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Boitempo
Entre fevereiro e abril de 2020, Giorgio Agamben publicou uma série de textos
de intervenção dedicados ao tema da pandemia do coronavírus. A tese com a
qual ele inaugura as suas reflexões, agora reunidas em Reflexões sobre a
peste: ensaios em tempos de pandemia (trad. Isabella Marcatti, Boitempo),
com prefácio de Carla Rodrigues, é a de que a epidemia é “uma invenção”.
Baseado nos relatórios do Consiglio Nazionale dele Richerche – segundo os
quais apenas 4% dos pacientes teriam necessidade de hospitalização,
enquanto a maioria da população teria sintomas leve como os da gripe – o
filósofo vem a público defender que as medidas de emergência adotadas pelas
autoridades italianas para o combate a uma “suposta” epidemia são “frenéticas,
irracionais e totalmente imotivadas”.
Não foram poucas as críticas que Agamben recebeu nos dias que se seguiram
à publicação de “A invenção de uma epidemia”, e não apenas na Itália.
Acadêmicos, jornalistas, profissionais de áreas diversas em jornais, revistas e
nas redes sociais argumentaram contra a tese da “invenção” e acusaram a
irresponsabilidade do filósofo no tratamento do tema do distanciamento social
(“lunático” obscurantista” “delirante”, é o que lemos por aí).
A ideia de contágio
Em perfeita harmonia com a sua crítica do biopoder, Agamben indica que a raiz
mais profunda dessa degeneração das relações humanas, promovida pela
ideia do contágio, foi plantada há muito tempo junto com o triunfo da biopolítica
na modernidade. Se chegamos agora a este ponto isso se deve ao fato da
nossa sociedade “não acreditar em mais nada a não ser na vida nua” (cap. 3,
“Esclarecimentos”). Como ele vem dizendo há bastante tempo, a biopolítica
nascente com a modernidade consiste justamente nisso: a redução da vida à
dimensão biológica implica a perda das suas dimensões política, social,
humana e afetiva. Ainda que sem nos darmos conta, é isso que nos faria
sacrificar a liberdade – e os outros – em nome da segurança e da
sobrevivência. A paixão do medo é o ingrediente imprescindível dessa receita,
de modo que a biopolítica nos condena a viver em estado perene de
emergência e pânico: até outro dia o terrorismo desempenhava o papel do
inimigo contra quem se deve declarar guerra, agora é o vírus.
Projetando um futuro não tão distante, Agamben especula sobre o que seria
um ordenamento político fundado no distanciamento social no quinto texto da
série (cap. 5, “Distanciamento social”). Contra os “tolos” que insistem em ver
algo positivo na situação atual de “emergência sanitária” – por exemplo, a
comunicação à distância proporcionada pelas novas tecnologias digitais –, ele
não acredita que “uma comunidade fundada sobre o ‘distanciamento social’
seja humana e politicamente vivível”. Inspirado em Massa e poder de Elias
Canetti, Agamben conclui que a comunidade fundada no distanciamento social,
à diferença do que tendemos a pensar à primeira vista, não é marcada pelo
individualismo extremado, pois tem justamente a característica de uma massa,
mas uma massa invertida, formada por indivíduos distanciados uns dos outros;
uma “massa rarefeita”, “especialmente compacta e passiva”.
Ainda como um bom (neo)liberal, Agamben não diz uma palavra sequer sobre
o papel necessário do Estado no manejo dessa crise de dimensão sanitária,
econômica e social. Uma palavra sequer sobre a proteção dos mais
vulneráveis, sobre a necessidade de sistemas de saúde públicos e universais,
sobre o socorro financeiro dos mais pobres. Agamben imagina que vamos
enfrentar essa crise sem que os governantes assumam a orquestra? Esse
lapso liberal também é coerente com o seu esquema filosófico: no estado de
exceção, o Estado controla, domina, cerceia as liberdades dos “corpos
matáveis dos súditos hobbesianos”. Conhecemos bem no Brasil com quais
“argumentos” se dissemina a demonização do Estado.
O filósofo não precisa retirar-se da cidade para o Olimpo, para o céu das ideias
ou para uma cabana na floresta. Tampouco precisa negar a sua humanidade (e
a dos outros) para ser crítico. Das diatribes de Agamben nesse caso do vírus a
que mais me impressiona, no final das contas, é o desprezo pelo medo que os
humanos têm de morrer.
“Não sabemos onde a morte nos espera, esperamos por ela em todo lugar. A
meditação da morte é a meditação da liberdade. Quem aprendeu a morrer,
desaprendeu a servir. Saber morrer nos liberta de toda sujeição e de toda
constrição” (grifo meu).
Vai dizer isso para uma mãe solo da Cidade de Deus que acaba de ser
contagiada.
Vai dizer que “a morte liberta de toda sujeição” para as milhares de pessoas
que choram a morte de amigos, pais, filhos, amantes, maridos, amigas,
namoradas, mães.