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Agamben sendo Agamben: o filósofo e a invenção da pandemia

Publicado em 12/05/2020 // 8 comentários

Por Yara Frateschi.

Boitempo

"O diagnóstico de Agamben a respeito da covid-19 antecede a análise dos


fenômenos, o que faz parecer que ele está mais comprometido com a sua
própria filosofia do que com o mundo que ela quer explicar. O resultado é uma
análise que chega às raias do rompimento com a verdade factual e que não
tem sensibilidade para os impactos da pandemia nas camadas mais
vulneráveis da população. "

Em suas reflexões sobre a crise do coronavírus, Giorgio Agamben chega às


raias do rompimento com a verdade factual e nem mesmo as milhares de
mortes ou o colapso dos sistemas de saúde em diversos países do mundo o
demovem da tese de que as medidas de contenção, como o distanciamento
social, sejam “irracionais” e “imotivadas”. Em nenhum momento abordada
como um problema de saúde pública, a pandemia teria sido inventada para
restringir liberdades e manter o estado de exceção como paradigma normal de
governo. Embora os textos do filósofo italiano estejam causando espanto – até
pelas semelhanças entre aspectos do seu discurso com o de Jair Bolsonaro –,
devemos reconhecer que a sua posição sobre a crise do coronavírus é
coerente com a sua obra, especialmente com o esquema para explicar a
afinidade entre o biopoder e o estado de exceção na modernidade. O esquema
já estava pronto, Agamben o aplicou ao caso.
Se as suas reflexões não estão à altura dos desafios que a crise atual nos
impõe, isso se deve às limitações da sua própria filosofia, construída a partir de
um binarismo um tanto simplório, de acordo com o qual a máquina
governamental sempre domina, controla e restringe liberdades, ao passo que a
sociedade é invariavelmente passiva, compacta e inerte. Como lidar com as
tensões agudas que a pandemia provoca a partir de uma filosofia sem
tensões? Não fosse tão mais comprometido com as próprias teses do que com
o mundo que elas deveriam explicar, esta seria uma grande oportunidade para
o filósofo admitir “sei que não sei” e reconciliar-se com a cidade, quiçá com a
sua própria humanidade.

A invenção de uma epidemia

Entre fevereiro e abril de 2020, Giorgio Agamben publicou uma série de textos
de intervenção dedicados ao tema da pandemia do coronavírus. A tese com a
qual ele inaugura as suas reflexões, agora reunidas em Reflexões sobre a
peste: ensaios em tempos de pandemia (trad. Isabella Marcatti, Boitempo),
com prefácio de Carla Rodrigues, é a de que a epidemia é “uma invenção”.
Baseado nos relatórios do Consiglio Nazionale dele Richerche – segundo os
quais apenas 4% dos pacientes teriam necessidade de hospitalização,
enquanto a maioria da população teria sintomas leve como os da gripe – o
filósofo vem a público defender que as medidas de emergência adotadas pelas
autoridades italianas para o combate a uma “suposta” epidemia são “frenéticas,
irracionais e totalmente imotivadas”.

Não havendo justificativa epidemiológica, qual seria, então, a verdadeira


intenção das autoridades governamentais italianas com a imposição de
medidas de contenção ao espalhamento da suposta pandemia, tais como
proibição de afastamento do município da residência, a proibição de
manifestações e reuniões em locais públicos e a suspensão das atividades
educacionais presenciais? Em outras palavras, por que as autoridades italianas
resolveram inventar uma pandemia?

Agamben não tergiversa, pois tem a resposta na ponta da língua e há muito


tempo: a restrição das liberdades é imprescindível para que as autoridades
governamentais sejam capazes de manter o estado de exceção “como
paradigma normal de governo”. O argumento é o seguinte: na medida em que
o terrorismo tende a se esgotar como pretexto para a adoção de medidas de
exceção, trata-se, agora, de encontrar um substituto e, para isso, a pandemia
cai como uma luva. A estratégia governamental guarda semelhanças com
aquela da guerra ao terrorismo: o governo inventa uma epidemia para instaurar
o “estado de pânico coletivo” e os indivíduos, clamando por segurança, tendem
a aceitar as restrições que o governo impõe à sua liberdade. Agamben detecta
aí um “perverso círculo vicioso” no qual, induzidos pelo governo, os indivíduos
trocam de bom grado a liberdade pela segurança e, assim, fomentam o estado
de exceção que os controla pelo medo.

Não foram poucas as críticas que Agamben recebeu nos dias que se seguiram
à publicação de “A invenção de uma epidemia”, e não apenas na Itália.
Acadêmicos, jornalistas, profissionais de áreas diversas em jornais, revistas e
nas redes sociais argumentaram contra a tese da “invenção” e acusaram a
irresponsabilidade do filósofo no tratamento do tema do distanciamento social
(“lunático” obscurantista” “delirante”, é o que lemos por aí).

Quem esperava que Agamben revisse a sua posição em função do aumento


veloz dos casos de contágio e morte, bem como diante do colapso do sistema
de saúde italiano, frustrou-se. Nos artigos seguintes, ele não apenas não revê
a tese da “invenção” como passa a criticar duramente a sociedade italiana pela
docilidade com a qual aceita as restrições de liberdades impostas pelo
distanciamento social.

A ideia de contágio

No artigo “Filosofia em tempo de crise”, Nuno Venturinha, professor da


Universidade Nova de Lisboa, acompanhou, bastante surpreso, a trajetória: no
momento da publicação do segundo artigo – no qual Agamben dizia que se
queria “a todo custo” difundir o pânico na Itália –a OMS registrava, naquele
mesmo país, 10149 casos e 631 mortes (3162 mortes na China); na ocasião do
terceiro artigo, eram 27980 casos de contágio e 2503 mortes (na China, 3231
mortes). Devo acrescentar que no dia em que Agamben publicou o quinto
texto, questionando novamente o distanciamento social, a Itália chorava 16523
mortes. Naquela ocasião, até mesmo o prefeito de Milão – a cidade mais
atingida da Itália – já tinha vindo a público desculpar-se pela campanha “Milão
não para” (no grupo dos governantes negacionistas, o genocida Bolsonaro é
dos poucos que se mantém firme em questionar a necessidade inquestionável
do isolamento social com argumento econômico). Ao publicar o quinto texto, na
mesma toada dos anteriores, mais de 100.000 pessoas haviam perdido a vida
no mundo por causa da pandemia inventada.

A verdade factual das milhares de mortes não desviou o foco do filósofo.


Impassível, Agamben mobiliza os elementos mais importantes da crítica da
biopolítica e do estado de exceção, que ele vem desenvolvendo desde pelo
menos o início dos anos 1990, para refletir sobre o momento atual. O tema do
contágio é o primeiro a ganhar destaque, não de um ponto de vista científico e
epidemiológico, mas de um ponto de vista moral: é a ideia de contágio que
interessa a ele na medida em que se trata de “uma das consequências mais
desumanas do pânico que a todo custo estão querendo difundir na Itália” (cap.
2, “Contágio”). A “desumanidade” consiste na transformação de cada cidadão
em um contaminador em potencial (em analogia ao terrorista em potencial): as
medidas de restrição da liberdade e de distanciamento físico degeneram as
relações ao ponto de que “o nosso próximo foi abolido”, não sem antes ter sido
transformado em um “contaminador”.

Em perfeita harmonia com a sua crítica do biopoder, Agamben indica que a raiz
mais profunda dessa degeneração das relações humanas, promovida pela
ideia do contágio, foi plantada há muito tempo junto com o triunfo da biopolítica
na modernidade. Se chegamos agora a este ponto isso se deve ao fato da
nossa sociedade “não acreditar em mais nada a não ser na vida nua” (cap. 3,
“Esclarecimentos”). Como ele vem dizendo há bastante tempo, a biopolítica
nascente com a modernidade consiste justamente nisso: a redução da vida à
dimensão biológica implica a perda das suas dimensões política, social,
humana e afetiva. Ainda que sem nos darmos conta, é isso que nos faria
sacrificar a liberdade – e os outros – em nome da segurança e da
sobrevivência. A paixão do medo é o ingrediente imprescindível dessa receita,
de modo que a biopolítica nos condena a viver em estado perene de
emergência e pânico: até outro dia o terrorismo desempenhava o papel do
inimigo contra quem se deve declarar guerra, agora é o vírus.

A ciência como religião e a massa passiva

Se os italianos estão “dispostos a sacrificar praticamente tudo” – trabalho,


amizade, afeto, convicções políticas e religiosas – é porque “não têm outro
valor que não seja a sobrevivência”. Sendo a “vida nua”, a vida biológica, o
valor supremo a orientar a sociedade, o estado de exceção encontra condições
adequadas para se perpetuar e renovar (cap. 3, “Esclarecimentos”).
Nitidamente surpreso com “a facilidade com a qual uma sociedade inteira
aceitou sentir-se empestada, isolar-se em casa e suspender suas condições
normais de vida” (cap. 4, “Reflexões sobre a peste”), Agamben ainda se
pergunta: por que não houve protestos e oposições?

Ao invés de cogitar que talvez seja porque as pessoas estão morrendo ou


cuidando uma das outras, ele prefere culpar a ciência, outro dispositivo na
receita do biopoder. Tendo se tornado a “religião do nosso tempo”, o filósofo
alerta que a ciência também pode produzir superstição e medo. Numa alusão
às guerras religiosas da cristandade, ele está chamando a nossa atenção para
a aliança nefasta entre os cientistas que difundem medo e superstição (para
ele, aparentemente a maioria) e o “monarca”. Quando isso acontece, temos as
condições mais do que favoráveis para a aceitação “fácil” da suspensão das
condições normais de vida, pois o medo cultivado pela ciência é extremamente
persuasivo da necessidade da restrição da liberdade. Agamben aprendeu
muitas coisas com Thomas Hobbes a respeito do papel do medo na
manutenção da obediência civil, mas Hobbes, herdeiro da revolução científica,
insistia no poder da ciência contra a superstição, ao passo que Agamben,
herdeiro do pós-modernismo, está mais disposto a questionar do que afirmar a
diferença entre uma e outra.

Projetando um futuro não tão distante, Agamben especula sobre o que seria
um ordenamento político fundado no distanciamento social no quinto texto da
série (cap. 5, “Distanciamento social”). Contra os “tolos” que insistem em ver
algo positivo na situação atual de “emergência sanitária” – por exemplo, a
comunicação à distância proporcionada pelas novas tecnologias digitais –, ele
não acredita que “uma comunidade fundada sobre o ‘distanciamento social’
seja humana e politicamente vivível”. Inspirado em Massa e poder de Elias
Canetti, Agamben conclui que a comunidade fundada no distanciamento social,
à diferença do que tendemos a pensar à primeira vista, não é marcada pelo
individualismo extremado, pois tem justamente a característica de uma massa,
mas uma massa invertida, formada por indivíduos distanciados uns dos outros;
uma “massa rarefeita”, “especialmente compacta e passiva”.

O solilóquio do filósofo coerente

Surpresos, ou até mesmo indignados, os críticos devem reconhecer que as


reflexões de Agamben sobre a epidemia inventada são inegavelmente
coerentes com a sua filosofia política, especialmente com as análises sobre o
vínculo entre biopoder e exceção soberana, que o tornaram aclamado por uma
parte da intelectualidade brasileira de esquerda.

A partir da segunda década do século XXI, juristas, cientistas políticos,


psicanalistas e filósofos brasileiros encontraram no pensamento de Agamben
forte inspiração para explicitar as fissuras da democracia brasileira bem como a
sua relação de continuidade com a ditadura militar. A coerência da análise do
filósofo sobre a epidemia com a sua obra filosófica e a afinidade de parte do
seu discurso, neste momento, com o de Jair Bolsonaro, convida à reflexão,
evidentemente. Poucas semanas depois de Agamben lançar a ideia da
invenção, Bolsonaro também qualificou como exagerada (“histérica”, no seu
vocabulário machista) a preocupação com a expansão do coronavírus, criticou
duramente a mídia por espalhar um clima de pânico e acusou os governos
estaduais, que adotaram a medida de isolamento social, de limitar a liberdade
das pessoas e “causar confinamento em massa”. Bolsonaro também
desautorizou, sucessivas vezes, a ciência. Deixo as semelhanças para serem
avaliadas pelos correligionários. Contento-me em explicitar quais são, na minha
interpretação, as limitações mais severas da tese da epidemia inventada, nada
estranha, aliás, ao tipo de crítica do biopoder que o filósofo tem feito nas
últimas décadas.

Agamben aplica ao caso da pandemia o esquema que ele desenhou para


explicar a íntima solidariedade entre biopoder e estado de exceção e que,
embora seja um esquema promissor em certos aspectos e em alguns
momentos – por exemplo, para analisar Guantánamo, o Ato Patriótico de Bush
e a preservação de elementos ditatoriais nas democracias – está amarrado na
camisa de força de um antagonismo único e de um retrato sem muitas nuances
das sociedades capitalistas atuais. De um lado, Agamben vê a máquina
governamental – sempre dominadora –e seus aliados na produção de
dispositivos de controle e dessubjetivação (a mídia, a religião, a ciência, a
tecnologia). De outro, há a sociedade, retratada quase invariavelmente como
um bloco unívoco, inerte, passivo, composta por sujeitos dessubjetivados. Com
o triunfo do biopoder e as novas modalidades de dispositivos tecnológicos, as
sociedades contemporâneas se apresentam – sentencia Agamben no início
dos anos 2000 – como “o corpo social mais dócil e frágil jamais constituído na
história do ocidente” (Cf. “O que é um dispositivo” em O que é o
contemporâneo e outros ensaios. Chapecó, Argos, p. 49).

Esse esquema não apenas obstrui o olhar do filósofo para as lutas e os


desejos da sua época (parafrasenado Nancy Fraser parafraseando Marx) –
afinal só percebe as forças que correm por trás das costas dos sujeitos –, mas
também o leva a enxergar muito superficialmente as “trevas do presente”,
como ele nos promete*. Tanto é assim que a sua análise sobre os efeitos do
contágio pelo coronavírus foca em uma sociedade totalmente passiva, inerte e
sem qualquer distinção ou desigualdade interna. O contágio interessa a ele
como “ideia”, não como algo que afeta seres humanos concretos.

O diagnóstico antecede a análise dos fenômenos e eventos, pois Agamben


está mais comprometido com a sua própria filosofia do que com o mundo que
ela deveria explicar ou tentar compreender. O preço a pagar para permanecer
coerente é desmerecer que o evento tenha a sua particularidade e novidade,
pois admiti-lo o obrigaria a sair do monólogo e dialogar com a situação e, quem
sabe, descobrir que a sua filosofia não dá conta desse recado (embora possa
dar de outros). A tese da invenção é o truque para fazer parecer que a
pandemia é apenas outro recurso para reiterar o estado de exceção.

Para manter o solilóquio, o filósofo precisa fechar os ouvidos para as vozes


exteriores e desqualificar as ciências e a mídia como aliadas da máquina
governamental na criação de um irracional clima de pânico. Desconfio que se
colocasse a sua filosofia para dialogar com outras ciências – médicas, sociais,
econômicas – talvez conquistasse uma perspectiva um pouco mais nuançada e
complexa do problema.

No final das contas, um liberal?

(um liberal ou um teórico crítico incansável da ideologia neoliberal? A.M.)

O resultado é uma análise que chega às raias do rompimento com a verdade


factual, tudo em nome de denunciar o vínculo entre biopoder e estado de
exceção, tudo em nome da sua própria filosofia. As milhares de vidas perdidas
– nuas, afinal – não o demovem da determinação inabalável para denunciar
que nós aceitamos de bom grado a restrição de nossa liberdade de movimento
num nível jamais visto na história (cap. 6, “Uma pergunta”). Chega a ser
irônico, embora não surpreendente, que, no final das contas, o foucaultiano
Agamben se revele um liberal. Drenados da retórica e do messianismo – que
chega a ponto de exigir do Papa Francisco que abrace os doentes, como
Francisco abraçou os leprosos –, estes textos de intervenção colocam as
liberdades individuais no topo da escala de valores.

Ainda como um bom (neo)liberal, Agamben não diz uma palavra sequer sobre
o papel necessário do Estado no manejo dessa crise de dimensão sanitária,
econômica e social. Uma palavra sequer sobre a proteção dos mais
vulneráveis, sobre a necessidade de sistemas de saúde públicos e universais,
sobre o socorro financeiro dos mais pobres. Agamben imagina que vamos
enfrentar essa crise sem que os governantes assumam a orquestra? Esse
lapso liberal também é coerente com o seu esquema filosófico: no estado de
exceção, o Estado controla, domina, cerceia as liberdades dos “corpos
matáveis dos súditos hobbesianos”. Conhecemos bem no Brasil com quais
“argumentos” se dissemina a demonização do Estado.

Enquanto as filósofas Angela Davis e Judith Butler estão chamando atenção


para como a pandemia intensifica precariedades já existentes (Butler) e traz à
tona as incapacidades do neoliberalismo para promover o básico para as
camadas mais vulneráveis (Davis), Agamben não apresenta, em seus textos
sobre o coronavírus, sinal de preocupação com as desigualdades já existentes
e que podem ser ainda mais aprofundadas. Contudo, ele não poderia fazer
melhor do que isso, pois pensa a sociedade como uma massa compacta que
sustenta um único valor – o da vida nua – sem distinção de classe, raça,
gênero, sexualidade, idade, etnia. Agamben desentende as desigualdades
porque os seus sujeitos são um só: os sujeitos dessubjetivados pelos mesmos
dispositivos. Custo muito, sempre custei, a entender por que essa filosofia
interessa a uma perspectiva crítica de esquerda das sociedades capitalistas
contemporâneas.

Volta para a cidade!

Concordo com Contardo Calligaris, para quem o que importa a Agamben “é


chamar atenção para a parte da liberdade à qual parecemos estar facilmente
dispostos a renunciar em troca de mais tempo de vida”. No entanto, para isso
não é necessário negar a verdade factual, tornar a epidemia uma invenção e o
contágio, uma “ideia”. Também não é necessário acusar a sociedade de aceitar
facilmente “sentir-se empestada” (sentir-se?) para nos alertar que corremos o
risco dos governantes desejarem perenizar as medidas que hoje aceitamos em
caráter emergencial: o fechamento de escolas e universidades e a
implementação definitiva do ensino à distância. (não ´so isso, mas, tudo aquilo
que ao ser viável economicamente, exige sem remorsos impor a vida nua).

O Brasil é agambiano quando a partir de Bolsonaro, existe ligação entre um e


outro, vai às ruas, às compras e quebra o isolamento social, ou seja, o
brasileiro médio preza mais a liberdade que a vida? Ele deixa de temer a morte
quando se trata de não perder a sua liberdade? Uma parcela da população,
sim. Outra, veementemente, não.

Estamos “empestados” e corremos esse risco, as duas coisas. A filosofia pode


manter vivas as tensões, quem as achata são os dogmáticos

O filósofo não precisa retirar-se da cidade para o Olimpo, para o céu das ideias
ou para uma cabana na floresta. Tampouco precisa negar a sua humanidade (e
a dos outros) para ser crítico. Das diatribes de Agamben nesse caso do vírus a
que mais me impressiona, no final das contas, é o desprezo pelo medo que os
humanos têm de morrer.

Na epígrafe emprestada de Montaigne para o capítulo 5, “Distanciamento


social”, lemos:

“Não sabemos onde a morte nos espera, esperamos por ela em todo lugar. A
meditação da morte é a meditação da liberdade. Quem aprendeu a morrer,
desaprendeu a servir. Saber morrer nos liberta de toda sujeição e de toda
constrição” (grifo meu).

Vai dizer isso para uma mãe solo da Cidade de Deus que acaba de ser
contagiada.

Vai dizer que “a morte liberta de toda sujeição” para as milhares de pessoas
que choram a morte de amigos, pais, filhos, amantes, maridos, amigas,
namoradas, mães.

Volta para a cidade, filósofo.

* Desenvolvo esta questão mais a fundo em: “Giorgio Agamben e a


emancipação da mulher”. Philósophos, Goiânia, v. 21, n. 1, pp. 213-234, jan-
jun. 2016

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