[...] o poema regista as perceções e as impressões de um observador caminhando nas ruas no- turnas da cidade. [...] o narrador de “O sentimento dum ocidental” descreve um passeio solitário. O seu passeio não é apenas um movimento no espaço das ruas da cidade; é também um pro- 5 cesso no tempo, uma viagem para dentro da noite durante a qual o narrador penetra e confronta o mundo simbólico de sombras reais que é a cidade noturna. Noite e cidade [...] são equivalentes simbólicos. A cidade é Lisboa; o “sentimento” do título é o do narrador, natural do extremo ocidental da Europa, um português. Mas a cidade também representa o todo da civilização ocidental a que 10 Portugal pertence; e o sentimento que ela provoca é ao mesmo tempo um produto dessa civiliza- ção e um protesto contra ela. O poema, como uma sinfonia em quatro andamentos, desenvolve-se em quatro secções de onze quadras. A simetria desta estrutura é internamente reforçada pela simetria das inter-rela- ções funcionais entre as várias imagens, situações, caracteres, sentimentos registados no poema 15 e pelas subtis correspondências no tratamento do espaço e do tempo. A progressão da noite, desde o crepúsculo e o acender das luzes até à completa escuridão das “horas mortas”, é acompanhada, num complexo contraponto, por um correspondente aprofundamento dos sentimentos e perceções do caminhante solitário nas ruas da cidade. O me- lancólico “desejo absurdo de sofrer” despertado pelo anoitecer é justaposto com uma nostálgica 20 evocação visionária do passado; a mórbida exacerbação da angústia ao acender das luzes é jus- taposta com as alucinações febris de um presente fantasmagórico; a intensificada amargura pro- vocada pela crescente escuridão é justaposta com a presença espetral dos seres reais que se movem na cidade; finalmente, na escuridão total das horas mortas, a evocação ansiosa de um futuro gerado pela própria noite, como a sua necessária negação num novo dia, é justaposta com 25 a culminante visão desesperada da dor humana como um sinistro mar de fel em busca dos seus amplos horizontes bloqueados. A visão totalizante da cidade – como facto social, paisagem humana e condição espiritual –, que é o efeito final do texto do poema, é assim, por sua vez, o resultado do efeito cumulativo do método poético nele adotado. Na verdade, a própria organização narrativa do poema – que 30 regista o deambular do observador pelas ruas da cidade – transforma a aparente ausência de nexo da sua progressão aleatória no seu plano estrutural. Conforme o texto se desenvolve e a sequência justaposta das coisas observadas vai emergindo como um longo e complexo assíndeto, misteriosas relações implícitas entre elas e as reações por elas provocadas vão-se revelando até se definirem como a expressão objetivada do “sentimento” que é o efeito compósito do poema 35 como um todo. MACEDO, Helder, 1986. Nós – Uma leitura de Cesário Verde. 3.ª ed. Lisboa: Dom Quixote (pp. 169-170) (1.ª ed.: 1975) fotocopiável