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Cuidadoras que não recebem o cuidado: a precarização de trabalhadoras domésticas na

pandemia

Iogo Chirola

“Davam-nos água imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais porca: vimos
morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de alimento e de água. É horrível lembrar que
criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim e que não lhes doa a consciência de levá-los à
sepultura asfixiados e famintos!”

Maria Firmina dos Reis

O desemprego alto, a falta de liberdade e a dependência de empregadores para tomada


de decisões são alguns dos desafios que trabalhadoras domésticas sofrem desde o fim da
escravidão no Brasil. E, mesmo com os direitos e progressos adquiridos ao longo da história, a
partir de 2020, o quadro de injustiças foi agravado pela crise decorrente da pandemia do novo
coronavírus. Isso porque as profissionais, atualmente estimadas em 6 milhões, têm sido
expostas sistematicamente a riscos de contaminação sem poderem se isolar ou contar com o
amparo do estado, como é demonstrado na reportagem 1 feita pela Gênero e Número, uma
empresa social de jornalismo independente que trabalha com dados relacionados a questões de
desigualdade de raça, gênero e direitos em seu website.

De acordo com os dados trazidos pela cobertura do portal – obtidos através da Lei de
Acesso à Informação (LAI) – o Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo (TRT-SP) ilustrou
que 461 processos relacionados à classe foram registrados na instância durante os oito primeiros
meses de 2020. A maioria desses processos dizem respeito ao descumprimento de 15 direitos
trabalhistas básicos da categoria. Além disso, o Ministério Público do Trabalho (MPT) registrou
denúncias de abusos cometidos contra trabalhadoras domésticas sem direito à quarentena e
consideradas “essenciais”, seja por decreto estadual, como ocorreu no estado do Pará, seja pela
vontade de empregadores nos cinco primeiros meses da pandemia de Covid-19.

As denúncias revelam situações de violações que levam as profissionais a firmarem


acordos abusivos pela necessidade. Se por um lado esse tipo de situação já ocorria antes mesmo
da pandemia – como foi com Madalena Giordiano 2, que passou a vida em situação análoga à
escravidão e só foi resgatada no final de 2020 –, por outro, durante a pandemia, os dados

1
Disponível em: <http://www.generonumero.media/domestica-auxilio-emergencial-emprego>.
2
Disponível em: <https://brasil.elpais.com/internacional/2021-01-14/madalena-escrava-desde-os-oito-anos-
expoe-caso-extremo-de-racismo-no-brasil-do-seculo-xxi.html>
levantados pela Gênero e Número demonstraram que a crise econômica e o desamparo do
estado fragilizaram ainda mais a relação entre empregadores e domésticas.

Segundo a reportagem, as trabalhadoras que conseguiram ser liberadas mantendo seus


salários durante a pandemia tiveram que negociar arranjos que desrespeitam a PEC das
Domésticas, como férias antecipadas, dias que serão descontados das férias e bancos de horas
que mais tarde terão de ser compensados. Isso para as profissionais com carteira assinada. Mas
na maioria dos casos, as empregadas domésticas são obrigadas a trabalhar na casa de patrões já
diagnosticados ou com sintomas de Covid-19 – e até mesmo têm seu direito de visitar familiares
ou deixar a casa em que trabalham tolhido. Já em cenários mais graves há situações de morte,
como foi com Cleonice Gonçalves 3 (primeira vítima de Covid-19 no estado do Rio de Janeiro)
e com Miguel Otávio Santana da Silva 4, após ser abandonado pela patroa de sua mãe.

Com maioria da categoria composta por mulheres negras (63%) e de baixa renda, o
medo dos patrões, a baixa sindicalização e formalização do trabalho e a falta de dinheiro para
pagar advogados contribui para a dificuldade de entrar na justiça contra os abusos ou ter os
direitos trabalhistas validados na pandemia. De acordo com a Gênero e Número, no período de
dois meses e meio prévios aos decretos de quarentena foram 243 processos, e durante o período
de 5 meses após os decretos, foram apenas 218 processos. Esses dados demonstram uma queda
expressiva de judicializações dos abusos, pois o MPT não pode agir contra violações
individuais.

Ainda assim, a reportagem demonstra que o setor de trabalho doméstico foi o segundo
mais afetado pela pandemia no país. De setembro a novembro de 2020, foram perdidos 1,5
milhão de postos do setor. A situação teve uma melhora apenas com a implementação do auxílio
emergencial, que nos três primeiros meses gerou ganho de renda de 71% versus 37% na média
nacional. Com o fim do benefício, algumas dessas mulheres tiveram que retomar iniciativas
alternativas para se sustentar, seja recorrendo a projetos sociais – que são até mesmos
divulgados na reportagem – ou a trabalhos complementares.

3
Cleonice morreu de Covid-19 após ter contraído a doença de seus empregadores. Um dia depois da
internação, a patroa, que havia voltado da Itália, onde passou o Carnaval, comunicou à família de Cleonice que
estava com Covid-19.
4
Miguel era filho de Mirtes Renata Santana de Souza, que por sua vez cuidava dos filhos de sua empregadora.
Em 2 de junho de 2020, Miguel ficou sob os cuidados da patroa enquanto a mãe passeava com os cachorros
dos patrões. Na ocasião, a patroa deixou Miguel sozinho no elevador enquanto ele buscava pela mãe. O
menino morreu após cair do 9º andar do prédio.
A partir desta contextualização, é nítido perceber o compromisso ético da equipe de
jornalistas da Gênero e Número com o tema, que é delicado e, diga-se de passagem, foi
pouquíssimo explorado pela grande imprensa. O portal independente manteve-se fiel ao
interesse público e ao compromisso social de denunciar abusos trabalhistas de domésticas que,
no fundo, já possuem uma condição social fragilizada pelo racismo estrutural e pela baixa renda.

O artigo 6º do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros versa justamente sobre as


razões para que as jornalistas não possam admitir que o direito ao acesso à informação de
relevante interesse público seja impedido por nenhum tipo de interesse, entre elas,

III - a liberdade de imprensa, direito e pressuposto do exercício do jornalismo, implica


compromisso com a responsabilidade social inerente à profissão.

IV - a prestação de informações pelas organizações públicas e privadas, incluindo as


não-governamentais, é uma obrigação social.

Além disso, a reportagem feita pela Gênero e Número também teve o cuidado de não
expor diretamente depoimentos de empregadas domésticas ou mesmo detalhes de processos
judiciais que pudessem colocar em risco a relação de trabalho dessas pessoas. O foco das
jornalistas foi levantar e interpretar dados adquiridos por meio da LAI e, subsidiariamente, citar
declarações de especialistas ou, no máximo, familiares e líderes sindicais das domésticas. Esse
é um dos deveres profissionais do jornalista que está firmado também no artigo 6º do Código
de Ética dos Jornalistas Brasileiros,

VI - não colocar em risco a integridade das fontes e dos profissionais com quem
trabalha;

VIII - respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão.


(Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, 2007, grifo da autora).

Dessa maneira, a manutenção do sigilo de informações que pudessem prejudicar as


fontes de qualquer maneira que fosse é uma aplicação correta do código.

A reportagem de análise deste trabalho também evidencia que os abusos sofridos pela
categoria são decorrentes de uma estrutura sócio-histórica que culminou na conjuntura atual.
Essa exploração da memória histórica e de uma apuração menos imediatista oferece também
mais qualidade e veracidade à informação. Além disso, o simples fato de se expor esses abusos
(que chegam a resultar em mortes, violências e escravidão), também é uma defesa de um dos
grupos minoritários mais vulneráveis da sociedade: as mulheres negras.
O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros também é categórico quanto aos deveres
do jornalista de

XI - defender os direitos do cidadão, contribuindo para a promoção das garantias


individuais e coletivas, em especial as das crianças, dos adolescentes, das mulheres, dos idosos,
dos negros e das minorias;

XIII - denunciar as práticas de assédio moral no trabalho às autoridades e, quando for o


caso, à comissão de ética competente;

XIV - combater a prática de perseguição ou discriminação por motivos sociais,


econômicos, políticos, religiosos, de gênero, raciais, de orientação sexual, condição física ou
mental, ou de qualquer outra natureza.

Todos esses deveres foram contemplados pela reportagem que, apesar ter como fonte
principal números e dados, não se limitou a isso. O material humano acompanhou todo o
trabalho das jornalistas envolvidas, que fizeram questão de ir além de uma apuração distante e
corriqueira como ocorre com notícias sobre o tema propagadas pela grande mídia. A qualidade
da apuração foi tão bem intencionada que a UOL Economia fez uma reportagem 5 sobre as
empregadas domésticas estarem entre as que não conseguem se isolar e sofrerem maiores
impactos com o fim do auxílio com base nos dados levantados pela Gênero e Número.

Além disso, é possível afirmar que os incisos citados acima fazem parte da própria
missão da empresa e se refletem em muitas de suas reportagens, já que o objetivo principal do
portal é “analisar e visibilizar dados que revelam desigualdades para qualificar o debate sobre
questões de gênero, raça e direitos”. Também consta na editoria sobre 6 do site da Gênero e
Número a seguinte mensagem:

Acreditamos que nosso trabalho é extremamente relevante num país onde a


qualidade do debate sobre gênero e raça precisa melhorar, onde diversos dados
importantes e urgentes sobre desigualdades podem e devem ser comunicados. No
jornalismo de dados e na pesquisa, há métodos consolidados para se trabalhar de
forma contínua e sistematizada a produção de informação, sejam notícias ou outros
formatos midiáticos, a partir de bancos de dados estruturados em ambientes públicos
ou privados.

5
Disponível em: < https://economia.uol.com.br/reportagens-especiais/vulnerabilidade-domesticas-
pandemia/#cover >.
6
Disponível em: <http://www.generonumero.media/institucional/>.
No que diz respeito à ética jornalística, resta ainda destacar que a cobertura realizada
pelo portal – não só na reportagem de análise deste estudo, como também em outras 3
reportagens 7 sobre a situação degradante de empregadas domésticas na pandemia – abarcou e
deu voz ao tema com uma variedade de fontes, dados e denúncias de maneira profunda, objetiva
e completa. Além disso, é preciso lembrar que o número de judicializações de casos de
violações trabalhistas relacionados às domésticas é baixíssimo devido às barreiras sociais que
impedem essas pessoas de iniciarem processos legais – e esse número diminuiu ainda mais
durante a pandemia, mesmo com acordos cada vez mais abusivos entre empregadas e patrões.
Ou seja, o trabalho das jornalistas ao dar visibilidade ao tema e protagonizar os direitos
silenciados dessas trabalhadoras é uma conduta vai de encontro com o que determina o código
de ética:

Art. 12. O jornalista deve:

I - ressalvadas as especificidades da assessoria de imprensa, ouvir sempre, antes da


divulgação dos fatos, o maior número de pessoas e instituições envolvidas em uma cobertura
jornalística, principalmente aquelas que são objeto de acusações não suficientemente
demonstradas ou verificadas;

II - buscar provas que fundamentem as informações de interesse público;

Conclui-se, portanto, que a reportagem feita pelas jornalistas da Gênero e Número sobre
a precariedade e vulnerabilidade do trabalho doméstico durante a pandemia denunciou uma
situação pouco explorada pela grande mídia com dados precisos e fundamentados eticamente.
Quanto a apuração, o trabalho foi completo e objetivo. Abarcou uma variedade de fontes que
envolvem especialistas, empregadas domésticas, familiares das trabalhadoras, dados oficiais
obtidos via LAI, políticos, dados do IBGE, sindicalistas e procuradores.

A reportagem também foi capaz de aprofundar o tema trazendo, além do levantamento


de dados propriamente dito, material humano – sem qualquer desrespeito à dignidade das
domésticas – e uma contextualização sócio-histórica que vigora reflexões sobre o racismo
estrutural e a marginalização de trabalhadoras responsáveis pelo cuidado. Dessa forma, cumpriu

7
Disponível em: <http://www.generonumero.media/nossa-lei-e-que-vale-com-mais-de-70-das-domesticas-na-
informalidade-condicoes-de-empregadores-prevalecem-sobre-pec>
<http://www.generonumero.media/domesticas-desemprego-mulheres> <http://www.generonumero.media/pec-
das-domesticas-7-anos-golpeada-empregadores-economia-coronavirus>.
com as determinações do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros de maneira a priorizar o
interesse coletivo cumprir os princípios éticos da profissão de jornalista.

Referências Bibliográficas

Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, 2007. Disponível em: < https://fenaj.org.br/wp-
content/uploads/2014/06/04-codigo_de_etica_dos_jornalistas_brasileiros.pdf>.

BRUNO, Maria M. Pandemia doméstica: Empregadas domésticas estão entre as que não
conseguem se isolar e sofrem maiores impactos do fim do auxílio. Disponível em:
<https://economia.uol.com.br/reportagens-especiais/vulnerabilidade-domesticas-
pandemia/#cover>.

BRUNO, Maria M. MARTINS, Flávia B. Domésticas envelhecem e desemprego e


precarização aumentam entre mulheres jovens. Disponível em:
<http://www.generonumero.media/domesticas-desemprego-mulheres>.

BRUNO, Maria M. MARTINS, Flávia B. Segunda categoria mais beneficiada pelo Auxílio
Emergencial, trabalho doméstico perde 1,5 milhão de postos de trabalho. Disponível em:
< http://www.generonumero.media/domestica-auxilio-emergencial-emprego>.

BRUNO, Maria M. MARTINS, Flávia B. SILVA, Vitória R. “Nossa lei é a que vale”: com
mais de 70% das domésticas na informalidade, condições de empregadores prevalecem sobre a
PEC. Disponível em: <http://www.generonumero.media/nossa-lei-e-que-vale-com-mais-de-
70-das-domesticas-na-informalidade-condicoes-de-empregadores-prevalecem-sobre-pec>.

BRUNO, Maria M. MARTINS, Flávia B. SILVA, Vitória R. PEC das Domésticas completa
7 anos golpeada por empregadores, economia e coronavírus. Disponível em:
<http://www.generonumero.media/pec-das-domesticas-7-anos-golpeada-empregadores-
economia-coronavirus>.

GORTÁZAR, Naiara. Caso de Madalena, escrava desde os oito anos, expõe legado vivo da
escravidão no Brasil. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/internacional/2021-01-
14/madalena-escrava-desde-os-oito-anos-expoe-caso-extremo-de-racismo-no-brasil-do-
seculo-xxi.html>.
COSTA, Fernanda. Morte de trabalhadora doméstica por coronavírus escancara falta de
políticas para proteger a classe. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/jornal/morte-de-
trabalhadora-domestica-por-coronavirus-escancara-falta-de-politicas-para-proteger-a-classe/>

COSTA, Camila. Caso Miguel: morte de menino no Recife mostra 'como supremacia branca
funciona no Brasil', diz historiadora. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-
52932110>

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