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Universidade Estadual do Ceará – UECE

Licenciatura em Música
Métodos e Técnicas de Pesquisa Científica em Música
Aluno: Ícaro Tavares Capelo Camanho

Resposta às Questões Propostas no Texto “Música, Pesquisa e Subjetividade”

1. Você já tem alguma questão de pesquisa em mente? Ela se origina ou se relaciona com sua
prática?

Apesar de não possuir nenhuma questão específica de pesquisa em música, tenho


inquietações mais gerais, e que não são genéricas, mas relacionadas no meu percurso até o
momento. Tendo tido a formação básica para a leitura e execução de peças no violão, através do
ensino no conservatório, e num momento posterior, tendo dado os primeiros passos em
experimentações musicais com artistas da cidade, uma curiosidade me move: que tipos possíveis de
organização de sons podem ser criados? No contexto multicultural que nos atravessa de modo cada
vez mais intenso, como podemos incorporar os sistemas e organizações musicais (de um modo mais
amplo) já existentes na prática composicional e performática de música, sem que recorramos ao
velho expediente ocidental de apropriação cultural e tradução (traição?) para o sistema ocidental
europeu vigente? Qual a diferença entre composição, improvisação, experimentalismo, e a criação
de um modo novo de organizar sons sucessivos, simultâneos, em seus timbres?
Tais questões me acompanharam, simultaneamente, no âmbito acadêmico, desde o tempo
em que estudava filosofia da arte na graduação, e me levaram um pouco mais a fundo (mas não o
suficiente) na pós-graduação em artes, onde procurei compreender as relações entre música
experimental e sua nova proposta de escuta e métodos composicionais com o acaso e o ruído (na
esteira do que propunha John Cage, Pierre Schaeffer, e posteriormente Murray Schafer) e tecnologia
nômade (algo da ordem da gambiarra, do improviso com o arranjo dos materiais do som e da
própria construção de um “instrumento”, como o grupo O Grivo realiza).
Questões que se multiplicaram ao longo da pesquisa, por inabilidade e desorganização
minha, ou pela magnitude da escala que o problema ganhou. Multiplicaram-se as encruzilhadas, e o
problema no âmbito geral se reconfigurou e se tornou mais complexo, sem que eu consiga
visualizar algum caminho possível, até os dias de hoje.
2. Como escolher ou formular uma questão de pesquisa?

Na caminhada que realizei até agora, precisei encontrar pensadores que se dedicaram a
questionar certos pilares segundo os quais se compreende majoritariamente a subjetividade – ou
ainda, onde se identifica a produção de subjetividades que está expressa em todos os tipos de
manifestações estéticas do ser humano e dos outros vivos, com a produção de subjetividade do
capitalismo, que se dedica a se apropriar, quando não a tratorar, toda expressão singular, criativa,
divergente a seus ditames de produtividade em série e em massa, reprodutibilidade, a seu
antropocentrismo etnocêntrico. Questionar o mito, herdado do romantismo europeu do século XIX,
de que o artista é inerentemente libertário, que ele pode indiscriminadamente guiar a consciência de
seu povo, que ele, mesmo com o pé sujo de lama, com o chapéu vazio, transcende as agruras do
mundo com sua expressão e criatividade, com sua mensagem. O que é perceptível a várias histórias
de superação, é de fato a captura pelo capitalismo, a acomodação ou transformação daquele que era
um marginal em herói, ou ainda pior, em um rosto- propaganda.
Dentre todos os pensadores e artistas com quem eu procurei entender melhor esta situação, o
que define a questão de modo mais conciso seria Bruno Latour, em seu livro “Jamais Fomos
Modernos”. Lá, o autor propõe que pensamos ou vivemos a ciência clássica (afinal, o mundo que
vivemos é pautado por ela), ou quando pensamos a ciência das leis “humanas” (o direito é o
exemplo mais recorrente) que governam as nações atuais, operamos uma separação artificial, ou
melhor, criada. E que esta separação não procede apenas por uma ordem de razões (como se vê no
método de Descartes), mas por um condicionamento da percepção e da sensibilidade – e sobretudo,
por interesses mais imediatos, de natureza política. Latour leva às últimas consequências – ou, se
preferirmos, “ao pé da letra” – o método científico e observa que, entre os cientistas “naturais”
(como os físicos e os biólogos) e os cientistas humanos (como os antropólogos, dentre os quais o
próprio autor se inclui, e os juristas, dentre outros), há uma discrepância, um vazio, que rapidamente
é suprimido por um conjunto de regras destinadas a excluir esta lacuna, este lugar indefinido.
Em termos mais concretos, Bruno Latour se refere à divisão que operamos entre homem e
natureza, das quais se deduz uma divisão entre subjetividade e objetividade. A posição do cientista-
sujeito que observa, e do objeto que é estudado é bem definida para os Modernos (e esta é a
finalidade e a base de seu método e de sua crença antropologicamente validada). Há, no entanto,
animais que pensam e sentem, homens que não são considerados gente por construírem uma
compreensão e vivência de mundo radicalmente distinta da que vivemos. Há “objetos” tecnológicos
ou naturais que possuem um grau de autonomização que se assemelha em vários pontos ao que
compreendemos por subjetividade – como nós, músicos, podemos perceber ao nos debruçarmos
sobre fenômenos acústicos ou musicais que parecem mais nos guiar do que o contrário. Em suma, o
autor aponta a questão de sabermos se o que nós definimos como Homem não passa de uma
construção antropológica; e que, se nós passássemos a realmente fazer ciência segundo suas leis,
nós teríamos que buscar uma simetria, incluindo o que ficou no meio entre o sujeito e o objeto, o
homem e a natureza, que foi suprimido ou ignorado. E isto mudaria radicalmente o modo como
vivemos nesta sociedade, pois alteraria como percebemos e criamos uma visão de mundo.

3. Reflita sobre sua prática, seja ela prioritariamente artística ou docente, e identifique algum
aspecto ou tópico que o intriga ou que desperta seu especial interesse. Procure informações a
respeito, pois pode existir farto material a respeito que contenha as respostas que você deseja.
Ou, ao contrário, as informações disponíveis continuam insatisfatórias para você. É aí que
reside sua questão de pesquisa.

No caso da música, que nos é mais próximo e mais caro, é conhecido o modo como tratamos
os ritmos e a afinação: a escala temperada ainda é chamada e percebida como “natural” por muitos;
o ritmo é ainda guiado por uma subdivisão matemática de números inteiros. É sabido que em toda
cultura é operada uma seleção, uma filtragem ao mesmo tempo em que é criação, de um
agrupamento de sons em uma escala, e de como e porque os sons aparecem numa sucessão
melódica e rítmica. O erro, na cultura ocidental em que vivemos, em que fomos colonizados, seria o
de definir segundo seus próprios procedimentos o que é “racional” (por supostamente se assemelhar
à natureza, isto é, a série harmônica na melhor acomodação possível de intervalos), o que faz
sentido, e excluir todo o resto como um amontoado de cantos e toques “incivilizados”.
Compreendemos as limitações da educação musical europeia na medida em que conhecemos outras
formas (por vezes mais antigas do que aquela) de fazer música ao redor do mundo.
Isto também é conhecido pelos músicos europeus do século XX que se dedicaram à ruptura
“por dentro” da organização tradicional da música, como é o caso de Pierre Boulez, oriundo do
serialismo de Schoenberg. Ainda que não buscasse formas diversas de afinação, registro e execução
(no âmbito da escolha dos timbres), Boulez realiza em sua obra “Penser la Musique Aujourd-hui”
um outro modo de divisão: entre o espaço-tempo sonoro liso e estriado. Da escolha de ritmos e
frequências definidas, e em grau maior ou menor dotadas de uma métrica, teríamos um espaço
estriado. Da sucessão de sons e de ritmos caóticos, assimétricos, probabilísticos, ou indefinidos,
teríamos um espaço liso. De um lado, um espaço como as ruas de uma cidade, onde cada ponto é
localizável e quantificável, que corre pelas ruas como corre em trilhos, não importando o volume
nem a complexidade de sua circulação. De outro, um espaço que é como o céu onde circula uma
revoada de pássaros, ou uma mistura entre água do mar e do rio, ou de raspas de metal e madeira se
reorganizando na ação de um ímã (onde se obedece as leis da estocástica em fluxos turbilhonares,
ou da ação não-linear de campos magnéticos).
Mas a divisão que Boulez opera não é estanque: um espaço sonoro liso que é
demasiadamente polarizado pode ser ouvido como um espaço estriado (pode-se captar as
recorrências, as repetições, e até mesmo registrá-las numa partitura, ou reproduzi-las); um espaço
sonoro estriado que é demasiadamente complexo e plural pode ser ouvido como um espaço liso
(como um solo de John Coltrane, de onde não se extrai uma frase bem definida pela rapidez e
complexidade da variação em que é ouvida, mas apenas um rastro, uma nuvem do que foi ouvido, e
que rapidamente é apagada por uma nova sucessão de sons).
Atualmente, o que me parece mais interessante é o fato de que isto sempre esteve na música
que insistimos em chamar de tradicional (que na verdade diz respeito apenas à tradição européia),
sobretudo no encontro com outras matrizes culturais, com perspectivas bastante distintas do que é
música. Como é o caso bem próximo de nós, cearenses, dos pífanos, que Fábio Figueiredo e Angela
Lühning descrevem em seu artigo “Terça neutra: um intervalo musical de possível origem árabe na
música tradicional do nordeste brasileiro”. Mais do que se acomodarem à afinação tonal, os
flautistas de pífano acomodam a afinação tonal ao seu modo de entoar e de executar uma peça, e
com isso, produzem, sem necessariamente desviar ou romper nenhuma barreira, algo novo. De fato,
como diria Bruno Latour, jamais fomos modernos (portanto, também jamais fomos pós-modernos).
E é precisamente a respeito deste limiar, que se encontra em nós, na nossa percepção, que
atualmente compreendo que a divisão entre tipos de música – vanguardista ou tradicional, ou
qualquer outra dicotomia desta natureza – é infinitamente mais complexa do que simplesmente
tomar partido por uma escola de pensamento ou de estética. Muitas dúvidas e inquietações surgem
daí, sem que eu me proponha a dar qualquer resposta no momento. Acredito que é necessário tanto
seguir pesquisando novas concepções de música e de cultura em geral, quanto seguir me
aprimorando enquanto músico em sensibilidade e em técnica.

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