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Jesus, o Nazareno
O Evangelho Segundo João – Parte 1 (João 1:1—2:25)
Introdução
Prólogo (1:1-18)
O Início do Ministério de Jesus (1:19-51)
A Transformação da Água em Vinho (2:1-11)
A Purificação do Templo (2:12-25)
1
O Evangelho Segundo João
Esboço Ampliado
[Note to the RB: The rest of this section will be sent attached to the next
issues of this series.]
2
O EVANGELHO SEGUNDO JOÃO
Introdução
3
fala de expulsão de demônios, como fazem os Evangelhos
Sinópticos? Da mesma forma, se tais milagres surpreendentes como
a transformação da água em vinho e a ressurreição de Lázaro
realmente ocorreram, por que os outros Relatos do Evangelho nada
dizem a respeito deles?
Perguntas teológicas relativas à linguagem empregada por
João acaloraram debates por muitos anos na história da igreja
primitiva. Por exemplo: Como “o Verbo” ( , Logos), que estava
no princípio com Deus e era Deus, tornou-se carne (1:1, 2, 14)
com todas as fraquezas da carne? Se Jesus e o Pai são um
(10:30), como o Pai pode ser “maior do que” Jesus (14:28)? O
Espírito Santo procedeu do Pai (14:26) ou do Filho (15:26)?
As perguntas de âmbito literário, histórico e teológico
indicam claramente que o leitor que apenas pisa nessa porção
d’água precisa tornar-se um nadador.
CARACTERÍSTICAS DISTINTIVAS
Algumas das características únicas do Evangelho de João são
evidentes, como será discutido na seção “A Relação com os
Evangelhos Sinóticos” (veja as páginas 5–7). Por ora, vamos
delinear brevemente algumas características que se destacam em
João, isoladas das considerações relativas aos demais Relatos do
Evangelho.
4
João como o cumprimento de Isaías 53:1 e 6:9, 10. Na
crucificação, é dito que a divisão das vestes de Jesus foi “para
se cumprir a Escritura” (19:24; veja Salmos 22:18). Além disso,
só João registra que as pernas de Jesus não foram quebradas em
cumprimento das Escrituras (19:33, 36; veja Êxodo 12:46; Números
9:12; Salmos 34:20).
A ênfase do Antigo Testamento no Evangelho de João também
se evidencia no número de vezes que Jesus citou personagens do
Antigo Testamento. Jesus disse que Abraão exultou por ver o Seu
dia (8:56) e que Ele já existia antes de Abraão (8:58). Quando
se reportou a Natanael, Jesus citou a visão de Jacó (Gênesis
28:10-17), que tinha a ver a comunicação entre o céu e a terra,
e disse que agora o Filho do Homem (Ele) é o meio pelo qual as
realidades celestes são trazidas para a terra (João 1:50,
51). Jesus citou Moisés e a serpente levantada numa haste no
deserto (Números 21:8, 9) para ilustrar como o Filho do Homem
seria levantado (João 3:14, 15). E voltou a citar Moisés para
defender a cura do homem paralítico no sábado (7:22, 23; veja
5:1-16).
Jesus muitas vezes usou o Antigo Testamento como recurso
para responder Seus adversários. Ele alegou que as Escrituras
eram um testemunho em Seu favor (5:39, 46) e que, segundo os
Profetas, precisamos ser ensinados para chegar até Deus
(6:45). Depois de citar o Salmo 82:6, Jesus disse que “a
Escritura não pode falhar” (10:34, 35). Esses exemplos de
citações deixam claro que o Antigo Testamento desempenha um
papel crucial no Evangelho de João.
5
Jesus é visto neste Evangelho, primariamente, como o Filho
enviado pelo Pai (3:17, 34; 5:23; 6:39, 44). Mais
especificamente, Ele é o único Filho de Deus que disse e fez
somente o que o Pai Lhe mandou dizer e fazer (5:19, 30). O
título “Filho de Deus” é essencialmente equivalente ao título
“Messias”, pois Jesus é o “Ungido” enviado ao mundo para ser a
revelação do plano redentor de Deus.
Embora a expressão “Filho do Homem” seja menos usada em
João do que nos Evangelhos Sinóticos, aqui seu uso parece ser
diferenciado. Em João, o Filho do Homem é apresentado como
aquele que esteve no céu e que, consequentemente, está
qualificado para falar sobre as coisas celestiais. Jesus é a
conexão entre o céu e a terra e o meio pelo qual as realidades
celestiais são trazidas para a terra (1:51; 3:12, 13).
A humanidade de Jesus é revelada mais plenamente em João do
que nos Evangelhos Sinóticos. Jesus participou do casamento em
Caná como uma pessoa sociável, sem dúvida se divertindo enquanto
se socializava com outros (2:1-11). No poço de Jacó, Ele estava
exausto devido à viagem e com sede (4:6, 7). No túmulo de
Lázaro, ficou profundamente perturbado e chorou (11:33,
35). Humilhou-se e lavou os pés dos discípulos (13:4, 5). Na
cruz, teve sede (19:28) e sangue jorrou do Seu corpo (19:34).
O Evangelho de João dá uma significativa atenção ao aspecto
pessoal de Jesus. Em todo o relato, a vida interior de Jesus é
enfatizada. Além disso, em vez de ser descrito proferindo
discursos para grandes multidões, sua obra se compõe de muitos
encontros com indivíduos, como os notáveis momentos com
Nicodemos (3:1-21) e a mulher samaritana (4:1-42).
A característica mais diferenciada do Evangelho de João em
relação à apresentação de Jesus é sua identidade como o “Verbo”,
“a Palavra” ( , Logos). Como diz o capítulo 1, Jesus é um ser
divino eterno que é a própria manifestação de Deus e a expressão
máxima na forma humana da vontade de Deus para a humanidade.
4
O Evangelho de João menciona outros sinais que Jesus realizou sem incluir quaisquer detalhes (2:23; 6: 2; 20:30).
6
ovelhas” (10:7; veja 10:9), “o bom pastor” (10:11, 14), “a
ressurreição e a vida” (11:25), “o caminho, e a verdade, e a
vida” (14:6) e “a videira verdadeira” (15:1; veja 15:5). Além
dessas declarações “Eu sou”, há várias outras que ocorrem em
João sem um predicativo do sujeito (veja os comentários sobre
6:20; 8:24, 28, 58; 18:6).
Temas Únicos
O Evangelho de João enfatiza vários temas abstratos. Talvez
esses temas sejam melhor sintetizados nas palavras-chave “luz” (
, fōs), “vida” ( , zōē), “amor” ( , agapē; , agapaō) e
“verdade” ( , alētheia). Alguns desses temas ocorrem no
Prólogo (1:1-18) e servem de introdução ao restante do
Evangelho. Por exemplo, João 1:4 diz: “A vida estava nele e a
vida era a luz dos homens” (João 1:4). Os dois temas deste
versículo ecoam mais adiante no Evangelho. De fato, Jesus veio
para dar vida (3:15, 16, 36; 6:47, 54; 17:2). Ele oferece água
viva que jorra para a vida eterna (4:14). Além disso, Ele é o
“pão da vida” (6:35), e quem comer deste pão viverá para sempre
(6:51). Ele veio não só para dar vida, mas também para dá-la em
abundância (10:10). Não é surpreendente que esse tema ocorra com
frequência, visto que o propósito declarado de João é gerar fé
em Jesus para que se tenha vida (20:31). O tema da luz é
mencionado em uma das declarações “Eu sou” em 8:12, sendo
repetido em 9:5 e ilustrado na cura subsequente do cego de
nascença. O tema da luz também aparece em 3:19-
21; 5:35; 11:9; 12:46. Uma única constatação dos temas de vida e
luz já é suficiente para ilustrar a natureza recorrente desses
temas abstratos.
7
Primeiro, uma quantidade significativa do conteúdo
registrado nos Evangelhos Sinóticos foi omitida por João. Ao
contrário dos outros três relatos, João não inclui as narrativas
do nascimento virginal, da tentação de Jesus, da transfiguração,
da instituição da ceia do Senhor, da expulsão de demônios ou de
parábolas. O Evangelho de João registra que Jesus e os
discípulos estavam no jardim do Getsêmani, sem, porém, incluir
um relato da agonia de Jesus no jardim. Embora o texto presuma
que houve o batismo de Jesus (veja 1:29–34) e o chamado dos
discípulos, esses eventos não são descritos
explicitamente. Somente em 3:3, 5 e 18:36 João emprega a
terminologia “reino”, mas esse termo, bem como sua pregação, é
comum nos Evangelhos Sinóticos.
Em segundo lugar, João inclui um conteúdo adicional não
encontrado nos outros Relatos do Evangelho. Isso compreende o
prólogo (1:1-18), o milagre em Caná (2:1-11), os encontros de
Jesus com Nicodemos (3:1-21) e com a mulher samaritana (4:1-42),
a cura do paralítico (5:1-47), a cura do cego de nascença (9:1-
41), a ressurreição de Lázaro (11:1-57), os longos discursos
públicos de Jesus (veja 6:26-71; 8:12-59; 10:1-21) e os
discursos privados com Seus discípulos (veja 14:1-17:26), e
aspectos significativos da narrativa da paixão. Muito desse
conteúdo está relacionado à ênfase que João deu ao ministério de
Jesus na Judeia, Samaria e Galileia, ao passo que outra parte
desse conteúdo se deve a certos temas que João desejava
enfatizar.
Em terceiro lugar, o conteúdo deste Evangelho é
apresentado de uma forma diferente da empregada nos outros
Evangelhos. O conteúdo discursivo é maior que o conteúdo
narrativo, e a proporção deste em relação àquele é muito menor
em João do que nos Evangelhos Sinóticos. Além disso, o estilo
dos discursos em João é bastante diferente. Donald Guthrie
observou que João (em contraste com os demais Relatos do
Evangelho) apresenta Jesus “no papel de um rabino judeu, usando
métodos rabínicos de argumentação sem a abordagem mais popular
tão proeminente nos outros [Evangelhos]”5. O vocabulário grego
de João é mais simples do que o dos Evangelhos Sinóticos. As
frases ou orações gramaticais estão conectadas com conjunções
simples, sem subordinação. Além disso, o estilo dos discursos é
tão semelhante às seções narrativas que é difícil distinguir
entre o ensino de Jesus e o do autor. Por exemplo, embora as
Bíblias com “letras vermelhas” atribuam 3:16–21 a Jesus, é mais
provável que esses versículos sejam reflexões do próprio
escritor (veja os comentários sobre 3:16).
Em quarto lugar, o Evangelho de João apresenta uma série
de desafios cronológicos quando comparado aos Evangelhos
Sinóticos. Talvez as questões mais relevantes sejam a datação da
5
Donald Guthrie, New Testament Introduction. Downers Grove, Ill.: InterVarsity Press, 1990, p. 306.
8
purificação do templo, a duração do ministério de Jesus e os
acontecimentos em torno da crucificação.
A questão da datação é que o Evangelho de João situa a
purificação do templo no início do ministério de Jesus (2:14-
17), enquanto os Evangelhos Sinóticos a colocam no fim de seu
ministério (Mateus 21:12, 13; Marcos 11:15–17; Lucas 19:45,
46). As tentativas para solucionar essa dificuldade apoiam-se no
fato de que teria ocorrido somente uma purificação do templo e
que João estava mais interessado em teologia do que em
cronologia. A outra sugestão é que teria acontecido duas
purificações do templo distintas - uma no início e a outra no
fim do ministério de Jesus (veja os comentários sobre 2:17).
A próxima questão diz respeito à duração do ministério de
Jesus. Considerando que João mencionou três Páscoas (2:13; 6:4;
11:55), o ministério de Jesus durou no mínimo dois anos e
provavelmente uma parcela do terceiro ano. A expressão geral
“uma festa” usada em 5:1 poderia se referir a uma quarta Páscoa,
o que somaria um período de três anos (veja os comentários sobre
5:1).
O último desafio significativo relativo a datação diz
respeito aos acontecimentos em torno da paixão. Dois pontos são
dignos de nota: 1) a hora da última ceia apresenta um problema
porque os Evangelhos Sinóticos afirmam claramente que Jesus e
Seus discípulos celebraram a Páscoa na quinta-feira à noite
(Mateus 26:17-30; Marcos 14:12-26; Lucas 22:7-39). No entanto,
certas referências em João têm levado alguns estudiosos a
entender que João situou a última ceia na noite de quarta-feira
(veja 13:1, 29; 18:28; 19:14, 31, 42). Nesse caso, então, a
crucificação teria ocorrido na tarde de quinta-feira, quando se
faziam os preparativos para a festa. Isto apontaria uma
discrepância cronológica com os Evangelhos Sinóticos (veja os
comentários sobre 13:1); 2) João apresenta Pilatos tomando sua
decisão final de crucificar Jesus na “sexta hora” (19:14), ao
passo que Marcos diz: “era a hora terceira quando O
crucificaram” (Marcos 15:25). Várias tentativas já foram feitas
para solucionar esta suposta discrepância (veja os comentários
sobre 19:14).
AUTORIA
A questão da autoria do Evangelho de João tem sido tão
amplamente discutida que é desafiador determinar o que incluir e
o que excluir neste comentário. Tendo em vista os objetivos
deste estudo, apresentaremos apenas um breve resumo das duas
amplas áreas de evidências internas e externas. Em cada uma
dessas áreas, as evidências fornecidas serão complementadas por
objeções e réplicas.
Evidências Internas
9
Assim como nos Evangelhos Sinóticos, nenhuma passagem
explícita no Evangelho de João identifica o autor. No entanto, o
Evangelho fornece algumas pistas que indicam a identidade do
autor. É de longa data o reconhecimento de que B. F. Westcott
fez a clássica apresentação das evidências internas da autoria
de João, quando observou que o autor era “um judeu, um judeu da
Palestina, uma testemunha ocular, um apóstolo e, por último, São
João, filho de Zebedeu”6.
Em primeiro lugar, o autor do Evangelho de João era judeu.
Esta afirmação é justificada pelas seguintes considerações:
1) O autor conhecia os costumes e as opiniões dos
judeus daquela época. Ele incluiu as ideias de seus
contemporâneos sobre o Messias (1:19–28, 45–49; 4:25; 6:14, 15;
7:27, 31, 41, 42; 12:13, 34). O escritor também descreveu o
costume da festa de casamento (2:1-11), o valor atribuído às
mulheres (4:27), a crença na transmissão do pecado (9:2), a
hostilidade entre judeus e samaritanos (4:9), a importância
das escolas rabínicas (7:15) e o desprezo dos fariseus pelo
homem comum (7:49).
2) O autor tinha um conhecimento preciso das observâncias
judaicas. Ele escreveu sobre batismo (1:25; 3:22, 23; 4:2),
purificação (2:6; 3:25; 11:55; 18:28; 19:31), a importância do
sábado (veja 5:10; 7:22), os requisitos da lei relativos ao
testemunho (8:17, 18), costumes funerários (19:40) e as festas
judaicas (2:13, 23; 5:1, 6:4; 7:2, 37; 10:22; 13: 1; 18:28;
19:31, 42).
3) O estilo de João é de origem judaica. Esse Evangelho foi
escrito em grego; mas seu pano de fundo é hebraico, incluindo
vocabulário, estrutura sintática e organização dos
pensamentos. O vocabulário é muito mais simples do que o de
outros livros do Novo Testamento. A estrutura sintática
geralmente emprega orações coordenadas conectadas pela conjunção
“e” ( , kai), em vez de orações subordinadas. A organização
dos pensamentos é representada geralmente pelo paralelismo
característico do hebraico. O Antigo Testamento é evidentemente
o pano de fundo das figuras utilizadas pelo autor - por exemplo,
o cordeiro, a serpente de bronze, a água viva, o maná, o pastor
e a videira.
4) O Antigo Testamento era a fonte da vida religiosa do
autor. João 4:22 afirma que “a salvação vem dos judeus”. Abraão
alegrou-se ao ver o dia de Jesus e regozijou-se (8:56). Os tipos
ou prefigurações do Antigo Testamento como a serpente de bronze
(3:14), o maná (6:32), talvez a água da rocha (7:37), bem como a
6
B. F. Westcott, The Gospel According to St. John. Cambridge: University Press, 1881; reprint, Grand Rapids, Mich.:
Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1950, v. A exposição se desenvolve nas páginas v–xxviii. Um caso similar é
apresentado em Leon Morris, The Gospel according to John, ed. rev., The New International Commentary on the
New Testament. Grand Rapids, Mich.: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1995, pp. 4–15. Veja também A. Plummer,
The Gospel According to S. John, The Cambridge Bible for Schools and Colleges. Cambridge: University Press, 1886,
pp. 25–32. Minhas observações apoiam-se nesses autores.
10
coluna de fogo (8:12) e o cordeiro pascal (19:36) são aplicados
a Jesus. Muito do que Jesus disse e fez foi para que as
Escrituras se cumprissem (13:18; 17:12; 19:24, 28, 36, 37).
Em segundo lugar, parece que o autor era um judeu
palestino. As evidências favoráveis ao autor ser um judeu
palestino apoiam-se principalmente em seu conhecimento de
topografia. É muito evidente a ênfase do autor em detalhes
geográficos, pois, regularmente, ele acrescenta informações
sobre os locais citados. “Betânia, do outro lado do Jordão”
(1:28) se distingue da Betânia “cerca de quinze estádios perto
de Jerusalém” (11:18). Caná, que não é mencionada por nenhum
escritor anterior, é “da Galileia” (2:1; veja 21:2), e o
viajante desce de Caná para Cafarnaum, na costa noroeste do mar
da Galileia (2:12; 4:47). “João estava também batizando em Enom,
perto de Salim, porque havia ali muitas águas” (3:23). Sicar era
“uma cidade samaritana... perto das terras que Jacó dera a seu
filho José. Estava ali a fonte de Jacó” (4:5, 6). O poço de Jacó
é descrito como “fundo” (4:11). Efraim se localizava numa
“região vizinha ao deserto” (11:54).
O conhecimento topográfico do autor era igualmente
significativo em relação a Jerusalém. Ele conhecia as atividades
relativas ao templo antes de sua destruição (2:14–20). Sabia
que, perto da Porta das Ovelhas, havia um tanque chamado
“Betesda” que tinha cinco pavilhões (5:2). Ele também conhecia o
tanque de Siloé, que significa “Enviado” (9:7). Por fim, ele
conhecia o Pórtico de Salomão no monte do templo, onde Jesus
passeava no inverno (10:23).
Em terceiro lugar, o autor do Evangelho era uma testemunha
ocular dos acontecimentos por ele descritos. Podemos concluir
isto com base nestes fatos:
Ele alegou estar testemunhando como uma testemunha
ocular. No início do Evangelho, ele afirmou: “vimos a sua
glória” (1:14). A palavra de onde o verbo “vimos”
( , theaomai) deriva significa ver com os olhos. Essa
declaração permite naturalmente supormos que o autor se colocou
entre as testemunhas oculares de Cristo. Uma segunda alegação
aparece em 19:35: “Aquele que isto viu testificou, sendo
verdadeiro o seu testemunho; e ele sabe que diz a verdade, para
que também vós creiais”. Ainda que se possa questionar se o
autor quis dizer que ele mesmo ou outra pessoa testificou, não
há razão conclusiva para negar que o testemunho seja do próprio
autor. Este versículo é muito semelhante a 21:24, em que “o
discípulo a quem Jesus amava” (21:20) é identificado como aquele
que escreveu o Evangelho e cujo testemunho é verdadeiro.
Uma quantidade significativa de evidências presentes no
Evangelho de João pode ser citada para apoiar que o autor foi
uma testemunha ocular. 1) Ele fez descrições vívidas de pessoas
como Nicodemos, Pedro, Tomé, Judas Iscariotes, André, Pilatos,
Maria e Marta, a mulher samaritana, o cego de nascença e
11
outros. 2) Detalhes relativos ao tempo que só poderiam ser
conhecidos por uma testemunha ocular. O autor não só deu atenção
às estações do ano e às respectivas festas judaicas, mas também
citou os dias (1:29, 35, 43; 2:1, 12; 4:40, 43; 6:22; 7:14, 37;
11:6, 17, 39; 12:1, 12; 19:31; 20:1, 26) e as horas (1:39; 4: 6,
52; 19:14). (Veja outros indicadores de tempo em 3:2; 6:16;
13:30; 18:28; 20:1, 19; 21:4.) 3) O autor citou detalhes
numéricos, como dois discípulos de João Batista (1:35), seis
talhas de pedra (2:6), cinco pães de cevada e dois peixinhos
(6:9), uns vinte e cinco a trinta estádios (6:19), quatro
soldados (19:23), quase duzentos côvados (21:8) e cento e
cinquenta e três grandes peixes (21:11). 4) O autor também
forneceu detalhes de lugares: João batizando em Betânia e Enom
(1:28; 3:23); o filho do oficial do rei estava doente em
Cafarnaum enquanto Jesus estava em Caná (4:46); Jesus estava do
outro lado do Jordão, onde João batizava no princípio (10:40).
Em quarto lugar, o autor era um apóstolo. Em várias
ocasiões, ele sabia o que as pessoas estavam pensando (2:9;
11:13; 12:16; 13:22, 28; 20:9; 21:4, 12). Ele se lembrou de
conversas que os apóstolos tiveram entre si (4:33; 16:17; 20:25;
21:3, 5, 7). Conhecia os lugares que eles costumavam frequentar
(11:54; 18:1, 2; 20:19). Conhecia as ideias equivocadas dos
apóstolos, as quais foram depois corrigidas (2:21; 11:13;
12:16).
Em quinto lugar, o autor do Evangelho era o próprio
apóstolo João. Se o autor do Evangelho de João era mesmo um
apóstolo, existe alguma evidência que sugira um apóstolo em
particular? Após a referência ao “discípulo a quem Jesus amava”
(21:20), o Evangelho diz: “Este é o discípulo que dá testemunho
a respeito destas coisas e que as escreveu” (21:24). Aqui, o
discípulo amado é descrito como aquele que de fato escreveu o
Evangelho. Permanece, no entanto, a dúvida quanto à identidade
do discípulo amado. A referência ao discípulo amado ocorre em
cinco passagens (13:23; 19:26; 20:2; 21:7, 20). Em 13:23, o
discípulo amado “estava conchegado a Jesus”; e foi este homem
que, por sugestão de Pedro, perguntou a Jesus sobre a identidade
daquele que o trairia (13:25). Em seguida, ele é mencionado ao
pé da cruz, onde Jesus confiou-lhe os cuidados de sua mãe
(19:26). Ele é visto novamente na manhã da ressurreição de
Jesus, no túmulo vazio (20:2-10). Em 21:7, o discípulo a quem
Jesus amava alertou Pedro que Aquele que estava na praia era o
Senhor. Em 21:20 e 21, assim que Jesus revelou a Pedro que seria
morto em breve, este perguntou sobre o destino do discípulo a
quem Jesus amava. Tradicionalmente, acredita-se que o discípulo
amado não é outro senão João, filho de Zebedeu. Essa conclusão
se baseia nas seguintes considerações cumulativas:
1) O fato de o discípulo amado ser um dos Doze fica claro
nos Evangelhos Sinóticos, que colocam somente os apóstolos na
cena da última ceia (Mateus 26:20; Marcos 14:17; Lucas 22:14).
12
2) O discípulo amado era próximo de Pedro. Em todas as
referências ao discípulo a quem Jesus amava (13:23; 19:26; 20:2;
21:7, 20) - com exceção do episódio em que Jesus confiou os
cuidados de Sua mãe a esse discípulo (19:26) — ele é mencionado
na companhia de Pedro. Os Evangelhos Sinóticos evidenciam que
Pedro, Tiago e João eram especialmente próximos de Jesus, pois
destacam com frequência esse “círculo íntimo”. Pedro e João são
vistos ministrando juntos em Atos 3 e 4. Novamente, eles são
vistos juntos quando os apóstolos os enviaram a Samaria para
impor as mãos sobre alguns novos convertidos (Atos 8:14).
3) O discípulo amado (21:20) estava entre os sete
discípulos que voltaram a pescar no fim do Evangelho. Entre os
discípulos enumerados em 21:2 estão “Simão Pedro, Tomé, chamado
Dídimo, Natanael, que era de Caná da Galileia, os filhos de
Zebedeu e mais dois dos discípulos [de Jesus]”. Desta lista, o
discípulo amado deve ser um dos filhos de Zebedeu ou um dos
outros dois discípulos não identificados. Após um exame
minucioso de todas as evidências internas e externas, não é
razoável concluir que o discípulo amado era um dos discípulos
sem nome. Sendo assim, ele só podia ser um dos dois filhos de
Zebedeu. Não poderia ser Tiago porque ele foi martirizado
durante o reinado de Herodes Agripa I (41–44 d.C.): Herodes fez
“passar a fio de espada a Tiago, irmão de João” (Atos 12:2). O
discípulo amado viveu o suficiente para que surgisse na igreja
primitiva rumores de que ele jamais morreria (21:23).
4) Tem sido igualmente observado que indivíduos importantes
são mencionados com distinção nesse Evangelho. Pedro é
coerentemente denominado “Simão Pedro” sempre que se ausentava
temporariamente de determinada cena (veja os comentários sobre
18:15). Tomé é tipicamente identificado por seu nome grego
“Dídimo” (11:16; 20:24; 21:2). O Judas que fez uma pergunta a
Jesus na última ceia é diferenciado do Judas “Iscariotes”
(14:22). O Judas que traiu Jesus é chamado de “Iscariotes, filho
de Simão” (6:71; 13:2, 26). Todavia, João Batista (assim
identificado nos Evangelhos Sinóticos) é simplesmente referido
como “João”. Obviamente, ele é uma pessoa importante, sendo
mencionado mais de noventa vezes no Novo Testamento. Nenhum
outro João além deste é mencionado neste Evangelho. João, o
apóstolo, era muito proeminente, e seria de esperar que ele
fosse ao menos citado - especialmente quando levamos em conta
que personagens menos relevantes são mencionados nominalmente
(como Filipe e André). Aparentemente, João, filho de Zebedeu,
seria a única pessoa que não julgaria necessário fazer uma
distinção entre si mesmo e João Batista.
13
de fato o discípulo a quem Jesus amava. Talvez a objeção mais
forte desse grupo seja que ele provavelmente não iria se referir
a si mesmo como “o discípulo a quem Jesus amava”. À primeira
vista, a objeção parece razoável. Pode soar estranho que alguém
se descreva dessa forma, pois isso parece implicar que outros
discípulos não são amados ou, pelo menos, são menos amados. O
apóstolo Paulo não deu a entender que os gálatas eram menos
amados quando disse que o Filho de Deus “me amou e a si mesmo se
entregou por mim” (Gálatas 2:20). Embora Jesus tivesse alguns
discípulos dos quais estava obviamente mais próximo - a saber,
Pedro, Tiago e João - isso não significa que Ele partilhou Seu
amor arbitrariamente. É razoável pensar que João simplesmente se
descreveu dessa forma porque estava maravilhado por ser amado
pelo Filho de Deus.
O palpite de que não seria João, filho de Zebedeu, o
discípulo amado, deu origem a possibilidades alternativas: 1)
Esse discípulo representaria o ideal simbólico de um discípulo
cristão perfeito. No entanto, a maioria dos estudiosos concorda
que o discípulo amado não era simplesmente um ideal simbólico,
mas uma pessoa histórica autêntica. 2) Talvez Lázaro fosse o
discípulo amado, com base no fato de que foi dito que ele era
amado por Jesus (11:5, 36). Mas essa hipótese cai por terra
mediante o fato de que o discípulo amado era um dos doze (veja a
página 8). Além disso, por que Lázaro seria citado nominalmente
nos capítulos 11 e 12, mas não em versículos posteriores? 3)
Alguns acreditam que João Marcos era o discípulo amado. A casa
dele ficava em Jerusalém (Atos 12:12), podendo ser esse o
endereço da última ceia. Mais uma vez, o discípulo amado era
claramente um dos doze e, tradicionalmente, Marcos já é
associado ao segundo Evangelho.
Em segundo lugar, salientam esses estudiosos que grande
parte da narrativa se passa na Judeia, sendo, portanto, esperado
que um pescador galileu se interessasse mais pela
Galileia. Embora João fosse da Galileia, na época em que o
Evangelho foi escrito, ele já tinha morado na Judeia e também em
Éfeso por vários anos. É importante lembrar que João expressa um
interesse maior por considerações teológicas. Consequentemente,
embora ele tenha dado atenção a alguns acontecimentos ocorridos
na Galileia, como o casamento em Caná, seu foco estava em
Jerusalém, aonde chegaria o tão esperado Messias, sendo depois
rejeitado.
Em terceiro lugar, questiona-se se um pescador galileu
inculto poderia ter escrito uma narrativa como o Evangelho de
João. João e Pedro “eram homens iletrados e incultos” (Atos
4:13). Essa expressão não significa que eram analfabetos ou
incompetentes. As autoridades religiosas ficaram surpresas com o
fato de Pedro e João, não sendo líderes religiosos reconhecidos,
mostrarem-se tão eloquentes e competentes. Embora seja verdade
que nenhum deles havia sido educado numa escola rabínica
14
distinta, eles estavam longe de ser incultos. Os meninos judeus
aprendiam a a ler desde cedo e, sendo João de uma família
relativamente provida de recursos (veja Marcos 1:20), era
esperado que ele tivesse alguma formação educacional.
Em quarto lugar, observa-se que João e seu irmão foram
descritos como “filhos do trovão” (Marcos 3:17). Quando os
samaritanos não quiseram hospedar Jesus, Tiago e João
perguntaram a Jesus se Ele queria que eles “mandassem descer
fogo do céu para os consumir” (Lucas 9:54). Diante dessas
observações, sugere-se que João era impaciente, iracundo, de
temperamento explosivo e até vingativo. Consequentemente,
argumenta-se que ele não poderia ter escrito um livro que
inspira tanta calma. Poderia o mesmo João que quis invocar fogo
sobre os samaritanos ter escrito com tanta benevolência sobre
essas mesmas pessoas (veja João 4)? Presumir que a índole
maligna de João o impediria de escrever o Evangelho é ignorar
não só o poder do Evangelho de transformar vidas
significativamente, mas também o fato de que, na época em que o
livro foi escrito, João era muito mais velho e mais maduro.
Em quinto lugar, as omissões e acréscimos no Evangelho de
João e o estilo do Evangelho, quando comparados aos Evangelhos
Sinóticos, costumam ser interpretados como provas de que o
Evangelho de João não poderia ter origem apostólica. Como já foi
observado, há uma série de omissões e acréscimos no Evangelho de
João comparado com os Evangelhos Sinóticos (veja a página 6). No
entanto, o que essa observação comprova? Embora o ensino por
meio de parábolas seja ausente no Evangelho de João, Jesus não
se limitou a um estilo de ensino. Os professores muitas vezes
usam estilos diferentes, segundo as circunstâncias que envolvem
o ensino. Em João, vários momentos de ensino ocorrem em
ambientes mais privados do que abertos e públicos. Visto que
João foi escrito depois dos Evangelhos Sinóticos, os cristãos
daquela época já deveriam ter ciência de muitos acontecimentos
registrados nos outros Evangelhos. A ênfase em João é geralmente
teológica. Por essa razão, o autor não teria visto necessidade
de repetir muitas coisas com as quais os cristãos já estavam
familiarizados. Acréscimos como o milagre da ressurreição de
Lázaro não são problemáticos. A tendência dos Evangelhos
Sinóticos é não registrar milagres na semana de encerramento do
ministério de Jesus. A ênfase de João está no ministério de
Jesus na Judeia, onde ocorreram os eventos da última
semana. Considerando que o Evangelho de João foi escrito algum
tempo depois dos outros três Relatos do Evangelho, pode ser que
esses Evangelhos tenham omitido o episódio de Lázaro para
proteger os membros da família que ainda viviam sob o olhar de
curiosos. João, escrevendo mais tarde, não era precisou atentar
para isso.
Em sexto lugar, uma última objeção é que, sendo João um
pescador galileu, ele não poderia ser o “outro discípulo”
15
conhecido do sumo sacerdote, que teve acesso ao pátio do sumo
sacerdote (veja 18:15, 16). O “outro discípulo” devia ser alguém
da região de Jerusalém que tinha uma posição social superior à
de um mero pescador. Entretanto, não é improvável que João fosse
conhecido do sumo sacerdote e tivesse acesso ao seu pátio. As
distinções sociais entre trabalhadores manuais e a elite culta
não eram tão significativas entre os judeus palestinos, de
maneira que o acesso ao pátio do sumo sacerdote não era um
detalhe improvável. Além disso, as evidências bíblicas sugerem
que João e sua família tinham algumas posses (cf. Marcos 1:20),
pois ele era conhecido do sumo sacerdote. Outras considerações
nessa linha de raciocínio são sugeridas nos comentários sobre
18:15, 16.
Evidências Externas
Os estudiosos concordam universalmente que no fim do
segundo século, João, filho de Zebedeu, era considerado o autor
do Evangelho. Embora os escritores anteriores (por exemplo,
Inácio, Justino Mártir e Taciano) tenham citado o Evangelho como
uma fonte de autoridade, os comentários subsequentes usariam
apenas referências específicas à autoria joanina desse
Evangelho.
Em primeiro lugar, o testemunho inquestionável mais antigo
que confere a autoria do Evangelho a João é o de Teófilo de
Antioquia (ca. 181 d.C.). Em seu tratado a Autólico, ele
mencionou João nominalmente e depois citou João 1:1-37.
Em segundo lugar, a evidência procedente de Irineu (c. 185
DC) é significativa. Ele escreveu: “João, o discípulo do Senhor,
que se recostou em Seu peito, publicou o Evangelho enquanto
morava em Éfeso, na Ásia”8. Com base nos escritos de Eusébio de
Cesareia, Irineu alegou como sua autoridade Policarpo, o qual,
dizem ter se relacionado com os apóstolos9. A data geralmente
aceita para o martírio de Policarpo é 156 d.C., quando ele tinha
oitenta e seis anos de idade. Consequentemente, não há razão
legítima para se contestar que ele se relacionava com alguns dos
apóstolos na Ásia. Outra referência significativa a Policarpo
pode ser encontrada na carta de Irineu a Florino. Nessa carta,
Irineu destaca a sua recordação de infância de ter visto Florino
com Policarpo e do discurso deste com João e outros que viram o
Senhor10. Com base na evidência de Policarpo, Irineu aceitou João
como o autor do Evangelho e Éfeso, como o local de origem desse
Evangelho.
Em terceiro lugar, Clemente de Alexandria (ca. 190 d.C.)
atribuiu a autoria do Evangelho a João. Ele afirmou que João
7
Teófilo, Apologia a Autólico 2.22.
8
Irineu, Contra Heresias 3.1.1; também citado em Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica 5.8.4. Além disso,
consulte Irineu, Contra Heresias 2.22.5; 3.3.4; também citado em Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica 3.23.3.
9
Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica 4.14.3–8.
10
Ibid., 5.20.4-8.
16
escreveu uma obra suplementar aos Evangelhos anteriores (veja a
seção “Propósito e Leitores”, na página 15). De acordo com
Eusébio, Clemente disse: “Quanto a João, o último, sabendo que o
corpóreo já estava exposto nos [outros] Evangelhos, estimulado
por seus discípulos e inspirado pelo sopro divino do Espírito,
compôs um Evangelho espiritual”11.
Em quarto lugar, outra evidência externa pode ser
encontrada nos prólogos anti-marcionitas dos Evangelhos. Marcion
(ca. 140 d.C.) estava convencido de um cânone do Novo Testamento
limitado e incluiu somente dez cartas de Paulo e o Evangelho de
Lucas. Seus ensinamentos deram origem aos chamados prólogos
antimarcionitas (ca. 150-180 d.C). Embora o texto esteja
deturpado, o prólogo antimarcionita a João dá testemunho da
autoria de João, sugerindo que ele ditou o Evangelho a um de
seus discípulos enquanto estava na Ásia12.
Em quinto lugar, uma importante fonte de evidências é o
Cânon Muratoriano (ca. 190 d.C.). Este fragmento da literatura
cristã primitiva compreende talvez a lista mais antiga da
maioria dos livros do Novo Testamento. Foi descoberto por
Muratori (1672–1750), um padre católico romano italiano. Essa
obra literária alega que o Evangelho veio de João após André
receber um sonho ou visão de que João deveria assumir a tarefa
de escrever em seu próprio nome, mas que outros deveriam revisar
a obra13. Embora possa se contestar se André sobreviveu até a
conclusão da produção do Evangelho, não há base para contestar
que João participou da redação desse livro.
Poderíamos ainda ressaltar várias evidências indiretas da
autenticidade do Evangelho de João, mas o testemunho direto da
autoria de João é forte e suficiente para o escopo deste
comentário. O próprio testemunho interno do Evangelho, conforme
já observamos, fortalece ainda mais as evidências externas.
17
identidade do João autor do Evangelho, pois seu testemunho se
fundamentou em recordações de infância. H. P. V. Nunn julgou
difícil acreditar que o povo da Ásia sabia que o autor não era o
apóstolo, mas não corrigiu a alegação equivocada de Irineu e
questionou: “Como foi que, quando Irineu, na segunda metade de
sua vida, promulgou sua declaração totalmente infundada de que o
apóstolo escreveu o Evangelho, todos acreditaram nele tanto no
Oriente como no Ocidente?”14 Guthrie observou que “a confiança no
testemunho de Irineu apoia-se no reconhecimento de que todos os
seus sucessores assumem a autoria apostólica do evangelho sem
levantar dúvida (Tertuliano, Clemente de Alexandria,
15
Orígenes)” . Parece razoável concluir que se eles estavam
ecoando as evidências de Irineu, deviam considerar sua opinião
legítima.
Em segundo lugar, a evidência de Irineu tem sido
descartada com base no fato de que ele confundiu o apóstolo João
com João, o Presbítero. A base para esse argumento está numa
declaração de Papias, citada por Eusébio:
18
primeiro grupo que já eram mortos na época em que Papias estava
escrevendo. Consequentemente, o verbo “estão dizendo” deve
referir-se à próxima gêneros, o que implica que a segunda
referência a João, o Presíbero, deve ser a uma pessoa diferente,
um contemporâneo de Papias que não tinha visto os apóstolos. No
entanto, como disse Everett F. Harrison:
19
Everett F. Harrison, Introduction to the New Testament. Grand Rapids, Mich.: Wm. B. Eerdmans Publishing
Co., 1971, p. 220.
20
D. A. Carson, O Comentário de João. Trad. Daniel de Oliveira e Vivian Nunes do Amaral. São Paulo: Shedd
Publicações, 2007, p. 71.
19
residisse em Éfeso, Inácio teria dito algo sobre ele. A crítica
não tem muito peso, pois um homem destinado ao martírio em Roma
naturalmente estaria mais interessado em Paulo (que foi
martirizado) do que em João (que morreu de morte natural).
Em quarto lugar, a atribuição da autoria do Evangelho ao
João foi rejeitada por uma seita da Ásia Menor que surgiu por
volta de 170 d.C., chamada de “Alogi”. O nome dessa seita é um
trocadilho que significa que eram ilógicos e contra a doutrina
do (logos). Eles foram mencionados por Epifânio como tendo
rejeitado a autoria de João, atribuindo o Evangelho, juntamente
com o livro do Apocalipse, ao gnóstico Cerinto21. Os alogi talvez
fossem a mesma seita que Irineu mencionou como tendo rejeitado o
Evangelho e as promessas do Espírito Santo22. A oposição deles
provavelmente não era tanto à autoria, mas opunham-se aos
montanistas, que enfatizavam certas doutrinas como a do Logos e
a do Espírito Santo23. Os montanistas se originaram no segundo
século como um movimento intelectual que enfatizava a obra do
Espírito Santo. Não se deve dar muito peso às posições
dogmáticas sustentadas por esse grupo, que acabou desaparecendo
por volta de 220 d.C.
Em quinto lugar, alega-se que João não poderia ser o autor
do Evangelho por ter sofrido o martírio anteriormente. Isto se
baseia em dois escritores, Filipe de Side do século V e George
Harmartolus do século IX. Esses homens registraram declarações
atribuídas a Papias que indicam que João e Tiago foram mortos
pelos judeus. Em Harmartolus, a declaração se apoia numa citação
de Marcos 10:39. A incoerência dessa alegação pode ser vista de
diferentes maneiras. 1) Tiago, o irmão de João, foi morto por
ordem de Herodes, não dos judeus (Atos 12:1, 2). 2) Marcos 10:39
não implica necessariamente no martírio de Tiago e João. Somente
procurando com rigor é que poderia se detectar o martírio na
passagem. Jesus estava apenas predizendo que ambos participariam
de Seus sofrimentos. 3) Irineu e Eusébio, que afirmavam que João
viveu até uma idade avançada em Éfeso, conheciam as obras de
Papias, mas nunca se referiram ao suposto martírio de João 24. 4)
Atos 12:1 e 2 diz que Herodes ordenou que Tiago, o irmão de
João, fosse morto à espada, mas não diz nada sobre João ser
morto. Além disso, Gálatas 2:9, escrito após o martírio de
Tiago, descreve João como um dos pilares ou colunas da igreja.
Resumindo, com base nas críticas à autoria de João, os
argumentos apresentados estão longe de ser conclusivos. As
evidências de Teófilo, Irineu, Clemente de Alexandria e outros
escritores do segundo século a respeito da autoria do Evangelho
21
Epifânio, Panarion 51.3.
22
Irineu, Contra Heresias 3.11.9. Certa tradução inglesa de Irineu confunde os hereges com os montanistas, porém
essa seita não é citada no texto latino.
23
C. K. Barrett, The Gospel According to St. John, 2a. ed. Filadelfia: Westminster Press, 1978, pp. 103–4.
24
John A. T. Robinson, Redating the New Testament. Londres: SCM Press, 1976, pp. 254–311.
20
de João são fortes. As evidências externas, juntamente com as
evidências internas, que são mais importantes, levam à conclusão
de que João, filho de Zebedeu, foi realmente o autor do
Evangelho que leva seu nome.
25
Westcott, p. 81.
26
Irineu, Contra Heresias 2.22.5; 3.3.4.; também citado em Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica 3.23.3.
27
Jerônimo, Dos Homens Ilustres 9.
21
tradição observa ainda que João foi o último dos escritores do
Evangelho a compor sua obra28.
2) Em geral aceita-se que, se João conhecia os Evangelhos
Sinóticos, então seu Evangelho teria sido escrito
posteriormente. Muito pouco de seu conteúdo é encontrado nos
outros três relatos. Presume-se que as personagens do Evangelho
de João que também aparecem nos Evangelhos Sinóticos são
conhecidas dos leitores de João. Ao contrário disso, Nicodemos,
que só é mencionado no Evangelho de João, é claramente
identificado.
3) Alguns estudiosos encontraram apoio para uma data
posterior no silêncio do Evangelho sobre alguns detalhes. Por
exemplo, João nada diz sobre os saduceus, os quais desempenharam
um papel significativo durante o ministério de Jesus, porém
muito menos relevante após a destruição do templo. Deve-se ter
cautela ao atribuir demasiado peso a isso, uma vez que “João
também é similarmente lacônico em relação aos escribas, cuja influência aumentou após 70 d.
C.”29 Esse Evangelho também se cala com respeito à destruição do
templo, um acontecimento que o apóstolo quase certamente teria
destacado, se tivesse escrito pouco depois de 70 d.C., ano em
que o templo foi destruído. Por outro lado, se o Evangelho de
João foi escrito mais tarde, o texto pode simplesmente ter
presumido o fato da destruição do templo. Novamente, não se deve
dar muito peso a argumentos baseados no silêncio. No entanto,
esses argumentos, quando somados a outras considerações, parecem
apontar para uma data posterior.
Embora seja difícil determinar a data da composição do
Evangelho de João, parece claro que ela não seria nem anterior
nem imediatamente posterior a 70 d.C., nem no segundo século.
Após todas as considerações, o peso das evidências sugere uma
data dentro das últimas duas décadas do primeiro século, entre
80 e 95 d.C.
O lugar de onde o Evangelho de João foi escrito é
tradicionalmente Éfeso. Perto do fim do primeiro século, as
evidências parecem mostrar que discípulos na Ásia pediram a João
que escrevesse um relato da vida e dos ensinamentos de
Jesus. Sem dúvida, João já havia proclamado o conteúdo do
Evangelho oralmente, e os discípulos desejavam que essa
proclamação fosse preservada para sempre. Alguns estudiosos
defendem Éfeso como local de origem do livro apoiados no fato de
o Evangelho de João ter sido usado pelos montanistas, que em sua
maioria se baseavam na Frígia, não muito longe de Éfeso. Outros
apontam para o papel desempenhado por João Batista no
Evangelho. Discípulos de João em Éfeso levantaram dúvidas
relativas ao batismo de Joãos (Atos 19:1-7), e essas dúvidas
28
Irineu, Contra Heresias 3.1.1; Clemente de Alexandria, Hipóteses, conforme citado em Eusébio de Cesareia,
História Eclesiástica 6.14.7.
29
Carson, p. 84.
22
talvez ainda não tivessem sido completamente sanadas no momento
da composição do Evangelho. O argumento mais forte em favor de
Éfeso é o que se encontra no testemunho patrístico
unânime30. Nenhum outro local foi identificado pelos escritores
da antiguidade.
Antioquia talvez seja a alternativa mais difundida como
local de origem do Evangelho de João. Os escritos de Inácio de
Antioquia parecem indicar uma dependência literária de
João. Além disso, nota-se que as Odes de Salomão, que, conforme
se presume, são oriundas da Síria, contêm similaridades com este
Evangelho.
Alexandria ou alguma outra cidade do Egito também são
outras sugestões de local de origem de João. Já foi observado
que o manuscrito mais antigo de João foi achado no
Egito. Alexandria era a cidade em que Filo residia, e seus
escritos contêm alguns interesses em comum com João. Além disso,
os gnósticos fizeram uso de João, e o Egito foi importante para
o crescimento e desenvolvimento do gnosticismo. Propõem os
estudiosos que isso se deve à existência do Evangelho de João no
Egito.
A origem do Evangelho de João não pode ser determinada pelo
texto em si. Tem-se mostrado plausível a opção de Éfeso como
local da escrita. Nada na tradição dá sustentação às outras duas
sugestões. Consequentemente, à luz do testemunho do segundo e
terceiro séculos, Éfeso é a sugestão mais razoável para o local
de origem do Evangelho de João.
PROPÓSITO E LEITORES
Como acontece com outras características do Evangelho de
João, o propósito do livro tem sido amplamente debatido, gerando
uma variedade de conclusões.
Primeiramente, a tentativa mais antiga de analisar o
propósito de João talvez tenha sido a de Clemente de Alexandria,
segundo o qual João escreveu para complementar os Evangelhos
anteriores. Escreveu Clemente: “Quanto a João, o último,
sabendo que o corpóreo já estava exposto nos Evangelhos,
estimulado por seus discípulos e inspirado pelo sopro divino
do Espírito, compôs um Evangelho espiritual“31. Isto levanta a
questão da relação do Evangelho de João com os Evangelhos
Sinóticos. Desta perspectiva, presume-se que João teve acesso
aos outros Evangelhos e, insatisfeito com o conteúdo deles,
complementou-os com um conteúdo diferenciado. É difícil
determinar, com bases puramente literárias, se João dependeu de
um ou mais dos Evangelhos Sinóticos. Parece claro pelo próprio
Evangelho que João já esperava que seus leitores conhecessem os
outros relatos do Evangelho. Nesse caso, a omissão do conteúdo
30
Irineu, Contra Heresias 3.1.1; veja Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica 3.1.1.
31
Clemente de Alexandria, Hipóteses; conforme citado em Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica 6.14.7.
23
presente nos sinóticos não deveria causar surpresa. João tinha
seu próprio propósito (20:31) que norteou o que ele decidiu
incluir e excluir em sua obra particular.
Em segundo lugar, afirma-se que o Evangelho de João foi
escrito com o propósito de substituir os Evangelhos
Sinóticos. Guthrie observou que, se fosse esse o caso, “o
evangelho apresentaria um relato incompleto e inadequado do
ministério de Jesus. Ele precisa dos sinóticos para torná-lo
inteligível...”32 Na época em que o Evangelho de João foi
escrito, os outros Evangelhos já existiam há anos e é difícil
imaginar que alguém pensasse que João teria sido escrito para
substituir algum destes.
Em terceiro lugar, argumenta-se que o Evangelho de João
foi escrito como uma polêmica contra os judeus incrédulos. Os
argumentos em favor disso apoiam-se na forma como a expressão
“os judeus” é usada em todo o Evangelho. Ela ocorre mais de
sessenta vezes no livro, muito mais do que em todos os
Evangelhos Sinópticos juntos, e frequentemente denota aqueles
que eram hostis a Jesus veja os comentários sobre 1:19). Embora
haja alguma verdade no fato de que João foi escrito como
polêmica contra os judeus, isso parece ser apenas um aspecto do
Evangelho e não seu intuito principal.
Em quarto lugar, diz-se que um dos objetivos principais do
Evangelho de João era combater o docetismo, uma forma particular
de gnosticismo33. O gnosticismo é uma classificação de seitas e
religiões focadas no conhecimento experiencial do divino, em vez
da fé. O gnosticismo, como movimento, surgiu no segundo
século. Ele alegava que a matéria é má e que podemos adquirir um
conhecimento espiritual superior que é mais importante do que a
fé. Mediante a defesa de que o Evangelho de João teria sido
escrito na segunda metade do primeiro século, alegar que o
propósito principal de João era escrever uma polêmica contra o
gnosticismo parece uma suposição que extremista. No entanto,
parece justo afirmar que João estava respondendo ao ensino
docético. O docetismo (de [dokeō], “parecer”) era uma forma de
gnosticismo que surgiu dentro do cristianismo primitivo, segundo
a qual Jesus não veio em carne; Ele não era uma pessoa de carne
e osso, mas somente um espírito que apareceu aos Seus
seguidores. Leon Morris comentou que é óbvio que a heresia
docética não surgiu no primeiro século, “mas certos elementos
que seriam posteriormente incorporados nessa heresia parecem ter
surgido bem antes”34. Embora o docetismo em sua forma mais plena
não existisse no momento em que João escreveu seu Evangelho,
João foi confrontado com os que tinham uma mentalidade
docética. Em todo o Evangelho de João, há grande ênfase na
32
Guthrie, p. 286.
33
R. H. Strachan, The Fourth Gospel. Londres: Student Christian Movement Press, 1941, pp. 44–45.
34
Morris, p. 31.
24
humanidade de Jesus. Por exemplo, Jesus ficou cansado e teve
sede (4:6, 7); Ele ficou profundamente comovido e chorou no
túmulo de Lázaro (11:33-38) e possuía um corpo real que foi
açoitado (19:1) e crucificado (19:18). Pode-se ver facilmente
como o Evangelho de João (e especialmente 1 João) provou ser
útil no combate a essa heresia, mas isso não significa que era
esse o propósito principal de João.
Em quinto lugar, sugere-se que João estava escrevendo para
corrigir mal-entendidos relativos a João Batista. Atos 19:1-7
esclarece que não eram seguidores de João Batista em Éfeso que
tinham um entendimento deturpado da fé cristã. Consequentemente,
alguns comentaristas como R. H. Strachan sustentaram que pelo
menos um dos objetivos de João era reagir a alguma fagulha de
lealdade a João Batista que deveria ser direcionada a Jesus 35. O
Evangelho de João demonstra claramente que João Batista teve um
papel subordinado ao de Jesus. João foi enviado por Deus como
testemunha de Jesus (1:6–8). João se disse indigno de desatar as
sandálias de Jesus (1:27) e também afirmou: “Convém que ele
cresça e que eu diminua” (3:30). Embora Jesus tenha confirmado a
relevância do testemunho de João, Ele disse que Seu testemunho
era maior do que o de João (5:33–40). Parece evidente que os
mesmos ensinamentos relativos ao papel de João Batista podem ser
encontrados nos Evangelhos Sinóticos. Consequentemente, João
poderia tem em mente alguns dos seguidores de João Batista ao
registrar as observações iniciais em seu Evangelho, porém isto
não justifica que fosse esse um de seus propósitos principais ao
escrever.
Em sexto lugar, alguns pensam que o Evangelho foi escrito
para se opor aos mestres cristãos que colocam muita ou pouca
ênfase nos ritos do batismo e da ceia do Senhor 36. A opção que o
intérprete escolhe depende de quanto ele pensa que João discutiu
ou não discutiu esses ritos. Alguns estudiosos afirmam que nem o
batismo nem a ceia do Senhor são o foco deste Evangelho.
Anderson observou: “Se o Evangelho de João fosse o único livro
do Novo Testamento de que dispomos, não haveria nenhuma base
bíblica para os ritos cristãos do batismo e da comunhão”37. Por
outro lado, Oscar Cullmann disse que sua intenção era “mostrar
como o Evangelho de João considera uma de suas principais
preocupações estabelecer a conexão entre o culto cristão
contemporâneo e a vida histórica de Jesus...”38 Esse comentarista
argumenta que, apesar de Jesus ter se referido realmente ao
batismo quando falou do novo nascimento em João 3 (veja os
comentários sobre 3:5), a ceia do Senhor propriamente dita não é
o assunto comentado em João 6 (veja os comentários sobre 6:51–
35
Strachan, pp. 109-10.
36
Morris, pp. 32-33.
37
Anderson, p. 228.
38
Oscar Cullmann, Early Christian Worship. Londres: SCM Press, 1953, p. 37.
25
58). Obviamente, o Evangelho de João corrigiria qualquer
ensinamento errado a respeito de qualquer rito, se de fato
existisse tal ensinamento, mas afirmar que esse é o propósito
principal do Evangelho ultrapassa claramente as evidências
encontradas no Evangelho.
Em sétimo lugar, alguns entendem que o propósito do
Evangelho de João é apresentar sua mensagem num estilo
helenístico para o mundo gentio. Tendo isso em vista, a vida e
os ensinamentos de Jesus são explicados em termos religiosos
compreensíveis à mente grega. O representante clássico desse
ponto de vista é C. H. Dodd, que afirmou que o Evangelho de João
deve ser interpretado contra um pano de fundo
helenístico39. As evidências em favor desse pensamento encontram-
se supostamente no Prólogo, sobretudo na ênfase no Logos, um
conceito que seria conhecido de certos gregos, e no hábito
joanino de explicar determinados vocábulos judaicos como “rabi”
(1:38). Além disso, as expressões “outras ovelhas” (10:16) e os
“que andam dispersos” (11:52) referem-se aos gentios. Em 12:20,
João se refere aos gentios de nascença que falavam a língua
grega. No entanto, o fato de o Evangelho conter mais
características judaicas do que se pensava anteriormente é
confirmado pelos Rolos do Mar Morto. Essa descoberta parece
indicar que vocábulos, antes considerados de origem grega, de
fato pertenciam aos judeus na época em que o Evangelho de João
foi escrito. Consequentemente, apesar de João lançar um apelo
aos gentios, parece evidente que o pano de fundo predominante é
judaico.
Finalmente, o Evangelho foi escrito para gerar fé em
Jesus. Entende-se o propósito de João prestando atenção ao que o
próprio João disse:
39
C. H. Dodd, The Interpretation of the Fourth Gospel. Cambridge: University Press, 1953, p. 9.
26
evidências nos manuscritos favoreçam o aoristo, não se pode
determinar a interpretação correta com base na variante textual.
Parece evidente, segundo a primeira frase dessa declaração
de propósito (20:31), que o objetivo primário do Evangelho de
João era evangelístico: “para que creiais que Jesus é o Cristo,
o Filho de Deus”. Parece igualmente óbvio que quem cresse
saberia que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus. O título “Cristo”
se refere ao Messias e significa “O Ungido”. O significado desse
título seria mais plenamente relevante para o povo
judeu. Somente no Evangelho de João o título “Messias” ocorre em
sua forma transliterada (veja 1:41; 4:25). W. C. van Unnik
argumentou que a pregação de Paulo nas sinagogas da Dispersão
era a mesma de João, que apresentou Jesus como o
40
Cristo . Harrison comentou: “Isso sugere que o Quarto Evangelho
dirigiu-se principalmente aos judeus da Dispersão e, de fato,
manifesta um forte interesse pelos que estão fora de sua terra
(7:35; 10:16; 11:52)”41. João possivelmente escreveu com o
propósito específico de evangelizar judeus da Dispersão e
prosélitos do judaísmo.
O pano de fundo no qual João foi escrito era
consideravelmente diferente daquele em que os fatos registrados
ocorreram. Na época em que o livro foi escrito, os cristãos
começaram a se dispersar para fora das cidades em que
residiam. Após a destruição de Jerusalém em 70 d.C., muitos
judeus seguiram um caminho que havia sido trilhado antes por
outros judeus. Desde o exílio na Babilônia, muitos judeus viviam
fora da Palestina entre as populações gregas. Em meados do
primeiro século, provavelmente havia mais judeus morando fora de
sua terra natal do que nela. Essa ampla dispersão da população
judaica por todo o Império Romano é denominada “Diáspora”. O
contexto da Diáspora trouxe desafios únicos para as comunidades
judaicas. Longe do templo, os judeus enfrentaram o desafio de
sobreviver sem um sistema sacrificial. Andreas J. Köstenberger
observou que a destruição do templo em 70 d.C. foi “um episódio
traumático que deixou o judaísmo num vazio nacional e religioso
e fez com que os judeus procurassem meios de dar seguimento aos
seus rituais e sua adoração”42. Foi nesse contexto que João
aproveitou a oportunidade de apelar para que os judeus da
Diáspora e os prosélitos se convertessem a Jesus, a nova
localização da presença de Deus na terra. Jesus substituiu o
templo e tudo o que ele significava para a vida e o culto
judaicos (veja os comentários sobre 2:21, 22). Robinson comentou
que a “preocupação predominante de João era que ‘a grave recusa'
dos conterrâneos de Jesus em recebê-lo em sua terra natal não se
40
W. C. van Unnik, “The Purpose of St. John’s Gospel”, em Studia Evangelica, vol. 1, ed. Kurt Aland, F. L. Cross, Jean
Danielou, Harald Riesenfeld e W. C. van Unnik. Berlim: Akademie-Verlag, 1959, pp. 395–411.
41
Harrison, p. 226.
42
Andreas J. Köstenberger, John, Baker Exegetical Commentary on the New Testament. Grand Rapids, Mich.: Baker
Academic, 2004, p. 8.
27
repetisse entre outras ovelhas do rebanho de Deus, entre as
quais ele encontrara refúgio”43.
Se os argumentos acima estiverem corretos, convém ressaltar
alguns esclarecimentos. 1) “Isto não significa que o Evangelho
de João foi um documento evangelístico escrito diretamente para
incrédulos.”44 João provavelmente escreveu seu Evangelho para
capacitar crentes a proclamar a mensagem de que Jesus é o
Cristo, o Filho de Deus, a incrédulos entre os quais viviam. 2)
Além disso, não significa que o Evangelho de João dirigiu-se
unicamente a judeus da Diáspora e prosélitos. Com certeza, “a
salvação vem dos judeus” (4:22); porém, dali ela haveria de
prosseguir rumo aos gentios (veja 10:16). O Pai deu seu próprio
Filho “para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a
vida eterna” (3:16; veja Romanos 1:16). 3) Além disso, não
significa que o Evangelho de João não é relevante para os
cristãos de hoje. A ênfase de João em geral é encorajar os
leitores a crer, ao mesmo tempo em que, nos capítulos 13 a 21, a
ênfase parece ser encorajar os leitores a continuar a crer. O
Evangelho de João é sobre fé, e permeia duas vertentes:
evangelização e edificação. João queria que as pessoas cressem
em Jesus e, a seguir, entendessem o que significa permanecer
nele.
43
John A. T. Robinson, Twelve New Testament Studies, Studies in Biblical Theology, 34. Londres: SCM Press, 1962, p.
125.
44
Andreas J. Köstenberger, Encountering John: The Gospel in Historical, Literary, and Theological Perspective. Grand
Rapids, Mich.: Baker Academic, 1999, p. 28.
28
JESUS - O VERBO SE FEZ CARNE
Prólogo (1:1-18)
45
Raymond E. Brown, The Gospel According to John (i–xii), The Anchor Bible, vol. 29. Garden City, N.Y.: Doubleday &
Co., 1966, p. 1.
46
Adaptado de John A. T. Robinson, Twelve More New Testament Studies. Londres: SCM Press, 1984, p. 68. As
correlações da narrativa com João Batista foram excluídas.
29
O Prólogo não é apenas um prefácio do livro, como o que
Lucas escreveu em seu Evangelho (Lucas 1:1-4). Assim como o
prelúdio estimula o interesse pelo programa a ser assistido, o
Prólogo prepara os leitores para os grandes temas que virão. Nos
primeiros dezoito versículos, os temas apresentados no corpo do
Evangelho incluem a ênfase de João em “vida” e “luz” (1:4, 5, 7-
9); “testemunha” (1:7; veja 1:15); “mundo” (1:10) e “glória”,
“graça” e “verdade” (1:14, 17). C. H. Dodd escreveu que o
Prólogo é o “contorno do esqueleto... a ser preenchido com
detalhes concretos do evangelho como um todo”3.
Se o Prólogo serve como uma espécie de introdução ou esboço
do restante da narrativa, é importante determinar seu tema
central. Segundo alguns, a ênfase do Prólogo é que “o Verbo se
fez carne” (1:14). A expressão “o Verbo”, usada somente quatro
vezes no Prólogo (três vezes em 1:1) e não repetida em outros
versículos de João, é um pensamento central do livro. Pode ser
que o prólogo não seja tanto sobre o Verbo fazer-se carne, mas
sobre a resposta dos seres humanos ao Verbo. Vários estudiosos
chamaram a atenção para isso e citaram a análise literária
quiástica de R. Alan Culpepper4. Um quiasmo é um estilo de
escrita específico que usa um padrão repetitivo para dar
ênfase. Quando examinamos o início e o fim do Prólogo e
prosseguimos até a metade, certos paralelos se evidenciam. Essa
análise faz de 1:12b (“deu-lhes o poder de serem feitos filhos
de Deus”) o ponto central em torno do qual o quiasmo gira.
[artwork from page 19]
30
no desenvolvimento de sua narrativa demonstra que o Verbo se
fez carne para que os seres humanos fossem feitos filhos de
Deus. Isto condiz com a declaração do propósito de João de que
as coisas que ele escreveu eram “para que creiais que Jesus é o
Cristo, o Filho de Deus; e que, crendo tenhais vida em seu nome”
(20:31). O Prólogo, portanto, não é somente sobre o Verbo se
fazer carne ou apenas sobre a resposta dos seres humanos, mas
também e acima de tudo sobre o Verbo se fazer carne para que os
seres humanos respondam com fé e, assim, tenham vida.
Embora a estrutura do Prólogo continue a ser objeto de
debate, no que tange ao escopo deste comentário, ela se divide
em cinco seções. Cada uma enfatiza algum aspecto do Verbo: o
Verbo e Deus (1:1, 2), o Verbo e a Criação (1: 3-5), o Verbo e
João Batista (1:6-8), o Verbo Encarnado (1:9–14) e a Unicidade
do Verbo (1:15–18). Essas seções incorporam a essência de todo o
Evangelho e são desenvolvidas ao longo do restante do
Evangelho. Ao contrário dos escritores sinóticos, João usou uma
abordagem estritamente teológica, não biográfica ou
histórica. João foi preciso tanto nos detalhes biográficos como
nos históricos, mas seu propósito era escrever uma interpretação
mais do que uma crônica. Ele apresentou Jesus como o Verbo que
se fez carne, uma figura histórica; e ele forneceu evidências
contundentes de que essa figura é, de fato, o Cristo, o Filho de
Deus. As evidências de João foram convincentes para ele e outras
pessoas de sua época, e foram preservadas por gerações.
O VERBO E DEUS (1:1, 2)
66
Leon Morris, The Gospel according to John, ed. rev., The New International Commentary on the New Testament.
Grand Rapids, Mich.: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1995, p. 103.
31
pensavam nos deuses como seres separados do mundo e bastante
indiferentes ao estado de existência humana. 2) Não podemos
ignorar que 1:1 chama a atenção imediatamente para Gênesis 1:1
(“No princípio”), ao passo que a ideia de “Verbo” chama a
atenção para a repetida frase em Gênesis 1: “Então disse Deus”.
Além disso, assim como Moisés, João usou as palavras “vida”,
“luz” e “trevas”. Na mente judaica, o Verbo focava uma pessoa,
não uma força impessoal abstrata. O Verbo é um agente eficiente
para cumprir a vontade de Deus (veja Salmos 33:6), talvez “uma
descrição de Jesus do [Antigo Testamento] que o designa como o
sublime e último Revelador da sabedoria e do poder de
Deus”7. Assim como as palavras revelam o coração e a mente de um
indivíduo, Jesus revelou e explicou Deus (veja 1:18). Não
importa o pano de fundo desse vocábulo, João estava fazendo uma
alegação que judeus e gregos compreenderiam igualmente. Ele
escolheu um termo de uso comum; mas o usou para se referir a um
ser divino que é a expressão da vontade de Deus, o poder
criativo e sustentador do universo (veja Colossenses 1:15–17).
Em primeiro lugar, João ressaltou a eternidade do Verbo,
ou Logos: No princípio. Enquanto o Evangelho de Marcos começa
com o batismo de Jesus e os Evangelhos de Mateus e Lucas começam
com o nascimento de Jesus, o Evangelho de João traz o leitor de
volta ao propósito eterno de Deus. A frase introdutória de João
parece ser uma alusão ao primeiro livro da Bíblia hebraica,
Gênesis, intitulado segundo suas palavras de abertura: “No
princípio”. Gênesis começa com a criação e o Evangelho de João
começa antes da criação. O Verbo já existia antes de tudo. A
importância de “no princípio” se evidencia quando contrastada
com “desde o princípio” em 1 João 1:1. Na carta joanina,
destaca-se o que ocorreu desde o princípio; no Evangelho,
declara-se que o Verbo estava lá no princípio.
A existência atemporal do Verbo é sublinhada pelo verbo
era ( , en), imperfeito de (eimi), que significa “ser”. Neste
contexto, o termo denota um ser imutável, eterno. É
significativo que o vocábulo usado seja (ēn), que implica
existência eterna, em vez de (egeneto), que significa “vir à
existência” (veja 1:3, 6, 14). O versículo 6 diz: “Houve
[‘surgiu’, NVI; egeneto] um homem enviado por Deus cujo nome era
João”. João Batista “veio” a existir, porém o Verbo “era” no
sentido de existir eternamente. B. F. Westcott resumiu essa
distinção assim: “...São João eleva nossos pensamentos
para além do princípio e se detém naquilo que ‘era’ quando o
tempo, e com o tempo o ser finito, iniciou seu curso” 8. João
mostrou que o Verbo existe por toda a eternidade e refutou a
77
Cleon L. Rogers Jr. e Cleon L. Rogers III, The New Linguistic and Exegetical Key to the Greek New Testament. Grand
Rapids, Mich.: Zondervan Publishing House, 1998, p. 175.
88
B. F. Westcott, The Gospel According to St. John. Cambridge:. University Press, 1881; reimpressão, Grand Rapids,
Mich .: Wm B. Eerdmans Publishing Co., 1950, p. 2.
32
ideia de que Jesus era um ser criado (um falso ensino sustentado
pelos antigos arianos, bem como por alguns grupos modernos9).
Em segundo lugar, João enfatizou a personalidade do
Verbo: O Verbo estava com Deus. A preposição grega (pros,
“com”) pode sugerir a tradução “com Deus”, que indica
acompanhamento, ou a tradução “em direção a Deus”, que mostra
relacionamento. Esses conceitos são tão importantes que João
repetiu a expressão em 1:2. O Verbo existia no princípio, e Ele
existia no relacionamento mais íntimo possível com o Pai. A
preposição pros é usada em passagens como Marcos 6:3, em que
alguns ouvintes de Jesus, admirados, perguntaram: “E não vivem
aqui entre nós suas irmãs?” (grifo meu). Merrill C. Tenney
observou que essa preposição “implica associação no sentido de
livre interação com os elementos de outra comunidade em
condições de igualdade”10. O Logos e Deus não existem apenas lado
a lado, mas estão em constante comunhão um com o outro. Isso
mostra uma diferenciação entre os dois e refuta qualquer ideia
que sugeriria que o Logos e Deus são idênticos (um falso ensino
promovido pelos antigos sabelianos e por alguns grupos atuais11).
Em terceiro lugar, João examinou a natureza pessoal do
Verbo: O Verbo era Deus. Nessa frase, a palavra grega para
“Deus” ( , Theos) é empregada sem o artigo, diferente da
segunda frase em que ocorre o uso do artigo. João
aparentemente excluiu o artigo aqui, para não deixar “o Verbo” e
“Deus” idênticos. Sem o artigo, a ênfase está na qualidade,
indicando Deus como uma espécie de ser - a saber, Aquele que
possui a própria essência da Divindade12. Assim, a frase
identifica o Verbo como sendo plenamente Deus13, sem identificá-
lo como Deus Pai (veja 1:14, 18).
Traduzir a sentença por “a Palavra era [um] deus”, como faz
a Tradução do Novo Mundo (TNM)14, é negar a eternidade da
Palavra, ou seja, do Verbo. Esta tradução é teologicamente
tendenciosa, e faltam estudos autênticos para apoiar essa
ideia. Os tradutores alegam que deve ser essa a tradução da
frase porque não há no texto grego nenhum artigo antes de Theos.
No entanto, os tradutores da TNM não seguiram essa regra
arbitrária no mesmo contexto, em que Theos sem o artigo é
99
Ário (início do quarto século) ensinou que Jesus e o Pai não possuem a mesma identidade de essência e que Jesus
era um ser criado. Esse ensino é defendido hoje pelos Testemunhas de Jeová.
1010
Merrill C. Tenney, John: The Gospel of Belief. Grand Rapids, Mich.: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1976, p. 64.
1111
Sabélio (terceiro século) ensinou que a Divindade não é composta de uma pluralidade de Pessoas, mas de
apenas uma Pessoa: Jesus, que se manifestou como o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Este ensino é atualmente
promulgado pelos Pentecostais Unidos. Veja uma exposição sobre a Divindade e os ensinamentos da Igreja
Pentecostal Unida em David Lipe e Billy Lewis, The Lipe-Lewis Debate on Pentecostalism. Winona, Miss.: J. C. Choate
Publications, 1984.
1212
Veja mais em Daniel B. Wallace, Gramática Grega: Uma Sintaxe Exegética do Novo Testamento. Trad. Roque
Nascimento Albuquerque. São Paulo: Ed. Batista Regular do Brasil, 2009, pp. 267-269.
1313
Veja 1:18; 20:28; Romanos 9:5; Filipenses 2:6; Tito 2:13; Hebreus 1:8; 2 Pedro 1:1; 1 João 5:20.
1414
Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas, ed. rev. 1986. Cesário Lange, SP: Associação Torre de Vigia
de Bíblias e Tratados das Testemunhas de Jeová.
33
traduzido por “Deus” com inicial maiúscula (veja 1:6, 12, 13,
18; TNM).
Em sua tradução da Bíblia, James Moffatt verteu a frase
para “o Logos era divino”, que parece uma opção débil. Se João
quisesse dizer “divino”, ele poderia ter usado o adjetivo
(theios); mas essa escolha não teria exprimido o significado
almejado aqui pelo autor - até porque cristãos “se tornam
coparticipantes da natureza divina” (2 Pedro 1:4). João não
disse apenas que há algo divino no Verbo/Palavra; ele afirmou
que o Verbo/Palavra (Jesus) é Deus em Sua natureza. A versão
inglesa New English Bible capta o verdadeiro significado desse
Verbo quando diz: “O que Deus era, a Palavra era”.
Versículo 2. Ele estava no princípio com Deus. Embora este
versículo nada de novo acrescente ao conteúdo do versículo 1,
ele repete as ideias sobre a eternidade do Verbo e o
relacionamento íntimo que o Verbo tem com o Pai. A repetição
desses pensamentos enfatiza a grande importância do Verbo.
34
intermédio dele, o autor deixou claro que sem o Verbo nada foi
feito: e, sem ele, nada do que foi feito se fez.
Versículo 4. A segunda verdade que João expôs é o elemento-
chave da criação, a saber, a criação da vida ( , zōē). O
vocábulo grego traduzido por “vida” é usado trinta e seis vezes
no Evangelho de João, sendo que há mais de cento e trinta
ocorrências dele em todo o Novo Testamento. Portanto, cerca de
um quarto de todas as referências à vida encontram-se no
Evangelho de João. Na maioria das vezes em João, “vida” se
refere à vida eterna, e a palavra “eterna” ( , aiōnios) é
usada dezessete vezes em João. (Mateus é o próximo na sequência,
empregando o termo seis vezes.) Neste contexto, deve-se entender
“vida” num sentido totalmente amplo da palavra. A vida está
no Logos. O Logos tem o direito e o poder de dar “vida”, de
tornar vivo (veja 5:21). Sem o Logos, não haveria vida. A vida
não existe por si mesma, mas deve sua existência ao Verbo. Outra
característica de João é o emprego de palavras com duplo
sentido, e provavelmente “vida” se encaixa neste caso. O termo
“vida”, além de ser aplicado a criaturas existentes em toda a
terra, também engloba o que existe no plano espiritual. João
regularmente associa o Verbo com a vida (veja, por exemplo,
3:16; 10:10).
O Verbo não é somente a personificação e a fonte da vida,
ele também é a fonte da luz: e a vida era a luz dos
homens (“nele estava a vida, e esta era a luz dos homens”;
NVI). O próprio Verbo, que é a própria vida, é a única
verdadeira “luz dos homens”. Assim como o primeiro resultado da
atividade criativa de Deus foi a luz (Gênesis 1: 3), toda a luz
que a humanidade possui é resultado do Verbo.
Versículo 5. Neste versículo, João começa a falar das
formas pelas quais o Verbo se manifestou. Depois de estabelecer
que o Verbo é luz, ele ressaltou que a luz resplandece nas
trevas. A ação elementar da luz ( , fōs) é resplandecer nas
trevas, dissipar as trevas. Até este ponto, o texto estava no
pretérito; mas agora muda para o presente, declarando que “a luz
resplandece”. O Verbo, a luz do mundo, resplandece, brilha
continuamente. A luz nunca cessa de brilhar “nas trevas”, uma
referência ao ambiente maligno sobre o qual o diabo reina.
As trevas não prevaleceram contra ela é a tradução da
próxima frase, na RA. O verbo grego (katalambanō;
“prevalecer”) também pode significar “prender” ou
“vencer”. Outras versões optaram por: “derrotaram” (NVI);
“suprimiram” (BJC) (veja 12:35). Portanto, a luz está
resplandecendo num ambiente maligno, e esse ambiente é incapaz
de derrotá-la. A resistência da luz às trevas e a incapacidade
das trevas de vencer a luz é um tema vital em João.
35
6 Houve um homem enviado por Deus cujo nome era João. 7
Este veio como testemunha para que testificasse a respeito da
luz, a fim de todos virem a crer por intermédio dele. 8 Ele não
era a luz, mas veio para que testificasse da luz.
36
Jesus. Apesar de João ser o “batizador”, as referências a sua
obra de batizar parecem incidentais (veja 1:24–28, 31–33; 3:23;
4:1, 2); mas o Evangelho contém referências repetidas ao seu
papel de testemunha (1:7, 8, 15, 19, 32, 34; 3:26, 28; 5:33).
O autor especificou o testemunho de várias testemunhas a
respeito da divindade de Cristo: o Pai (5:31, 32, 34, 37; 8:18),
o próprio Jesus (8:14, 18; veja 3:11, 32; 18:37), o Espírito
(15:26; veja 16:14), as obras de Jesus (5:36; 10:25; veja 14:11;
15:24), as Escrituras (5:39; veja 5:45, 46), João Batista (5:33;
veja 1:19–36) e várias testemunhas humanas (15:27; veja 19:35;
21:24). A testemunha ou o testemunho é um tema sério enquanto
meio legal de se fundamentar uma verdade particular. João
insistiu que havia boas evidências para o que ele declarou em
seu Evangelho, e ele queria que seus leitores entendessem que
suas declarações eram confiáveis.
Versículo 8. Quanto à sua posição, João Batista não era a
luz, mas veio para que testificasse da luz. O contraste entre
Jesus e João continua a ser enfatizado. William Hendriksen
observou esse contraste da seguinte maneira:
Jesus João
“era” desde toda a “Houve (ginomai) um
eternidade; homem”;
é o Verbo; era um mero homem;
é o próprio Deus; foi comissionado por
Deus;
é a verdadeira luz; testificou da luz;
é o objeto da fé. era o agente, por cujo
testemunho os homens
passaram a crer na luz,
Cristo.16
A posição de João em relação ao Verbo era de
subordinação. Isso não diminui a grandeza de João. Mateus 11:11
afirma que, “entre os nascidos de mulher, ninguém apareceu maior
do que João Batista”; no entanto, João sempre apareceu num papel
secundário. Embora cronologicamente (no sentido carnal) João
tenha vindo antes de Jesus, o Cristo tem precedência sobre ele
por ser o próprio Filho de Deus e a esperança da humanidade. A
obra realizada por João foi importantíssima porque ele chamou a
atenção das pessoas para a verdadeira luz, a única maneira de
expelir o pecado do mundo.
O VERBO ENCARNADO (1:9-14)
9 a saber, a verdadeira luz, que, vinda ao mundo, ilumina a todo
homem. 10 O Verbo estava no mundo, o mundo foi feito por
intermédio dele, mas o mundo não o conheceu. 11 Veio para o que
era seu, e os seus não o receberam. 12 Mas, a todos quantos o
1616
Adaptado de William Hendriksen, O Evangelho de João. Comentário do Novo Testamento. Trad. Elias Dantas e
Neuza Batista. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, pp. 107-08.
37
receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a
saber, aos que creem no seu nome; 13 os quais não nasceram do
sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de
Deus. 14 E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de
graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do
unigênito do Pai.
38
( , kosmos). João deu ênfase à palavra grega kosmos usando-a
três vezes em 1:10, sempre no início da frase. No primeiro uso,
ele disse que o Verbo (a luz) estava no mundo, ou seja, no
domínio habitado pelo homem. O verbo “estava” ( , ēn) exprime
a ideia de continuidade (veja os comentários sobre 1:1); Jesus
não fez somente uma visita momentânea, ele estava no mundo
continuamente. No segundo uso, João disse que o mundo foi feito
por intermédio dele, indicando que o mundo deve sua existência
ao Verbo (veja os comentários sobre 1:3). No terceiro uso, João
disse que o mundo não o conheceu. João mudou o significado de
“mundo” nesta terceira ocorrência. As duas ocorrências
anteriores referem-se à terra e a tudo o que nela existe,
enquanto esta se refere a pessoas. Consequentemente, entre os
que não receberam o Verbo estavam os seres humanos em geral;
estes não obtiveram o conhecimento intelectual de Jesus, nem
chegaram a conhecê-lo em nenhum relacionamento correto. Isto é
significativo em vista do fato de que o Verbo (a luz) veio para
iluminar todas as pessoas (1:4; 8:12; 12:46).
Versículo 11. Jesus não foi rejeitado somente por pessoas
em geral, mas também pelos seus em particular. João disse que o
Verbo veio para o que era seu ( , eis ta idia). João poderia
muito bem estar dizendo: “Jesus voltou para casa”. A mesma
expressão é usada em 16:32 referindo-se à partida dos
discípulos, cada um “para sua casa”, e também em 19:27, em que
João respondeu ao pedido de Jesus na cruz levando Maria “para
casa”. Quando o Verbo veio a este mundo, Ele não veio como um
invasor; Ele não era um estrangeiro. Ele veio para sua própria
casa. A expressão “o que era seu” se refere a Israel - tanto a
terra quanto o povo que compunha a família de Deus. Isso reforça
que o povo de Israel deveria ter conhecimento de Jesus, ou
seja, de Sua vinda e de Suas alegações. Afinal, os judeus haviam
desfrutado de muitas vantagens (veja Romanos 3:1, 2; 9:4,
5). Entretanto, João não disse que “os seus não conheceram”
Jesus quando Ele veio, mas que os seus não o receberam. O verbo
“receber” ( , paralambanō) pode se referir a dar boas-vindas
ou acolher a uma pessoa. É usado para José ao tomar Maria como
sua esposa (Mateus 1:20, 24) e para Jesus, ao receber os crentes
para si mesmo no céu (14:3). Este é o tipo de boas-vindas que
Jesus deveria ter recebido quando voltou para casa; mas seu
próprio povo, aqueles que deveriam estar reconhecê-lo,
o rejeitaram.
Quando o Verbo veio ao mundo, o mundo não o conheceu; e
quando o Verbo veio para os seus, os seus não o receberam. Por
que o rejeitaram? João sugeriu algumas razões em seu
Evangelho. 1) Alguns amavam as trevas mais do que a luz (3:19,
20). 2) Alguns tinham medo do que os outros pensavam (7:13;
9:22). 3) Alguns estavam mal informados sobre os fatos (7:40-
43). 4) Alguns foram endurecidos pelas tradições judaicas (9:13-
39
16). 5) Alguns amavam o louvor de homens mais do que o louvor de
Deus (12:42, 43).
Versículo 12. Em segundo lugar, deve-se levar em
consideração aqueles que receberam o Verbo. Enquanto alguns
rejeitaram o Verbo, outros foram receptivos a ele. João não
disse que ninguém respondeu à chegada do Verbo. Embora a maioria
das pessoas não tenha respondido a Jesus, algumas o fizeram; e a
redundante construção gramatical tantos quantos o receberam
destaca os que aceitaram Jesus. João descreveu os que receberam
Jesus como os que creem no seu nome. Isso não quer dizer que
todos os crentes são crentes autênticos (veja os comentários
sobre 2:24, 25; 12:42, 43), mas os que o recebem são aqueles que
demonstram sua fé através da obediência à vontade de Deus. Aos
que genuinamente manifestaram fé em Jesus, ele deu-lhes o poder
de se serem feitos filhos de Deus. A palavra “poder” vem de
(exousia) e não significa mera habilidade, mas “autoridade
legítima e legal”. O privilégio e o direito dos que são
receptivos a Cristo – “os que creem no seu nome” – consiste em
“serem feitos filhos de Deus”. Esse direito ou privilégio não é
inerente ao homem, mas é algo dado por Deus ao homem.
João usou o verbo (pisteuō), crer, noventa e oito
vezes, mas nunca usou o substantivo da mesma família,
(pistis). Esse fato parece sugerir que João queria que as
pessoas entendessem que fé é ação; é algo que se faz. “Crer”, ou
ter fé no sentido bíblico, é confiar em Deus, aceitar a Palavra
de Deus. A fé é uma resposta à revelação de Deus; e embora a fé
seja necessária para ser um filho de Deus, a mera crença é
insuficiente. Muitos exemplos do que significa responder a Deus
com fé podem ser dados (veja Hebreus 11). Os crentes autênticos
têm o direito, o poder ou a liberdade de ação para serem feitos
filhos de Deus; pois, em sua fé, eles se submetem humildemente a
tudo o que Deus lhes pede. O versículo revela tanto o aspecto
divino quanto o humano para sermos feitos filhos de Deus. Faz
parte da natureza de Deus dar. Toda dádiva boa e perfeita vem de
Deus (Tiago 1:17). Ele deu sua graça para cada homem (Tito
2:11), e um aspecto dessa graça é o direito (“poder”) por ele
concedido aos crentes de serem feitos Seus filhos.
Versículo 13. João descreveu os que são feitos filhos de
Deus como os quais nasceram... de Deus. Esta verdade é
apresentada detalhadamente na entrevista de Nicodemos com Jesus
(3:1-21). Esse novo relacionamento de Pai e filhos se concretiza
através de um nascimento, mas não um nascimento humano. Aqui, a
importância de ser nascido de Deus é enfatizada pela comparação
desse conceito com três descrições negativas a respeito da
origem dos filhos de Deus.
1) O privilégio de ser filho de Deus não vem do sangue. Em
outras palavras, não é produto de uma descendência física
(“descendência natural”; NVI). No texto grego, a palavra
traduzida por “sangue”, (haimatōn), está no plural e
40
significa literalmente “sangues”. Esse plural “tem sido
explicado ou como a mistura de sangue de pai e mãe, ou como um
símbolo da longa linhagem das gerações ancestrais de um
indivíduo”18.
2) O nascimento dos filhos de Deus não se dá pela vontade
da carne. O termo “carne” ( , sarx), que tem muitas conotações,
neste caso se refere ao desejo sexual. Outras possíveis
traduções seriam “desejo físico” ou “paixão humana”.
3) O novo relacionamento dos filhos de Deus não pode ser
explicado pela vontade do homem. A palavra grega para “homem” é
(anēr), que se refere especificamente a um “homem”, sendo às
vezes usada para um “marido”. A NVI traduz a frase por “vontade
de algum homem”. Pode ter o mesmo sentido que “a vontade da
carne”. Neste caso, refere-se à “iniciativa geralmente tomada
pelo homem nas relações sexuais que resultam em procriação”19.
Outra interpretação é que o significado mais geral de “vontade
do homem” é “qualquer vontade humana”, isto é, “poder somente na
vontade do homem”.
Pode-se entender essas expressões tendo em vista a
confiança dos judeus em sua origem carnal ou ancestralidade
(veja Mateus 3:9). Os judeus tinham uma firme convicção de que
Deus era favorável a eles por causa de quem eram seus
“pais”. Essas expressões enfatizam que nenhum agente humano é
nem pode ser responsável pelo novo nascimento proposto por
Jesus. Pelo contrário, nesse novo relacionamento, as pessoas
nascem “de Deus”. É Deus, e somente Ele, que pode conceder vida
espiritual. Embora nascidos de Deus, isso acontece por meio do
Verbo de Deus (veja Tiago 1:18; 1 Pedro 1:23). Os detalhes desse
nascimento são descritos particularmente em João 3:1-8.
Versículo 14. João já tinha feito alusão à encarnação
quando falou em 1:9 da verdadeira luz “que veio ao mundo”. A
seguir, ele disse que o Verbo se fez carne. João revelou o fato
surpreendente de que o Verbo, que não é nada menos do que Deus,
“se fez carne”. “Se fez” ( , egeneto) está no aoristo,
indicando uma ação que ocorrem em determinado momento. A mudança
no verbo de 1:1 é reveladora. O versículo 1 fala da natureza
eterna do Verbo, enquanto o versículo 14 fala de uma mudança de
estado em relação ao mundo dos seres humanos. “Carne” vem de
(sarx) e enfatiza que o Verbo assumiu a natureza humana. João
não se referiu à encarnação de maneira suave, dizendo “o Verbo
se fez homem” ou “o Verbo assumiu um corpo”, mas declarou
intrepidamente: “o Verbo se fez carne”. Em fins do primeiro
século, um grupo denominado “docetistas” acreditava que Jesus só
“parecia” ter vivido na carne. Jesus, para eles, era apenas um
1818
Homer A. Kent Jr., Light in the Darkness: Studies in the Gospel of John. Winona Lake, Ind.: BMH Books, 1974, p.
33, n. 15.
1919
Andreas J. Köstenberger, John, Baker Exegetical Commentary on the New Testament. Grand Rapids, Mich.:
Baker Academic, 2004, p. 40.
41
espírito ou uma ilusão enquanto estava nesta terra. Ao contrário
disso, Jesus não “pareceu” simplesmente viver uma vida humana
para evitar contaminar-se ao entrar em contato com a
humanidade; Jesus realmente se tornou carne. João expressou isso
bem em 1 João 1:1, quando escreveu que o Verbo da vida foi
ouvido, visto, contemplado e apalpado. Ele ficou cansado e teve
sede (4:6, 7); ficou profundamente comovido e chorou abertamente
(11:33, 35). Sangrou e morreu (19:1, 30, 34). Tudo isso só podia
se referir a nada menos que um ser de carne.
No versículo 14 há a primeira indicação no livro de que o
Verbo e Jesus são um só e o mesmo. Até este ponto, o leitor
poderia entender o Verbo como alguma “força” no universo; mas
agora, sem dúvida, está claro que o próprio Verbo de Deus se fez
carne. Ele se identificou com os seres humanos desde o
nascimento até a morte. George R. Beasley-Murray o expôs desta
forma: “O Logos ao se fazer sárx participou da fraqueza humana
enquanto criatura (o significado característico de ‘carne’ na
Bíblia)”20. Por que Jesus assumiu a forma de um ser humano? Ele
se fez carne para se tornar nosso Sumo Sacerdote e ser o
sacrifício pelos nossos pecados (Hebreus 2:17). Além disso,
Jesus se fez carne para se compadecer de nós (Hebreus
2:18). Jesus foi tentado em todas as coisas, assim
como nós (Hebreus 4:15). Ele não venceu a tentação somente
porque era Deus. Se fosse esse o caso, ele não poderia ser um
exemplo para nós (1 Pedro 2:21). Quando estava orando no jardim,
Jesus quis ser poupado da crucificação iminente. Podemos ser
gratos por Ele ter um desejo maior de cumprir a vontade do Pai
(Lucas 22:42).
O Verbo habitou entre nós. O termo “habitou” vem de
(skēnoō), que significa literalmente “armar a tenda”21. Comunica
a ideia de alguém se mudar para uma localidade e ali fixar
residência. Pode significar que a permanência de Jesus na terra
foi temporária - uma existência corpórea real, mas temporária.
Embora a estada de Jesus na terra tenha sido temporária, ele se
mudou para a terra. Ele cresceu num vilarejo, foi trabalhar e
sujou as mãos. Na Septuaginta (LXX), o substantivo da mesma
família, (skēnē, “tenda”), é frequentemente usado para o
tabernáculo. Além disso, o verbo derivado, (kataskēnoō), é
usado com referência ao tabernáculo onde Deus “habitava” entre o
seu povo (Números 35:34; Josué 22:19). João poderia estar
pensando que seus leitores, familiarizados com a LXX, se
lembrariam do ensino do Antigo Testamento a respeito da presença
de Deus que guiava seu povo. João estaria, então, sugerindo que
a carne de Jesus era a nova localização da presença de Deus na
terra; Jesus se fez o substituto do antigo tabernáculo.
2020
George R. Beasley-Murray, John, Word Biblical Commentary, vol. 36. Waco, Tex.: Word Books, 1987, p. 14.
2121
No Novo Testamento, skēnoō aparece outra vez somente em Apocalipse 7:15; 12:12; 13:6; 21:3.
42
A intenção de levar seus leitores a se lembrarem do
tabernáculo parece evidente na referência em 1:14 à glória de
Jesus, pois “glória” estava associada ao tabernáculo (Êxodo
40:34). A glória da presença do Senhor está ligada a Shekiná,
que significa “habitação, morada”, e refere-se à habitação de
Deus no meio do seu povo22. O corpo de Jesus era agora o local
físico da presença divina. Deus veio habitar entre seu povo de
uma maneira mais significativa - não em um tabernáculo, mas na
carne. Era possível as pessoas tocarem em Jesus; as crianças
podiam sentar-se no seu colo; as pessoas podiam comer com Ele,
andar com Ele e falar com Ele. Ele era “Deus conosco” (Mateus
1:23). O Verbo é a revelação suprema da presença de Deus entre
os homens.
João escreveu que vimos a “sua glória” indicando
testemunhas oculares entre as quais o próprio João estava
incluído (veja 1 João 1:1-3). O verbo “vimos” vem de
(theaomai), que significa “contemplar”. A palavra “teatro” da
língua portuguesa deriva do substantivo (theatron). Essas
palavras gregas sugerem mais do que um olhar casual. Envolvem um
longo e sério olhar com o objetivo de compreender a real
significância do objeto observado. Jesus voluntariamente se fez
disponível para ser questionado e examinado, e a conclusão dos
que o examinaram meticulosamente se resume na palavra “glória”.
Quando João e outros viram a glória de Jesus, eles viram sua
majestade, dignidade e esplendor exibidos na sua carne - tanto
em suas palavras como em suas obras.
Observar como a palavra “glória” é usada no Antigo
Testamento nos ajudará a entender seu sentido aqui. Além da
glória do Senhor encher o tabernáculo (Êxodo 40:34, 35), a
glória do Senhor pousou no monte Sinai (Êxodo 24:16, 17) e
apareceu durante as peregrinações no deserto (Êxodo 16:10). Essa
glória se manifestou na dedicação do templo de Salomão (1 Reis
8:10, 11) e também se revelou aos profetas (veja Isaías 6:3).
João estava bem ciente do ensino do Antigo Testamento sobre a
glória de Deus, mas ele não repetiu simplesmente esses
ensinamentos. Ele disse algo novo. Ele via a “glória” ( ,
doxa) como um elemento importante na vida de Jesus. João usou
esse substantivo e o verbo “glorificar” ( , doxazō) mais do
que qualquer outro escritor do Evangelho. Ele disse que ele e
outros viram a glória da divindade de Jesus - glória como do
unigênito do Pai. “Unigênito” vem de (monogenēs), que
significa “único”. Esta palavra enfatiza o relacionamento que o
Pai tem com o Filho. Jesus é o único Filho de Deus; e embora
nós, seres humanos, possamos ser filhos de Deus, nenhum outro
pode ser o Filho de Deus como Jesus.
2222
Apesar de “Shekiná” não aparecer na Bíblia, o conceito da presença gloriosa de Deus habitante entre
o seu povo ocorre em muitos textos (veja Êxodo 25:8; 40:34, 35; 1 Reis 6:13; 8:10, 11). Essa palavra é
usada nos Targuns.
43
A glória da divindade de Jesus pôde ser vista de diferentes
formas. 1) Ela foi vista nos sete sinais registrados por João e
nos milagres citados nos outros Evangelhos. Jesus “manifestou
Sua glória” quando realizou seu primeiro sinal em Caná,
transformando água em vinho (2:11). 2) Foi vista em seu
ensino. “As multidões” que ouviram o sermão do monte de Jesus
“ficaram maravilhadas da sua doutrina” (Mateus 7:28). Certos
oficiais relataram aos principais sacerdotes e aos fariseus:
“Jamais alguém falou como este homem” (João 7:46). 3) Foi vista
também no monte da transfiguração, onde Pedro, Tiago e João
foram “testemunhas oculares da sua majestade”. Nessa ocasião,
Jesus “recebeu, da parte de Deus Pai, honra e glória”, quando
Deus disse: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo” (2
Pedro 1:16-17). Diferente dos outros escritores dos Evangelhos,
João não descreveu o batismo de Jesus, apesar de ter sido uma
das testemunhas oculares. Se João quisesse que seus leitores
soubessem desse episódio, parece que ele teria dito algo sobre
isso. João apresentou um retrato de algo novo, quando disse:
“Vimos a sua glória”. Quando João falou da glória de Jesus, ele
não fez nenhuma tentativa de focar em um único evento - nem
mesmo na transfiguração. Além disso, ele não descreveu Jesus
como uma pessoa superior, inacessível. Pelo contrário, ele
apresentou Jesus como um servo obediente no decurso de sua
vida, que foi finalmente glorificado em sua morte (veja 7:39;
12:16, 23; 13:31, 32) e exaltado à destra de Deus (Atos 2:33;
5:31).
A glória de Deus manifestada na pessoa de Jesus era cheia
de graça e verdade. 1) Jesus é cheio de graça. João usou a
palavra “graça” ( , charis ) quatro vezes no Prólogo (1:14, 16
[duas vezes], 17) e não a usou novamente em seu
Evangelho. “Graça” significa “boa vontade” ou “bondade” e
comunica a noção que o favor demonstrado é imerecido. A graça de
Deus não pode ser vista mais plenamente do que no Verbo que se
fez carne.
2) Jesus é cheio de verdade. Geralmente a palavra “verdade”
( , alētheia) denota o oposto de “falsidade” e é usada em
João dessa forma (8:45), porém seu sentido parece mais
abrangente. Jesus estava cheio de verdade; Ele anunciou a
verdade. Ele não era um falso messias, e sim o verdadeiro
Messias. Ele não era uma sombra, e sim uma realidade. Ele era a
própria verdade (14:6).
3) Jesus é cheio de graça e verdade. Quando João falou do
Verbo como carne que se encheu de graça e verdade, ele deixou
claro que essas virtudes estão interligadas. O Verbo não é graça
somente, nem é verdade somente – o Verbo é graça e verdade. Elas
não são mutuamente exclusivas. Contemplar uma sem a outra é ter
uma visão desequilibrada do Verbo que se fez carne.
A UNICIDADE DO VERBO
(1:15-18)
44
15 João testemunha a respeito dele e exclama: Este é o de quem
eu disse: o que vem depois de mim tem, contudo, a primazia,
porquanto já existia antes de mim. 16 Porque todos nós temos
recebido da sua plenitude e graça sobre graça. 17 Porque a lei
foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram
por meio de Jesus Cristo. 18 Ninguém jamais viu a Deus; o Deus
unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou.
Versículo 15. Os versículos 15 a 18 constituem a conclusão
do Prólogo, na qual se expõe a unicidade de Jesus. Jesus é único
por sobrepujar João Batista e Moisés. Ele é o revelador do
próprio Deus. Porque 1:16 cairia muito bem após 1:14, alguns
comentaristas já pensaram que 1:15 fosse um acréscimo. Tendo
isto em mente, Brown disse:
2323
Brown, p. 15.
2424
D. A. Carson, O Comentário de João. Trad. Daniel de Oliveira e Vivian Nunes do Amaral. São Paulo: Shedd
Publicações, 2007, p. 131.
2525
Edwyn Clement Hoskyns, The Fourth Gospel, 2a. ed. Londres: Faber and Faber, 1947, p. 151.
45
sua preeminência: o que vem depois de mim tem, contudo, a
primazia, porquanto já existia antes de mim. Embora Jesus tenha
aparecido depois de João, Ele realmente já existia antes
dele. Como já foi observado, o Verbo, que se fez carne na pessoa
de Jesus Cristo, existe desde toda a eternidade. A pré-
existência de Jesus evidencia sua superioridade sobre João (veja
8:58; 17:5).
Versículo 16. João declarou: todos nós temos recebido da
sua plenitude e graça sobre graça. “Graça sobre graça”
( , charin anti charitos) é uma expressão incomum e
significa literalmente “graça em vez de ou no lugar de graça”.
Obviamente, João pretendia enfatizar o conceito de graça. A
versão inglesa CEV, parafraseando 1:16, exprime bem o conceito:
“Por causa de tudo o que o Filho é, recebemos uma bênção após a
outra”. Assim que uma bênção termina, outra a substitui. Deus
derrama continuamente a sua graça, e o seu suprir jamais
finda. A concessão de sua graça nunca é interrompida nem
cessa. Jesus sempre foi bondoso, misericordioso, gracioso e
benigno. Jesus cometeu um ato de bondade atrás do outro - tanto
que se poderia dizer que uma de suas características era
conceder favores aos seres humanos.
Versículo 17. Embora todo o Prólogo tenha discorrido acerca
do Verbo, o nome Jesus aparece pela primeira vez em 1:17. Ele
apresenta um contraste entre Moisés, o profeta de Israel, e
Jesus Cristo, aquele como Moisés (veja os comentários sobre
1:21). Pode-se argumentar que João estava colocando a graça e a
verdade contra a lei dada por intermédio de Moisés, como se
dissesse que as duas eram mutuamente exclusivas, sendo que a
graça é um conceito do Novo Testamento. A “graça e a verdade”
não surgiram com a nova aliança, mas também foram mencionadas
explicitamente na antiga aliança (veja Êxodo 34:6; Salmos
86:15). A lei foi uma expressão da graça de Deus, visto que foi
dada para o homem; mas embora fosse uma expressão do amor de
Deus, era incompleta e, portanto, insuficiente para salvar o
homem do pecado. No entanto, com a vinda do Verbo, cheio de
graça e de verdade, o plano total da salvação foi
revelado. Agora, os seres humanos têm tudo que é necessário para
se apresentarem justos diante de Deus.
Versículo 18. Quando João disse que ninguém jamais viu a
Deus, ele não contestou a possibilidade de pessoas terem
testemunhada várias revelações de Deus, como suas aparições a
Moisés (Números 12: 8) e Isaías (Isaías 6:1–13). A palavra
“Deus” é usada sem o artigo, dando ênfase à natureza ou essência
de Deus e não só à sua pessoa. Segue-se, então, que ninguém
jamais viu a essência de Deus. Embora ninguém tenha visto Deus
dessa forma, o Deus unigênito... o revelou. Alguns textos gregos
trazem “Filho unigênito” ( , monogenēs huios), enquanto
46
outros têm “Deus unigênito” ( , monogenēs Theos)26. Conforme
indicado na RA, a evidência textual favorece a tradução “Deus
unigênito”, isto é, o único que ocupa um relacionamento especial
com o Pai (veja os comentários sobre 1:14). Com a chegada do
Verbo, o Deus unigênito “o revelou”. A palavra “revelou” vem de
(exēgeomai), que significa “explicar, interpretar, contar ou
reportar” e deu origem a “exegese”, que significa “tornar
visível com autoridade”. Embora o ser real de Deus nunca tenha
sido visto pelo ser humano, Cristo agora nos deu um relato
completo a respeito de Deus com autoridade de modo visível.
Jesus é a explicação de Deus. Ele está totalmente qualificado
para fazer essa revelação, pois está no seio do Pai. Esta
declaração é semelhante às descrições de Lázaro no seio de
Abraão (Lucas 16:22, 23) e do discípulo amado “conchegado a
Jesus” na última ceia (João 13:23). É uma expressão que indica a
proximidade do Pai e do Filho; denota amor mútuo e conhecimento
entre o Pai e o Filho. Por causa da ligação íntima de Jesus com
o Pai, ele foi capaz de mostrar como o Pai era. Jesus respondeu
ao pedido de Filipe, “mostra-nos o Pai”, dizendo: “Quem me vê a
mim vê o Pai” (14:8, 9).
Em 1:18, o que tem sido comumente chamado de “Prólogo”
chega ao fim. A ênfase do começo ao fim foi que Jesus é o
revelador e a explicação definitiva do próprio Deus. Carson
observou que este tema é reforçado pelos paralelos entre 1:1 e
1:18, “constituindo uma inclusio, uma espécie de invólucro
literário que sutilmente abraça toda a seção de 1:1-18” 27. Esses
paralelos podem ser vistos da seguinte forma: “No seio do Pai” e
“com Deus”; “unigênito de Deus”, isto é, o único, e “era Deus” e
afirmar que esse [Filho] único “revelou” Deus equivale a dizer
que ele é “o Verbo” (a Palavra), o derradeiro revelador de Deus.
2626
Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament, 2a. ed. Stuttgart: German Bible Society,
1994, p. 169.
2727
Carson, p. 136.
47
JESUS
O VERBO SE FEZ CARNE
O TESTEMUNHO DE JOÃO
BATISTA (1:19-36)
No Prólogo, João Batista foi apresentado como um homem
enviado por Deus, cuja missão não era de origem humana, mas de
47
Leon Morris, The Gospel according to John, ed. rev., The New International Commentary on the New Testament.
Grand Rapids, Mich.: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1995, p. 114.
48
Ibid.
48
origem divina (1:6); ele era o que veio dar testemunho da luz
(1:7, 8). Dar testemunho de Jesus foi a principal obra de João
Batista. O texto enfatiza isso por meio da repetição. A
referência ao testemunho de João começa em 1:19 e segue adiante.
O Testemunho de João aos Fariseus (1:19-28)
49
Raymond E. Brown, The Gospel According to John (i–xii), The Anchor Bible, vol. 29. Garden City, N.Y.: Doubleday &
Co., 1966, p. lxxi.
49
Cristo. Muitos se perguntavam se ele seria o Cristo (veja Lucas
3:15), mas João declarou claramente que ele “não era o Cristo”
ao usar o pronome enfático (egō, “eu”). Na língua grega, o
pronome pessoal só acompanha o verbo para efeito de ênfase. João
respondeu como se dissesse: “Eu não sou aquele que é o
Cristo”. O título grego (Christos), transliterado para
“Cristo”, é a tradução da palavra hebraica para “Messias” e
significa “O Ungido”. A vinda do Messias era esperada a qualquer
momento; mas se as autoridades judaicas pensavam que João era o
Messias prometido, estavam enganadas.
Versículo 21. Visto que João não era o Cristo, seus
interrogadores pensaram que ele poderia ser Elias; sendo assim,
a segunda pergunta foi: És tu Elias? Malaquias havia predito que
Deus enviaria Elias (Malaquias 4:5). A expectativa judaica era
de um retorno corpóreo de Elias, o que João negou. João cumpriu
a profecia, mas de forma figurada. Isso foi predito pelo anjo
Gabriel (Lucas 1:17) e Jesus também o testificou (Mateus 11:11–
15; 17:10–13). A negação de João (Não sou) provocou uma terceira
pergunta: És tu o profeta? Moisés havia predito que um “profeta”
como ele viria (Deuteronômio 18:15–18). Muitos aguardavam a
chegada desse profeta (6:14; 7:40), mas João não era o
profeta. Por esse motivo, ele deu uma resposta concisa:
Não. Sabemos por intermédio de Pedro (Atos 3:22, 23) e Estêvão
(Atos 7:37) que esse profeta era de fato Jesus, o Cristo, e não
João Batista. Essa passagem e 7:40 e 41 parecem esclarecer que
os judeus faziam uma distinção entre o profeta e o Cristo. A
brevidade das respostas de João não deve ser ignorada. As
respostas de João Batista foram cada vez mais curtas: “eu não
sou o Cristo”, “eu não sou” e “não”. João tinha vindo para dar
testemunho de outrem e não estava interessado em perguntas sobre
si mesmo.
Versículo 22. Até este ponto, os homens enviados pelos
judeus absolutamente nada sabiam sobre João, exceto suas
negações. Visando obter alguma resposta para os judeus,
perguntaram-lhe diretamente: Declara-nos quem és, para que demos
resposta àqueles que nos enviaram; que dizes a respeito de ti
mesmo? Dada a agitação provocada pela pregação de João, eles
precisavam de algum conteúdo para relatar aos seus superiores.
Versículo 23. Em segundo lugar, falando positivamente, João
afirmou ser aquele predito por Isaías. Ele era a voz do que
clama no deserto: Endireitai o caminho do Senhor. Todos os
Evangelhos citam essa declaração de Isaías 40:3 e aplicam-na a
João Batista (Mateus 3:3; Marcos 1:3; Lucas 3:4; João 1:23), mas
somente em João 1:23 ele mesmo o disse a respeito de si mesmo. A
resposta de João foi coerente com sua missão de dar testemunho
de outro. Ele não era uma personalidade distinta para quem as
pessoas deveriam olhar; ele era apenas uma voz apontando para o
Rei que estava chegando. Essa voz estava “clamando” no
deserto. A palavra “clamar” vem de (boaō), que significa fazer
50
uma “proclamação solene”50. Implica falar com voz forte e
impostada. De uma forma enérgica, João proclamou solenemente a
chegada de Cristo. A ideia de “endireitar o caminho do Senhor”
consiste em nivelar os declives e endireitar as curvas das
estradas para a passagem de um rei. A missão de João era a de um
arauto, que vai adiante de outro proclamando coisas que estão
por vir. O que estava por vir era o Messias, e as pessoas
precisavam preparar o coração e a mente para conhecê-lo (veja
Lucas 1:17, 76–79). Isto condiz com a mensagem de arrependimento
de João registrada nos Evangelhos Sinóticos (Mateus 3:2; Marcos
1:4; Lucas 3:3).
Versículo 24. O significado deste versículo não é
claro. Considerando que foram enviados “sacerdotes e levitas”
(1:19), e que a maioria dos sacerdotes e levitas eram membros do
partido dos saduceus, era de se esperar que alguns saduceus
fizessem parte da delegação; porém João não se referiu a essa
seita nem aqui nem em outro versículo do Evangelho. O poder da
seita dos saduceus, que estava vinculado ao templo e ao sistema
sacrificial, foi reduzido drasticamente com a destruição de
Jerusalém em 70 d.C. Portanto, eles provavelmente já não estavam
no poder na época em que João escreveu, estimada entre 80 d.C e
95 d.C. É difícil imaginar que os severos fariseus teriam
enviado sacerdotes e levitas (saduceus) para falar com João. D.
A. Carson propôs que a melhor alternativa é a sugerida pela
versão inglesa NEB de 1:24, 25: “Alguns fariseus que estavam na
delegação lhe perguntaram...” Ele conjeturou que, embora os
fariseus não controlassem o Sinédrio, eram influentes; e “uma
delegação oficial dificilmente seria enviada sem alguns
representantes da ala deles”51.
Geralmente se presume que a seita dos fariseus remonte aos
hassidim52 dos períodos sírio e macabeu. O termo “fariseus”, que
significa “os separados” ou “separatistas”, enfatiza a
preocupação de evitar qualquer impureza ética ou
cerimonial. Isso incluiria até consumir “alimentos cujo dízimo
não tivesse sido pago”53. Eram meticulosos na observância da
lei. Tendiam a colocar uma barreira em torno da lei pelo modo
como a entendiam. Eram dedicados às suas tradições e
frequentemente as elevavam à mesma posição das Escrituras (veja
Marcos 7:6–13). No que diz respeito à prática, acabavam por
manter suas tradições acima da lei. Morris comentou que os
fariseus “parecem sempre ter representado o povo comum em
oposição à aristocracia, e a religião pura em oposição às
50
Walter Bauer, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature, 3a. ed., rev. e
ed. Frederick William Danker. Chicago: University of Chicago Press, 2000, p. 180.
51
D. A. Carson, O Comentário de João. Trad. Daniel de Oliveira e Vivian Nunes do Amaral. São Paulo: Shedd
Publicações, 2007, p. 144.
52
H. L. Ellison, “Fariseus”, em O Novo Dicionário da Bíblia. Org. J. D. Douglas; editores assistentes F.F. Bruce... [et
al.]; editor da edição em português Russell P. Shedd; trad. João Bentes, 3a. ed. rev. São Paulo: Vida Nova, 2006, p.
496.
53
F. F. Bruce, The Gospel of John. Grand Rapids, Mich.: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1983, p. 50.
51
políticas eclesiásticas tão características dos saduceus”54. Os
fariseus exerciam grande influência sobre as práticas religiosas
da época. Qualquer ensinamento novo ou diferente era rapidamente
percebido e por isso João Batista foi submetido às suas
investigações.
Versículo 25. João havia atraído certo interesse, tanto por
causa de sua pregação como por dos batismos que realizava. Se
João fosse o Cristo ou Elias ou o profeta, era de se esperar que
ele batizasse pessoas; mas João negou ser qualquer um desses
notáveis. Então, os judeus queriam saber com que autoridade ele
estava batizando. Não é que a delegação ignorasse o batismo. Era
um ritual que os judeus exigiam dos prosélitos, ou seja, os
convertidos ao judaísmo de outras religiões. O escritor
de Hebreus destacou que os que estavam debaixo da lei
preocupavam-se, entre outras coisas, com “diversas abluções”
(Hebreus 9:10)55. O batismo de João diferia do batismo dos que se
convertiam ao judaísmo pelo menos em dois aspectos: 1) os
prosélitos se batizavam56 a si mesmos, João batizava seus
convertidos e 2) João insistia que os judeus fossem batizados
assim como os gentios. Os judeus eram o povo escolhido de Deus,
e até mesmo sugerir que eles precisavam de purificação era
inaceitável para alguns. O que, então, poderia justificar o
batismo de João?
Versículos 26 e 27. A resposta de João foi
caracteristicamente enfática: Eu batizo com água. A fonte de
autoridade de João Batista era Deus, segundo ele declarou em
1:33. Em resposta aos fariseus, ele chamou a atenção para
aquele do qual ele veio testemunhar. Em outras palavras, ele
disse: “Eu, de minha parte, batizo com água e tenho autoridade
para fazer isso; mas eu não sou nada comparado com Aquele que
vem depois de mim”. Ele não disse que o batismo não era
importante, pois era; mas sua importância estava no fato de
conduzir as pessoas até Jesus (1:31). João estava preocupado em
dar testemunho de Jesus, pois era para esse fim que ele foi
enviado (1:6–8). Esse mesmo Jesus, que estava no meio deles, mas
era desconhecido por todos, era maior do que João (1:15). E João
disse mais sobre Cristo: ...não sou digno de desatar-lhe as
correias das sandálias. Desatar as correias das sandálias era
tarefa de escravos. Um discípulo podia fazer qualquer coisa por
seu mestre, exceto desatar essas correias. Essa tarefa manual
não era da competência de um discípulo; no entanto, João, por
maior que fosse, não se considerava digno de realizar essa
pequena tarefa para o Cristo. Exceto pelo sacrifício de Jesus,
54
Morris, p. 122.
55
Neil R. Lightfoot escreveu: “Havia purificações para o sumo sacerdote (Levítico 16:4, 24), para os sacerdotes
(Êxodo 30:18–21; Levítico 8:6), para os levitas (Números 8:6–7), para leprosos e impuros (Levítico 14:8–9; Números
19), e para roupas e utensílios (Levítico 6:27–28)”. (Neil R. Lightfoot , Jesus Christ Today. Abilene, Tex .: Bible Guides,
1976, p. 168).
56
Mishná Pesahim 8.8; Talmude Yebamoth 46a, 47b.
52
seria difícil pensar em um exemplo de humildade maior do que o
de João.
Versículo 28. Betânia, do outro lado do Jordão é chamada de
“Bethabara” numa antiga edição da versão inglesa King James e
significa “casa de passagem”, indicando um lugar de travessia.
Orígenes popularizou a variante “Bethabara”, no terceiro século,
porque não encontrou uma “Betânia, do outro lado do Jordão” em
suas viagens57, mas o termo é rejeitado pela maioria dos
estudiosos do texto. A leitura original provavelmente é
“Betânia”, apoiada não só textualmente, mas também pelo esforço
cuidadoso de João para distingui-la da Betânia, do lado leste do
monte das Oliveiras, a pouco mais de tr.es quilômetros de
Jerusalém (11:1, 18). Era na “Betânia, do outro lado do Jordão”
que João estava [continuamente] batizando58.
O Testemunho de João às Multidões (1:29-34)
57
Orígenes, Comentário sobre João 6.204-5; 13.455.
58
Uma antiga tradição identifica “Betânia, do outro lado do Jordão”, onde João batizou com um local oposto a
Jericó, na mesma região onde Elias ascendeu ao céu (2 Reis 2:5–14). Outros locais também foram sugeridos.
53
João disse: Eis o Cordeiro de Deus. A força da palavra
“eis” está em chamar a atenção para Jesus. Isto condiz com a
tarefa de João de mostrar aos outros Jesus. Muito já se
especulou sobre o motivo exato de João ter chamado Jesus de “o
Cordeiro de Deus”. A palavra original para “Cordeiro” em 1:29,
36, (amnos), ocorre somente mais dois versículos do Novo
Testamento (Atos 8:32; 1 Pedro 1:19). Atos 8:32 é uma citação de
Isaías 53:7, e 1 Pedro 1:19 fala de redenção. Ambas as
referências comparam Cristo a um cordeiro sacrificial. Israel
sabia qual era o papel do cordeiro como sacrifício. Cordeiros
(“das primícias do seu rebanho”) foram oferecidos por Abel como
o mais excelente sacrifício (Gênesis 4:4; veja Hebreus 11:
4). Um cordeiro era sacrificado por cada família na Páscoa
(Êxodo 12). Cordeiros sem manchas deveriam ser oferecidos nos
sacrifícios diários no tabernáculo e depois no templo (Êxodo
29:38-42.). Jesus é o Cordeiro de Deus sacrificado por todos os
seres humanos. Warren W. Wiersbe comentou: “No Antigo
Testamento, a pergunta é: ‘Onde está o cordeiro?’ (Gênesis
22:7). Nos quatro Evangelhos, a ênfase é: ‘Eis o Cordeiro de
Deus!’ Aqui está ele!”59
Jesus, enquanto Cordeiro, tira o pecado do mundo. Embora o
cordeiro não fosse o animal típico de uma oferta pelo pecado
debaixo da lei mosaica, João deixou claro que o Cordeiro de Deus
foi sacrificado para tirar o pecado do mundo. O propósito da
vinda de Cristo era a redenção da humanidade perdida – não só de
Israel, mas do mundo inteiro. Não há nenhum justo; todos pecaram
(Romanos 3:10, 23). Todos precisam do sacrifício de Jesus, e
esse sacrifício é a única maneira pela qual qualquer pessoa pode
ser redimida. Isaías profetizou:
59
Warren W. Wiersbe, Comentário Bíblico Expositivo: Novo Testamento: volume I. Trad. Suzana E.
Klassen. Santo André, SP: Geográfica Editora, 2006, p. 370.
54
preexistência de Jesus comprova sua superioridade sobre João
(veja 8:58; 17:5).
Versículo 31. João não o conhecia. O termo “conhecer”
deriva da raiz (oida), que exprime a plenitude do
conhecimento. João, embora fosse parente de Jesus e
provavelmente já conhecesse um pouco a respeito dele, não tinha
certeza se Jesus era o Messias60. O que João de fato sabia era
que o propósito do seu batismo era revelar o Messias a
Israel. Aqui, João nada disse sobre o seu batismo ser de
arrependimento (veja Marcos 1:4; Lucas 3:3); o propósito final
de seu batismo era preparar o caminho para Jesus.
Versículo 32. O escritor do Evangelho de João presumiu que
seus leitores já sabiam do batismo de Jesus. Um sinal - a
descida do Espírito - foi dado a João Batista para identificar
Jesus como o Messias. João testemunhou, dizendo: Vi (veja
1:7). A palavra “vi” vem de (theaomai), que significa um
“olhar pensativo”; o tempo verbal aqui usado é o perfeito,
indicando efeitos contínuos de uma ação passada. João examinou a
cena com seus próprios olhos e acabou por se convencer do que
viu. Ele viu o Espírito descer do céu como pomba e pousar sobre
o Senhor.
Versículo 33. João repetiu que não conhecia Jesus como o
Messias até a descida do Espírito. Conforme relatado nos
Evangelhos Sinóticos, a descida do Espírito como pomba ocorreu
concomitantemente com a voz do céu depois que Jesus saiu das
águas - isto é, depois que João o batizou (Mateus 3:16, 17;
Marcos 1:10, 11; Lucas 3:22). Aqui neste Evangelho, a descida do
Espírito identifica Jesus como o que batiza com o Espírito
Santo. João não informou quando recebeu o sinal, mas é evidente,
pela comparação com os Evangelhos Sinóticos, que ele recebeu
esse sinal de Deus e que soube que Jesus era o Messias por meio
desse sinal.
Versículo 34. João enfatizou: Eu, de fato, vi e tenho
testificado que ele é o Filho de Deus. “Ele” refere-se àquele
sobre quem o Espírito desceu (1:32, 33). Os verbos “vi”
( , heōraka) e “tenho testificado” ( , memarturēka) estão no
tempo perfeito, indicando uma firme convicção da parte de
João. Não havia dúvida em sua mente sobre quem Jesus realmente
era. No que dizia respeito à obra ou missão de João, estava
concluída. Ele tinha ouvido a voz do céu (veja Mateus 3:13–17) e
tinha visto com seus próprios olhos o sinal da chegada do
Messias. Aquele por quem João Batista fora enviado como arauto -
60
Se João não sabia que Jesus era o Messias antes de o Espírito descer sobre Ele (1:32, 33), por que relutou em
batizá-lo (Mateus 3:14)? É possível que João tivesse ouvido falar do nascimento miraculoso de Jesus e de seu
notável conhecimento das Escrituras, quando ainda era jovem. É concebível que João tenha aprendido a respeitar
Jesus de longe. Visto que João não detectou nenhum pecado em Jesus, quando Jesus pediu para ser batizado, João
não pôde deixar de recusar e pedir o contrário. O fato de João ter grande estima por Jesus antes de seu batismo não
significa necessariamente que ele entendesse completamente quem Jesus realmente era.
55
o Filho de Deus - havia chegado. O quarto Evangelho foi escrito
para gerar fé nessa verdade (veja os comentários sobre 20:31).
O Testemunho de João aos Dois Discípulos (1:35, 36)
A RESPOSTA DE ALGUNS
DISCÍPULOS (1:37-51)
André e Pedro (1:37-42)
56
‘ingressivo’: ‘tornaram-se seus seguidores’”61. Neste caso, não
ponderaram simplesmente e provisoriamente a ideia; puseram-se a
segui-lo imediatamente. Ali estavam dois homens - dois homens
normais, mas religiosos - que queriam entregar suas vidas a
Jesus. Eles provavelmente não entenderam tudo o que o título
“Cordeiro de Deus” engloba, mas certamente entenderam que João
Batista estava mostrando que Jesus era Aquele a quem eles
deveriam agora se vincular.
Versículo 38. E Jesus, voltando-se e vendo que o seguiam,
perguntou-lhes: Que buscais? Jesus não fez essa pergunta por
desconhecer a resposta (veja 2:25). Já estavam seguindo João
Batista, esses homens certamente queriam um relacionamento com
Deus. Eles viram algo em Jesus que acreditavam que saciaria esse
desejo. Há uma bem-aventurança a todo o que tem fome e sede de
justiça (Mateus 5:6). Jesus é o único que pode saciar a fome de
uma alma cansada. Esses homens acreditavam que haviam encontrado
em Jesus o que estavam procurando.
André e o discípulo não denominado responderam à pergunta
de Jesus com outra pergunta: Rabi... onde assistes? Esta
pergunta é interessante por diversas razões. 1) Eles O chamaram
de “Rabi”, que João traduziu para os leitores não judeus por
Mestre. O termo significa literalmente “meu grande”. Era
comumente usado como uma forma de tratamento respeitosa de um
aluno para com seu mestre, seu professor. É claro que esses
homens tinham grande consideração por Jesus. 2) Eles
perguntaram: “Onde estás hospedado?” (NVI). Esta não parece ser
uma resposta natural à pergunta: “Que buscais?” Quando
perguntaram: “Onde assistes?” não estavam só perguntando onde
Jesus morava. Esses homens tinham ouvido falar de Jesus e
queriam saber mais. Uma conversa casual não seria suficiente
para as perguntas que eles tinham. Queriam passar algum tempo
com Jesus para descobrir mais sobre Ele e o que Ele tinha a
oferecer.
Versículo 39. A resposta de Jesus foi simples: Vinde e
vede. É a mesma resposta que Filipe deu a Natanael em 1:46. Essa
frase era comum entre os rabis. Era usada para mostrar que a
solução para um problema particular era possível. Os dois
discípulos queriam saber sobre Jesus; e Jesus, na verdade,
disse: “Venham e vejam por si mesmos!” Então, os dois foram... e
viram onde Jesus estava morando. Jesus demonstrou com isto
disposição para conversar e passar algum tempo com eles. A hora
desse encontro foi mais ou menos a hora décima, que, de acordo
com a contagem judaica, equivale às 16 horas. Esses discípulos
permaneceram com Jesus aquele dia, o que pode significar que
passaram a noite. Os judeus contavam o dia a partir do início da
61
Bruce, p. 56.
57
noite até o início da noite seguinte; dividiam a noite e o dia
em doze horas cada62.
Versículo 40. Um dos dois discípulos de João Batista que
ouviu falar de Jesus e se comprometeu a segui-lo foi André,
irmão de Simão Pedro. O irmão de André ainda não havia entrado
em cena, nem Jesus havia o chamado de “Pedro”, embora o nome
completo “Simão Pedro” seja usado aqui. Embora pouco tenha sido
dito sobre André, ele é um dos personagens mais interessantes da
Bíblia. Seu nome aparece apenas cinco vezes neste Evangelho
(1:40, 44; 6:8; 12:22 [duas vezes]), e em duas ocasiões ele é
chamado de “irmão de Simão Pedro” (1:40; 6:8). Apesar de André
ser introduzido pela primeira vez neste relato, Pedro já era bem
conhecido no momento em que isto foi escrito. Por esse motivo,
André, que era menos conhecido, é apresentado no texto como
irmão de Pedro.
Versículo 41. Depois que André achar o Senhor, a primeira
coisa que fez foi procurar o seu próprio irmão, Simão. André não
esperou dias ou semanas para começar a compartilhar a boa
notícia. Ele havia encontrado a resposta para sua própria
condição espiritual e queria que Simão tivesse a mesma
oportunidade (veja 9:4). Em Jesus, André achou o Messias. A
palavra (Messias, “Messias”) é uma transliteração grega de
uma palavra hebraica ou aramaica que significa “O Ungido”. É
traduzida para o grego por (Christos, Cristo). A palavra grega
Messias ocorre apenas aqui e em 4:25 no Novo Testamento, assim
como na RA. No Antigo Testamento, designa o rei de Israel (1
Samuel 16:6; 2 Samuel 1:14) e o sumo sacerdote (Levítico 4:3).
Em Salmos, refere-se aos patriarcas (Salmos 105:15).
Versículo 42. Embora pouco seja dito sobre André, cada
menção dele o descreve levando alguém até Jesus (veja 6:8, 9;
12:20-22). Levar seu irmão até Jesus talvez tenha sido o maior
ato de serviço de André. Jesus olhou cuidadosamente para o recém
chegado e mudou seu nome para Cefas, um nome aramaico que
significa “pedra” e o equivalente ao vocábulo grego (Petros,
Pedro). Esse nome não parece descrever o temperamento impulsivo
de Pedro. A mudança de nome poderia se aplicar à pessoa que o
Senhor esperava que Pedro se tornasse e ao homem que Pedro
acabou se tornando: “o homem rocha”. A relevância principal
desse incidente pode ser indicar o conhecimento que Jesus tinha
das pessoas. Ele conhece totalmente as pessoas (veja 1:47, 48;
2:25), incluindo o potencial de cada ser humano.
Filipe e Natanael (1:43-51)
62
Kent concordou com outros comentaristas, segundo os quais o Evangelho de João segue a contagem de horas
romana, de modo que a hora aqui seria 10 da manhã. Ele disse que quem não adotar essa contagem de horas será
confrontado com dificuldades intransponíveis para harmonizar o relato de João com o de Marcos. (Compare com
João 19:14 e Marcos 15:25.) (Homer A. Kent Jr., Light in the Darkness: Studies in the Gospel of John. Winona Lake,
Ind.: BMH Books, 1974, p. 44.) Carson, citando Plínio, o Velho, disse: “...’as pessoas comuns em todo lugar’
concebem o dia indo da aurora até a escuridão. Judeus, romanos e outros dividiam o ‘dia’ (luz do dia) em doze
horas; os romanos dividiam a noite em quatro vigílias” (Carson, p. 158; Plínio, o Velho, História Natural 2.79).
58
43 No dia imediato, resolveu Jesus partir para a Galileia e
encontrou a Filipe, a quem disse: Segue-me. 44 Ora, Filipe era
de Betsaida, cidade de André e de Pedro. 45 Filipe encontrou a
Natanael e disse-lhe: Achamos aquele de quem Moisés escreveu na
lei, e a quem se referiram os profetas: Jesus, o Nazareno, filho
de José. 46 Perguntou-lhe Natanael: De Nazaré pode sair alguma
coisa boa? Respondeu-lhe Filipe: Vem e vê. 47 Jesus viu Natanael
aproximar-se e disse a seu respeito: Eis um verdadeiro
israelita, em quem não há dolo! 48 Perguntou-lhe Natanael: Donde
me conheces? Respondeu-lhe Jesus: Antes de Filipe te chamar, eu
te vi, quando estavas debaixo da figueira. 49 Então, exclamou
Natanael: Mestre, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel!
50 Ao que Jesus lhe respondeu: Porque te disse que te vi debaixo
da figueira, crês? Pois maiores coisas do que estas verás. 51 E
acrescentou: Em verdade, em verdade vos digo que vereis o céu
aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do
Homem.
63
Bruce, p. 59.
64
Frederic Louis Godet, Commentary on John’s Gospel. Grand Rapids, Mich.: Kregel Publications, 1978, p. 332.
59
6:14). Além disso, ele é citado depois de Tomé em Atos 1:13, ao
passo que o nome “Natanael” ocupa a mesma posição em João
21:2. “Bartolomeu” não é um nome pessoal, mas um nome derivado
de um pai ou ancestral; significa “filho de Tolmai”. Como Simão
Barjonas (Mateus 16:17), Bartolomeu certamente tinha outro nome.
Filipe falou de Jesus como aquele de quem Moisés escreveu
na lei, e a quem se referiram os profetas. Foi essencialmente
isso que André disse a Simão quando exclamou que havia achado o
Messias (1:41). Quando Filipe falou de Jesus, identificou-o como
ela era conhecido, citando seu nome pessoal, Jesus; sua
naturalidade, nazareno e o nome legal de seu pai, José.
Versículo 46. Assim que ouviu Filipe, Natanael respondeu
dizendo: De Nazaré pode sair alguma coisa boa? Natanael era de
Caná da Galileia (21:2). Assim como os judeus costumavam tratar
os galileus com menosprezo, parece que os galileus desprezavam
os nazarenos (na Galileia). Até hoje, pode haver muita
rivalidade entre essas comunidades. Alguns menosprezam os outros
por serem de determinada região. Aparentemente, era esse tipo de
rivalidade que havia entre cidades como Caná e Nazaré. Diante
disso, segundo Natanael, de Nazaré nada de bom podia sair. Essa
cidade era vista com menosprezo.
A afirmação de Natanael revela mais do que uma rivalidade
entre cidades. Nada no Antigo Testa predizia que o Ungido de
Deus viria de Nazaré. As Escrituras diziam que o Cristo viria da
semente de Davi e da cidade de Belém (Miqueias 5:2), onde Davi
nasceu (1 Samuel 17:12, 15; veja Lucas 2:4; João 7:42). Dizer
que o Cristo veio de Nazaré equivalia a obscurecer sua
ascendência e degradar sua origem divina. Jesus ficou conhecido
como “Jesus de Nazaré” ou “Jesus, o Nazareno”65 – e não como
“Jesus de Belém”, o que o relacionaria com o Rei Davi. Anos mais
tarde, os cristãos foram tratados com desprezo como “a seita do
Nazareno” (Atos 24:5). Se nada de bom podia vir de Nazaré,
certamente isso se aplicava ao Ungido de Deus. Natanael cometeu
o mesmo erro que as pessoas continuam a cometer hoje, tirando
conclusões precipitadas sobre os outros simplesmente por causa
de sua origem humilde. Filipe não abordou Natanael empregando um
argumento detalhado; ele simplesmente disse: Vem e vê. É
necessário se fazer uma investigação sincera quando se quer
descobrir a verdade sobre qualquer assunto (veja Atos 17:11).
Versículo 47. Quando Jesus viu Natanael aproximar-se,
disse: Eis um verdadeiro israelita, em quem não há dolo! Esta é
a única ocorrência de “israelita” no Evangelho de João. Ao
contrário da expressão “os judeus”, “israelita” tem aqui uma
conotação positiva. Jesus não estava dizendo que Natanael era um
“verdadeiro israelita” nos parâmetros do comentário de Paulo
sobre o verdadeiro Israel (Romanos 9-11). Jesus estava
destacando que Natanael era um certo tipo de israelita, em quem
65
Veja Mateus 2:23; 26:71; Marcos 1:24; 10:47; Lucas 4:34; 24:19; João 18:5, 7; 19:19.
60
não havia falsidade ou engano. Talvez esse alto elogio seja
melhor compreendido levando-se em conta a conversa que se
seguiu, uma possível referência à escada de Jacó (Gênesis 28:10-
17). O nome de Jacó era tradicionalmente associado ao ato de
enganar. Quando Isaque disse: “Veio teu irmão astuciosamente e
tomou a tua bênção”, Esaú respondeu: “Não é com razão que se
chama ele Jacó? Pois já duas vezes me enganou” (Gênesis 27:35,
36a). O nome de Jacó foi mais tarde mudado para “Israel” após
uma visão de Deus, uma experiência que mudou sua vida (Gênesis
32:24–28). Ao contrário de Jacó, Natanael era um israelita “sem
dolo”. Apesar de criticar pessoas de Nazaré, ele tinha motivos
que eram puros. Natanael aceitou o convite de Filipe para
investigar Aquele sobre quem Moisés e os profetas haviam
escrito.
Versículo 48. Natanael não contestou a avaliação de Jesus,
mas reagiu surpreso perguntando: Donde me conheces? Jesus disse
que Ele o conhecia antes de Filipe o chamar, enquanto ele estava
debaixo da figueira. Isso era algo que só Jesus e Natanael
sabiam. Jesus estava revelando seu conhecimento
sobrenatural. Ele estava mostrando que conhece cada ser humano a
ponto de saber o que está em seu coração (veja 2:24, 25).
Versículo 49. Natanael, o cético, tornou-se Natanael, o
crente. Aquele que demonstrou tamanho conhecimento sobrenatural
só podia ser Aquele de quem as Escrituras testificaram que
viria. Natanael dirigiu-se a Jesus com o respeitoso título
Mestre (veja os comentários em 1:38) e, depois, atribuiu a Jesus
dois títulos messiânicos: tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de
Israel. No Antigo Testamento, Salomão é descrito como um filho
de Deus: “Eu lhe serei por pai, e ele me será por filho” (2
Samuel 7:14). O povo de Israel também é chamado filho de Deus:
“Quando Israel era menino, eu o amei; e do Egito chamei o meu
filho” (Oséias 11:1). Embora João nunca use exatamente essa
expressão para os crentes, o livro se refere àqueles que creem
em Jesus como “filhos de Deus” (1:12); estes têm o privilégio de
chamar Deus de “Pai” (16:23). No presente contexto, a expressão
“Filho de Deus” descreve a relação única entre Jesus e seu Pai.
No Salmo 2:6 e 7, Deus disse ao rei de Israel, ungido e
entronizado no santo monte Sião: “Tu és meu Filho, eu, hoje, te
gerei”. Bruce sugeriu que “não precisamos deduzir que, num
estágio tão inicial de sua carreira como discípulo, Natanael
quisesse dizer muito mais com [a expressão ‘Filho de Deus’] do
que com ‘Rei de Israel’; eram formas alternativas de denotar o
Messias”66. Carson disse que “o título de Rei de Israel era usado
pelos judeus da Palestina para o Messias”67. Os reis eram os
ungidos de Deus (veja Salmos 2:1-7). Quando alguns tentaram
tomar Jesus à força e torná-lo rei, ele resistiu (6:15). No
66
Bruce, p. 61.
67
Carson, p. 162.
61
entanto, Jesus se apresentou como Rei, posteriormente, em sua
entrada triunfal (12:12-15) e afirmou perante Pilatos que havia
nascido para ser Rei (18:33-37). Jesus era o Rei prometido,
embora seu reino não fosse deste mundo (18:36).
Versículos 50 e 51. A fé de Natanael em Jesus estava
baseada em um milagre. Jesus prometeu que Natanael veria maiores
coisas do que estas - isto é, sua demonstração de conhecimento
sobrenatural, bem como seus sinais relatados por João. Não seria
somente Natanael que testemunharia maiores coisas, mas seus
companheiros discípulos também seriam testemunhas. Isso é
evidenciado pela mudança da segunda pessoa do singular (opsē,
te disse) em 1:50, para a segunda pessoa do plural ( , vos
digo) em 1:51.
O versículo 51 introduz pela primeira vez a afirmação
dupla: Em verdade, em verdade vos digo 68. A expressão grega
(amēn amēn) é traduzida de várias maneiras: “em verdade, em
verdade”, “verdadeiramente” e “eu afirmo que isto é verdade”. A
NVI adapta a construção para “digo-lhes a verdade”. A
transliteração grega amēn é de origem hebraica e significa
“constante” ou “certamente”. É usado até hoje para exprimiri
aprovação do que foi pronunciado por outra pessoa (veja 1
Coríntios 14:16). A expressão é atribuída somente a Jesus nos
Relatos do Evangelho – sempre mencionada uma só vez nos
Sinóticos e duplamente em João. Quando Jesus a empregou, foi
para confirmar a certeza e fidedignidade do que estava dizendo.
A declaração de Jesus a Natanael de que ele veria o céu
aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do
Homem parece ser uma referência à visão de Jacó (Gênesis 28:10–
17). O relato do sonho de Jacó não diz que os céus foram
abertos, ao passo que aqui não há menção da escada que Jacó
viu. Ambas as passagens tratam da comunicação entre o céu e a
terra; mas aqui se diz que os anjos sobem e descem não em uma
escada, mas sobre o “Filho do Homem”, o próprio Jesus
(8:28). Jesus é retratado como o elo entre o céu e a terra
(3:13), o mediador entre Deus e o homem. Ele é o meio pelo qual
as realidades do céu são trazidas para a terra. Figuradamente,
então, a passagem diz que Jesus revela coisas celestiais.
A expressão “Filho do Homem” era a autodesignação favorita
de Jesus. Muitos associam essa expressão com a humanidade de
Jesus; e, embora essa conotação não deva ser descartada, há mais
a se considerar. Ao usar “Filho do Homem”, Jesus, sem dúvida,
estava se referindo à figura divina descrita em Daniel 7:13 e
14, uma pessoa única que viria no futuro:
68
Essa afirmação ocorre com frequência em João (1:51; 3:3, 5, 11; 5:19, 24, 25; 6:26, 32, 47, 53; 8:34, 51, 58; 10:1 ,
7; 12:24; 13:16, 20, 21, 38; 14:12; 16:20, 23; 21:18).
62
um como o Filho do Homem,
e dirigiu-se ao Ancião de Dias,
e o fizeram chegar até ele.
Foi-lhe dado domínio,
e glória, e o reino,
para que os povos, nações e homens de todas as línguas
o servissem;
o seu domínio é domínio eterno,
que não passará,
e o seu reino
jamais será destruído.”
APLICAÇÃO
69
A palavra “sinótico” sugere a ideia de “ver o mesmo” ou “ver da mesma forma”. A ideia é que os “Evangelhos
Sinóticos” veem e relatam a história de Jesus da mesma forma. João relata de uma forma diferenciada.
63
Em que aspectos João é diferente? Este Relato do Evangelho
é evidentemente mais “teológico” do que os outros. João contém
grandes verdades teológicas que são apenas sugeridas nos
primeiros três livros do Novo Testamento.
Em João 1:1–18, encontramos um bom exemplo dessa
tendência. O livro começa não com a história do nascimento de
Cristo nem com a genealogia de Cristo, mas com a pré-existência
de Cristo. João queria que soubéssemos exatamente quem é Jesus
Cristo.
1. Ele é “o Verbo”, “a Palavra”, o Logos divino, uma
designação usada por João para expressar a poderosa posição
proeminente de Jesus no céu antes de vir à terra (1:1).
2. Ele estava “no princípio com Deus” (1:1). Ele não
começou a existir quando nasceu em Belém; Jesus sempre existiu
por toda a eternidade.
3. Ele estava “com Deus” e “era Deus” (1:1). Em outras
palavras, Jesus possui os mesmos traços ou características do
Pai. O Pai é Deus; mas Jesus Cristo, o Filho de Deus, também é
Deus.
4. Ele participou da criação, assim como Deus: “sem ele,
nada do que foi feito se fez” (1:3; veja 1:10; Colossenses 1:16;
Hebreus 1:2). Quando Deus disse: “Façamos o homem à nossa
imagem” (Gênesis 1:26), ele se dirigiu a si mesmo; e o “eu” a
quem ele se dirigiu incluía o Verbo divino.
5. Ele era e é a luz e a origem da vida para todos (1:4;
veja 1:7-9). Sem ele, como ensina repetidamente o Novo
Testamento, não há luz nem esperança de vida.
6. Ele foi, e é muitas vezes rejeitado. “A luz resplandece
nas trevas”, mas as “trevas” a rejeitam (1:5, 11). João e os
demais Relatos do Evangelho deixam claro desde o início que
Jesus não foi aceito por todos.
7. O mesmo Jesus Cristo que era o Verbo divino se fez
carne: “O Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua
glória, glória como do unigênito do Pai, cheio de graça e de
verdade” (1:14). Esse texto ensina que o Jesus que andou entre
os homens era um homem, um ser humano composto de carne e
osso; mas Ele não era só homem - nem um homem extraordinário
que, tal como os profetas, podia operar milagres. Jesus era o
Filho de Deus, Deus em carne, que existe por toda a eternidade
com Deus e como Deus!
Neste fato reside nossa esperança: Jesus Cristo era divino
e humano! O cerne do cristianismo é esta verdade. Sem essa
verdade, o cristianismo nada seria! Por causa dessa verdade, o
cristianismo é tudo!
Em segundo lugar, o cristianismo do Novo Testamento
envolve proclamar que Cristo é o Filho de Deus e o Cordeiro de
Deus (1:19-34).
Em 1:1-18, somos informados de que João Batista foi um
profeta “enviado por Deus”. Ele veio para dar testemunho da
64
“luz”, Jesus Cristo (1:6, 7); e ele testificou da divindade de
Cristo (1:15). A seção 1:19–34 descreve o ministério de João
Batista. João negou claramente que era o Cristo, o Messias que
os judeus esperavam. Ele disse que era o precursor do Messias,
aquele cujo trabalho era preparar a chegada do Messias. Ele
também testificou que o Cristo para quem ele estava preparando o
caminho seria muito maior do que ele (1:19–28).
O versículo 29 diz que “no dia seguinte, viu João a Jesus,
que vinha para ele, e disse: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o
pecado do mundo!” (veja 1:36). João prosseguiu dizendo que,
embora ele não reconhecesse (a princípio) que Jesus era o
Messias que havia de vir, Deus lhe revelou quem era Jesus quando
o Espírito Santo desceu sobre Jesus (na ocasião em que João o
batizou). Assim, João testificou: “Pois eu, de fato, vi e tenho
testificado que ele é o Filho de Deus” (1:34).
Quando chamou Jesus de “o Cordeiro de Deus que tira o
pecado do mundo” (1:29), João declarou que Jesus tinha vindo à
terra não só como o Filho de Deus, que estabeleceria o seu
reino, mas também como o Cordeiro sacrificial de Deus, que
morreria para tirar os pecados da humanidade. Jesus cumpriu essa
missão quando morreu na cruz (veja Mateus 26:28). Sem o
sacrifício, a morte e a ressurreição de Jesus, não teríamos
esperança de salvação.
Devemos agradecer a Deus por João ter proclamado que Jesus
é o Cordeiro de Deus. Se o evangelho não tivesse sido proclamado
fielmente, o cristianismo estaria extinto hoje. Ninguém teria
oportunidade de ser salvo!
A proclamação de Jesus Cristo foi — desde o início do
Evangelho Segundo João, desde o início do ministério de Cristo,
e desde o início da igreja de Cristo — um aspecto essencial do
ensino sobre Cristo (Mateus 28:18-20; Marcos 16:15, 16; Atos
1:8). Depois que Jesus subiu ao céu, os apóstolos, evangelistas
e outros cristãos continuaram a pregar sobre ele.
Jesus deve ser proclamado hoje! Jesus foi proclamado
pública e privadamente no primeiro século e devemos proclamá-lo
pública e privadamente, se quisermos ser, individualmente, os
seus discípulos e, coletivamente, a Sua igreja.
Em terceiro lugar, o cristianismo do Novo Testamento exige
que os que creem vivam como discípulos ou seguidores de
Cristo (1:35-39, 43).
João 1:35–39 fala sobre o chamado de alguns discípulos de
Jesus. O versículo 43 diz: “No dia imediato, resolveu Jesus
partir para a Galileia e encontrou a Filipe, a quem disse:
Segue-me” (1:43).
Esta passagem ilustra que o cristianismo propõe um
relacionamento pessoal entre indivíduos e Cristo na vida diária;
a presença constante de Jesus Cristo com seus seguidores. Depois
que João Batista proclamou que Jesus é o Cordeiro de Deus
(1:36), dois de seus discípulos “seguiram Jesus” (1:37) e
65
“ficaram com ele aquele dia” (1:39). Então Jesus chamou Filipe
para segui-lo (1:43). Jesus juntou discípulos para si. O
desenvolvimento de um relacionamento pessoal com Jesus envolvia
várias etapas.
1. Um dos pré-requisitos para se ter esse relacionamento
mais íntimo com Cristo durante seu ministério era ter recebido o
convite de Jesus. Em 1:39, Jesus disse aos indivíduos presentes:
“Vinde e vede”; depois, disse a Filipe: “Segue-me” (1:43). Hoje
Ele continua a desafiar aqueles que querem ouvi-lo, dizendo, com
efeito: “Sigam-me!”
2. Outro pré-requisito para se estabelecer um
relacionamento pessoal com Jesus era aceitar o seu convite. Uma
coisa boa sobre esses discípulos é que eles aceitaram o convite
de Jesus para “vir” e “seguir”. Hoje, embora Jesus convide a
todos (Mateus 11:28-30), nem todos aceitam seu convite. Aqueles
que optam por seguir Jesus precisam aceitar os termos impostos
por Jesus. Precisam crer que ele é o Filho de Deus (João 3:16),
confessar sua fé ou confiança nele (Romanos 10:9, 10),
arrepender-se de seus pecados (Atos 17:30) e ser batizados para
o perdão dos pecados (Atos 2:38). Ao fazer isso, sinalizam que
aceitam o convite de Jesus e assim se tornam seus discípulos.
O estabelecimento de um relacionamento pessoal com Cristo,
por envolver a aceitação do convite lançado por Cristo, depende
do indivíduo. Cristo chama a todos, porém nem todos ouvem. João
1:11 e 12 diz: “Veio para o que era seu, e os seus não o
receberam. Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de
serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem no seu
nome”. A escolha está em nossas mãos: podemos rejeitar ou
receber o Cristo!
3. O terceiro pré-requisito para se ter um relacionamento
pessoal com Cristo era permanecer perto de Cristo. Assim como
aqueles que começaram a seguir a Cristo em João 1 continuaram a
conviver com o Senhor pelos próximos três anos, nós devemos
viver continuamente com Cristo pensando nele, lendo e meditando
sobre ele e procurando ser como ele.
Devemos entender que o verdadeiro cristianismo não consiste
apenas em comparecer às reuniões de adoração; é preciso atingir
e manter um relacionamento pessoal com Cristo!
Finalizando, o cristianismo do Novo Testamento envolve
compartilhar a boa notícia sobre Cristo (1:40–51).
O que aconteceu quando esses homens se tornaram discípulos
de Jesus? Quando descobriram Jesus e se convenceram de que ele
era o Cristo, contaram a seus amigos e parentes que haviam
encontrado o tão esperado Messias. Dois dos discípulos de João o
ouviram dizer que Jesus era “o Cordeiro de Deus” (1:29), e então
seguiram Jesus. O Senhor os convidou a “vir” e “ver” onde ele
estava hospedado. A seguir, João nos diz que “era André, o irmão
de Simão Pedro, um dos dois que tinham ouvido o testemunho de
João e seguido Jesus” (1:40). E, depois, lemos: “Ele achou
66
primeiro o seu próprio irmão, Simão, a quem disse: Achamos o
Messias (que quer dizer Cristo) e o levou a Jesus” (1:41,
42a). Depois que Jesus disse a Filipe: “Segue-me” (1:43), Filipe
encontrou outro candidato, Natanael, a quem disse: “Achamos
aquele de quem Moisés escreveu na lei, e a quem se referiram os
profetas: Jesus, o Nazareno, filho de José” (1:45). Encontrar o
Messias é uma grande descoberta! Aqueles que fazem essa
descoberta naturalmente querem contá-la a outros.
Por que João contou essas histórias, considerando que ele
foi muito seletivo em relação ao conteúdo que escolheu inserir
em sua narrativa? Talvez, escrevendo muito depois do
estabelecimento da igreja, João quisesse lembrar à igreja como o
evangelho se espalhou inicialmente, de pessoa para
pessoa. Talvez os cristãos daquele tempo não estivessem dando o
devido valor ao cristianismo. Talvez, à semelhança dos cristãos
de hoje, aqueles leitores precisassem pensar na grata surpresa
que muitos experimentaram assim que descobriram que Jesus era o
Cristo. Talvez necessitassem de estímulo e ânimo para divulgar a
boa notícia!
Conclusão. Nota-se uma progressão neste capítulo. A verdade
sobre Cristo - que Ele é Deus em carne - está por trás de todos
os demais fatos relatados. Cristo foi proclamado por João
Batista. Indivíduos reagiram a essa verdade e se tornaram
discípulos de Jesus. Aqueles que escolheram seguir Jesus,
posteriormente, foram e divulgaram a boa notícia sobre Cristo!
Essa história se repetiu várias vezes depois que a igreja
foi estabelecida. A verdade sobre Jesus Cristo continuou a ser o
fundamento da igreja. Evangelistas e pregadores começaram onde
João Batista havia parado. Eles proclamaram que Jesus era o
esperado Filho de Deus e, sendo o Cordeiro de Deus, é o único
meio pelo qual o pecado pode ser removido. Pessoas que aceitaram
a verdade sobre Cristo continuaram a se tornar seus discípulos,
aceitando seu convite para “segui-lo”, assim que decidiram
obedecer ao evangelho (como em Atos 2). Esses crentes foram
instruídos pelos apóstolos e evangelistas a viver para Jesus, a
manter um relacionamento íntimo com ele. E, assim, divulgaram
com entusiasmo a boa notícia sobre Jesus. “Entrementes, os que
foram dispersos iam por toda parte pregando a palavra” (Atos
8:4).
O entusiasmo desses cristãos em divulgar o evangelho
explica porque a igreja do primeiro século cresceu de maneira
tão espetacular. Naquela mesma geração, ela se multiplicou e se
espalhou por todo o mundo conhecido.
Assim deve ser hoje! O que deveria nos levar a querer
divulgar a boa notícia sobre Cristo? O maravilhoso pensamento:
“Achamos o Messias! Conhecemos o Cordeiro de Deus!”
Coy Roper
67
JESUS, A AUTORIDADE MÁXIMA
70
Veja a lista na página 29.
71
Flávio Josefo, Vida 16 [86], 41 [207].
68
A mãe de Jesus estava no casamento. Ela é mencionada aqui e
na cruz (19:25-27), mas em nenhuma dessas ocasiões o nome
“Maria” é usado. Talvez essa opção do autor pretendesse evitar
alguma confusão com outras mulheres chamadas “Maria” no
Evangelho. Além de Maria, Jesus também foi convidado, com os
seus discípulos, para o casamento. O termo “discípulos” talvez
incluísse os homens identificados anteriormente: André, Pedro,
Filipe e Natanael, bem como o discípulo não denominado (veja
1:35). Uma possível sugestão é que Jesus e seus discípulos foram
“convidados” para a festa somente depois que apareceram de
repente. A presença deles teria desfalcado o suprimento de
vinho; no entanto, nada na narrativa comprova isto. O aoristo
(eklēthē), traduzido por “convidado”, pode muito bem significar
que eles foram convidados antes da festa começar. O casamento
poderia ser de um parente ou amigo próximo, uma vez que Jesus,
sua mãe e seus discípulos estavam todos presentes. Não há
referência a José aqui, e ele não é mencionado em João, exceto
na expressão “filho de José” (1:45; 6:42). A ausência de seu
nome aqui e em 2:12 parece implicar que ele já havia falecido,
embora a inferência natural com base em 6:42 seja que ele ainda
era vivo. Há certeza de que ele morreu antes da crucificação,
pois Jesus confiou a João os cuidados de sua mãe (19:26, 27).
Versículo 3. O vinho do banquete nupcial havia acabado.
Esse tipo de festejo podia durar até uma semana (veja Gênesis
29:22–28; Juízes 14:12), o que impunha grande responsabilidade
financeira sobre o noivo. O vinho acabar numa ocasião dessa não
era só desagradável, era embaraçoso, especialmente numa
sociedade embasada na cultura da vergonha. Descumprir os deveres
de hospitalidade não resultava só em desgraça social, as
evidências sugerem que o noivo também estaria sujeito a litígio
pois ele era “legalmente obrigado a servir um banquete de certo
padrão”72.
Maria relatou a Jesus que eles não tinham mais vinho. Se o
casamento era de um parente ou amigo próximo, Maria poderia ter
alguma responsabilidade em servir. Não parece provável que ela
estivesse apenas transmitindo a Jesus uma péssima notícia, pois
2:5 parece indicar que ela esperava que Jesus fizesse algo a
respeito. É bem provável que Maria já fosse viúva e dependesse
muito do filho primogênito.
Versículo 4. A resposta de Jesus à declaração de Maria
merece a análise de três pontos. 1) O fato de Jesus se referir
a sua mãe como mulher ( , gunai) não soa tão rude em grego
quanto soa em português. Jesus também usou essa forma de
tratamento em seus últimos momentos na cruz, ao confiar ao
discípulo amado os cuidados com sua mãe (19:26, 27) 73. G.
72
Leon Morris, The Gospel according to John, ed. rev., The New International Commentary on the New Testament.
Grand Rapids, Mich.: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1995, p. 158.
73
Evidentemente, Jesus falou em aramaico com sua mãe, e suas palavras foram traduzidas para o grego no
Evangelho de João.
69
Campbell Morgan disse que podemos ter uma “falsa impressão” do
uso da palavra “mulher” aqui: “Nos lábios de Jesus era uma
palavra de intensa ternura”74. Josefo usou o termo em seus textos
como um sinal de afeição75. As tentativas de encontrar
equivalentes resultaram em “a senhora” (NAA; NLH) e “’minha
senhora’”76. A paráfrase inglesa NEB diz: “Tua preocupação, mãe,
não é minha”. Todas essas sugestões se desviam da ideia
principal, pois “mãe” é precisamente a palavra que Jesus não
usou. O fato de Jesus se referir a Maria usando a palavra
“mulher”, e não “mãe”, provavelmente significa o início de um
novo relacionamento entre eles, no momento em que Ele iniciava
seu ministério público. Tudo, inclusive os laços familiares,
tinha que estar subordinado ao seu ministério.
2) A tradução literal da pergunta de Jesus que tenho eu
contigo? ( , ti emoi kai soi) é: “O que para mim e para
ti?” Trata-se de uma expressão idiomática semítica que “sempre
distancia as duas partes”; “o tom de quem fala sempre está
carregado de algum grau de reprovação”77. Aqui, como em outra
passagem, Jesus estabeleceu distância entre ele e sua mãe (veja
Mateus 12:46–50). A expressão basicamente indaga: “O que temos
em comum?” Ao ingressar em seu ministério, Jesus trataria dos
negócios de seu Pai. Ele estava livre de todas as agendas
humanas, incluindo o fornecimento de vinho em um casamento. O
pedido de sua mãe simplesmente não fazia parte de Sua missão. No
entanto, Jesus atendeu o pedido de Maria – porém, de uma forma
que manifestou a sua glória e gerou fé (veja 2:11).
3) A base sobre a qual Jesus estabeleceu, no início de seu
ministério, uma espécie de barreira entre ele e sua mãe se
reflete na frase: Ainda não é chegada a minha hora. Várias
passagens importantes no Evangelho de João referem-se à “hora”
ou ao “tempo” de Jesus. Essa frase se repete em 7:6, 8, 30
e 8:2078. Em contraste com isto, próximo da crucificação, Jesus
disse: “É chegada a hora de ser glorificado o Filho do Homem”
(12:23; veja 12:27; 13:1; 17:1). Se for correto conectar esta
passagem a outras posteriores, parece claro que Jesus estava
prevendo o cumprimento de seu ministério, ainda que estivesse no
estágio inicial. Bem no começo do seu ministério, Ele previu sua
glorificação ao morrer, ser sepultado, ressuscitado e elevado ao
céu.
Versículo 5. Maria não foi dissuadido pela reprovação de
Jesus. As instruções dela aos serventes indicam que, embora não
tivesse certeza do que Jesus faria, ela confiava nele. Esta é
74
G. Campbell Morgan, The Gospel According to John. Nova York: Fleming H. Revell Co., s.d., p. 48.
75
Flávio Josefo, Antiguidades 17.4.2 [74]. Ele usou gunai para “querida esposa”.
76
F. F. Bruce, The Gospel of John. Grand Rapids, Mich.: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1983, p. 69.
77
D. A. Carson, O Comentário de João. Trad. Daniel de Oliveira e Vivian Nunes do Amaral. São Paulo: Shedd
Publicações, 2007, p. 170.
78
Em 7:6 e 8 “tempo” ( , kairos) é usado no lugar de “hora” ( , hora). “Tempo” nesse contexto parece indicar
um tempo oportuno em vez de o tempo da glorificação de Jesus.
70
uma demonstração clara de fé da parte dela. Também indicam que
ela talvez desempenhasse o papel de auxiliar na preparação das
festividades. Fazei tudo o que ele vos disser é uma declaração
simples e profunda, podendo ser aplicada muito mais do que nessa
ocasião.
A REALIZAÇÃO DO SINAL (2:6-10)
79
Os requisitos para se fazer a purificação estão registrados em Marcos 7:1-4.
80
Walter Bauer, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature, 3a. ed., rev. e
ed. Frederick William Danker. Chicago: University of Chicago Press, 2000, p. 91.
81
B. F. Westcott, The Gospel According to St. John. Cambridge: University Press, 1881; reprint, Grand Rapids, Mich.:
Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1950, p. 38.
71
fato de terem sido enchidas totalmente indicam que o sistema de
purificação judaico, com todas as suas observâncias cerimoniais,
estava cumprido. Quer este simbolismo seja correto, quer não, é
evidente que o ato de Jesus demonstrou a autoridade e a
superioridade do Filho de Deus. Os serventes obedeceram às
instruções de Jesus, retirando um pouco da bebida e levando-a ao
“mestre-sala”. O “mestre-sala” ( , architriklinos), termo
usado somente neste versículo do Novo Testamento, era o
responsável pelas festividades. Ele era “o dirigente da festa”
(NTLH), “o encarregado da festa” (NVI) ou “O responsável pela
festa” (NAA).
Versículos 9 e 10. A água se transformou em vinho. João não
registrou quando a água se transformou em vinho ou quanto da
água se transformou em vinho. O consenso comum é que toda a água
das talhas se transformou em vinho. Nesse ato, Jesus deu um
presente incrível ao casal de nubentes que talvez fosse pobre e
incapaz de prover toda a quantidade de vinho necessária para
servir seus convidados. Alguns veem nesse milagre uma
significação espiritual, no sentido de que Jesus sempre oferece
uma abundância de dádivas.
O que Jesus produziu nesse milagre foi (oinos), a
palavra grega mais comum para “vinho”. Este termo genérico é
usado na LXX e no Novo Testamento com referência tanto ao vinho
novo de uvas frescas espremidas (Isaías 16:10; Joel 2:24; Mateus
9:17; Lucas 5:37, 38) quanto ao vinho como uma bebida forte
(Gênesis 9:21; 19:32; Efésios 5:18; Apocalipse 17:2). Só o
contexto histórico e cultural pode definir com certeza o
significado do termo.
Embora alguns estudiosos insistam que no tempo de Cristo
todo vinho era fermentado82, há muitos argumentos em favor da
existência de uma variedade de vinhos. Andreas J. Köstenberger
observou o seguinte:
72
fermentado em proporções de dois para um até de vinte para um 84.
Uma referência de cerca de 60 a.C. alega que “é nocivo beber
somente vinho, ou, novamente, somente água, ao passo que beber a
água e o vinho misturados aumenta a alegria”85. Dada a má
qualidade da água naqueles dias e as propriedades intoxicantes
das bebidas fortes, era bastante comum misturar os dois para se
obter uma bebida segura com pouco ou nenhum efeito
intoxicante. O argumento em favor de que “vinho” significava
suco de uva pode ser visto nas passagens bíblicas citadas
anteriormente sobre o vinho de uvas frescas espremidas. A
terceira possibilidade enumerada por Köstenberger pode ser
comprovada por várias fontes, incluindo o poeta mais famoso de
Roma, Virgílio (70-19 a.C.). Numa exposição sobre a agricultura
e as condições do tempo, ele descreveu o ato de se “reduzir em
fervura o suco doce do mosto de uvas, no fogo, enquanto se
escorre o líquido do caldeirão com uma folha”86.
Tudo o que sabemos com certeza sobre o que Jesus produziu
na festa de casamento é que era um bom vinho. Embora os
serventes soubessem donde viera o vinho, o mestre-sala não o
sabia. Ao provar o vinho, ele chamou o noivo e lhe disse que ele
agira de forma contrária à prática cultural. Normalmente, o “bom
vinho” era servido no início da festa, e o vinho inferior era
oferecido somente depois que os convidados já tinham bebido
fartamente. O responsável pelos serventes, sem dúvida, ficou
positivamente surpreso com o fato de o noivo ter reservado o
“bom vinho” (o vinho que Jesus produziu) até aquele momento. Com
base nas expressões “bom vinho” e “beberam fartamente”, uma
possível alegação seria que o vinho produzido por Jesus tinha
teor alcoólico.
A expressão “bom vinho” pode sugerir que ele tinha um
elevado teor alcoólico. Mark A. Blackwelder argumentou, no
entanto, que “é um erro supor que o que era considerado ‘bom’
naquele tempo é idêntico ao que é considerado ‘bom’ hoje”87. As
evidências existentes indicam que os melhores vinhos são aqueles
cujo teor alcoólico foi retirado por meio de fervura ou
filtragem. Plínio, o Velho, disse que “os vinhos são mais
benéficos quando todo o seu teor foi retirado pelo
88
filtro” . Plutarco disse: “Da mesma forma, purificar o vinho
retira dele toda a força que inflama e enfurece a mente,
concedendo-lhe, no lugar, uma disposição serena e saudável”89. O
vinho de Jesus era “bom vinho” porque era de alta qualidade. Era
vinho novo, recém produzido, não envelhecido de modo a ter
84
Robert H. Stein, “Wine-Drinking in New Testament Times”, Christianity Today 19. 20 de junho de 1975, p. 9.
85
Veja 2 Macabeus 15:39.
86
Virgílio, Geórgicas 1.287.
87
Mark A. Blackwelder, “Jesus Turns Water into Wine”, Freed-Hardeman University Lectures. 2008, p. 293.
88
Plínio, o Velho, História Natural 23.24.
89
Plutarco, Symposiacs 6.7.
73
efeito inebriante. O processo de fermentação ainda não havia
começado. O texto simplesmente diz que o vinho que Jesus
produziu era superior ao que havia sido servido anteriormente. A
ênfase de João na excelente qualidade do vinho que Jesus
produziu é coerente com a natureza de seus feitos registrados em
todo o Evangelho.
O álcool embota os sentidos e, consequentemente, torna o
consumidor menos capaz de discernir uma alteração de sabor. O
verbo traduzido pelas palavras “beberam fartamente”
( , methusthōsin) é um subjuntivo aoristo passivo na terceira
pessoa do plural que significa “eles podem ter ficado
bêbados”. O relato não diz que foi isto o que aconteceu aqui,
mas simplesmente reconhece o que geralmente acontece.
Embora seja verdade que uma bebida alcoólica entorpece os
sentidos e inibe o paladar, este não é o único significado
possível de “beberam fartamente”. A afirmação do encarregado dos
serventes seria verdadeira mesmo se o vinho fosse sem álcool,
uma vez que a embriaguez não é a única razão possível para que
uma pessoa que já tenha “bebido fartamente” não esteja com bom
paladar. Quando um indivíduo prova vinho ou outras bebidas
ácidas, sua capacidade de degustar o sabor é
diminuída. Blackwelder disse: “O caráter ácido do suco de uva
tem o efeito de reduzir a capacidade de discernir o sabor. Essa
é uma das razões pelas quais quem prova vinho, mesmo nos tempos
modernos, limpa o palato entre as degustações”90. O degustador
de vinho não se embriaga com um gole; todavia, sem limpar o
palato, ele não poderia discernir bem o sabor da próxima
degustação. Segue-se, então, que dizer que os convidados
“beberam fartamente” não impõe a conclusão de que eles se
embriagaram. Talvez a expressão significasse que os convidados
estavam saciados, fartos.
Embora a natureza exata do que Jesus fez no casamento
continue a ser uma questão controversa, não há razão para
concluir que o vinho produzido por Jesus era o tipo associado à
embriaguez, a qual é claramente condenada nas Escrituras
(Gênesis 9:21; 19:32; Provérbios 20:1; 23:20, 30, 31; Amós 6:1–
6; Efésios 5:18), e não o tipo que pode ser visto como uma
bênção (Salmos 104:15; Isaías 55:1). Argumentar que Jesus criou
alguma substância não aprovada pelas Escrituras é dizer que ele
agiu de modo incoerente com o seu caráter. É inimaginável que
ele produziria uma quantidade tão grande de algo que é
desaprovado pelas Escrituras. Se Jesus forneceu bebida forte,
conclui-se que ele contribuiu para uma indulgência imprudente. É
inconcebível pensar que Jesus cairia na desgraça prevista
“àquele que dá de beber ao seu companheiro” (Habacuque
2:15). Este incidente não deve ser citado como um exemplo para
endossar a exagerada ingestão de bebidas alcoólicas num ambiente
90
Blackwelder, p. 293.
74
social, praticada no mundo de hoje. Fazer isso indica claramente
falta de entendimento da prática histórica e culturalmente nos
tempos de Jesus.
O EFEITO DO SINAL (2:11)
91
C. K. Barrett, The Gospel According to St. John, 2a. ed. Filadelfia: Westminster Press, 1978, p. 193.
75
apontava, a saber, a glória de Jesus. E, assim, creram
nele. Gerar fé era a intenção de João, e seu propósito ao
escrever era demonstrar que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus
(20:31). Conforme se vê em todo este Evangelho, a glória de
Jesus manifestou-se repetidamente, culminando em sua morte,
sepultamento, ressurreição e exaltação final.
76
JESUS
A AUTORIDADE MÁXIMA
A Purificação do Templo
(2:12-25)
92
Veja 2:12; 3:22; 5:1, 14 (“mais tarde”); 6:1; 7:1; 11:7, 11 (“depois”); 19:28, 38; 21:1.
77
Pentecostes, realizado no mês de Sivan (maio-junho), e a Festa
dos tabernáculos, no mês de Tishri (setembro-outubro). O
propósito da Páscoa era comemorar a libertação de Israel da
escravidão egípcia93. A Festa dos Pães Asmos, uma festa de sete
dias, acontecia imediatamente após a Páscoa. No primeiro século,
ambas eram celebradas juntas, como uma festa de oito dias, sendo
chamadas alternadamente pelos dois nomes.
Todo homem judeu tinha de comparecer à Páscoa
anualmente. Com isso em mente, João registrou que, na primeira
Páscoa, subiu Jesus para Jerusalém a fim de celebrar a festa
como fora ensinado desde a infância (veja Lucas 2:41). João
mostrou sua atenção a detalhes quando disse que Jesus “subiu”
para Jerusalém. Situada oitocentos metros acima do nível do mar,
a cidade sagrada dos judeus ficava a uma altitude muito maior do
que Cafarnaum.
A PURIFICAÇÃO (2:14-17)
14 E encontrou no templo os que vendiam bois, ovelhas e pombas e
também os cambistas assentados; 15 tendo feito um azorrague de
cordas, expulsou todos do templo, bem como as ovelhas e os bois,
derramou pelo chão o dinheiro dos cambistas, virou as mesas 16 e
disse aos que vendiam as pombas: Tirai daqui estas coisas; não
façais da casa de meu Pai casa de negócio. 17 Lembraram-se os
seus discípulos de que está escrito: O zelo da tua casa me
consumirá.
Versículo 14. O templo incluía uma grande área com pátios e
paredes que conduziam ao templo propriamente dito. O primeiro
pátio era chamado de “Pátio dos Gentios”. Qualquer pessoa podia
entrar nessa área, enquanto as outras áreas eram restritas a
homens e mulheres judeus ou somente a homens judeus. A venda de
animais acontecia no pátio externo. A incrível quantidade de
atividades realizadas nessa área transformou-a praticamente num
mercado. Os adoradores precisavam de animais para oferecer em
sacrifício; possivelmente alguns viajantes não traziam consigo
esses animais de sacrifício ou traziam animais impróprios. Por
essa razão, os mercadores vendiam ali bois ovelhas e pombas. Em
vez de efetuar as negociações em estábulos, os vendedores
levavam seus animais para o Pátio dos Gentios, onde muitas
pessoas iam para orar e meditar.
E, para completar, os cambistas montaram suas mesas nesse
pátio. Todo judeu do sexo masculino a partir de vinte anos era
obrigado a pagar um imposto para a manutenção do templo (veja
Êxodo 30:13, 14; Mateus 17:24)94. Quando os judeus chegavam a
Jerusalém para as festas, tinham de trocar dinheiro para pagar
93
Essa festa tem um significado especial para os cristãos porque foi numa Páscoa (11:55) que Jesus foi preso e
crucificado.
94
Veja mais em Sellers S. Crain Jr., Mateus – Parte 6. A Verdade para Hoje. Disponível em www.bible.courses.com.
78
esse imposto. O siclo de Tiro, quase equivalente ao antigo siclo
hebraico, havia sido sancionado pelos líderes judeus para esse
propósito95. Essa moeda foi adotada por causa de seu alto
conteúdo de prata e porque “não ostentava o domínio de Roma
sobre Israel”96. Algumas moedas estampavam a imagem de César,
que, segundo a crença de muitos judeus, não deveria ser colocada
no tesouro do templo. Ironicamente, os siclos de Tiro usados
para pagar o imposto do templo eram cunhados com a imagem de uma
divindade pagã!97
Os Evangelhos Sinóticos registram que Jesus recriminou os
comerciantes porque tinham transformado o templo num “covil de
salteadores” (Mateus 21:13; Marcos 11:17; Lucas 19:46). Ao que
parece, alguns comerciantes estavam cobrando demais e tirando
vantagem do povo. Não estavam sendo honestos em seus negócios. A
ênfase de João parece ser que Jesus estava se opondo à atividade
comercial na área do templo; esses comerciantes deveriam estar
efetuando seus negócios em outro lugar. Dá para imaginarmos a
dificuldade de se concentrar na oração e na meditação com a
agitação das pessoas, o mugido dos bois e o balido das
ovelhas. Certamente, era possível encontrarem um local mais
adequado para as negociações de compra e venda.
Versículos 15 e 16. Jesus fez um azorrague [“chicote”; NVI]
de cordas, talvez com juncos que serviam para acomodar animais,
e expulsou todos do templo. Este incidente poderia ilustrar duas
passagens do Antigo Testamento. Malaquias 3:1-3 diz: “o meu
mensageiro... de repente, virá ao seu templo... purificará os
filhos de Levi”. Zacarias 14:21 diz: “Naquele dia, já não haverá
mercador na Casa do Senhor dos Exércitos”. Jesus foi enérgico em
seu ato, embora não se deva pensar que Ele foi cruel.
Provavelmente, não foi tanto sua força física com o chicote de
juncos, mas sua justa indignação que esvaziou a área. A ira de
Jesus, e não o seu chicote, purificou o templo. Ele expulsou os
mercadores, juntamente com suas ovelhas e bois.
“tendo feito um azorrague de cordas, expulsou todos do templo,
bem como as ovelhas e os bois, derramou pelo chão o dinheiro dos
cambistas, virou as mesas” (João 2:15 RA)
Ele espalhou o dinheiro dos cambistas e virou as mesas. Aos
que vendiam as pombas, ordenou: Tirai daqui estas coisas; não
façais da casa de meu Pai casa de negócio. O templo não era um
mercado. Era a casa de seu Pai, e Jesus não poderia ficar parado
assistindo ao templo ser profanado.
Versículo 17. Jesus ficou tão irado com toda essa questão
que lembraram-se os seus discípulos de um verso do Salmo
69:9a: O zelo da tua casa me consumirá. Não está claro se os
discípulos se lembraram desse texto naquele momento ou após a
95
Mishná, Bekhoroth 8.7; Talmude, Kiddushin 11a.
96
David E. Garland, “Mark” em Zondervan Illustrated Bible Backgrounds Commentary, vol. 1, Matthew, Mark, Luke,
ed. Clinton E. Arnold. Grand Rapids, Mich.: Zondervan, 2002, p. 270.
97
Veja a foto em Garland, p. 270.
79
ressurreição de Jesus (veja 2:22). Salmos 48:69 é outra passagem
messiânica citada em outro trecho de João, bem como em outros
trechos do Novo Testamento98. O templo não era um lugar de
adoração qualquer; era o lugar designado para a adoração pura ao
Deus único e verdadeiro. Jesus levou para o lado pessoal a
maneira como estavam usando o templo; afinal, era a casa de seu
Pai. Ao dizer “a casa de meu Pai” (2:16), Jesus estava
declarando que ele era mesmo o Filho de Deus; tinha um
relacionamento especial com o Pai. Este relato do que Jesus fez
no templo é coerente com o propósito de João de mostrar que
Jesus é o Cristo (Messias), o Filho de Deus. Edwyn Clement
Hoskyns o colocou desta forma: “A ação não é meramente a de um
reformador judeu: é um sinal do advento do Messias”99.
Embora existam várias diferenças entre o relato dessa
purificação do templo em João e nos Evangelhos Sinóticos (Mateus
21:12, 13; Marcos 11:15-17; Lucas 19:45, 46), a diferença mais
óbvia está na ordem cronologia do episódio. Em João, ela aparece
como o primeiro dos grandes atos públicos do ministério de
Jesus, ao passo que nos Evangelhos Sinóticos é seu último ato
público, ocorrendo no início da última semana em Jerusalém,
pouco antes de ser crucificado. Alguns comentaristas insistem
que houve apenas uma purificação do templo. Isto é possível,
especialmente porque João parecia estar mais focado em teologia
do que em cronologia. Raymond E. Brown comentou o seguinte:
“Buscar a sequência cronológica perfeita em João é um esforço
inútil, pois o próprio evangelista nos advertiu de que esse não
era seu objetivo [20:30, 31]”100. F. F. Bruce deu esta opinião:
80
portanto, vista pelos Evangelhos Sinóticos como o último ato de
Jesus, que invocou a ira sobre os “judeus”.
A REAÇÃO (2:18-22)
102
A construção do templo começou por volta de 19 a.C., por isso os “quarenta e seis anos” (2:20) datariam o
acontecido em ca. 27 a.C., o que seria no início do ministério de Jesus. Muitos eruditos datam o nascimento de
Jesus em 4 a.C. aproximadamente, e ele iniciou seu ministério quando tinha “cerca de trinta anos” de idade (Lucas
3:23).
103
D. A. Carson, O Comentário de João. Trad. Daniel de Oliveira e Vivian Nunes do Amaral. São Paulo: Shedd
Publicações, 2007, p. 181.
104
William Hendriksen, O Evangelho de João. Comentário do Novo Testamento. Trad. Elias Dantas e Neuza
Batista. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 169.
81
Versículos 19 e 20. Jesus atendeu ao pedido por um sinal
dizendo: Destruí este santuário, e em três dias o reconstruirei.
Ao dizer isso, ele tinha em vista a morte e ressurreição de seu
corpo, uma resposta que nem as autoridades religiosas (2:20) nem
os seus discípulos (2:22) compreenderam. Em seu
julgamento, Jesus foi acusado de dizer que destruiria o templo e
construiria outro em três dias (Mateus 26:60, 61; Marcos 14:57–
59). O testemunho foi rotulado de “falso” porque Jesus realmente
disse: “[Vós] destruí... e... [eu] o reconstruirei”, e não “eu o
destruirei”. O que Jesus disse referia-se primordialmente ao seu
próprio corpo e não ao templo. A falsa acusação de que Jesus
havia dito que destruiria o templo também foi feita pelos
zombadores na cruz (Mateus 27:40; Marcos 15:29), pelos que
apedrejaram Estêvão (Atos 6:13, 14; veja 7:48; 17:24) e pelos
acusadores de Paulo (Atos 21:28).
Os judeus pensavam ser inacreditável que uma estrutura tão
magnífica como o templo fosse reconstruída em três dias. O
templo daquela época era o edifício cuja reforma foi iniciada
por Herodes em 19 a.C.105 e concluída em 64 d.C.106, somente seis
anos antes de ser destruído. Em harmonia com isto, a declaração
de que levara quarenta e seis anos para construir o templo deve
ser entendida como uma referência ao longo período em que o
templo ficara em obras. Sem dúvida, o fato de o templo ainda
estar em construção só os deixou mais surpresos com a resposta
de Jesus.
Versículos 21 e 22. João deixou claro que Jesus não estava
falando de um templo de pedras, mas sim do santuário do seu
corpo - o novo tabernáculo da presença de Deus na terra (veja
1:14). Jesus, em um corpo humano, revelou o Pai. Ele se tornou o
novo local da presença de Deus na terra. Assim como Jesus
substituiu o antigo tabernáculo (veja os comentários sobre
1:14), Ele substituiu o templo e tudo o que ele significava na
vida e adoração. Craig R. Koester observou três níveis de
significado que podem ser inferidos: 1) Ao interromper o
comércio essencial para o sacrifício, Jesus “prenunciou a
cessação permanente da adoração sacrificial em Jerusalém e sua
substituição pela sua própria morte”. 2) “A promessa de Jesus de
um novo templo sugere que a glória de Deus se manifestaria, não
em um edifício, mas em uma pessoa.” 3) Por último, “o Jesus
crucificado e ressuscitado seria um símbolo unificador para o
povo de Deus, tal como fora anteriormente o templo” 107. Se os
atos e palavras de Jesus simbolizavam tudo isso, não sabemos com
certeza. Podemos afirmar com certeza que a nova presença de Deus
na terra seria ressuscitada dentre os mortos três dias após sua
morte e sepultamento.
105
Flávio Josefo, Antiguidades 15.11.1.
106
Ibid., 20.9.7.
107
Craig R. Koester, Symbolism in the Fourth Gospel: Meaning, Mystery, Community. Minneapolis: Fortress Press,
2003, pp. 87–89.
82
João tornou essa verdade explícita quando disse que, após a
ressurreição de Jesus, os discípulos lembraram-se dessa
declaração. Esse mesmo processo ocorre em relação a vários
acontecimentos registrados em João. A importância de vários
acontecimentos só é percebida quando ocorrem acontecimentos
posteriores (veja 12:16). Embora os discípulos tenham se
lembrado de muitos fatos anteriores, não devemos esquecer a
promessa de que o Espírito Santo traria à lembrança deles tudo o
que Jesus havia ensinado (14:26).
Os discípulos não só se lembraram do que Jesus tinha dito,
mas também creram na Escritura e na palavra de Jesus. Não está
claro se os discípulos tinham em mente uma passagem
bíblica. Nesse caso, poderiam facilmente ter se lembrado de
Salmos 16:10, interpretado como uma referência à ressurreição
em Atos 2:31 e 13:35. “A palavra de Jesus” era a que está
registrada em João 2:19. Colocar as palavras de Jesus ao lado da
Escritura põe suas palavras em nível de igualdade com a
Escritura. Isto e condizente com quem Jesus é, a saber, Deus em
carne.
O EFEITO GERAL (2:23-25)
108
Convém lembrar que as divisões por capítulos usadas hoje foram elaboradas por Stephen Langton, arcebispo de
Canterbury, no início do século XIII. O posicionamento dessas divisões no texto, por vezes, não é necessariamente o
melhor, como vemos aqui.
83
interesse no Senhor. Jesus conhecia a todos e sabia o que era a
natureza humana, o que evidencia sua divindade (veja 1 Reis
8:39; Jeremias 17:10; Hebreus 4:12). Ele não precisava de que
alguém lhe desse testemunho a respeito do homem. “Sabendo o que
era a natureza humana”, Jesus sabia que a fé do povo ainda era
superficial e, portanto, ele mesmo não se confiava a eles. Como
observou Homer A. Kent Jr., essa afirmação apresenta um jogo de
palavras interessante. A palavra traduzida por “confiar” em 2:24
é (episteuen), quase exatamente a mesma palavra traduzida
por “creram” em 2:23. O sentido é o seguinte: “Muitos creram
[uma ação definida num determinado momento] em Jesus, mas Jesus
não estava crendo neles”109. Identificam-se pelo menos dois
níveis de fé em Jesus: 1) a fé que permite ser feito filho de
Deus (veja 1:12) e 2) a fé aqui mencionada. A primeira é uma
convicção profunda e duradoura de que Jesus é o Cristo e um
compromisso de se entregar a ele. A segunda é uma aceitação de
Jesus intelectual e superficial, porque ele atendeu a algum
padrão estabelecido pelo indivíduo (por exemplo, a operação de
um milagre ou sinal). Isso não quer dizer que os sinais não eram
importantes, uma vez que o propósito de João era registrar
sinais para gerar fé, a qual, por sua vez, levaria à vida
(20:30, 31). No entanto, em todo o Evangelho de João, é evidente
que achar a salvação exigia mais do que simplesmente responder a
um sinal; envolvia um profundo senso de confiança em
Jesus. Warren W. Wiersbe observou que “uma coisa é reagir a um
milagre, outra bem diferente é assumir um compromisso com Jesus
Cristo e permanecer em sua Palavra”110.
109
Homer A. Kent Jr., Light in the Darkness: Studies in the Gospel of John. Winona Lake, Ind.: BMH Books, 1974, pp.
52–53.
110
Warren W. Wiersbe, Comentário Bíblico Expositivo: Novo Testamento: volume I. Trad. Suzana E. Klassen. Santo
André, SP: Geográfica Editora, 2006, p. 377.
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