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FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

DEPARTAMENTO DE DIREITO DO ESTADO


FUNÇÕES ADMINISTRATIVAS
PROF. RODRIGO PAGANI DE SOUZA
1º SEMESTRE DE 2021
Igor Caetano Santos da Silva – 11288983

A restrição de abertura e funcionamento de estabelecimentos no


contexto da pandemia

Palavras-chave: Estruturação e implementação de programa de restrição


temporária à abertura e ao funcionamento de bares e restaurantes. Função
administrativa de ordenação. Conceito. Meios e fins. Processos. Arranjos
institucionais. Participação popular no seu exercício. Discricionariedade para a
definição das pessoas e situações abrangidas pelo programa. Noções e
aplicabilidade dos princípios e regras atinentes à motivação, à razoabilidade e à
proporcionalidade.

Diante do cenário pandêmico em que nos encontramos, o poder público se


viu obrigado a adotar medidas mais rígidas diante dos direitos dos seus cidadãos.
Entretanto, não se trata de uma tirania, mas sim de responsabilidade dos eleitos
diante daqueles que os elegeram. O poder administrativo que doravante será tratado
é o poder de ordenação, também chamado de poder de polícia.
O poder de ordenação está previsto em nosso ordenamento pátrio no
Código Tributário Nacional, em seu artigo 78:
“Considera-se poder de polícia atividade administrativa pública que, limitando ou
disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção
de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à
ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de
atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder
Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos
individuais ou coletivos”

Na doutrina, Hely Lopes Meireles define o poder de polícia como


“faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o
uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em beneficio da coletividade
ou do próprio Estado”1. Dessa forma, a sua é função controlar os eventuais abusos
e danos que bens, atividades e serviços possam ocasionar. Entretanto, é importante
ressaltar que o poder de polícia administrativo não se confunde com a polícia de
manutenção da ordem pública, pois essa recai sobre pessoas e não é o foco da atual
abordagem.
Desde que se entendeu qual a gravidade do contágio por Covid-19, houve a
necessidade de implantação de medidas de contenção da propagação do vírus
SARS-CoV-2, o qual é o responsável por causar a doença. Por certo que a
vacinação é a solução mais adequada. Entretanto, enquanto a imunização de toda a
população não ocorre, outros caminhos devem ser adotados. Dentre os quais está

1
.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2016 Edição 42ª. pg 152
justamente a atuação do poder de polícia, restringindo a circulação de pessoas,
horários de funcionamento e até mesmo interdição e aplicação de multa aos
estabelecimentos que não respeitarem as determinações legais.
Estando a discussão localizada no município, existem algumas peculiaridades sobre
as faculdades que podem ser exercidas. No capítulo I do título III da Constituição Federal
estão estabelecidas quais são as competências de cada ente federativo, inclusive sobre as
que são inerentes às cidades. No artigo 30 vemos a determinação:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

Assuntos esses que incluem a definição dos horários de funcionamento de


estabelecimentos comerciais. Muito antes do cenário atual, em 2003 o STF já havia
decidido sobre essa função do município:
"Entre as várias competências compreendidas na esfera legislativa do Município, sem dúvida estão
aquelas que dizem respeito diretamente ao comércio, com a consequente liberação de alvarás de
licença de instalação e a imposição de horário de funcionamento.[...]” (RE 189.170, voto do rel. min.
Marco Aurélio, P, j. 1º-2-2001, DJ de 8-8-2003).

Entendimento que foi reafirmado na Súmula Vinculante 38 e Súmula 645, além de


diversas ações mais recentes sobre o mesmo assunto, de tal sorte que não há dúvidas diante
de tantos pronunciamentos uníssonos da Suprema Corte.
Entretanto, é fundamental que em uma federação exista a cooperação entre União,
Estados e Municípios. Assim é a questão da saúde, definida como competência comum dos
entes2, e é reafirmada mais a frente com o SUS3 - Sistema Único de Saúde - que, apesar
dos pesares, ainda é uma referência mundial.
Assegurada a competência do município, cabe também ressaltar os aspectos
relacionados aos limites de atuação dentro do poder de ordenação. Esse tem como um de
seus atributos a discricionariedade, a qual permite que se tenha liberdade de atuação para
definir a oportunidade, conveniência e meios utilizados, como estabelece Hely Lopes:
“A discricionariedade, como já vimos, traduz-se na livre escolha, pela Administração, da
oportunidade e conveniência de exercer o poder de polícia, bem como de aplicar as sanções
e empregar os meios conducentes a atingir o fim colimado, que é a proteção de algum
interesse público” (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, São
Paulo: Malheiros, 2016.Edição 42ª. pg 159)

Para que se proteja o interesse público, o principal objetivo deve ser evitar os
excessos advindos do abuso de poder. O município não deve impor o fechamento
obrigatório de todo e qualquer estabelecimento - como ocorre no lockdown - ou liberar o
funcionamento de maneira irrestrita, ignorando os mais de 500 milhões de brasileiros que
partiram nessa pandemia, com base em sua própria opinião. Pelo contrário, todas as
decisões devem ser baseadas na ciência e em estudos que comprovem a redução da
letalidade, propagação e achatamento das ondas de contágio pela Covid-19.
Em consonância com essa ideia, o ordenamento jurídico brasileiro possui requisitos
que devem informar os atos da administração pública e, caso não sejam identificados,
acarretam em abuso de poder, que pode ocorrer na modalidade excesso de poder ou desvio
de finalidade. No primeiro, o que ocorre é a extrapolação das atribuições conferidas a uma

2
Constituição Federal, artigo 23 Inc. II.
3
Idem, artigo 198.
autoridade, ou seja, o agente foi além do que estava autorizado por lei a fazer. Já no desvio
de finalidade o problema se encontra na motivação, a qual não visou o interesse público4.
Nesse último caso é que se aprofunda a questão da ciência. Isso porque a
motivação do gestor público não pode ser, por exemplo, o impulsionamento da economia
em detrimento da saúde, pois a vida é um direito fundamental e interesses econômicos se
tornam secundários diante da possibilidade de morte dos cidadãos. A lei 9784/99, que trata
sobre o processo administrativo, colocou a motivação como um dos princípios em seu
artigo 2º, e no artigo 50 estabelece casos especiais em que sua presença é fundamental:

Art. 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos
fundamentos jurídicos, quando:

I - neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses;

O direito que é o principal afetado diante das medidas que serão tomadas é o direito
de ir e vir, previsto na Constituição Federal:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer
pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;

Ademais, é importante que as restrições sejam pautadas por outros dois princípios,
também elencados pela lei 9784/99, que são muito importantes para balizar os atos da
administração: a proporcionalidade e a razoabilidade. Esses princípios trazem consigo a
ideia de adotar a concepção do homem médio - a qual seria a aceita pela maioria das
pessoas -, mas que é finalisticamente vinculada pelo interesse público e relacionada ao
exercício da discricionariedade.
Tendo em vista a criação do programa de restrição ao funcionamento e abertura de
estabelecimentos comerciais é importante que se adote critérios que sejam científicos,
palpáveis e passíveis de consulta pela população. Como exemplo, nós podemos mencionar
o Plano SP, que adota o nível de ocupação das UTIs em regiões para definir as fases que
tenham medidas adequadas para reduzir a circulação do vírus, as quais são aplicadas de
maneira independente em cada parcela do território. Essas informações sobre quais são as
fases e nível de ocupação estão abertas e disponíveis no site oficial do governo, além da
sua notória divulgação nos meios de comunicação mais acessados, o que permite o
conhecimento da população sobre o andamento das restrições. Também é importante
salientar a proporcionalidade, que é visível na adoção de fases e regiões que acompanham
a gravidade da situação.
Entretanto, o poder público não pode se esquecer das atividades econômicas, que
também necessitam de amparo devido a baixa movimentação durante os períodos de
fechamento. Dessa forma, cabe ao município incluir sistemas para redução, parcelamento
ou até mesmo renegociação de dívidas com a fazenda pública da cidade com o objetivo de
não sufocar a iniciativa privada e, consequentemente, a população que depende do
emprego e renda gerado pelos setores mais afetados.
Por fim, o programa também deve incluir a aplicação de sanções, que são o cerne
do poder de polícia. Isso porque não haveria efetividade nas restrições de atividades se não
houvesse meios coercitivos para afugentar os desobedientes. Como exemplo, o município

4
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MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2016 Edição 42ª. pg 122-123
pode adotar a Resolução SS 96 de 2020, que estabelece a aplicação de multas para aqueles
que forem encontrados, dentro ou fora de estabelecimentos, sem o uso de máscaras de
proteção. Entretanto, o endereçamento da multa é precedido de ampla divulgação, prevista
no artigo 5ª da própria resolução, e em seu artigo 9º fica assegurado o direito de ampla
defesa e contraditório, para evitar abusos de poder por parte dos agentes.

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