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pandemia
Iogo Chirola
“Davam-nos água imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais porca: vimos
morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de alimento e de água. É horrível lembrar que
criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim e que não lhes doa a consciência de levá-los à
sepultura asfixiados e famintos!”
De acordo com os dados trazidos pela cobertura do portal – obtidos através da Lei de
Acesso à Informação (LAI) – o Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo (TRT-SP) ilustrou
que 461 processos relacionados à classe foram registrados na instância durante os oito primeiros
meses de 2020. A maioria desses processos dizem respeito ao descumprimento de 15 direitos
trabalhistas básicos da categoria. Além disso, o Ministério Público do Trabalho (MPT) registrou
denúncias de abusos cometidos contra trabalhadoras domésticas sem direito à quarentena e
consideradas “essenciais”, seja por decreto estadual, como ocorreu no estado do Pará, seja pela
vontade de empregadores nos cinco primeiros meses da pandemia de Covid-19.
1
Disponível em: <http://www.generonumero.media/domestica-auxilio-emergencial-emprego>.
2
Disponível em: <https://brasil.elpais.com/internacional/2021-01-14/madalena-escrava-desde-os-oito-anos-
expoe-caso-extremo-de-racismo-no-brasil-do-seculo-xxi.html>
levantados pela Gênero e Número demonstraram que a crise econômica e o desamparo do
estado fragilizaram ainda mais a relação entre empregadores e domésticas.
Com maioria da categoria composta por mulheres negras (63%) e de baixa renda, o
medo dos patrões, a baixa sindicalização e formalização do trabalho e a falta de dinheiro para
pagar advogados contribui para a dificuldade de entrar na justiça contra os abusos ou ter os
direitos trabalhistas validados na pandemia. De acordo com a Gênero e Número, no período de
dois meses e meio prévios aos decretos de quarentena foram 243 processos, e durante o período
de 5 meses após os decretos, foram apenas 218 processos. Esses dados demonstram uma queda
expressiva de judicializações dos abusos, pois o MPT não pode agir contra violações
individuais.
Ainda assim, a reportagem demonstra que o setor de trabalho doméstico foi o segundo
mais afetado pela pandemia no país. De setembro a novembro de 2020, foram perdidos 1,5
milhão de postos do setor. A situação teve uma melhora apenas com a implementação do auxílio
emergencial, que nos três primeiros meses gerou ganho de renda de 71% versus 37% na média
nacional. Com o fim do benefício, algumas dessas mulheres tiveram que retomar iniciativas
alternativas para se sustentar, seja recorrendo a projetos sociais – que são até mesmos
divulgados na reportagem – ou a trabalhos complementares.
3
Cleonice morreu de Covid-19 após ter contraído a doença de seus empregadores. Um dia depois da
internação, a patroa, que havia voltado da Itália, onde passou o Carnaval, comunicou à família de Cleonice que
estava com Covid-19.
4
Miguel era filho de Mirtes Renata Santana de Souza, que por sua vez cuidava dos filhos de sua empregadora.
Em 2 de junho de 2020, Miguel ficou sob os cuidados da patroa enquanto a mãe passeava com os cachorros
dos patrões. Na ocasião, a patroa deixou Miguel sozinho no elevador enquanto ele buscava pela mãe. O
menino morreu após cair do 9º andar do prédio.
A partir desta contextualização, é nítido perceber o compromisso ético da equipe de
jornalistas da Gênero e Número com o tema, que é delicado e, diga-se de passagem, foi
pouquíssimo explorado pela grande imprensa. O portal independente manteve-se fiel ao
interesse público e ao compromisso social de denunciar abusos trabalhistas de domésticas que,
no fundo, já possuem uma condição social fragilizada pelo racismo estrutural e pela baixa renda.
Além disso, a reportagem feita pela Gênero e Número também teve o cuidado de não
expor diretamente depoimentos de empregadas domésticas ou mesmo detalhes de processos
judiciais que pudessem colocar em risco a relação de trabalho dessas pessoas. O foco das
jornalistas foi levantar e interpretar dados adquiridos por meio da LAI e, subsidiariamente, citar
declarações de especialistas ou, no máximo, familiares e líderes sindicais das domésticas. Esse
é um dos deveres profissionais do jornalista que está firmado também no artigo 6º do Código
de Ética dos Jornalistas Brasileiros,
VI - não colocar em risco a integridade das fontes e dos profissionais com quem
trabalha;
A reportagem de análise deste trabalho também evidencia que os abusos sofridos pela
categoria são decorrentes de uma estrutura sócio-histórica que culminou na conjuntura atual.
Essa exploração da memória histórica e de uma apuração menos imediatista oferece também
mais qualidade e veracidade à informação. Além disso, o simples fato de se expor esses abusos
(que chegam a resultar em mortes, violências e escravidão), também é uma defesa de um dos
grupos minoritários mais vulneráveis da sociedade: as mulheres negras.
O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros também é categórico quanto aos deveres
do jornalista de
Todos esses deveres foram contemplados pela reportagem que, apesar ter como fonte
principal números e dados, não se limitou a isso. O material humano acompanhou todo o
trabalho das jornalistas envolvidas, que fizeram questão de ir além de uma apuração distante e
corriqueira como ocorre com notícias sobre o tema propagadas pela grande mídia. A qualidade
da apuração foi tão bem intencionada que a UOL Economia fez uma reportagem 5 sobre as
empregadas domésticas estarem entre as que não conseguem se isolar e sofrerem maiores
impactos com o fim do auxílio com base nos dados levantados pela Gênero e Número.
Além disso, é possível afirmar que os incisos citados acima fazem parte da própria
missão da empresa e se refletem em muitas de suas reportagens, já que o objetivo principal do
portal é “analisar e visibilizar dados que revelam desigualdades para qualificar o debate sobre
questões de gênero, raça e direitos”. Também consta na editoria sobre 6 do site da Gênero e
Número a seguinte mensagem:
5
Disponível em: < https://economia.uol.com.br/reportagens-especiais/vulnerabilidade-domesticas-
pandemia/#cover >.
6
Disponível em: <http://www.generonumero.media/institucional/>.
No que diz respeito à ética jornalística, resta ainda destacar que a cobertura realizada
pelo portal – não só na reportagem de análise deste estudo, como também em outras 3
reportagens 7 sobre a situação degradante de empregadas domésticas na pandemia – abarcou e
deu voz ao tema com uma variedade de fontes, dados e denúncias de maneira profunda, objetiva
e completa. Além disso, é preciso lembrar que o número de judicializações de casos de
violações trabalhistas relacionados às domésticas é baixíssimo devido às barreiras sociais que
impedem essas pessoas de iniciarem processos legais – e esse número diminuiu ainda mais
durante a pandemia, mesmo com acordos cada vez mais abusivos entre empregadas e patrões.
Ou seja, o trabalho das jornalistas ao dar visibilidade ao tema e protagonizar os direitos
silenciados dessas trabalhadoras é uma conduta vai de encontro com o que determina o código
de ética:
Conclui-se, portanto, que a reportagem feita pelas jornalistas da Gênero e Número sobre
a precariedade e vulnerabilidade do trabalho doméstico durante a pandemia denunciou uma
situação pouco explorada pela grande mídia com dados precisos e fundamentados eticamente.
Quanto a apuração, o trabalho foi completo e objetivo. Abarcou uma variedade de fontes que
envolvem especialistas, empregadas domésticas, familiares das trabalhadoras, dados oficiais
obtidos via LAI, políticos, dados do IBGE, sindicalistas e procuradores.
7
Disponível em: <http://www.generonumero.media/nossa-lei-e-que-vale-com-mais-de-70-das-domesticas-na-
informalidade-condicoes-de-empregadores-prevalecem-sobre-pec>
<http://www.generonumero.media/domesticas-desemprego-mulheres> <http://www.generonumero.media/pec-
das-domesticas-7-anos-golpeada-empregadores-economia-coronavirus>.
com as determinações do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros de maneira a priorizar o
interesse coletivo cumprir os princípios éticos da profissão de jornalista.
Referências Bibliográficas
Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, 2007. Disponível em: < https://fenaj.org.br/wp-
content/uploads/2014/06/04-codigo_de_etica_dos_jornalistas_brasileiros.pdf>.
BRUNO, Maria M. Pandemia doméstica: Empregadas domésticas estão entre as que não
conseguem se isolar e sofrem maiores impactos do fim do auxílio. Disponível em:
<https://economia.uol.com.br/reportagens-especiais/vulnerabilidade-domesticas-
pandemia/#cover>.
BRUNO, Maria M. MARTINS, Flávia B. Segunda categoria mais beneficiada pelo Auxílio
Emergencial, trabalho doméstico perde 1,5 milhão de postos de trabalho. Disponível em:
< http://www.generonumero.media/domestica-auxilio-emergencial-emprego>.
BRUNO, Maria M. MARTINS, Flávia B. SILVA, Vitória R. “Nossa lei é a que vale”: com
mais de 70% das domésticas na informalidade, condições de empregadores prevalecem sobre a
PEC. Disponível em: <http://www.generonumero.media/nossa-lei-e-que-vale-com-mais-de-
70-das-domesticas-na-informalidade-condicoes-de-empregadores-prevalecem-sobre-pec>.
BRUNO, Maria M. MARTINS, Flávia B. SILVA, Vitória R. PEC das Domésticas completa
7 anos golpeada por empregadores, economia e coronavírus. Disponível em:
<http://www.generonumero.media/pec-das-domesticas-7-anos-golpeada-empregadores-
economia-coronavirus>.
GORTÁZAR, Naiara. Caso de Madalena, escrava desde os oito anos, expõe legado vivo da
escravidão no Brasil. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/internacional/2021-01-
14/madalena-escrava-desde-os-oito-anos-expoe-caso-extremo-de-racismo-no-brasil-do-
seculo-xxi.html>.
COSTA, Fernanda. Morte de trabalhadora doméstica por coronavírus escancara falta de
políticas para proteger a classe. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/jornal/morte-de-
trabalhadora-domestica-por-coronavirus-escancara-falta-de-politicas-para-proteger-a-classe/>
COSTA, Camila. Caso Miguel: morte de menino no Recife mostra 'como supremacia branca
funciona no Brasil', diz historiadora. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-
52932110>