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Andar Inferior
Natureza, Determinação, racionalidade,
previsibilidade
l
kJ
Francis A. Schaeffer
O Deus que se revela
(1972)
Podemos aqui sentir toda a corrente
do movimento hippie e a cultura da droga
dos anos 60. Ela está muito presente conosco
nos anos 80. O homem espera encontrar algo
dentro de sua mente, pois ele não pode saber com
certeza que há alguma coisa “lá fora”. Estou convencido
de que o conflito de gerações encontra-se basicamente no
campo da epistemologia. Antes o homem tinha uma
romântica esperança de que, com base no racionalismo, ele
iria se tornar capaz de encontrar um sentido para a vida, e
colocar os universais acima das particularidades. Mas, neste
tempo de Rousseau, Kant, Hegel e Kierkegaard, tal
esperança não mais existe; abriu-se mão dela.
Assim, o homem dá sua volta por cima,
para o “superior” de todo o tipo de
misticismo no campo do conhecimento —
e estes são misticismos porque se encontram
separados de toda racionalidade. Este é um misticismo
como nenhum misticismo anterior. Os misticismos
anteriores sempre partiram do pressuposto de que
alguém estava aí. Mas os misticismos do homem
moderno são misticismos semânticos, lidando apenas
com palavras; eles não tem nada a ver com qualquer
coisa que possa existir, mas se ocupam simplesmente
com algo que está na própria cabeça, ou na
linguagem, de uma forma ou de outra.
kJ
Ludwig Wittgenstein
Tractatus Logicus
Philosophicus
(1921)
Do que não se pode falar,
deve-se calar.
kJ
Francis A. Schaeffer
O Deus que se revela
(1972)
O homem moderno permanece
ou no “inferior”, como uma
máquina com palavras que não
levam nem aos valores nem aos fatos,
mas apenas a outras palavras, ou ele fica
relegando ao “superior”, em um mundo
sem categorias no que tange aos valores
humanos, valores morais, ou à diferença
entre a realidade e a fantasia.
Lamentável geração!
A Trindade como uma necessidade Ontológica
kJ
Alister McGrath
O Ajuste fino do Universo
(2009)
Um exame mais atento da narrativa
cósmica esboçada acima sugere que
seu formato e resultado foram
determinados por alguns fatores
crucialmente importantes. É evidente que há
certas propriedades não variáveis do mundo
natural e dos seus componentes elementares
que tornam inevitáveis o tamanho bruto e a
estrutura de quase todos os seus objetos
componentes
Essa exploração especulativas culminaram
em 1986 com a publicação da obra marcante
de John Barrow e Frank Tipler The Anthropic
Cosmological Principle, que impulsionou o
“princípio antrópico” das páginas de periódicos obscuros
para a cultura popular. Ao fazer isso, deu origem a muitas
questões teológicas, incluindo o valor apologético do
principio antrópico. Barrow e Tipler forneceram um relato
abrangente, conquanto relativamente acessível, do papel
fundamental exercido pelas constantes da natureza e as
implicações surpreendentemente grandes de variações
aparentemente pequenas na sua magnitude.
Alguns sentiram que ambos os autores
haviam se arriscado ao escrever esse livro.
Ao levantar questões sobre o design, Barrow e
Tipler estavam quebrando tabus científicos que
provavelmente teriam um impacto prejudicial sobre suas
respectivas carreiras… No entanto, o escopo intelectual e
o puro brilhantismo da explicação que eles deram
desarmaram seus críticos. O livro representa um marco na
aceitação do tema “ciência e religião” como um
complemento legítimo, correto e até mesmo necessário
para a reflexão científica, instigando alguns a sugerir que
essa talvez seja a obra de teologia natural mais importante
desde William Paley.
A descoberta relativamente recente
e inesperada dos fenômenos antrópicos
levou a um considerável desconforto
por parte dos cosmólogos, que estão
incomodados de que um novo fôlego de vida
tenha sido dado à discussão do aparente
design do cosmos… Está bem claro que os
fenômenos antrópicos se encaixam de modo
fácil e natural num quadro de referência teísta,
especialmente nas suas formas trinitárias.
Tipos de Explicação t
Irracionais e caóticas 5
Racionais e lógicas L
j Origem do nada
l Origem impessoal
i Origem pessoal
kJ
Francis A. Schaeffer
O Deus que se revela
(1972)
A terceira explicação possível começa por
uma origem pessoal. Com isto, esgotamos
todas as possíveis respostas elementares para
a existência. Pode soar simplista, mas é verdadeiro.
Isso não quer dizer que não haja detalhes que possam
ser discutidos, variantes e subtópicos ou subescolas -
mas estas são as únicas escolas básicas do pensamento
possíveis… Assim, vamos refletir sobre o que significa
partir daquilo que é pessoal. Este ponto de partida
parece ser precisamente o oposto do impessoal. Algo
de pessoal deu origem a todo o resto. Neste caso, o
homem, enquanto ser pessoa, tem um sentido.
A grande desgraça do homem de hoje é que
ele não consegue ver sentido no próprio
homem, mas, se partirmos de uma origem
pessoal, estaremos numa situação precisamente
oposta. Temos a realidade do fato de que a personalidade
tem sentido, porque não está alienada daquilo que
sempre existiu, do que existe e sempre existir. Esta é a
nossa explicação e, com ela, apresentamos uma solução…
para o fato de o homem ser diferente, com uma
personalidade que o torne distinto de algo não humano…
No mundo científico naturalista, seja da sociologia, seja da
psicologia ou das ciências naturais, o ser humano é
reduzido a algo impessoal acrescido de complexidade.
Este o próximo passo: optar por
Deus ou por deuses? O problema
de optarmos por deuses em vez de
Deus é que deuses limitados não são grandes o
suficientes. Para obtermos uma explicação
adequada quanto à origem pessoal, precisamos
de duas coisas. Necessitamos admitir um Deus
infinito pessoal (ou de um Deus pessoal
infinito), e necessitamos de unidade e
diversidade pessoal em Deus.
Tomemos a primeira alternativa — um
Deus infinito pessoal. Somente um Deus
infinito pessoal é suficientemente grandioso.
Platão já entendia que é preciso admitir absolutos,
para que as coisas tenham qualquer sentido. Mas a
dificuldade que Platão estava enfrentando residia no
fato de que os seus deuses não eram suficientemente
grandes para atingir o fim desejado. Assim, embora ele
reconhecesse a necessidade, esta caiu por terra, porque
os deuses dele não eram grandes o suficiente para
serem pontos de referência para seus absolutos, para
seus ideais. Esta é a razão porque precisamos de um
Deus infinito pessoal. Isso para começar.
Em segundo lugar, necessitamos de
unidade e diversidade pessoal em
Deus, não apenas um conceito abstrato
de unidade e diversidade, pois, como vimos,
precisamos de um Deus pessoal. Precisamos de
uma unidade pessoal na diversidade. Sem isto,
nunca alcançaremos respostas. O Cristianismo
as tem na Trindade. Estamos aqui falando da
necessidade filosófica, no campo do Ser, da
existência, do fato de que Deus existe. É nisto
que tudo se baseia: ele existe mesmo.
A Trindade não pode ser substituída por uma noção menor de divindade
kJ
Alister McGrath
O Ajuste fino do Universo
(2009)
Uma das questões mais difíceis
que confrontam alguns dos estilos
tradicionais de teologia natural,
incluindo aquelas desenvolvidas em reação ao
programa do Iluminismo, diz respeito ao
relacionamento do Deus cuja existência pode ser
inferida da natureza e o Deus mais específico da
fé cristã… Assim, a divindade um tanto genérica
da teologia natural clássica é idêntica ao Deus
que é revelado na história de Israel e na vida,
morte e ressurreição de Jesus Cristo?
A reflexão sobre a natureza revela
inicialmente uma noção de Deus que
poderia ser descrita como “deísta”— por
exemplo, a ideia de uma “inteligência suprema” que
trouxe o mundo à existência e expressou, ou impôs, sua
ordem sobre ele. De uma perspectiva cristã, essa é uma
noção severamente atenuada de Deus, que claramente
requer amplificação e desenvolvimento adicional.
Reconhecer que Deus permanece envolvido com a
ordem criada leva do deísmo ao teísmo; reconhecer
que este Deus escolheu tornar-se encarnado em Jesus
de Nazaré leva do teísmo ao trinitarianismo.
No entanto, dão origem a algumas
perguntas inteiramente corretas. Para
os propósitos da teologia natural, a mais
importantes dessas é se o trinitarianismo pode de
fato ser interpretado simplesmente como uma
ampliação do teísmo… Alguém pode assumir a tarefa
de uma teologia natural sem um entendimento
cristão completo de Deus, sem que introduza
distorções no caráter de Deus e do mundo em que
nos encontramos? Alguém pode desenvolver
seriamente uma teologia natural sem se envolver com
a cruz de Cristo?
Envolver-se com o mundo natural
de uma perspectiva trinitária incentiva
uma expectativa de que a natureza pode,
de certas maneiras e até certo ponto, ecoar suas
origens e objetivos. De uma perspectiva trinitária,
não é simplesmente a própria natureza que é
finamente ajustada; a percepção que o cristão tem
da natureza também pode ser dita como sendo
finamente ajustada, uma vez que a tradição cristã
exige atenção à natureza e uma elevada antecipação
de revelação, o que permite que o ruído da natureza
seja ouvido como uma melodia.
Os temas importantes da fé cristã
fornecem uma estrutura interpretativa
pala qual a natureza possa ser vista…
A teologia cristã é o elixir, a pedra filosofal, que
transforma o mundano no epifânico, o mundo da
natureza no domínio da criação de Deus. Como
uma lente que traz uma vasta paisagem para o
foco nítido, ou um mapa auxiliando-nos a
compreender as características do terreno no nosso
entorno, a doutrina cristã fornece um novo modo de
entendimento, imaginação e comportamento.
Tão somente com uma visão de mundo trinitária os ruídos
da realidade podem ser ouvidos como uma divina melodia
kJ
Francis A. Schaeffer
O Deus que se revela
(1972)
Não há outra resposta filosófica
suficiente além desta que apresentei.
Por mais que você possa pesquisar a
filosofia das universidades, o "subterrâneo", dos
postos de gasolina — não importa onde — não há
outra resposta filosófica suficiente para a existência,
para o Ser, do que a que eu acabei de apresentar.
Existe somente uma filosofia, uma religião capaz
de preencher esta necessidade constante em toda
a história do pensamento humano, seja ele oriental
ou ocidental, antigo ou moderno, novo ou velho.
Somente uma preenche a
necessidade filosófica da
existência do Ser, e trata-se da
resposta filosófica do Deus judaico-cristão —
não um conceito abstrato, mas antes, Deus
existe de verdade. Ele existe. Não há outra
resposta e os cristãos ortodoxos devem sentir-
se envergonhados de terem sido defensivos
por tanto tempo. Não é tempo de sermos
defensivos. Não há outra resposta possível.
Frequentemente alguém pergunta
em meus debates como é possível
acreditar na Trindade. Minha resposta é
sempre a mesma. Eu continuaria sendo um
agnóstico, se a Trindade não existisse, pois
neste caso não havia possibilidade de
resposta. Se não houvesse uma unidade e
diversidade pessoal de ordem superior, como
dada pela Trindade, não haveria explicação.
O atual debate em torno da Trindade e suas implicações para a Ética cristã
kJ
Immanuel Kant
O Conflito das
Faculdades
(1798)
A doutrina da Trindade,
tomada literalmente, não tem
absolutamente nenhuma
relevância prática, mesmo que
pensemos compreendê-la; e é ainda mais
irrelevante se compreendemos que ela
transcende todos os nossos conceitos.
Se devemos adorar uma ou três
pessoas na Deidade, não faz diferença.
Uma vez que a religião
foi reduzida ao que pode ser
conhecido pela razão, moralidade
ou experiências universais, a
Trindade dificilmente pode ser
considerada um dogma essencial.
Michael Horton
kJ
Karl Barth
Esboço de uma
Dogmática
(1947)
Deus único, o Altíssimo, e um Pai.
Desde que pronunciamos essa palavra,
desde que, com o primeiro artigo do Símbolo,
nós dizemos Deus, o Pai, devemos logo nos lembrar do
segundo artigo: Deus é o Filho, e do terceiro: ele é o
Espírito Santo. Os três artigos do Símbolo nos falam a
cada vez do mesmo Deus. Não existe aqui três
divindades, não há em Deus divisão, ruptura. Longe,
de afirmar três tipos de “Deus”, a Trindade fala, pelo
contrário, estritamente de um único e mesmo Deus. É
assim que a Igreja tem interpretado sempre e a própria
Escritura não nos diz nada diferente.
Nós tratamos como uma só e a
mesma obra do único e mesmo
Deus, mas esta obra é, ela mesmo, um
movimento. Pois o Deus em que acreditamos
não é um Deus morto, nem um Deus solitário,
mas, sendo inteiramente único, ele não fica,
contudo, só em si mesmo, recolhido em sua
majestade divina: a obra que ele realiza, na qual
ele nos encontra e que nos permite conhecê-lo, é
uma ação dinâmica e viva, por natureza e para
a eternidade;
E para nós que vivemos no tempo da
sua graça, ele é o Deus único em suas
três maneiras de ser. A Igreja antiga afirma:
Deus é um só em três pessoas. Se tem-se em
conta a significação que esse último conceito recobraria
para ela, a Igreja antiga forneceu aqui uma definição
inatacável. Com efeito, em latim e em grego, “pessoa”
quer dizer exatamente aquilo que tentei indicar pela
expressão “maneira de ser”. Hoje, o termo pessoa evoca
para nós, quase que irresistivelmente, a ideia de uma
individualidade. E, nessa acepção, ela não é muito
conveniente para exprimir o ser de Deus Pai, o Filho e o
Espírito Santo
Isso não tem nada a ver
com a Trindade. Quando a Igreja
cristã fala do Deus trinitário,
pretende dizer que ele é ao mesmo tempo
e também o Pai que é o Filho e o Espírito
Santo. Trata-se, portanto, por três vezes
do único e mesmo Deus, de seus três
maneiras de ser, de sua Trindade de Pai,
de Filho e de Espírito Santo
kJ
Michael Horton
Doutrinas da Fé Cristã
(2011)
O repensar radical de Karl Barth
de toda a trajetória do liberalismo
incluiu uma profunda redescoberta
do interesse pela Trindade, mas ele tem
sido criticado no reavivamento recente da
reflexão trinitáriana por enfatizar demais
a subjetividade absoluta de Deus em
auto-revelação de modo a solapar a
genuína pluralidade de pessoas.
A adoção de Barth da definição de
Trindade de Agostinho como “uma
repetição trípla” ou uma “forma tripla
de ser” é um modo maravilhoso de indicar a unidade
da essência divina, mas também como Agostinho,
Barth marginaliza a distinção das propriedades
pessoais… Principalmente em reação a Barth e [Karl]
Rahner, mas alcançando Agostinho e a teologia
ocidental em geram em sua crítica, o pêndulo teológico
mudou na direção de enfatizar as três pessoas em
detrimento da essência única. O defensor mais
entusiasmado da pluralidade hoje é Jürgen Moltmann.
Para Moltmann e outros,
a falta que causou essa a
legada tendência em Barth é
creditada a uma tendência
alegadamente modalista em
Agostinho e na tradição do Ocidente,
mas em geral, bem como a um conceito
moderno de pessoa, herdado do
idealismo alemão.
kJ
Jürgen Moltmann
Trindade e o
Reino de Deus
(1981)
A unidade da triunidade divina
está na união do Pai, do Filho e
do Espírito, e não em sua unidade
numérica. Ela repousa na comunhão entre
eles, não na identidade de um único
sujeito… A comunhão dos discípulos entre si
deve se assemelhar à união do Filho com o
Pai. Mas ela não deve apenas se assemelhar
a essa união trinitáriana; além disso, deve
ser uma união dentro dessa união.
Devemos dispensar tanto o
conceito da substância única
quanto o conceito do sujeito idêntico.
Tudo o que sobra é: a unidade e a união das três
pessoas uma com a outra, ou: a unidade e a união do
Deus trino… Se a unidade Deus não é percebida na
união do Deus trino, e, portanto, como sendo uma
unidade pericorética, então o arianismo e o
sabelianismo permanecem sendo ameaças
inescapáveis à teologia cristã… Apenas isso pode
sustentar o conceito de uma unidade que pode ser
comunicada e está aberta.
A Trindade divina é tão
convidativa e tão forte que
a vida divina se reflete na
verdadeira comunidade humana e
assimila a comunidade humana em si
mesmo, “a fim de que todos sejam um;
e como és tu, ó Pai, em mim e eu em ti,
também sejam ele em nós” (Jo 17.21)
Foi Hegel quem levou essa
linha de pensamento um passo
adiante: ser pessoal (Persosein)
significa dispor de si mesmo para os
outros e associar os outros a si mesmo.
Esse aprofundamento do conceito de
relacionamentos na doutrina cristã da
Trindade pode levar a uma compreensão do
caráter social (Sozialität) da pessoa humana.
As consequências morais dessa mudança na doutrina da Trindade
kJ
Michael Horton
Doutrinas da Fé Cristã
(2011)
Estranhamente (dadas as raízes
judaicas do monoteísmo cristão),
Moltmann argumenta que os
problemas com o monoteísmo clássico
começam com Aristóteles. Do “unico Deus” ao
“único imperador” (Alexandre, o Grande), a
“estrutura monárquica” do cosmos leva ao
despotismo por toda a descida da escada. O
monoteísmo também deu origem ao
patriarcalismo e à subjugação do corpo pela alma.
O objetivo de Moltmann é articular uma
doutrina social da Trindade (como
comunidade divina) que possa se tornar a
base para o socialismo democrático que abrange
toda a criação. Na leitura de Moltmann, o Oriente e o
Ocidente têm uma concepção monárquica de Deus,
seja a monarquia do Pai ou aquela da essência
única… Essas abordagens têm fortalecido a base
para a dominação e passividade. Em vez de começar
com “o senhorio externo de Deus”, de acordo com
Moltmann, deveríamos começar com “a comunidade
interna de Deus”.
kJ
Jürgen Moltmann
The reconciling power of the
Trinity in the life of church and
the world
(1989)
A doutrina social da Trindade
está numa posição de superar
o monoteísmo no conceito de
Deus e o individualismo na doutrina do
homem, e de desenvolver um
personalismo social e um socialismo
personalista. Isso é importante para o
mundo dividido em que nós vivemos e
pensamos.
Giorgio Agamben e a economia
teologica e política a partir da
Trindade
Conforme já vimos, os teólogos modernos distinguem “trindade econômica” (ou trindade de
revelação) e “trindade imanente” (ou trindade de substância). A primeira define Deus em sua
práxis salvífico, pela qual se revela aos homens. A trindade imanente, por sua vez, refere-se a
Deus assim como é em si mesmo. Voltamos a encontrar aqui, na contraposição entre duas
trindades, a fratura entre ontologia e práxis, teologia e economia, que já vimos marcar
construtivamente a formação da teologia econômica (ver 3.4). À trindade imanente
correspondem ontologia e teologia, à econômica, práxis e oikonomia. Nossa investigação
procurou mostrar como, a partir dessas polaridades originais, se desenvolveram em planos
diferentes aquelas entre ordem transcendente e ordem imanente, entre Reino e Governo,
entre providência geral e providência especial, que definem o funcionamento da máquina do
governo divino do mundo. A trindade econômica (o Governo) pressupõe a trindade imanente
(o Reino) que a justifica e funda. […] Não existem, portanto, duas diferentes trindades, mas
uma única trindade, que é, ao mesmo tempo, uma única história divina da salvação, uma
única economia. Contudo, tal identidade não deve ser entendida como “uma dissolução de
uma na outra”. Segundo o complexo mecanismo que vimos marcar, desde o início, as
relações entre teologia e economia — e depois o funcionamento da máquina governamental
—, as duas trindades, embora intimamente vinculadas, continuam sendo distintas. O que está
em questão é, antes de mais nada, a reciprocidade de suas relações. […] A glória é o lugar em
que a teologia procura pensar a inacessível conciliação entre trindade imanente e trindade
econômica, theologia e oikonomia, ser e práxis, Deus em si e Deus para nós (AGAMBEN,
2011, p. 227-228).
A comunhão trinitária como crítica e inspiração à sociedade humana na America Latina
kJ
Leonardo Boff
A Trindade e a
Sociedade
(1986)
As sistematizações trinitárias clássicas
e recentes, acenadas acima, possuem um
limite interno sensível. Orientam-se ou pela
categoria de substância (Natureza, essência) ou pela
categoria de pessoa (sujeito, subsistente); a tônica
hegemônica do pensamento ou é metafísica ou
personalista. Alude-se aqui e acolá para o social e o
histórico. Entretanto a sociedade, a comunidade e a grande
história (do cosmo e da humanidade) não significam ponto
de partir e objeto de tematização; entram, quando entram,
por via de consequência das reflexões feitas sobre a
pessoa, o sujeito livre, realidades que encontram na
Trindade sua suprema forma de concretização.
A renovação da teologia trinitária
está ocorrendo a partir de uma reflexão,
incipiente ainda, mas muito séria, sobre
as relações comunitárias e sociais que envolvem as
mulheres e o homens todos entre si e também as
Pessoas divinas… A sociedade humana representa
um indicador em direção ao mistério trinitário; o
mistério trinitário, assim como o conhecemos pela
revelação, significa um indicador para a visa social e
um arquétipo para ela. A sociedade humana encerra
um vestigium Trinitatis, pois é a Trindade é a
sociedade divina.
No jogo trinitário da perfeita
pericórese se vislumbra a
coexistência entre o pessoal e o
social, entre a felicidade de cada um e o bem-
estar de todos. Estas questões estão na base
de toda a vida comunitária e social e se deixam
iluminar e animar pela comunhão trinitária… A
Trindade compreendida humanamente como
comunhão de Pessoas funda uma sociedade de
irmãos e de irmãs, de iguais,
onde o diálogo e o consenso
constituem os fundamentos da
convivência tanto para o mundo
quanto para a Igreja. Esta visão servirá de
estímulo para a nossa própria elaboração
posterior… queremos oferecer uma modesta
sistematização que tenta acolher e elaborar
os desafios propostos por nossa realidade
marcada pela opressão e pelos anelos de
libertação.
A comunhão trinitaria como arquétipo para as relações de gênero na teologia feminista
kJ
Sarah Coakley
God, Sexuality, and
the Self
(2013)
Essa última escola de pensamento também
atraiu para si alguns teólogos notadamente
simpatizantes às causas feministas (ainda
que não como críticos da tradição clássica como as
teólogas feministas mais radicais de nosso tempo). Nesse
feminismo mais brando, e na opção pelo trinitarismo
social, Agostinho pode ser culpado por todos os males
do individualismo ocidental e dos pensamentos
machistas, incluindo sua suposta teologia anti-corporal e
seu trinitarismo mentalista e masculino; enquanto o
Oriente é visto em contraste a favor de uma alta visão se
“relacioamento" e “mutuabilidade" que implicitamente
daria suporte para projetos femininos.
A despeito do fato de que algumas
dessas influentes leituras dos textos
patrísticos no século 20 são intrinse-
camente problemáticas, nós podemos ver que
eles foram inteiramente ingênuos em argumentar
que conquanto tenha uma conceitualização de
Deus como Trindade em relacionamento (e, talvez,
com um leve toque de Ortodoxia Oriental prometida
como uma boa medida), tudo deveria correr bem, e
a crítica feminista poderia dissolver tudo dentro da
mutualidade e da harmonia perichorética.
Havia algo terrivelmente
errado com essa conclusão
falsamente otimista; da mesma
forma que havia algo igualmente errado
com o oposto, e totalmente pessimista
conclusão de que Deus como Trindade
nunca poderia ser nada além de um
Deus abusivo, masculinizado inclinado
à destruição e punição…
As críticas feministas do trinitarismo
precisam ser mais nuaçadas, menos
simplistas. Se a nossa análise da história do
trinitarismo não fez nada até agora, eu espero que ela
mostre que esses problemas para o trinitarismo não
podem ser discutidos ou abordados em geral. Nem a
reivindicação de Jürgen Moltmann que propriamente o
pensamento trinitirário por si produz tudo o que temos
de bom (em distinção ao que ele chama de
ordenamento “monoteísta”: Santo Pai, Pai do País e
Pai da família), nem o clamor de que o trinitariamismo
produz tudo o que temos de errado.
Não vão ser pequenas
mudanças em pronomes,
ou no contrabando de um
princípio feminino para a divindade, ou em
alguma conversa estimulante sobre
mutualidade que farão a grande diferença
também — se o que nós realmente
precisamos fazer é encarar firmemente de
frente o emaranhado do desejo sexual e do
desejo por Deus.
Uma correta visão da Trindade nos fornecerá uma apropriada visão de toda a realidade
Uma visão
Bíblica da
Antoine Coypel
Trindade
kJ
Sarah Coakley
God, Sexuality, and
the Self
(2013)
Aqui eu vou externar meu argumento
de que a filosofia moderna secular, o
pensamento político, a sociologia, além do
pensamento feminista liberal que tem tradicionalmente sido
seus parceiros, permanece sendo o que eu chamo de vozes
de “contraponto” na tarefa teológica contemporânea. A
deteriorização de tal pensamento é um erro teológico e ético
de consequências graves; além disso, a crítica, a extensão e
a transformação dessa filosofia moderna secular também
não deixa de ser uma urgência espiritual e teológica. Mais
uma vez, nós vamos descobrir que mesmo aparentemente
desconectados, essa é uma matéria distintamente teológica
sobre como o pensamento político funciona
kJ
Michael Horton
Doutrinas da Fé Cristã
(2011)
Se o pensamento pactual forma a
arquitetura da fé e prática reformada,
a doutrina da Trindade é o fundamento.
A Trindade não é meramente mais uma doutrina
entre outras; além de ser proclamada na Palavra
e nos Sacramentos, esse artigo de fé estrutura
toda a fé a prática da cristandade: nossa
teologia, nossas liturgias, nossos hinos e nossas
vidas… “Na doutrina da Trindade” escreveu
Bavinck, “bate o coração de toda a revelação
de Deus para a redenção da humanidade”.
Todas as nossas formulações de pessoas da Trindade são Analógicas
kJ
Michael Horton
Doutrinas da Fé Cristã
(2011)
Frequentemente deixando esse
tipo de preocupação de lado,
algumas teologias contemporâneas
da Trindade tratam as analogias como definições
unívocas. Em vez de permitirem que a realidade
do Pai, do Filho e do Espírito transforme nosso
conceito de pessoa, Barth rejeita o termo pessoa
por causa do seu significado na antropologia
moderna. Do mesmo modo, Moltmann toma a
analogia capadócia literalmente conquanto rejeite
a afirmação capadócia de unidade essencial
Ao adotar uma abordagem
analógica às pessoas divinas e
humanas, também devemos lembrar que
as criaturas são análogas a Deus e não o
contrário. Como Atanásio nos lembra, a
paternidade de Deus não é uma analogia
das relações humanas, mas o contrário.
Portanto, não podemos começar com nosso
conceito de uma personalidade ou sociedade
humana ideal.
Moltmann critica Barth e Rahner por
cederem a Trindade à imagem de “o
absoluto, sujeito idêntico”, do mesmo
modo que o monoteísmo monarquista da antiguidade
cristã foi o produto de uma hierarquização imperial
como um governante. À parte de sua genealogia
controversa dessa teoria, a própria projeção de
Moltmann de uma sociedade ideal de socialismo
democrático para Deus é ainda mais explícita. Como
no seu tratamento dos atributos de Deus, a discussão
de Moltmann da Trindade demostra impaciência em
relação à incompreensibilidade de Deus.
O ponto mais óbvio em que a
doutrina da analogia é dissolvida
no pensamento trinitário é com respeito
ao relacionamento entre trindades imanente e
econômica, que é basicamente a mesma distinção
entre Deus-em-si-mesmo e Deus-em-relação a
nós. Uma coisa é dizer que o Deus que se revela
nas suas relações externas no mundo é o mesmo
Deus que existe no ministério das relações
internas da Trindade, e outra totalmente diferente é
dizer que essa revelação é exaustiva e unívoca.
Confessadamente, o termo pessoa
tem problemas — como todas as
analogias têm, particularmente quando elas
são afirmadas sobre o mistério divino; consequentemente,
a preferência frequente por subsistência, como em Tomás
de Aquino e, se obrigado a escolher, Calvino. Ao empregar
o termo pessoa, no entanto, em relação ao Pai, ao Filho e
ao Espírito, não estamos de modo algum presos a uma
definição boeciana (“uma natureza individual de uma
essência racional”) mais do que estamos ao conceito mais
obscuro de persona emprestado do teatro romano.
Também não há razão para evitar “pessoa” por sua causa
dos pressupostos modernos de individualismo autônomo.
Aqui, como em todo o nosso pensamento
sobre a Trindade, há dois riscos a serem
evitados: (1) a atitude extremamente popular
de unir o imanente na Trindade econômica
(incentivado por Barth e muitos dos seus alunos) e (2)
a tendência de permitir a contradição entre o Deus
escondido e o revelado (às vezes evidente em O
Cativeiro da Vontade, de Lutero). Estamos numa
posição mais segura ao dizer que a revelação da
Trindade na economia revela verdadeiramente a
Trindade imanente (contra equivocidade), mas é
sempre analógica em vez de unívoca.
A Trindade não é só relação, mas subsistências distintas com atributos incomunicáveis
kJ
Michael Horton
Doutrinas da Fé Cristã
(2011)
O Pai, o Filho e o Espírito não são diferentes
em sua essência e atributos divinos. No
entanto, há também atributos pessoais que
não podem ser compartilhados. Por exemplo, o Filho não
pode ser eternamente expirado, nem o Pai nem o Espírito
podem ser gerados. O Filho não pode ser a origem da
Trindade, e o Espírito não pode ser o Verbo encarnado. O
perigo dos hábitos modalistas de pensamento emerge
quando correlacionamos o Pai com a criação, o Filho com
a redenção e o Espírito com o novo nascimento. Em vez
disso, em cada obra externa da Trindade, o Pai é sempre
a fonte, o Filho é sempre o mediador e o Espírito é
sempre o agente aperfeiçoador.
kJ
Tim Chester
Conhecendo o Deus Trino:
porque Pai, Filho e Espírito
Santo são as boas novas
(2010)
Não entendemos a cruz sem a
pluralidade de Deus. A cruz nos
mostra que há distinções dentro de
Deus. Deus pode ser desamparado por Deus. Nós
também não podemos entender a cruz sem a
unidade de Deus. Se Deus não for um, a cruz se
torna ato cruel e vingativo, um Pai irado a punir um
Filho indisposto, ou um Pai indisposto sendo
aplacado por um Filho amoroso. Somente se Deus
for um e que a cruz pode ser simultaneamente
reconciliação e inclusão dentro da comunidade
divina.
kJ
Michael Horton
Doutrinas da Fé Cristã
(2011)
Mais uma vez, devemos responder a essa
pergunta não nos referindo a conceitos a
priori da personalidade extraídos de nossa
própria interpretação humana da pessoalidade ou
comunidade ideal, mas atentando para a história real na
qual as pessoas divinas são reveladas. Independentemente
do tipo de perguntas que possam surgir em relação à
pessoalidade humana, parece claro o suficiente na
Escritura que as pessoas da Divindade são pessoas-em-
relação, não meramente pessoas-como-relação. Não é
simplesmente que gerar, ser gerado e ser expirado são
essenciais à identidade deles, mas que o Pai, o Filho e o
Espírito são essenciais um para a identidade do outro.
Juntamente com a sua unidade
em essência e atividade, cada um
é uma pessoa insubstituível que vive
e age diferentemente. Essa diferença nunca
provoca oposição, mas amor, porque cada
pessoa tem algo diferente para trazer ao
relacionamento intratrinitariano e obras
extratrinitárias. O Pai não apenas conhece sua
paternidade a partir do Filho; sua pessoa como
tal é definida por esses outros que se
relacionam com ele.
Muito diferente da pessoalidade
humana, a primeira pessoa ser
o Pai do Filho é um aspecto
necessário em vez de ser contingente de
sua existência. Precisamente porque cada
pessoa é diferente (i.e., possui propriedades
incomunicáveis), cada um conhece a si
mesma na outra e por meio da outra. Nem
mesmo o Pai conhece a si mesmo à parte do
Filho por meio do Espírito.
A Perichoresis Trinitária como chave-interpretativa da realidade
kJ
Peter Leithart
Vestígios da Trindade
(2015)
Chamei a atenção ao padrão que afirmo
ser a estrutura profunda do mundo real,
da vida humana e da experiência. O mundo
não caracteriza-se por coisas, conceitos ou qualidades
mutualmente opostos que precisem “equilibrar-se”. As
coisas são muito mais intrincadamente entrelaçadas. O
mundo é projetado de acordo com um padrão que
chamei de “coabitação”, “moradia recíproca”,
“interpenetração”… Escrevi sobre como as coisas
tornam sobre si mesmas, sobre fitas de Möbius e nós
celtas. Afirmo ver esse padrão em tudo — na realidade
física, na linguagem, som, sexo, relações pessoais, ética,
e nos conceitos que formamos para entender o mundo.
Em todo lugar, em cada terraço ao
longo do caminho, descobrimos que a
paisagem tem características familiares:
as coisas são irrefutavelmente diferentes. As coisas
não podem sequer existir se não forem distintas das
outras. Ao mesmo tempo, essas coisas irredutivelmente
diferentes misteriosamente habitam-se mutualmente,
entram e saem umas das outras, penetram-se e são
penetradas, envolvem as próprias coisas que as
envolvem. E descobrimos que, enquanto as coisas não
podem sequer ser sem serem irrefutavelmente distintas,
também sequer podem existir sem essa
interpenetração.
Não posso existir a menos que o
mundo que habito venha habitar em
mim. Não posso ter relacionamentos
com outra pessoa, especialmente com os que amo, a
menos que entremos um no outro. O tempo existe
apenas porque passado, presente e futuro inefável e
simultaneamente vêm habitar um no outro. Palavras
nada significam a menos que ocupem outras palavras
e sejam abertas o suficiente para serem ocupadas.
Cada nota de música é diferente, mas cada uma é o
que é porque outros sons ressoam pelo som que tem.
Na Teologia, há um termo venerável
que descreve o tipo de relacionamento
que explorei ao logo do livro: “pericorese”.
O que tenho descrito é a forma pericorética da
realidade. Historicamente, aplicou-se o termo
às relações das naturezas divinas e humanas
de Jesus, e à vida interna do Deus Trino. De
acordo com a ortodoxia cristã, há apenas um
Deus, mas esse um Deus existe como três
Pessoas divinas: Pai, Filho e Espírito Santo.
Embora nunca elevado a um credo,
o termo “pericorese” remonta à igreja
antiga, muitos teólogos usaram-no ao
longo dos séculos, e tornou-se enormemente
importante para vários teólogos contemporâneos. A
palavra deriva de um verbo grego (perichorein) que
significa “conter" ou “penetrar”. Descrevendo
inicialmente união sem mistura de divindade e
humanidade de Jesus, foi mais comum descrevendo a
comunhão das três pessoas da Trindade como
mutuamente “habitando”, “permeando” ou
“interpenetrando” uma à outra.
Cada pessoa da Trindade é irrefuta-
velmente si mesma. O Pai nunca é o Filho,
nem o Filho é Pai, e nenhum dos dois é
jamais o Espírito. Entretanto, essas pessoas
irrefutavelmente distintas estão unidas num
companheirismo íntimo de coabitação. Dentro da
Trindade, cada pessoa tanto completamente envolve,
quanto é completamente envolvida por, as outras. Cada
pessoa é tanto a habitação de, quanto habita, cada uma
das outras. O Pai contém o Filho, mesmo enquanto o
Filho contém o Pai. O Espírito acha morada no Filho,
enquanto no mesmo movimento o Filho faz morada no
Espírito.
kJ
Leonardo Boff
A Santíssima Trindade é
a melhor Comunidade
(1988)
As pessoas eternas co-existem umas
dentro das outras. Um dinamismo de
vida e de amor as une de tal forma que se
constituem a si mesmas numa união integradora,
plena e completa… Esta unidade se constitui pela
abertura essencial de uma Pessoa à outra, mais
ainda, pela interpenetração de uma na outra de
tal forma que são sempre uma com a outra. Esta
unidade está aberta para fora, pois insere nas
pessoas amadas, também as perdidas que
buscam perdão e o universo em sua totalidade.
A santíssima Trindade é, pois, um
mistério de inclusão. Esta inclusão
impede que entendamos uma Pessoa
sem as outras. O Pai deve ser sempre
compreendido junto com o Filho e o Espírito Santo e
assim sucessivamente. Alguém poderia pensar: então
haverá três deuses, o Pai o Filho e o Espírito Santo?
Haveria se um estivesse ao lado do outro, sem relação
com ele; haveria se não houvesse relação e inclusão
das três divinas Pessoas. Não existem primeiramente os
Três e depois seu relacionamento. Eles sem princípio
convivem e eternamente se entrelaçam. Por isso são
um só Deus, Deus-Trindade
kJ
John Zizioulas
Being as Communion
(1985)
Não existe nenhum ser
verdadeiro fora da comunhão.
Nada existe individualmente,
concebido em si mesmo. Comunhão é
uma categoria ontológica… A pessoa
não pode existir fora da comunhão; mas
toda comunhão que nega ou suprime a
pessoa torna-se inadmissível.
Perichoresis Trinitária
e a Glória de Deus
kJ
Joe Rigney
As coisas da Terra
(2005)
Insistir assim na trindade terá
implicações imensas na forma
como pensamentos acerca de outras
verdades fundamentais da fé cristã, como o
propósito de Deus em tudo o que ele faz.
Graças à recuperação, em anos recentes, de
uma visão e de uma teologia teocêntrica,
muitos cristãos felizmente afirmar que Deus
faz tão o que faz para a sua glória.
Todavia, muitos dos que abraçam a verdade
passariam por maus bocados para explicar
com exatidão o que entendem por “a glória
de Deus”. De fato, o termo corre o sério risco de tornar-se
apenas outra frase de efeito, um slogan usado para dizer
algo sem muito sentido… Para simplificar, porque Deus é
sempre trino, sempre devemos conceber sua glória em
termos trinitários. A glória de Deus está em sua plenitude
trinitária, ou na profusão das perfeições, do conhecimento,
amor, alegria e vida que ele tem na divindade… O Pai, o
Filho e o Espírito Santo conhecem, amam e regozijam-se
uns nos outros desde toda a eternidade — nisto consiste a
glória de Deus (cf. Jo 17.5,24).
Ao unir o entendimento da Trindade,
a doutrina da pericorese e compreensão
da glória e da glorificação, estamos agora em
posição de responder a uma das perguntas mais prementes da
introdução: o que significa glorificar a Deus?… Deus glorifica a
si mesmo ao convidar-nos a participar de sua plenitude
trinitária. Em outras palavras, Deus glorifica a si mesmo ao
estender sua glória a tal ponto que sua vida divina vem à
existência em forma humana… Em vez de a gloria de Deus
fluir até nós, nós somos atraídos a Deus. Somos arrastados
de tal maneira que vimos a compartilhar do conhecimento, do
amor e do gozo divino, ou como diz Pedro, tornamo-nos “co-
participantes da natureza divina” (2Pe 1.4).
kJ
Friedrich Nietzsche
Assim falou
Zaratustra
(1883)
“E eu, que estou de bem com a vida, creio
que os que melhor entendem de felicidade
são as mariposas e as bolhas de sabão, e
tudo quanto a elas se assemelha entre os homens”.
Ao ver revolutear essas alminhas aladas e loucas,
encantadoras e buliçosas, Zaratustra tem ímpetos de
chorar e de cantar. “Eu não poderia crer num Deus, se
ele não soubesse dançar… Aprendi a andar; desde
então corro. Aprendi a voar; desde então não quero
que me empurrem para mudar de lugar. Agora sou leve,
agora voo; agora me vejo no alto, acima de mim, agora
um Deus dança em mim”. Assim falava Zaratustra.
Perichoresis Trinitária
as relações Humanas
kJ
Ricardo Barbosa
O caminho do Coração
(1995)
Buscar compreender a Trindade a partir
do que ela é na relação que nutre entre si
constitui a grande tarefa da igreja para
redescobrir sua própria natureza. A natureza da igreja
enquanto comunidade, e do cristão enquanto pessoa, é
definida no batismo. Ao ser admitido no Corpo de Cristo
pelo batismo, o cristão assume a natureza trinitária da
sua fé, tanto no nível pessoal como comunitário. Nosso
ingresso na igreja de Jesus Cristo dá-se em nome do Pai,
do Filho e do Espírito Santo. Ser salvo por Cristo e tornar-
se membro da sua igreja é penetrar no mistério da
Trindade e ser envolvido por um Deus que é comunhão.
A falta que a Trindade faz para as construções políticas ocidentais
kJ
Peter Leithart
Vestígios da Trindade
(2015)
Apesar de todas as
diferenças entre si, os
fundadores da teoria política
moderna, John Locke e Thomas
Hobbes, acreditavam que no estado
original da vida humana, cada ser
humano era fundamentalmente um
indivíduo buscando seus próprios
interesses.
Hobbers disse que isso produziu uma
horrível guerra de todos contra todos.
“Cada homem é inimigo de cada homem”,
e num estado de guerra tão total e todo-consumidor,
não pode haver indústria, cultivo, navegação,
construção, conhecimento, artes, literatura ou
sociedade — em suma, civilização. As pessoas
tremem em medo contínuo por causa do sempre
presente “perigo de morte violenta”. Finalmente
evidencia-se a esses brutos belicosos que estão
mais seguros se agruparem-se em bandos.
kJ
Thomas Hobbes
Do Cidadão
(1642)
A maior parte daqueles que escreveram
alguma coisa a propósito das repúblicas ou
supõe, ou nos pede ou requer que acreditemos
que o homem é uma criatura que nasce apta para a
sociedade. Os gregos chama-no zoon politikon; e sobre
esse alicerce eles erigem a doutrina da sociedade civil como
se, para se preservar a paz e o governo da humanidade,
nada mais fosse necessário do que os homens
concordarem em firmar certas convenções e condições
em comum, que eles próprios chamariam, então, leis.
Axioma este que, embora acolhido pela maior parte, é
contudo sem dúvida falso — um erro que procede de
considerarmos a natureza humana muito superficialmente.
A origem de todas as grandes e
duradouras sociedades não provém
da boa vontade recíproca que os homens
tivessem uns para com os outros, mas do medo
recíproco que uns tinham dos outros… Mas, como
é vão alguém ter direito ao fim se lhe for negado o
direito aos meios que sejam necessários, decorre
que, tendo todo homem direito a se preservar,
deve também ser-lhe reconhecido o direito de
utilizar todos os meios, e praticar todas as ações,
sem as quais ele não possa preservar-se.
kJ
Peter Leithart
Vestígios da Trindade
(2015)
Hobbes pensava que os medos dos homens
naturais são uma graça salvífica. Medo da
morte, junto com desejo de conforto e esperança
de ganho com trabalho, encoraja os homens a buscar a
paz… Apenas uma coisa sobrepuja a coragem dos
selvagens, e é uma selvageria ainda maior, um poder
soberano maior que qualquer outro… Cada homem
concorda em submeter sua vontade à do soberano; cada
um curva seu próprio julgamento para conformar-se a do
Soberano. É tudo bem mágico: o próprio ato de gerar
esse Leviatã monstruoso unifica. Ao criar o Leviatã, os
humanos que lutaram até com a morte subitamente agem
como homens.
kJ
Thomas Hobbes
Do Cidadão
(1642)
A única maneira de instituir um tal poder
comum, capaz de nos defender das
invasões dos estrangeiros e dos danos uns
dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente
para que, mediante o seu próprio labor e graças aos frutos
da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir
toda a sua for e poder a um homem, ou a uma assembleia
de homens, que possa reduzir todas as suas vontades, por
pluralidade de votos, a uma só vontade. Isso equivale a
dizer: designar um homem ou uma assembleia de homens
como portador de suas pessoas, admitindo-se e
reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que
aquele que assim é portador de sua pessoa
possa praticar ou levar a praticar, em tudo
o que disser respeito à paz e à segurança
comuns; todos submetendo desse modo
as suas vontades à vontade dele, e as suas decisões à
sua decisão. Isto é mais do que consentimento ou
covardia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa
só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada
homem com todos os homens… Feito isso, à multidão
assim unida numa só pessoa chama-se República, em
latim Civitas. É esta a geração daquele grande Leviatã,
ou antes (para falar em termos mais reverentes), daquele
Deus mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus imortal, a
nossa paz e defesa.
kJ
Peter Leithart
Vestígios da Trindade
(2015)
Como Hobbes, Locke
imagina um estado de natureza
em que os seres humanos são
iguais, sem hierarquia ou privilégios, e
sem quaisquer relações involuntárias
de subordinação. Cada um tem seus
próprios direitos, e cada um tem o
direito de defender seus direitos.
kJ
John Locke
Dois tratados sobre o
governo
(1689)
Eis só a clara diferença entre o estado
de natureza e o estado de guerra, os
quais, por mais que alguns homens os
tenham confundido, tão distintamente estão um
do outro quanto um estado de paz, boa vontade,
assistência mútua e preservação, está de um
estado de inimizade, malignidade, violência e
destruição mútua. Quando homens vivem juntos
segundo a razão e sem um superior comum sobre
a terra com autoridade para julgar entre eles,
manifesta-se propriamente o estado de natureza.
Mas a força, ou um propósito
declarado de força sobre a pessoa
de outrem, quando não haja um
superior comum sobre a Terra ao qual apelar
em busca de assistência, constitui o estado
de guerra… A ausência de um juiz comum
dotado de autoridade coloca todos os homens
em estado de natureza; a força sem direito
sobre a pessoa de um homem causa o estado
de guerra, havendo ou não um juiz comum.
kJ
Peter Leithart
Vestígios da Trindade
(2015)
O homem natural de Locke é mais feliz
que seu vizinho hobbesiano. Segundo
Locke, há formas naturais de vida social, no
casamento, família, e no lar (incluindo servos), e
sobretudo no comércio. Essas formas de interação
não chegam a ser “uma sociedade política”, porque
têm “fins, laços e limites diferentes”. Mas as formas
naturais da vida social, especialmente o comércio,
encorajam os humanos e agruparem-se em
sociedades políticas. A ordem política existe para
preservar a propriedade e punir ofensas contra a
propriedade.
kJ
John Locke
Dois tratados sobre o
governo
(1689)
Se o homem no estado de natureza é
livre como se disse, se é senhor absoluto
de sua própria pessoa e suas próprias posses,
igual ao mais eminente dos homens e a ninguém
submetido, por que haveria ele de se desfazer dessa
liberdade? Por que haveria de renunciar a esse
império e submeter-se ao domínio e ao controle de
qualquer outro poder? A resposta evidente é a de que,
embora tivesse tal direito no estado de natureza, o
exercício do mesmo é bastante incerto e está
constantemente exposto à violação por parte dos
outros,
Pois sendo todos reis na mesma
proporção que ele, cada homem um igual
seu, e por não serem eles, em sua maioria,
estritos observadores da equidade e da justiça, o
usufruto que lhe cabe da propriedade é bastante
incerto e inseguro. Tais circunstâncias o fazem querer
abdicar dessa condição, a qual, conquanto livre, é
repleta de temores e de perigos constantes. E não é
sem razão que ele procura e almeja unir-se para a
mútua conservação de suas vidas, liberdades e bens,
aos quais atribuo o termo genérico de propriedades.
kJ
Peter Leithart
Vestígios da Trindade
(2015)
Jean-Jacques Rousseau
também observou que desejos
formam-se socialmente. Seres
humanos possuem uma forma natural e
inteiramente boa de autoestima ou
amor de si. É esse amour de soi que nos
leva a comer quando estamos famintos,
dormir quando estamos cansados, fazer
sexo quando estamos excitados.
kJ
Jean-Jacques Rousseau
Discurso sobre a origem e os
fundamentos da desigualdade
entre os homens
(1755)
Os filósofos que examinaram os
fundamentos da sociedade sentiram
todos a necessidade de remontar ao
estado de natureza, mas nenhum deles o
atingiu… Todos, falando incessantemente de
necessidade, de avidez, de opressão, de
desejos e de orgulho, transportaram para o
estado de natureza ideias que haviam tirado
da sociedade: falavam do homem selvagem
e descreviam o homem civil
Errando pelas florestas, sem engenho,
sem a palavra, sem domicílio, sem guerra
e sem vínculos, sem a menor necessidade
de seus semelhantes, assim como sem nenhum
desejo de prejudicá-los, talvez até sem jamais
reconhecer algum deles individualmente, o homem
selvagem, sujeito a poucas paixões e bastante a si
mesmo, tinha apenas sentimentos e as luzes próprias
desse estado, sentia apenas suas verdadeiras
necessidades, só olhava o que acreditava ter interesse
de ver e sua inteligência não fazia mais progressos do
que sua vaidade.
kJ
Peter Leithart
Vestígios da Trindade
(2015)
Mas além desse amour de soi natural, há
também a forma distorcida de amor
de si que desenvolvemos por causa de nosso
envolvimento na sociedade humana, o que Rousseau
chamou de amour propre. Esse tipo de amor de si não é
saudável e bom, mas envolve desejo de bens que
outros possuem. Esse tipo de amor de si é comparativo
e “puramente negativo”… Para Rousseau, essa
percepção expõe o caráter trágico da sociedade: não
podemos ficar sem a sociedade, mas a sociedade nos
arruina porque distorce nosso amor de si saudável e
natural, resultando numa forma perversa.
kJ
Jean-Jacques Rousseau
Discurso sobre a origem e os
fundamentos da desigualdade
entre os homens
(1755)
O primeiro que, tendo mercado um
terreno, atreveu-se a dizer: Isto é meu, e
encontrou pessoas simples o suficiente para
acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da
sociedade civil. Quantos crimes, guerras,
assassínios, quantas misérias e horrores não teria
poupado ao gênero humano aquele que, arrancando
as estacas ou enchendo o fosso, houvesse gritado
aos seus semelhantes: “Evitai ouvir esse impostor.
Estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são
de todos e que a terra não é de ninguém!”
Porém, ao que tudo indica,
então as coisas já haviam
chegado ao ponto de não mais
poderem permanecer com eram, pois
essa ideia de propriedade, dependente
de muitas ideias anteriores que só
puderam nascer sucessivamente, não
se formou de uma vez no espírito
humano.
Quais os limites fundamentais das modernas teorias políticas?
kJ
Peter Leithart
Vestígios da Trindade
(2015)
Como esses indivíduos aparecem
é uma grande lacuna no pensamento
moderno inicial político e econômico.
Como esses indivíduos obtêm as habilidades
necessárias a engajarem-se no comércio? Como
os bandos e indivíduos guerreiros de Hobbes
são capazes de pactuar se não não
compartilham uma língua? E se já compartilham
uma língua unificada, deve ter havido alguma
sociedade ordenada antes do pacto, uma
comunidade política “natural”, não “artificial”.
Inventou-se a sociologia para
corrigir o individualismo da teoria
política e da economia. Sociologias
tomam a “sociedade” como um fato
básico, como o fato básico, antes da
política, da cultura ou religião, e antes
dos objetivos e aspirações dos
indivíduos. A sociedade não é algo a se
explicar, mas antes é a explicação.
Tudo isso pode ser esclarecedor
de várias maneiras, mas a sociologia
não resolve verdadeiramente o
problema do indivíduo e da sociedade. Ela
simplesmente o inverte. Ao invés de dizer
que o indivíduo é a unidade fundamental, o
bloco de construção do qual fazem-se
sociedades, a sociologia faz da sociedade
a construtora de indivíduos.
Nessas mudanças teóricas, um
pressuposto permanece constante
— a saber, que “indivíduo” e
“sociedade” são suficientemente separados
para que um possa influenciar, moldar,
formar ou criar o outro. Individualistas
pressupõem que indivíduos são similares a
átomos duros da natureza humana, capazes
de trombar uns nos outros, mas incapazes
de habitar um no outro.
Sociologias pressupõem que a
sociedade é uma entidade que pode
ser isolada dos indivíduos que a
perfazem e doutros fatores como religião e
moralidade; pressupõe que indivíduos estão
“fora de” e são “externos a” outros
indivíduos e aos grupos a seu redor, ao
menos externos o suficiente para que a
sociedade possa bulir indivíduos para
obrigá-los a fazer o que impõe.
kJ
John Milbank
Teologia e Teoria Social
(1990)
Afirmo que, da perspectiva da virtude cristã,
vem à tona um fio oculto de continuidade entre
a razão antiga e a razão moderna secular. Esse fio
de continuidade é o tema da “violência original”. A política e o
pensamento antigos suprem algum elemento naturalmente
dado de conflito caótico que tem de ser controlado pela
estabilidade e auto-identidade da razão. O pensamento e a
política modernos (articulados mais claramente por Nietzsche)
supõem que há apenas esse caos, que não pode ser
controlado por um princípio transcendente que lhe seja
oposto, mas pode ser Iminentemente controlado pela sua
sujeição a regras e pela concessão de um poder irresistível a
essas regras na forma de econômicas de mercado e de
política soberana.
O cristianismo, contudo, não reconhece
violência original. Ele concebe o infinito não
como caos, mas como paz harmônica que,
no entanto, está além do poder de circunscrição de
qualquer razão totalizante. A paz já não depende da
redução ao auto-idêntico, sendo em vez disso a
socialidade da diferença harmônica… Tal lógica não é
passível de desconstrução pela razão secular moderna…
É essa narrativa vívida que, por si mesma, tanto pronta
como “representa"o Deus trino, que é paz
transcendental mediante relação diferencial. E essa
mesma narrativa é igualmente uma leitura e um
posicionamento continuou de outras realidade sociais.
A Doutrina da Trindade como chave de leitura dos relacionamentos socioafetivos
kJ
Peter Leithart
Vestígios da Trindade
(2015)
Embora eu seja distinto do mundo, não estou
acima dele como algo fora de mim. O mundo
me habita mesmo enquanto habito o mundo, e
nem o mundo nem eu podemos ser o que somos um sem
o outro… A mesma fita de Möbius resolve o dilema do
individualismo versus a sociedade, economia política
versus sociologia. Indivíduos são únicos. Não se pode
reduzir nenhum indivíduo a outro, nem indivíduos são
simples somas ou produtos doutros, que os influenciam.
Entretanto sou o eu único que sou só por causa doutros
que me moldaram… A sociedade tem de habitar dentro
de indivíduos, e indivíduos dentro da sociedade, se
qualquer um existirá.
Em resumo, o que é verdade de
minha relação com o mundo
inanimado a meu redor é verdade
ainda mais profundamente em meus
relacionamentos com outras pessoas. Se estou
no mundo como o mundo em mim, podemos crer
ainda mais que meus amigos e família habitam
em mim quando derramo meu coração neles.
Se tenho um relacionamento recíproco com a
rocha, a árvore e a folha, quanto mais com meu
pai e mãe, irmã e irmão, esposa e filhos?
Habitação como categoria básica da experiência humana
kJ
Peter Leithart
Vestígios da Trindade
(2015)
Todos começamos a vida habitando outro
humano. Ao contrário de certa retórica
abortista, um feto nunca é apenas parte
da mamãe. É um organismo biológico diferente, com
ácido desoxirribonucleico (DNA), digitais, padrões
dentários diferentes, mas o feto não seria o que é sem a
mamãe. No terceiro trimestre, os batimentos cardíacos do
bebê acalmam quando a mamãe fala… funciona no
sentido contrário também: o pequeno estranho que mora
em sua barriga afeta diretamente a mamãe. Ela ecoa de
manhã, às vezes vomita, cresce alarmantemente, cansa-
se e, finalmente, começa a sentir movimento e logo depois
socos e chutes.
A vida no útero é uma interação mútua.
Antes que sejamos visíveis ao mundo,
já estamos em sociedade. O feto está
literalmente dentro da mamãe, mas muito de mamãe
entra no feto também… Solidão natural [como queriam os
jus naturalistas] é uma ilusão. Se há algo que não somos
no começo é sozinhos… O “ser pensante” que Descartes
pensou que era seu “eu” não tinha identidade étnica e
nacional. É uma pessoa cuja vida e atividades públicas
não toca seu ser real, algo privatizado, oculto dentro de
seu corpo. Mas esse eu cartesiano é uma fantasia, como
o homem natural hobbesiano.
kJ
Sarah Williams
The Shaming of the
Strong
(2005)
Muitas vezes, ouvi a frase “Deus
me disse”, mas nunca tive certeza
absoluta do que aquilo queria dizer, até
aquela tarde de maio, quando sentimos Deus, nosso Pai,
transmitir uma mensagem ao nosso coração tão
claramente como se estivesse falando conosco
pessoalmente: “aqui está uma criança doente e
morrendo. Vocês podem amá-la e cuidar dela por mim
até que ela morra?”. Com essas palavras, Deus nos
concedeu uma prova do seu coração. Para ele, não era
uma questão de princípios éticos abstratos, mas a
imposição caminharas do seu amor absoluto por esse
bebezinho deformado e indefeso.
— Precisamos dar um nome ao bebê — disse Paul, e tive a
certeza de que, como eu, ele também estava pensando em
como amá-lo. Naquele final de semana, Paul e Hannah
pesquisaram dos os livros de nomes de crianças que
puderam achar. Anunciavam um nome após outro, muitas
vezes com grandes risadas.
— Cerian…
— Quer dizer “ser amado”, em galês. Significa “amado” — sua voz estava
trêmula.