Ethic Dimension in Health Research Focusing on the Qualitative Approach
Carlos Roberto de Castro e Silva Resumo
Doutor em Psicologia Social. Professor Adjunto do Instituto de Saúde e Sociedade – Unifesp Campus Baixada Santista. Este artigo trata da dimensão ética na pesquisa Endereço: Av. Ana Costa, 95, CEP 11060-001, Santos,SP, Brasil. em saúde, relacionando-a mais especificamente à E-mail: carobert3@hotmail.com abordagem qualitativa, a partir das contribuições Rosilda Mendes das ciências sociais e em particular da etnografia, Doutora em Saúde Pública. Professora Adjunta do Instituto de que pressupõe a construção de uma relação de con- Saúde e Sociedade – Unifesp Campus Baixada Santista. fiança e respeito entre pesquisador e pesquisado Endereço: Av. Ana Costa, 95, CEP 11060-001, Santos, SP, Brasil. E-mail: rosildamendes@terra.com.br que se configura paulatinamente. Os aspectos éticos permeiam a pesquisa qualitativa desde a escolha do Eunice Nakamura objeto de estudo, as delimitações metodológicas, as Doutora em Antropologia. Professora Adjunta do Instituto de análises dos resultados até o compromisso de uma Saúde e Sociedade – Unifesp Campus Baixada Santista. Endereço: Av. Ana Costa, 95, CEP 11060-001, Santos, SP, Brasil. devolutiva das informações obtidas; pressupondo E-mail: eunice_nakamura@hotmail.com a valorização de uma relação interpessoal em que os diferentes interesses, valores e visões de mun- do colocam-se como possibilidade ou não de uma construção conjunta do conhecimento. A escolha de um tema ou objeto de estudo está relacionada a uma trajetória de vida singular, em que a todo o momento o pesquisador deve se perguntar como compatibilizar a constituição da postura ética em relação aos pesquisados com seus desejos, sonhos, curiosidades e expectativas. O artigo tem o intuito de refletir sobre esses impasses vivenciados pelo pesquisador, ressaltando a importância da ética para o seu desenvolvimento pessoal, profissional e sociopolítico, valorizando o desejo pela autonomia do conhecimento, a solidariedade com os grupos sociais e com as pessoas envolvidas na pesquisa. A partir do relato de um processo de pesquisa, pretende-se contribuir para a compreensão de como os aspectos éticos são indissociáveis da pesquisa e do próprio pesquisador, trazendo elementos para a realização de pesquisas qualitativas especialmente no campo da saúde coletiva. Palavras-chave: Pesquisa qualitativa; Ética em pesquisa; Ciências sociais; Etnografia; Saúde co- letiva.
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Abstract Introdução This article addresses the ethical dimension in Cada vez mais estudantes e profissionais de saúde health research, relating it more specifically to the desejam envolver-se em processos investigativos, ou qualitative approach, based on contributions of the porque almejam se tornar pesquisadores e encon- social sciences and ethnography in particular, as it tram na pesquisa um lugar de realização pessoal, presupposes building a relationship of trust and res- ou porque percebem que esta pode ser uma oportu- pect between researchers and researched subjects nidade a mais de diversificar o seu conhecimento e that is gradually configured. The ethical aspects qualificar sua prática profissional. permeate qualitative research from the choice of the A pesquisa apresenta-se, assim, como uma pos- subject matter, the methodological outlines, analy- sibilidade para que os estudantes e profissionais sis of the results, to the commitment of providing a construam uma explicação para um problema gera- feedback for the researched subjects regarding the do por um fenômeno cujo conhecimento científico obtained information. The ethical aspects presup- que possuem para explicá-lo ainda é insuficiente. pose the value of an interpersonal relationship in Essa explicação ocorre por meio de um processo de which the different interests, values and worldviews aproximações e reelaborações do confronto entre stand as a possibility or not of a joint construction of as novas informações e os conhecimentos que pos- knowledge. The choice of a subject or object of study suem, os quais não são necessariamente científicos, is related to a particular life trajectory in which the mas baseados em suas vivências. researcher should ask himself, at all times, how to Desse ponto de vista, a pesquisa pode revelar-se conciliate the constitution of an ethical attitude in um lugar de realização pessoal e fortalecimento do relation to the researched subjects with his own desi- aprendizado e, ao mesmo tempo, um poderoso ins- res, dreams, curiosities and expectations. The article trumento de transformação, voltado para a criação aims to discuss such dilemmas experienced by the de sujeitos protagonistas de seu aprendizado e da researcher, highlighting the importance of ethics produção de conhecimento. for his personal, professional and socio-political Nesse processo, a constituição da ética parece- growth, and emphasizing the desire for knowledge nos fundamental, se pensarmos que a escolha de autonomy, solidarity with social groups and with um tema ou objeto de estudo está relacionada a people involved in the research. Based on the report uma trajetória de vida singular, em que a todo o of a research process, the article intends to contri- momento o pesquisador deve se perguntar como bute to the understanding of how ethical aspects compatibilizar a constituição da postura ética em are inextricably linked to research, and also to the relação aos pesquisados com seus desejos, sonhos, researcher, bringing elements to the conduction of curiosidades e expectativas. qualitative research especially in public health. A indissociabilidade entre razão e emoção nos Keywords: Qualitative Research; Research Ethics; faz crer que o pesquisador, ao mesmo tempo, afeta Social Sciences; Cultural Anthropology; Public e é afetado pela paixão da busca por novos desafios, Health. sendo necessário cuidar para que tal afetação pro- picie uma potência para agir e que disso resulte a criação de condições para que se tornem sujeitos mais livres e autônomos (Espinosa, 1973) Especificamente no campo da saúde coletiva, a investigação exige mais do que um saber técnico, uma verdade científica, uma evidência médica ou um risco conhecido – como se esses diversos “sabe- res” fossem suficientes para modificar condutas e estilos de vida das pessoas –, daí o lugar privilegia- do da pesquisa qualitativa nesse campo. É preciso
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saber dos homens, por eles mesmos, no momento e A Ética e a Construção nas condições em que se encontram; é preciso dar lugar às singularidades, às criações e inovações do de Autonomia humano e às subjetividades, que revelam a pos- A noção de ética nos remete à reflexão da qualidade sibilidade de produção singular de significados e dos relacionamentos no mundo contemporâneo, sentido; não se referem a uma síntese individual expressos por um cotidiano marcado pelo individu- do meio exterior nem se restringem a um sujeito alismo e pela competitividade, típicos da sociedade psicológico, mas dizem respeito à construção de uma capitalista, que incentiva a busca de soluções indi- maneira de representação do sujeito a partir de seus viduais e aposta em um sujeito racional regido pela fatores constitutivos: políticos, sociais, culturais e ansiedade de superação e pela adequação às constan- psicológicos (Rey e Furtado, 2002). tes mudanças tecnológicas, sociais e econômicas. De antemão podemos afirmar que a noção de éti- As relações humanas passam, assim, a expressar ca vinculada à pesquisa significa muito mais do que essa mesma lógica capitalista, tornando-se fuga- o cumprimento dos protocolos formais de pesquisa, zes e voltadas para a alimentação de narcisismos como a assinatura e o recolhimento de consentimen- exacerbados. tos livres e esclarecidos. Reduzida à formalidade do A fluidez, conforme nos lembra Bauman (2003), contrato assinado entre pesquisador e pesquisado, a passa a representar a qualidade das práticas hu- pesquisa deixa de cumprir sua principal função que manas. A comunicação humana ocorre por meio de é possibilitar ao primeiro a reflexão acerca de sua jogos extremamente competitivos, em que o impor- postura ética na produção científica. tante é dominar em vez de trocar, pois, se, por um É dessa perspectiva que este artigo irá tratar da lado, a intimidade é preservada a qualquer custo dimensão ética a partir das contribuições das ciên- como um bem inatacável, por outro, manipular os cias sociais e em particular da etnografia, pois esta afetos alheios é uma estratégia que aplaca a batalha, pressupõe a construção de uma relação de confiança dando-nos a sensação de que ainda temos alguma e respeito entre pesquisador e pesquisado que se característica humana (Sennet, 1989). configura paulatinamente. Os aspectos éticos, de Não é sem razão que o atual contexto socioeconô- diferentes formas, permeiam a pesquisa qualitativa mico e cultural passe a ser considerado como produto desde a escolha do objeto de estudo, as delimitações de transformações históricas profundas de visão de metodológicas, as análises dos resultados, até o com- mundo, valores éticos e morais. Diferentemente dos promisso de uma devolutiva das informações obtidas. gregos, para os quais a busca da felicidade significava Pressupõem ainda a valorização de uma relação in- a concretização do soberano bem, os contemporâneos terpessoal em que os diferentes interesses, valores e associam a felicidade ao desenvolvimento técnico e visões de mundo colocam-se como possibilidade ou ao consumo (Novaes, 1992). Para os primeiros havia, não de uma construção conjunta do conhecimento. ainda, uma relação de complementaridade entre Desta forma, este artigo tem o intuito de refletir o ser humano e a natureza, sendo que os avanços sobre esses impasses vivenciados pelo pesquisador, técnicos deveriam otimizar os recursos naturais, as implicações da dimensão da ética na pesquisa em como, por exemplo, na construção de um dique para saúde em seu desenvolvimento pessoal, profissional gerar energia. Na modernidade, o homem, forte- e sociopolítico, valorizando o desejo pela autonomia mente influenciado pelo pensamento cartesiano, do conhecimento, a solidariedade com os grupos busca através da técnica se sobrepor à natureza e sociais e com as pessoas envolvidas na pesquisa. A consequentemente dominá-la (Vernant, 1984). Como partir do relato do desenvolvimento de uma pesqui- assinalam Adorno e Horkeimer (1991), vivemos hoje sa, pretende contribuir para a compreensão de como um desencantamento, pois os avanços tecnológicos os aspectos éticos são indissociáveis à pesquisa, não produziram mudanças significativas no campo também ao próprio pesquisador, trazendo elementos da ética e dos relacionamentos entre os homens, ao para a realização de pesquisas qualitativas especial- contrário, produziram homens mais narcisistas, ao mente no campo da saúde coletiva. mesmo tempo mais temerosos sobre seu futuro.
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As possibilidades de apreensão e transforma- A escolha é baseada em sentimentos e percepções ção dessa realidade passa necessariamente pelo que delineiam a maneira de viver das pessoas, sendo reconhecimento do caráter relacional que atravessa indissociável das noções de autonomia e de respon- nossa existência. Para pensar sobre isso recorremos sabilidade. Podemos dizer que este é o campo dos a Bauman (2003), que nos lembra que o comunitaris- direitos humanos fundamentais, ou seja, do direito mo – compreendido a partir de autores que valorizam à autonomia, expresso nas escolhas, no julgamento a ética das virtudes e o enobrecimento dos indivídu- e nas resoluções de vida e de trabalho das pessoas, os por meio da convivência em comunidade – revela das famílias e das comunidades. duas características importantes, as quais os indiví- Para melhor entender a noção de autonomia duos das sociedades contemporâneas evitam: primeiramente é importante diferenciá-la da ideia • A obrigação fraterna, que significa compartilhar as abstrata de sujeito recolhido reiteradamente sobre vantagens com aqueles que não as têm, quaisquer o trabalho de preservar suas próprias ideias, como que sejam elas, de talentos à importância. produtos de um trabalho individual de afirmação contínua de conteúdos internos não contaminados • O autossacrifício, no qual a produção de grupo ou por qualquer interposição do meio. A autonomia é, do coletivo é mais importante que a busca de louros pois, ao contrário, uma condição que se constrói na individuais. Esse tipo de posicionamento não é va- relação com o outro, ou seja, socialmente. Vale dizer lorizado, pois se acredita que prejudica a ascensão que a construção da autonomia se dá no plano indi- social e ofusca o suposto mérito individual. Esse vidual e coletivo e penetra na constituição do sujeito sentimento de compartilhamento é execrado porque na sua relação com o outro (Castoriadis, 1991). sugere uma comunidade de fracos, em que o fato de Dessa forma, não é possível referir à autonomia não se destacar em relação aos demais obscurece o como um processo de escolhas unicamente indivi- desejo de dignidade e honra para aqueles conside- duais, em que cada um poderia exercer seu próprio rados os bem-sucedidos pela sociedade competitiva desejo, a partir de suas necessidades próprias, com em que vivemos. absoluta independência. Ao ser tomada como um Esses aspectos reforçam uma noção de ética cujo processo de “coconstituição”, de “coprodução”, a escopo está localizado na busca de uma prática que autonomia depende de um conjunto de fatores do nos remete ao esforço de olhar para o outro; perceber próprio indivíduo e da coletividade (Onocko Campos a existência de alguém diferente de nós, aí o incômo- e Campos, 2006). do que nos acompanhará em nossas vidas pessoais, Assim, a autonomia pode ser considerada como profissionais e comunitárias. a ação de um sujeito (de qualquer sujeito) que, como A ética como balizador das condutas humanas tal, é totalmente penetrado pelo mundo e pelos está: outros, que reorganiza constantemente os recur- [...] ligada ao senso e à consciência moral, é mais sos e conteúdos disponíveis utilizando-se desses do que um conjunto de normas e regras ou, ainda, conteúdos, que transforma o discurso do outro em mais do que mera obediência a normas e regras. A seu próprio discurso e que faz tudo isso de modo ética é morada, modo de habitar o mundo e lugar constante e permanentemente inacabado. de atualização de valores e atitudes. Ou seja, a ética Na escolha de um tema de pesquisa, o pesquisa- está implicada nas escolhas humanas que criam dor é movido por sentimentos e percepções consti- mundos e nos modos de valorizar e viver estes tuídas em sua própria experiência, portanto é livre mundos. A ética é, portanto, indissociável, do tema e autônomo em sua escolha, mas deve se conduzir da escolha. Sartre, o filósofo para quem escolha e na pesquisa, acima de tudo, pela responsabilidade liberdade configuram a condição humana, entende de seus atos na relação com os outros. A pesquisa que os homens são seres em situação, compelidos constitui-se assim como um caminho de respon- a responder ao mundo e aos outros e que, agindo, sabilidades, de construção de novas virtudes e de escolhem quem são. A escolha no sentido sartrea- estabelecimento de uma postura ética, pois a ética no, inventa e motiva o valor que advém da própria é o campo do conhecimento prático por excelência escolha. (Novaes, 1992, p. 392). (Novaes, 1992).
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Nesse caminho/caminhar da pesquisa em saúde, qual “mais do que qualquer outra, levanta questões o pesquisador compreende que suas ações impactam éticas” pelas implicações dessa proximidade (Mar- nas condições de vida, onde e com quem vive. Esse tins, 2004, p. 295). caminho exige, entretanto, a presença de interlocu- Movidos por questões teóricas, deparamo-nos tores, não apenas dos participantes da pesquisa, mas com “objetos” que, ao mesmo tempo, se constituem também de outras pessoas que encontramos ao lon- sujeitos, ou seja, os outros com quem nos relaciona- go de nossa trajetória profissional e pessoal. Assim, mos, dialogamos e estabelecemos trocas e aqueles no encontro de pessoas, expectativas e responsabili- por quem nos responsabilizamos e solidarizamo-nos dades é que a pesquisa em saúde, e os componentes ao tecermos os laços que constituem a pesquisa de da ética e da autonomia se relacionam. campo propriamente dita. Dentre as ciências sociais, é particularmente na Pesquisa Qualitativa e Implicações Antropologia que essa questão será mais discutida, para “dar conta dos problemas decorrentes da rela- Éticas no Método Etnográfico ção de alteridade entre os dois polos na situação de A disseminação e a incorporação de métodos qua- pesquisa” (Martins, 2004, p. 295). litativos nas pesquisas em saúde exigem um es- A Antropologia firmou-se como área do conhe- clarecimento inicial. Ao falar de método, é preciso cimento no encontro com “outros”, na descoberta e diferenciá-lo de técnicas, para não reduzi-lo a um no reconhecimento de que as sociedades, os grupos aspecto meramente instrumental. É sempre bom sociais e as culturas diferem. lembrar que consideramos método uma “maneira Nessa possibilidade de encontros, a Antropolo- de fazer ciência”, ou seja, de produzir conhecimen- gia se constituiu como área do conhecimento, ao to, guiados pela discussão teórica (Martins, 2004). mesmo tempo em que o método que lhe deu origem A noção de método refere-se ao “caminho para ir se consolidou, ou seja, tem-se na constituição da em busca de algo”, uma busca no geral incerta, que Antropologia a indissociabilidade da relação entre somente revelará a realidade estudada, na medida teoria e realidade experenciada, pois “em antropo- em que o pesquisador possa interpretá-la, auxiliado logia ou, de qualquer forma, em antropologia social, por seu conhecimento teórico. Não se trata, portanto, o que os praticantes fazem é etnografia” (Geertz, de garantir pelo método o acesso à verdade, muitas 1989, p. 15). vezes tomada como sinônimo de verificabilidade e Portanto, se, ao falarmos de metodologia qualita- certeza – dos pressupostos e valores do pesquisador tiva, em particular do método etnográfico, estamos –, mas de assegurar a produção do conhecimento tratando de “experiências humanas”, perguntamo- pela via da compreensão, dos valores do pesquisado nos acerca das implicações éticas desse encontro (Oliveira, 1995). entre pesquisadores e pesquisados, na medida em No reconhecimento do método como um pro- que a produção de conhecimento implica, nesse caso, cesso de compreensão intersubjetiva, cabe discutir na autonomia do pesquisador, ao mesmo tempo aqui a relação entre ética e pesquisa qualitativa. na solidariedade e na responsabilidade para com Especificamente na pesquisa qualitativa em saúde, os grupos pesquisados. Essa situação particular esse esclarecimento permite que deixemos de nos de pesquisa suscita a questão sobre como esses restringir à escolha de técnicas e à observação de aspectos poderão ser considerados por estudantes procedimentos formais, para nos debruçarmos e profissionais de saúde. sobre os fundamentos teórico-metodológicos da Não é possível aplicar o método etnográfico ou pesquisa qualitativa, originada nas ciências sociais outros métodos qualitativos sem que se compreenda (Nakamura, 2009). sua origem e sua fundamentação teórica. Cabe aqui Um desses fundamentos é a proximidade entre perguntar sobre o significado dessa relação entre pesquisador e pesquisado, condição para as pes- pesquisador e pesquisado, que pressupõe uma postu- quisas que adotam a metodologia qualitativa, na ra ética, e as questões que surgem desse encontro.
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Daí a importância de que na escolha do método va hermenêutica de alguns dos principais autores etnográfico em pesquisas na área da saúde, entre pós-modernos na antropologia, os quais questionam outras abordagens metodológicas, dois conceitos a interpretação feita pelo pesquisador da realidade fundamentais à constituição da Antropologia de outros (Geertz, 2001; Clifford, 1998). como ciência sejam considerados: etnocentrismo e As considerações acerca do método etnográfico cultura (Nakamura, 2009). São esses conceitos que mostram-se bastante pertinentes quando retoma- irão orientar a postura do pesquisador em campo, mos a discussão das implicações éticas da pesquisa abrindo-o a possibilidades e formas de pensar o qualitativa em geral, e na pesquisa em saúde, em mundo, ao mesmo tempo em que ele próprio elabora particular. Nelas, também é preciso considerar as o conhecimento capaz de explicá-las. implicações éticas da postura assumida pelo pes- De um lado, tem-se a lógica do etnocentrismo, quisador no processo indissociável entre pesquisa que consiste em pensar o mundo por meio de um e produção do conhecimento, em que se destaca, de referencial único, ou seja, tendo como referência a um lado, a noção de método como verdade (do pes- cultura, os valores e costumes de uma sociedade em quisador), de outro, o método como possibilidade de detrimento de outra. Isso sugere uma visão de mun- acesso a outras verdades (dos pesquisados), como do contrária à ideia de diversidade das sociedades já mencionado. e culturas, fundamentada em valores de uma única Retomando a afirmação de Martins (2004) de que sociedade. De outro, tem-se o reconhecimento de a proximidade entre pesquisador e pesquisado é con- que uma sociedade não pode ser julgada a partir de dição fundamental à pesquisa qualitativa, é possível outra, mas considerada em seu contexto particular compreender como o caso exemplar do método etno- como produto e produtora de cultura. Enfatiza-se gráfico se aplica a outras abordagens metodológicas aqui a diversidade das culturas, consideradas como originadas nas ciências sociais. As pesquisas nessa contextos de comportamentos humanos apreendi- área resultam da relação entre homens e mulheres dos (Silverman, 2005). que atuam no meio social, envolvem “[...] contatos De uma perspectiva ética, é desejável, portanto, diretos, íntimos e mais ou menos perturbadores que o encontro entre pesquisador e pesquisado não com os detalhes imediatos da vida contemporânea, seja permeado por posturas etnocêntricas, mas pelo contatos de um tipo que dificilmente pode deixar de reconhecimento e respeito à diversidade cultural. afetar a sensibilidade das pessoas que os realizam” Mesmo em se tratando de uma relação social e (Geertz, 2001, p. 31). política sujeita a interesses e objetivos distintos, A escolha da abordagem qualitativa impõe aos assim como as relações de poder, há que se produzir pesquisadores da saúde alguns impasses e desa- “[...] um conhecimento que ajude esses sujeitos a se fios: garantir a proximidade para que se realize a fortalecerem enquanto sujeitos autônomos, capazes “experiência-próxima” ou a empatia necessária de elaborar o seu projeto de classe. Autonomia dos à compreensão da visão de mundo dos pesquisa- sujeitos pressupõe a liberdade no uso da razão” dos, ao mesmo tempo não se confundir com eles, (Martins, 2004, p. 296). respeitando-os em suas particularidades, mantendo Desloca-se, portanto, a discussão da autonomia a “experiência-distante” que permita ao pesquisador do pesquisador em suas escolhas para a autonomia tecer suas interpretações, ou seja, produzir conheci- do pesquisado em termos de sua “liberdade no uso mento capaz de explicar esses diferentes modos de da razão” (idem) e por quem e por qual conhecimento vida (Geertz, 2007). produzido acerca dele o pesquisador deverá tornar- Nesse sentido, entender a vida dos nativos, “[...] se responsável. parece-se mais com compreender o sentido de um As questões éticas apontadas têm permeado inú- provérbio, captar uma alusão, entender uma piada meras críticas na própria antropologia à autoridade [...] interpretar um poema, do que com conseguir uma etnográfica, impondo reformulações e adaptações do comunhão de espíritos” (Geertz, 2007, p. 107), o que método etnográfico aos novos contextos de pesquisa. nos parece não ser uma tarefa fácil, como se notará Essas críticas surgem principalmente na perspecti- no relato de pesquisa apresentado a seguir.
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Da Realização da Pesquisa sem deixar de instigar o interesse da aluna para a investigação. A leitura e os estudos realizados Qualitativa em Saúde pela aluna pareciam suficientes para o seu nível Esses pressupostos podem ser mais bem compreen- de aprendizado, mas a possibilidade de entrar em didos quando analisamos o processo de desenvolvi- contato com jovens que sofreram abuso na infância mento da pesquisa qualitativa em saúde: a escolha exigiria dela habilidades de um profissional de saú- do tema, a inserção no campo, a relação com os de com alguma experiência de clínica com pessoas diferentes atores, o consentimento do outro, a par- em situação de vulnerabilidade. ticipação na pesquisa, a coleta e a interpretação dos Uma alternativa encontrada foi a busca de Organi- dados, a produção e a divulgação do conhecimento zações Não Governamentais (ONGs) que atuam na científico, o compartilhamento dos resultados com área e com as quais já mantinha vínculos de pes- os participantes da pesquisa. quisas e de intervenções. Isso contribuiu para uma A análise desses aspectos em experiências e situ- negociação que resultou na proposta de investigar ações particulares de pesquisa auxilia na reflexão da o papel das ONGs no atendimento de pessoas que dimensão ética do processo de pesquisa, da produ- sofreram algum tipo de violência, incluindo o abuso ção ao uso do conhecimento e suas implicações. sexual na infância, com destaque aos aspectos psi- Nesse sentido, gostaríamos de compartilhar cossociais dessa convivência na instituição e suas algumas reflexões baseadas no desenvolvimento de repercussões na vida de pessoas que vivem com o uma pesquisa de iniciação científica, conduzida por HIV/Aids (PVHA). Tínhamos, assim, um contexto um dos autores deste texto. A pesquisa foi submetida mais “protegido” para abordar a temática e os su- e aprovada pela Comissão de Ética para análise de jeitos envolvidos de forma mais cuidadosa. projetos de pesquisa na Universidade. Os profissionais de saúde que atuavam na institui- A história desta pesquisa se inicia em meados ção iriam mediar a relação com as PVHA e seriam de 2007, quando fui procurado por uma aluna de também sujeitos da pesquisa. Definimos, ainda, que Psicologia do 3º ano, que estava muito interessada esses seriam jovens maiores de 18 anos que parti- em desenvolver uma pesquisa relacionada ao tema cipavam de atividades na ONG. Jovens menores do abuso sexual na infância. O projeto já estava de 18 anos implicariam contatos com familiares, o redigido, apresentava uma boa leitura e articulação que provavelmente exigiria uma abordagem mais do tema aos referenciais teóricos identificados experiente em casos, por exemplo, em que um desses na bibliografia. Fato que me animou a pensar em familiares estivesse envolvido na situação de abuso alternativas que pudessem valorizar seu esforço, do filho(a) ou enteado(a). mas que me permitissem articular com os temas O início do trabalho revelou outro aspecto impor- de meu interesse ou que, no mínimo, me fizessem tante do processo de pesquisa: a aproximação e sentir capaz de orientar. conquista de confiança da ONG e de seus partici- O tema com o qual eu trabalhava na época estava pantes. A aluna foi várias vezes à instituição para relacionado à prevenção do HIV/Aids. Inicialmente, conversar com coordenadores e profissionais e a articulação de interesses, meu e da aluna, parecia explicar a proposta da pesquisa. Nesses encontros, difícil. Isso até o momento em que me lembrei de ao mesmo tempo, recebeu informações, às vezes uma bibliografia que associava a vulnerabilidade nas entrelinhas das falas, sobre as regras de con- ao HIV/ Aids com episódios de violência, dentre vivência naquele espaço e como deveria realizar elas o abuso sexual. Tema delicado e complexo, a abordagem das PHVA. Uma das regras era de principalmente para alguém que está se iniciando participar de um grupo de recepção de pessoas na pesquisa. Pensei então em mediações que pu- que chegavam à ONG, requisito também necessário dessem aplacar o impacto das implicações éticas para o treinamento de novos voluntários. A propos- da pesquisa, tornando o caminho mais tranquilo, ta do grupo era aprender um pouco mais sobre o
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HIV, as formas de infecção e suas consequências, durante a entrevista. A aluna buscou saber, após perceber o impacto da doença na vida das pessoas o encontro, como deveria acolher e dar suporte às e compartilhar informações. A aluna se mostrou necessidades expressas naquele momento. Lembrei muito mobilizada e perplexa com a riqueza dos a ela que o acolhimento é importante e ela poderia encontros, pois pôde compreender o sofrimento das fazer isso quando necessário, mas se julgássemos a PVHA advindo de preconceitos e das dificuldades situação muito delicada encaminharíamos, confor- de adesão aos tratamentos da doença, entre outros me explicitava o consentimento livre e esclarecido, aspectos. Creio que essa vivência contribuiu para para um acompanhamento especializado. um maior envolvimento na pesquisa, impactando A realização da pesquisa certamente possibilitou positivamente na qualidade das entrevistas e na o amadurecimento pessoal da aluna, marcando coleta dos dados. também sua trajetória profissional e de pesquisa- Várias etapas então relacionadas à compreensão dora, na medida em que permitiu o aprofundamento da dinâmica da ONG e das condições éticas e hu- dos aspectos éticos envolvidos, principalmente da manas envolvidas com vivência do HIV/Aids foram atenção às contradições, situações inusitadas e cumpridas. Foram realizadas cinco entrevistas em dilemas apresentados a cada novo encontro com a profundidade com PHVA e duas entrevistas com ONG e seus participantes. profissionais da ONG. Do grupo de PHVA, somente Em sua primeira incursão na pesquisa qualita- uma referiu episódio de abuso na infância, mas tiva em saúde, a aluna vivenciou os dilemas e os todas as outras expressaram uma trajetória de impasses tão peculiares a essa abordagem e que vida marcada por diversas formas de violência. marcam o encontro entre pesquisador e pesquisa- As entrevistas aconteceram após a aprovação da dos. Na escolha do tema de pesquisa, certamente pesquisa pelo Comitê de Ética da Universidade e a aluna não podia imaginar as implicações dessa essa aprovação estava expressa no consentimento escolha, os sentimentos e as emoções suscitados livre e esclarecido entregue aos entrevistados para pelo contato direto com aspectos íntimos, por serem informados sobre os objetivos da pesquisa vezes perturbadores, da experiência vivida pelos e decidirem quanto à sua participação ou não nas pesquisados, como comumente ocorre também nas entrevistas. Esse protocolo serviu para o cumpri- pesquisas etnográficas. De fato, o relato evidencia mento de uma etapa mais formal da relação entre como a atitude do pesquisador em campo impacta pesquisador e pesquisados, pois a aproximação a vida das pessoas, exigindo dele uma constante e vínculo de confiança se constituíram paulatina indagação acerca de sua curiosidade científica e a e persistentemente, em idas e vindas, algumas postura ética em relação aos pesquisados, ou seja, frustradas. de como é possível manter a autonomia pretendida O primeiro encontro foi na casa de uma das PHVA, na pesquisa com a responsabilidade em relação embora o acordo inicial fosse de que as entrevistas ao outro. se realizassem na ONG para garantir condições ade- Um elemento a ser destacado na experiência quadas. A entrevistada, soropositiva, relatava situ- relatada é que os resultados obtidos a partir da ações que até então não tinha revelado a ninguém investigação foram discutidos somente com um ou que naquele momento da entrevista adquiriam dos diretores da ONG, ainda que a aluna tivesse um sentido totalmente diferente daquele que havia tentado promover um encontro de devolutiva com sido experimentado por ela, gerando angústias e os jovens conforme previsto. No entanto, o diretor resignificações de episódios de sua vida. Relatos de não colaborou e justificou dizendo que não haveria uma vida marcada por alegrias e tristezas, infeliz- necessidade da reunião. Isso gerou certo nível de mente as últimas muito mais marcantes. O tom de frustração, mas entendemos que, naquele momento, voz expressava a persistência e esperança de con- seria necessário respeitar a decisão da instituição, tinuar a luta contra a doença, contra o preconceito, uma vez que o acesso aos jovens ocorreu por meio a favor de si mesma. Essa pessoa chorou muito de sua mediação.
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Por isso, nos processos de pesquisa sempre deve- escolha, do momento da realização da pesquisa à dis- mos perguntar: quais as bases éticas e políticas em cussão e divulgação dos resultados, como assinala que se apoiam? A quem interessa os resultados? Que Schmidt (2008) em suas recomendações, das quais tipos de relações se estabelecem entre pesquisadores destacamos: a importância da busca de interlocução e sujeitos da pesquisa? e diálogo constante no processo de pesquisa, visando compreender os sentidos diversos da experiência dos interlocutores envolvidos; a distribuição de- Considerações Finais mocrática de lugares de escuta, fala e decisão entre A relação entre pesquisa qualitativa e ética foi res- pesquisadores e pesquisados; a disposição para ne- saltada neste artigo a partir da indissociabilidade gociar e refazer os contratos ou pactos de trabalho entre ambas. Reafirmamos também que a noção de compartilhado entre pesquisador e pesquisado; o ética remete à dimensão da autonomia, como condi- cuidado com o tratamento do material coletado, ção que se constitui nos sujeitos na sua relação com respeitando os relatos, as formas de expressão e a o outro, implicando em responsabilidades. Assim, sua transcrição em texto; a atenção aos efeitos polí- a pesquisa qualitativa em saúde é indissociável ticos e ideológicos da divulgação e recepção de uma da ética e da autonomia, pois nela se desenvolve pesquisa, que embora não possam ser planejados ou a relação sempre delicada com o outro, de aproxi- controlados pelo pesquisador, podem ter seus efeitos mação e distanciamento, de respeito às diferenças previstos e fazer parte do horizonte de preocupações socioculturais, exigindo uma constante negociação presentes no momento da escrita, direcionando entre pesquisadores e pesquisados. escolhas sobre o que, como e para quem escrever; a Essas dimensões ficaram evidenciadas no exem- discussão de formas de divulgação de resultados de plo apresentado, principalmente no que se refere à pesquisa que possam interessar aos colaboradores necessidade constante de diálogo, de negociação, de e não só ao meio acadêmico. enfrentamento das situações inusitadas do campo e Fazer pesquisa qualitativa no campo da saúde de capacidade de se colocar no lugar do outro, tanto coletiva implica, portanto, pensar a ética e a autono- pelos pesquisadores como pelos participantes da mia na relação entre sujeitos, uma relação complexa, pesquisa. muitas vezes tensa e nem sempre fácil, pois envolve Essas parecem ser algumas das características necessariamente o reconhecimento de um processo a serem consideradas pelos pesquisadores, em intersubjetivo.. Constitui-se em uma relação de especial da saúde coletiva, ao escolherem a pes- aprendizado constante, de implicações e respon- quisa qualitativa como abordagem metodológica, sabilização do pesquisador e dos pesquisados em na medida em que “o trabalho em saúde coletiva, todas as suas etapas. E mais, uma relação que não se além das dimensões técnicas, econômica, política e finda com a pesquisa, mas que permanece na medida ideológica, envolve um componente ético essencial em que ao entrarmos na pesquisa, saímos sempre vinculado à emancipação dos seres humanos” (Paim, outros (Da Matta, 1981), impactados pelos dramas, 2006, p. 106). Particularmente no campo da saúde angústias, também alegrias de nossos pesquisados, coletiva, o compromisso com as necessidades sociais mas, certamente, influenciando-os igualmente, de saúde parece orientar não apenas a prática dos razão pela qual passamos a nos responsabilizar de profissionais da área, mas também as preocupações forma mútua. quanto aos processos de investigação e à possível contribuição dos resultados aos grupos sociais pesquisados. Referências A complexidade das relações e das situações ADORNO, T.; HORKEIMER, M. Dialética do envolvidas na pesquisa qualitativa em saúde, prin- esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1991. cipalmente em relação aos aspectos éticos da pes- CASTORIADIS, C. A instituição imaginária da quisa, suscita a necessidade de nos determos mais sociedade. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. atentamente às implicações e aos cuidados nessa
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