo outros significados para
mostrar, salvar e contar para uma nova e resplandecente vida deste
mundo aqui mesmo. Somente poderá saber da essência desta
experiência ímpar, um outro escritor. Só outro escritor. Quem sabe a
mulher do escritor.
Gosto de imaginar que este trabalho primeiro,
imediatamente depois de um período responsável de criação, a
cuidar de uma lavra única após um cuidadoso período de plantação,
pudesse ser feito pela mulher de um escritor. Mas quantos escritores
teriam a finíssima benesse de contar com o seu próprio amor,
cuidando do seu texto... Quais seriam os escolhidos a receber
especial iguaria a preservar e lapidar sua obra como esta predileção?
Talvez alguns, talvez muitos...
Pena ter que perceber que este trabalho nunca seria feito
pela mulher de alguns escritores que não se interessam por nada
daqueles seus mundos solitários. Então não se interessam pelo
mundo solitário de ninguém. Provavelmente não são as suas
mulheres espirituais. São mulheres físicas. Quantos escritores cegos
de sua condição já não pediram, ou imploraram para que suas
companheiras revisassem ou pelo menos lessem seus textos? Que
companheiras serão estas que não querem saber o que lhes vai nas
almas? Com quem casaram? Com quem ainda vivem? Então, quem
são estes escritores de fato descasados? Até onde podem ir aqueles e
todos nós, sem nos reconhecermos? Talvez, na verdade, ninguém
queira ler...
Somente quem se interessa pelo âmago do trabalho do
escritor sejam seus críticos ou então seus filhos. Os únicos? Meus
livros, meus filhos, minhas vidas, meus ventos, minhas luzes, minhas
esperanças, meu Deus me ajuda, me ajuda, me aluta!
Jôgo de Xadrês

Fernando Chiavassa

Recentemente vivemos um pequeno drama com câncer.


Agora, estamos "apenas jogamos xadrez". Talvez sim... talvez não.
Recentemente, num exame de rotina foi detectado um nódulo num
dos seios de minha mulher. Segundo exames anátomo patológicos,
era um princípio de câncer - embora a linguagem médica assim não
o classifique - poderia se tornar um... Era um aglomerado de células
que cresceu demais e embora estivesse em estágio absurdamente
inicial, estava caminhando em direção à formação de um tumor que
conhecemos como câncer! Talvez sim... talvez não...

Para aprofundar este primeiro exame inicial, logo de início


foi feita uma mamotomia por asperção que retirou todo o nódulo
visível da região. Depois disto, passamos dois meses, consultando 5
médicos que aperfeiçoaram diversos exames de imagens e de
lâminas. O último deles que foi uma ressonância magnética, atestou
que não existem mais vestígios cancerígenos "visíveis" naquele
local.

Sabemos agora que hoje, nenhum exame para diagnóstico


através de imagens, tem precisão suficiente para detectar câncer em
seus primórdios. Ou seja os exames de imagens não detectam coisas
muito pequenas, e sua precisão deixa a desejar. Ficou afastada a
hipotese de uma cirurgia mutiladora para retirar os dois seios.
Resultou que minha mulher, de hoje em diante está tomando um
remédio especial utilizado no combate ao câncer - o Novaldex
(Tamoxifeno). E que tem dezenas de efeitos colaterais seríssimos.
Um dos piores deles é o próprio risco de acarretar câncer no
endométrio (útero). Talvez sim... talvez não...

O que fica desta experiência é muito medo e perplexidade,


pois na sua maioria, os médicos não assumem a decisão do caminho
a seguir. Que você decida! Eles apenas lhe mostram o tabuleiro de
xadrez, ensinam como as peças se movem e lhe desejam muito boa
sorte no jogo. Apenas avisam com certeza absoluta de que o seu
oponente é um exímio jogador. Ressalte-se que são especialistas
escolhidos dentre os melhores de São Paulo.

Ficará fortemente registrado na lembrança, ainda, que numa


situação destas não devemos nunca aceitar o primeiro diagnóstico.
Muito menos devemos nos contentar com exames parciais. mesmo
os mais excelentes e rigorosos exames hoje existentes não tem
precisão absoluta para detectar o câncer em seus estágios iniciais.
Parece que os exames não servem para nada... Talvez sim... talvez
não...

No exame de minha mulher, foi detectado um nódulo de


formação bastante recente (menos de um ano). Segundo todos os
especialistas consultados, este nódulo foi detectado quase que por
acaso. Talvez, mesmo, este nódulo pudesse ser reabsorvido, ou então
combatido pelo próprio organismo. Nenhum especialista deixou de
frisar que foi uma tremenda sorte o fato do nódulo ter sido detectado.
Pura sorte! Sorte... Talvez...sim...talvez...não...

Talvez, o exame de minha mulher, se feito um minuto antes


ou um minuto depois, pudesse não ter mostrado nada. Mas mostrou...
Segundo todos os especialistas ela ganhou na loteria. Será que sim...
Será que não? Teria então ela merecido tais desígnios divinos?
Talvez sim, talvez não? Foi Deus que a protegeu? Talvez sim!

Ficou registrado também que apenas os especialistas mais


cautelosos é que se dignaram a aprofundar e refazer muitos dos
exames, revendo lâminas; reestudando imagens; e até reunindo uma
junta médica para estudar o caso e definir o caminho mais indicado a
seguir. Eles estavam cuidando não somente do caso, mas também
estavam cuidando da paciente. Talvez sim... talvez
não...

Estavam lidando também da doença com seriedade e


obstinação. Resta dizer que um dos profissionais que solicitou uma
junta médica é do Hospital do Câncer. A ele e a eles nosso muito
obrigado. Os "especialistas" menos cuidadosos, ou mais
preocupados em cuidar de sua reputação, ou ainda mais temerosos
diante do desconhecido câncer, recomendaram a cirurgia.
Acertaram? Talvez sim... talvez não.
Erraram os mais afoitos? Acertaram os mais cuidadosos?
Estamos no caminho certo? Talvez
sim...Talvez não... Mas resta também dizer, que neste
momento estamos, eu e minha mulher, jogando xadrez.

Será que poderemos ganhar?

Talvez sim... talvez não...

Talvez
Ela Raia Amarela Alerama Rayuela1

Fernando Chiavassa e Mário Aviscaio2

A experiência, se não sublime, foi desconcertante. Esta


leitura insone de uma série de capítulos em que a ordem leva a uma
sequência narrativa não convencional, se não encanta como os
contos, muda a visão das possibilidades existentes para trabalhar
personagens, espaço e tempo, numa narrativa longa. Parece, tudo
começou em "O Perseguidor"3 na busca do acorde perfeito, agora
criticando romances, afirmando categoricamente que "sem
linguagem não há homem"4, ou simplesmente discursando a respeito
do anti-romance.5
O romance é apresentado com 155 capítulos. É possível
encontrar uma narrativa linear seguindo do início até o capítulo 56.
Há basicamente dois livros propostos, dentre muitos outros
possíveis, cruzando capítulos prescindíveis e imprescindíveis. O
primeiro livro possível, narra linearmente a história de Oliveira e
Lúcia em Paris e depois de Traveler e Talita em Buenos Aires,
contando esta última, a versão da vida de Oliveira caso não tivesse
viajado. O capítulo 36, que encerra a história de Oliveira na França,
apresenta cenas em que ele vai ao fundo do poço, perdido em sua
procura, quase sem esperanças, momento em que ironiza tanto a
sociedade quanto suas formas de expressão.
O segundo livro, não linear, intercala ao longo desta
história, muitos outros capítulos, nos quais podemos ler variações do
primeiro livro e inúmeros ensaios. Dentre os 155 capítulos, 65 não
tratam exatamente da história dos personagens, mas de seu mundo
intelectual, transitando dentre múltiplos gêneros literários, com
citações, colagens, paródias e intertextos: estes são os capítulos
prescindíveis. Muito difícil explicar a essência dos capítulos
prescindíveis e daqueles imprescindíveis. "O Jogo da Amarelinha"
de Júlio Cortázar vai sendo jogado com letras e palavras com novos
significados, com frases e parágrafos lançados de maneira
hincomum6, encadeando textos sob domínio literário absoluto,
ultrapassando quaisquer gêneros.
A diversidade da justaposição dos capítulos entrecruza
ficção e não ficção, formando uma urdidura bem aberta da qual o
leitor participa, sempre acompanhado por fina ironia do autor que
coloca sempre em dúvida dogmas acadêmicos. As múltiplas
mensagens e diversos complementos formam pontes sensoriais,
permitindo que experimentemos os dilemas do mundo interior dos
personagens, expandindo a obra para muito além do romance em si,
nos conectando com uma rica vivência num mundo de músicos,
artistas plásticos ou mesmo, escritores. Júlio Cortázar abre seu texto
para o mundo7.
Sorrateiramente às dobras do tecido urdido, ou mesmo às
margens, nas barras do pano ou na beira do possível, o texto literário
é discutido em seu fazer solitário e corajoso, enquanto que marginal.
Os barbantes e fios encontrados por Oliveira nas ruas das cidades
pelas quais se debatia a procura de Lúcia ou de sua dupla, Talita,
eram tramados insistentemente em todas as direções, muitas vezes
formando insuspeitos vazios ou silêncios ricamente delineados. A
tessitura de tal propósito literário podia por vezes tornar-se
monótona, se quem estivesse acompanhando perdesse o fio da
meada, no caso de leitores que não tivessem se emocionado com a
dimensão da empreitada proposta.
Apesar de tudo, mesmo no caso de leitores identificados
com a insana luta de Oliveira e seu duplo Traveler contra um destino
desfavorável e muito embora fortemente compromissados com a
visão de mundo apresentada, pode ser que a trajetória através de
todas as possibilidades narrativas existentes, seja muito penosa. Cada
avanço na narrativa pode apresentar tão variados seguimentos e
tantas interpretações que quase estimulam o crescimento de certo
desinteresse pelo oferecimento exagerado dos caminhos a tomar,
daqueles já lidos ora vistos sob novos e insuspeitados ângulos, de
modo que vez por outra a loucura ou o sono é que apresentam as
melhores saídas para as sinucas encontradas diante de impasses ou
mesmo, gigantescos vazios.
No caso da loucura, inclinava-me um pouco mais para fora -
deslizando ao longo do peitoril da janela -, podendo me deixar cair,
para, paf, tudo se acabar! Assim, Oliveira e Traveler, discutiam
minutos antes do momento decisivo, que tomei para mim. As sinucas
dos duplos, dos espelhos, dos caminhos intercruzados e das
experiências em que encontrei-me com minhas estranhezas - tão bem
escondidas -, aparecem melhor em caminhos não lineares, mas
circulares ou elípticos, sem volta ao ponto inicial. Interessante que
sequências retóricas encadeadas do real ou seguimentos com
justaposições poéticas dos sonhos de ficção, podem por intersecção,
produzir deslocamentos ou estranhamentos nem sempre
vislumbrados pela narrativa tradicional.
A evolução desta narrativa pode seguir em frente contando
a realidade da própria história, pode retroceder em contos oníricos,
seguir adiante na forma de ensaios, ou então acaba se consumindo
através de historias encaixadas ou sorteadas, senão coladas. O texto é
tão finamente embaralhado que, de tanto confundir e de tanto iludir,
em breves sonhos me envolveu. Tais sonhos recomeçavam o que já
era terminado, partindo do fim, ou do início para algum outro lugar,
sempre dando voltas. Aflito, logo me vi em pesadelos, suando,
acordando para voltar a ler, mas em seguida, confuso, dormindo de
novo, esperando encontrar as teias da ficção. Era melhor, ao
contrário, a loucura que poderia, sozinha, tecer imediatamente uma
outra história.
Mas o redespertar em minutos, se fazia constante: tudo por
conta da ânsia em seguir até o final da história, que teimava em se
esconder como a Lúcia. (M...) De tanto dormir, sonhava lendo,
acordava sonâmbulo ou ainda sonhava acordado lendo, tanto fazia se
dormindo de traz para a frente, mas acabando por sonhar de fato com
a continuação da narrativa. Muitas vezes acordava outra vez para
procurar outra possível sequência (que na verdade pouco me
interessava, pois o mais gratificante era procurar novos capítulos em
que pudesse falar com a Lucia) sem me interessar por quaisquer
finais.
Todavia tinha muita pena dos amigos do Clube da Serpente,
é verdade, mas estava mesmo preocupado era com o Oliveira, que
não parava de perguntar pela Lucia. Eu, Talita e Traveler disso
podemos dizer com certeza. Ao fim do último acordar, viro a página
e jogo a toalha - não sem antes torcê-la -, livrando o tecido informe
das lágrimas e da sujeira, por causa dos fios emaranhados e crescidos
ao longo do texto.
Esta toalha, tão deliciosamente confusa, mimetizava-se
rapidamente em lençol, no qual me deslizava. Na cama, o liso lençol
me levou ao sono de verdade, livrando da loucura. Agora andava
pelas ruas de Paris, imaginando um encontro casual com Lúcia (M...)
na Pont des Arts. Embaixo da ponte pude ver duas figuras femininas,
extremamente conhecidas, estufadas pelo acumulo de roupas, devido
ao frio.
Ao final, eram muitas as roupas usadas debaixo da ponte:
roupas sobre roupas, histórias dentro de histórias, para livrar da
solidão, da marginalidade, da dissidência.
Lá mesmo encontrava a Lúcia, salva pela Clochard8...

Notas e considerações:

Nota 1: Este ensaio no qual os autores procuram caminhar da não


ficção a ficção, presta homenagem a Júlio Cortázar, mesclando
gêneros, brincando com ordens e sentidos, trabalhando forma e
significado da maneira mais abrangente possível. No entanto, mesmo
aqui, a Maga não apareceu.

Nota 2: Fernando Chiavassa escreve poemas, crônicas e ensaios,


enquanto que Mário Aviscaio trata somente da ficção. Este texto a
duas mãos brinca o jogo da amarelinha quando nos lançávamos à
fantasia do inferno ao céu, sem medo de chutar as pedrinhas para
longe, como naqueles tempos de Paris. Mas ficava muito
incomodado a noite, frente a janela de Traveler, ouvindo vozes... É
você Talita?

Nota 3: " O Perseguidor", Conto de Júlio Cortázar.

Nota 4: pag. 194, capítulo 28, de "O Jogo da Amarelinha de Júlio


Cortázar, Ed. Civilização Brasileira.

Nota 5: pag. 449, capítulo 79, na qual uma nota pedante de Morelli,
fala do anti-romance.

Nota 6: Inquietam os inúmeros "hs" que surgem amalgamados às


palavras: hexemplo, hângulo, hagudo, hencostado, à pag.97, ou
humidade, hescrevia, Holiveira, " O himportante é não hinchar, à
pag. 472.
Nota 7: Interessante a crítica ao romance espanhol "Lo Prohibido de
Benito P.Galdós, à pag.226 - ver "O Escorpião Encalacrado" de Davi
Arrigucci Jr. Discussão sobre a possibilidade da colocação de
cartazes em prol da independência da Argélia, pag.198 e 473. Texto
semelhante às narrativas populares iniciadas com "Era uma vez",
pag.482. Postura alinhavada contra erudição de textos literários, pag.
539. Ideia sobre barbantes e fios coloridos colados nos livros,
pag.378. Trecho em que há ironia sobre a história escrita, citando
Toynbee, em que se redefine raças, guerras e soldados, pag.570.
Relevante comentário sobre as formas do romance que mudaram,
enquanto seus heróis continuam a encarnar Tristão, Jane Eyre,
Lafcádio, Leopold Bloom(Joyce), Ulrich (Musil), Molloy (Becket),
Darley (Durell), à pag. 496.
Nota 8: Clochard, personagem maltrapilha(o), sem teto, que
invariavelmente participa da narrativa.
Aprende-se a Escrever, Pensando.
Fernando Chiavassa

Quando cheguei, mal sabia procurar onde me sentar, mas


mesmo desajeitado e um pouco tenso, cumprimentei a todos, tudo
aos olhos interessados e sorrisos simpáticos de todos aqueles
presentes, futuros companheiros. O professor não dava um sorriso.
Não poderia imaginar que daquele pequeno público de cerca de vinte
e cinco alunos, ao final do curso, não restariam dois ou três. Culpa
do público? Esqueçamos do professor, culpa de ninguém... Na
verdade, ninguém pode ser ensinado a escrever. Escrever se aprende
pensando e depois, escrevendo. O próprio professor discursou sobre
isso muitas vezes. O professor apenas errou, quando insinuou que
para escrever bem, precisávamos parar de ler... Dava para entender
que o que ele queria dizer era que, ao lermos muito, ficamos muito
exigentes. Sob o seu ponto de vista, a forte densidade cultural criada
dentro de uma alma de grandes leituras – sólida estrutura – poderia
então afugentar a originalidade e dificultar o nascimento da voz
própria, autêntica de cada um. Talvez... Mas prefiro entender esta
sua visão, como um erro dantesco. Aprende-se a escrever
escrevendo... Prefiro sentir, que aprende-se a escrever pensando. É
natural, dizer, que aprende-se escrevendo. Mas literatura é muito
mais do que isso. Não basta escrever muito. É preciso muito, muito
mais.
Combativo, diverso, livre e por isso solto de preconceitos e
de fórmulas regradas, dentro de minha visão – que me parece é a
mesma de muitos escritores – acrescento que aprendemos a escrever
ouvindo nossa alma. Aprendemos a escrever sabendo interpretar as
imagens das idéias em nosso espírito. Aliás, mais forte do que
aprender, ao escrevermos – atendemos – imediatamente a um
chamado da alma que nos talha de modo imperativo a expressar o
que vivemos, como se fôramos cronistas prontos a dar notícias de
um mundo interior que se espelha na vida de todo mundo no
universo inteiro. Então os poetas são o farol do mundo: acendem
nossos refletores! Os prosadores são a luz de nossas consciências,
que em cada época, iluminam nossos caminhares pela vida, mundo
afora. Então melhor reforçar o termo aprender com outro mais
adequado: atendemos à nossa demanda interna pela escrita.
Escrevemos para não morrer! Ao morrermos, deixamos nosso
testemunho: não vivemos em vão! Mas a escrita, é apenas o meio,
pela linguagem, através da qual tornamos concretas nossas idéias. A
linguagem não é a escrita em si, muito menos não é literatura.
Linguagem não é literatura. Se tanto, a linguagem conforma estudos
científicos que primam pela teoria da linguagem. A criação literária,
com tipo de discurso diverso – o da quase realidade, ou da ficção,
surge através da intenção do juízo, do pensamento. Daí ser expressão
máxima de algumas almas penadas, guardiãs do universo, a se
insurgir contra a mesmice e a falta de originalidade.
Este texto, não pretende ter um tom político, mas a bem da
verdade, então, escrever é muito mais do que linguagem. É
pensamento. É revolução. Escrever literatura é transformação. A
criação literária pode simplesmente se voltar para o sentido lúdico da
existência e apenas se preocupar em contar boas histórias e não há
nada de mal nisso. Há técnicas para atingir este objetivo, e nisso, o
professor foi perfeito, brilhante. Há, portanto, a literatura para a
diversão. Mas há também e principalmente a literatura para a
formação. Honestamente, eu me identifico muito mais com a
literatura de formação, de crescimento, de construção. Bem vindas
todas as literaturas, cada uma com suas funções. Nenhuma pior, nem
melhor; apenas diferentes. Salve a diferença! Bem vindas todas as
descrições, todas as resenhas, os artigos todos, as crônicas, os contos
e os romances, expressem eles o que pudermos e formos capazes de
constatar. O conteúdo expresso resultante é um bom termômetro
social. Existem aquelas literaturas, que se preocupam apenas com a
beleza da linguagem veiculada. Outras não. Ocupam-se também com
a linguagem, mas, tem na mira de seu alvo, principalmente, o
espírito. Ocupam-se dos caminhos da humanidade através do mundo
e de sua perpetuação. De sua salvação. Ou então, principalmente da
falta de representatividade de uma sociedade mercantilista
minoritária injusta e afastada do bem comum. Distante da primazia
da individualidade e da formação de pessoas livres, autênticas e
donas de seus destinos.
Naturalmente, num curso podemos aprender técnicas sobre
“contação” de histórias. Vamos escrever poemas e ouvir as melhores
maneiras de se dispor crônicas e contos. Visualizamos as diferenças
trazidas pelos romances e pelas novelas. Entendemos quais as áreas
de compatibilidade e de influência entre gêneros. Mas na verdade é
tudo uma única coisa, que pode crescer em complexidade, do poema
ao romance. Um romance não é um conto, mas um conto pode ser
um romance em crescimento, se dados os necessários
aprofundamentos. Mas literatura não é somente história. Podemos
aprender quem são os narradores, como as tramas se desenvolvem.
Vamos ouvir o que dizem as outras pessoas sobre o que escrevemos.
Aprende-se a criticar e a receber críticas. Mas é só. No entanto,
escrever é muito mais do que isso. É alma! Foi isso que vim procurar
num curso de oficina literária. Mas encontrei apenas linguagens e
técnicas. Não encontrei gente. Não vi almas. Quando cheguei, mal
sentando – todos diziam brincando que a uma das primeiras coisas
que aprendemos é sentar – o relógio marcava dezenove horas e cinco
minutos. Diante da platéia de pouco mais de nove pessoas, o
professor preocupado com as outras dezesseis – sem dar boa noite –
saiu. Enquanto escrevia estas linhas iniciais, a leitura que dele pude
fazer, o desenhava como alguém austero e antiquado, de modos
excessivamente contidos. Conservador? Não exatamente. Como
poderia comprovar até o final do curso, ele pode ser brilhante. Mas
extremamente exigente e rigoroso; muito severo demais para nós
brasileiros, que não estamos acostumados com isso.
Eu permanecia surpreso de ver que logo no primeiro dia de
aula, apenas menos da metade tinha comparecido. Afinal, o que
estariam todos a procurar por ali? O que esperava aquele professor
sisudo? Quando juntou-se a nós a décima alma – aluna penada – ele
entrou, sentou, e finalmente começou. Simpático, pelo menos no
início, simpático. Pediu que cada um se apresentasse, dizendo em
“poucas linhas” um breve histórico de si, acrescentando os motivos
pelos quais chegou ali. Depois, começou dizendo que aquele curso
era inútil e que não tinha caráter utilitário. Afirmou em seguida, que
o curso não formava ninguém, e que ao final do curso, não esperava
grande coisa. Contou que ao longo do curso poderíamos obter no
máximo vinte por cento de textos com alguma qualidade, sendo que
destes, apenas metade iriam valer a pena. Continuou, palestrando
para uma platéia muda, que o domínio das técnicas literárias provém
do exercício e que escrever sozinho pode ser perigoso, que era
preciso de um orientador para um feed-back. Na escola, continua o
professor, é possível ser confrontado e avaliado. Lendo muito,
passamos a ter um padrão muito alto, o que que pode travar toda a
criatividade.
Passado o curso de poesia
Posso lembrar que depois de passados seis meses e ter
acabado o curso de poesia, continuo vendo a porta aberta e o
professor, ausente, à porta fumando o seu cigarro, a ouvir a chuva
quase parada, agora nas árvores em gotas. Estamos em março. Novos
personagens, também em número reduzido. Os alunos de minha
turma anterior, desapareceram: ficamos em cinco, apenas. Ouço uma
conversa morna misturar-se às gotas que ainda insistentes tornam o
espaço muito úmido. Percebo também que as pessoas que deviam ter
maior umidade e maior emoção, são secas e distantes. Tal qual o
professor: brilhante, mas seco. Sisudo. Carrancudo. O professor se
aproxima, deixando seus pensamentos lá fora. Eu não consigo deixar
os meus, porque a mim foi revelado que o curso, com seu ritmo
monótono e restritivo, não combina comigo. Na verdade o professor
era um lingüísta e um contador de histórias, na pura acepção da
palavra. Rigoroso, construtivista: formalista. Seu poeta predileto era
o João Cabral. O meu, Manoel Bandeira: nem disse Fernando
Pessoa.
O curso começou a perder o rumo para mim, logo no início,
quando aquele professor antiquado – embora que brilhante – me
disse que nenhum dos dois eram poetas dignos de sua atenção. Muito
bem respeitemos a diferença. Mas ele falava com um certo desdém a
respeito dos meus poetas prediletos. Depois disso perdi o gosto por
João Cabral, por que me lembro dele. Coitado do João Cabral! Para
minha estupefata surpresa, ouvi boquiaberto, que gostava de Clarice.
Esta foi a sua afirmação, para mim, mais desprovida de convicção:
talvez tenha dito por obrigação. Mas acho que ele nunca entendeu
Clarice! Clarice não conta histórias. Clarice conta do mundo interior
de seus personagens: Clarice conta dela própria e do mundo! Minha
musa! Depois, percebi que o professor cismava muito com o excesso
de rigor nas avaliações dos trabalhos que os alunos apresentavam.
Percebi a muito custo, que ele adorava embaralhar a cabeça dos
alunos afirmando serem leis literárias as regras que ele criava apenas
para seus exercícios. Descobri que ele instilava medo nos alunos,
afirmando que textos ruins eram sinal de mentes problemáticas. Com
essa postura, postava-se na cátedra, um professor retrógrado, que não
gostava que ninguém chegasse perto.
Pois eu digo, que literatura se ensina com amor. Escrever é
um ato de amor, não um delírio formal plástico lingüista. Poemas
não são feitos somente com palavras, nem só com metáforas.
Equilíbrio! Poesia é alma! É mundo! É amor! Prosa não deixa de ser
poética. Prosa é o sentimento do mundo. Também. Harmonia. Mas
de nada adiantava quaisquer colocações, enriquecimentos discentes.
Alí, somente o professor sisudo é que sabia de tudo. As escolas não
tradicionais, vocacionais, experimentais ou de aplicação,
metodologia de ensino que ele deveria conhecer, prezam pelo
intercâmbio e pela participação, justamente para com a
aprendizagem crítica, afastar modelos ditatoriais de cátedra. Mas ele
sempre foi brilhante, mas por demais crítico. E distante. Suas críticas
ganhavam fel, à medida que um aluno infeliz – apenas naquele
instante – colocava-se a si mesmo nos poemas. Uma vez – não
esqueço – declarou que ninguém tem nada a ver com as dores
verborrágicas da alma de ninguém. Então somente as rimas, as
aliterações, as imagens e a construção lingüística é que valiam a
pena. Segundo ele, na prosa, todo mundo quer apenas ouvir uma boa
história. Que a história que é importante!
Durante o seu curso, o sisudo professor, falou de equilíbrio.
Mas embora tenha apresentado um curso brilhante, não teve muito
bom senso, pois a alma perdeu terreno para a linguagem,
desequilibrando uma seqüência que parecia bem concatenada.
Comecei a perder de vista o curso a medida que percebia que muitos
outros o abandonavam. Segundo o professor, esta baixa audiência
estaria diretamente relacionada à qualidade dos alunos, muito ruim
segundo o professor. Não acho. A audiência diminuía, porque no
fundo o professor afastava a todos com seu excesso de rigor.
Construtivista. Distanciava também os alunos com sua severidade
sem propósito. Formalista. Ao final o curso que começou com vinte
e cinco alunos, não entusiasmou nem mesmo a mim, que era o único
representante da classe para uma festa de encerramento. Ali naquela
festa sem graça, havia apenas alunos de outras classes, resistentes,
penitentes. Como uma festa anunciada com antecedência, com muita
comida e bebida, amigo secreto e tudo, não interessou a ninguém?
Apenas a mim?
O curso era frio. Brilhante. Mas seco, opaco. Não foi de
nenhuma maneira um curso transparente. Não houve
intertextualidade. Muito menos congregação, reunião. Houve
posturas separadas e incomunicáveis. Alunos de um lado, professor
de outro. Não houve debate. Nenhum discurso ali foi profícuo. À
medida que a primavera acabou, veio um verão ausente, com os
alunos se distanciando, à desilusão com a literatura, professor
acomodado, com suas regras e leituras próprias, se dirigindo para o
inverno de um curso vazio. Um curso dirigido por um professor
encantado com a sua descoberta pedagógica, mas, que no fundo,
dava medo e criava fantasmas lingüísticos. Um curso amarrado ao
seu professor. Com seu professor formal construtivista, lingüista. O
curso não apresentou uma oficina literária, mas uma oficina de
línguas, de criação e de leitura de histórias. Faltou a literatura; não
estiveram presentes as idéias, nem os pensamentos, nem muito
menos a alma humana. Mas quer saber? Não fiquei mais ali naquela
sala, nem nunca mais voltei, para ouvir dele que provavelmente
muitos escritores – provavelmente – Borges, Camus, Canetti,
Cortazar, Goethe, Joyce, Mann, Musil, Proust, Saramago e Sartre,
dentre outros – não eram bons contadores de histórias. Eu
decididamente não quero apenas contar histórias. Não serei
formalista, nem construtivista. Não serei nem concreto, nem
escreverei contos para divertir. Adeus curso.
Primavera, Política, Educação, Arte e Autoritarismo

Fernando Chiavassa

Para combater as consequências da escolha feita por apenas


parte de nossa sociedade autoritária (formada pela terça parte dos
votantes do país) que elegeu líderes neoliberais que insistem em nos
lançar nas sombras – atendendo a interesses pessoais e globais –,
escolhi a educação, com a qual me envolvo definitivamente. E se a
parcela da sociedade que cancelou ou anulou o seu voto – ainda
imobilizada –, se conscientizar dos erros trazidos por essa infeliz
escolha eleitoral (obtida através de eminente vacilo da maioria) e
começar a agir, vamos deixar o Brasil longe desse perigoso inverno.
Viva a primavera, pois essa mobilidade ocorre, pelo menos na
periferia e na escola.
Tenho aproveitado este espaço para comunicar vivências
artísticas como escritor, na maioria das vezes sob o ponto de vista de
um aluno que busca, a partir da teoria e da prática, sua melhor
realização pessoal. Essa performance – pelo menos no meu caso –,
não implica no alcance do sucesso que prêmios, exposições,
palestras e publicações possam trazer, mas aponta na direção do
êxito da prática artística em si mesma, do prazer da transformação
social (pessoal e coletiva). Essa direção me leva à totalidade, sempre
em busca de possíveis complementos para o quebra cabeça deste
mundo narrativo. A integração artística sempre leva à descoberta de
procedimentos comuns nas regiões fronteiriças, onde se originam
novas formas expressivas.
Entender literatura através do teatro, da fotografia, do
cinema ou da música, mesmo da arquitetura mostrando, por
exemplo, que a grande integração entre textos e imagens é a poesia
existente entre essas mídias é puro prazer. Se na fotografia a poesia
se decanta a partir de figuras de linguagens imagéticas e nas
analogias estabelecidas entre símbolos ou alegorias que inferem
narrativas, o mesmo processo se enriquece no cinema, a partir da
justaposição entre planos e sequências de imagens, levando a
deslocamentos espaciais e temporais, onde o espectador no presente,
através do devaneio e da ação imaginária infere um mundo de
experiências pessoais, que o absurdo e o autoritarismo da realidade
lhe rouba.
Gradativamente, isso tudo me levou a outro ponto de vista –
que também muito desejo compartilhar – que é o entendimento (ou a
descoberta) dos melhores processos de ensino para desenvolver a
escrita criativa. E isto vai ocorrendo à medida que pesquiso as
melhores maneiras de ensinar teatro, cinema, música, pintura ou
outra arte dentre gêneros e demais formas expressivas. No entanto, a
que mais chama a atenção é a forma de ensino do teatro, talvez a
mais libertadora, enquanto manifestação de arte coletiva. O milagre é
este, o coletivo, que salva. Por isso, parabéns, Viola Spolin; parabéns
também para Emerson Alcalde.
Tudo começou quando eu quis – voluntariamente – trocar
práticas e conhecimentos (devolvendo à sociedade a aprendizagem
destes dez anos, aprendendo literatura nos museus, nas
universidades, nas oficinas de criação e nos grupos literários
coletivos dos quais participei e de que ainda participo). Neste ano, eu
me aproximei de minha escola fundamental (antigo ginásio em
1969), para palestras sobre criação literária, ajudando a formar
futuros poetas, que tem caminhado na vida estudantil sem apoio
artístico. Foi quando descobri que o ensino poético já estava presente
naquela escola estadual desenvolvendo formação poética para jovens
alunos do ensino fundamental, com vistas à sua participação do Slam
estadual que ocorre em novembro.
Quem começou isso tudo, foi o Emerson Alcalde – que
criou o Slam da Guilhermina –, a quem parabenizo pela atitude, sem
reservas. Nessa volta à escola percebi que os estudantes, com grande
vontade de escrever poemas “competitivos”, se ressentem não
somente de formação poética, mas principalmente de verdadeira
formação performática, que somente a tradição oral pode trazer,
junto com o teatro. Os jovens estudantes na maioria são reservados e
contidos, presos em sua impossibilidade expressiva maior;
aprisionados muitas vezes em leituras tímidas. Mas eu também
percebi que isto ocorre não somente com estes estudantes, mas
também comigo e com muitos escritores que não cultivam o hábito
da leitura em voz alta, menos ainda o costume de representar ou
dramatizar o seu texto. A questão toda está no jogo.
Vivemos todos dentro de uma sociedade extremamente
colonialista e autoritária, elitista e punitiva, independentemente do
partido político ou da atitude de governantes e políticos. Então
sofremos dentro da própria família e de diversos grupos sociais
(mesmo “artísticos”), com os julgamentos arbitrários dos outros,
“... oscilando diariamente entre o desejo de ser amado e o
medo da rejeição para produzir. Qualificados como “bons” ou
“maus” desde o nascimento (um bebê bom não chora) nos tornamos
tão dependentes da tênue base de julgamento de aprovação/
desaprovação que ficamos criativamente paralisados. Vemos com os
olhos dos outros e sentimos o cheiro com o nariz dos outros. Assim,
o fato de depender dos outros que digam onde estamos, quem somos
e o que está acontecendo resulta numa séria (quase total) perda de
experiência pessoal. ...” (Viola Spolin*)
Esta experiência pessoal real deveria preceder, ou no
mínimo ser simultânea a maravilha de poder se colocar no lugar dos
outros para melhor, não somente entendê-los e ao mundo, como
finalmente, melhor entender a si mesmo. Percorrendo um longo
caminho interdisciplinar (horizontal), verifiquei como se dá o ensino
de texto de ficção e não ficção, seja prosaico ou poético. Analisei
também como ocorre a transmissão nas artes plásticas, do ensino de
composição de imagens seja com pintura, colagens, ou fotografia. E
estou começando a ver como se ensina representação e performance
na representação dramatúrgica, talvez o ensino mais democrático e
livre possível simplesmente porque, para aprender teatro é preciso
união e coletividade.
Assim, simplesmente assim, caminhando entre artistas,
pude sentir perfeitamente o quanto o abuso da autoridade – mesmo
nas escolas e grupos de ensino – mata a livre expressão e completo
desenvolvimento pessoal. Importa ressalvar que no caminho
educacional que escolhi, não há lugar somente para os chamados
artistas “natos”, como há lugar, principalmente, para todos aqueles
que ainda não estão formados e que tem muita dificuldade para
encontrar seu caminho artístico. E, se escritores muito talentosos
(mesmo célebres) se fazem notar desde os seus primeiros passos, há
talentos obscurecidos pelo excessivo rigor de formação
conservadora, guiada pela cega trilha da aprovação. Há muitos
escritores novos bloqueados por descaminhos muitas vezes
inconscientes.
A questão é que não há formação específica para
professores de escrita criativa aqui no Brasil e por conta disso,
alguns escritores acabam sempre trilhando caminhos fáceis, tateando
mal por meio de obscuros métodos experimentais, terminando
sempre na pobre aprovação e desaprovação “autoritária”. Na busca
de valorização profissional ou de incremento monetário – já que
livros não vendem –, muitos escritores batem cabeça em suas
oficinas, acertando mais do que errando é verdade, assim fazendo a
história do ensino da escrita criativa no país.
Eu sorte em contar com professores relevantes em escolas
recentes no Brasil, de ensino de escrita criativa (primeiro nos
museus, Lasar Segall, Casa das Rosas, Mário de Andrade e
Guilherme de Almeida e depois no Instituto Vera Cruz), que deram o
exemplo de caminhar firme em meio a constantes dificuldades e
erros e através deles, complementar nas áreas afins, sempre
aprovando muito mais que desaprovando, apoiando a todos com
dedicação. Eles ensinam que os caminhos artísticos são para todos,
mesmo para aqueles não identificados – às vezes prematuramente –
como artistas natos, incensados e premiados.
Ao longo destes dez anos, percebi que em todos os setores
de nossa sociedade e por incrível que pareça, também no mundo da
arte, o que mais precisamos é de liberdade, intercâmbio e perda de
preconceitos. Todo mundo devia ler pelo menos o Capítulo 1 – A
Experiência Criativa (Teoria e Fundamentação, com apenas 12
páginas se muito) do livro de Viola Spolin, famosa autora e diretora
de teatro, criadora de famoso método de ensino no teatro. O que ela
ensina, tem muito a ver com Slams, com Emerson Alcalde, com
nosso momento político e com a vida de todo mundo.
*Viola Spolin, Improvisação Para o Teatro – Revisão de
Ingrid Dormien Koudela, da Coleção Estudos, Editora Perspectiva,
6ª. Edição, 2015, São Paulo-SP.
Des curso
Fernando Chiavassa

Discurso 01: Este mundo mercantilista capitalista


globalizado é mesmo uma grande merda, onde encontramos pessoas
querendo mandar e persuadir; com cada vez mais pessoas aderindo a
este discurso porco-chauvinista consumista e outros como nós, que
tentamos destruir estes discursos. Mas a quantidade de “escravos
contentes” que são aqueles que adulam ao discurso do senhor
dominador são os que mais impedem que o mundo possa melhorar
na busca de uma existência sem perversidade, sem exploração e sem
cartilhas...

Discurso 02: Toda a nossa cultura ocidental e mesmo a


oriental é baseada num certo tipo de dominação que começa pela
linguagem, cujo discurso do outro dominador é enfiado em nossas
cabeças ainda quando não podemos falar, nem discernir o bom do
mau discurso. A estrada que pode nos levar a entender estes
discursos para, depois, desconstruí-los é longa e estafante. Quando
você percebe que uma linguagem sofisticada e retórica é – antes de
ser um veículo de comunicação – uma arma com a qual assaltam a
nossa mente, com imagens, signos e textos, levando a
comportamentos díspares de forma que a nossa vontade desapareça,
começamos a nos despreocupar, porque entendemos o vil intento
social; mas ao mesmo tempo – já marginais – sentimos preocupação
com o fim do mundo. Com todos nós.

Discurso 03: Em meio a este caos, impera que possamos


nos sentir o mais a vontade possível, sem carregar traumas que não
são os nossos, procurando sermos nós próprios, com nossas vontades
e habilidades, fazendo o que gostamos e desfrutando do convívio das
melhores pessoas mais próximas, porque amam o nosso jeito de
existir e rejeitam também tudo o que nos é hostil. Embora o
estrangeiro possa significar dificuldades, às vezes o que é de fora,
pode ser muito bom; então devemos nos mover em direção a um
processo antropofágico para transformar originalmente o externo,
devorando as influências externas benéficas e tornando-as nossas,
para imediatamente após deglutirmos novas experiências,
devolvermos ao mundo nossa contribuição, tornando o mundo
diferente, porque interagimos com o diferente, respiramos,
desejamos e amamos a todos.

Discurso 04: À medida que conseguimos nos envolver com


novas vivências, percebemos cada vez melhor a nossa essência, de
modo a escolher sempre caminhos alternativos. Revela-se melhor a
linguagem desprovida de retórica, sem recursividade (processo de
encadear uma frase na outra, construindo frases concatenadas,
algumas vezes muito longas) evitando a tradicional semântica
proveniente de tradicionais frases subordinadas, coordenadas e
atreladas por conjunções, preposições, com os sujeitos e os agentes
do discurso orientados por pronomes, para atribuir ações,
responsabilidades, sanções e culpas, por quem fez o quê e o caralho
a quatro.

Discurso 05: A linguagem de discursos mais simples é


menos precisa, mas muito mais espontânea, distante de normas,
longe das convenções tradicionais e carregada de forte originalidade:
mais espontânea do que aquela acadêmica. Alguns povos bem
distantes dos grandes centros urbanos apresentam linguagens em que
as ações prescindem dos tempos verbais do passado e do futuro. Não
há conceitos aritméticos sofisticados; não são encontradas
quantificações nem qualificações muito precisas. Resta a linguagem
poética, quase imagética, construída com imagens e poucas palavras,
que em síntese entoam, significados sonoros, livres do discurso
retórico.

Discurso 06: O tempo passou, suas primeiras obras


impactaram e muitas delas ficaram, mas apenas algumas
desconstruíram o discurso. São quase 50 anos das primeiras obras de
Cabral; 60 anos das primeiras de Rosa; 70 daquelas de Clarice e
Drummond, 80 das de Érico, Amado e Graciliano, 90 de Cecília,
Oswald e Mário de Andrade; 100 anos de Bandeira e Barreto; 110 de
Euclides; 120 de Azevedo, 130 de Machado e 513 de Pero Vaz de
Caminha. Porém estes cânones podem ter desertificado espaços
férteis para uma nova literatura brasileira.
Descurso 07: Mesmo assim e por isso mesmo, vivemos
cansados de lá pra cá, de ouvirmos e lermos sempre tudo igual. Por
isso, “Eu quase que nada sei. Mas desconfio de muita coisa.”
Procuro feliz que o mundo possa ser percebido diferentemente.
“Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”.
“O espírito da gente é cavalo que escolhe estrada.” “A vida é
ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio
do fel do desespero.”
Descurso 08: “Manter firme uma opinião, na vontade do
homem, em mundo transviável tão grande, é dificultoso.” “Quem
desconfia é sábio.” “O Sertão é sem lugar; é dentro da gente; é o
sozinho.” Mas, “tudo é e não é”. Assim “embriagatinhava” o
“ensimesmudo” “imitaricando” o mundo.“ “O mato aeiouiava”.
Descurso 09: “Moimeichego”. Vousyousievos. Ai Ke ku.
Ai Ki bos. Aí ke tá. “Tupi or not tupi”. Laoaqui, edai? Daí que nada.
Ki nada.
Descurso 10: “Nonada”.
A Mãe Terra e Seu filho.
Fernando Chiavassa

Caso ainda não tenhamos passado por significativas


experiências de vida, com o passado nas palmas das mãos, a
memória, subvertida do inconsciente, no presente e o futuro no
coração, não podemos transcender a realidade. Se já não tivermos
ido até o fundo de nossas almas a escutar nossas premissas mais
íntimas, corremos o risco de não conhecermos a nossa própria
natureza. Se ainda não compreendemos o discurso do outro e suas
reflexões, aceitando diferenças, não estaremos ligados à essência da
criação. Uma compenetrada jornada de encontro à vida em todos os
níveis, observando um mundo em constante transformação e sua
magia de existir, não pode ser desprezada. Sem estudos práticos e
teóricos e sem pesquisas quanto à existência na Terra, podemos estar
próximos de grandes enganos. Mesmo alicerçados por satisfatória
formação e munidos com muita informação é preciso estarmos
alertas para o fato de que nem todo o conhecimento reunido
atualmente pode ser bastante para que possamos entender
completamente a vida em nosso planeta e toda a sua rede de
interconexões, em todos os níveis animados ou inanimados. Geniais
mentes privilegiadas não serão capazes de desvendar com sua forte
intuição o milagre da existência.
Homens simples com diferentes inteligências – não menos
geniais – podem fazem melhor, às vezes, utilizando apenas o
coração. Ao utilizarmos padrões racionais que se repetem há
milênios, podemos não ser capazes de contemplar mistérios,
entender magias, contar mitos e lendas e ver o que é simples e
essencial. Limitados, poderíamos concluir – utilizando apenas a
razão – que “defesa ambiental”, hoje em dia, virou moda. Através de
uma equivocada visão, o tão debatido “aquecimento” poderia ser
compreendido não como um assunto científico, mas sim, como
plataforma política e econômica. Esta perspectiva – não comprovada
– poderia qualificar a “questão ambiental” como sendo apenas
obsessão da mídia e uma plataforma governamental. Não obstante,
um horizonte maior detecta grandes esperanças. Preferimos entender
a falta de respeito à natureza como um problema existencial, em que
ambientes físicos integrados aos sociais, se influenciam mutuamente,
de forma que a falta de equilíbrio é fator suficiente para desorganizar
um arranjo divino. Este aparente caos nos apresenta impasses e
impõe perplexidades. Não conseguimos respostas, nem indagando o
real com a ciência, nem tampouco discutindo a existência em ficção,
quanto mais tentando interpretar os nossos sonhos.
Entretanto, dúvidas cruéis diante do futuro são mais
importantes como perguntas do que como respostas, que repetem um
comportamento cognitivo padrão: as soluções advindas da mente não
significam muito, porque alguns mistérios da vida estão fora do
alcance de nosso entendimento. Por isso importam mais as perguntas
e o significado de nossa postura interrogativa. Então, que mundo
vemos e que mundo queremos? O que desencadeia alguns dos
fenômenos climáticos recentes, a ponto de mudar nossa realidade de
vida? Estas mudanças são definitivas? Tais alterações surgem apenas
a partir da Terra? Já não aconteceu o mesmo no passado, seguindo
uma sequência rítmica, em ciclos ao longo de séculos? Se tudo se
transforma, nasce e morre – inclusive nós, que desaparecemos sem
conhecer nossas origens e destinos – porque tanta apreensão? Quão
longe enxergamos o passado e quanto podemos predizer o futuro?
Mas, então, cuidamos bem de nosso planeta? Tomamos conta de
nossa terras, de nossos ares, de nossos mares, de nossos animais, de
nossos irmãos, conhecidos e de nossos desconhecidos? O sistema de
vida humano e sua cultura é a única ação transformadora, culpada
por este conflito ambiental? Será possível que apenas nós humanos
somos os únicos responsáveis? Que tamanho o de nossa culpa!
Naturalmente o clima de nosso planeta tem mudado em
ciclos e já ocorreram no passado muitos períodos de aquecimentos e
de resfriamentos e ainda muitos outros voltarão para alterar profunda
e dramaticamente o nosso habitat. Sabemos que vivemos em ciclos
rítmicos, que se repetem, mas ainda não apreendemos o ritmo e o
tempo de nosso planeta e nem poderíamos, com tão curta vida tal
qual piscada de olhos, diante do eterno respirar do universo. Ainda
não entendemos nosso lugar diante das dimensões do cosmos, pois
não aprendemos a ser responsáveis por nossos mínimos atos. Não
temos plena consciência de que tudo é enfaticamente importante e
inter-relacionado: a cada nova vida, um sério comprometimento gera
uma nova e integrante história; a cada criação intuída, uma nova
decisão, uma ação engendrada e uma outra direção a seguir. Nada,
nada, nem um mínimo acontecimento é vão. Não obstante, quase
tudo é uma questão de tempo – para nós, ansiosos mortais – pois
embora nosso coração bata a cada segundo, o do Universo e o da
Terra batem ambos em ritmos diferentes, em progressões infinitas,
cuja marcação temporal é para nós redondamente desconhecida. Será
que milhares de anos de cultura acumulativa não entorpeceram nossa
percepção? Ainda sentimos?
É provável que a cultura imagética nos tenha destituído de
nossos quatro sentidos, pois não mais sabemos ouvir, tatear, nem
muito menos degustar sem a visão. Deixamos de ouvir e de apalpar o
mundo: estamos desligados, pois apenas ver não é suficiente,
principalmente quando o excesso de imagens nos empobrece.
Galáxias se expandem em torno de aglomerados axiais, o Sol em
flamas douradas dá voltas em torno da galáxia espiralada, a Terra
achatada gira em torno do Sol, bem como, encantada, rodopia em
torno de seu próprio eixo, inclinada. A Lua prateada orbita, se
afastando cada vez mais de nossa mãe amada, projetando todos os
astros trajetórias elípticas, enlaçando-se juntos a não se perderem, se
enamorando. Os animais giram em volta da comida e nós mesmos,
vivemos às voltas em busca incessante do significado de nossas
vidas. As plantas crescem em torno da luz e da água, e se voltam
para o alto e para a claridade, assim como os pais giram em torno das
mães, os filhos em torno dos pais e as mães giram em torno dos
filhos, que correm atrás dos avós, a brincarem brilhantemente. As
substancias se misturam a tudo completamente enquanto todas as
moléculas se agregam fortemente em torno de muitas outras em
associações geniais; os átomos giram através do espaço
extenuantemente, ao passo que elétrons orbitam infinitamente em
torno dos núcleos e assim repetidamente, indefinidamente e
eternamente.
Não há neste universo nada solto ou preso, a não ser ele
mesmo de um só verso, de modo que há sempre os versos e os
reversos, as luzes e as trevas, os cheios e os vazios, as águas e os
ares, as terras e mares, os ímpares e os pares o dentro e o fora, o
perto e o longe, o junto e o largado. Felizes ou tristes, odiados e
amados, sempre ao final nos sentiremos sozinhos e abandonados. Por
isso mesmo ficcionamos artisticamente, sem parar, no gozo deste
abandono, com grande verossimilhança a inexistência do fim, pois
ainda não conseguimos discutir a morte como discutimos a
existência. Ainda não vimos a morte de um universo sem fim. Por
isso mesmo, disfarçamos a morte a vida inteira, assim como somos
tentados a sonhar que não há o contrário do tempo, não há o nada –
posto que o vazio é ele mesmo uma coisa em sí – e então negamos a
morte em vida, pois o antônimo do tempo, seria uma grande
exceção, uma aberração e uma singularidade, não sob o ponto de
vista físico, mas literal. Ainda bem que sonhamos. Sonhamos com o
infinito, mesmo sem entendê-lo. A existência promove sequências
de integrações e progressões sincronizadas de vidas em cadeias,
ditadas por ciclos e ritmos. A arquitetura do universo apresenta-se
concebida através de leis, normas e critérios desconhecidos que
desenvolvem razões insuspeitas, caracterizando verdadeiros
milagres.
Portanto, diante de tudo e de todos – e totalmente ignorantes
– a total compreensão dos fantásticos fenômenos da vida por nós é
impossível. Todavia, podemos alcançar algum discernimento, se
tivermos um grande coração e uma alma abnegada e altruísta.
Ciência de qualidade, invariavelmente, depende sempre de grande
acúmulo progressivo de conhecimentos e é desenvolvida através de
assíduos e árduos trabalhos práticos de campo levados a termo com
seriedade; precisa de levantamentos de dados em quantidade e
qualidade que levam muitos anos para se totalizarem; depende
também de investigação extenuante; de trabalhos organizados com
várias equipes multidisciplinares; precisa de incessantes
experimentos de laboratório; da volta incansável ao campo para
conferências e validações; de revisões e comprovações em todas as
etapas; necessita ser apresentada e reexaminada por intermédio de
exposições das experiências em bancas para debates científicos e
somente depois de muita certeza, alcança conclusões teóricas para
possíveis predições. Portanto, não podemos ter quaisquer conclusões
precisas sobre a vida de um planeta tão velho como a Terra - levando
em conta nossas idades e nossa cultura – com apenas poucas
centenas de anos de registros de dados e observações – e
praticamente sem bagagem holística.
Com base na realidade e com esperanças nos melhores
sonhos, dentro dos contextos deste início de século, devemos, pois,
decidir que mundo vamos deixar para nossos filhos, nossos amigos e
para todos os seres vivos. Diante de decisão tão intuitiva, fácil para
alguns, tão difícil para outros, é preciso muita calma, reflexão e
muito sentimento. Naturalmente, agora, importa olhar para a
totalidade de nossas histórias, desde aquelas contadas oralmente até
aquelas escritas, sem esquecer de nenhuma delas, não importando o
tamanho das diferenças apresentadas e encontrar lições dentre os
povos que melhor entenderam as relações de vida entre os seres e a
Terra. Nesta empreitada, deveremos levar em conta igualmente
histórias, eventos, magias, lendas e mitos, artes e realidades,
documentos, ciência e ficção. Este entrelaçamento cultural deverá
tecer um alicerce suficientemente sólido de modo que possamos
entender que a diferença entre os tempos de vida é quase que
inexistente, pois frações menores que o segundo separam o passado
do futuro. E é neste exato presente, que passa vertiginosamente, que
devemos fincar as sementes de um futuro mais justo, pacífico e
menos amedrontador para todas as espécies vivas. E a partir deste
momento vale prestar muita atenção na Terra, para observar –
contemplando – a íntima e complexa relação de vida existente entre
todos. As espécies que melhor percorrem este caminho –
intuitivamente – respeitando a vida e o planeta são os animais.
Depois delas, tentam seguir tão nobres exemplos, alguns humanos,
dentre alguns poucos mais ligados ao planeta e a sua natureza.
Tem sua vida ligada a natureza todos aqueles que ainda
ouvem o farfalhar das folhas ao vento, que se encantam como o
canto da cigarras, em meio ao barulho das cidades e suas amarras.
Amam e respeitam a natureza, aqueles que brincam com os
vagalumes ao entardecer, que interagem com os bichos sem os
prender, ou que cuidam dos animais, das plantas, das águas e do ar e
da terra em qualquer lugar. Encostados ao chão ouvem o coração
batendo de nossa mãe e sabem vê-la feliz. São ligados ao cosmos
todos aqueles que acompanhando o movimento do sol ao longo de
um ano – de sudeste a nordeste e de noroeste a sudoeste – e seguindo
as estrelas no céu, ouvem um fundo, uma radiação, um som celestial.
São eles os filhos responsáveis de nossa mãe natureza, que não
exploram desenfreadamente seus recursos e que repõe honestamente
tudo quanto tiram, pensando no outro e na sua mãe. Estar ligado na
natureza representa pressentir quando chega uma mudança, prevendo
quando vai esquentar, esfriar, quando vai chover, quando se
aproxima um terremoto, um ciclone ou um tsunami: podemos
reconhecer quando a mãe natureza está zangada. Desaprendemos a
ler os sinais da natureza.
O mundo construído pelo homem contemporâneo é muito
artificial e suas cidades não respeitam o ambiente natural: suas
benfeitorias cortam, aterram e impermeabilizam os solos que
choram; modificam montanhas e vales e alteram os cursos naturais
dos rios, retificando canais remotos e canalizando suas águas como
se fossem esgotos. Vemos, nas cidades, os solos serem multiplicados
especulativamente por centenas de pavimentos, sendo que dentre
estes espigões sedentos são abertas milhares de ruas, avenidas,
pontes e faturamentos, poluindo, aumentando a temperatura e
concentrando milhões de pessoas numa reduzida malha urbana,
desvinculados de sua cultura cigana e sem a menor chance de uma
sobrevivência digna e soberana.
Não podemos nos esquecer que existem limites muito
tênues a serem respeitados dentre todos os povos, seus sonhos e suas
realidades, entre sobrevivência e exploração, entre desejos e
conquistas, crescimento e preservação e entre mercantilismo,
globalização e crescimento sustentável. A globalização tende a
apagar as individualidades e a diminuir a importância do regional.
Seremos globalizados. Generalizados. Ordenhados. Ados?
Por tudo isso, não é possível deixar de levar em conta as
experiências dos povos que prescindiram da cultura urbana, e
assentaram suas vidas organizadas diferentemente, com pequenas
populações em aldeias e lugarejos distantes. Decerto elas tinham o
seu conforto, a sua energia e as suas comunicações. Muitos destes
povos deram certo.
Muitos deixaram sua magia e sua arte, suas histórias e
lendas, mitos e esperanças à herdeiros que nossa civilização urbana
dizimou. Ainda existem uns poucos, à espera de quem delas desfrute.
Deixaram também suas terras e seu mundo intacto. Lembramos que
eles aprenderam com a natureza a eliminar conflitos ambientais e
sociais.
Mas leva sempre a pior a natureza, debaixo das lutas por
terras e propriedades; sofre a Terra sob disputas por poderes, direitos
e liberdades; produção e consumo, compras e vendas entre quem
trabalha e quem emprega. O homem sofre, a natureza perde.
Nestas lutas insanas, chora a mãe Terra pelo seu filho, o
homem natural, sempre perdido dentro dos contratos sociais,
extremamente artificiais, parciais, unilaterais.
E o filho da Terra, sempre se indispõe às posturas políticas
e econômicas exageradas, da vida em sociedade patriarcal,
meridional ou setentrional, seja ela urbana ou rural.
Qual desejo transcendental de uma sociedade harmônica e
proporcional,
Vogal tônica no al, fundamental à sociedade natural,
Não global, mas regional, sazonal e seminal;
All sensorial e substancial...

Ancestral, animal e sapiencial,


Anormal, não material;
Ideal existencial...

Espiritual!
Aproximações entre o Real e o Imaginário em Marguerite Duras

Fernando Chiavassa

Este presente ensaio articula algumas aproximações entre o


real e o imaginário na obra de Marguerite Duras (1914-1996 ),
correlacionando seus textos de ficção e não ficção. Entendo por
ficção, neste estudo, o texto ideado cuja narrativa partiu das
experiências vividas na realidade pela autora francesa, mas que em
alguma parte foi alterado, mesmo criado, à medida que a escritora
não pode reviver o passado tal qual sentiu enquanto presente, apenas
em parte despertado por resgates de memória. Assim, entendo que
ela pode até inventar, preenchendo lacunas, mesmo sem ter exata
consciência disso. Por outro lado, entendendo aqui como não ficção
o texto apresentado através de relatos mais objetivos, aproximando-
se o máximo possível – pelo talento de Duras – dos fatos reais
vividos. Tais escritos de não ficção, à exemplo da linguagem na
ficção, se enriquecem com citações, nomes de pessoas e de espaços e
descrições do mundo real que podem ser conferidos e confrontados,
ressalte-se mantendo qualidade literária.
Todos os fatos narrados e analisados nos três livros da
autora considerados neste ensaio se passam na antiga Indochina,
atual Vietnã, imediações de Laos e Camboja, quando a Autora tinha
entre treze e dezoito anos, portanto entre 1927 e 1932 do século
passado. Ressalte-se que os “Cadernos de Guerra”3, foram escritos
durante a segunda guerra mundial, portanto quase vinte anos depois
dos fatos narrados, entre 1943 e 1949. “O Amante” foi escrito em
1984, quase sessenta anos depois, e “O Amante da China do Norte”,
mais tempo decorrido ainda, sessenta e cinco anos depois, sendo
portanto mais oportuno considerar que quase tudo é ficção, em
função de que tempo, espaços e pessoas mudaram muito. A ideia foi
a de apresentar os fatos narrados nestas três circunstâncias em que
Marguerite conferiu o que viveu, escrevendo sobre um mesmo
período de sua vida, a adolescência, primeiro com cerca de quarenta,
a seguir com sessenta, e por último com sessenta e cinco anos
aproximadamente.
O texto será apresentado de forma a mixar as narrativas
sempre de modo a aproximar diferentes pontos de vista sobre o
mesmo assunto abordado, mantendo intactas as unidades
apresentadas, citando fontes, retratando a história de dois amantes,
suas famílias e seus países. Assim, Duras nos conta que:
“A história da minha vida não existe. ... Nunca há um
centro. Nem caminho, nem linha. ... A história de uma minúscula
parte de minha juventude, já a escrevi mais ou menos, enfim, quero
dizer, dei-a a perceber; falo justamente dessa parte, a da travessia do
rio. ... Aqui falo dos períodos encobertos dessa mesma juventude, de
certos fatos, certos sentimentos, certos acontecimentos que enterrei.
Comecei a escrever num meio que me impelia fortemente ao pudor.
Escrever para eles ainda era moral. Escrever, agora, é muitas vezes
como se não fosse mais nada. ... Agora vejo que desde muito jovem,
desde os dezoito, quinze anos, tive aquele rosto premonitório deste
outro que depois adquiri com o álcool na meia idade. ... Havia em
mim o lugar para ele, soube disso com os outros, mas, curiosamente,
antes da hora. Assim como havia em mim o lugar do desejo. Aos
quinze anos eu tinha o rosto do gozo e não conhecia o gozo.” (Duras,
O Amante, pag.10-11).
“É no curso dessa viagem que a imagem teria sido
destacada, subtraída ao conjunto. Poderia ter existido, poderiam ter
tirado uma foto, como qualquer outra, em outro lugar, em outras
circunstâncias. Mas não tiraram. ... Ela só poderia ter sido tirada se
fosse possível prever a importância daquele acontecimento em
minha vida, aquela travessia do rio. Ora, enquanto esta ocorria, até
mesmo sua existência era ainda ignorada. Só Deus a conhecia. ...
Sempre desço do ônibus quando estamos na balsa, à noite também,
porque sempre tenho medo, medo de que os cabos cedam, que
sejamos arrastados para o mar. Na terrível correnteza vejo o último
momento de minha vida. ... Encontrei uma fotografia de meu filho
aos vinte anos. Ele está na Califórnia com suas amigas Erika e
Elisabeth Lennard. É tão magro que parece um ugandense branco.
Seu sorriso me parece arrogante, tem um ar irônico. Ele que passar
uma imagem desleixada de jovem vagabundo. Gosta disso, pobre,
com essa cara de pobre, esse ar desajeitado de magricela. É essa
fotografia que mais se aproxima daquela que não foi tirada da moça
da balsa.” (Duras, O Amante, pag.12-15).
Procurando contextualizar o leitor com espaços e imagens
dos personagens, Duras, nos diz que “... Eu a reconheço melhor ali
do que em fotos mais recentes. É o pátio de uma casa no Pequeno
Lago de Hanói. Estamos juntos, ela e nós, os filhos. Tenho quatro
anos. Minha mãe no centro da imagem. Reconheço como ela se sente
pouco a vontade, como não sorri, como espera que logo termine a
foto. Por seus traços abatidos, por um certo desleixo na roupa, pela
sonolência do olhar, sei que faz calor, que ela está cansada e
aborrecida. Mas é pelo jeito como nós, os filhos estamos vestidos,
como uns infelizes, que reconheço um certo estado que às vezes já
acometia minha mãe e cujos sinais de prenúncio, nós, na idade que
temos na foto, já conhecíamos, esse jeito, justamente, que de repente
ela tinha, de não conseguir mais nos lavar, nem nos vestir, e às vezes
nem sequer nos alimentar. Esse grande desânimo de viver atingia
minha mãe todos os dias. “(Duras, O Amante, pag.15-16).
“Faz tempo que não tenho vestidos meus. Os que uso são
uma espécie de saco, velhos vestidos reformados de minha mãe que
já eram uma espécie de saco. ... Quinze anos e meio. O corpo é
magro, quase mirrado, seios ainda infantis, maquilada de rosa pálido
e vermelho. E depois essa roupa que poderia provocar risos e da qual
ninguém ri. Vejo que já está tudo ali. ... Quero escrever. Já disse para
minha mãe: o que eu quero é isso, escrever. ... Depois ela pergunta:
escrever o que? Digo livros, romances. ... Ela é contra, não é digno,
não é trabalho, é uma piada – e me dirá mais tarde: uma ideia de
criança. ... Resta esta menina que cresce e talvez um dia saiba como
fazer entrar dinheiro em casa. É por esta razão, e ela não sabe disso,
que a mãe permite que a filha saia com essa roupa de prostituta
infantil. E é por isso também que a menina já sabe como fazer para
canalizar a atenção que lhe dedicam para a atenção que ela, ela
dedica ao dinheiro. Isso faz a mãe sorrir. ... A mãe não impedirá
quando ela for atrás de dinheiro. A filha dirá: eu pedi a ele
quinhentas piastras para o retorno à França. A mãe dirá que está
bom, que é o necessário para se instalar em Paris, ela dirá:
quinhentas piastras chegam.” (Duras, O Amante, pag.20-24).
“A mãe não impedirá quando ela for atrás de dinheiro. A
filha dirá: eu pedi a ele quinhentas piastras para o retorno à França.
A mãe dirá que está bom, que é o necessário para se instalar em
Paris, ela dirá: quinhentas piastras chegam. Nas histórias de meus
livros que remetem à minha infância, de repente não sei mais o que
evitei dizer, o que disse, acho que falei do amor que sentíamos por
nossa mãe, mas não sei se falei do ódio que também sentíamos por
ela e o amor que sentíamos uns pelos outros, e o ódio também,
terrível, nessa história comum de ruína e morte que era a dessa
família em qualquer caso, de amor ou de ódio, e que ainda não
consigo entender plenamente, ainda me é inacessível, oculta no mais
fundo de minha carne, cega como um recém nascido no primeiro dia
de vida. O que acontece é justamente o silêncio, essa lenta labuta
durante toda a minha vida. ... Nunca escrevi, e pensei que escrevia,
nunca amei, e pensei que amava, nunca fiz nada a não ser esperar
diante da porta fechada. ” (Duras, O Amante, pag.24-25).
“Uma vez ou outra, ainda percorremos o caminho, como
antes à noite, ainda vamos os três, passamos ali alguns dias. Lá
ficamos na varanda do bangalô, na frente da montanha do Sião. E
depois voltamos. Ela não tem nada para fazer lá, mas vai mesmo
assim. ... Agora estamos crescidos, não tomamos mais banho no rio,
não perseguimos mais a pantera negra nos pântanos das
embocaduras, não vamos mais à floresta nem às aldeias dos
pimentais. Tudo cresceu ao redor. ... Também fomos atingidos pela
estranheza, e a mesma lentidão que se apoderou de minha mãe
também se apoderou de nós. Não adianta nada, olhamos a floresta,
esperamos, choramos. As terras baixas estão definitivamente
perdidas, os empregados cultivam os terrenos altos, ficam com o
arroz em casca, continuam mesmo sem salário, aproveitam as boas
palhoças que minha mãe mandou construir. O telhado apodrecido
pelas chuvas continua a se desfazer. ... A mãe não impedirá quando
ela for atrás de dinheiro. A filha dirá: eu pedi a ele quinhentas
piastras para o retorno à França. A mãe dirá que está bom, que é o
necessário para se instalar em Paris, ela dirá: quinhentas piastras
chegam. ... Vejo que minha mãe é claramente louca. ... Nunca tinha
visto minha mãe como louca. Ela era. De nascença. No sangue. ... À
noite ela nos dá medo. Dormimos nós quatro numa mesma cama. ...
” (Duras, O Amante, pag.25-30).
“O homem elegante desceu da limusine, ele fuma um
cigarro inglês. ... Aproxima-se devagar. Visivelmente intimidado. De
início não sorri. ... A mão treme. ... E diz que parece estar sonhando.
Ele pergunta: mas de onde você é? Ela diz que é filha da diretora da
escola feminina de Sadec. Ele pensa um pouco e depois diz que
ouviu falar dessa senhora, a mãe, de sua falta de sorte com aquela
concessão que teria comprado no Camboja, não é isso? Sim, é isso.
... Chinês. Ele pertence a essa minoria financeira de origem chinesa
que possui todos os imóveis populares da colônia. ... Nunca mais
farei a viagem no ônibus dos nativos. ... E estarei ali sempre
lamentando tudo o que faço, tudo o que deixo, tudo o que pego, o
bom e o ruim, o ônibus, o motorista do ônibus, com quem eu dava
risada, as velhas mascando bétel nos assentos traseiros, as crianças
sobre os bagageiros, a família de Sadec, o horror da família de
Sadec, seu silêncio genial. ... Ela escutava, atenta às informações de
seu discurso que remetiam à riqueza, que pudessem dar uma
indicação da quantidade de milhões. ... O pai não permitirá o
casamento do filho com a pequena prostituta branca do posto de
Sadec.” (Duras, O Amante, pag.25-30).
“Desde o primeiro momento ela sabe alguma coisa assim,
quer dizer, que ele está em suas mãos. E que, portanto, outros
também, além dele, poderiam ficar em suas mãos caso surgisse a
ocasião. Ela também sabe uma outra coisa, que agora certamente
chegou o momento em que não pode mais escapar a certas
obrigações para consigo mesma. E ela também sabe, neste dia, que a
mãe não pode saber de nada daquilo, nem os irmãos. Desde que
entrou no carro preto, ela soube, está afastada dessa família pela
primeira vez e para sempre. Doravante eles não devem mais saber o
que acontecerá com ela. Não importa que a peguem, que a levem,
que a maltratem, que a corrompam, eles não devem mais saber. Nem
a mãe, nem os irmãos. Doravante será este o destino deles. É hora de
chorar na limusine preta. A menina agora terá de enfrentar aquele
homem, o primeiro, aquele que se apresentou na balsa. ... Chegou
muito rápido esse dia, uma quinta feira. ... É Cholen. É um cômodo
no sul da cidade. Moderno, parece mobiliado às pressas, com móveis
que se pretendem modern style.” (Duras, O Amante, pag.33)
“O estúdio está escuro, ela não pede que abra as persianas.
Não tem um sentimento muito definido, não sente ódio nem
repugnância, então sem dúvida ali já existe desejo. Ela desconhece o
desejo. Concordou em vir quando ele a convidou na tarde anterior.
Está onde deve estar, deslocada. Sente um leve medo. De fato,
parece que isto deve corresponder não só ao que ela espera, mas ao
que deveria acontecer exatamente no seu caso. Ela está muito atenta
ao exterior das coisas, à luz, ao vozerio da cidade em que está imerso
o quarto. Ele, por sua vez, treme. Olha-a de início como que
esperando que ela fale, mas ela não fala. Então ele também, não se
mexe, não a despe, diz que a ama feito loco, diz baixinho. Depois
fica quieto. Ela não responde. Poderia responder que não o ama. Não
diz nada. De repente ela sabe, ali, naquele instante, ela sabe que ele
não a conhece, que nunca a conhecerá, que não tem como conhecer
tanta perversidade. E fazer tantos e tantos rodeios para alcança-la,
ele jamais conseguirá. Cabe a ela saber. Ela sabe. A partir da
ignorância dele, ela sabe de repente: ele lhe agradava já na balsa. Ele
lhe agrada, a coisa dependia somente dela. (Duras, O Amante,
pag.34)
“Ela lhe diz: preferia que você não me amasse. Mesmo que
você me ame, gostaria que fizesse como costuma fazer com as
mulheres. Ele a olha espantado, e pergunta: é o que você quer? Ela
diz que sim. Foi ali naquele quarto que ele começou a sofrer pela
primeira vez, não mente mais sobre esse ponto. Ele lhe diz que já
sabe que ela nunca o amará. Ela o deixa falar. Primeiro ela diz que
não sabe. Depois o deixa falar. ... Ela diz que não quer que ele fale
com ela, o que quer é que ele faça como costuma fazer com todas as
mulheres que leva à sua garçonnière. Ela lhe suplica que faça assim.
Ele arranca o vestido, joga-o, arranca a calcinhas de algodão branco
e a leva nua assim até a cama. E então se vira para o outro lado e
chora. Ela, lenta, paciente, torna a trazê-lo para perto de si e começa
a despi-lo. De olhos fechados, ela o despe. Lentamente. Ele quer
fazer gestos para ajudá-la. Ela lhe pede que não se mexa. Deixe. Ela
diz que quer fazer ela mesma. Ela faz. Ela o despe. Quando ela pede,
ele muda o corpo de lugar na cama, mas pouco, levemente, como
para não a despertar. ... A pele é de uma suavidade suntuosa. O
corpo. O corpo é magro, sem força, sem músculos, podia ser de um
doente, de um convalescente, ele é imberbe, sem virilidade a não ser
a do sexo, é muito frágil, parece estar à mercê de um insulto,
sofrendo. Ela não o olha no rosto. Não o olha. Ela o toca. Toca a
suavidade do sexo, da pele, acaricia a cor dourada, a desconhecida
novidade. Ele geme, chora. Sente um amor abominável. E chorando
ele faz. Primeiro vem a dor. E então, depois que essa dor é acolhida,
ela é transformada, lentamente arrancada, arrastada para o gozo,
abraçada a esse gozo. O mar, sem forma, simplesmente
incomparável.” (Duras, O Amante, pag.35)
“Eu não sabia que sangrava. Ele me pergunta se doeu, digo
que não, ele diz que fica feliz. Ele enxuga o sangue, ele me lava.
Olho-o fazer. Insensivelmente ele volta, volta a ser desejável. Eu me
pergunto como tive a força de enfrentar a proibição posta por minha
mãe. . Com essa calma, essa determinação. Como consegui ir “até o
fundo da ideia”. Nos olhamos. Ele abraça meu corpo. Me pergunta
porque vim. Digo que devia vir, que era como uma obrigação. É a
primeira vez que falamos. Conto-lhe da existência de meus dois
irmãos. Digo que não temos dinheiro. Mais nada. Ele conhece esse
irmão mais velho, encontrou-o nas casdas de ópio do posto. Digo
que esse irmão rouba minha mãe para ir fumar, que rouba os
empregados, e que às vezes os donos das casa de ópio vêm cobrar o
pagamento à minha mãe. Falo das barragens. Digo que minha mãe
vai morrer, que aquilo não pode mais continuar. Que a morte muito
próxima de minha mãe também de ve estar relacionada com o que
me aconteceu hoje. ... Percebo que o desejo. ... Ele tem pena de mim,
eu lhe digo que não, que não deve ter pena de mim nem de ninguém,
exceto de minha mãe. Ele me diz: você veio porque tenho dinheiro.
Eu lhe digo que o desejo assim com o seu dinheiro, que quando eu o
vi ele já estava naquele carro, naquele dinheiro, e que portanto não
posso saber o que teria feito se tivesse sido de outra maneira. Ele diz:
eu queria levá-la, ir embora com você. Digo que ainda não poderia
deixar minha mãe sem morrer de pena. Ele diz que decididamente
não teve sorte comigo, mas que mesmo assim me dará dinheiro, para
eu não me preocupar. E se estendeu de novo. De novo ficamos
calados. (Duras, O Amante, pag.36)

“... Eu lhe digo que gosto da ideia de que ele tenha muitas
mulheres, de estar entre estas mulheres, confundida entre elas. ...
Digo que venha, que ele deve me tomar de novo. Ele vem. Ele cheira
bem, a cigarro inglês, a perfume caro, ele cheira a mel, sua pele
adquiriu à força o cheiro da seda, o perfume frutado do tussor de
seda, do ouro, ele é desejável. Eu lhe falo deste desejo por ele. Ele
me diz para esperar mais um pouco. E fala, diz que soube
imediatamente, desde a travessia do rio, que eu seria assim após meu
primeiro amante, que eu amaria o amor, diz que já sabe que eu o
enganarei e que enganarei também todos os homens com quem
estiver. Diz que, quanto a si, ele foi o instrumento de sua própria
desgraça. Fico feliz com tudo o que ele me anuncia e lhe digo. Ele se
torna brutal, seu sentimento é desesperado, ele se atira sobre mim,
come os seios de criança, grita insulta. Fecho os olhos de tanto
prazer. ... Ele me chama de puta, de nojenta, diz que sou seu único
amor, e é isso o que ele deve dizer e é isso que se diz quando se
deixa o dizer acontecer, quando se deixa o corpo fazer e buscar e
encontrar e tomar o que quer, e aí tudo é bom, não há restos, os
restos são recobertos, tudo arrastado pela torrente, pela força do
desejo.
1. Duras, Marguerite: L’Amant, Les Editions de Minuit,
Paris, 1984 – O Amante, tradução de Denise Bottmann, Cosac Naif,
São Paulo, 2007. Nesta obra em que a Autora visita fatos de sua
adolescência na Indochina e que, portanto, apresenta traços de
autoficção, apesar de que os personagens principais e familiares não
sejam todos nomeados, há transfigurações da realidade dos fatos
vividos que transcendem possibilidades para definições perfeitas
entre criação e ficção, de modo que fica difícil sabermos em que
medida a história toda é verdadeira.
2. Duras, Marguerite: L’Amant de la Chine du Nord,
Editions Gallimard, Paris, 1991 – O Amante da China do Norte,
tradução de Denise Rangé Barreto, Editora Nova Fronteira, 2006,
São Paulo. Esta obra reconta a narrativa anterior, “O Amante”,
iniciada quando Duras fica sabendo da morte de Leo, seu amante da
China do Norte (Vietnã), então colônia francesa. Ao mesmo tempo,
reconsidera muitas cenas que poderiam servir de pontuação para um
filme extraído do romance.
3. Duras, Marguerite: Cahiers de la Guerre e Autres
Textes, P.O.L Editeur – Imec Editeur, 1995 - 2006 (Escritos na
realidade entre 1943 e 1949) – Cadernos de Guerra e Outros Textos,
tradução de Mário Laranjeira, Editora Estação Liberdade, São Paulo,
2009. Estes cadernos se apresentam de maneira a desvendar o
entrelaçamento patente entre autobiografia e ficção, apreendendo o
íntimo numa escrita de não ficção, fazendo-o sobretudo sob o prisma
literário. Desta feita, a escritora nomeia as pessoas que espelham os
personagens das narrativas e vivências anteriores, compondo afinal
narrativas predominantemente autobiográficas, em edição
organizada por Sophie Bogaert e Olivier Corpet.
Procura-se Uma Sociedade Mais Justa

Fernando Chiavassa

Imaginem que se possa querer procurar um lugar melhor


para se viver! Quando você estiver listando questões de ordem,
importantes para a escolha do seu “habitat” poderá haver grandes
decepções. Principalmente se você decidir que no lugar escolhido
deverá haver uma relação social entre os residentes, de forma a que
fique delineada a prevalência do amor, do altruísmo e de uma moral
em que subsistam valores fraternos, repletos de compaixão. Se você
procurar uma terra onde cada um cuida de si, sem descuidar do
próximo, não vai achar. Esse lugar deveria existir, mas não é real e
somente tem lugar na nossa esperança; reina unicamente no campo
da ficção. Para alguns de nós, esta constatação, é desconcertante!
Então, analisando por este viés, nossa sociedade está por demais
doente, e é preciso naturalmente reconhecer que muita coisa está
errada.

Não há muitos lugares neste mundo real em que as pessoas


vivam centradas em si mesmas, conhecedoras de seus desígnios. Há
pouquíssimas pessoas que sabem quem são e o que fazem! Então,
temos que aprender a sermos nós próprios! Hoje mais do que nunca,
necessitamos aprender a encontrar o nosso lugar. Temos que
descobrir o nosso lugar dentro de nós mesmos! Nós mesmos somos
os outros mesmos: somos únicos, se todos! Mas não somos nada,
nem ninguém, sozinhos! De tanto procurar caminhos – imaginem
vocês – andei horas a fio estudando um trabalho do antropólogo -
Malinowsky: "Os Argonautas do Pacífico Ocidental". Meu objetivo
era encontrar traços mais animadores no desenho das sociedades
humanas, principalmente aquelas denominadas como primitivas,
lendo primitivas, apenas como diferentes e não menores ou menos
importantes. Como o livro traz descobertas interessantes, mas é um
pouco chato, vejam só:

As crianças em tribos da Nova Guiné, logo deixavam seus


pais (mãe e pai biológico) para conviverem juntas em residências
comunitárias - em grupo - e na adolescência eram educadas pelos
seus avós! Lá, os velhos tinham sua sabedoria e vivência respeitadas
e cuidavam do futuro das tribos: das crianças e adolescentes. Os
homens - pais biológicos - cercavam-nas de amor e de ensinamentos,
já que quem passava sua herança material eram os seus tios e aqueles
descendentes maternos: a obediência social era devida
principalmente aos tios maternos. Os pais estavam assim livres para
tornar seus filhos, homens de verdade, livre de laços do poder. (esta
é uma interpretação minha).

Lá também existiam as autoridades, os ricos e os donos do


poder (a humanidade é imperfeita). Os detentores da riqueza em
geral obtinham sucesso material casando com dezenas de mulheres,
recebendo dotes regulares daquelas famílias durante toda a sua vida.
Esse acúmulo de material em geral na forma de comida (Inhame),
guarneciam seus celeiros de modo que tinham grande poder de troca
e pagamento de serviços – em geral destinados ao provento da tribo.
Mas não havia pobres. Não havia vagabundos e malfeitores. Os
vagabundos e bandidos eram proscritos e condenados à morte.

Embora estas tribos não fossem modelos para ninguém - por


que tinham seus defeitos - em muitos campos, ofereciam
desenvolvimentos culturais diferentes dos nossos, apresentando
soluções mais evoluídas daquelas consideradas modelos por nossas
sociedades. Os adolescentes, tanto meninos quanto meninas, tinham
livre desenvolvimento e práticas sexuais. Aprendiam a transar com
vários parceiros, amadurecendo afetivamente, antes de escolherem
seus companheiros definitivos. Claro que havia separações; mas o
número de laços duradouros era grande, bem maior que o número de
casais desfeitos.

As mulheres aprendiam seus afazeres, muitas vezes


domésticos (filhos e alimentação), mas tinham função social
determinante, opinando e tomando decisões importantes para a tribo.
Eram respeitadas e ouvidas: tinham um poder político natural. Os
homens aprendiam a plantar e a caçar. Alguns dentre poucos,
recebiam instruções e treinamento para atividades mágicas e
políticas. Era um dever e uma honra que cada um desenvolvesse
muito bem suas atividades que, muito antes de serem profissionais,
eram comunitárias, efetuadas em prol do bem comum! Nessas tribos,
as pessoas sabiam quem eram, o que queriam e para onde iam.

Ao mesmo tempo em que desenvolviam práticas comerciais


utilitárias entre si e com membros de outras tribos mais distantes,
havia uma troca "comercial" - mas que não tinha valor econômico - e
sim sócio-moral, de caráter altruísta. O "kula" era um sistema de
escambo em que se trocavam colares e braceletes. Nesta troca, os
grandes homens se revelavam, permutando sempre bens de maior
valor daqueles recebidos e os egoístas eram descobertos - sendo
aqueles que muitas vezes, recebiam e davam de volta um artefato de
valor reduzido. Estes homens "mesquinhos" logo perdiam os postos
de valor que tinham obtido nesta escala hierárquica - moral - onde os
valores espirituais eram os mais importantes. Assim, aqueles ricos no
"Kula" eram grandes homens de comprovada capacidade social e
fraternal.

Ressalte-se que estes colares e braceletes, não podiam ser


retidos por ninguém, sendo sempre passados para frente, ficando no
máximo por dois anos com cada um. E os homens podiam demorar-
se para – diante de uma dificuldade – trocar de volta o prêmio
recebido. Os que não devolviam, ou aqueles que mal devolviam,
eram relegados à marginalidade, sendo considerados mesquinhos,
perdendo portanto sua condição de troca. Portanto, era uma grande
honra receber um colar. Honra maior ainda devolver um colar de
valor, no mínimo, correspondente. Este valor, os homens perderam:
ninguém devolve mais do que recebeu. Ninguém pensa em prol da
comunidade, nem do outro. Altruismo passou a ser desígnio de um
comportamento inexplicável, no mínimo idiota, na sociedade
mercantilista – globalizante.

Estas tribos que viveram há quase um século atrás, lá na


região da Nova Guiné - Ilhas Tobriand, (estudadas por vários
antropólogos, dentre eles Malinowsky), tinham crendices,
naturalmente. Viviam sob a égide de lendas e ensinamentos que
eram seguidos por todos. Infelizmente, os mais bem dotados
fisicamente, os mais belos, recebiam maiores deferências e eram
alçados à classes superiores, assim como os que eram dotados de
poderes políticos. Aliás os políticos mais fortes eram aqueles mais
bem sucedidos no “Kula”. Havia portanto os feios, e os subalternos e
todo tipo de desfavorecidos, mas essa condição social era
naturalmente aceita. E as tribos respeitavam completamente seus
mitos. Muitos mitos e lendas eram co respeitadas por outras tribos
distantes que também faziam parte do “Kula”, portanto de uma
comunidade maior.

Os subversivos, os descontentes ou os faltosos, até mesmo


os assassinos e malfeitores que segundo relatos das populações
estudadas eram de número reduzido, eram punidos com sanções
oriundas de processos de aniquilamento com origem na magia dos
curandeiros, velhos sábios, a quem todos deviam o maior respeito e
consideração. A estes “pagés”, o respeito era natural e devotado. O
poder destes mágicos curandeiros era tão grande; seu sistema de
descoberta de maldades era tão eficaz, que os bandidos naturalmente
se acusavam, entregavam, pedindo remissão (que raramente era
concedida). Quando estes marginais eram revelados e conhecidos de
todos, passavam a temer a morte que lhes era imposta.

Muitas vezes o medo os matava antes da aplicação do


"trabalho mágico". Então sabiam e tinham entendido o mal que
tinham imposto à comunidade. Tinham medo e sofriam de todo tipo
males referentes a praticas de magia negra, impostos pelos seus
chefes e curandeiros. Ninguém jamais infringia as regras, primeiro
porque era consenso de que as regras eram boas para todos (não
havia pobreza, nem marginalidade: não havia oposição, mas um todo
harmônico) e segundo porque havia punição. Ninguém se insurgia,
porque todos em geram, sentiam-se parte de um todo, mesmo sem ter
noção do sistema social em que viviam. Sabemos que aquelas tribos
apresentavam distorções. Desvios. Até mesmo, talvez,
desumanidades, embora aquelas tribos, não tivessem a consciência
de que eram “humanos”.

Decerto havia guerras, mas nunca dentro da mesma tribo.


Há relatos de que em épocas anteriores se praticava a guerra,
ardilosamente engendrada de modo a assaltar tribos na madrugada,
trucidando populações inteiras sem dó nem piedade. Ninguém está
aqui falando de nenhuma civilização ideal. Havia canibalismo: não
como prática utilitária, mas ritual, para ter transferidas as qualidades
de um grande guerreiro, através da deglutição da carne dos inimigos,
por exemplo. Havia doenças. Havia a velhice. Naturalmente. Aquele
não era um sistema perfeito.

Sabemos que o homem é imperfeito. Sua cultura, também.


Mas todos tinham caráter, eram corajosos e respeitavam o seu
próximo. Respeitavam. Não havia a cobiça, muito menos havia o
planejamento político para obter vantagens, a não ser numa guerra.
Mas não havia grupos querendo tomar o poder – dentro de uma
mesma tribo – para satisfazer anseios diferentes daqueles justos em
prol da coletividade. O “Kula” era respeitado. Seu altruísmo
também. As guerras relatadas, são parte de uma pré-história distante
da época em que este trabalho – de Malinowsky – foi feita (em
1921).

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