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364 Outros Materiais  ·  Textos informativos complementares Sequência  6.

Cesário Verde

  Manual · pp. 330-336

O sentimento dum ocidental


“O sentimento dum Ocidental” é a investigação final e definitiva de Cesário sobre a cidade.

OEXP11DP © Porto Editora


[...] o poema regista as perceções e as impressões de um observador caminhando nas ruas no-
turnas da cidade. [...] o narrador de “O sentimento dum ocidental” descreve um passeio solitário.
O seu passeio não é apenas um movimento no espaço das ruas da cidade; é também um pro-
5 cesso no tempo, uma viagem para dentro da noite durante a qual o narrador penetra e confronta
o mundo simbólico de sombras reais que é a cidade noturna. Noite e cidade [...] são equivalentes
simbólicos.
A cidade é Lisboa; o “sentimento” do título é o do narrador, natural do extremo ocidental da
Europa, um português. Mas a cidade também representa o todo da civilização ocidental a que
10 Portugal pertence; e o sentimento que ela provoca é ao mesmo tempo um produto dessa civiliza-
ção e um protesto contra ela.
O poema, como uma sinfonia em quatro andamentos, desenvolve-se em quatro secções de
onze quadras. A simetria desta estrutura é internamente reforçada pela simetria das inter-rela-
ções funcionais entre as várias imagens, situações, caracteres, sentimentos registados no poema
15 e pelas subtis correspondências no tratamento do espaço e do tempo.
A progressão da noite, desde o crepúsculo e o acender das luzes até à completa escuridão
das “horas mortas”, é acompanhada, num complexo contraponto, por um correspondente
aprofundamento dos sentimentos e perceções do caminhante solitário nas ruas da cidade. O me-
lancólico “desejo absurdo de sofrer” despertado pelo anoitecer é justaposto com uma nostálgica
20 evocação visionária do passado; a mórbida exacerbação da angústia ao acender das luzes é jus-
taposta com as alucinações febris de um presente fantasmagórico; a intensificada amargura pro-
vocada pela crescente escuridão é justaposta com a presença espetral dos seres reais que se
movem na cidade; finalmente, na escuridão total das horas mortas, a evocação ansiosa de um
futuro gerado pela própria noite, como a sua necessária negação num novo dia, é justaposta com
25 a culminante visão desesperada da dor humana como um sinistro mar de fel em busca dos seus
amplos horizontes bloqueados.
A visão totalizante da cidade – como facto social, paisagem humana e condição espiritual –,
que é o efeito final do texto do poema, é assim, por sua vez, o resultado do efeito cumulativo do
método poético nele adotado. Na verdade, a própria organização narrativa do poema – que
30 regista o deambular do observador pelas ruas da cidade – transforma a aparente ausência de
nexo da sua progressão aleatória no seu plano estrutural. Conforme o texto se desenvolve e a
sequência justaposta das coisas observadas vai emergindo como um longo e complexo assíndeto,
misteriosas relações implícitas entre elas e as reações por elas provocadas vão-se revelando até
se definirem como a expressão objetivada do “sentimento” que é o efeito compósito do poema
35 como um todo.
MACEDO, Helder, 1986. Nós – Uma leitura de Cesário Verde.
3.ª ed. Lisboa: Dom Quixote (pp. 169-170) (1.ª ed.: 1975)
fotocopiável

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