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Enfermagem

Patrícia Benner

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Quarteto
Título
De Iniciado a Perito
Excelência e Poder na Prática Clínica de Enfermage,fü@Íg1ção Comemorativa)
Edição oJjgjpru•·'põ'.f"Pirtri:cii.'f·B~JW,!,J, Copyright (e) 2@(Jteservados Todos os Direitos
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Firs\,Édition b§P11ifiçj;r']}êfiner, Ccip9right (e) 2&91, Ali Rights Reserved
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P/i.tricia Benner :❖;•. ,

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Anaf,'\lbuqlie.rgJ}lfQµé1rósJ;l':mvà colal:>oração Jle Belarmina Lourenço
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•colecção ( t
Enfermagem nº 3 \.

Coordenação da Coíêcção
Ana Albuquerque Queirós

Capa
João Ferrand

Edição
Quarteto Editora
AI. Calouste Gulbenkian, Lt. 5 - Sl. 6
3004-503 Coimbra
URL: http://quarteto.regiaocentro.net
Email: quarteto_editora@ip.pt

Execução Gráfica
Cláudia Mairos

Impressão
Tipografia Arte Pronta

Coimbra, Dezembro de 2001


'J~BN: 972-8535-97-X X

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(Os cti{~itgs qp títµfo original i4glês)peµerlç~m ao Proprietário da edição da Obra)
(e) TraiisIª1io'i), Quarteto Editorã; 2001{ l
(Originá\í:\ttgll~.l\Ianguage title f,·dlhlt9Prietor's edition ofthe Work)
Publicad~'-'~i~c~rdo com o editoi~~i;•::1, Pearson Education, lnc., publicando como PRENTICE
HALL, Inc. · •••••·· , ./
Published by ár,.ang_ement wi0p'ihe original publisher, Pearson Education, Inc., publishing as
PRENTICE HALL, me. f
Patrícia Benner / Qiifrteto ~f:lífora
Reservados todos os dft~1~:~ de acordo com a legislação em vigor
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DE INICIADO
A PERITO
Excelência e Poder na Prática Clínica de Enfermagem
Edição Comemorativa

Patricia Benner

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Quarteio

2001
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INDICE

NOTA INTRODUTÓRIA ......•.•.•...•.•....•......•........•. 11

PREFÁCIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

AGRADECIMENTOS .•....................................... 27

CAPÍTULO 1
A DESCOBERTA DO CONHECIMENTO
INCLUÍDO NA PRÁTICA DA ENFERMAGEM . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29

As diferenças entre conhecimento prático e teórico ................ 32


O conhecimento incluído na perícia ............................ 32
Desenvolvimento do conhecimento prático ...................... 33
Os significados comuns ..................................... 35
Assunções, expectativas e comportamentos tipo .................. 35
Os casos paradigmáticos e o conhecimento pessoal ................ 37
As máximas ............................................. 38
As práticas não planeadas ................................... 39
Resumo e conclusões ...................................... 40

CAPÍTULO 2
0 MODELO DREYFUS
DE AQUISIÇÃO DE COMPETÊNCIAS APLICADO À ENFERMAGEM . . . . . . . . . . . 41

Métodos ................................................ 44
Interpretação dos dados ..................................... 45
Estadol : Iniciado ......................................... 49
Estado 2: Iniciado avançado ................................. 50
Estado 3: Competente ...................................... 53
Estado 4: Proficiente ....................................... 54
6 1 De iniciado a perito

Estado 5: Perito ........................................... 58


O significado da experiência ................................. 61

CAPÍTULO 3
ABORDAGEM INTERPRETATIVA DA IDENTIFICAÇÃO
65
E DA DESCRIÇÃO DOS CONHECIMENTOS CLÍNICOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . • .
A avaliação das performances ................................ 70
Identificação dos domínios e de competências .................... 71
Resumo ................................................. 72

CAPÍTULO 4
A FUNÇÃO DE AJUDA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73

A relação favorecedora de recuperação e de cura: criar um ambiente


propício ao estabelecimento de uma relação permitindo a recuperação
e cura .................................................. 77
Tomar medidas para assegurar o conforto do doente
e a preservação da sua personalidade face à dor
e a um estado de extrema fraqueza ............................ 81
A presença: estar com o doente ............................... 83
Optimizar a participação do doente
para que ele controle a sua própria recuperação ................... 85
Interpretar os diferentes tipos de dor
e escolher as estratégias apropriadas para os controlar e gerir ........ 87
Proporcionar conforto e comunicar pelo toque .................... 88
Proporcionar apoio afectivo e informar as famílias dos doentes ....... 90
Guiar os doentes aquando de mudanças
nos planos emocional e físico ................................ 91
Resumo e conclusões ...................................... 98

CAPÍTULO 5
A FUNÇÃO DE EDUCAÇÃO, DE ORIENTAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • 101

O momento: saber quando o doente está pronto a aprender .......... 105


Ajudar os doentes a interiorizar as implicações da doença
e da recuperação no seu estilo de vida .......................... l 06
Saber compreender como o doente interpreta a sua doença .......... 109
Fornecer uma interpretação do estado do doente
e dar as razões dos tratamentos ............................... 111
Índice 1 7

A função de guia:
tornar abordáveis os aspectos culturalmente inacessíveis de um doente . 113
Resumo e conclusões ...................................... 116

CAPÍTULO 6
A FUNÇÃO DE DIAGNÓSTICO E DE VIGILÂNCIA DO DOENTE . . . . . • . . . . . . . 119

Detectar e determinar
as mudanças significativas do estado do doente ................... 123
Fornecer um sinal de alarme precoce:
antecipar uma crise e uma deterioração do estado do doente
antes que os sinais explícitos confirmem o diagnóstico ............. 125
Antecipar os problemas: pensar no futuro ....................... 127
Compreender os pedidos e os comportamentos tipos de uma doença:
antecipar as necessidades do doente ........................... 129
Avaliar o potencial de cura do doente
e responder às diversas estratégias de tratamento .................. 130
Resumo e conclusões ...................................... 131

CAPÍTULO 7
A GESTÃO EFICAZ DE SITUAÇÕES DE EVOLUÇÃO RÁPIDA .............. 133

Competências em alturas de ermegências vitais:


apreensão rápida de um problema ............................. 136
Gestão dos acontecimentos contigentes: fazer corresponder rapidamente
as necessidades e os recursos em situações de emergência ........... 138
Identificação e tomada a cargo da crise
de um doente até à chegada do médico ......................... 141
Resumo e conclusões ...................................... 143

CAPÍTULO 8
A ADMINISTRAÇÃO
E A VIGILÂNCIA DOS PROTOCOLOS TERAPÊUTICOS ................... 145

Pôr a funcionar e vigiar um tratamento por via intravenosa


com o mínimo de riscos e de complicações ...................... 148
Administrar medicamentos de forma apropriada e sem perigo ........ 150
Combater os perigos da imobilidade ........................... 152
Criar uma estratégia de tratamento da ferida
que facilite a recuperação (cura),
8 1 De iniciado a perito

o conforto e uma drenagem apropriada ......................... 154


Resumo e conclusões ...................................... 156

CAPÍTULO 9
ASSEGURAR E VIGIAR A QUALIDADE DOS CUIDADOS ..•..........•... 159

Fornecer um sistema para assegurar a segurança


do doente durante os cuidados médicos e de enfermagem ........... 163
Avaliar o que pode ser omitido ou acrescentado
às prescrições médicas sem colocar a vida do doente em perigo ...... 165
Obter dos médicos respostas apropriadas em tempo útil ............ 167
Resumo e conclusões ...................................... 168

CAPÍTULO 10
As COMPETÊNCIAS EM MATÉRIA
DE ORGANIZAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO DE TAREFAS . . . . . . . . . . . . • • . . . . . . . 171

Coordenar, ordenar e responder às múltiplas necessidades


e solicitações dos doentes: estabelecer prioridades ................. 174
Constituir e consolidar uma equipa médica
para proporcionar os melhores cuidados ........................ 177
Resumo e conclusões ...................................... 186

CAPÍTULO 11
IMPLICAÇÕES PARA A INVESTIGAÇÃO
E A PRÁTICA CLÍNICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • . . • . . . 187

Envolvimento versus distanciamento ........................... 189


As relações enfermeira-doente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 190
Os sinais de alarme precoce .................................. 19 I
Para lá dos cuidados de enfermagem ........................... 193
Competências de organização e de vigilância (monitorização) ........ 193
O fenómeno do cuidar humano (Caring) ........................ 194

CAPÍTULO 12
IMPLICAÇÕES PARA O DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL
E PARA A EDUCAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 197

O desenvolvimento profissional ............................... 199


A formação das enfermeiras ................................. 207
Índice 1 9

CAPÍTULO 13
PARA UMA NOVA IDENTIDADE
E UMA REDEFINIÇÃO DOS CUIDADOS DE ENFERMAGEM . . . . . . . . . . . . . . . . 215

Incentivos significativos e sistemas de retribuição ................. 220


Um sistema de promoção na prática clínica ...................... 222
Melhoramento da colaboração ................................ 224
Um reconhecimento acrescido ................................ 224

CAPÍTULO 14
EXCELÊNCIA E PODER NA PRÁTICA DE ENFERMAGEM . . . . . . . . . . . . . . . . . 227

O poder de transformação ................................... 231


O cuidar de reintegração .................................... 232
A defesa (Advocacy) ....................................... 232
O poder da relação terapêutica no âmbito da recuperação,
cura e promoção da saúde (healing) ............................ 233
O poder de participação / afirmação ........................... 234
Resolução de problemas .................................... 235

EPÍLOGO - Aplicações Práticas ............................... 241


Do bom e mau uso dos modelos formais em cuidados
de enfermagem - Deborah R. Gordon, Ph. D. . ................ 244
Integração de uma enfermeira de nível III no Hospital
el Camino - Anne Huntsman, Janet Reiss Lederer e
Elaine M. Peterman ..................................... 273

ANEXO TERMINOLÓGICO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • . . . . . . . . 295


NOTA. INTllODUl'ÓRIA

A Editora Prentice-Hall apresenta esta edição comemorativa da obra


"De Iniciado' a Perito: Excelência e Poder na Prática Clínica de
Enfermagem" depois de dezasseis anos, dez traduções e uma recepção do
livro que tem sido extremamente gratificante. Os objectivos do trabalho
eram os de estudar a aprendizagem experiencial na prática de enfermagem,
examinar a aquisição de competências baseada na aprendizagem clínica e
o conhecimento articulado que está inerente à prática de enfermagem. As
narrativas relativas à aprendizagem experiencial ligam o formando, o
contexto, as interacções e o tempo. As narrativas baseadas na:'éxperiência
tocam características humanas comuns e vulnerabilidades que podem
mostrar-se diferentes em outros contextos organizacionais ou culturais. Os
leitores afirmam que este livro põe em palavras aquilo que eles sempre
souberam, mas não eram capazes de expressar acerca da prática de
enfermagem - um elogio perfeito pois que esta obra pretende dar ao
público, uma linguagem acessível, uma prática escondida ou marginalizada
(i.e., investigação articulada). Os leitores são capazes de comparar e
confrontar semelhanças e diferenças entre as narrativas e os seus próprios
contextos práticos e culturais.
Quando este texto foi publicado a primeira vez, as enfermeiras estavam
a começar a perspectivar carreiras de longa duração na prática clínica, e
estavam interessadas em modos de encontrar o desenvolvimento e avanço
baseado na perícia clínica e na educação. O avanço na carreira foi-se ligan-
do ao deixarem os cuidados directos ao paciente e passarem a ter ocupa-
ções ligadas ao ensino e administração. Este trabalho mostra por que é que
as enfermeiras práticas clínicas necessitam de permanecer e serem

' Novice será traduzido por iniciado ou iniciada, caso a caso, e poderá também ser
traduzida pela palavra principiante. Nota da Tradutora (N. da T.)
12 \ De iniciado a perito

recompensadas pela sua perícia clínica, nos vários contextos da prática.


Esta investigação demonstra que a prática é, em si mesma, um modo de se
obter conhecimento. Oferece uma perspectiva alternativa do conhecimento
da enfermeira competente, do modo como se pode prosseguir a pesquisa
clínica e o desenvolvimento do conhecimento clínico, na prática de
enferma-gem. Enquanto membro participante na tradição da prática de
enfermagem, cada enfermeira carrega nos seus ombros o passado e o
presente das suas colegas. O modo como tratamos a nossa aprendizagem
experiencial diária, na prática clínica, determina a extensão em que a
investigação e a educação serão tanto colectivas como cumulativas, e
ligadas de um modo vital com a prática clínica.
A enfermagem tem uma prática socialmente organizada e uma forma
implícita de conhecimento e de ética - como qualquer outra prática, enfrenta
continuamente um desafio para o desenvolvimento ou para o declínio. As
práticas crescem através da aprendizagem experiencial e através da
transmissão dessa aprendizagem nos contextos de cuidados. As práticas não
podem ser completamente objectivadas ou formalizadas porque têm sempre
de ser trabalhadas em novas formas no âmbito de interacções particulares
que ocorrem em momentos reais. As histórias das enfermeiras ilustram esta
verdade. As práticas partilham bases sociais, práticas e históricas.
Práticas clínicas excelentes requerem acção e raciocínio em transição
com situações particulares (Taylor, 1993; Benner, Tanner & Chesla, 1996;
Benner, Hooper - Kyriakidis & Stannard,1999).
As práticas do Cuidar'- são baseadas no encontro e nas respostas a um
outro concreto. Tornar-se um membro participante na prática de enferma-
gem, implica que se assume uma intenção de ajuda e um compromisso de
se desenvolverem práticas de cuidar. As narrativas das enfermeiras neste
livro fornecem uma visão moral para o valor e a primazia do cuidar para o
processo de recuperação e para que se tornem, as difíceis medidas médicas
de cura, seguras e efectivas. Um dos objectivos deste trabalho é o de tornar
as práticas de cuidar, que são uma parte integrante da excelência na prática
de enfermagem, visíveis. As histórias das enfermeiras mostram o modo
como as vitais ligações são estabelecidas no contexto dos dias tão ocupados
e das múltiplas exigências. Estas lições são intemporais e mostram como

' Caring é uma palavra que ao longo deste livro será traduzida, caso a caso, por
cuidar, cuidar humano ou envolvimento humano nos cuidados. (N.da T.)
Nota Introdutória 1 13

ca. alargar e preservar as nossas práticas de cuidar. As práticas de cuidar


se podem ser desenvolvidas através de uma melhor linguagem descritiva que
1to incorpore o tempo, as interacções humanas, os ganhos e as perdas na
isa compreensão ao longo do tempo. A linguagem organizacional e a
de preferência pelas descrições procedimentais do conhecimento podem ter
de como consequência que as práticas de cuidar possam ser sobrevalorizadas.
o Ninguém pode mandar alguém para que cuide ou se implique em práticas
de cuidar. Mas os gestores de cuidados de enfermagem e as enfermeiras
a práticas podem criar um ambiente e um clima que seja facilitador das
e práticas de cuidados.
As enfermeiras na prática desenvolvem tanto o conhecimento clínico
na como urna estrutura moral, pois aprendem com os seus pacientes e as suas
1ta famílias. A aprendizagem experiencial em situações de alto risco requer
l\.s coragem e ambientes que apoiem a aprendizagem. As histórias das
da enfermeiras revelam esta aprendizagem experiencial centrada no próprio
ão agente. A falta de reconhecimento do público relativamente à natureza do
ire conhe-cimento das enfermeiras pode levar a que a aprendizagem clínica
·es seja ne-gligenciada nos contextos localizados da prática.
;ta Este trabalho foi a base de um movimento que visou tornar público e
acessível a aprendizagem experiencial localizada ao reflectir sobre o co-
ão nhecimento clínico que é evidenciado nas narrativas da aprendizagem
·6; experiencial. Nas diferentes comunidades locais de prática desenvolvem-se
distintas competências e conhecimento clínico. Muitos hospitais e serviços
rn de cuidados domiciliários iniciaram projectos baseados nas narrativas para
a- documentarem este conhecimento experiencial específico. Estes projectos
je recolhem de forma sistemática e reflectem-se nas narrativas clínicas dos
te enfermeiros da prática. Recolhendo 50 a 100 narrativas de aprendizagem
o experiencial, cria-se um estudo pessoal sobre o conhecimento clínico que
as identifica os pontos fortes da prática, os desafios mais importantes ou os
ar silêncios nos contextos locais da prática. A recolha das narrativas e a
;a reflexão interpretativa sobre essas narrativas permite a descoberta de novas
lo competências e novo conhecimento, a identificação de obstáculos às boas
)S práticas e ainda a identificação de áreas de excelência. Por exemplo, as
lO histórias podem revelar cuidados notáveis proporcionados por familiares,
em todos os contextos de cuidados, incluindo no âmbito da enfermagem
peri-operatória; ou as narrativas podem revelar um profundo silêncio sobre
or os cuidados no fim da vida. Os principais objectivos destes projectos basea-
dos nas narrativas foram os de tornar a aprendizagem experiencial visível,
14 / De iniciado a perito

colectiva e cumulativa. Ao desenvolver-se uma maior quantidade de


narrativas de aprendizagem experiencial, a pessoa que fornece essas
narrativas aprende contando as suas histórias. Ensinar a reflexão permite
aos enfermeiros clínicos que identifiquem as preocupações que organizam
a história; que identifiquém as noções do que é conecto que estão presentes
na história; que identifiquem as competências relacionais, comunicacionais
e de colaboração; e que estabeleçam novas formas de desenvolvimento do
conhecimento clínico.
O contar histórias em público, entre os profissionais, torna as distinções
éticas sobre a prática clínica visíveis e disponíveis para avaliação. A forma
com que a história se apresenta - o que lhe dá forma e o modo como ela
acaba - é revelado no diálogo e nas percepções da pessoa que conta a
história. As narrativas revelam o contexto, o processo, e o conteúdo de um
raciocínio moral prático. Então, as histórias criam uma imaginação moral
mesmo se expõem falhas no conhecimento e paradoxos. As histórias dos
profissionais também demonstram que a compaixão tanto pode ser algo
revelador de sabedoria e que tem um baixo custo, como ser algo adverso e
que acomoda os cuidados de saúde.
Aristóteles salientou as distinções entre a prática e a produção ou o fazer
coisas. Este trabalho permite às enfermeiras distinguirem entre o
conhecimento disponível através da ciência, a tecnologia e a prática.
Distinções entre conhecimento técnico e procedimental e julgamento
clínico ou phronesis são evidentes nos exemplos das enfermeiras que
demonstram um raciocínio clínico inerente às interacções humanas. No
contexto de actuais modelos de engenharia e comerciais nos cuidados de
saúde, estas distinções são ainda mais relevantes. A prática é um todo
integrado que requer que o profissional desenvolva o carácter, o
conhecimento, e a competência para contribuir para o desenvolvimento da
própria prática. A prática é mais do qlie uma colecção de técnicas. O
domínio de um conjunto especializado de aspectos da prática não qualifica
necessariamente o profissional para ser reconhecido como um perito. A
ciência e a tecnologia promovem o desenvolvimento de uma prática como
a de enfermagem, mas sem uma tradição coerente que tenha socialmente
reconhecidos padrões de prática e noções de boas práticas, os profissionais
não saberão como avaliarem ou prosseguirem o desenvolvimento da
ciência e das tecnologias. Não é uma questão de escolha, quer do saber
científico quer do saber da prática, mas antes de se saber como se
relacionarem ambos.
Nota Introdutória 1 15

e Entrevistar e observar as enfermeiras, para esta investigação, foi algo


s que me transformou como enfermeira e como educadora. Esta investigação
e foi conduzida durante um período de grande falta de enfermeiras e uma
n extrema redução de suporte financeiro. As enfermeiras educadoras em
s enfermagem estavam empenhadas num movimento de educação baseado
s nas competências. Este movimento estava designado para perspectivar os
D resultados do ensino e aprendizagem em objectivos comportamentais
muito bem definidos. A assunção era que tanto a aprendizagem como a
s prática de enfermagem se poderiam reduzir a um conjunto de técnicas.
a Uma compreensão técnica da enfermagem era algo muito notório, tanto na
a educação em enfermagem, como na prática. A frase compreensão técnica
a refere-se a uma assunção de que toda a acção pode ser determinada através
11 de teorias bem explícitas e de directivas. O objectivo original subjacente a
.1 esta investigação era o de se dirigir ao afastamento entre a teoria e a prática .
s Em vez disso, esta investigação revelou muitas faltas de ligação entre
J práticas excelentes e as vantagens para o desenvolvimento da teoria a partir
da prática de enfermagem. A prática de enfermagem é bem mais complexa
do que aquilo que a maioria das teorias formais de enfermagem
r preconizam. As observações e as entrevistas narrativas das práticas de
) enfermagem demonstram níveis muito elevados de raciocínio. Por
exemplo: as enfermeiras identificam, precocemente, sinais de aviso, que
) salvam a vida dos doentes com alterações súbitas do seu estado clínico; as
enfermeiras ajustam de forma instantânea terapêuticas de acordo com as
) respostas do doente; as práticas de cuidar, incluindo as interacções que
promovem e acompanham a recuperação e a cura, ajudam os pacientes e as
) suas famflias a viver com as suas doenças. Torna-se aparente que as
) práticas de cuidar inerentes aos papéis de ensino/orientação e de ajuda das
l enfermeiras foram essenciais para o sucesso de intervenções médicas
) altamente técnicas porque elas tornaram essas intervenções seguras e
l proporcionaram grande confiança aos doentes.
As muitas narrativas das experiências das práticas de enfermagem reve-
'
) laram aspectos importantes do papel da enfermagem que não podiam ser
percebidos através de descrições formais de técnicas e procedimentos, ou
de abordagens centradas nas descrições de tarefas de um dado trabalho. As
l enfermeiras descrevem, muitas vezes, uma percepção muito clara dos
r sinais e sintomas do doente baseadas nas suas experiências anteriores. Este
tipo de certeza e de clareza é distinto de uma certeza inerente a um critério
de raciocínio, e de sinais que necessitam de uma posterior avaliação.
16 1 De iniciado a perito

Articulando o conhecimento imbuído nas práticas clinicas e de cuidar das


enfermeiras e dos outros profissionais de saúde proporciona um modo de
tirar este tipo de práticas bem competentes das fronteiras em que tem
estado. As práticas de cuidar precisam de ser apresentadas e recuperadas
(tornadas públicas, por forma a que possam ser legitimadas e valorizadas)
porque elas sustêm as relações de confiança que tornam a promoção da
saúde, a sua restauração e reabilitação possíveis. As práticas de cuidar não
podem sobreviver se elas continuarem a ser sub-valorizadas. Compreen-
der o cuidar como uma prática, em vez de ser apenas um puro sentimento
ou um conjunto de atitudes que estão para além da prática, revela o conhe-
cimento e a competência que o cuidar excelente requer. Estudar uma prática
socialmente organizada permite uma reflexão colectiva que pode cons-truir
o conhecimento e criar novas agendas para a investigação.
O Modelo Dreyfus de Aquisição de Competências (Dreyfus e Dreyfus,
1986) é baseado no estudo de uma situação prática, na situação, e
determinando o nível da prática evidenciado na situação. Desta forma,
ilucidam-se os pontos fortes em vez dos défices, e descrevem-se as
capacidades da prática em vez das características ou dos talentos. Em cada
etapa da aprendizagem experiencial, os profissionais podem intervir ao seu
melhor nível. Por exemplo, uma pessoa pode ser sempre o melhor iniciado
(tipicamente um estudante do primeiro ano). Uma pessoa pode ser a mais
responsável ou empenhada na sua aprendizagem experiencial, seja qual for
a etapa de aquisição de competências em que se encontre. O que alguém
não pode fazer é ficar fora da experiência, ou ser responsável por aquilo
que nunca alguma vez experienciou na prática. Os profissionais podem ser
responsáveis por uma prática segura, e por conhecerem a ciência e a
tecnologia actualizada. A memorização das características e os elementos
de uma ca-tegoria de diagnóstico a partir de um livro, contudo, não é o
mesmo que reconhecer quando e como essas características se manifestam
em doentes particulares, com um dado leque de variações. Este
discernimento clínico tem de ser aprendido na prática.
A aprendizagem experiencial em ambientes de alto risco requer o
desenvolvimento de um sentido de estrutura moral e de responsabilidade.
A aprendizagem experiencial é reforçada nas comunidades que apoiam a
aprendizagem, e em climas organizacionais adequados. Por exemplo, um
profissional que apenas viu um doente que está a recuperar de uma cirurgia
ao coração não pode esperar ser capaz de fazer distinções qualitativas ou
comparações com outros doentes que estão a recuperar de operações. Esta
Nota Introdutória 1 17

das habilidade para comparar globalmente casos clínicos é claramente algo


de mais subtil e mais exigente para que se reconheçam variações clínicas, do
em que pode ser percebido em livros ou em simples descrições de momentos
das críticos. Esta é uma afirmação óbvia, mas que é com frequência ignorada,
.as) numa visão técnica da prática, onde se imagina que os momentos críticos
da descritos podem tomar explícitos as miríades de trajectórias e de variações
1ão nos cuidados ao doente e na sua recuperação. Apesar de os profissionais
en- não poderem ser penalizados por existirem variações subtis nos dados
nto clínicos do doente que eles nunca viram ao longo da sua prática, eles
he- podem trabalhar em colaboração com os seus colegas para fazerem o
:ica melhor uso da sabedoria clínica obtida experiencialmente.
·mr Aprender a encontrar os outros em vários estados de vulnerabilidade e
de sofrimento requer abertura e uma aprendizagem experiencial ao longo
·us, do tempo. Manter a vigilância, nos vários momentos, sobre as várias pistas
, e e tomar efectiva a sua detecção e a ligação com outros sinais, pode revelar
na, e alargar as competências de empenhamento e eficácia clínica. Os casos
as paradigmáticos são realçados neste trabalho - experiências clínicas que
,da ensinam aos clínicos algo novo sobre a prática, por forma a que as suas
,eu práticas subsequentes sejam modificadas ou transformadas de algum modo.
ido Eu encorajo os estudantes de enfermagem e as enfermeiras da prática a
,ais escreverem ou a gravarem os seus casos paradigmáticos como forma de
for estudo individual relativo à sua aprendizagem clínica ao longo do tempo.
ém Esta é uma boa maneira de ligar a aprendizagem pessoal com a
1ilo aprendizagem profissional. Por exemplo, aprender a escutar activamente e
ser a responder empaticamente a alguém que está a enfrentar a morte não é
facilmente aprendido. Todos chegamos a uma situação tão pesada
tos emocionalmente com a ansiedade face à sua própria morte e com as
competências relacionadas com o envolvimento, aprendidas a partir da sua
am própria farru1ia e a partir da vida. Ao registar os casos paradigmáticos em
ste que tanto os bons exemplos de comunicação como as falhas ocorrem, as
enfermeiras podem aumentar a sua aprendizagem experiencial e o seu auto
. o desenvolvimento. As enfermeiras professoras podem usar as experiências
de. individuais narradas de modo similar ao que é apresentado neste livro para
na ajudarem os estudantes a reflectirem sobre as suas práticas e articularem o
um seu conhe-cimento clínico. Os estudantes podem escrever, na primeira
gia pessoa, narrativas de experiências sobre situações clínicas que lhes
ou ensinaram algo de novo sobre a prática, ou que lhes ficaram na memória
sta por alguma razão, tal como um erro que aconteceu, uma lição que se
18 J De iniciado a perito

aprendeu, ou um exemplo de uma prática bem sucedida. Os estudantes são


encorajados a escrever com clareza, com vivacidade e honestidade para
fornecerem ao leitor os detalhes suficientes para imaginarem a situação.
Porque o objectivo é a articulação de um ensino experiencial, os estudantes
podem escrever de um modo vivo sobre falhas na situação e fornecerem
comentários reflexivos que ajudem a reforçar as aprendizagens realizadas.
Ensinar uma reflexão corajosa na aprendizagem experiencial real e na
prática requer um ambien-te seguro e aberto. As histórias das enfermeiras
apresentadas neste livro fornecem um guia para este ensino.
A enfermagem é praticada em contextos reais, com dificuldades,
possibilidades e recursos reais. Os ambientes de trabalho podem criar cons-
trangimentos às habilidades de resposta eficaz que cada pessoa possui. A
enfermagem é socialmente construída e colectivamente concretizada.
Todas as narrativas neste livro provêm de um período de grande falta de
enfermeiras, em que as directivas organizacionais visando os
procedimentos cresceram em proporções alarmantes. O julgamento clínico
exigido para uma necessária boa prática de enfermagem era severamente
subestimado em cada um dos hospitais estudado. Estas condições são agora
reproduzidas, pois a enfermagem enfrenta de novo um problema de falta de
enfermeiras, e a indústria dos cuidados de saúde atravessa um período de
estratégias de contenção. As narrativas de enfermagem demonstram como
o contacto com doentes e famflias particulares permite às enfermeiras
responderem bem mesmo em situações que não são ideais. Os
constrangimentos na prática mostram e apelam a uma capacidade de
improvisação. É paradoxal que, numa situação de pressão económica e
pressão sobre as equipas, a necessidade de se apresentar uma visão clara
sobre a excelência na prática é maior, como se desejássemos preservar a
prática para as ge-rações actuais e futuras, tanto de doentes como de
enfermeiras. As histórias das enfermeiras apontam o caminho ao
mostrarem o que é a enfermagem enquanto prática relacional integrada.
Porque as práticas excelentes de cuidar, tanto como as de diagnóstico,
de monitorização, de intervenção terapêutica, são relacionais e contextual i-
zadas, a enfermeira clínica não pode ter a certeza se essa prática excelente
ocorreria, em outro contexto de cuidados, com outras interacções, ou
circunstâncias. O conhecimento específico localizado, tal como o
conhecimento geral, é evidente em cada uma das histórias das enfermeiras.
Cada uma delas tem tanto de universal como de particular. As enfermeiras
clínicas que são boas em identificar as situações clínicas e que
Nota Introdutória 1 19

:ão beneficiaram de uma grande aprendizagem clínica irão previsivelmente


ira agir melhor do que enfermeiras com menos conhecimento clínico em
fo. situações clínicas complexas e abertas. Todas as enfermeiras clínicas são
tes ajudadas ou prejudicadas pelo nível de colaboração, pelos recursos, e pelas
~m estruturas organizacionais e os processos disponíveis no momento.
as. Quando alguma enfermeira falha na compreensão dos fins e dos
na objectivos da prática, o bom julgamento clínico é impossível, pois que o
ras bom julgamento clínico depende de se ver o correcto em cada situação
clínica e na compreensão da actualização desta prática correcta
es, (Rubin,1996). Cingir-se às visões técnico-racionais da prática significa que
18- ) se consideram os julgamentos clínicos e morais como restritos a um cálculo
A racional dos custos e benefícios de um conjunto de acções baseadas em
ja. dados objectivos. Mas o discernimento clínico e as interacções que
de promovem a recuperação e a saúde não se podem reduzir a cálculos
os racionais acerca de sintomas subjec-tivos e de sinais objectivos. O bom
co julgamento clínico requer que as enfermeiras tenham uma visão centrada
1te nos fins inerentes ao seu relacionamento com cada paciente. Isto requer o
)ra encontro com o doente enquanto pessoa, em primeiro lugar, e em segundo
de lugar, enquanto uma pessoa específica com as suas potencialidades e
de vulnerabilidades. As narrativas clínicas das enfermeiras, que se apresentam
TIO neste livro, continuam a fornecer uma visão moral poderosa de uma tal
ras excelência na prática de enfermagem.
Os
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PIIBF'ÁCIO

Este livro é baseado num diálogo com enfermeiras e com a


enfermagem. Trata-se de uma investigação descritiva que identifica cinco
níveis de competência na prática clínica de enfermagem. Estes níveis:
iniciado, iniciado avançado, competente, proficiente e perito - são
descritos através das palavras das enfermeiras que foram entrevistadas e
observadas tanto individualmente como em pequenos grupos. Apenas as
situações de cuidados a doentes em que as enfermeiras fizeram a diferença
pela positiva, nos resultados junto do doente, foram incluídas. Estas
situações oferecem exemplos vivos de excelência na prática actual de
enfermagem. Eles não são ideais abstractos, contudo eles emergem das
imperfeições e das contingências com as quais as enfermeiras trabalham
diariamente.

Uma nota para os cépticos


Alguns dos que lerem os exemplos irão ficar cépticos pensando se na
realidade esta enfermagem é possível. O seu cepticismo não se justifica,
pois estes exemplos são retirados de situações clínicas reais em que as
enfermeiras aprenderam alguma coisa sobre a sua prática ou deram uma
significativa contribuição para o bem estar do doente. Mas se o cepticismo
do leitor se prende com uma desilusão generalizada com a enfermagem
hospitalar e com a crença de que as enfermeiras são impotentes para
proporcionarem cuidados compassivos e que salvam vidas nos hospitais -
então este livro oferece uma franca confrontação com os cépticos também
um raio de esperança para os desiludidos.

As origens da consciência preceptiva da excelência


Este livro põe em causa algumas das crenças e suposições mais
22 1 De iniciado a perito

firmemente preservadas pelas enfermeiras. O livro afirma que a


consciência preceptiva é o elemento central de um bom raciocínio de
enfermagem, e que isso começa por leves intuições e avaliações globais
que escapam, no início, à análise crítica; na maior parte das vezes, a clareza
conceptual segue-o em vez de o preceder. As enfermeiras experientes
descrevem muitas vezes as suas capacidades preceptivas com expressões
como "pressentir", sentimento de mau estar" ou "a impressão que as coisas
não estão a correr bem". Este tipo de discurso põe pouco à vontade
educadores e clínicos, porque a avaliação deve passar desses embriões
preceptivos para provas conclusivas. As enfermeiras peritas sabem que, em
todos os casos, uma avaliação definitiva do estado do doente não pode ser
satisfeita por pressentimentos vagos, mas aprenderam com a experiência a
deixar as suas percepções guiá-las à evidência confirmativa.
Procurando uma atitude científica, o clínico, a enfermeira, o médico ou
o conselheiro podem negligenciar a importância das competências
perceptivas. Se as enfermeiras fossem computadores reincarnados ou
dispositivos mecânicos de vigilância, elas esperariam sinais claros e
explícitos antes de se identificar o primeiro sinal de um problema.
Felizmente, os seres humanos peritos que decidem podem captar a glo-
balidade de uma situação, baseando-se sobre indefinidas e subtis mu-
danças no estado do doente e podem em conjunto com a equipa de saúde
procurar confirmar a decisão. Os peritos não páram nas vagas intuições,
mas também não ignoram esses sinais, que poderão conduzir à
identificação precoce de um problema e à sua confirmação.

A importância da decisão arbitrária


Examinando a história do ensino dos cuidados de enfermagem nos Es-
tados-Unidos, apercebo-me de que o modelo de aquisição de
conhecimentos descritos aqui poderá ser mal interpretado, como sendo
defensor de uma aprendizagem informal por tentativa e erro.
É por isso importante notar que o modelo Dreyfus, de aquisição de co-
nhecimentos, foi desenvolvido no início de uma investigação sobre as
competências de pilotos colocados em situações de urgência. Nesse
contexto, ninguém se importou que o modelo fosse mal interpretado e
sugeria que o piloto deveria ver " como é que se comporta o avião por
tentativa e erro"; nesse caso, o piloto principiante não sobreviveria ao
treino de base. É a mesma coisa para os cuidados de enfermagem. Pelos
Prefácio 1 23

riscos que comporta, tanto para a enfermeira como para o doente, os


de cuidados de enfermagem competentes necessitam de programas de
Jais educação bem planificados. A aquisição de competências baseadas sobre a
·eza experiência é mais segura e mais rápida se assentar sobre boas bases
1tes pedagógicas.
ões O objectivo deste livro é apresentar os limites das regras formais e
isas chamar a atenção sobre decisões arbitrárias em situações de clínica real.
ade Isso não põe o perito numa posição especial e privilegiada em relação aos
ões princípios da fisiologia, dos cuidados de enfermagem e da medicina. Este
em livro não defende um ponto de vista anárquico e caótico que pretendesse
ser que houvessem regras que permitissem, por exemplo, ignorar as leis da
1a a assepsia, quando algo deve ser feito em caso de urgência ao estar em causa
a vida do paciente. Ter em conta as circunstâncias contingentes de uma
'ou situação não quererá dizer que é preciso ignorar os princípios gerais de toda
:ias uma situação. O meu ponto de vista não é o de aconselhar que se
ou abandonem as regras. Afirmo, no entanto, que uma compreensão mais
, e competente da situação, mais aprofundada, leva a um comportamento
racional, sem ter que seguir regras rígidas.
•lo- Uma vez descrita a situação, podemos interpretar as acções
'nu-
empreendidas como um comportamento racional, razoável que responde às
.íde exigências de uma dada situação, mais do que a regras e princípios rígidos.
íes, Poderíamos dar cada vez mais regras descritivas que permitissem múltiplas
. à excepções, mas existiriam sempre excepções onde o perito funcionaria com
essa leveza. Este livro diz respeito a decisões de risco, específicas de uma
situação, que subvalorizamos habitualmente, mas às quais as enfermeiras
fazem frente na sua prática quotidiana. Menzies (1960) fala do facto do
profissional se esconder atrás das regras e dos hábitos, para se defender
Es- contra a ansiedade, o que pode ser considerado como uma estratégia. Mas,
de como tal é uma estratégia irrealista que tem como consequência o desgaste
ido suplementar que advém do não reconhecimento e da não legitimação das
competências de enfermagem.
co-
as
sse Reflectindo as realidades da prática
) e O leitor teria certamente preferido que só escolhesse exemplos que
por reflectissem comportamentos ideais de colaboração e relações ideais com
ao os médicos. Na realidade, os administradores e os médicos indicaram-me
los que não gostariam de exemplos que mostrassem a relação enfermeira-

-');
,y'
24 1 De iniciado a perito

médico sob uma má perspectiva. Eu teria, também, gostado de ter


encontrado ao longo deste estudo, só relações de colaboração perfeita, mas
isso teria sido ficção e não uma investigação descritiva, um modelo ideal
em vez de um modelo testado no terreno. Se há inexactidões, é sem dúvida
num outro sentido: as interacções médico-enfermeira problemáticas estão
sub-representadas, tendo em conta a proporção do tempo passado nas
entrevistas a descrever tais representações.
No mundo real, enfermeiras e médicos têm bons e maus dias e alguns são
na realidade incompetentes. Quando um médico não está disponível de
imediato, em caso de crise, é muitas vezes a enfermeira que faz a ligação,
bem mais vezes do que é formalmente reconhecido. Podemos dizer que não
se trata de cuidados de enfermagem, mas fazemo-lo porque ignoramos a rea-
lidade. As execuções competentes foram, assim, consideradas como
excelentes, mesmo nas piores condições (por exemplo na falta de
colaboração ou de reconhecimento formal de certas funções), pois a
enfermeira conseguiu dar a resposta que o doente necessitava. Se nos
reportássemos ao ideal e apresentássemos o que gostaríamos de ser,
passaríamos ao lado daquilo que é significativo para a nossa prática efectiva.
Não saber quem somos, e quem somos agora, porá seriamente em perigo o
que nós queremos vir a ser.

Caleidoscópio de intimidades e de distâncias


O leitor teria razão de se interrogar sobre a representatividade deste
trabalho. O objectivo não era descrever uma hora ou um dia de trabalho
típico, mas de preferência pôr à luz do dia os pontos que se destacam do co-
nhecimento clínico. Pedimos aos participantes que apresentassem situações
clínicas que lhes surgissem em mente. As enfermeiras têm diariamente
contactos frequentes com os doentes; a maior parte do tempo, ignoram o
impacto da sua intervenção sobre a recuperação do doente. Muitos desses
contactos e intervenções são rotineiros e caiem no esquecimento. Por ou-
tras palavras, a relação enfermeira-doente não está conforme um modelo
profissional e uniforme, mas é antes um caleidoscópio de intimidade e de
distanciamento durante momentos da vida dramáticos, humanos e
lancinantes. Os momentos comuns da vida não são contados neste estudo,
porque procurávamos precisamente situações clínicas excepcionais. Ainda
que tivéssemos pedido descrições de dias tanto típicos como excepcionais,
essa distorção subsiste. Como procurávamos descrever execuções bem
Prefácio 1 25

ter competentes, não identificámos exemplos negativos ou com deficiências


nas (ver Fenton, p. 262-274 para um exemplo de identificação de deficiências
leal nas intervenções de enfermagem).
'ida Não é o fim, é só um princípio
;tão Sei que pessoas apressadas em construir sistemas quererão desafiar as
nas trinta e uma competências descritas neste livro ou propor outras, como se
pudesse existir uma lista finita e definitiva das competências. Acabar em
são trinta e uma pode parecer um pouco bizarro, mas o objectivo desta obra é
de o de encorajar as enfermeiras a recolherem os seus próprios exemplos, a
;ão, prosseguirem as suas linhas de investigação e a trabalharem sobre as
nãe questões levantadas pelo seu próprio conhecimento prático. Este trabalho
:ea- apresenta uma nova maneira de ver a prática da enfermagem, para que não
mo nos limitemos à descrição dessa prática como um processo linear e
de simplista de resolução de problemas. Tal constrangimento e uniformidade
s a limitam a nossa compreensão da complexidade e da significação da nossa
nos prática. Como foi dito de uma maneira muito realista por uma enfermeira
ser, aquando de uma discussão de grupo: "sabem, hoje agi rapidamente e salvei
lVa. um bebé. Isto não é insignificante!" parecia que, até aí, ela tinha negligen-
:o o ciado a importância dos seus actos nos seus relatos analíticos.
Agradeço às colegas que enriqueceram este trabalho dando descrições
de aplicações práticas (ver epílogo).

Este trabalho tornou-se possível graças a uma subvenção federal


iste destinada à desenvolver métodos de avaliação em sete escolas de
lho enfermagem e cinco hospitais da área da Baía de São Francisco. Trata-se
CO-' do projecto AMICAE (Procura de Métodos por um Consensos e uma
ões Avaliação Intra - profissional). Este projecto foi apoiado por um subsídio
,nte do Departamento da Saúde e dos Serviços Humanos, Serviços da Saúde
no Pública, Divisão de Enfermagem, subsídio n.º 7 Dl0 NU 29104-01.
ses
ou- Patrícia Benner
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lIS,
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ÁGRADECI1\1ENT()S

Este livro é baseado num trabalho comunitário, pelo que o esforço


para agradecer todas as contribuições será sempre insuficiente. Eu estou em
dívida a todos os que me deram acesso e facilitaram o contacto com mais
de 1200 enfermeiras através de questionários e entrevistas. O estudo não
seria possível sem as décadas de tradição de cooperação entre os serviços
de enfermagem e os sectores de educação em enfermagem, desenvolvidos
pelo Comité de cuidados de enfermagem de São Francisco e o de educação
em enfermagem, sob a direcção da Dr.ª Helen Naham. Eu agradeço a todos
os directores de enfermagem dos hospitais que participaram e aos
directores das escolas de enfermagem que tomaram esta investigação
possível. A equipa do Projecto AMICAE contribuiu, também, de um modo
significativo para esta investigação. Ruth Colavecchio, Deborah Gordon e
Judith Wrubel colaboraram na realização e na análise das entrevistas.
Deborah Gordon realizou uma vasta observação e fez entrevistas em duas
unidades cuidados cirúrgicos gerais. Ruth Colavecchio trabalhou com um
dos hospitais participantes ao desenvolver um esquema progressivo de
promoção dos cuidados baseado no modelo de aquisição de competências
de Dreyfus aplicado à enfermagem. A dedicação e interesse de Kathy Field
no esforço para se descreverem as competências em enfermagem de um
modo novo tomou possível a ligação entre as transcrições e as gravações
das entrevistas e as notas de campo. Ela também dactilografou o
manuscrito e providenciou assistência no trabalho de edição. Denise
Henjum transcreveu muitas horas de entrevistas.
Uma nota especial de agradecimento é devida aos professores
Hubert L. e Stuart E. Dreyfus que providenciaram um apoio de peritos na
aplicação do seu modelo à prática clínica de enfermagem.
Eu também quero expressar o meu apreço a todas as enfermeiras
que participaram neste estudo. Eu espero que este livro sirva de tributo
tanto às enfermeiras iniciadas como às mais experientes que se colocaram
28 1 De iniciado a perito

tão disponíveis para descreverem e nos permitiram que observássemos as


suas práticas. São principalmente as suas histórias que são contadas nas
páginas seguintes. As suas descrições de situações de cuidados a doentes
em que elas fizeram a diferença, representam muito bem a perícia e o
empenhamento das enfermeiras. Elas apresentam a especificidade da
enfermagem enquanto uma disciplina e uma arte, de uma forma que
nenhuma outra estratégia poderia fazer. Os temas relacionados com a
defesa do doente, a perícia, e o envolvimento que cria a vigilância e que
envolvem o cuidar são repetidos ao longo destas histórias.
Eu estou grata a Edith (Path) Lewis pela inexcedível ajuda na
criação deste livro. O seu conhecimento profundo do campo da
enfermagem permitiu-lhe ter a visão do grande significado do trabalho e
guiá-lo na direcção correcta na perspectiva da sua edição.
Estou em dívida com as pessoas da Addison-Wesley,
particularmente Nancy Evans, Editora Sénior, e Jan deProsse, Coordenador
de Produção, que deram orientações especializadas na transformação de
uma monografia em livro. As suas rápidas respostas, a sua dedicação à
excelência, e o seu interesse no conteúdo contribuíram enormemente para
este trabalho.
Finalmente, eu quero agradecer às seguintes pessoas pela revisão
do manuscrito antes da publicação e o contributo com as suas preciosas
sugestões: Kathleen Fischer, dos Hospitais Universitários de Michigan;
Marian Langer e Mary Hutchings do Hospital de St. John em St. Louis;
Sydney Krampitz da Universidade do Kansas; Shirley Martin, da
Universidade do Missouri; Rosalyn Jazwiec e Teresa Tapella do Memorial
Hospital de Northwestern.
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A DESCOBERTA DO CONHECIMENTO
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' Este capítulo é adaptado, com permissão, a partir de um artigo da autora


("Descoberta do conhecimento incluído na prática de enfermagem") que foi
publicado em: lmage: the Journal of Nursing scholarship, vol .xv, Nº2,
Primavera 1983.
A prática da enfermagem foi estudada, de início, de um ponto de vista
sociológico. Assim, sabemos muita coisa sobre o papel das relações, a
socialização e a aculturação na prática de enfermagem. Todavia, sabemos
pouco sobre os conhecimentos implícitos na verdadeira prática da
enfermagem, isto é, aquele conhecimento acumulado ao longo do tempo da
prática de uma disciplina aplicada. Tal conhecimento não foi nem estudado,
nem explicitado porque as diferenças entre conhecimento prático e teórico
têm sido incompreendidas (Carper, 1978; Collins & Fielder, 1981). O que
falta são as observações sistemáticas daquilo que aprendem as enfermeiras
clínicas na sua prática quotidiana.
As enfermeiras nunca puseram, seriamente, por escrito os resultados
das aprendizagens que foram realizando ao longo da sua própria prática.
Apesar de numerosos estudos sobre casos precisos terem sido publicados,
existem poucas comparações clínicas que impliquem o estudo de vários
casos ou observações clínicas relativas às populações de doentes. O facto
de não termos relatado o que fizemos e observado sobre o terreno, privou
a teoria em ciências da enfermagem daquilo que é a especificidade e a
riqueza do conhecimento contido na prática clínica. Práticas bem relatadas
e observações claramente expostas são essenciais para o desenvolvimento
da teoria.
Este livro tem como objectivo examinar as diferenças que existem entre
o conhecimento prático e teórico; fornecer exemplos de competências
identificadas a partir do estudo da prática da enfermagem; descrever
aspectos do conhecimento prático e delinear estratégias destinadas a
preservar e desenvolver esse mesmo conhecimento. Em primeiro lugar,
contudo, va-mos fazer uma abordagem sobre a natureza desse
conhecimento e da maneira como é adquirido.
32 1 De iniciado a perito

As diferenças entre conhecimento prático e teórico

A teoria é um excelente instrumento para explicar e predizer. Dá forma


às perguntas e permite o exame sistemático de uma sequência de
acontecimentos. Os teóricos tentam identificar as condições necessárias e
suficientes para que apareçam as situações reais. Estabelecendo ligações
entre causa e efeito entre os acontecimentos, os cientistas chegam ao
"saber"'. Os filósofos da ciência tais como Kuhn (1970) e Polanyi (1958)
observam, contudo, que "saber" e "saber fazer (habilidade)"' constituem
dois tipos <li-ferentes de conhecimentos: temos numerosas competências
(habilidades) adquiridas sem "saber"; é por vezes impossível explicar de
maneira teórica a nossa habilidade para actividades tais como a natação ou
andar de bicicleta. Noutros termos, certos conhecimentos práticos põem em
cheque formulações científicas do tipo "saber". É igualmente possível
desenvolver, para além de tais formulações científicas, um "saber fazer"
que possa contrabalançar, desafiar e alargar a teoria em vigor. Assim, o
desenvolvimento do conhecimento numa disciplina aplicada consiste em
desenvolver o co-nhecimento prático (saber fazer), graças a estudos
científicos e investigações fundados sobre a teoria e pelo registo do "saber
fazer" existente, desenvolvido ao longo da experiência clínica vivida,
aquando da prática dessa disciplina.

O conhecimento incluído na perícia

A perícia desenvolve-se quando o clínico testa e refina propostas,


hipóteses e as expectativas fundadas sobre os princípios, em situações da
prática real. Podemos falar de experiência neste sentido (Heidegger, 1962;
Gadamer, 1970) quando noções e expectativas preconcebidas são postas
em causa, corrigidas ou não confirmadas pela si tu ação actual. A
experiência é por isso necessária para a perícia. Por exemplo, a solução
encontrada por uma enfermeira proficiente ou perita para resolver um

' Saber é a palavra que usaremos para traduzir a expressão no original know that,
que significa saber sobre alguma coisa. Nota da tradutora.(N.daT.)
' A expressão saber fazer será usada para traduzir a expressão usada pela autora
know how. (N da T).
A Descoberta do conhecimento incluído na prática da Enfermagem 1 33

problema será diferente de uma enfermeira principiante ou competente, tal


como é descrito no capítulo2. Esta diferença pode estar atribuída ao saber
:ma fazer adquirido através da experiência.
de A enfermeira perita apercebe-se da situação como um todo, utiliza
IS e como paradigmas de base situações concretas que ela já viveu e vai
ões directamente ao centro do problema sem ter em conta um grande número
ao de considerações inúteis ( Dreyfus, H., 1979; Dreyfus, S., 1981). Ao
58) contrário, numa situação nova, a enfermeira competente ou proficiente
1em deve apoiar-se num raciocínio consciente, deliberado para resolver de
;ias forma analítica um problema de natureza elementar.
· de A perícia em matéria de tomadas de decisões humanas complexas,
1 ou como é o caso nos cuidados de enfermagem, torna possível a interpretação
em das situações clínicas. Além disso, os conhecimentos incluídos na perícia
ível clínica são a chave do progresso da prática da enfermagem e do
:er" desenvolvimento da ciência da enfermagem.
1, o -'('.
,;,, Nem todo o conhecimento inerente à perícia pode ser apresentado em
em proposições teóricas, ou com estratégias analíticas que dependem da
dos identificação de todos os elementos que estão presentes na decisão (Benner
,ber & Benner, 1979). Todavia, é possível descrever as intenções, as previsões,
ida, os significados e os resultados que caracterizam a prática perita. Certos
aspectos do saber fazer clínico podem ser apreendidos devido a descrições
interpretativas da prática real.

Desenvolvimento do conhecimento prático


tas,
. da O conhecimento prático adquire-se com o tempo, e as enfermeiras nem
•62; sempre se dão conta dos seus progressos. É necessário construir estratégias
;tas para que haja conhecimento desse saber fazer, de maneira a poder
A desenvolvido e melhorado. Identificamos seis domínios do conhecimento
ção prático: 1) a hierarquização das diferenças qualitativas; 2) os significados
um comuns; 3) as suposições, as expectativas e os comportamentos tipos; 4) os
casos padrão e os conhecimentos pessoais; 5) as máximas; 6) as práticas
não planeadas. Cada domínio pode ser estudado utilizando estratégias
etnográficas e interpretativas, destinadas num primeiro tempo a identificar
e desenvolver o conhecimento prático.
tora As enfermeiras peritas aprendem, por exemplo, a reconhecer mudanças
fisiológicas subtis. Podem reconhecer sinais de choque antes mesmo do
34 1 De iniciado a perito

aparecimento de alterações nos sinais vitais e podem deduzir a eventual


necessidade de iniciar uma reanimação, antes que o colapso vascular ou
que alterações dramáticas nos sinais vitais se produzam. Esta obra cita
numerosos exemplos de reconhecimentos precoces e medidas rápidas
tomadas pelas enfermeiras peritas (por exemplo, para uma embolia
pulmonar ou um choqúe séptico). Essas capacidades muito minuciosas são
o resultado de muitas horas de cuidados e de observação directa do doente.
Muitas vezes, a percepção de uma situação depende do contexto. Isso
quer dizer que mudanças subtis só têm sentido à luz do historial do doente
e da sua situação presente. Polanyi (1958) qualifica esta capacidade de
percepção e de conhecimento, da enfermeira perita, de verdadeiro "saber"
ou connaisseurship'. A documentação descritiva e interpretativa desse
saber põe em evidência o conhecimento clínico. É necessário que as
enfermeiras acumulem exemplos das suas capacidades em identificar e que
elas descrevam o contexto, os significados, as características e os
resultados do seu saber. Isso permitir-lhes-á afinar as suas capacidades e
demonstrar ou ilustrar, as diferenças qualitativas que forem capazes de
identificar. Uma grande parte deste processo faz-se naturalmente, quando
as enfermeiras comparam os pontos de vista em matéria de diferenças
qualitativas, como a tonicidade numa criança prematura ou a "sensação" de
um útero contraído em relação àquele que está contraído por causa da
presença de coágulos.
A hierarquização dessas diferenças qualitativas só pode ser elaborada e
refinada quando as enfermeiras comparam os seus pontos de vista durante
os cuidados aos doentes em situações reais. Por exemplo, as enfermeiras de
um serviço de neonatologia comparam a apreciação que têm da tonicidade
muscular de maneira a poderem chegar a apreciações consistentes de
tonicidade. As enfermeiras que avaliam o processo de cura das feridas
comparam a sua linguagem descritiva à medida que os casos de doenças se
apresentam. Muitas vezes, termos descritivos particulares irão ser
empregues para descrever essas diferenças qualitativas. Todavia, a menos
que não sejam tomadas medidas para comparar sistematicamente a
significação desses termos em situação real, a comunicação não passará.
Este aspecto dos conhecimentos clínicos (o verdadeiro saber) é muitas
vezes negligenciado na procura da aprendizagem das tecnologias de ponta.

' Connaisseurship, palavra usada no original que podemos traduzir por sabedoria.
(N da T)
A Descoberta do conhecimento incluído na prática da Enfermagem 1 35

uai Uma quantidade incrível de tempo é consagrado a aprender as últimas


ou tecnologias, assim como os seus procedimentos, mas nada é feito para que
:ita se apreenda, em profundidade, o mecanismo de aquisição das competências
fas em matéria de julgamento clínico.
,lia
;ão
1te. Os significados comuns
,so
nte Como é ilustrado nas competências apresentadas nos capítulos 4 e 5, as
de enfermeiras que trabalham com situações comuns' em matéria de saúde e
de doença, de nascimento e de morte desenvolvem uma linguagem comum
,se relativa às noções de ajuda, de recuperação e dos recursos necessários'
as para fazer frente a tais situações humanas. Por exemplo, este estudo
1ue mostrará que as enfermeiras tentam, muitas vezes de maneira típica,
os desenvolver um sentido do "possível" para os seus doentes, mesmo nas
l e circunstâncias mais críticas e mesmo quando este sentido do possível
de talvez só signifique uma única tarde sem dores, até mesmo a aceitação da
do dor ou até a morte.
;as As enfermeiras adquirem com o contacto com os familiares e os doentes
de todo um leque de respostas, de significados e de comportamentos
da destinados a fazer frente às situações mais extremas. Estes significados
comuns evoluem no tempo e são partilhados pelas enfermeiras; eles
ae formam uma tradição. Compreendê-los sem os tornar incompreensíveis
1te pela análise fora do contexto, pode fornecer a base de um estudo
de sistemático e de um desenvolvimento mais avançado da prática e da teoria .
.de Significados comuns aparecem quando diversas situações clínicas são
de relatadas e quando as intenções, o contexto e o sentido não foram alterados
las pela narração.
se
;er
os Assunções, expectativas e comportamentos tipo
a
Os relatos de situações reais apresentados sob forma de narrativas, onde
:as
ta.
' Common no original, podemos também traduzir por idênticas. (N. da T.)
ria. ' Coping é uma palavra de difícil tradução que iremos caso a caso colocar em
português, de acordo com o mais adequado sentido em cada frase. (N da T)
36 1 De iniciado a perito

0 contexto está intacto, estão carregados de suposições, de expectativas e


de "comportamentos tipos"' que podem não fazer parte de conhecimentos
formalmente reconhecidos. Procurar nas narrativas as suposições e as
expectativas subjacentes às apreciações ou às intervenções, permite colocar
novas perguntas, para refinar, desenvolver e avaliar mais precisamente o
conhecimento. Por exemplo, depois de ter observado a evolução clínica de
numerosos doentes tendo patologias parecidas ou não, as enfermeiras
podem aprender a prever um certo seguimento dos acontecimentos, sem
nunca terem realmente formulados essas suposições. Estas previsões só
podem apresentar-se em situações reais, e não num quadro de abstracções
ou de generalizações.
As enfermeiras desenvolvem igualmente "comportamentos tipos" para
agir em relação aos doentes. Os psicólogos da Gestalt definem esses
comportamentos tipos como sendo uma predisposição a agir de uma certa
maneira em circunstancias bem precisas. Esses comportamentos
acumulam-se ao longo do tempo e podem mesmo revelar-se menos fáceis
de explicar, do que os acontecimentos previsíveis ou as suposições, muitas
vezes visíveis para o observador exterior. Estes comportamentos tipo
constituem urna orientação para a situação e isto altera o modo corno ela
é percebida e descrita. Estes comportamentos podem, por vezes, passar
despercebidos, pois nunca podem ser completamente explícitos, porque o
facto de os tornar explícitos mudaria a sua função.
Estudos multiculturais puseram em evidência comportamentos tipos
diferentes frente a urna situação idêntica. São ainda mais visíveis quando as
acções não têm um mesmo sentido para pessoas de culturas diferentes.
Experiências multiculturais deliberadas podem ser provocadas pedindo-se
às enfermeiras para comparar incidentes críticos provenientes da sua
prática e as maneiras como elas abordam uma dada situação clínica.
Abordagens divergentes e falta de comunicação sobre uma mesma si-
tuação clínica podem fazer surgir comportamentos diferentes. Por exem-
plo, vimos aparecer dois comportamentos diferentes nas descrições dadas
por duas enfermeiras aquando da tomada a cargo de um doente até a

' Set é também uma palavra que se torna difícil de traduzir. Neste contexto
colocamos a opção por comportamentos tipos, seguindo a própria explicação dada pela
autora, isto é: uma predisposição a agir de certos modos de acordo com situações
particulares. (N. da T.)
A Descoberta do conhecimento incluído na prática da Enfermagem 1 37

as e chegada do médico. A enfermeira que trabalha num quadro onde a


íltos desconfiança era tal que os médicos se recusavam a confirmar por escrito
: as as suas prescrições verbais, não tinha o mesmo comportamento, nem o
)car . mesmo sentido das possibilidades frente a uma urgência, que uma colega
te o que evoluía num ambiente onde a confiança e a comunicação médico -
1 de enfermeira era grande. A descoberta das suposições, das expectativas e dos
iras comportamentos tipo pode pôr à luz do dia um domínio não explorado do
,em conhecimento prático, podendo depois ser sistematicamente estudado e
; só desenvolvidos, ou refutado.
:ões

Jara Os casos paradigmáticos e o conhecimento pessoal


,ses
erta Heidegger (1962) e Gadamer (1975) definem a experiência como o
1tos melhoramento das ideias preconcebidas que não são confirmadas pela si-
~eis tuação actual. A condição prévia para a percepção de uma situação é um
itas conhecimento prévio ou a existência de um comportamento tipo. Na
tipo prática, este conhecimento anterior, ou pre-conhecimento, é muitas vezes
ela formado a partir da teoria, pelos princípios e pelas experiências anteriores.
isar . Só quando o acontecimento refina, elabora ou invalida este
1e o preconhecimento é que ele merece ser chamado de experiência. É ao longo
do tempo que uma enfermeira adquire a "experiência", e que o
pos conhecimento clínico - mistura entre os conhecimentos práticos simples e
) as os conhecimentos teóricos brutos - se desenvolve. Uma experiência
tes. particular pode ter força suficiente para servir de modelo ou paradigma
J-Se (Benner & Wrubel, 1982). Um grande número de exemplos apresentados
sua nos capítulos seguintes são para-digmas para as enfermeiras que os
expuseram.
Sl- As enfermeiras proficientes e peritas acumulam, assim, grupos de casos
!ffi- paradigmáticos em função dos diferentes tipos de doentes (cf. capítulo 2).
das Sendo assim, abordam o caso de um doente utilizando situações passadas
é a concretas, da mesma maneira que um investigador utiliza um paradigma.
As situações passadas destacam-se porque mudaram a percepção da
enfermeira. As experiências concretas passadas guiam assim as percepções
e os actos do perito e permitem-lhe apreender rapidamente a situação. Este
~xto
tipo de conhecimento clínico é mais compreensivo do que qualquer outra
pela
;:ões descrição teórica, visto que a enfermeira proficiente compara situações
passadas com situações presentes, e isso na sua globalidade.
38 1 De iniciado a perito

Alguns casos paradigmáticos são suficientemente simples e marcantes


para que possam ser utilizados como estudos de casos para os estudantes
(Benner & Wrubel, 1982). As formadoras clínicas peritas apresentam casos
paradigmáticos que transmitem mais que os princípios abstractos ou
normas orientadoras'. Mas para que os estudantes possam aprender a partir
de um caso paradigmático de outra pessoa, devem activamente repetir ou
imaginar a situação. As simulações podem ser mais eficazes porque
obrigam o estudante a agir e a tomar decisões. E ainda lhes dão ocasião de
conhecerem e lidarem com casos paradigmáticos, estando a ser guiados.
Todavia, muitos casos paradigmáticos são muito complexos para serem
simulados ou utilizados como exemplos, porque é a interacção com os co-
nhecimentos anteriores do estudante que cria a "experiência" - isto é, um
afinar próprio ou uma melhoria de ideias preconcebidas, assim como uma
compreensão prévia. Polanyi (1958) chama a isso uma transição com o
conhecimento pessoal. Cada pessoa traz a sua própria história, o seu cami-
nho intelectual e a sua vontade de aprender quando está perante uma situa-
ção clínica particular. As transições criadas por este conhecimento pessoal
e as acções clínicas determinam, então, as acções e as decisões que se
tomam. É por isso que uma disciplina clínica necessita de pessoas peritas
para modelar essas transições dinâmicas entre o conhecimento pessoal e a
situação clínica.
As enfermeiras experientes podem lembrar-se rapidamente das situa-
ções clínicas que modificaram as suas abordagens aos cuidados a
proporcionar aos doentes. É pelo registo sistemático e pelo estudo desses
casos para-digmáticos que é possível desenvolver o conhecimento que lhes
está ine-rente.

As máximas

Os indivíduos peritos transmitem instruções codificadas que só têm


sentido se a pessoa já tem uma boa compreensão da situação. Polanyi
(1958) qualifica essas instruções de "máximas" (Dreyfus,1982; Benner,
1982; Benner & Wrubel, 1982). Por exemplo, as enfermeiras dos serviços
de cuidados intensivos indicam de maneira codificada as mudanças subtis

' Guidelines no original. (N da T)


A Descoberta do conhecimento incluído na prática da Enfermagem 1 39

tes que afectam o ritmo respiratório das crianças prematuras. Essas


tes informações só terão sentido para aquele que tem uma vasta experiência na
;os observação do ritmo respiratório das crianças prematuras. Polanyi (1958)
ou dáoexemplo das máximas no desporto. Dizemos ao jogador de golfe ou ao
tir iêrtista experiente para "não largar os olhos da bola" enquanto que esse
ou discurso seria insensato para um principiante.
ue ?,,As enfermeiras peritas podem aprender muito a partir das máximas que
de v~ô transmitindo umas às outras. Todavia, o observador exterior ou uma
6nfermeira menos experiente pode igualmente daí retirar informações sobre
6sdomínios do conhecimento clínico - particularmente, o conhecimento
:o- preceptivo que está contido nas máximas. Recolhendo as máximas usadas,
1m ~ó4emos encontrar um ponto de partida que permita identificar uma área
na de decisão clínica.
.O
íll-
ia- .t\spráticas não planeadas
,ai
se >\_O campo das enfermeiras nos cuidados realizados nos hospitais, e
:as t)qutros contextos de cuidados, alargou-se consideravelmente pelas práticas
: a nijo planeadas e pelas intervenções delegadas pelos médicos ou outros
J?[ôfissionais de saúde. Esta delegação não planeada pode ser qualificada de
ta- 4elegação por defeito. Por exemplo, um novo tratamento ou um novo
a Biotocolo para um diagnóstico é introduzido e, por causa do elemento de
.es risco que isso acarreta, o tratamento ou o protocolo para o diagnóstico deve
es s~radministrado e monitorizado pelos médicos. Mas muitas vezes é sobre
a·.enfermeira que a responsabilidade recai, porque é ela que se encontra à
êabeceira do doente.
Essas práticas, que vão acontecendo, têm múltiplas consequências para
aprática de enfermagem. Por exemplo, as enfermeiras tornaram-se peritas
q~ando foi necessário adaptar a posologia ou desabituar os doentes dos
:m ipedicamentos vasopressores e antiarrítmicos, mesmos se esses
1yi éónhecimentos não foram sistematicamente descritos ou estudados. As
pet"cepções e as decisões clínicas são modificadas pela aquisição de uma
os Jjova competência. No entanto, essas mudanças vão continuar a passar
tis 4êspercebidas e a não serem explícitas, a não ser que as enfermeiras
estudem em pormenor essas mudanças e o "saber fazer" que daí resulta e
que se desenvolve na sua própria prática.
40 1 De iniciado a perito

Resumo e conclusões

Urna grande quantidade de conhecimento não referenciado está


integrado na prática e no "saber fazer" das enfermeiras peritas, mas esse
conhecimento não poderá alargar-se ou desenvolver-se completamente se
as enfermeiras não anotarem sistematicamente aquilo que aprendem a
partir da sua própria experiência. A perícia clínica não foi adequadamente
descrita ou apresentada em enfermagem, e essa falha na descrição
contribuiu para a falta de reconhecimento e de retribuição face à prática da
enfermagem. Além disso, uma boa descrição do conhecimento prático é
essencial ao desenvolvimento e ao alargamento da teoria em enfermagem.
A ciência da enfermagem tem muito a ganhar com as enfermeiras que
comparam os seus sistemas de hierarquização qualitativa, quando fazem os
seus julgamentos clínicos, e descrevem e documentam as observações, os
seus comportamentos tipo, os casos paradigmáticos, as máximas e as
mudanças que vão surgindo nas suas práticas. Há muito para aprender e
muita coisa a apreciar, à medida que as enfermeiras descobrem significados
comuns adquiridos em resultado da ajuda, da orientação, da intervenção
nos acontecimentos humanos significativos que estão no âmbito da arte e
da ciência de enfermagem.
CAPÍTULO 2

,e
;e
a
te
,o
la
é
].

e
,s 0 lVIODELO DREYFUS DE AQUISIÇÃO
·S
s DE C()MPETÊNCIAS
e
s
APLICADO À ENFERMAGEM
J
O matemático e analista dos sistemas Stuart Dreyfus e o filósofo Hubert
Dreyfus desenvolveram um modelo de aquisição de competências fundado
sobre o estudo de jogadores de xadrez e de pilotos de aviões. O modelo
Dreyfus (Dreyfus & Dreyfus, 1980; Dreyfus, 1981) estabelece que, na
aquisição e no desenvolvimento de uma competência, um estudante passa
por cinco níveis sucessivos de proficiência: iniciado, iniciado avançado,
competente, proficiente e perito. Estes diferentes níveis são o reflexo de
mudanças, em três aspectos gerais, que se introduzem aquando da
aquisição de uma competência. O primeiro é a passagem de uma confiança
em princípios abstractos à utilização, a título de paradigma, de uma expe-
riência passada concreta; o segundo é a modificação da maneira como o
formando se apercebe de uma situação - não a vê tanto como um conjunto
de elementos tirados aqui e ali, mas como um todo no qual só algumas
partes são relevantes; o terceiro aspecto é a passagem de observador
desligado a executante envolvido. Este último já não está do lado de fora
da situação e do processo, mas está empenhado na situação.
Iremos apresentar os resultados de um estudo sistemático da
aplicabilidade deste modelo em enfermagem. As expressões
"competência" e "práticas competentes" serão utilizados indistintamente;
com efeito, as duas englobam a noção de cuidados de enfermagem
competentes e as capacidades de julgamento clínico. Em nenhum caso
estes termos serão utilizados para falar de capacidades psicomotoras ou
outras, demonstráveis fora do contexto normal da prática da enfermagem.
Assim, competências e práticas competentes referem-se aos cuidados de
enfermagem desenvolvidos em situações reais.
44 1 De 1niciaclo a perito

l\1étodos

Para constatar e compreender as diferenças ele comportamento em


matéria ele competência clínica e de apreciação ela situação entre iniciados
e peritos, foram conduzidas entrevistas em pares compostos por uma 1·e-
presentante de cada categoria. Essas enfermeiras (21 pares) foram
escolhidas em tres hospitais em que se usam enfermeiras tutoras para
orientar as enfermeiras re,:ém diplomacias.
As duas enfermeiras do par, a tutora e a recém diplomada, foram
entrevistadas separadamente sobre casos de doentes com os quais as duas
ti-nham sido confrontadas e que as tinham marcado. Perguntámos às duas
que conhecimentos clínicos tinham achado particularmente difíceis ele
ensinar ou aprender. O objectivo desta pesquisa era descobrir de uma forma
bem distinta características diferentes na descrição do mesmo caso clínico
feito pela iniciada e pela perita. Se assim fosse, e se fosse possível
identificar essas diferenças a partir das descrições feitas pelas enfermeiras,
em que medida poderíamos tê-las em conta e que ensinamentos poderíamos
retirar daí?
A estas descrições realizadas pelos elementos cio par, acrescentaram-se
entrevistas e/ou observações sobre o terreno de 51 enfermeiras experientes
suplementares, onze recém diplomadas e cinco estudantes cio último ano,
afim de afinar e de melhor descrever as características das acções
executadas por enfermeiras em fases diferentes de aquisição de
competências. As entrevistas (em pequenos grupos e individuais) e a
observação sobre o terreno foram conduzidas em seis hospitais: dois
hospitais comunitários privados, dois centros hospitalares regionais de
ensino, um centro hospitalar universitário e um hospital geral.
Foi pedido às 51 enfermeiras experientes designadas pelos responsáveis
de formação, em colaboração com os encarregados e seus colegas que
escolhessem enfermeiras que tinham menos de cinco anos de experiência
sobre o terreno e reconhecidas como sendo excelentes conhecedoras do seu
ofício. Entre essas últimas escolhidas, sete eram titulares de um mestrado e
a maioria tinha a licenciatura. Todavia, o nível de educação/ cultura-geral
não constituía um critério formal de selecção.
Não tentámos em caso algum classificar as enfermeiras em função cio
seu nível de competência, mas procurámos julgar um nível particular de
pr,ítica em função de cada caso clínico. Isso vai no sentido cio modelo
Dreyfus: propor num contexto preciso critérios que permitam saber se a
O Modelo Dreyfus de aquisição de competências aplicado à Enfermagem 1 45

pessoa possui qualidades ou traços caracterizadores de competência. O


objectivo não era encontrar o indivíduo competente em todos os campos,
em apesar das circunstâncias ou do nível de formação.
dos Uma série de conversações - uma por dia a dois por semana - em
re- pequenos grupos, de quatro vezes duas horas, foram conduzidas por quatro
·am a oito enfermeiras experientes que vinham de diferentes serviços do mesmo
,ara hospital. As 51 enfermeiras experientes tiveram uma conversa individual e
as observações foram feitas para 26 delas. Em todos os casos, a
·am participação nos cuidados era mínima - ajudar de tempos a tempos as
uas enfermeiras a transportar os doentes ou noutras tarefas menores afim de
uas tornar a observação menos incomoda e importuna. Antes das conversações,
de distribuímos aos participantes um texto que dava as grandes linhas do
·ma género de descrição que nos interessava (cf., em anexo, o Guia para a
IICO descrição de incidentes críticos). Com a experiência, apercebemo-nos de
'.vel que o termo "incidente crítico" tinha sido mal escolhido porque fazia
ras, pensar em doentes num estado crítico e em situações de crise. Foi
nos necessano explicar que também estávamos interessados em
acontecimentos significativos, que não estavam ligados a uma situação de
l-Se crise.
Jtes As entrevistas foram conduzidas pela autora, por uma enfermeira
lTIO, investigadora, um estudante de mestrado em antropologia e um
ões investigador da área de psicologia. As entrevistas foram gravadas e
de transcritas palavra por palavra, afim de se analisar o texto. Em todas as
e a séries de conversações de grupo, excepto uma, pelo menos dois dos
lois investigadores estavam presentes, afim de facilitar o trabalho de grupo.
de

reis Interpretação dos dados


~ue
ICJa Os textos das entrevistas e dos registos das observações participantes
seu foram lidos, separadamente, por cada um dos membros da equipa de
lo e investigação, que seguidamente confrontaram as suas interpretações dos
!ral dados até chegar a uma validação por consenso. Uma interpretação só era
aceite quando toda a equipe estava de acordo sobre a caracterização e a
do interpretação da competência principal que aí estava patente e só no caso
de em que ela era, sem contestação, o reflexo de uma verdadeira competência
leio prática.
e a A estratégia de interpretação utilizada apoia-se sobre a fenomenologia
46 1 De iniciado a perito

de Heidegger (Heidegger, 1962; Palmer, 1969; Benner, no prelo) o que


corresponde bem à descrição do método de comparação constante de
Strauss e Glaser (Glaser, 1978; Glaser & Strauss, 1967; Wilson 1977),
ainda que o objectivo não tivesse sido tirar daí elementos teóricos, mas
antes identificar os significados e conteúdos.
Os seguintes trechos das entrevistas descrevem o mesmo caso clínico,
visto por uma enfermeira principiante e uma enfermeira com experiência.
A última descreve aqui uma situação de emergência numa unidade de
tratamento intensivo:

Tinha trabalhado até tarde e estava quase para ir para casa quando uma
enfermeira tutora me diz: "Jolene, vem ver". Havia urgência na sua voz,
mas não como quando há uma paragem cardíaca. Entro e examino o
doente. A sua frequência cardíaca está nos 120, está sob respiração
artificial e a ventilação parecia normal. Pergunto: "O que é que não está
bem?". Uma recém diplomada que tratava do doente aponta um mar de
sangue.
Uma grande quantidade de sangue saia da sua boca. Esse homem
tinha sido submetido a uma ressecção de um cancro mandibular. Mais ou
menos uma semana atrás tinha sofrido uma hemorragia ao nível da
carótida externa, que tinha sido ligada, devido à sua ruptura causada pela
radioterapia. Essa ferida infectou-se e o doente fez uma insuficiência
respiratória, pela qual tinha sido internado nos tratamentos intensivos.
Examino assim o penso e constato que está seco. Mais sangue saia da
sua boca. O homem tinha uma traqueostomia por causa da operação à
qual se submeteu. Tinha também uma sonda nasogástrica para o
alimentar, e penso que talvez a artéria carótida ou o tronco bráquio-
cefálico tinha cedido. Desligámos o doente do respirador para ver se
qualquer coisa saía da traqueia. Havia um pouco de sangue, mas parecia
que quase tudo tinha passado da faringe aos pulmões. Começámos então
por ventilá-lo ma-nualmente tentando adivinhar o que poderia estar na sua
boca para fazer sair uma tão grande quantidade de sangue...

Questionada, a enfermeira experiente salientou a importância da


ventilação manual, que lhe permitia ter a certeza de que todo oxigénio
estava a ser administrado ao doente, e poder apreciar o grau de resistência
nos pulmões.
Podemos reparar que, para esta perita, a tomada de consciência do pro-
O Modelo Dreyfus de aquisição de competências aplicado à Enfermagem 1 47

1ue blema começou no corredor, quando ia para ao quarto do paciente. Ela já


de se tinha apercebido da urgência pelo tom de voz empregue pela enfermeira,
7), mas não se tratava de uma paragem cardíaca. Este tipo de percepção do
ias problema só pode manifestar-se devido à experiência prévia. Depois de ter
concluído que o problema era da carótida e não do tronco bráquio-cefálico,
enquanto exercia uma pressão sobre a região da carótida e continuando a
Ja. ventilação manual, a enfermeira perita salienta:
de
Naquele momento o problema era o sangue. Necessitávamos dele e
disse então: "Alguém tem de ligar ao banco de sangue e ir buscá-lo." A
enfermeira respondeu: "acabámos de ligar e não há". Ninguém se tinha
apercebido que o doente estava a perder o seu sangue e que não havia no
banco de sangue não havia para ele. Tiramos uma amostra de sangue e
enviámo-la para determinar o grupo e fazer a compatibilidade. Durante
esse tempo, comecei a infectar plasma e Ringer, porque a pressão media-
na tinha caído a mais ou menos 30 e o sangue continuava a sair da boca.

O entrevistador - havia médicos presentes nesse momento?

A enfermeira perita - tinham sido chamados, mas ainda não tinham


chegado. Foi nesse momento, sensivelmente, que o interno dos
tratamentos intensivos chegou e olhou para o que se passava com ar
idiota, como se perguntasse " o que tem que ser feito?". Perguntou se
tínhamos colocado um cateter. Respondi "sim, temos um cateter para a
pressão venosa central, mas penso que isso não seja suficiente " "Vou
fazer um desbridamento" disse ele. "Penso que não seja necessário,
respondi eu, penso que posso colocar mais um "Peguei então num cateter
nº 14 e introduzi-o numa veia do antebraço. Dois plasmas estavam a
correr. "Que devo fazer?" respondeu o interno. Respondi: "É necessário
que desça ao banco de sangue e que nos traga unidades compatíveis com
o grupo deste doente, porque não serão dados a uma enfermeira. É a única
pessoa a quem entregarão o sangue compatível. Traga duas unidades; só
lhe serão entregues duas de cada vez, pouco importa a gravidade do
da problema. Mas traga as duas e volte o quanto antes." E assim partiu.
üo
;ia O reequilibro hidro-electrolítico do doente foi conseguido e as perdas
sanguíneas foram suficientemente compensadas para permitir levar a
:o- tempo o doente ao bloco operatório e lhe reparar a artéria.
48 1 De iniciado a perito

A maneira como esta enfermeira perita descreve a situação permite ao


ouvinte imaginar-se no centro da acção; esquecemo-nos de quem está a
contar a história, a qual só contém os detalhes necessários, para permitir
que outras enfermeiras compreendam o que se passa. Nenhum pormenor
inútil, excepto quando os ouvintes necessitam de esclarecimentos sobre
certos pontos técnicos. A enfermeira perita domina bem a linguagem; fala
sem hesitações da pressão sanguínea. Utiliza as mãos para mostrar como o
balão de ventilação manual reage quando esta verifica a resistência
pulmonar. Sente nas suas mãos a diferença de resistência, o que ela
consegue exprimir por gestos. Estes pontos são mais claros quando são
comparados com a descrição de uma mesma situação feita por uma
enfermeira principiante avançada:

Esse homem era alguém de muito simpático, muito vivo, muito alerta
e atento. Infelizmente era necessário aspirá-lo, aproximadamente todas as
horas ou de duas em duas, para lhe serem retiradas quantidades mo-
deradas de secreções vindas da traqueia. Essas secreções tinham um
aspecto resistente e uma cor ligeiramente acastanhada. Infelizmente, ele
não suportava muito bem a aspiração das secreções. Punham-no numa
situação de desconforto, faziam-no tossir, moderadamente, e davam-lhe
vómitos, o que por sua vez lhe provocavam uma subida passageira da
pressão arterial. No fim de um desses momentos de aspiração, enquanto
estava a trocar seu aerossol, pôs-se a tossir e a cuspir quantidades muito
importantes de sangue vermelho vivo. Comecei a entrar em pânico, pedi
ajuda à enfermeira do lado, pu-lo ligeiramente em posição de Trendelen-
burg e acelerei a sua perfusão. Continuei ligeiramente em pânico e até um
pouco mais.

Se bem que esta principiante avançada se tenha comportado muito bem


nessa situação, em relação ao seu nível de competência, a sua descrição
deixa transparecer a sua angústia. Não temos uma ideia tão clara da situa-
ção como na descrição feita pela enfermeira especializada. Perguntamo-
nos, confusamente, se não foi ela que provocou a ruptura da carótida pelas
aspirações muito brutais. A enfermeira principiante não tem nenhum meio
para avaliar o que é excessivamente traumático, ainda que descreva a
aspiração das secreções deixando transparecer a pergunta: será que essa
acção teria levado à ruptura da carótida?
Ao escutar a sua narração, podemos notar as referências ao manual de
O Modelo Dreyfus de aquisição de competências aplicado à Enfermagem 1 49

ao estudo; utiliza um vocabulário não muito apropriado e dá informações


í a inúteis. A sua compreensão do acontecimento não é tão completa nem tão
itir clara como a da enfermeira perita. Essa tem um grande avanço quando é
10r necessário mobilizar os recursos disponíveis e fazer frente ao problema
Jre seguinte inesperado.
ala Através da análise desta situação e de muitas outras, e pelo modelo
)0 Dreyfus, tornou-se possível descrever as características, os
eia comportamentos em cada nível de desenvolvimento e identificar em termos
ela gerais as necessidades em matéria de ensino/aprendizagem em cada nível.
ião
ma
Estado 1: Iniciado

As iniciadas não têm nenhuma experiência das situações com que elas
possam ser confrontadas. Para as ensinar e permitir que elas adquiram
experiência tão necessária ao desenvolvimento das suas competências, são-
lhes descritas situações em termos de elementos objectivos tais como: o
peso, os líquidos ingeridos e eliminados, a pressão arterial, a pulsação e
outros parâmetros objectivamente medíveis, que permitam conhecer a
condição de um doente - características identificáveis sem experiência
clínica. São-lhes igualmente ensinadas as normas, independentemente do
contexto, para guiar os seus actos em função dos diversos elementos. Por
exemplo:

Para determinar o equilíbrio hídrico, verificar, durante três dias


seguidos, o peso do doente cada manhã, assim como o suplemento hídrico
e a sua diurese. Um aumento de peso assim como um suplemento hídrico
constantemente superior a 500cc à diurese poderia indicar uma retenção
em de água, situação essa, em que, deveria ser iniciada uma restrição hídrica
,ão até que seja determinada a causa desse desequilíbrio.
ua-
no- Estas regras impõem à iniciada um comportamento típico
:las extremamente limitado e rígido. O centro da dificuldade reside no seguinte
eia facto: visto as iniciadas não terem nenhuma experiência da situação à qual
a a vão fazer frente, têm que lhes ser dadas regras para as guiar nos seus actos.
ssa Mas o facto de seguirem essas regras poderá não ir ao encontro de um
comportamento correcto, porque não lhes podem ser indicados quais os
de actos mais úteis numa dada situação real.
50 1 De iniciado a perito

As estudantes de enfermagem entram em cada serviço novo, com o


estatuto de iniciadas; têm dificuldade em integrar o que aprenderam nos
livros com aquilo que vivem em situação real. Mas estas estudantes não são
as únicas iniciadas; todas as enfermeiras que integram um novo serviço em
que não conhecem os doentes podem encontrar-se a este nível, se os
objectivos e os aspectos inerentes aos cuidados não lhes forem familiares.
Este ponto ilustra as hipóteses do modelo Dreyfus fundadas sobre a
experiência em situação, o que distingue o nível dos actos competentes, que
podem ser atingidos graças aos princípios e à teoria aprendida numa sala de
aulas, e as decisões e aptidões que dependem do contexto, as quais só
podem ser adquiridas perante situações reais (Dreyfus, 1982). Por exem-
plo, uma enfermeira especializada e tendo muita experiência no tratamento
dos doentes adultos em estado crítico encontrar-se ia num nível de ini-ciada
do ponto vista das competência se fosse transferida para uma unidade de
cuidados intensivos em neonatologia. O modelo Dreyfus de aquisição de
competências é um modelo dependente da situação e não relativo à
inteligência ou aos dons de uma pessoa.

Estado 2: iniciada avançada

O comportamento das iniciadas avançadas é aquele que pode ser


aceitável, pois já fizeram frente a suficientes situações reais para notar (elas
próprias ou sobre a indicação de um orientador) os factores significativos
que se reproduzem em situações idênticas e que o modelo Dreyfus qualifica
por "aspectos da situação".
É preciso experiência para reconhecer esses "aspectos" em situação real.
Já não acontece o mesmo com os elementos medíveis e independentes do
contexto ou das listas que indicam uma atitude a seguir ou coisas para fazer,
que a principiante aprende e utiliza. Estes aspectos abrangem o conjunto das
características globais que só podem ser identificadas graças às experiências
anteriores. Por exemplo, para avaliar se um doente está pronto para se orien-
tar e aprender sozinho é necessário ter conhecido a mesma situação com ou-
tros pacientes, tendo tido a necessidade de aprendizagens similares. Eis a
maneira como uma enfermeira perita descreve os elementos que lhe
permitem dizer que o seu doente está pronto para se ocupar da sua
ileostomia:
o Modelo Dreyfus de aquisição de competências aplicado à Enfermagem 1 51

no Antes, pensava que ele se sentia perdido perante a operação a que


nos tinha acabado de se submeter. Parecia abatido tanto fisicamente como
são moralmente e estava num estado de nervosismo extremo. Além disso
em tratava a ferida com precaução a mais, visto já não haver essa
os ..... necessidade. Mas essa manhã foi diferente, começou a fazer perguntas
·es. sobre o tratamento que lhe era feito.
·e a
que
1 de As implicações para o ensino e a aprendizagem
; só
Oinstrutor pode dar indicações que permitam saber em que momento o
mto doemte está pronto para aprender. Por exemplo:" tente saber se o doente faz
ada np,•nnnt,,o sobre a sua operação ou sobre o estado da sua ferida aquando da

: de \i:•, 111ud:mça dos pensos"; "verifique se o doente olha para a ferida ou lhe toca
> de em quando". Mas essas indicações dependem dos conhecimentos
o à dfiquele que cuida, nesse ponto preciso do seu trabalho quotidiano. Assim,
podemos explicitar certos aspectos, é impossível torná-los
objectivos. A enfermeira pode retirar indícios pela maneira
,,;;i•iuu o doente coloca as perguntas sobre a operação ou o estado da sua
J(:nç1a,.aq1ua.noo da mudança dos pensos, mas nenhuma dessa indicações é
•;'{i•··;•1fílt.!,i"da em todas as situações. A enfermeira tem que ter muita experiência
ser de poder aplicar os seus critérios em cada um dos doentes.
elas principiante avançada ou a pessoa que a orienta podem formular
vos que ditam as acções em termos de atributos e de aspectos. Esses
fica que pressupõem elementos significativos fundados sobre a
são apelidos de "indicações". Elas integram tanto quanto
·eal. atributos e aspectos, mas têm tendência a ignorar o que as
; do •'·//;/ •rlifPrPn,,-, 0 de uma maneira importante, isto é, que elas dêem a todos os
tzer, e a todos os aspectos a mesma importância. É o que ilustra os
das de uma enfermeira perita em relação à enfermeira principiante
cias serviço de cuidados intensivos em neonatologia:
1en-
ou- Dou instruções muito detalhadas e muito explícitas à recém
,is a diplomada: "Quando entrar e vir o bebé pela primeira vez, tome-lhe os
lhe sinais vitais e faça um exame físico. Verifique, de seguida, os pontos de
sua injecção das perfurações assim como o respirador e assegure-se que
funciona. Verifique os monitores e os alarmes." E é o que elas fazem
exactamente ponto por ponto, independentemente do que aconteça ... Elas
52 1 De iniciado a perito

seriam incapazes de fazer uma triagem entre o que pode ficar de lado e o
que é mais importante. Seriam incapazes de ir de um bebé para o outro
fazendo o que é mais importante e desempenhar mais tarde o resto da
tarefas.
As principiantes e as principiantes avançadas só podem apreender um
pequeno aspecto da situação: isso tudo é muito novo, muito estranho e cada
vez mais têm que se concentrar nas regras que lhes ensinaram.
A enfermeira perita continua:

Se digo: "façam estas oito coisas" elas fazem-nas sem se preocupar se


o outro bebé chora até perder o fôlego. Quando se dão conta, ficam espe-
cadas, sem saber o que fazer.

As orientadoras e as recém-licenciadas passam muito tempo


concentrando-se sobre o reconhecimento do aspecto que constitui, aquando
das avaliações físicas, um bom tema de aprendizagem. A enfermeira irá
praticar para distinguir entre peristalismo normal, hiper activo ou
inexistente num doente operado. Mas nos domínios práticos onde a
enfermeira já adquiriu competência, o reconhecimento do aspecto será
provavelmente redundante e será possível concentrar-se sobre perguntas
práticas de um nível mais avançado, como julgar a importância relativa dos
diferentes aspectos da situação.
A implicação maior na educação das profissionais de enfermagem
reside no facto de que as enfermeiras principiantes necessitam de ser
enquadradas no contexto da prática clínica. Necessitam de ajuda, por
exemplo, em matéria de prioridades, porque vão agindo em função dos
critérios gerais e começam agora a conhecer situações repetitivas
características no quadro da prática diária. O cuidado que é levado aos
doentes deve ser ve-rificado pelas enfermeiras que atingiram pelo menos o
nível de "competente" afim de se assegurar que as necessidades dos
doentes não sejam ne-gligenciadas, porque a principiante ainda não é capaz
de fazer a triagem entre o que é mais e menos importante. A descrição dada
por uma orientadora das capacidades de uma recém diplomada põe em
evidencia essa necessidade.

No início, uma só coisa era importante no doente todo o resto estava


quase excluído. Por exemplo, fizemos um electrocardiograma e achava
que o doente tinha extrasistoles ventriculares e que era necessário avisar
o Modelo Dreyfus de aquisição de competências aplicado à Enfermagem 1 53

o médico. Pois bem, parecia que de repente o tempo tinha parado: a


enfe1meira parou, olhou para o electrocardiograma e quis que eu lhe
explicasse o que era um electrocardiograma, como era lido, enquanto três
doentes esperavam nas urgências para ser atendidos. Para ela, era normal
um aprender, mas não tínhamos tempo para deixar tudo de lado e eu explicar-
:ada lhe o que era um ECG.

Para orientar as enfermeiras principiantes, numerosos hospitais empre-


gam orientadoras. Desta maneira, as principiantes podem tirar proveito das
situações e aprender durante esse período a estabelecer prioridades devido
às situações que as marcaram. Isto tudo para que nem os doentes, nem as
enfermeiras principiantes tenham problemas.

npo
ndo Estado 3: Competente
irá
ou A enfermeira competente trabalha no mesmo serviço há dois ou três
e a anos: Torna-se competente quando começa a aperceber-se dos seus actos
;erá eln termos objectivos ou dos planos a longo prazo dos quais está cons-
1tas ciente. Este plano dita quais os atributos e aspectos da situação presente ou
dos prevista que devem ser considerados como os mais importantes, e os que
podem ser ignorados. Assim, para a enfermeira competente, um plano
;em estabelece uma perspectiva e baseia-se sobre uma análise consciente,
ser abstracta e analítica do problema. Uma orientadora descreve como ela
por evoluiu do estado estímulo-resposta ao da competência adquirida ao longo
dos da prática da enfermagem:
vas
aos Tinha quatro doentes. Um tinha de aprender a tomar conta da sua
IS O colostomia, os outros necessitavam de muito mais coisas. Estava ocupada
dos com variadíssimas coisas. A perfusão de um tinha acabado e tive que
paz resolver a situação, de seguida, tinha-me esquecido de dar alguns
ada medicamentos e tive que me despachar para distribui-los. Depois, alguém
em começou a ter náuseas e tentei reconfortá-lo. E por fim, a bolsa da
colostomia tinha-se descolado e tive que ensinar o doente a resolver a
situação. De repente, apercebi-me que a manhã já tinha acabado e que
ninguém tinha sido lavado.

O entrevistador - Então, só reagia perante o que era urgente?


54 1 De iniciado a perito

A enfermeira - Quando entrava nos quaitos, era imediatamente


bombardeada pelas queixas dos doentes e sem uma ideia precisa sobre a
maneira como ia organizar-me. Hoje, chego depois de ter sido informada
sobre a situação e sei mais ou menos em que ponto estão as perfusões. E
ainda, sei o que tenho para fazer. Antes de entrar num quarto, escrevo
quais os medicamentos que devo dar para todo o dia, depois no quarto
asseguro-me que todas as perfusões correm bem. Vou de cama em cama
só para dizer bom dia. Mas faço-os sentir que estou a trabalhar. Verifico
as perfusões, os pensos. E depois está tudo bem. Sei que os doentes não
se vão esvair em sangue; sei que as diureses estão normais; sei que as
perfusões coJTem bem ... Depois, toda a minha manhã está programada e
posso continuar o meu trabalho. Estou muito mais organizada. Sei o que
tenho para fazer e combino com os doentes para saber o que eles querem
fazer.

A enfermeira competente não tem a rapidez nem a maleabilidade da


enfermeira proficiente, mas tem o sentimento que sabe bem das coisas e
que é capaz de fazer frente a muitos imprevistos que são o normal na
prática da enfermagem. A planificação consciente e deliberada que
caracteriza este nível de competência, ajuda a ganhar eficiência e
organização.

As implicações para o ensino e a aprendizagem

Sentimo-nos mais à vontade nesse estado de desenvolvimento de


competências. O mundo clínico parece finalmente organizado, depois de
grandes esforços. As enfermeiras podem nesse estado tirar benefícios dos
exercícios das tomadas de decisões e de simulações, que lhes dão a prática
para planear e coordenar os múltiplos e diversos cuidados para fazer face
as necessidades dos doentes.

Estado 4: Proficiente

De maneira característica, a enfermeira proficiente apercebe-se das si-


tuações como uma globalidade e não em termos de aspectos isolados, e as
O Modelo Dreyfus de aquisição de competências aplicado à Enfe1magem 1 55

suas acções são guiadas por máximas. A percepção é aqui uma palavra
chave. A perspectiva não é muito bem pensada mas "apresenta-se por si
mesma", porque é fundada sobre a experiência e os acontecimentos re-
centes. A descrição dada por uma enfermeira de um serviço de reanimação
neonatal diz respeito a enfermeiras principiantes que ilustra essa mudança:
Penso que a coisa mais importante que me ficou na cabeça nessas
últimas semanas foi saber se, ao cabo destes três meses, a recém
diplomada poderia tratar sem perigo, ou se sabia apenas fazer os cuidados
de enfermagem, ou mesmo só cumprir com as tarefas específicas. Para
mim, o objectivo dos cuidados de enfermagem é de levar uma criança de
um ponto A a um ponto B. Para isso, é necessário praticar actos. Mas os
cuidados de enfermagem não se resumem a um seguimento de actos ...
Desejava ver surgir uma luz de compreensão nos seus olhos: que ela
compreenda que este é o estado deste bebé hoje, e eis como eu quero que
este bebé esteja daqui a seis semanas. Que posso eu fazer, hoje, para
ajudar este bebé a estar cada vez melhor ao longo do trajecto? E é essa
da mudança que está a acontecer. Começou, agora, a ver as coisas como um
se todo e não como uma lista de tarefas a cumprir.
na
1ue A enfermeira proficiente aprende pela expenencia quais os
e acontecimentos típicos que acontecer numa determinada situação, e como
se pode reconhecer que o que era previsto não se cai concretizar. Trata-se
de uma teia de perspectivas e como o nota Stuart Dreyfus (1982):

Excepto em circunstâncias anormais, a pessoa experiente vai viver a


situação presente como uma situação típica, já vivida e que ela guardou
de na sua memória (como um todo e com as suas características principais)
de por causa do encadeamento de acontecimentos passados ... Por isso, a
los pessoa viverá as suas situações a todo o momento através de uma
1ca perspectiva mas, antes de a avaliar conscientemente, esta situação irá
iCe apresentar-se ela própria. (p.19)

Por causa dessa capacidade, fundada sobre a experiência, de reconhecer


situações no seu todo, a enfermeira proficiente pode agora saber que o que
ela previa não irá manifestar-se. Esta compreensão global melhora o seu
processo de decisão que se torna cada vez menos trabalhoso, porque a
si- enfermeira possui, agora, uma perspectiva que lhe permite saber quais dos
as muitos aspectos e atributos são importantes. Enquanto que a enfermeira
56 1 De iniciado a perito

competente ainda não é suficientemente experiente para reconhecer uma


situação no seu todo, ou em termos de aspectos, quais os mais marcantes e
os mais importantes. A enfermeira proficiente não toma tanto em conta as
possibilidades e orienta-se directamente sobre o problema. Considera os
aspectos de uma situação como sendo mais ou menos importantes: quando
falava, anteriormente, do desejo do seu doente em aprender como tomar
conta da sua ileostomia, a enfermeira especialista mostrava o seu
contentamento em ter parado tudo e ter passado aquele tempo com o seu
doente, no momento preciso em que ele estava mais receptivo. Podemos
supor que adiar essa sessão teria sido tão nefasto como querer ensinar-lhe
as coisas antes do tempo.
A enfermeira proficiente utiliza máximas que a guiam, mas uma grande
compreensão da situação é necessária antes de poder utilizá-las. As
máximas reflectem o que apareceria como nuances incompreensíveis da
situa-ção à enfermeira iniciada ou competente; podem significar qualquer
coisa a um determinado momento e outra completamente diferente mais
tarde. Uma vez que há uma boa compreensão da situação, a máxima
fornece, no entanto, um indício sobre o que deve ser tomado em
consideração. As má-ximas reflectem as nuances da situação, o que
aparece, claramente, aqui, quando se desmama os doentes do respirador:

Bem, vigiem os sinais vitais para ver se não se passa nada de


significativo ... Mas, até aqui, é necessário jogar um pouco às adivinhas,
tentar saber se o doente está só angustiado, porque está habituado a que a
me-dicina respire por ele ...Se ele está um pouco ansioso, não quer
administrar-lhe medicamentos porque tem medo que o doente pare de
respirar. Por outro lado, tàlvez seja realmente necessário acalmá-lo um
pouco. Tudo depende da situação. Essa é uma verdadeira experiência.
Tem assim um bordado constituído pelo que fez no passado e sabe quando
irá ter dificuldades.

As implicações para o ensino e a aprendizagem

As enfermeiras proficientes aprendem melhor quando se utilizam


estudos de casos que põem à prova e requerem a capacidade de apreender
uma situação. O desempenho melhora se for pedido à estudante, para citar
exemplos vividos e casos tipos para se ter uma melhor ideia. O facto de lhe
o Modelo Dreyfus de aquisição de competências aplicado à Enfermagem 1 57

a dar regras e princ1p10s independentes do contexto, não só lhe dará um


e sentimento de frustração, mas também a estimulará para dar exemplos de
s si-tuações onde o princípio ou a regra será contrariada.
s ,, Neste nível, as enfermeiras proficientes.podem acabar por acreditar que
:) a teoria sobre a qual as suas competências e os seus actos estavam fundados
r no início, não era senão um amontoado inútil e enganador. Ou talvez
l pensassem que a análise de decisões elaborada pelo educador era apenas
l um meio desnecessário para resolver um problema clínico, que pode agora
s ser rapidamente compreendido graças à sua experiência. Isso seria
~ particularmente verdade se a teoria utilizada fosse apropriada para permitir
·,) à enfermeira principiante saber como abordar sem perigo as situações. Não
) está por isso adaptada para descrever ou explicar aspectos mais complexos
"
s ou mais subtis de uma situação.
l A enfermeira proficiente aprende melhor por um método indutivo,
r quando começamos por um caso clínico e que a deixamos utilizar os seus
> meios de compreensão da situação. Quando introduzimos situações que
l ultrapassam os seus meios de compreensão e de abordagem, descobrimos
l utn domínio virgem onde a aprendizagem é necessária. Podemos afinar
~ exercícios de aprendizagem, pedindo às enfermeiras para expor dois tipos
de estudos de casos tirados das suas próprias práticas: (1) situações que
puderam controlar, pensando que tinham sido as suas intervenções que ti-
nham feito a diferença; (2) situações onde não ficaram satisfeitas com elas
próprias, onde se sentiram ultrapassadas. Os estudos de casos devem conter
élementos inúteis e estranhos, assim como, em certos casos, informações
insuficientes tornando impossível uma escolha inteligente. Para serem
eficazes os estudos de casos devem ter níveis de complexidade e de
ambiguidade parecidos aos das situações reais.
É a enfermeira proficiente que é, muitas vezes, capaz de reconhecer
. uma deterioração do estado do doente antes mesmo das mudanças
explícitas nos sinais vitais - essa competência é chamada de sinal de alarme
precoce (cf. capítulo 6). Uma vez que podemos identificar as enfermeiras
pe-ritas e as enfermeiras proficientes sem riscos de erro, podemos fazer
duas perguntas práticas: Qual é o factor que facilita a passagem do estado
competente para o estado proficiente, além do factor tempo? O que atrasa
essa passagem? · _
Encontrámos enfermeiras proficientes nas que trabalham sobre a
mesma população de doentes há cinco anos. Esse período de tempo é uma
.:stimativa que necessita ser aprofundada. Voltaremos a passar do nível da
58 1 De iniciado a perito

proficiência ao ela competência quando for pedido algo de novo. ou uma


descrição analítica e processual da situação. Admitimos que as decisões
tomadas pelas peritas são-no na base de uma avaliação explícita de opc;ões
fundadas sobre a comparação entre os elementos característicos. Todavia,
na realiclade. as decisões tomadas pelas peritas são mais holísticas.
Estado 5: Perito

A enfermeira peritajá não se apoia sobre um princípio analítico (regra.


indicação. máxima) para passar cio estado ele compreensão da situação ao
acto apropriado. A perita, que tem uma enorme experiência, compreende.
agora, ele maneira intuitiva cada situação e apreende directamente o proble-
ma sem se perder num largo leque ele soluções e de diagnósticos estéreis.
É difícil fazer-se uma boa ideia elas suas capacidades, porque ela age a
partir de uma compreensão profunda da situação global. Ao xadrez, por
exemplo, o mestre a quem for perguntado porque fez essa jogada
particularmente brilhante, ele responderia simplesmente: "Porque o senti ...
parecia-me bem"; ou então, aos dirigentes ele urna empresa, interrogados
sobre os factores que entrariam em linha de conta aquando a tomada ele
urna decisão hipotética e sobre a importância que eles lhe dariam,
responderiam provavelmente: "Isso depende!"
O problema das peritas é que dizem tudo o que sabem, e isso é posto em
evidência no trecho seguinte, tirado ele uma entrevista com urna enfermeira
perita em psiquiatria, que trabalha há quinze anos. Ela é muito respeitada
tanto pelas colegas como pelos médicos, pelas suas capacidades ele
julgamento e competências.

Quando digo a um médico: "Este doente é psicótico··, não sei como


sustentar a minha afirmação. Mas nunca me engano, porque conhece as
psicoses ele A a Z. De facto, sinto-o, sei-o e confio. Pouco me importa que
mais nada se produza. Sei que tenho razão. Isto pode ser comparado com
outra enfermeira do grupo, que descreveu durante a entrevista, quando
disse ele uma doente "que havia alguma coisa que não estava bem com
ela". Uma elas coisas que faço agora é encontrar uma linguagem própria
cio serviço para que a comunicação passe melhor entre nós. Mas, na rea-
lidade, tudo o que eu tento fazer é tirar palavras da gíria para falar ele
qualquer coisa que eu penso ser indescritível.

Não podemos generalizar demais a certeza exposta nesse pequeno


O Modelo Dreyfus de aquisição de competências aplicado à Enfermagem 1 59

1ma trecho. A enfermeira não diz que nunca se enganava, mas referia-se à sua
ões própria percepção - a sua capacidade de reconhecimento. Esse tipo de
ões certeza e de percepção parece ter pontos em comum com a capacidade de
via, reconhecer o rosto humano sem errar. Esta enfermeira diz que pode reco-
nhecer as mudanças frequentes nos psicóticos, devido aos seus quinze anos
de prática. Essa afirmação abre uma via de investigação interessante, se
esta certeza aparece empiricamente e, se for o caso, quais são as
sra, enfermeiras que a têm e em que condições.
, ao Esta enfermeira, de seguida, descreve uma situação onde sabe que um
ide, doente muito zangado é, por erro, diagnosticado como sendo psicótico.
Jle- Convencida de que o doente só está muito zangado diz: "vamos fazer um
1s. MMPI (Inventário de Personalidade Multi-fásica do Minnesota) para ver
quem tem razão." Continua: "tenho a certeza que tenho razão, pouco
por importa o resultado do IMMPI". Felizmente para ela os resultados
ada confirmaram o que tinha dito, e já tinha começado a cuidar o doente, com
ti ... sucesso, com base na sua avaliação. ..
dos Dreyfus e Dreyfus (1977) notam que:
de
1m, Enquanto o aprendiz de piloto, o estudante em línguas, o jogador de
xadrez ou o condutor seguem as regras, as suas competências estagnam e
em ficam medíocres. Mas com o domínio da actividade vem a transformação
!Ira da competência, mecanismo parecido ao que é produzido quando por um
ada cego que aprende a utilizar uma cana. O principiante ressente, na planta
de da mão, uma pressão que pode utilizar par detectar a presença de um
objecto distante tais como os passeios. Mas com a prática, já não é a
pressão que a pessoa cega sente na planta da mão mas simplesmente o
passeio. A cana transformar-se-á numa extensão do seu próprio corpo.
(p.12)

O mesmo fenómeno produz-se quando os utensílios das enfermeiras


peritas se transformam. Eis a descrição que Dreyfus e Dreyfus (1977) dão
da pessoa experiente:

A pessoa experiente já não tem em conta as características e as regras.


Essas pessoas são maleáveis e mostram um nível elevado de
adaptabilidade e de competências: o jogador de xadrez desenvolve um
instinto do jogo; o estudante de línguas fala coo-entemente; o piloto pára
~no de pensar que está a pilotar um avião e pensa simplesmente que voa.
'
1

60 1 De iniciado a perito

(p.12)

Não podemos concluir que a perita nunca utiliza instrumentos


analíticos. Uma capacidade muito desenvolvida de analisar os
acontecimentos é necessária em situações onde a enfermeira não tem
nenhuma experiência prévia. Os instrumentos analíticos são igualmente
necessários, quando a perita avalia mal a situação e, de seguida, descobre
que os acontecimentos e os comportamentos não se desenrolaram como
previsto. Quando não tem escolha possível, a única maneira de sair desta
má interpretação é utilizar um processo de resolução analítica.

As implicações para o ensino e a aprendizagem

As enfermeiras peritas não são difíceis de reconhecer porque, muitas


vezes, dão opiniões clínicas ou gerem situações complexas de uma maneira
notável. Enquanto que o reconhecimento dos colegas e dos doentes é visí-
vel, as competências da perita não podem ser reconhecidas pelos critérios
habituais de avaliação. É aqui que os limites do formalismo - isto é, a
incapacidade de apreender todas as etapas do processo, das competências
humanas de alto nível - se tornam visíveis (Benner, 1982; Kuhn, 1970, p.
192). Para avaliar o nível de competência da perita, é necessário
acrescentar aos critérios habituais de medidas quantitativas e da avaliação
da prática, uma perspectiva interpretativa destinada a descrever a prática
dos cuidados de enfermagem (cf. capítulo 3), assim como as estratégias
qualitativas de avaliação. O contexto e as significações inerentes às
situações clínicas influenciam fortemente as competências da perita.
Assim, as estra-tégias de avaliação que se apoiam sobre os elementos e os
princípios independentes do contexto não podem ter em conta os
conhecimentos incluídos nos actos praticados pela perita sobre o terreno.
A documentação sistemática das competências da perita constitui uma
primeira etapa para o desenvolvimento dos conhecimentos clínicos. As
enfermeiras peritas poderão beneficiar da consignação e da descrição
sistemática dos incidentes críticos qué terão vivido ao longo das suas
práticas, as quais põem a nu a experiência ou a baixa de competência. À
medida que as especialistas documentarão os seus actos, será possível
estudar adiante e desenvolver novos domínios de conhecimentos.
As peritas podem também ser consultadas pelas outras enfermeiras.
O Modelo Dreyfus de aquisição de competências aplicado à Enfermagem 1 61

Podem ser particularmente eficazes quando se trata de pedir uma avaliação


médica mais avançada quando detectam precocemente alterações clínicas.
)S No entanto, excepto nas unidades de tratamento intensivo, a maior parte
)S das enfermeiras peritas tem poucas oportunidades de comparar e
m . desenvolver com as suas colegas um consenso a respeito das suas
te observações. Assim, se fizéssemos sistematicamente esforços para
re desenvolver uma linguagem descritiva aceite por todos e destinada a
10 comparar as observações das enfermeiras peritas, as suas competências
ta seriam melhoradas.
O estudo dos comportamentos proficientes e peritos permitiriam descre-
ver o comportamento das enfermeiras peritas, assim como suas
. consequências para os doentes. Esse conhecimento pode ser desenvolvido
para alargar o campo de acção das enfermeiras que desejam e são capazes
de atingir a excelência.
lS A visão de "o que é possível" é uma das características que diferenciam
ra os comportamentos da competência dos da proficiente e por fim os da
í- perita. Nem todas as enfermeiras serão capazes de se tornarem peritas. As
)S descrições que dão as peritas da excelência oferecem, no entanto,
a horizontes para as enfermeiras competentes e podem facilitar a sua
lS passagem ao estado proficiente. Quando as peritas podem descrever
p. situações clínicas onde a sua intervenção fez a diferença, uma parte dos
io conhecimentos decorrente da sua prática torna-se visível. E é com esta
io visibilidade que o realce e reconhecimento da perícia se tornam possíveis.
:a
IS
is O significado da experiência
a.
JS A palavra "experiência", tal como é utilizada aqui não faz só referência
JS à passagem do tempo. Trata-se antes de melhorar teorias e noções pré-
concebidas através do encontro de numerosas situações reais que
1a acrescentam nuances ou diferenças subtis à teoria (Gadamer, 1970; Benner
& Wrubel, 1982). A teoria oferece o que pode ser explicitado e
.o formalizado, mas a prática é sempre mais complexa e apresenta muito mais
tS realidades do que as que se podem apreender pela teoria.
À. Na verdade, a teoria guia as enfermeiras e permite-lhes colocar as
questões certas. Isto pode ser ilustrado pelo tipo de transformações de que
são alvo as práticas através dà influência de teorias. (por exemplo, as teoria
s. sobre o processo de luto, sobre a morte e os moribundos, os estudos sobre
62 1 De iniciado a perito

a separação mãe-filho em pediatria. sobre as ligações entre recém nascidos


e sua mãe em obstetrícia. Todavia. qualquer enfermeira com experiência e
conhecimento de tais teorias encontra diferenças que a teoria formal não
consegue exprimir. É esse diálogo clínico com a teoria que torna os melho-
ramentos acessíveis ou possíveis i1 enfermeira experiente.
Por outro lado, a teoria e a procura são geradas a partir do mundo real.
isto é, a partir cios actos praticados pelas especialistas num dado domínio.
É só a partir elas suposições e das expectativas incluídas na prática da
enfermeira perita que são colocadas perguntas destinadas a experiências
científicas e i1 construção de uma teoria. Enquanto as práticas dos peritos
num dado domínio passarem desapercebidas, não ficarem documentadas.
enquanto o desenvolvimento da perícia clínica for limitado por carreiras
clínicas curtas. faltará um elo essencial ao desenvolvimento de uma teoria
em cuidados de enfermagem. Uma enfermeira que tomou a cargo nume-
rosos doentes adquire bases sólidas, graças às quais pode interpretar novas
situações, mas esses conhecimentos com formas múltiplas, com as suas
referências concretas, não podem ser colocados sob forma de princípios
abstractos nem mesmo sob forma de linhas orientadoras explícitas.
Existe um afastamento. uma descontinuidade, entre o nível competente
e os níveis proficiente e perita. Se quisermos que as enfermeiras peritas te-
nham mais atenção perante os pormenores, os modelos ou regras formais.
as suas competências deteriorar-se-ão.
Este ponto de vista sobre a aquisição das competências não significa
todavia, que as regras e as fórmulas só se encontrem no inconsciente. A
explicação deste aspecto encontra-se no livro de Hubert Dreyfus '"What
Computers Cari't do: The Limits of Artificial Intelligence" (l 979).
Para se poder fazer uma ideia sobre: esse modelo. pense em todas essas
experiências que necessitam de uma aprendizagem, como andar de
bicicleta, conduzir um carro, aprender uma segunda língua ou colocar uma
perfusão. No início, a execução é hesitante e é rígida, é absolutamente
necessário apoiar-se sobre instruções explícitas. A execução é governada
pelas regras. Tradicionalmente, os Ocidentais pensam que. com a expe-
riência e o domínio de uma competência, as regras do início acabam por
fazer parte do inconsciente. Mas esta afirmação não tem fundamento pe-
rante a realidade e ignora o papel da percepção nos actos profissionais.
Hubert e Stuart Dreyfus ( 1977) trouxeram exemplos de estudos
conduzidos na Força Aérea que demonstravam que deixando de lado as
regras, poderíamos tornar-nos competentes. Citam o exemplo de aspirantes
O Modelo Dreyfus de aquisição de competências aplicado à Enfermagem 1 63

pilotos a quem foi ensinado a seguir uma sequência fixa de leitura óptica
de instrumentos e de painéis. Os pesquisadores da aviação acharam que os
instrutores que tinham editado estas leis podiam encontrar os erros nos
quadros de bordo mais rapidamente que os estudantes. Perguntaram-se se
os instrutores aplicavam mais rapidamente e melhor as regras que os
aspirantes pilotos; seguiram os movimentos dos olhos dos instrutores e
acharam que não utilizavam de forma alguma as regras que ensinavam aos
seus alunos. Melhor, o não seguimento das regras permitia aos instrutores
agir mais depressa e melhor.
Assim, uma assunção importante do modelo de Dreyfus é que, com a
experiência e o domínio, a competência transforma-se. E esta mudança leva
a um melhoramento das actuações. Se, por exemplo, insistirmos para que
os pilotos peritos sigam as regras e as linhas orientadoras que utilizaram
quando eram principiantes, as suas actuações, no momento presente,
deteriorar-se-iam verdadeiramente.
Uma das implicações deste modelo é que os modelos estruturais
formais, a análise das decisões ou os modelos de processos não podem
descre-ver níveis avançados de actuações clínicas que podemos observar na
realidade. Uma abordagem interpretativa da descrição da prática dos
cuidados de enfermagem será apresentada no capítulo 3 como um meio de
descre-ver o processo de decisão rápida e global pelas peritas. Da mesma
forma, trata-se de um meio de apreender o contexto e as significações
inerentes à prática dos cuidados de enfermagem em situação real. Os
educadores e os conhecedores do seu ofício dedicaram-se ao problema de
descrever de forma satisfatória a extensão e a profundidade dos cuidados
de enfermagem em situação real. O processo de cuidados de enfermagem e
a análise das decisões são limitados na medida em que a dificuldade da
tarefa, a impor-tãncia relativa, os aspectos relacionais e os resultados de
uma prática competente não são completamente apreendidos se neles não
incluirmos o contexto, as intenções e as interpretações desta prática
competente.
CAPÍTUL() 3

.l\. BORDAGEM INTERPRETA.TIVA


DA IDENTIFICAÇ1\.O E DA DESCRIÇÃO
DOS CONHECI1\:1ENTOS Cl,ÍNICOS
A abordagem interpretativa utilizada no projecto AMICAE e a sua
extensão aqui apresentada, tem origem nos trabalhos de Heidegger (1962)
e Taylor (1971). Trata-se de um método diferente do das ciências sociais
proposto por Rabinow e Sullivan (1979). Numa tal estratégia, utiliza-se a
síntese mais do que a análise, o que permite descrever facilmente a prática
da enfermagem, preservando a sua riqueza.
Este modelo de estudo assemelha-se à interpretação de um texto. Por
exemplo, uma frase não pode ser compreendida apenas pela análise das
palavras. A frase é sobretudo compreendida como fazendo parte de um
todo maior, e o seu significado é interpretado a partir do contexto. Da
mesma forma, podemos considerar que um comportamento pode ter vários
significados e não apenas um; compreendê-lo requer então que se examine
num contexto alargado. Os conhecimentos práticos, particularmente ao
nível da experiência, devem ser estudados de uma forma global.
Podemos facilmente ilustrar esta questão fazendo notar que o
significado de uma higiene na cama depende das mudanças que intervêm
no estado de saúde do doente. Se, no início da doença, a higiene na cama
pode ser uma medida essencial para o conforto do doente, pode tornar-se,
à medida que o seu estado melhora, uma medida excessiva que reforça a
sua dependência. Assim, para compreender o significado específico de
qualquer acto (ou cuidado de enfermagem), é absolutamente necessário
conhe-cer o contexto e saber que esse contexto limita consequentemente os
significados possíveis de um comportamento segundo conjuntos
exploráveis e úteis. Desta forma, a abordagem interpretativa apoia-se
sempre no contexto particular da situação; isto é, o momento propício no
qual é preciso agir, os significados, a razão desta situação precisa.
Com uma abordagem interpretativa, as intenções e a compreensão das
participantes são tidas em linha de conta e consideradas como dependendo
68 1 De iniciado a perito

de um mundo tendo significados comuns. Por exemplo, as intenções e a


empatia constituem uma expressão pessoal das participantes numa dada
situação mas, uma vez explicados estes termos, o seu sentido torna-se claro
para aquelas que partilham a mesma cultura: as participantes podem falar
sobre isso e o intérprete que partilha os seus conhecimentos e experiência
pode compreendê-los.
Uma abordagem interpretativa evita o problema das listas de trabalhos
sem fim, que não comportam qualquer indicação de importância (Benner,
1982; Benner & Benner, 1979) porque uma vez descrito o contexto da si-
tuação real, o número de interpretações ou de significados possíveis é limi-
tado. Normalmente, uma ou duas interpretações "melhores" emergem,
porque o significado da situação é conservado e não despojado sob a forma
de características ou de comportamentos objectivos e independentes do
contexto (Dreyfus, 1979).
Os domínios e as competências (com os seus exemplos) em matéria de
cuidados de enfermagem, que serão apresentados nos capítulos 4 a 1O,
ilustram esta abordagem interpretativa fundada na situação, permitindo a
identificação e a descrição dos conhecimentos incluídos na prática clínica;
tra-ta-se de uma mistura entre a teoria e a experiência. Esta abordagem
difere da enumeração das competências elementares e mais avançadas que
os educadores ensinam aos estudantes ao longo das suas primeiras
experiências. Pelo contrário, os exemplos dados aqui salientarão os actos
de enfermagem que utilizam um grande domínio de experiências. É apenas
quando observamos um caso na sua globalidade que podemos apreciar a
importância do contributo da enfermeira para o bem-estar do doente. E é
apenas quando temos uma visão do conjunto que podemos começar a
arquitectar urna teoria e abrir uma via de pesquisa em cuidados de
enfermagem, graças a uma massa de conhecimentos clínicos bem
catalogada.
As enfermeiras adquirem cada vez mais conhecimentos clínicos com o
tempo e perdem o rasto do que aprenderam. Um dos aspectos positivos se-
cundários dos encontros em pequenos grupos utilizados neste estudo é que
as enfermeiras começaram a aperceber-se de que os seus julgamentos
clínicos se tinham afirmado e melhorado com o tempo. As orientadoras
reco-nheceram que as suas dificuldades, e até as suas frustrações nas suas
tentativas de paitilhar os seus conhecimentos com as novas diplomadas,
provinham do facto de que elas expunham noções demasiado complicadas
para serem apresentadas sob a forma de instruções e de avisos à estudante.
1 69

Uma grande paite da sua habilidade (saber fazer) só podia ser transmitida na
situação.
Na prática, a variedade dos casos e as excepções escapam às descrições
dos manuais, mas cedem a pouco e pouco o passo à riqueza de situações,
similares ou não, encontradas pela enfermeira experiente. É esta demons-
tração que é indispensável ao neófito.
Todos os exemplos apresentados não reflectirão um nível de prática
qualificado ou experiente, mas todos serão o reflexo dos conhecimentos
clínicos. Encorajamos o leitor a procurar os domínios de conhecimentos
práticos que foram descritos no capítulo I: a hierarquização das diferenças
qualitativas, a prova do saber; as assunções, as expectativas e os
comportamentos tipo; os paradigmas; as máximas; e finalmente, as
competências desenvolvidas na sequência de uma delegação de
responsabilidade particular e não planeada da parte dos médicos ou de
outros membros da equipa de cuidados. Qualquer enfermeira pode
comparar estes exemplos com si-tuações similares ou não, tiradas da sua
própria vivência. Quando houver desacordo, acordo, questionamento,
aperfeiçoamento ou extensão dos exemplos será indício de que um novo
domínio de conhecimentos clínicos está a ser descoberto.
Em oposição à abordagem interpretativa fundada na situação, o modelo
de processo linear em cuidados de enfermagem pode verdadeiramente
esconder os conhecimentos clínicos decorrentes da prática quotidiana,
porque este modelo simplifica exageradamente e deixa desnecessariamente
de lado o contexto e o conteúdo dos actos de enfermagem. A prática da
enfermagem é de tipo racional e não pode portanto ser descrita de forma
adequada por estratégias que negligenciam o conteúdo, o contexto e a fun-
ção. Tanner (1983) chama a atenção para outras pesquisas que corroboram
o facto de que a enfermeira ou o médico começam por emitir muito cedo
uma hipótese antes de estabelecer um diagnóstico, coisa que o modelo de
Dreyfus qualifica de apreensão rápida do problema.
Se é possível descrever a experiência (Kuhn, 1979, p. 192), não po-
demos reconstituir a partir das narrações dos especialistas, e sob a forma de
etapas explícitas e claras, os processos mentais ou todos os elementos que
entram em linha de conta na sua capacidade de reconhecimento, e que lhes
permite fazer avaliações rápidas dos doentes. Isto não quer dizer no
entanto, que as consequências e as características dos actos das enfermeiras
experientes não podem ser observados e consignados sob a forma de
narrações explicativas.
70 1 De iniciado a perito

Supor que é possível consignar todas as etapas de prática da


enfermagem, é supor que os cuidados de enfermagem seguem uma
andamento processual e não global. Por exemplo, uma avaliação rápida dos
aspectos mais importantes do problema, isto é, os traços característicos,
será evidente na enfermeira experiente. Podemos sempre tentar modelar ou
expli-citar todos os elementos que entram numa decisão tomada por uma
enfermeira, mas na realidade as especialistas não tomam a sua decisão
seguindo um procedimento elementar. Elas não tiram conclusões elemento
a elemento; pelo contrário, elas consideram o conjunto da situação. Mesmo
quando elas tentam contar de forma detalhada os elementos que entraram
na sua decisão, esquecem-se de mencionar elementos essenciais.
Como os psicólogos da Gestalt o fizeram notar desde há muito, o todo
é maior do que as partes que o compõem. Da mesma forma, as diferenças
qualitativas que as peritas fazem a partir da sua experiência, a qual
compreende situações similares ou não, não podem ser transmitidas sob a
forma de descrições escritas precisas. Elas são igualmente difíceis de
consignar - por exemplo as diferenças de toques ou as sensações - porque
as iniciadas não só têm falta de experiência do "toque" e das "sensações",
mas têm igualmente necessidade de seguir protocolos e estratégias
analíticas. As especialistas sabem sempre mais do que aquilo que são
capazes de dizer (Polanyi, 1962); os seus conhecimentos situam-se mais
naquilo que elas percebem do que nos preceitos.

A Avaliação das Performances

A avaliação das performances não pode ser mais produtiva e precisa


do que as competências escolhidas para a avaliação. As técnicas de ava-
liação, independentemente da sua precisão, não podem ultrapassar as li-
mitações devidas à identificação das competências a avaliar. Pottinger
(1979) pôs em relevo os limites de duas estratégias de identificação de
competências correntemente utilizadas: o consenso experto e a análise do
trabalho.
Sabemos pouco sobre a maneira de avaliar a capacidade de uma pessoa
reconhecer ou procurar os problemas a resolver, ou sobre a capacidade de
estabe-lecer as escolhas ou as estratégias de resolução. Assim, no projecto
AMICAE, esforçaram-se por identificar as competências evidentes na
prática real - por exemplo, capacidades tais como enfrentar situações de
1 71

alto risco; a estabilidade face ao stress, os cuidados eficazes e compassivos


dispensados aos recém-nascidos indefesos ou a doentes em coma (ou a ou-
tros doentes incapazes de se proteger sozinhos ou que pedem um certo
nível de cuidados); encontrar o problema "no momento" e resolvê-lo "no
momento" (por exemplo, resolver o problema em situações de crise ou
quando os pedidos são numerosos); fazer face à dor de outra pessoa; ou
fazer prova de empatia em relação a moribundos. Mas conhecemos melhor
a maneira de avaliar a capacidade de resolver os problemas quando a
situação se reduz a defini-los e a propor opções. Os outros aspectos do
processo de resolução de problemas, tais como encontrá-los e estabelecer
soluções, são muitas vezes negligenciados.

Identificação dos Domínios e de Competências

No decorrer das entrevistas, pediu-se às enfermeiras que descrevessem


episódios onde cuidavam de doentes, sob a forma de narrações tão deta-
lh!idas quanto possível, expondo igualmente o que elas pensavam então e a
sua interpretação dos acontecimentos, assim como a cronologia das acções
e dos resultados. As transcrições e as notas tomadas no momento foram
estudadas. Trinta e uma competência emergiram desta análise, que foram
depois classificadas em sete domínios na base da similaridade da função e
da intenção. A força deste método reside na identificação das competências
a .partir de casos reais, e não a partir dos modelos ou das situações
hipotéticas elaboradas por especialistas.
As transcrições das em particular. Um episódio enfermeira-doente podia
conter várias competências conducentes assim a vários exemplos para uma
só narração de interacção enfermeira-doente.
As vantagens deste método de identificação em matéria de cuidados de
~nfermagem são: assinalar pedidos de actuação, recursos e incómodos
verdadeiros e não hipotéticos, uma descrição rica da prática da entrevistas
.e das notas que foram lidas várias vezes tentando passar sistematicamente
do particular ao geral, o que permitiu constatar as incongruências entre a
interpretação das partes e do todo.
As interpretações sob a forma de competências identificadas foram
apresentadas à equipa de pesquisa para validação consensual. Além disso.
esta validação consensual pode ser avaliada pelo leitor que dispõe: de deta-
lhes suficientes para julgar se a competência é c01rectamente descrita, por
72 1 De iniciado a perito

exemplo. Exemplos múltiplos de cada competência permitiram estar certos


das interpretações e impediram aquele que interpretava de dar demasiada
importância a um caso enfermagem. O contexto é conservado e a descrição
é então sintética ou global, e não elementar e processual.
Os sete domínios foram identificados a partir dos exemplos
considerados como representativos de uma competência em particular. As
competências de cada domínio não formam em caso algum uma lista
exaustiva e serão apresentados nos capítulos relacionados com os domínios
específicos. De notar que uma boa descrição da competência depende dos
exemplos. Bons exemplos permitem o reconhecimento de situações
similares, mesmo se acontecer que vários traços sejam totalmente
diferentes. Acentua-se a situação no seu todo e não nas tarefas específicas,
como é o caso quando se ensina um iniciado.
Concluiremos com os pontos comuns observados nos exemplos.
Encorajaremos os leitores a encetar um diálogo activo com a ajuda destes
exemplos, comparando-os com a sua própria prática profissional.

Resumo

Uma abordagem interpretativa fundada na situação e destinada a des-


crever a prática da enfermagem ultrapassa o efeito redutor inerente a
qualquer abordagem da análise das tarefas, quando estas são enumeradas
sem conteúdo e sem objectivo. Além disso, ela ultrapassa o problema das
des-crições globais e demasiado gerais fundadas nas categorias de
processos de cuidados de enfermagem

Os Domínios dos Cuidados de Enfermagem


❖ A função de ajuda
❖ A função de educação, de guia
❖ A função de diagnóstico, de acompanhamento e monitorização do doente
❖ A tomada a cargo eficaz de situações de evolução rápida
❖ A administração e o acompanhamento de protocolos terapêuticos
❖ Assegurar e acompanhar a qualidade dos cuidados de Saúde
❖ As competências em matéria de organização e de repartição das tarefas

1
1'
A FUNÇ1\0 DE i\JlfDA
Os doentes viram-se para as enfermeiras em busca de diferentes tipos de
ajuda que não esperam receber dos outros profissionais de saúde. Procurar
ajuda e recebê-la são dois problemas diferentes. Uma pessoa pode ser
ajudada sem o ter pedido, mas pode pedir ajuda sem ser capaz de a receber.
Acontece mesmo que a "ajuda" não ajude; por vezes, alguns indivíduos
tendo uma grande necessidade de guardar o controlo sobre si-próprios, não
são capazes de admitir que precisam de ajuda, quanto mais recebê-la.
Um grande número das enfermeiras que interrogámos pareciam cons-
cientes do facto de que o problema de receber e procurar ajuda dependia
dos indivíduos. Por vezes, escondiam a ajuda dada aos doentes e a sua
implicação pessoal por detrás de um pouco de humor ou de um ar despreo-
cupado. Em todos os casos, elas têm um cuidado extremo em limitar ao
máximo o sentimento de obrigação do doente para com elas; tentaram ser
delicadas, papel principal do "que presta cuidados" e evitar que se
estabeleça um contracto social ou que o doente se sinta em dívida para com
elas.
Isto não quer dizer que todas as enfermeiras foram de grande ajuda ou
fizeram prova de astúcia nesse papel. Era claro para elas que eram de maior
socorro para alguns doentes do que para outros. Reconheciam
frequentemente o interesse em terem no mesmo serviço enfermeiras
diferentes capazes de se ocuparem de doentes diferentes. No entanto, eu
própria fiquei francamente surpreendida perante a qualidade dos cuidados
que observei. Numa época em que o individualismo é rei e em que o poder
é o estatuto, são admitidos como sendo as forças que motivam as relações
humanas, eu esperava observar jogos de poder; em vez disso, ·encontrei
enfermeiras que lutavam por evitar este tipo de interacção.
No reinado da tecnologia, a dor humana e os dilemas são facilmente
reduzidos a "problemas a resolver". Estudamos separadamente o espírito e
r
76 1 De iniciado a perito

o corpo - o psicológico e o físico -, depois achamos difícil recombinar


estes elementos para efectuar uma abordagem global ou total do doente. Os
exemplos no domínio da ajuda ilustram, no entanto, que uma abordagem
global existe verdadeiramente no contexto prático de uma relação onde
doente. e enfermeira são implicados. A situação e a relação determinam o
que é possível e o que é global. O normal do processo humano de decisão
de alto nível é que a situação estrutura a abordagem, de forma a que a
resposta esteja de acordo com o pedido (Dreyfus, 1979, p. 256-271).
Para fins de estudo, será útil desmembrar as situações e analisá-Ias; na
prática, os que tomam as decisões compreendem a situação graças às suas
experiências passadas, o que lhes permite apreender a globalidade e virar-
se para os aspectos mais importantes. Fazem-no associando os significados
escondidos na situação. Se o nosso conceito de ciência os diz para
ignorarmos estes "significados", então nós somos quebrados por uma
prática holística (Dreyfus, 1980; Benner, imprensa).
Os exemplos deste capítulo mostram o que é o holismo. Demonstram
igualmente que a ajuda trazida pela enfermeira vai para além das definições
estreitas daquilo que é terapêutico, no qual a mudança é considerada em
termos de melhoramento mensurável, de abandono de compromissos ou de
significados impossíveis de manter, ou ainda de estabelecimentos de
objectivos. A ajuda evocada aqui encerra transformações do sentido; trata-
se por vezes simplesmente de ter a coragem de ficar com o doente, de
oferecer o reconforto que a situação permite. As generalidades não ajudam
a descre-ver este tipo de ajuda, que está melhor ilustrado através dos
exemplos de situações particulares expostas pelas enfermeiras.
Como o mostra o quadro que se segue, a função de ajuda foi subdividida
em oito competências, resultantes da análise das observações e das
entrevistas.

Domínio: O Papel da Ajuda

❖ A relação de cura: criar um ambiente propício ao estabelecimento de uma


relação que permita a cura
❖ Tomar medidas para assegurar o confo1to do doente e preservar a sua
personalidade face à dor e a umestado de extrema fraqueza
❖ A presença: estar com o doente
A função de ajuda 1 77

❖ Optimizar a participação do doente para que este controle a sua própria cura
❖ Interpretar os diferentes tipos de dor e escolher as estratégias apropriadas
para as controlar e gerir
❖ Reconfortar e comunicar pelo toque
❖ Trazer um apoio afectivo e informar as famílias dos doentes
❖ Guiar os doentes aquando das mudanças que aconteçam nos planos
emocional e físico - propor novas escolhas, eliminar as antigas: guiar,
educar, servir de intermediário
❖ Agir como mediador psicológico e cultural
❖ Utilizar objectivos com um fim terapêutico
❖ Estabelecer e manter um ambiente terapêutico

A Relação Favorecedora de Recuperação e de Cura:


Criar um Ambiente Propício ao Estabelecimento
de uma Relação Permitindo a Cura

Um certo número de exemplos nos quais as enfermeiras pensaram que


a sua intervenção tinha feito uma diferença no progresso do doente
mostraram que existia uma relação de cura entre o doente e a enfermeira.
Várias etapas marcam o processo relacional:

❖ Uma esperança comum ao doente e à enfermeira


❖ Uma interpretação ou uma compreensão aceitável da doença, da
dor, do medo, da ansiedade, ou de outras emoções fonte de stress.
❖ Uma ajuda ao doente para aceitar um apoio social, emocional ou
espiritual.

Exemplo 1

Uma enfermeira perita descreve como age com uma jovem


hospitalizada com um cancro da mama em estado avançado. Mãe de uma
78 1 De iniciado a perito

jovem criança, vive numa comunidade. Tentou diversas medicinas naturais


para curar o seu cancro: todas falharam. Está neste momento muito magra
e tem um volume muito importante no peito assim como uma ferida aberta.

O entrevistador - Quando a oiço descrever as suas relações com esta


doente e aquilo que sentia por ela, parece-me que você se sentia investida
em relação a ela. Por exemplo, quando foi esquiar, pensou nela; no
regresso, consultou o dossier dela e foi vê-la embora ela não lhe tivesse
sido atribuída. Quando é que se começou a sentir implicada?
A enfermeira perita - No primeiro dia em que a vi.
O entrevistador - Fale-me um pouco desse primeiro encontro.
A enfermeira perita - O único outro caso de cancro deste género que
eu tinha visto, foi quando eu ainda era estudante de enfermagem (já há
mais de vinte anos), e veio-me logo à memória quando entrei no quarto
dela. A primeira doente que eu tive morreu. Eu sentia que esta podia
ainda viver se - e eu li o dossier dela com atenção - ela seguisse uma
radioterapia, uma quimioterapia, um bom regime alimentar, etc.; ela
podia ainda esperar viver entre oito a dez anos. Ou talvez tivesse a sorte
de se curar totalmente. Para mim, era como um desafio - trabalhar com
alguém naquele estado, ajudá-la a mudar o seu estilo de vida para me-
lhorar a sua saúde.

Comentário Reduzido

No seguimento da entrevista, a enfermeira descreve as suas relações no


decorrer das semanas que seguiram: como tomou conhecimento da forma
como a doente interpretava a sua doença e o seu encorajamento para ter mais
confiança, levando-a a exercitar-se sobre ela (a enfermeira), assim como
sobre os outros membros da equipa médica e a sua farru1ia. Ela ensinou
igualmente à jovem como aumentar as proteínas do seu regime alimentar.
Na sequência da intervenção desta enfermeira, a doente decidiu em-
preender um tratamento médico racional, uma radioterapia e uma quimio-
terapia. A esperança e as estratégias concretas propostas pela enfermeira
permitiram à jovem escolher um programa terapêutico. Finalmente, a
doente deixou o hospital com uma ferida cicatrizada e com a esperança de
que algo era possível. A enfermeira foi a personagem escolhida que
suscitou a esperança nesta jovem e lhe permitiu escolher um tratamento
eficaz.
A função de ajuda 1 79

Exemplo II

A enfermeira perita - O doente, um jovem de dezassete anos que foi


internado com umafractura da coluna ao nível das cervicais posteriores,
é admitido nos cuidados intensivos consciente, com todas as suas
faculdades mentais. Está tetraplégico. Os seus sinais vitais estão estáveis,
a sua respiração superficial, mas aparentemente suficiente. Em 24 horas,
por causa dos movimentos respiratórios insuficientes, manifestou-se uma
perda de capacidade pulmonar. Os médicos decidiram entubá-lo para lhe
assegurar uma pressão positiva no respirador. Por causa da instabilidade
da suafractura, não se podiam empreender quaisquer outras medidas de
ajuda respiratória.
O doente estava extremamente ansioso por causa da entubação. O seu
ritmo respiratório começou a aumentar de forma dramática após a
entubação até ultrapassar os 40, e a sua pressão parcial em gás carbónico
(PCO2) caiu. O doente estava incapaz de reduzir o seu ritmo respiratório
por causa da sua ansiedade extrema. Os médicos pensaram em aumentar
os sedativos - os sedativos leves não lhe traziam qualquer ajuda - para
poder controlar totalmente a ventilação graças ao respirador, o que teve
por efeito aumentar ainda mais a sua ansiedade. Eu conhecia as
implicações que podia ter uma tal medida, tendo em conta os seus enormes
problemas de recuperação e de reeducação; ele não tinha necessidade
disso. Uma questão impunha-se: podia ser evitado? Eu estava impressio-
nada pela atitude positiva e a força de carácter do jovem. Sabia que
podíamos resolver esse problema - a sua ansiedade e por aí a sua polipneia
- sem utilizar métodos tão radicais. Comecei a falar com ele, a tranquilizá-
lo utilizando um tom mais calmo e tranquilo possível. Falei-lhe de uma
forma segura, honesta e profissional, e no entanto com o coração, e intervi
a seu favor e a seu pedido perto dos múltiplos médicos para lhes explicar
aquilo que "eu sentia com as tripas", os meus medos a respeito da sua
cura, e negociar uma trégua afim de tentar resolver esse problema.
Não podia falar por causa dos tubos; não podia escrever porque
estava tetraplégico, e não lhe permitíamos que mexesse a cabeça por
causa da instabilidade da suafractura. O único meio para comunicar era
com os olhos e a sua capacidade espantosa de formar palavras
claramente e de forma compreensível com os lábios.
Levou três horas e meia a relaxar. Precisava de compreender o que
lhe tinha acontecido e o que lhe estava a acontecer. Precisava de ser
80 1 De iniciado a perito

tranquilizado e, sobretudo, de aprender a confiar em nós. Precisava de


saber o que poderia ser o seu futuro. Precisava de saber que nos
preocupávamos com ele enquanto indivíduo, e que não era apenas um
doente qualquer sem defesas. Quando começou a entender isso tudo,
aprendeu a confiar em nós; aí estava a chave. Era necessário que se
sentisse implicado em vez de se submeter aos tratamentos; porque então
sentir-se-ia útil.
Este caso é importante para mim porque representa o conceito que
tenho de cuidados de enfermagem. Quando tratamos este tipo de doentes,
estas considerações ficam muitas vezes lá atrás.
O epílogo foi uma simples declaração feita com os lábios para mim,
mais tarde nesse dia, quando ele pôde reencontrar um ritmo respiratório
por volta dos 20 e que já não se sentia ameaçado de perder os poucos
músculos que ainda funcionavam por uma paralisia química. As suas
palavras foram: "Obrigado. Você ajudou-me mesmo muito. Não quero
imaginar o que se teria passado se não estivesse cá e se não me tivesse
tomado a cargo. "
O entrevistador - Quais foram as suas preocupações, em que pensou
durante esse período de tempo?
A enfermeira perita -As minhas preocupações eram de que eu podia
enganar-me, que lhe estava a causar um stress inútil deixando-o com uma
taxa elevada de C02, e que ele não reagiria. Eu pensava: "Aprende a ser
um lutador desde o início, porque isto só está a começar. Não renuncies.
Se ao menos eu pudesse ganhar a tua confiança. Não quero que te
transformes num vegetal, isto é, um organismo fisiologicamente
controlado por sedativos. Por favor, acalma-te, acalma-te". Senti um
sentimento de urgência. Era absolutamente necessário que o seu ritmo
respiratório diminuísse. Senti pena dele. Senti a necessidade de
conseguir. Estava triste - ele era tão novo e tão cheio de vida e ã sua
juventude tinha-lhe sido retirada. Eu queria que ele tivesse todas as
hipóteses possíveis. Depois, fiquei contente. Tinha o sentimento de
plenitude e ele orgulho. A parte pior foi a frustração. Era preciso manter-
me paciente, guardar um humor igual repetindo as mesmas frases pela
enésima vez.

Comentário Reduzido
A função de ajuda 1 81

Esta enfermeira utilizou o seu julgamento. Estava certa de que o doente


poderia recuperar o controlo do seu ritmo respiratório e que um tal
resultado era importante para o seu moral, e até para a sua cura. Mesmo
assim, como ela claramente o diz, nada lhe permitia estar certa de que a sua
intervenção seria coroada de êxito. O sucesso só foi assegurado depois de
cerca de quatro horas passadas a tranquilizar e encorajar constantemente o
doente.
Tanto neste exemplo como no precedente, a enfermeira utiliza ambas as
suas necessidades e as dos seus doentes; ela encontra uma interpretação ou
uma compreensão da situação que seja aceitável para eles; e ela ajuda-os a
utilizar os seus próprios recursos. No segundo exemplo, a enfermeira diz
ter "ficado impressionada pela atitude positiva e a força de carácter do
jovem". Ela apercebeu-se de que o doente se sentia impotente, e que essa
impotência aumentaria se perdesse o controlo da respiração. No primeiro
exemplo, a enfermeira ajudou a doente a tirar partido dos seus próprios
sistemas de defesa, assim como dos outros meios de cura, integrando ao
mesmo tempo novas estratégias. Em cada caso, as intervenções da
enfermeira provinham do facto de que esta se sentia implicada, e de que é
essa implicação que parece ser a característica do papel de ajuda da
enfermeira.

Tomar Medidas para Assegurar o Conforto do Doente


e a Preservação da sua Personalidade face à Dor
e a um estado de extrema Fraqueza

Muitas enfermeiras devem enfrentar o facto de elas ou outras pessoas


não poderem fazer muita coisa para prolongar a vida de um doente. Em
contrapartida, é muitas vezes possível melhorar a qualidade de vida, por
mais curta que ela seja, dos seus últimos dias no hospital. Enquanto ela
deve ser capaz de renunciar a tentar salvar a vida de um doente a qualquer
preço, a enfermeira não deve evitar o doente, e deve além disso encontrar
meios de o reconfortar, a ele e à sua farru1ia.

Exemplo I

Uma enfermeira perita descreve como os seus colegas e ela acompa-


1

82 1 De iniciado a perito

Tratava-se de u111a m1tlher de oitenta e seis anos que sofria de


bro11cop11ew11011ia crónica há vários a11os. Tin/1afeito vários tratamentos
de aco111pa11ha111e11to e conhecido várias i11terve11ções por parte dos
médicos. O sell fi/lw, que lhe era m1tito chegado, passou muito tempo a
cuidar dela. Foi admitida 11ova111e11te no 11osso serviço a semana passada.
Estava mllito doente. O seu fillzo falou com o médico e tomou a decisão
de que a equipa médica /lCIO a devia tratar mais. Tudo o qlle devíamos
fazer era deixá-la morrer tra11qllila e confortavelmente.
Ela era minha paciente, e 1u7o era porqlle eles já não iriam fazer mais
1wda por ela que isso significava que eu pararia de me ornpar dela. Eu
fazia-lhe então a higiene. Ela tinha 11ma pequena mala com todos os seus
objectos pessoais. Eu já a conhecia há wn certo te111po. Ela era muito
Jlleticulosa e Jlluito limpa. Eu Festi-lhe então uma das s1ws camisas de
dormir e endireitei-a co111 a ajuda dos travesseiros. Eu não pensava que
o que fazia por ela era extraordinário. Mas o selt filho disse-me no fim,
que tinha sido muito i111porta11/e para ele, \'er q11e as enfer111eiras ainda
se til1/za111 ocltpado da sua mãe.

Exemplo 1/

Uma enfermeira perita descreve como trata de uma diabética cega e


gravemente doente.

E 11esse dia, nós lavámos-lhe os cabelos, o que 11ão tinha sido feito
desde há semanas. Leva11tá1110-la da cw11a e fizemo-la sentar-se. Esse
si111ples exercício encantou-a, porque ela tinha estado tc7o doente que
linha sido obrigada a fica,· deitada de costas, onde w1w escara se estm•a
a formai: Todos estes peque11os nadas - lc1\'ar-lhe o cabelo, sentá-la,
mobilizar-lhe braços e pernas - fora/ll um verdadeiro prazer para ela. E
ela fez-nos saber disso.
Conjiolt-me o quanto era maravilhoso ter pessoas que lhe liam algo,
rntiio eu trouxe lllll /i1•ro. Ela tinha-me falado de u111 livro que lhe inte-
ressava, entc7o a sua prima, que era estudante de enfernwge111 no serl'iço,
e eu, orga11izámo-11os para lho lermos cada uma por sua \'ez.. E ela
adorava isso.
A função de ajuda \ 83

Comentário Reduzido

Nos dois exemplos, a personalidade do doente é tomada em conside-


ração pela enfermeira. A enfermeira deve ser capaz de ultrapassar o estado
de espírito habitual que consiste em "agir para" e em "curar" o doente. Em
vez disso, deve contribuir para fazer sentir ao doente que ele é uma pessoa
por inteiro com tudo o que isso subentende de respeito pela sua dignidade.

A Presença: Estar com o Doente

Levamos muitas vezes as enfermeiras a acreditar, ao longo da sua


formação, que serão mais eficazes se fizerem alguma coisa pelo doente.
Várias enfermeiras notaram, no entanto, a importância essencial que
representava o simples facto de estar lá:

Exemplo I

A enfermeira perita - Trata-se de uma relação de pessoa para pessoa.


Contentamo-nos em estar lá e em comunicar verdadeiramente com as
pessoas. E, por vezes, ressentimos uma espécie de intimidade. Você fala
de empatia e não sei mais o quê: mas quando alguém tem medo, basta
sentarmo-nos e ouvir, por vezes nem é preciso dizer seja o que for. Eu
penso que se trata de uma coisa importante porque eu tento sempre obter
uma resposta. Mas constatei que, quando me calava e me contentava em
ouvir, era mais eficaz; é preciso apenas que alguém esteja ali para ouvir
o outro exprimir as suas preocupações, e não se é necessariamente
obrigado a propor uma resposta, sugerir algo ou resolver um problema;
mas apenas porque tiveram a oportunidade de falar com alguém, isso
toma as coisas mais fáceis.

Exemplo II

Observação de uma enfermeira perita por um entrevistador:


Elizabeth, enfermeira experiente, tratando de um doente que tinha
tido um choque séptico e tinha tido arrepios terríveis. Quando a situação
r
84 1 De iniciado a perito

ficou sob controlo e que já não havia mais nada a fazei; Elizabeth
segurou o doente pelos ombros com muita firmeza, si111ples111e11te para
estar com ele durante esses momentos terríveis. Parecia-lhe que, pela sua
simples presença, ela reconfortava o doente.

Exemplo 1/l

A enfermeira perita - Uma mulherfoi admitida com diverticulose. Ela


tinha sofrido uma 111astecto111ia bilateral e, quando Lhe fizeram uma
Laparotomia, descobriram que o cancro Lhe tinha i11vacliclo todo o
abdómen. Só conseguiram abri-la e tornar a fechai: O médico que a
tratou falou com o marido dela e recomendou-lhe que nc"io dissesse nada
à mu-Lher até que ela se tivesse recomposto ela intervenção. O seu
prognóstico era negro. Ela tinha provavelmente apenas mais algumas
semanas de vicia. Lembro-me bem do dia em que ela ia morrer e em que
esperávamos todas que o filho dela chegasse do Texas. Ele já não l'ia a
mãe há vários anos e esta queria absolutamente vê-lo alltes de morrer.
Ela delirava e o seu marido estava cheio de medo que o filho não
chegasse a tempo. Eu passava muito tempo com ele no quarto da mulher
falando com os dois e fazendo a higiene da doente. Ela estava
incontinente e sangrava por vários sítios. Viemos a saber depois que o
avião do filho estava com duas horas de atraso, o que só aumentou a
angústia de todos. O filho acabou por chegar e eu expliquei-lhe aquilo
que ele devia esperar encontrar quando entrasse no quarto. Passaram
quinze minutos juntos, os três, antes que ela morresse. Ela estava
desperta e falava o tempo todo. Chorámos todos nesse dia, espantados e
reforçados por essa demons-traçc"io de força de caráctei:

Comentário Reduzido

As enfermeiras peritas estão conscientes aqui do valor da sua presença


junto dos doentes. Elas insistem muito na importância do toque e das
relações pessoais entre o doente e a enfermeira. Elas falam também da
necessidade de permitir aos seus doentes que exprimam o que ressentem,
muitas vezes sem que elas tenham que intervir.
A função de ajuda 1 85

Optimizar a Participação do Doente


para que ele controle a sua própria recuperação

Esta competência implica pelo menos duas componentes: ser capaz de


sentir num doente a força, a energia, o desejo e a capacidade de melhorar;
canalizar essas forças na relação entre a enfermeira e o doente. Em certos
casos, a enfermeira deve defender a causa do doente - por exemplo,
protestar contra uma intervenção técnica potencialmente perigosa,
preferindo que o doente controle e melhore ele próprio a sua condição. Em
certos casos, trata-se de negociar para ganhar tempo.
Em situações como estas, as enfermeiras utilizaram os laços que as
uniam aos seus doentes, para fazer ressaltar a sua implicação e o controle
de que são capazes. Por detrás desta competência, encontra-se uma
determinação destinada a permitir ao doente ter um melhor controlo sobre
a sua vida.

Exemplo I

Uma enfermeira perita descreve vanos episódios respeitantes a uma


doente idosa que se está a restabelecer de um ligeiro ataque. A doente,
pianista de concertos, está deprimida por causa da fraqueza da sua mão
direita. Trata-se de convencê-la a tratar-se com uma cinesiterapia que ela
recusa.

Eu contento-me em sentar-me, ouvir e falar-lhe. Não lhe digo que


quero que ela se trate com uma cinesiterapia, mas essa é a minha
intenção. Digo-lhe que ela está a começar afazer progressos. "Compare
com há dois dias atrás: hoje, consegue mexer um pouco melhor os dedos.
Você fez progressos por causa dos exercícios. Se continuar com os
exercícios, eu penso que poderá utilizar as mãos ainda melhor." Eu
encorajo-a, fazendo-a ver os aspectos positivos, porque ela só focaliza os
negativos, assim como aquilo que ela já não consegue fazer. Lembro-lhe
que, quando foi admitida, o seu braço já praticamente não tinha força e
que era preciso ajudá-la a comer. Neste momento, ela consegue segurar
so-zinha uma chávena, mexer os dedos e levantar o braço acima da
cabeça. Eu digo-lhe: "Olhe, não conseguia fazer isso ontem e consegue
fazê-lo hoje. Começo a enumerar todas as coisas que consigo ver e que
86 1 De iniciado a perito

não tinha visto 110 dia anterio1: Depois da nossa conversa, ela tratoll-Se
com llma cinesiterapia.

Com o passar do tempo, a enfermeira perita vai continuar a fazer notar


à paciente os progressos que constata e a dar-lhe uma ideia do tempo
necessário para a sua cura. Ela relativiza as limitações sentidas pela
paciente, diz-lhe que a sua cura é possível e que ela poderá novamente
ensinar a tocar piano. A paciente quer continuar a fazer tanto quanto antes.
A enfermeira pede à sua filha que traga ao hospital um teclado de trabalho
para a sua mãe. As três examinam os meios de conseguir períodos de
repouso e de evitar as escadas no domicílio para que ela possa continuar a
ensinar a tocar piano aos seus alunos.

Exemplo li

O doente, um lto111em de tri11ta e seis anos operado várias vezes, tinha


sofrido várias co111plicações. Ti11ha anrecede11tes de úlcera e rinha sido
rransferido de w11 outro hospital depois de uma operação a wna pancrea-
tite hemorrágica. Tinha sido operado uma vez mais; rinham-lhe rirado
quase rodo o pâncreas, e tubos saíam-lhe por todos os lados. Tinha uma
enorme ferida abdominal, várias pe1furações, etc. Como tinha sido
sempre independente, era-lhe extremamente difícil aceitar o facto de estar
doente e sem defesa. Teve altos e baixos 110 pós operatório, até estar tão
furioso e tão deprimido que recusou qualquer tratamento, inten1enção e
tra11sfusão. Recusava igualmente levantar-se ou tomar conta de si mesmo.
Já 110s conhecíamos relativamente bem, então, flli falar com ele. Ele
disse-me: "Estou farto de ser picado a todo o 1110mento e de não ter uma
palavra a dizei: Sinto-me muito indefeso. As pessoas estão sempre afazer-
me alguma coisa'" Respondi-lhe qlle, tendo em conta o seu estado e a
necessidade do imernamemo, ia ser dijfcil mudar as coisas, mas que ele
podia modificar a forma de Per a situação. Disse-lhe que ele tinha feito a
escolha de vir para aquele hospital para ser melhor tratado, e que, em vez
de pensar que fazíamos as coisas contra ele, podia considerar que tudo
era feito para ele, para o ajudar a melhorar; que em vez de se selllir
desarmado face ao que lhe fazíamos fisicamente, ele era o único a poder
ajudar-se mentalmente guardando tudo isto 110 pensamento... que era
preciso que ele se lembrasse que ele é uma pessoa ... nüo apenas um
doente.
A função de ajuda 1 87

Como ele ficou muito calmo enquanto eu lhe falava, eu não podia
saber em absoluto se tinha conseguido convencê-lo. Eu pensava por
momentos que exigia demais, mas salientei que, enquanto amiga, sentia-
me obrigada a dizer o que pensava.
Na manhã seguinte, quando eu cheguei ao trabalho, vi-o sentado no
corredor, olhando pela janela. Perguntei-lhe o que tinha mudado para ele,
e ele respondeu-me: "Você tinha razão! Eu vou deixá-la ajudar-me a
curar-me o mais depressa possível!"
Acreditei verdadeiramente que tinha feito uma diferença na vida desse
homem ajudando-o a enfrentar as circunstâncias que ele pensava não
controlar, simplesmente ajudando-o a apelar aos seus recursos internos.

Comentário Reduzido

Nestes dois exemplos, a enfermeira ajuda o paciente a compreender que


ele exerce um certo controlo sobre o que lhe fazem e que ele participa na
sua cura. Muitos pacientes sentem-se pouco implicados na sua cura e no
seu tratamento; muitas vezes, é a enfermeira que ajuda o paciente a
recuperar o sentimento de que participa, e a um certo controlo sobre as
coisas.

Interpretar os diferentes tipos de dor


e escolher as estratégias apropriadas para os controlar e gerir

Existe toda uma panóplia de tratamentos com vista a responder a tipos


particulares de dor. A escolha da estratégia apropriada ao bom momento faz
parte integrante do domínio de competência da enfermeira, como o ilustra
o exemplo seguinte:

Exemplo

A enfermeira perita em psiquiatria - Fui chamada às urgências para


intervir numa situação de crise. O médico dizia que o paciente estava
histérico, que se queixava de dores fortes nas costas, mas que esse caso
era psiquiátrico. Eu vi o jovem e constatei que ele sofria realmente muito.
88 1 De iniciado a perito

Tinha caído de u111a altura de 5 111etros alguns meses antes, e estava à


espera de uma decisão a respeito da sua illcapacidade para o trabalho.
Estava histérico em parte porque llillguém acreditava nele, e talllbém
provavelmellte por causa do facto de que o seu caso iria em breve passar
no tribunal. Eu pe1Zsei qlle havia dois aspectos no seu problema. Por lllll
lado, nüo era indicado admiti-lo na psiqlliatria, porque classificado como
proveniente da psiquiatria, o seu caso seria menos credível na jllstiça.
Pensei, por outro lado, qlle alguém que sofria tanto não devia entrar nwll
serviço de psiquiatria. Se era preciso admiti-lo 110 hospital, seria 11w11
serviço de medicina para exames 111ais alargados.
Pude obter lima prescriçüo de Demerol, o que o ajudou. O seu co1po
estava agitado por espasmos. A pessoa que inten•eio na altura da crise
seguinte apoioll a 111inha decisão e o paciente foi mmulado para casa. Os
pacientes qlle soji·em enorl/lemente torna111-se histéricos, sobretlldo
quando não acredita/li neles. Fiqllei 111uito sati~feita com a minha
decisão.

Proporcionar conforto e comunicar pelo toque

As enfermeiras utilizam muitas vezes o toque para reconfortar e esta-


belecer um contacto com um paciente fechado e deprimido. Este tipo de
contacto, cheio de calor humano, é muitas vezes o único meio que permite
o reconforto e a comunicação.

Exemplo I

Nota do observador: Elisabethfoi lavar as lllãos e tirou lima bisnaga


de crellle da gaveta do paciente. Ela ajudou-o a tirar a parte de ci111a do
pijama e sentoll-se na borda da cama. Ele tem um ar apático e nüo parece
i11cli1Zado à comunicação. Elizabeth pôs muito creme /las müos e
preveniu-o que ia estar frio - e pediu desclllpa por isso. Durante uns
momentos, ela massajou-o com as müos. Noutros momentos, ela
e~fregou-o vi-gorosamente com a 111üo direita, mas visivelmente com
suavidade. Ainda Hão tinha havido nutitas trocas verbais /lesta altura.
Elisabeth disse-lhe que gostaria de o massajar mais tempo, 111as
consagrou-lhe menos tempo, parece-me, em relação ao que eu a tinha
A função de ajuda \ 89

visto fazer a um doente quando a carga de serviço era menor. Quando a


massagem terminou, ela pegou numa toalha e limpou o excesso de creme
das costas do doente. Ela disse-lhe que tentariam recomeçar a operação
mais tarde. No corredor, perguntei-lhe coisas sobre esta sessão: tratava-
se de um cuidado habitual? Ela disse que sim: já há algum tempo que este
paciente tinha problemas nas costas. Perguntei-lhe qual era o problema
dele. Tinham-lhe tirado um pedaço do cólon e ele tinha agora uma
colostomia. Ela disse-me: "Encontraram um grande tumor cancerígeno
e ele está muito mal, mas não fala muito daquilo que sente. Eu utilizo a
massagem nas costas como uma ocasião para falar com ele e comunicar
de maneira diferente com ele. "

Exemplo II

A enfermeira perita - Tratava-se de uma urgência. Estávamos a


ocupar-nos de uma paciente, a entubá-la, etc. No meio daquilo tudo, ela
precisava de alguém, e éramos as únicas a segurar-lhe a mão. Ela estava
em lágrimas. Não sabia o que se estava a passa,: Ela era surda, mas
sabia que era grave; ela chorava - víamos as lágrimas deslizar pela cara.
Os médicos tentavam entubá-la, e Ana, a outra enfermeira, e eu
estávamos simplesmente sentadas ali no meio de toda esta agitação. Nós
só lhe segurávamos a mão e repetíamos: "Está tudo bem." Sentíamos que
era uma das coisas mais importantes a fazer. Porque ela precisava de
alguém e porque só podia ser reconfortada e tranquilizada pelo toque e
pela vista.

Comentário Reduzido

As enfermeiras utilizaram tradicionalmente o toque como uma


abordagem terapêutica. Ele veicula tanto mensagens de apoio como um
reconforto e uma estimulação física. Trata-se talvez do simbólico da
imposição das mãos, característica dos cuidados de enfermagem. Mas, à
semelhança de qualquer outra forma de comunicação, o toque veicula
numerosas mensagens e deve ser utilizado com discernimento.
T
90 1 De iniciado a perito

Proporcionar apoio afectivo e informar as famílias dos doentes

As enfermeiras relataram vários exemplos que sublinham a importância


do papel das famílias como interlocutores na cura do doente, importância
tão determinante quanto a do tratamento. Assim, a enfermeira apoia e
optimiza o papel positivo dos membros da família na cura do doente,
dando-lhes as informações necessárias para lhe providenciar cuidados
físicos e trazendo-lhes um apoio afectivo.

Exemplo l

A enfermeira perita - Tivemos um doente adlllitido num estado muito


crítico com UI/la ruptura de aneurisma. Não pensávamos que fosse
sobrevive,: A sua mulher não tinha família, ninguém para a apoia,: Só
havia ela e o marido. Não tinham tido filhos.
Eu pude ficar com ela. Levei-a à cafetaria e tentei, ao longo de toda
a refeição, fazer-Lhe entender o estado do marido.
Num grande número ele serviços de cuidados intensivos, as visitas ,uio
são admitidas. Se isso se compreende para os relacional/lentos afastados,
eu penso que é bom, tanto para o doente como para a sua família mais
próxima, estarem unidos.
Era muito importante para ela estar com o marido, tanto que eu fiz
tudo o que pude para que ela pudesse entrar e ir sentar-se perto da cal/la.
Era tudo o que ela queria. Depois falámos, respondi a todas as suas
perguntas e expliquei-lhe o que estávalllos afazer ao marido, que acabou
por fazer diálise. E aí, mais ullla vez, tomei o cuidado de lhe explicar
tudo. Depois disso, ela telefonou-Jlle para casa uma ou duas vezes.
Sinto-/lle muito satisfeita quando posso agir assim. Depois, quando o
doente voltou para casa, o seu estado melhorou bastallte.

Exemplo II

A enfermeira perita _ Eu fiquei com a parturiente que estava em


trabalho de parto. Já havia três horas e nada tinha lllUdado. Eujá tinha
chegado ao ponto em que já nem lhe queria dizer nada. Ela sentia-se tão
mal. Já tinha tomado llleclica/llentos e queria que o parto avançasse, //las
A função de ajuda 1 91

não era o caso. O marido, muito presente, queria tomar conta dela.
Quando eu a quis ajudar a ir à casa de banho, ele pediu para o fazer. Tirei
então as garrafas do pé de perfasão e levei toda a gente. E em vez de ser
eu a dizer-lhe que ela estava a ir muito bem com a relaxação e a
respiração.foi ele que tomou tudo em mãos, tão bem que eu o deixei fazer,
até porque me apercebia que ele o fazia bem e que tinha necessidade de
o fazer.
Entretanto, o médico chamou-me para saber em que ponto ela estava.
Não tinha havido nenhum progresso mas o trabalho de parto estava
normal. E ele disse-me: "Então, damos-lhe mais uma hora." Mas como a
situação continuava a não evoluir, ele quis fazer uma cesariana...
O médico veio e disse: "Vamos fazer-lha agora." Pedi-lhe que a
fizesse na sala de partos, deforma a que o marido pudesse estar presente,
porque os maridos não são admitidos na sala de operações. Além disso,
ela queria permanecer acordada; consegui encontrar um anestesista
habituado a este género de situações. Tudo correu bem. O marido pôde
ficar com a mulher e tirar fotografias.

Comentário Reduzido

Nestes dois exemplos, a enfermeira toma em linha de conta tanto as


necessidades dos membros da falD11ia, como as dos doentes. Ela deve saber
quando se deve apagar e permitir aos membros da família terem um maior
papel, e quando os deve substituir.

Guiar os doentes aquando de mudanças que aconteçam


nos planos emocional e físico - Propor uma nova escolha,
eliminar as antigas; guiar, educar, servir de intermediária

A enfermeira na psiquiatria tem funções específicas no hospital quando


surgem crises agudas, por causa da própria natureza da doença mental e do
contexto do serviço em psiquiatria. Enquanto que a maioria das
enfermeiras utilizam os seus conhecimentos de cuidados de enfermagem
em psiquiatria com bastante regularidade, as competências enumeradas
neste domínio são oriundas de um serviço psiquiátrico de urgência de um
hospital geral. O que distingue estas competências, são os objectivos
terapêuticos específicos e os fins da enfermeira em psiquiatria.
-
92 1 De iniciado a perito

Esta última utiliza vários meios para levar um doente a desenvolver as


suas possibilidades. Ela guia e serve de mediador para ajudar as pessoas
num estado de grande confusão a abrirem um caminho em direcção a um
mundo mais normal e menos deformado. A enfermeira é directa, firme, e
aborda o doente tentando ser tão clara quanto possível. Ao tentar ajudar as
pessoas a mudar, a enfermeira age como um mediador psicológico e
cultural; utiliza objectivos com um fim terapêutico; esforça-se por
estabelecer e manter um ambiente terapêutico.

Agir con10 mediador psicológico e cultural

Os doentes psiquiátricos são muitas vezes marginais; eles não sentem e


não vêem as coisas da mesma maneira que as pessoas "normais"; um
grande número de regras normais para os outros não significam nada para
eles. Assim, a enfermeira em psiquiatria serve de intermediária entre o
doente e um mundo mais normal. Ela aprende a compreender os doentes
com a singularidade deles; ela aprende a linguagem particular deles, assim
como os sentimentos que escondem o comportamento deles e as palavras
que eles empregam; ela aprende a compreender os significados deformados
que as coisas têm para eles e que lhes são próprios.
A enfermeira aprende a compreender e a lembrar-se de que os doentes
não compreendem - o que só pode ser tomado por garantido quando nos
relacionamos com eles. Ela aprende a "ler" certos doentes. Por exemplo a
estimar e distinguir certos níveis de regressão, de forma a saber que tipo de
linguagem utilizar. Ela sabe se um doente está em perigo. Finalmente, a
enfermeira precisa de aprender os esquemas e cenários que os doentes
fazem para antecipar as suas respostas face a um acontecimento qualquer.
Na base desta perspicácia, encontra-se uma abertura e uma aceitação da
"diferença" do doente. Por vezes, as enfermeiras compreendem logo, gra-
ças à experiência que adquiriram ao longo da sua carreira com doentes que
têm um problema particular.

Exemplo 1

A enfermeira perita em psiquiatria- Eu estava afazer a ronda. Entrei


e disse: "Bom dia, eu sou a Sue. Você deve ser a Anne." E ela respondeu:
A função de ajuda 1 93

" O que é que isso lhe interessa? Eu sou completamente louca." Achei-
lhe piada: "Então porque não me fala sobre isso?" Eu sabia desde o
início que havia muito sofrimento por debaixo daquela linguagem
agressiva - uma tal intensidade, quase uma agonia. Eu nem sequer
conhecia a história dela, não sabia nada sobre ela. Mas isso eu sabia. E,
ao longo do mês seguinte, eu descobri o porquê de todo esse sofrimento.

Por vezes, as experiências com um doente ultrapassam completamente


a enfermeira. Nesse caso, a compreensão vem permitindo aos doentes
ensinar à enfermeira o que significa estar no estado deles, "pôr-se na pele"
deles.

Exemplo II

Uma enfermeira perita em psiquiatria conta o que aprendeu com um


doente que sofria de uma deficiência motora cerebral.

Ela ensinou-me o que era estar prisioneira num corpo que não quer
fazer aquilo que queremos que ele faça. Ela ensinou-me o que era ser
mirada pelas outras pessoas e ser tratada como se fosse uma atrasada
mental, embora o seu espírito fosse são. Mas como o queixo cai, ou a
forma de falar é diferente, ou o aspecto é estranho, ou os braços têm
movimentos descoordenados, é-se tratado como se o espírito também
tivesse sofrido lesões. Ela ensinou-me o que era dispender tanto tempo e
energia tentando controlar o corpo até chegar ao ponto de não ter forças
para fazer seja o que for.

Ao mesmo tempo que a enfermeira em psiquiatria tenta compreender o


que o doente quer dizer, ela tenta também ensinar-lhe o que é o mundo das
pessoas normais. Ela trabalha também de forma diferente para criar uma
cultura comum partilhada no serviço ou num grupo e na qual todos podem
participar. A enfermeira fá-lo, traduzindo para os doentes aquilo que o
comportamento deles quer dizer para os outros, e explica igualmente o
doente aos membros do grupo de forma a que eles o compreendam e não o
excluam por causa do seu comportamento.
Por exemplo, uma enfermeira dirá a um doente: "As pessoas vão
zangar-se se lhes falar dessa maneira", e explicará também o que os outros
r
94 1 De iniciado a perito

farão ou não. A enfermeira faz isso pondo claramente em relevo as suas


expectativas, estabelecendo objectivos, estabelecendo regras às quais as
pessoas devem obedecer e ajudando-as a consegui-lo.
Ela transmite aos doentes uma linguagem com a qual eles podem
exprimir o que sentem, de forma a que os outros possam compreender e não
se sentirem ameaçados. Aí, podemos considerar a enfermeira em
psiquiatria como um mediador psicológico e cultural para os doentes,
porque ela os ajuda a tornarem-se seres mais sociais que poderão
relacionar-se sa-tisfatoriamente com os outros.
Este papel de mediador e diplomata dependerá da posição que a
enfermeira vai adaptar em relação ao doente - posição que a separará do
doente mas que lhe permitirá estar de qualquer maneira na possibilidade de
o ajudar. A enfermeira está com o doente, mas sem simbiose; ela conserva
a sua própria personalidade e a sua integridade mental. As enfermeiras não
são postas em perigo pelas percepções ou pelo comportamento dos doentes.
O último sucesso do doente (melhoramento sintomático ou
comportamental, cura, etc.) não deve ser atribuído à habilidade ou à
reputação da enfermeira; o seu valor intrínseco vai para o doente. Em
outros termos, a enfermeira está do lado do doente para o bem deste último
e não para obter satisfação nas relações de dependência ou por ambição
pessoal. Uma vez que o ego do doente é perturbado e as suas fronteiras são
frágeis, a atitude da enfermeira reduz muitas vezes a tensão ou o stress
vivido pelo doente, e permite-lhe explorar novas possibilidades. O doente
já não precisa de resis-tir ao terapeuta para conseguir definir-se a si mesmo.
Há muitas maneiras de observar isto nos factos. Por exemplo, a
enfermeira não aceita a responsabilidade no lugar do doente, mas reenvia-
lha. A responsabilidade da vida do doente pertence-lhe, assim como todas
as reivindicações de sucesso. Isto pode revelar-se difícil de fazer, mas a
enfermeira em psiquiatria restitui a vida ao doente.

Exemplo III

A enfermeira perita em psiquiatria (falando com o entrevistador) - E


eu pe11so que é preciso explicar clarame11te as coisas ao doente, a saber:
o que eu espero de si é que tome conta de si mesmo, e que não me peça
para o fazer por si. Eu não sou responsável por si; o facto de que eu seja
i l respo11sável por mim já é um trabalho a tempo i11teiro. E quando você
A função de ajuda 1 95

começar a ser responsável por si mesmo, isso também lhe vai tomar o
tempo todo. Podemos dizer uma mensagem destas com muita
amabilidade e delicadeza, mas penso que deve ser dito ...

Comentário Reduzido

A mediação psicológica e cultural constitui uma competência


importante que as enfermeiras demoram a adquirir. Elas conseguem-no, ao
mesmo tempo que vão melhorando a capacidade de desenvolver relações
terapêuticas e interpretar um largo leque de noções e comportamentos
normais e anormais.

Utilizar objectivos terapeuticamente

Ao dar a possibilidade ao doente de se investir numa terapia, e isto num


largo período de tempo, a enfermeira faz sobressair a utilidade dos
objectivos. Estes últimos devem ser realistas, estar ao alcance do indivíduo,
e visar uma melhor integração social e psicologicamente. A enfermeira
deve também ajudar o doente a reconhecer quando ele foi bem sucedido.
Esta competência difere daquela que consiste em fazer uma avaliação
do potencial do doente a melhorar e a responder aos diferentes
procedimentos de tratamento (este ponto será discutido mais tarde), no
sentido em que uma tal intervenção só é possível quando a enfermeira fez
uma avalia-ção correcta. A utilização de objectivos com fins terapêuticos
necessita que a enfermeira não se engane nem no nível de dificuldade do
objectivo a atingir, nem na escolha do momento mais apropriado para fazer
progredir o doente.

Exemplo

A enfermeira perita em psiquiatria (descrição de uma paciente em te-


rapia de grupo) - Ela estabeleceu o contacto com os seus filhos numa
altura em que já não os via há muito tempo. Ela tem agora com eles
relações sãs e vê-os quase todos os fins de semana. Leva-os para casa
dela. Responde às perguntas deles quando lhe perguntam porque é que
T

96 1 De iniciado a perito

não pode estar se111pre com eles: "Não é porque vocês séio crianças más,
mas porque me pede111 demasiado. É porque eu nüo posso corresponde,:
Isto néio quer dizer que eu néio gosto de vocês ou que não vos quero ver
e que néio me interesso pelo que vocês fazem." Ela age de u111aforma tüo
responsável que eu estou mesmo orgulhosa dela.
No ano passado, ela teve as suas primeiras férias, porque tinha
trabalhado o tempo suficiente enquanto assalariada para poder
beneficiar de férias pagas. Foi absolutamente maravilhoso para ela.
Quero dizer. .. parece tão simples, mas uma das coisas que te11ta111os
passar ao grupo, é que se se querem sentir bem na pele deles, devem fazer
coisas que podem ajudar nesse sentido. Sabe, as pessoas não se sentem
bem quando se dei-xam tomar a cargo por instituições como os serviços
sociais. Se se qui-ser sentir bem na sua pele, deverá provavelmente to111ar
medidas que permitirão sentir-se melho1: Parece tão evidente. E, no
entanto, o psiquiatra quase que não fala disso. Eu néio sei se eu alguma
vez ouvi falar disso estes anos todos nos quais eu trabalhei no serviço.
Isto é, que se se qui-ser sentir melhor, deve empreender coisas razoáveis...
E comportar-se como um cidadão responsável faz parte disso. Nós
enfatizamos a responsabilidade, uma responsabilidade completa. Se não
consegui,; aceite-o. E se se trata de algo que deve ser feito - co1110
ocupar-se das crianças, etc-, então confie esse cuidado disso a alguém
capaz.

Comentário Reduzido

Neste exemplo, a enfermeira descreve os objectivos muito práticos e


muito realistas que visavam a doente e que ela conseguiu atingir. Incapaz
de ter os seus filhos com ela o tempo todo, ela pôde ser honesta com eles
no que diz respeito aos seus limites. A sua capacidade para o fazer é uma
grande realização. A enfermeira reconhece-o e o orgulho que ela ressente a
esse respeito ajuda a doente a ver o quanto ela melhorou e a medir o que
alcançou. As férias pagas são outro progresso. A sua capacidade de
encontrar um meio de estar com os filhos e o facto de que tenha conseguido
manter o emprego são sucessos no domínio da socialização, que poderiam
ter sido o resultado da melhoria do seu estado psicológico, mas que nos
levam igualmente àquilo que dizíamos anteriormente: essa mulher recebeu
a ajuda necessária para se sentir melhor na sua pele.

el,,
A função de ajuda 1 97

Estabelecer e manter um ambiente terapêutico

Os doentes interpretam o sentido dos acontecimentos psiquiátricos tais


como o exibicionismo, o suicídio, reacções alérgicas aos medicamentos, a
alta do hospital, a melhoria do seu estado - em relação, por um lado à sua
própria capacidade de melhorar, de se controlar, e por outro lado à
capacidade do pessoal em impedi-los de se prejudicarem, ajudá-los a
melhorar. Assim, a enfermeira e os outros membros da equipa de
psiquiatria devem preocupar-se com os significados que deverão
provavelmente ser sentidos e compreendidos por outros doentes, quando se
produzirem alterações notáveis no interior do grupo terapêutico. Isto
significa que a enfermeira deve tentar saber como os doentes interpretam
os acontecimentos psiquiátricos e como tentam reinterpretar ou reformular
o significado do acontecimento, se este é um obstáculo aos objectivos
terapêuticos (por exemplo, a esperança, a confiança, a segurança do grupo
terapêutico).
O grupo terapêutico fornece também um microcosmos de sistema
social, uma rede de relações, uma cena que permite pôr a nu as questões de
conflito e de cooperação. Assim, esta comunidade constitui uma ferramenta
terapêutica de base que, enquanto tal, deve ser estabelecida, controlada e
mantida. Como o dizia uma enfermeira: "As coisas que se passam no
serviço são vividas por cada um de maneira diferente. Por exemplo, se um
doente que sai diz: "Não estou pronto para sair", ou se um doente é
transferido para um serviço fechado, ou é amarrado, ou tenta suicidar-se, os
ou-tros vão perguntar-se: "vocês vão-me fazer sair demasiado cedo ... ou
vão-me transferir ... ou amarrar-me ... ?"

Exemplo

A enfermeira perita em psiquiatria - Era um dia pa1ticular para mim:


um doente tinha-se suicidado no serviço (durante a noite) e o psiquiatra
não tinha vindo.
Avisámos a família e demos à equipa a escolha de.ficar ou não para
a sessão de grupo com os doentes: depois de os ter reunido para o
pequeno almoço, falámos-lhes do que se tinha passado e deixámo-los
exprimir o que sentiam. Quisemos enfrentar e responder aos sentimentos
98 1 De iniciado a perito

que esta perda produ::iria, por exemplo: "Porque niio o protegera111?


Vocês podem proteger-me?"
Porque um suicídio provoca o pânico e toma o serviço menos
controlável, nós trabalhámos com os doentes para estabelecer um plano
de emergência especial de três dias, tomando-nos ao mesmo tempo mais
disponíveis em relação ci cada wn. Suprimimos as saídas para fora do
serviço, não demos mais permissões, a menos que as intenções tivessem
sido clarificadas com uma enfermeira especializada, e parámos
temporariamente as admissões.

Comentário Reduzido

A enfermeira tem com os outros membros do grupo terapêutico a


responsabilidade de constituir e manter um ambiente terapêutico. Ela
adquire a competência para tal pela prática, o que implica muitas vezes
explicar aos doentes os acontecimentos que se desencadearam no serviço
para que não sejam mal interpretados ou mal entendidos. Isto implica
igualmente construir e manter relações com os outros membros do grupo
tera-pêutico para criar uma atmosfera de confiança e de comunicação parti-
lhadas.

Resumo e Conclusões

As implicações do que acaba de ser exposto, no plano prático e em


matéria de pesquisa, e as que dizem respeito às perspectivas de carreira e
de formação serão discutidas mais profundamente, respectivamente nos
capítulos 11 e 12. As implicações mais significativas devem ser deixadas
às enfermeiras conhecedoras do seu ofício que examinam estes exemplos
no contexto da sua própria prática. Existem certos limites a estabelecer com
estes exemplos de casos típicos, porque não podem ser nem qualificados
nem formalizados; provêm de uma relação doente-enfermeira, onde esta
última se implica e investe. Embora esta implicação não seja uma
obrigação, pode ser facilitada e reconhecida.
Os exemplos deste capítulo convidam as enfermeiras a estender a sua
capacidade de ajudar, de forma a que o restabelecimento e a estimulação
dos doentes tenha tanta importância como a técnica. Isto necessita expe-
A função de ajuda 1 99

riência para escutar e compreender o que a doença significa para o doente;


o que ela interrompe; e o que significa a sua cura. Estes exemplos incitam
as enfermeiras a estabelecer linhas de conduta destinadas a se tornarem
disponíveis para ajudar os doentes, cada uma das quais sendo específica e
única em função da situação. Eles levam as enfermeiras a correr riscos para
o bem dos doentes. Mas, e isso é o mais importante, encoraja-os a terem o
seu próprio conceito daquilo que significa ajudar. As enfermeiras já não
terão poder ou não melhorarão o seu estatuto se puserem de lado os
conhecimentos únicos simplesmente porque não se podem facilmente
replicar, estandardizar ou interpretar.
CAPÍ1."'ULO 5

A FUNÇÃO DE EDUCA.Ç,\O,
DE ÜRIENTA.Ç~ÃO
Já há muito tempo que as enfermeiras sabem o quanto é importante
educar o doente tendo em vista a intervenção cirúrgica, e depois a
recuperação. As enfermeiras fornecem pistas físicas e temporais ao doente
hospitalizado que não sabe o que o espera durante a doença. Mas o
ambiente hospitalar não é o único aspecto novo e estranho que acompanha
uma doença aguda. A própria doença substitui as respostas familiares do
corpo por outras, não habituais, que os doentes interpretam, correctamente
ou não; por vezes, tomam um sinal de melhoras por um sinal de
agravamento. Portanto, sempre que possível, as enfermeiras avisam os
doentes sobre o que devem esperar, corrigem as más interpretações e
fornecem explicações quando se produzem mudanças físicas.
Os médicos são vistos como demasiado ocupados para falar das
pequenas mISenas que acompanham os sintomas, mesmo se estas
preocupam por vezes os doentes. Estes últimos fazem muitas vezes as
perguntas, primeiro às enfermeiras, depois ao médico. Assim, as
enfermeiras adquirem conhecimentos que lhes permitem guiar um doente
ao longo da sua doença. Tornam familiar aquilo que assusta ou que é
estranho ao doente.
Se já é preciso ser muito competente para educar alguém quando as
condições são boas, torna-se muito mais delicado quando se trata de um
doente que tem medo. As enfermeiras experientes aprenderam a comunicar
e a transmitir informações em situações extremas. Assim, são obrigadas a
utilizar todos os seus recursos pessoais: a atitude, o tom de voz, o humor, a
competência, assim como qualquer outro tipo de abordagem ao doente.
Temos muito a aprender com os conhecimentos não escritos da
enfermeira quando ela exerce funções de educadora e de guia experiente
perto dos doentes. Mas aprender observando peritas necessita ter em conta
o contexto e evitar generalizar demasiado depressa. Por exemplo, a
1

104 1 De iniciado a perito

educadora deve por vezes ser firme e "tornar as coisas em mãos" em vez do
doente que entra em pânico. Mais tarde, essa mesma enfermeira deverá
encorajar o doente a tornar conta de si mesmo. O tornar conta de si mesmo
é altamente recomendado, mas pedir isto no contexto dramático de urna
doença grave é muitas vezes irrealista.
A variabilidade dos pedidos, dos recursos e dos incómodos da situação
vai ao encontro de generalizações independentes do contexto. Por
conseguinte, passar-se-à ao lado de urna grande parte das competências
compreendidas nas funções de educação e de guia da perita se estudarmos
apenas as sessões de educação-orientação formalmente planificadas. É
preciso também observar a maneira como as peritas abordam os cuidados
de enfermagem nesse .domínio. Só simplificaremos esse papel se
procurarmos unicamente a transmissão de informações ou o ensino de
princípios formais, porque a aprendizagem mais significativa encontra-se
na maneira como um doente enfrenta a doença e mobiliza a sua energia
para curar. Estas enfermeira especializadas não propõem apenas
informações, elas oferecem maneiras de ser, de enfrentar e mesmo novas
perspectivas ao doente, graças às possibilidades e ao saber que decorrem de
uma boa prática de cuidados de enfermagem. As suas competências são
enumeradas no quadro que se segue:

Domínio: a Funcão de Educacão e de Guia

❖ O momento: saber quando o doente está pronto a aprender


❖ Ajudar os doentes a interiorizar as implicações da doença e de cura no seu
estilo de vida
❖ Saber e compreender como o doente interpreta a sua doença

❖ Fornecer uma interpretação do estado do doente e dar as razões dos


tratamentos
❖ A função de guia: tornar abordáveis e compreensíveis os aspectos
culturalmente tabu de uma doenca
A função de educação, de orientação 1 105

O Momento: saber quando o doente está pronto a aprender

Se bem que muitos cuidados de enfermagem sigam uma cronologia


bem estabelecida, a descrição é por vezes essencial no que diz respeito ao
momento da intervenção. Saber onde está o doente; em que medida está
aberto às informações; decidir quando o fazer mesmo quando ele não
parece pronto, são aspectos chave para que um doente seja educado
eficazmente.

Exemplo

A enfermeira perita - Tive uma experiência gratificante hoje com um


doente. Efectivamente, pude parar com tudo e passar uma hora e meia
com ele no preciso momento em que ele estava mais desejoso de
aprender. Tratava-se de uma decisão difícil de tomar que implicava parar
com o resto e dizer aos outros que eu não estava.
O entrevistador - Como é que sabia que o doente estava pronto?
A enfermeira perita- Ele deu-mo claramente a entender. Fazia muitas
perguntas. Tinha sido submetido a uma ileostomia dois anos antes e ti-
nham-no finalmente convencido a submeter-se a uma ileostomia
continente. Antes, eu pensava que ele se sentia desarmado por causa da
ope-ração a que se ia submeter. Dir-se-ia que se sentia sujo. Fisicamente,
parecia stressado e nervoso. Consequentemente, considerava tudo isso
no plano físico, com muita amargura. Assim, quando começou a fazer
perguntas, sentiu-se melhor fisicamente, pensando que havia esperança e
que ele aprenderia a enfrentar esse problema físico.

Comentário Reduzido

Embora tivesse sido evidente para esta enfermeira que o doente


estivesse pronto, alguém de fora teria notado que ela tinha chegado a essa
conclusão porque seguia de perto o progresso dele. Ela não tentou aprender
o que quer que seja sobre o doente mais cedo, e não o obrigou a engolir
informações antes que ele lhe tivesse feito entender que estava pronto para
as receber.
1 1

106 1 De iniciado a perito

Ajudar os doentes a interiorizar


as implicações da doença e da recuperação no seu estilo de vida

Em situações de cuidados em que tudo o que se pode esperar é uma


deficiência temporária ou permanente, a enfermeira ajuda muitas vezes os
doentes a tirar o melhor partido das suas capacidades para continuar a levar
uma vida activa e aceitável.

Exemplo 1

Uma enfermeira perita descreve o papel que ela teve, no início da sua
carreira, ao ajudar uma mulher gravemente deficiente a reencontrar o gosto
pela vida.

Quando ell era 111uito jove111, trabalhava para a Associaçéio das


Enferllleiras Visitantes. U111a das mulheres a quel/l eu fiz u111a visita já nao
saía do quarto há cinco anos e estava silllpleslllente a 111orrer de depressao.
Tinha tido um ataque e néio tinha tido lllllita reabilitaçao. Tinha pen/ido
completamente o uso de wll braço e a sua perna direita mexia 11/lliro pouco.
Na época, ell néio sabia grande coisa sobre as suas hipóteses de cura. Nc7o
havia qualqllerprescriçéio para sessões de Cinesiterapia. "O coraçéio dela
está el/l lllCllt estado, os exercícios poderiam matá-la", dissera111-111e ( é
preciso lelllbrar qlle isto foi há muitos anos). Eu respondi: "Ela está a
morrer de qualquer maneira, está a morrer porque o seu universo se red11z
a quatro paredes." E eu quis que 111e deixasse111 ajlldá-la. Pedi aurori::.açüo
ao médico e insisti para que ele lhe prescre1•esse sessões de Cinesiterapia.
Eu prometi dizer à doente e ao seu 111arido que era 111/l grande risco e que
poderia 111orre1: O médico deu-111e a autorizaçüo a contra-gosto e ell ji::. a
mulher jêzzer os exercícios. Fi-la sair da ca111a. Fui buscar um livm à bi-
blioteca sobre a Cinesiterapia, e li muitas coisas porque sabia pouco sobre
o assunto. Evidentemente, ela nunca lllais tomou a ganhar o uso da s11a
llléio e do seu braço, mas acabou por conseguir andar com ajuda. E 110
primeiro dia em que saiu do qum1o, desatoll a chora,: Morreu cinco anos
e //leio lllais tarde quando estava a preparar o janta,: Tinha aprendido a
descascar batatas usando a mcw válida, apel1ando-as co/ltra o seu braço
paralisado. Era u111a 111ulher maravilhosa que 111orria porque era tratada
como 11111a inválida, se sentia inútil e jâ nüo tinha esperança.
A função de educação, de orientação 1 107

Exemplo II

A enfermeira perita - Este incidente em particular produziu-se


quando eu trabalhava na saúde pública. Examinávamos os dossiers de
alunos do liceu que tinham problemas de saúde. Encontrei o de um jovem
que não ia às aulas, mas tinha aulas em casa, porque andava de cadeira
de rodas. Tinha uma forma rara de miopatia, e ficava em casa
simplesmente porque o seu pai era incapaz de o pôr na carrinha para o
levar à escola. Tinha ficado fechado em casa durante todo o Verão.
Eu fui ver o responsável pela assistência aos estudantes, e soube mais
um pouco acerca dele, nomeadamente que era possível visitá-lo. Foi o
que eu fiz. Descobri que não havia instalação nenhuma em casa para o
ajudar. O pai carregava-o para todo o lado. Havia rampas para a
cadeira de rodas, mas nada na casa de banho, nada láfora. Colllactei a
Associação de Ajuda aos Miopatas que fez todos os arranjos de graça.
Forneceram-lhe igualmente um meio de transporte para todas as suas
deslocações.
Ele estava fisicamente muito debilitado - a doença progredia sem
parar e os pais tinham-no levado a tantos médicos que ele já estava
enjoado disso. Depois de terem tentado tudo, a estratégia agora era dar-
lhe vitaminas e pô-lo num regime vegetariano, se bem que ele tinha
muitas carências alimentares. À partida, o meu papel foi o de melhorar o
seu tratamento médico, o que não tinha sido feito.
O entrevistador - Como é que fez?
A enfermeira perita - Discuti muito com a família. O que se tinha
passado, era que eles tinham ido consultar muitos médicos que lhes
tinham dito que já não havia esperança. Eles tinham lido muitos artigos
para encontrar novos tratamentos, do género suplementos de vitaminas,
regime vegetariano, abordagem global... Eles tinham procurado tudo o
que lhes pudesse dar um pouco de esperança. De facto, a abordagem
deles consistiu em melhorar a sua alimentação.
A taxa dele de hemoglobina era muito baixa. Nós falámos muito e ele
aceitou ser visto por um médico. O seu regime foi completado com
vitaminas e proteínas para assegurar que ele recebesse a boa quantidade
de nutrientes.
Falando com a família, eu soube que o que ele mais gostaria era de
fazer rádio. Ele tinha uma voz muito bonita. O que ele lamentava mais
era não ter contactos com os camaradas de turma uma vez que ele tinha
i"

108 1 De iniciado a perito

as aulas em casa. Ele gostava de ver os encontros desportivos. Tinha sido,


até ao ano a11terio1; comentador de encontros de futebol, coisa que ele já
não podia fazer no momento. Achei uma 111aneira de o transportar aos
encontros e instalou-se um microfone mais baixo de forma a que ele o
pudesse alcançar. Um mês passou... Ele continuou a apreselltar os
encontros de futebol e terminou o ano no liceu. Recebeu melhores
cuidados médicos ao colmatar o seu vazio afectivo com o contacto com os
colegas.
O entrevistador - Se a estou a compreender bem, ningué111 se tinha
interessado a esse problema antes de si. Porquê você?
A enfermeira perita - Quando eu examinei o dossier dele, eu pensei
que a primeira coisa a perguntar era o que é que estava errado e porque
é que ele já não ia às aulas. Primeiro informei-me sobre a natureza da
doença dele e sobre o que tinha sido feito para esse rapaz. Queria ver se
já tinham tentado tudo. Como tinha sido feita pouca coisa, eu pensei que
era muito importante fazer algo - era preciso responder às suas
necessidades. Fiquei 111uito swpresa ao constatar que nada tinha sido
feito.
O entrevistador - Quanto tempo ficou implicada com essa família?
A enfermeira perita - A instalação do equipamento necessário levou
duas a três semanas. A Associação de Ajuda aos Miopatas foi extraor-
dinária: em dois meses, a casa tinha sido inteiramente renovada; e111 duas
semanas, ele pôde voltar à escola e recomeçar a comentar os encontros
de futebol.
O entrevistador - Que diferença pensa que isso terá tido na vida desse
rapaz?
A enfermeira perita - Ele estava muito 111ais sorridente. De facto,
estava radiante e parecia muito mais forte.

Comentário Reduzido

Nestes dois exemplos, as enfermeiras viram o quanto era importante


para os doentes tentar continuar actividades normais e constataram o
quanto eram nefastos a inactividade e o isolamento. Elas também
forneceram ao doente e aos membros da faITIJ1ia opções que permitiam
voltar a uma vida normal apesar das deficiências físicas.

__
, _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _J
b. ..
A função de educação, de orientação 1 109

Saber compreender como o doente interpreta a sua doença

As enfermeiras devem lembrar-se - e é o que fazem as enfermeiras


experientes - que os doentes têm muitas vezes a sua própria interpretação
e a sua própria compreensão do seu estado. Dar-lhes a ocasião de se
exprimirem nesse ponto, respeitando ao mesmo tempo a sua interpretação,
pode ter um papel importante na experiência que tem o doente sobre a sua
doença, assim como sobre a sua cura.

Exemplo I

Uma enfermeira perita descreve de que forma descobriu como uma


jovem interpretava o seu cancro da mama.

A enfermeira perita - A doente falou-me muito da sua vida sexual


passada e disse-me a que ponto ela não queria ter filhos. Mas sendo
facilmente influenciável, ela teve um filho não desejado que ela pensava
ser a causa do seu cancro. Ela pensava que isso não teria acontecido se
ela não tivesse cedido ao seu marido.
O entrevistador - O que é que você respondeu a isso?
A enfermeira perita - Eu ouvi-a. Depois, eu disse: "Deve ser mesmo
muito duro para si de se sentir tão culpada, se você pensa que essa é
mesmo a causa da sua doença. " E era o caso.
O entrevistador - Ela perguntou-lhe de alguma forma se tinha sido a
gravidez que tinha sido a causa do seu cancro ou você achou que ela só
estava a falar-lhe do que pensava?
A enfermeira perita - Ela só me estava a falar do que pensava.

Exemplo II

A doente era uma mulher de cerca de trinta anos que sofria de colite
ulcerosa e tinham acabado de lhe fazer a primeira parte de uma
intervenção em dois tempos. A primeira parte consistia na criação de um
bolso rectal (similar àquele que se faz no caso de uma ileostomia
continente, só que a pessoa guarda o controle do seu esfíncter anal e não
tem estomia). A pessoa tinha uma ileostomia temporal - a continuidade
l l O I De iniciado a perito

do illlesti110 sendo restabelecida depois - da qual ela devia cuidar


durante alguns 111eses. Ela queria aprender esses cuidados, 111as não
hesitou em dizer que {/chava isso 11ojelllo.
Eu ensinei-lhe a mudar o sen bolso e a cuidar da pele à 1•0/ta da
estomia. Eu não tentei fazê-la mud{lr de opillião quanto nojo. Eu respeitei
o seu pollto de vista: isso enojava-a mas ela {/prenderia a ocupar-se disso
de qualquer 11/{llleira. Eu assegurei-me de que ela tinha compreendido a
anatomia e a função, assim co1110 os 111eios 111ais simples para cuidar
disso. Dei-lhe conselhos p{lra o tomar menos visível (por exe111plo,
cobrindo-o com um tecido; já que ela Hão gostava do contacto directo
com a esto111ia, ela podia retirar a bolsa usada e li111par a pele à volta
est{lndo debaixo do chuveiro). Eu penso que fiz a diferenç{l {ICeif{llldo o
estado de espírito 110 qual ela est{lva nwis do que tentando convencê-la
de que {/ ileosto111ia nüo era 11111a catástrofe e que ela não devia ter ,wjo.
(Nota do entrevistador: Est{l doente fez saber à enfermeira que estes
co/lselhos nêío lhe tillham sido p{lrtirnlarmente úteis.)

Comentário Reduzido

No primeiro caso, a enfermeira especializada não discutiu a


interpretação que o doente fazia da sua doença. Ao mesmo tempo que
reconheceu a dificuldade e a dor moral que esta interpretação devia
acarretar, ela contentou-se de deixar a doente partilhar essa informação com
ela, sem tentar imediatamente convencê-la do seu erro de interpretação.
Esta capacidade de descobrir e compreender a interpretação do doente é
diferente daquela que consiste em propor ao paciente uma interpretação da
sua doença, como será discutido na secção seguinte. Todavia, as duas coisas
têm uma certa ligação entre elas.
No segundo exemplo, a enfermeira não insiste para que a doente mude
de opinião face à sua ileostomia antes de ter aprendido a cuidar dela sozi-
nha. Ela aceita a interpretação da doente e ajuda-a partindo desta óptica.
A função de educação, de orientação 1 111

Fornecer uma interpretação do estado do doente


e dar as razões dos tratamentos

Como se admite cada vez mais que os doentes devem e querem saber o
que lhes fazem, a interpretação e explicação dos tratamentos tornaram-se
papéis chave nos cuidados de enfermagem. Elas necessitam da
competência e da descrição. A enfermeira deve avaliar até que ponto o
doente precisa de informações e quer ser informado. Ela deve, portanto,
encontrar um vocabulário que o doente possa entender. Por vezes, ela deve
também admitir os limites da sua própria compreensão.

Exemplo!

Era uma manhã normal. Os médicos iam e vinham, os doentes iam


fazer exames, etc. Entrei no quarto de uma das minhas doentes. O
cirurgião vascular e o neurocirurgião acabavam de sair. A doente estava
com afilha e elas falavam da operação que ia ser feita. A doente estava
a cegar a pouco e pouco por causa de um aneurisma ao nível do nervo
óptico e, antes de vir para o nosso hospital, o seu marido tinha sido
admitido num serviço de cuidados intensivos em Santa Bárbara por
causa de um enfarte. Dadas as circunstâncias, a doente tinha medo: a
operação que ela devia fazer consistia em derivar as artérias cranianas,
e depois fazer uma craniotomia para retirar o aneurisma, uma vez
diminuída a compressão deste último.
Eu perguntei-lhe como se sentia. As suas primeiras palavras foram:
"Era mesmo necessário que eu fizesse esta operação? Pensa que ela
esteja em perigo?", ao que eu respondi: "Você tem os melhores
cirurgiões e eu não posso tomar essa decisão por si."
Ela respirou profundamente e co111eçou a exprimir todos os seus
medos e as suas angústias com respeito a esta operação. Ela dizia que
pensava que, se ela não se submetesse a essa operação, de certeza que
cegaria progressivamente, mas que ela estaria viva. Se fosse operada, ela
poderia morrer, cegar completa111ente, estar.fisicamente e definitiva111ente
deficiente, mas poderia viver com o que lhe resta de visão. Em vez de
abundar no seu sentido e de fazer comentários, eu contentei-111e e111 calar-
me. Eu pensei que mais valia deixá-la exprimir-se. U111a vez terminado o
seu monólogo, eu perguntei-lhe se ela queria que eu lhe explicasse o que
112 [ De iniciado a perito

se ia passa,; e ela aceitou. Peguei nu111a cabeça "fiuitasma ", da qual se


pode tirar e identificar todas as partes - o cérebro, os ossos, as l'eias, as
artérias, etc. Dura11/e a lwra que se seguiu, brincá111os com as peças e
pude responder às suas perguntas. No final, a doente tinha decidido que,
ao ponto em que tinha chegado, ia fazer a operação.
Quando deixei o quarto, senti que a doente tinha tomado a decisão
certa mas que a tinha tomado sozinha. Estava colllente comigo mes111a
porque eu lhe tinha feito uma descrição muito precisa do que lhe seria
feito, com termos que ela podia entender. Tinha tentado ficar 11eutra e
guanlar um espírito aberto nas minhas respostas às suas perguntas. Isto
foi, penso eu, uma experiência muito positiva para ela tanto como para
mi111. Infelizmente, a operaçêio 11ão deu os resultados previstos. Ela me-
llwrou depois, graças a muitos cuidados. Encontra-se actualme11te nu111
centro de reeducação e recupera 111uito bem.

Exemplo li

Relato de um médico sobre a sua experiência de internamento. Todas


as enfermeiras do serviço telllaram fazer a sua própria avaliaçiio do
moral dos seus doentes, assim como do seu estado físico. Por vezes, eu
tentava mostrar-me de bom humo,; 111as elas viam que eu fingia. Numa
segunda-feira, dia 111e111orável, como eu estava deprimido e isso notava-
se, a e11fer111eira que estava de serviço perguntou-me delicadamente o que
niio estava bem. Eu nêio sabia. Chorava copiosamente, coisa que eu
nunca faço. Não tinha vergonha, mas, perguntava-me o que me estava a
acontece,: Elas disseram, com segurança: "Nós va111os descobrir o que
é", e continuou a pôr-me perguntas. Ela queria saber: "O barulho do
exterior incomoda-o?". Apercebi-me que sim. Depois de um momento de
reflexêio, ela disse: "É a "bola" de demoliçiio que bate contra o que resta
do Bellevue. Você não ouviu esse barulho nem sábado nem do111ingo, mas
ouviu-o na sexta, quando lhe retirámos o "balão" intra-aórtico. Você
passou um mau bocado. Nüo só se le111bra da dor que isso pro\'Ocou,
como se lembra também da forma co1110 o "balüo" ressoava no interior
do seu co,po nestes dias difíceis. Aposto que essa dor lhe volta à
memória." A minha tristeza desapareceu. U111a outra vez, quando me
sentia i11co111odado ao ouvir lllll excerto de música 110 meu gira-discos,
uma e11fermeirafaz-me notar que era a cassete que me tinham dado 11uma
A função de educação, de orientação 1 113

das primeiras semanas de sofrimento e que, de novo, ela poderia


lembrar-me esse período. Passaram-se semanas antes que eu pudesse
ouvir música clássica sem medo. (Kempe, 1979)

Comentário Reduzido

Nestes exemplos, as enfermeiras, conscientes do facto de que os seus


doentes "procuravam qualquer sinal" de progresso, ou de ausência de
progresso, responderam totalmente ou de forma convincente aos seus
pedidos de explicação.

A Função de guia: tornar abordáveis e compreensíveis


os aspectos culturalmente inacessíveis de um doente

A doença, a dor, o desfiguramento, a morte e até o nascimento, são de


longe as experiências que evitamos falar e comentar, porque são, tabu na
nossa cultura. É inútil que cada um se prepare com antecedência para as
múltiplas experiências possíveis que pode acarretar a doença, já que a
doença e a dor tendem a ser provas pessoais e espaçadas no tempo. Pelo
inverso, as enfermeiras, pela sua formação e experiência, desenvolvem
capacidades de observação e de compreensão as diferentes formas de viver
e de enfrentar a doença, o sofrimento, a dor, a morte ou o nascimento.
Oferecem assim aos seus doentes meios de compreender, de controlar me-
lhor, de aceitar e até de triunfar face àquilo que lhes pode acontecer e que
eles não conhecem.
Na formação profissional preparatória, junta-se a importância
determinante da experiência para desenvolver esta competência: é
impossível aprender esses comportamentos face à doença assim como
enfrentá-los aprendendo unicamente os princípios. É necessária uma
compreensão profunda da situação, e muitas vezes as maneiras de ser e de
enfrentar são transmitidas sem o uso da palavra, mas simplesmente pelo
exemplo, pela atitude e pela forma de reagir.
114 1 De iniciado a perito

Exemplo I

Uma enfermeira descreve o seu encontro com um jovem que tem quase
a mesma idade que ela e que estava de visita ao pai moribundo. O estado
deste último tinha-se deteriorado subitamente e a família estava
completamente desalentada. O filho parou a enfermeira no corredor e
perguntou-lhe quanto tempo de vida tinha o pai. A enfermeira disse que,
sinceramente, ela não sabia e que podia ser uma questão de minutos, horas,
dias ou semanas - não havia meio de saber. Ele perguntou então se havia
outros doentes moribundos no serviço. A enfermeira confirmou.

Houve um longo silêncio. Depois, ele começou a pôr-me Ullla data de


perguntas: Como é que conseguia trabalhar num sítio daqueles; como é
que eu conseguia ir para casa e dormir de noite; como conseguia ter essa
profissão? Nunca ninguém me tinha interrogado tão directamente antes e
essa agressividade surpreendeu-me: Mas ele era sincero e esperava a
minha resposta, e eu expliquei-lhe como é que eu própria tinha respondido
a essas perguntas. Não foi totalmente um monólogo, mas durante dez
minutos ele ouviu atentamente as minhas explicações, a minha filosofia de
vida e de morte, assim como o meu conceito sobre os cuidados de
enfermagem. Eu contei-lhe como, a pouco e pouco, tinha ficado na
medicina em vez de utilizar esse serviço como trampolim para ir para a
cirurgia (que era minha intenção 110 início). Expliquei-lhe o quanto era
difícil e desgastante 110 plano emocional e que, por vezes, eu tinha
dificuldades em adormecer à noite. Disse-lhe que se podia encontrar
satisfação ao acompanhar um doente nessa passagem a que chamamos
1
morte e que me sentia capaz de ajudar a falllília a ultrapassar a dor dessa
r passagem. Confessei-lhe que a satisfação, aquilo que me fazia ficar aqui,
1
era saber que, de uma certa forma talvez, eu tinha suavizado um pouco as
' coisas para aqueles que as deviam viver. Depois disso, ele apertou-/lle nos
seus braços e disse-me: "Obrigado". Virou-se fazendo um sinal com a
cabeça, à beira das lágrimas. Eu também tinha lágrimas nos olhos.

Comentário Reduzido

Explicando como o que era naturalmente tabu se tinha tornado


compreensível e abordável, a enfermeira ajudou este jovem a aceitar
A função de educação, de orientação 1 115

melhor a situação. É o que chamamos guiar em cuidados de enfermagem -


as enfermeiras que conseguiram agarrar aquilo que é culturalmente tabu ou
inexplorável podem fornecer ao doente e à sua família modos de enfrentar
a situação.
Num segundo exemplo, sempre no mesmo domínio de competência,
uma enfermeira propõe-nos fazer-nos ver do lado de dentro um momento
crítico da sua aprendizagem, um momento onde é o doente que lhe faz ver
como se podia viver de outra forma e até amar a vida, apesar do
desfiguramento extremo, grandes dores e urna doença grave.

Exemplo II

Uma jovem de trinta e cinco anos tinha sido internada nos cuidados
intensivos. Era diabética desde a infância e, por causa desta doença, tinha
ficado cega. Tinha sofrido a enucleação do olho direito e a amputação,
abaixo do joelho, da perna direita, assim como outras operações. Como se
isto não bastasse, estava agora no hospital por causa de um enfarte. Quando
a enfermeira a encontrou pela primeira vez, a doente estava num estado de
confusão e foi preciso amarrá-la. Toda a gente no serviço pensava que o seu
estado era tão grave que mais valia para ela falecer. Pensavam que era uma
vergonha manter aquela mulher com vida por tentativa terapêutica.
A enfermeira descreve os cuidados dados a esta jovem durante esta fase
e a sua própria mudança de atitude quando esta jovem retomou consciência
e recuperou de novo toda a sua razão:

Falando com esta mulher, eu apercebi-me que nunca tinha visto uma tal
vontade de viver. Apesar de tudo o que lhe tinha acontecido - todas as
destruições que o seu corpo tinha sofrido - ela tinha o melhor
temperamento que eu jamais tinha encontrado. A sua família também
queria que fizéssemos o máximo para a manter com vida. Esta jovem disse-
me que tinha tido muitas dificuldades para convencer as pessoas de que
queria viver. Falou-me de um campo de férias reservado aos diabéticos,
onde tinham hesitado em aceitá-la, temendo que a sua diabetes não se
estabilizasse. A jovem tinha dito aos responsáveis que, se a encontrassem
morta, tinham de se lembrar que tinha morrido feliz ... Saber isso ajuda no
nosso serviço. Ela realmente impressionou-me muito. Era fácil cuidar dela
depois desta conversa ... Eu levava-lhe livros, e com a sua família !íamo-los
às vezes.
116 1 De iniciado a perito

Comentário Reduzido

Trata-se de um exemplo importante, porque a enfermeira descreve nele


uma situação em que foi a sua própria compreensão que se alargou em
contacto com alguém severamente incapacitado. Ela acaba de aprender, de
uma maneira muito directa que, mesmo nas situações mais desesperadas,
há sempre esperança.
Nós reunimos numerosos exemplos neste domínio em particular, dos
cuidados de enfermagem, e ficámos impressionados pelo facto de que, em
cada caso a enfermeira não serve ao doente princípios ou vulgaridades do
género: "mesmo se a incapacidade é importante e que muitas coisas são
impossíveis, eu penso que podemos tirar daí alguma riqueza", que seria um
exemplo de educação rígida à base de princípios. Mas pela maneira como
elas fazem o seu trabalho, como elas abordam uma ferida ou como falam
de cura depois de uma operação, as enfermeiras propõem meios de
compreender. E, através da capacidade própria da enfermeira de enfrentar
o problema, tal como uma ferida difícil de drenar, o doente pode acabar por
sentir que o problema é abordável e se pode gerir.
Numa sessão restrita, o grupo pensou que as informações dadas pela
enfermeira a uma doente com uma mastectomia deviam ter sido muito
eficazes porque esta lhe perguntou se ela mesma tinha sido submetida a
uma. A enfermeira era muito competente e as suas explicações muito claras
em relação ao que a doente devia esperar depois da operação; ela não tinha
feito aquela operação e tinha aprendido em contacto com muitas doentes
quais eram as diferentes reacções possíveis e a que momento
aproximadamente chegaria a dor, a recuperação e a mobilidade depois da
operação.

Resumo e Conclusões

Eu estou convencida de que as cinco competências enumeradas neste


domínio representavam apenas uma fracção das competências demons-
tradas pela enfermeira nas suas funções de guia e de educadora. Elas são
características dos pedidos ouvidos pelas enfermeiras que trabalham com
doentes gravemente atingidos. Nós fizemos progressos estudando quais são
as informações que o doente acha mais úteis, mas os resultados de tais
pesquisas só salientarão as necessidades de aprendizagem mais tangíveis e
A função de educação, de orientação 1 117

mais facilmente reconhecíveis. Passarão ao lado dos aspectos menos visí-


veis que são a aprendizagem de novos meios de interpretação das respostas
do corpo, novos meios de existir e de enfrentar uma doença. Eu penso que
as enfermeiras em sala de trabalho nas maternidades desenvolveram mais
totalmente o seu papel "de guia" que as enfermeiras das outras
especialidades. Devemos conduzir estudos etnográficos sobre as estratégias
eficazes ou não nas diferentes especialidades, ao mesmo tempo para
estabelecer e desenvolver essas competências, e para colectar e preservar
esses conhecimentos práticos para os nossos doentes.
CAPÍTULO 6

A l?UNÇ1lO DE DL\GNÓSrfll~O
E DE VIGIL.4.NCIA DO DOENTE
A enfermeira viu a sua função de diagnóstico e de vigilância
desenvolver-se de forma importante, à medida que o número de doenças e
de intervenções por doente aumentou de uma forma quase exponencial no
decorrer dos últimos decénios. Numerosos testes diagnósticos e
intervenções terapêuticas necessitam uma vigilância atenta, e as margens
de segurança são muitas vezes pequenas. A enfermeira que cuida de
doentes que sofreram um transplante, por exemplo, aprende rapidamente a
reco-nhecer os primeiros sinais de infecção e de rejeição. A que se
especializa em cardiologia aprende a reconhecer a zona estreita que existe
entre a segurança e a toxicidade de um certo número de medicamentos
fortes. E a maior parte das especialidades necessitam uma vigilância muito
cerrada do equilíbrio hidro-electrolítico. A vigilância prudente e a detecção
precoce dos problemas são a primeira forma de defesa do doente.
Numerosos medicamentos só podem ser utilizados sem perigo se
seguirmos os seus efeitos, e se as suas incompatibilidades e efeitos
secundários forem descobertos muito cedo.
De facto, se a função de diagnóstico e de vigilância da enfermeira não é
necessária, o doente em geral não é hospitalizado, porque este último ou a sua
famHia podem seguir as prescrições em casa. Assim, as funções de
diagnóstico e de vigilância do doente constituem a tarefa principal da
enfermeira, mesmo se as enfermeiras não conseguem fazer reconhecer
completamente este papel. Contando como elas detectaram precocemente
sinais de alarme, as enfermeiras muitas vezes relataram os factos como se
não tivessem sido elas a fazerem a descoberta. Era como se elas dissessem:
"no melhor dos mundos, não há complicações e, no caso contrário, o médico
estará lá para reconhecer os primeiros sinais da deterioração do estado do
doente." Ora, na prática, é a enfermeira que passa mais tempo com o doente
e nota a maior parte das vezes os primeiros sinais. E isso é totalmente normal.
122 1 De iniciado a perito

Temos muito a aprender com os conhecimentos das enfermeiras


especialistas em matéria de diagnóstico e de vigilância. Aqui, a importância
das capacidades de percepção e de reconhecimento é o elemento central. As
enfermeiras, tendo uma grande experiência de doentes similares,
desenvolvem conhecimentos especializados e uma linguagem particular.
Estudando esta linguagem, e pondo-nos de acordo quanto ao seu uso,
vamos melhorar os nossos conhecimentos clínicos e permitir a outros que
adquiram as mesmas competências em matéria de percepção (Benner &
Wrubel, 1982).
Por exemplo, na altura de uma discussão sobre o desenvolvimento dos
conhecimentos clínicos, as enfermeiras falaram do facto de que era
necessário aprender a trabalhar na zona "tampão", isto é, lá onde as
mudanças que se produzem no doente são subtis e onde a segurança é
reduzida. Elas reconhecem a importância de uma reacção rápida e
apropriada sem, no entanto, exagerar. Infelizmente, eu não fui capaz de
continuar a utilizar essa linguagem particular que diz respeito ao trabalho
na zona "tampão". Espero que outros pesquisadores identifiquem mais
competências (consignadas no quadro seguinte) nesse domínio maior dos
cuidados de enfermagem que são a vigilância e o diagnóstico.

Domínio: o Diagnóstico e a Vigilância

❖ Detectar e determinar mudanças significativas do estado do doente


❖ Fornecer um sinal de alarme precoce: antecipar uma crise e uma
deterioração do estado do doente, antes que os sinais explícitos confirmem
o diagnóstico
❖ Antecipar os problemas: pensar no futuro
❖ Compreender os pedidos e os comportamentos tipos de uma doença:
antecipar as necessidades do doente
❖ Avaliar o potencial de cura do doente e responder às diferentes estratégias
do tratamento.
A função de diagnóstico e de vigilância do doente 1 123

Detectar e determinar
as mudanças significativas do estado do doente

As enfermeiras são muitas vezes as primeiras a detectar e a determinar


as mudanças do estado do doente. Ao contrário dos primeiros sinais de
alarme, que veremos mais à frente, estas mudanças podem ser descobertas
com a ajuda dos sinais vitais e de certos dados de observação relativamente
claros. A execução competente deste exame compreende a determinação
precisa e a apresentação clara e convincente do caso do médico. A
enfermeira recentemente diplomada que está a ganhar experiência neste
domínio deve aprender a dominar a arte de reconhecer, de descrever e,
finalmente, de apresentar de forma convincente o caso.
O primeiro exemplo ilustra este processo.

Exemplo I

A enfermeira - No início da minha carreira, encontrei-me numa si-


tuação em que o doente que eu tinha a meu cargo se comportava de
maneira muito estranha. É preciso admitir que se tratava de uma situa-
ção desconcertante. Mas eu saía do quarto a cada vez pensando: "Há
qualquer coisa de estranho." Não fazia um diagnóstico. No início, eu
dizia: "Alguma coisa está mal" e ia ver outra pessoa. Perguntavam-me:
"Como estão os sinais vitais do doente? Como está a ferida? Em que
estado está o doente?" E eu não tinha/eito nada daquilo. Eu contentava-
me em dizer "Eu penso" ou "eu acho" que alguma coisa não está bem,
enquanto que agora, eu faço uma avaliação completa e chamo o médico
imediatamente, se necessário.

Exemplo II

A enfermeira perita - Eu recebo uma doente do serviço de cardiologia


por volta do meio dia. É uma mulher enérgica de cerca de cinquenta anos.
O relatório do enfermeiro da cardiologia indica-me que ela tem uma
insuficiência mitral e que os sinais vitais são estáveis: Pulso a 80, ritmo
sinusal normal, pressão arterial entre 120 e 130 - não me lembro das
pressões diastólicas. Instalámo-la confortavelmente nwna cama e
r
!

124 1 De iniciado a perito

verijimos os sinais vitais, que séio estáveis. Cerca de 30 minutos mais


tarefe, a doente começa a queixar-se vagamente "de niio se sem ir bem". A
sua tenséio cai a 110. O pulso está regular a 90. Chamo sem sucesso o
interno e o médico de serviço; acabo por conseguir o médico de se111iço a
quem transmito as minhas observações e digo que a doente deveria ser
examinada imediatamente. Ele responde-me que vem imediatamente. Eu
tomo mais uma vez os sinais vitais. A tenséio baixou para 104. O pulso
mantém-se estável. Eu noto, pela expressiio do seu rosto, que a doente está
assustada. Eu tranquilizo-a da primeira vez que ela se queixa dizendo-lhe
que o médico está a chegar; durante esse tempo todo, eu peço a uma
estudante de enfermagem que fique com ela. Eu faço parar no corredor o
médico de serviço que vai a passar e explico-lhe a quebra de tensiio e o
estado da doente. Ele diz que já volta. Eu insisto com firmeza para que ele
examine a doente imediatamente, e ele fá-lo; chama entéio lllll outro
médico de serviço para que venha va E ei-los os dois fora do quarto,
comparando as suas observações, um dizendo que ouviu um sopro e o
outro que niio ouviu nada. Enquanto conferenciam, eu começo a
preocupar-me com o estado da doente. Efectivamente, muito tempo se
passou desde que se começou a queixar e, como ela teve wn enfarte
recentemente, eu sinto que é preciso reenviá-la imediatamente para o
serviço de cardiologia. Desde as queixas da doellle até à sua 110va
transferência, 45 minutos se passaram. No final do meu se11 1iço, eu vou ao
serviço de cardiologia para pedir notícias da doente. As enfermeiras
dizem-me que ainda lhe estéio afazer exames para saber o que se passa.
No dia seguinte, de manhéi, venho a saber que a doente morreu de um
tampo-nade cardíaco.

Exemplo Ili

O observador - Karen preparava o dossier de uma mulher que


acabava de ser admitida na sala de partos. As dores cessaram no
momento em que ela entrou. Depois de ter anotado todos os antecedentes
do casal, ela examinou a doente e descobriu que, como dizia o seu
dossie1; ela tinha o útero invertido. Tinha uma dilatação de cerca de um
centímetro e o colo estava mole e flexível. Ela comparou o que descobriu
com o que o médico tinha descoberto na semana anterior. Ela disse: "
você progrediu, mas não penso que seja o momento. Deveria voltar para
A função de diagnóstico e de vigilância do doente 1 125

casa e descansar porque o trabalho de parto começará realmente daqui


a um dia ou dois. "

Comentário Reduzido

A função de avaliação do estado do doente em cuidados de enfermagem


tem um lugar cada vez mais importante. Nestes três exemplos, a primeira
estimativa da enfermeira revela ser essencial para cuidar do doente da me-
lhor maneira possível. Não só esta competência é composta de
reconhecimento, mas também necessita da determinação experiente de
sinais para que o relatório que ela fará ao médico seja suficientemente
convincente.

Fornecer um sinal de alarme precoce:


antecipar uma crise e uma deteriorização do estado do doente
antes que os sinais explícitos confirmem o diagnóstico

Juntámos um certo número de relatos onde a enfermeira antecipa a


deterioração do estado do doente, antes que hajam provas evidentes em
termos de alteração dos sinais vitais ou outros elementos mensuráveis.
Quando estudamos com atenção estes relatos, é claro que a enfermeira não
utiliza às cegas a sua intuição, mas recolhe antes sinais de mudanças subtis
de aparência ou de comportamento do doente.

Exemplo I

A enfermeira perita - Tínhamos uma doente de cerca de sessenta anos


a quem se tinha diagnosticado uma dilatação do esófago por radiografia.
Ela nunca se queixava. Quando voltou da radiografia, os seus sinais
vitais estavam normais e ela foi à casa de banho. Mais tarde, começou a
sentir náuseas, e tinha regorgitações de um msa claro, que podiam ser a
consequência dos processos de dilatação. Mas eu sentia que havia mais
qualquer coisa. O seu estado piorou, ela teve cada vez mais náuseas. Eu
chamei o médico de serviço. Os seus sinais vitais ainda estavam estáveis,
mas eu insisti na mesma para que o médico de serviço a viesse ver. Ele
examinou-a mas não prescreveu nenhum exame. Eu queria encomendar
126 1 De iniciado a perito

sangue. Fiz-lhe notar que as unhas da doente estavam cianosados, o que


não o pareceu preocupm: Estava quase no final do meu serviço; a doente
começou a ter arrepios e febre, tanto que eu tive de chamar o médico de
serviço e dizer-lhe que algo se passava, que eu queria que se fizesse
alguma coisa por ela antes que o meu serviço acabasse. Mais tarde,
descobri que esta doente tinha tido uma ruptura do esófago; teve assim
uma pneumonia de deglutição. O seu pulso tinha-se acelerado até 150. O
médico de serviço reconheceu que a minha teimosia em querer um
tratamento precoce tinha feito a diferença para o futuro da doente.

Exemplo li

A enfermeira perita - Ocupei-me de uma doente idosa encantadora


que se encontrava em isolamento. Ela tinha sido submetida a uma
c/zolecystectomia, tinha saído do hospital e tinha voltado com uma ferida
residual ao nível da incisão, que se revelou ser um horrível magma de
fistulas e de bactérias resistentes. Ela tinha tomado dois ou três
antibióticos potentes durante um certo tempo e tinha diarreia. Eu ia
muitas vezes ao seu quarto por causa dos antibióticos.
Ela começou a agitar-se queixando-se vagamente de "não se sentir
bem". Estava um pouco pálida e comecei a ter um mau "pressentimento"
a seu respeito. Verifiquei os seus sinais vitais à meia-noite - ela tinha
sempre tido a tensão arterial baixa ( 100) -, não tinham variado muito, a
pressão sistólica estava inferior a 100 pela primeira vez desde o seu
internamento: estava a 98. Fiz depois uma avaliação completa do seu
estado e encontrei uma pequena ferida na virilha que a assistellfe não
i ! ! tinha visto. Aquela ferida não devia estar ali. Eu chamei o médico de
serviço que não conhecia a doente e convenci-o a vir vê-la mesmo às três
horas da manhã. Quando ele chegou, era o horror. Ela tinha evacuações
abundantes, líquidas e de um vermelho escuro. A ferida na virilha tinha
aumentado um terço até à anca. Fiz-lhe uma segunda perfusão.
Soubemos mais tarde que o longo tratamento com antibióticos tinha
destruído a sua flora intestinal, o que tinha acarretado um défice em vi-
tamina K. Daí a hemorragia. Ela sobreviveu depois de ter recebido, entre
outras coisas, vitamina K e produtos sanguíneos, mas foi por pouco.
A função de diagnóstico e de vigilância do doente \ 127

Comentário Reduzido

Existe um certo número de exemplos similares de detecção precoce de


mudanças no estado de um doente antes que seja registada a presença de
sinais mensuráveis e objectivos. Esta grande capacidade de
reconhecimento faz muitas vezes a diferença para a recuperação do doente.
A sua eficiência depende, no entanto, da possibilidade que tem a
enfermeira de obter atempadamente a boa resposta por parte do médico.

Antecipar os Problemas: pensar no futuro

As enfermeiras peritas passam muito tempo a pensar na evolução de um


doente. Elas antecipam os problemas que podem surgir, e o que fariam para
os resolver. As suas dúvidas e preocupações a respeito dos doentes que têm
a seu cargo apoiam-se em numerosos casos reais que viram. No entanto, a
sua capacidade de antecipação depende muito do contexto. Ela baseia-se no
que elas observam num doente específico, mais do que no que se poderia
passar com os doentes em geral.
Esta competência implica ter-se uma visão a longo termo, transmitir
bem as informações às enfermeiras que vão ficar de serviço. Algumas
transmissões são descrições retroactivas da forma como o serviço
precedente se passou, o que não permite prever com certeza como o serviço
seguinte se vai passar. Mas certas enfermeiras têm a capacidade de fazer as
suas transmissões, precisando as situações susceptíveis de surgir, assim
como os problemas que esperam uma solução nas oito a dez horas que
estão para vir. Por exemplo, uma enfermeira explica como a sua colega faz
as transmissões à equipa seguinte:

Se for a Sandra Smith a fazer as transmissões, então elas trabalham


melhor porque ela lhes preparou o terreno. Elas não têm que passar a
primeira hora a identificar os problemas. Ela já o fez. Quando ela faz as
transmissões, ela diz-lhes o quejáfez e o quefaltafazer. Depois, elafala
de todos os aspectos que respeitam a cada doente. É extraordinário!
128 1 De iniciado a perito

Exemplo

O entrevistador - Quando espera um novo doente nos cuidados


intensivos, em que pensa enquanto se prepara?
A enfermeira perita - Normalmente, eu penso nos seus amecedentes
e naquilo que devo espera,: Porque o que me poupa mais tempo - e é o
que eu tento mostrar às pessoas porque penso que isso as ajudará a
organizar-se melhor e poupará um máximo de tempo -, é pensar co111
antecedência em tudo o que se poderia produzir, não necessariamente e111
todas as possibilidades teóricas. Mas baseando-nos naquele doente e111
partícula,: .. É possível para mim conhecer a sua pressão pulmona,; o seu
pulso, o tipo de operação a que se vai submetei; o problema cardíaco que
tem, eu posso saber se a sua mulher está angustiada ou não. Com a ajuda
de informações recolhidas.é-me possível supor que tal doente vai sangrar
- o seu hematocrito está elevado e ele poderá ter necessidade de
medicamentos destinados a aumentar o débito cardíaco, tanto que eu vou
preparar esses produtos para que estejam prontos, de forma a que, se
algo se produz, eu não tenho de o fazer no meio de uma crise. Preparo-
me portanto para os acontecimentos que, segundo o que eu penso, se
podem vir a produzir. Não me preparo para algo que só se produz a 3%
do tempo.
O entrevistador - Vive então sempre no futuro?
A enfermeira perita - Sim, e é provavelmente uma das maiores
mudanças que se operou na minha forma de trabalhar nestes últimos
anos. Sou capaz de reagir rapidamente baseando-me e111 avaliações já
feitas e que já mio devo fazei: Vejo o que se passa e ajo. Posso assim
projectar-me no futuro. É uma coisa muito difícil de aprende,: Por vezes,
é difícil para as jovens enfermeiras reagrupar factos e produzir um
processo exploratório. Podemos muitas vezes pensar em termos de
generalidades: "a diurese e a função renal preocupam-me", mas é muito
mais difícil ir mais longe e dizer: "Quanto é que lhe vou dar de beber e
como é que o vou medir? Que critérios devo respeitar; o que é que se vai
passar entretanto?"

Comentário Reduzido

A enfermeira perita trabalha com um olho no futuro. Muitas aprende-


ram no duro que devem estar preparadas para tudo. Consequentemente, têm
A função de diagnóstico e de vigilância do doente 1 129

na cabeça numerosos exemplos de doentes que lhes permitem antecipar a


trajectória de um doente em particular com base nos seus antecedentes e no
seu estado presente. Podem igualmente traduzir as informações actuais em
considerações práticas detalhadas e específicas que possivelmente vão ter
de enfrentar.

Compreender os pedidos e os comportamentos tipos


de uma doença: antecipar as necessidades do doente

As enfermeiras peritas notam que a experiência a longo prazo com


doentes que sofrem de um género particular de doença parece criar uma
abordagem e uma definição particulares desta doença. Várias notaram que
podiam identificar a doença só pela observação da forma como os doentes
a enfrentavam. Elas acrescentam que o conhecimento desses mecanismos
de defesa lhes permite compreender a interpretação que os doentes dão à
doença, e poder assim antecipar as suas necessidades.

Exemplo

A enfermeira perita -Aqui um certo número de pessoas que vêm ser


operadas têm um passado pesado de catites ulcerosas. Em vários planos,
têm um comportamento compulsivo. São pessoas que sempre focalizaram
o seu corpo. Também, apreciam muito mais a mínima pequena melhoria
no pós-operatório que os outros doentes. Muitos são os jovens que foram
hospitalizados várias vezes, tanto que têm um outro conceito do hospital
que aqueles que só o conheceram uma única vez. Estão afogados na sua
doença e, no certo sentido, mais dependentes e exigentes, mas não de
uma maneira que os tornaria antipáticos.
O entrevistador - Você dizia que tinha encontrado alguns pontos em
comum nas pessoas que sofrem de colites ulcerosas. Como é que isso
transparece nos cuidados que lhes dedica?
A enfermeira perita - Eu dou mais explicações sobre o que se vai
passar. Dou todos os pequenos detalhes e explico porquê, tentando
antecipar as perguntas e as angústias. E eu sei que vou ter de passar
muito tempo a educá-los.
130 1 De iniciado a perito

Comentário Reduzido

As enfermeiras peritas parecem ser capazes de identificar


comportamentos particulares nos doentes que sofrem de certas doenças,
assim como distinguir as pequenas manias. Por conseguinte, elas parecem
poder traduzir essas particularidades em meios eficazes que lhes permitem
trabalhar com certos tipos de doentes, meios que minimizam a ansiedade e
optimizam as possibilidades de cura.

Avaliar o potencial de cura do doente


e responder às diversas estratégias de tratamento

As enfermeiras em psiquiatria, para serem eficazes, devem avaliar o


potencial de recuperação do doente. Esse sentimento daquilo que é pos-
sível para um indivíduo serve, ao mesmo tempo, de guia para os objectivos
e as estratégias de tratamento. O potencial de recuperação não é um ideal,
mas uma avaliação realista baseada na ideia de que um indivíduo tem
potencialidades, mesmo se lhe falta um bem-estar e um ajustamento
perfeitos.

Exemplo

A enfermeira perita - O médico disse: "Nós vamos guardá-la apenas


hoje e dar-lhe alta amanhã. Não vejo o que posso fazer por ela". Eu
respondi-lhe: "Custa-me acreditar que se trate da mesma mulher que vi
esta manhã, porque vejo-a como alguém que quer safar-se, e ainda para
mais este é o seu primeiro contacto com a psiquiatria. Ela quer mesmo
ser ajudada. É extremamente brilhante mesmo se a sua educação é
limitada. E eu vejo que ela quer a qualquer preço melhorar. Tudo o que
ela precisa, é de alguém que a possa ajudar nesse processo." ... Eu sou
teimosa e via que esta mulher tinha mesmo necessidade de ajuda, mas a
coisa mais importante foi que eu vi que ela era alguém sensível ao que os
outros pensavam dela e que o seu ego era frágil. Se ela ia ao médico e
compreendia a mensagem verbal e não verbal, que não havia nada a
fazer. .. Eu disse então ao médico: "Eu penso que temos a obrigação de
lhe dar o beneficio da dúvida já que não podemos fazer mais nada, e se
A função de diagnóstico e de vigilância do doente 1 131

acha mesmo que o seu caso é desesperado, então o que eu aconselho, é


que peça a algum colega que se debruce sobre o caso, porque ela
depressa sentirá o que o que você pensa. Ela é tão sensível que vai aceitá-
lo e considerar-se como perdida." Como eu lhe perguntei quanto tempo
ele tinha passado 'com ela, ele respondeu: "Dez minutos." "Então, eu não
penso que dez minutos lhe dêem o direito de decidir se se trata ou não de
um caso desesperado" ... Ele veio ter comigo mais tarde: "Sabe, que
penso que você tinha razão. Estou completamente estupefacto; ela
realmente melhorou e percebo nela uma força e um desejo de curar que
eu não tinha visto antes. Penso que vamos mantê-la no hospital durante
alguns dias e dar-lhe a possibilidade de fazer uma terapia de grupo. Tudo
o que eu lhe queria dizer era que você tinha razão. "

Comentário Reduzido

Neste exemplo, a enfermeira vê que a doente tem o desejo de se curar e


de responder às estratégias de tratamento propostas. Todos os membros da
equipa de cuidados têm uma responsabilidade, isto é, devem dar contas do
que pensam de um doente e transformar essa avaliação de forma eficaz. No
meio psiquiátrico, é corrente que um membro da equipa veja um doente de
forma diferente ou que tenha uma opinião diferente da dos outros
membros, por causa da sua relação particular com o doente. Uma vez certas
da sua avaliação, as enfermeiras são obrigadas a interceder a favor do
doente em termos de avaliação, ou até de reavaliação da situação.

Resumo e Conclusões

Na linguagem da enfermagem, as funções de diagnóstico e de vigilância


convêm muito ao estado de avaliação inicial. No entanto, este domínio é
tão importante, e contém já em si tantas coisas e competências, que uma
grande parte deste conteúdo e destas competências seria negligenciado se
este domínio fosse visto tão só como a primeira etapa de um processo li-
near.
É preciso alimentar os conhecimentos adquiridos pela experiência
sistemática das capacidades de reconhecimento, assim como o
melhoramento da precisão e do consenso à volta da linguagem descritiva
132 1 De iniciado a perito

utilizada no domínio. As cinco competências descritas neste capítulo são


apenas o início.

! !

: 1
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l 1

. 1:
CAPÍTULO 7

A GESTÃO El?ICAZ
DE SITUAÇÕES DE EVOLlTÇÃO RÁPIDA.
É muitas vezes por ser a primeira a reparar nos sinais de deterioração do
estado de um doente que a enfermeira toma a cargo rapidamente as mudanças
de situação, até à chegada do médico. Uma forma de interpretar este domínio
é qualificando-o de "ruptura no sistema" e esperar que as "rupturas" futuras
poderão ser evitadas; trata-se de uma abordagem do tipo "dar conta dos
incidentes". Mas uma tal abordagem é muito inealista e não permite enfrentar
eficazmente a situação. É, por exemplo, ÍITealista pretender que os médicos
estejam sempre ali no momento preciso em que o estado do doente se
deteriorará. As enfermeiras tentam detectar as mudanças muito cedo, de forma
a prever que os médicos estejam disponíveis em caso de urgência; os hospitais
tentam ter médicos de serviço o tempo todo, mas as urgências baralham sempre
a melhor das planificações, e é à enfermeira que cabe tomar tudo a cargo até à
chegada do médico. Muitas vezes, isto significa que é ela que pede os exames
de laboratório ou põe uma pe1fusão para antecipar a injecção em urgência de
medicamentos por via intravenosa. Este domínio deve ser explorado mais
adiante e ser melhor reconhecido, de forma a que as enfermeiras possam estar
melhor preparadas para enfrentar estas situações de crise.
Os hospitais têm equipas sempre prontas para as paragens cardíacas, mas
numerosas urgências ou doentes "cujo estado muda rapidamente" não
relevam destas equipas de reanimação. Um eITo de orientação pode por vezes
pôr de novo o doente numa situação crítica. Os exemplos neste domínio (ver
qua-dro) mostram que a enfermeira coordena e dirige as intervenções dos
outros membros da equipa de saúde. Na altura de uma urgência, a enfermeira
funciona como um generalista que coordena as funções de diversos
especialistas. Em situações que exigem imperativamente acções rápidas, o
doente tem com certeza sorte se urna enfermeira experiente se encontrar aí
para coordenar o conjunto das operações de forma a que enos e actos inúteis
sejam evitados.
136 1 De iniciado a perito

Domínio: Tomada a cargo eficaz de situações de evolução rápida

❖ Competências em alturas de urgências vitais: apreensão rápida de um


problema
❖ Gestão dos acontecimentos: fazer corresponder rapidamente as
necessidades e os recursos em situações de urgência
❖ Identificação e tomada a cargo da crise de um doente até à chegada do
médico

Competências en1 alturas de urgências vitais:


Apreenção rápida de um problema

Este domínio de competência inclui a capacidade de apreender


rapidamente o problema, de intervir de forma apropriada e de avaliar e
mobilizar toda a ajuda possível.

Exemplo I

A enfermeira perita - Pelas 19h30, u!lla sexta-feira à tare/e, o ser1•iço


de urgências estava a abarrota,: Uma grande parte do pessoal estava
ocupado com as vítimas de um acidente da estrada. Foi nesse momento
que as pessoas do SMUR levaram uma mulher de cinquenta anos que se
queixava de dores no peito qlle tinham começado quando estava a
jardina,: As extrasístoles ventriculares ti,1/zam sido tratadas em casa dela
por uma injecção de lidocaina, e uma pe,fusüo tinha sido feita. E11 recebi
a equipa do SMUR e a doente com a qual comecei a fala,: Quando
entrámos na sala 2, a doente disse-me: "vo11 desmaia,:" O monitor
mostrava uma fibrilação velllricula,: Eu pedi que se começasse uma
massagem cardíaca, depois precipitei-llle para ligar o desfibrilador e
chamei o médico. Este, chegou !llesmo no mo!llento e!ll qlle estava pronta
para desfibrilá-la e propôs entubá-la. Eu disse-lhe que não seria
necessário e comecei a desfibrilação, pois eu sabia a que nwnzento a
crise tin/1a começado e queria parar a arritmia tão cedo quanto possfrel.
A gestão eficaz de situações de evolução rápida 1 137

Fiz então a desfibrilação da doente que respondeu imediatamente. De


facto, ela pediu para voltar para casa para tomar um duche. O seu
monitor mostrava um ritmo sinusal regular e os sinais vitais estavam
normais. Este incidente foi gratificante porque a doente curou-se
completamente. O que pôs a sua vida em perigo, foi uma arritmia e não
um enfarte do miocárdio. Ela pôde voltar para casa ao fim de três dias.

Exemplo II

A enfermeira perita - Os enfermeiros de ambulância trouxeram às


urgências uma mulher de sessenta anos que tinha apanhado um tiro de
espingarda de caça ao nível da bacia e das coxas. As pessoas do SMUR
tinham-lhe feito uma perfusão na veia periférica com um cateter de
grande diâmetro, e pingava Ringer a grande velocidade. A ferida, que
apresentava sinais vitais normais, estava consciente. O médico das
urgências examinou-a rapidamente e pediu a opinião de um cirurgião
ortopedista; ele não fez nenhuma prescrição e saiu da sala. Eu sugeri que
se fizesse outra via venosa, fazer radiografias, o grupo sanguíneo e a
compatibilidade para encomendar várias unidades de sangue. O médico
deu o seu acordo para o laboratório e a radiografia, mas pensou que era
inútil fazer outra perfusão ou ter uma pressão venosa já que a doente
"parecia estar bem". Eu pedi as radiografias e os exames sanguíneos que
achei indicados, e apliquei uma pressão manual sempre que possível
sobre as feridas abertas e hemorrágicas da bacia e das coxas. A doente
começou a ficar cada vez mais agitada, angustiada, com sede, com
suores, e os seus sinais vitais começaram a flutuar em função do ritmo da
perfusão. Eu informei o médico das urgências e o cirurgião ortopedista,
pois pensava que esta doente estava a ter um choque hipovolémico e que
era necessário operá-la o mais depressa possível. Nenhum dos dois
pareceu verdadeiramente preocupado; asseguraram-me que a doente ia
ficar "boa ".
Depois, o cirurgião ortopedista disse-me que a doente iria para um
quarto no andar antes de ser operada algumas horas mais tarde. Eu
então enfureci-me e disse que era ridículo, que esta doente não iria
sobreviver algumas horas mais! O médico disse-me que ia ver o que
podia fazer para adiantar a hora da operação, e que era preciso
continuar com a perfusão da doente. Num dado momento, a tensão
r
138 1 De iniciado a perito

sistólica da doellle caiu a 70 mmHg e foi então que eu decidi fazer uma
segunda perfusão e fazer correr Ringer tão depressa quanto possível, em
função da subida da tensão.
Mais ou menos uma hora depois da sua chegada às urgências, a
minha doente foi transportada ao bloco operatório. Teve uma paragelll
cardíaca no momento em que a puseram na mesa de operações mas,
felizmente, pudera/ll reanimá-la. O cirurgião veio mais tarde pedir
desculpa e adlllitiu que esta doente tinha tido um choque hipovolémico e
que ele não devia ter demorado tanto. Eu sabia desde o início que a
minha doente se esvaía e/ll sangue sob os meus olhos. O que me enfureceu
mais, tinha sido a minha impotência em consciencializar os médicos
disso. Eu gostei das desculpas do médico, deve ter sido difícil. Ele tomou
também o tempo de me felicitar pelas minhas competências e disse-me
que pensava que tinha sido eu a manter a doente com vida até à sua
chegada ao bloco.

Comentário Reduzido

No primeiro exemplo, a enfermeira compreende que é preciso agir


imediatamente já que ela viu chegar a fibrilhação ventricular. No segundo,
a enfermeira viu que era importante fazer uma outra via venosa antes que
se tornasse impossível por causa de uma tensão demasiado baixa. Trata-se
aí de um exemplo de competência característico de uma perita.

Gestão dos acontecimentos: fazer corresponder rapidamente


as necessidades e os recursos em situações de urgência

São as enfermeiras as mais presentes nos serviços e que têm a melhor


visão de conjunto do que lá se passa. As enfermeiras peritas fazem notar
muitas vezes que conhecem bem o conjunto da equipa e que têm uma boa
ideia das necessidades dos doentes e dos recursos à sua disposição. Elas
supervisionam o conjunto da situação; estão conscientes disso e utilizam os
recursos de que precisam.
A gestão eficaz de situações de evolução rápida 1 139

Exemplo I

Uma enfermeira perita descreve um dia "tipicamente atípico" num


serviço de urgências.

A enfermeira perita - Era um domingo, a equipa 15-23 horas do


serviço de urgências não tinha tido muito que fazer até por volta das 21
horas, quando uma urgência médica chegou, seguida de uma doente que
sofria de dores no peito, transportada em carro partícula,: Depois, ao
mesmo tempo, um doente que tinha uma crise de asma severa e duas
ambulâncias - uma outra dor no peito e uma hemorragia gastro-
intestinal. Quatro enfermeiras foram encarregadas de avaliar a situação
e começar os tratamentos; nesse momento, chegada de outra ambulância
- coma diabético - na sala de feridos - duas enfermeiras eram
necessárias - depois um bebé de dezassete meses com convulsões de
febre - chamamento do vigilante. Chegada de outro doente em carro -
overdose de pílulas e de álcool, muito agressivo, daí a sua transferência
para a sala 1. Transferência do asmático e da hemorragia grastro-
intestinal para uma sala de espera com uma erifermeira. O vigilante e
uma enfermeira ficaram numa grande sala com o doente do coma
diabético e o bebé em convulsões. Os dois doentes foram estabilizados. A
urgência médica tinha sido vista pelo médico de serviço e estava pronta
para admissão nos cuidados intensivos. O doente agressivo tinha sido
isolado num quarto. Depois de ter visto o doente que sofria de violentas
dores no peito, o médico de serviço mandou-o para a cardiologia. O bebé
pôde regressar a casa.

Estas duas horas são típicas do que se passa num serviço de urgências.
É preciso saber continuamente em que ponto estão os recursos do serviço
e enfrentar o que ocorre. São as enfermeiras que o fazem, o médico tem
raramente uma visão de conjunto do que se passa.

Exemplo II

Uma enfermeira experiente descreve o papel que desempenhou na


tomada a cargo de uma situação de urgência num serviço de cuidados
intensivos.
"1
q

140 1 De iniciado a perito

A enfermeira perita - Nesse momelllo, a maioria dos problemas ti-


nham sido tratados. Uma enfermeira falava com o doente, uma outra
tinha posto a funcionar uma perfusão, uma outra ainda fazia uma
compressão num polllo hemorrágico, e uma última assegurava-se que o
doente estava ventilado.

Comentário Reduzido

Nestes dois exemplos, constatamos que as peritas funcionam como


chefes de orquestra em situações complexas, enfrentando em todas as
frentes, respondendo a todas as necessidades. Elas são particularmente
capazes de separar os problemas, estabelecer rapidamente as prioridades e
delegar no pessoal disponível. Elas sabem como agir face a situações
imprevisíveis e ajustar a sua estratégia em consequência. Além disso, elas
têm confiança na sua própria capacidade, e raramente entram em pânico em
alturas de crise. É preciso muito para destabilizar uma enfermeira perita.

Exemplo III

Jolene, enfermeira perita que trabalha numa unidade de cuidados


intensivos, bateu-se activamente para salvar a vida de um doente cuja
carótida se rompeu. Não entrou em pânico quando lhe disseram que já
l!ão havia sal!gue no banco para esse doente. Em vez disso, ela fez
intervir a pessoa certa para resolver esse problema, o que ajudou tanto o
doente como o interno em pânico (ver capítulo 2).

1 Comentário Reduzido
;'1
'

As enfermeiras peritas possuem um rico leque de experiências que lhes


permitem estabelecer a ordem no meio do caos. Dispõem de uma variedade
de escolhas, e ressentem uma certa familiaridade com a situação.
A gestão eficaz de situações de evolução rápida 1 141

Identificação e tomada a cargo da crise


de um doente até à chegada do médico

As enfermeiras são muitas vezes confrontadas com crises que


necessitam de uma atenção médica imediata; por exemplo, é muitas vezes
a enfermeira que começa a reanimação. São precisos imensos
conhecimentos e competências para se determinar a gravidade de uma
situação e a necessidade de uma intervenção rápida - o que pode e deve ser
posto em marcha enquanto se espera a chegada do médico. Nestas
situações, a enfermeira encontra-se numa situação delicada: ela não deve
pôr em perigo a vida do doente retardando decisões necessárias à
sobrevivência deste e, ao mesmo tempo, não deve ir para além das suas
prerrogativas.

Exemplo I

A enfermeira perita - Comecei o meu serviço às 15 horas e deram-me


um doente que acabava de ser operado a coração aberto. Tinha voltado
dos cuidados intensivos às 11 horas da manhã, com toda a panóplia da
pós-operação; perfusões, respirador, drenas torácicos, cateter urinário,
etc., este doente tinha recebido muitos lfquidos e sangue de substituição
durante o dia - isto é o procedimento habitual em cirurgia de coração
aberto: dar muitos lfquidos primeiro (muitas vezes manitol), depois
diminuir. A tensão cai à medida que o paciente re-aquece e que coisa se
estava então a passar. Eu telefonei à secretária do cirurgião, mas não o
consegui localizar. Prometeram-me avisá-lo assim que fosse possível.
Tentei também contactar o assistente, mas ele tinha sido substituído por
outro médico que não estava muito a par da cirurgia a coração aberto.
Nesse meio tempo, continuámos a suprir o doente com líquidos, sangue e
derivados sanguíneos, sem prescrições, só para manter o equilfbrio
hidroelectrolftico, pois a diurese continuava muito elevada. Comecei a
passar em revista as causas possíveis deste as suas veias periféricas se
dilatam, mas normalmente, isso estabiliza depressa. No entanto, este
doente continuava hipovolémico - tensão baixa, pressão venal central
baixa - e a sua diurese era muito importante. Conseguíamos apenas
compensar o que ele eliminava. Nesse momento ( 17h30, 17 horas), o
doente estava completamente aquecido; alguma outra fenómeno e decidi
1 f

142 1 De iniciado a perito

que o mais prol'ável era a /zíper glicelllia. Pedi ao laboratório que li/e
c/esselll a sua glicemia; quando os resultados chegaralll, ela estava a mais
de 600mg%. Foi nesse momento que consegui contactar o assistente do
cirurgic7o, finalmente de regresso. Ele deu as prescrições necessárias em
funçc7o da glicelllia do doente e conseguimos por fim estabilizá-lo,

Esta enfermeira sabia mais ou menos a que momento o equilíbrio dos


líquidos ingeridos e excretados deveria ter-se restabelecido. Pôde então
concluir que se passava algo de anormal já que esse equilíbrio não se fazia
- o que não se poderia esperar de uma enfermeira menos experiente.
Suficientemente segura para agir sem ordens do médico, ela prescreveu,
por si mesma, líquidos de enchimento, sangue e exames de laboratório. A
sua acção permitiu poupar mais ou menos uma hora, já que o médico teve
os resultados à sua chegada e pôde dar imediatamente as prescrições que se
impunham.

Exemplo II

A enfermeira perita - Procurávamos uma sala de trabalho de parto ...


duas já estavam ocupadas, entüo tivemos que ir para a sala resen•ada às
cesarianas, onde nada estava preparado - nüo havia nenhum
instrumento. Instalámos uma cama nessa sala, ao mesmo tempo que a
senhora estava a fazer força. No mesmo momento, a cabeça col/leçou a
sair e eu disse ao médico: "Douto1; nc7o terá tempo de lavar as miios".
Pedi à assistente que viesse primeiro comigo, que me desse um par de
luvas e uma caixa de instrumentos. O bebé praticamente saltou-me para
os braços enquanto o médico ainda estava a lavar as miios. Recebi entiio
o bebé, e graças a Deus, era uma rapariga forte, porque eu niio sei o que
teria feito se fosse uma prematura de dois meses como tinham dito.
Cortámos entiio o cordiio umbilical. O bebé estava bem. Era magnífica.

Exemplo Ili

A enfermeira perita - Eu acabava de admitir um nol'o doente col/l


uma hemorragia gastro-intestinal. O médico tinha dado um mínimo de
instruções pois ele "já vinha". Pois bem o "já" veio a ser um certo

b
A gestão eficaz de situações de evolução rápida 1 143

tempo! A tensão sistólica do doente estava a 100mml-lg e o pulso a 90, o


seu estado parecia bastante estável. Ele chamou e disse que tinha náu-
seas. Vomitou rapidamente sangue de um castanho bastante escuro.
Imediatamente, ficou pálido como linho e começou a suar
abundantemente. Eu deitei-o e disse a uma enfermeira que lhe tomasse a
pressão arterial, e a uma outra que lhe fizesse uma perfusão de solução
salina. Chamei o médico, mas a telefonista disse que ele não estava ao
serviço. O médico de serviço estava fitrioso: não sabia que tinha de se
ocupar dos doentes desse médico, não conhecia esse doente ... , e recusou-
se a dar instruções. Eu disse à telefonista que me pusesse imediatamente
em contacto com o médico. A telefonista disse-me que ele vinha a
caminho. Pedi então três unidades de sangue, uma hemoglobina e testes
sanguíneos para ver se havia uma deficiência ao nível da coagulação.
Instalei uma segunda via venosa e passei uma solução salina gelada por
uma sonda nasogástrica. O médico acabou por chegar. Relatei-lhe o que
tinha sido feito e ele respondeu que estava bem. Pedi-lhe depois que
assinasse as receitas.

Comentário Reduzido

Estes três exemplos mostram que a enfermeira deve possuir um alto


grau de experiência para saber de que pode sofrer um doente em altura de
crise, e gerir a mesma de forma eficaz até à chegada do médico. Este
domínio dos cuidados de enfermagem está cheio de ambiguidades, mas a
frequência de tais situações e a importância desta competência em cuidados
de enfermagem para a sobrevivência e o bem-estar do doente levam a um
.reconhecimento e uma clarificação acrescidos desta função.

Resumo e Conclusões

As enfermeiras devem ser capazes de gerir e de prever as crises.


J}udimo-nos se pensarmos que nunca as haverá. É essa denegação da rea-
lidade que impede de descrever de forma sistemática as competências da
~nfermeira em solucionar as situações críticas. Não nos podemos permitir
J-elegar esse domínio capital das nossas competências como não fazendo
j:)àrte das nossas atribuições, ou limitá-lo ao relato de incidentes apenas. Já
144 / De iniciado a perito

que a enfermeira é aquela que se encontra à cabeceira do doente, já que


uma das suas funções maiores é a de diagnosticar e vigiar as mudanças que
se produzem num doente, é natural que ela deverá gerir situações maiores
de crise de evolução rápida. Nós contribuímos para esta falta de reconhe-
cimento sobre o domínio dos cuidados de enfermagem quando omitimos a
documentação e a legitimação de áreas fundamentais da nossa prática.

i
CAPÍTULO 8

A A.DMINlSTl{t\ÇÃO E A VIGIL1\.NCL,\
DOS PROTOCOLOS TERAPÊUTI(~OS
Podemos encontrar descrições processuais das competências nesse
domínio em qualquer manual, mas os exemplos deste capítulo põem em
relevo os pedidos, os recursos e as contrariedades suplementares que
entram em jogo quando um doente e um contexto particular são
considerados. As enfermeiras esquecem-se muitas vezes de atribuir o
crédito das competências de que elas fazem prova em matéria de
administração de protocolos terapêuticos muitas vezes complicados. Um
grande número destas intervenções foram delegadas à enfermeira de uma
maneira oportuna; novas práticas e novas competências desenvolveram-se
no seu rasto. Foram conduzidos numerosos estudos que cronometraram as
cargas de trabalho em cuidados de enfermagem para nos ajudar a dominar
os custos, mas não temos quase nenhuma descrição sistemática de actos
que demonstram a evolução da competência no seguimento da afinação das
novas terapias. As recém-licenciadas acharam que para seguir os novos
procedimentos que lhes foram ensinados, necessitam de mais competências
complexas que aquelas que lhes foram ensinadas na escola ou durante a sua
experiência clínica perto de um ou dois doentes.

Domínio: Administrar e vigiar os protocolos terapêuticos

❖ Pôr a funcionar e vigiar um tratamento por via intravenosa com o mínimo


de risco e de complicação
❖ Administrar os medicamentos de maneira apropriada e sem perigo: vigiar
os efeitos secundários, as reacções, as respostas ao tratamento, a toxicidade
e as incompatibilidades
148 1 De inicíad,j a pé:rito

❖ Combater u p,.õrÍt!u da imobilidade: prevenir a aparição de escaras e tratá-


las; fazer andar,: mobi Iizar os doentes para aumentar as suas pos:..i bi !idades
de reeducação; e pr·evenir as complicações respiratórias
❖ Criar uma esiratégia de tratamento da ferida que facilite a recuperação, o
conforto e uma drenagem apropriada

A administração dos medicamentos foi simplificada, grnças à ajuda


acrescida do serviço de farmácia. Lembro-me do tempo quando a
preparação de uma mistura de alimentação parentérica se fazia no serviço
e necessitava de mais precisão, de competência e de tempo do que para
fazer um bom bolo de chocolate. Hoje, um sistema de dosagem unitário e
a participação dos farmacêuticos tornam a administração dos
medicamentos mais segura, e leva menos tempo. Todavia, o número de
medicamentos administrados por via intravenosa aumentou; necessitando
de uma vigilância redobrada e de um grande conhecimento dos seus efeitos
secundários e das suas incompatibilidades. As enfermeiras poderiam
contribuir de maneira significativa para o conhecimento das reacções
desejadas aos medicamentos e os seus efeitos secundários, tomando
sistematicamente nota do que constatam quando os estão a administrar.
Os exemplos deste capítulo são só uma representação parcial dos
numerosos conhecimentos que resultam desse domínio. Eles põem a tónica
sobre o facto de que é necessário mostrar mais consideração por esta
competência, tomando a sério os nossos conhecimentos no domínio da
administração dos protocolos terapêuticos e da sua vigilância.

Pôr a funcionar e vigiar um tratamento


por via intravenosa com o n1ínimo de riscos e de con1plicações

A maior parte dos doentes recebem produtos sanguíneos e


medicamentos por via intravenosa num momento dado da sua estada no
hospital. As enfermeiras acabam por acumular astúcias que lhes permitem
colocar perfusões e vigiá-las, graças a um certo número de variáveis, tais
como as necessidades de mobilidade cio doente, o estado das suas veias, a
duração possível do tratamento e o objectivo e a natureza desse último. A
A administração e a vigilância dos protocolos terapêuticos 1 149

técnica da terapia intravenosa complicou-se consideravelmente. Não é fácil


aprender hoje em dia a regular o ritmo da perfusão, administrar diversos
medicamentos e soluções que são ou não compatíveis, e, por fim, avaliar
que a qualquer momento é necessário parar a perfusão, porque há uma
infiltração ou flebite. No primeiro exemplo, constatamos claramente a
competência ligada ao pôr a funcionar e a vigiar um tratamento por via
intravenosa com o mínimo de risco, graças ao relatório que foi feito a uma
recém diplomada a propósito da aquisição desse conhecimento.

Exemplo I

A recém diplomada: - Quando se trata das perfusões, existem muitos


truques de profissão. Quando trabalhava em equipa de dia, tínhamos a
responsabilidade de todas as perfusões e de todos os medicamentos. Ia
ver a minha orientadora para lhe pedir: "por que é que esta perfusão não
corria?" ela vinha, elevava um pouco a garrafa, mexia na tubuladura -
coisa que eu não sabia fazer. Virava-me e constatava que já corria de
novo. Ela conhecia bem os truques. Isso ajudava muito porque muitas
vezes, a perfusão não corria, e por vezes, era só uma questão de posição,
ou de outra coisa desse género. Eu dizia-lhe: "qualquer coisa não bate
certo nesta perfusão "; ela respondia-me: ''já tentou isto, experimentou
aquilo? Vigiou a garrafa? Pós o braço noutra posição?" Ajudavt;1-me
muito nesse domínio.

Exemplo II

Uma orientadora fala da maneira como transmitia o seu saber clínico a


uma principiante:

O entrevistador: De que ajudas necessitam as principiantes em


matéria de perfusões?
A orientadora: Elas põem muitas questões. Porque escolhe uma
epicaniano em vez de um cateter? Elas devem reflectir o porquê da
escolha desse tipo de agulha. E só a aprendizagem de colocar a agulha
já é difícil. É necessário ter em conta o tempo que ficará a perfusão e o
tipo de medicamento a injectar. Quando temos pouco medicamento a
150 1 De iniciado a perito

adlllinistrcu; a epicralliano é 111ais confortável e apresema mellos perigos


deflebite. Os médicos variam /las suas preferências e é igualmente neces-
sário ter isso em conta. E claro o estado do doellte e das suas veias fazem
toda a diferença. Por exemplo, co//1 os doellles mais idosos, é necessário
ser hábil. À primeira vista, pensa-se que colocar uma perfusão nessas
pessoas é fácil, porque as suas veias scfo muito visíveis, mas são
igualmente frágeis. Se se apertar muito o garrote, a fina membrana da
veia do doente idoso saltará.

Comentário Reduzido

Estes dois exemplos mostram as nuances que implica o domínio da


técnica do tratamento por via intravenosa. Uma vez esta competência
dominada, é difícil para uma enfermeira experiente explicar por que
estados ela passou.

Administrar n1edicamentos de forn1a apropriada e sen1 perigo:


vigiar os efeitos secundários, as reacções, as respostas
ao tratamento, a toxicidade e as incompatibilidades

A responsabilidade da enfermeira, em matéria de segurança e de vigi-


lância das respostas terapêuticas aos medicamentos, cresceu com a chegada
de medicamentos mais potentes e a proliferação de novas medicações que
foram submetidas a testes clínicos limitados. Efectivamente, a única razão
que faz com que haja hospitalização é muitas vezes a de assegurar a
presença de enfermeiras peritas para observar a resposta ao tratamento e
determinar as dosagens terapêuticas óptimas. Testes sofisticados em
laboratório podem fornecer esses dados, mas é muitas vezes a enfermeira
que descobre a necessidade deles. Aqui é a avaliação clínica da perita que
prevalece e que é crucial para a segurança, e até para a cura do doente.

Exemplo 1

Uma enfermeira em psiquiatria faz uma observação enquanto


administra um medicamento.

>
A administração e a vigilância dos protocolos terapêuticos 1 151

Um jovem chega para tomar o seu medicamento e a enfermeira pede-


lhe para descrever os tremores do seu maxilar. Ele faz-lhe uma descrição
elaborada da maneira como o seu palato tremelica e a maneira como isso
lhe comunica com o cérebro. Mais tarde, a enfermeira explica que só
começou a reparar nos tremores dois dias antes e que está preocupada
porque poderia ser uma disquinesia tardia - danos irreversíveis devido
aos medicamentos psicotropos. Os médicos tinham lhe retirado esses
medicamentos psicotropos e tinham iniciado a Cogentine para ver se os
sintomas diminuíam. A enfermeira refere que é muito difícil fazer a sua
parte, porque a sua reacção ao tratamento confunde-se com os sintomas
da sua patologia.

Exemplo II

A enfermeira perita - Estava de serviço à noite e fazia a minha ronda.


A noite anterior, tinha havido, infelizmente, uma enfermeira substituta
que tinha colocado uma peifusão de lidocaina utilizando um cateter
grosso em vez de um pequeno. Durante o seu serviço, o doente não rea-
giu muito, mas no início estava um bocado confuso, mesmo se ninguém
se apercebesse. Estava ligado ao monitor, mas esse não indicava
nenhuma alteração. Durante o dia, foi uma recém diplomada que tratou
dele porque a vigilante não estava lá. E ela nem reparou no grosso
cateter. Estava então a fazer a minha ronda e notei que aquando das
transmissões, ela tinha dito que o doente estava menos reactivo que antes.
A primeira coisa que vi foi o grosso cateter pelo qual lhe estavam a admi-
nistrar a lidocaina. Dei logo conta do erro, porque quase que o ia
cometendo. Infelizmente, este incidente não teve umfinalfeliz. Parei logo
a perfusão, mas o ECG do doente já mostrava complexos QRS alargados.
Mais tarde fez uma paragem cardíaca. Não foi possível reanimá-lo.

Exemplo III

A enfermeira perita - Tinha tratado a Senhora X, sessenta e quatro


anos, durante os sete a dez dias que seguiram a sua operação. Uma .
manhã, depois de a ter ajudado a andar um pouco, instalei-a no seu sofá
e pus-me a fazer a sua cama enquanto conversava, como já era hábito -
152 1 De iniciado a perito

tínhalllos simpatizado uma co/ll a outra - e reparei que ela compreendia


mal certas coisas que eu lhe dizia, confundindo-as co/ll outras coisas.
A Senhora X estava no seu décimo dia de um tratamento de catorze
dias de estreptomicina o qual conhecia evidentemente o risco: causar
danos no oitavo nervo do cérebro, mas nunca o tinha observado 11um
doente. Estava certa que não conseguia tão bem ouvir-me como na se-
mana anterio,: Depois de ter falado com a enfermeira responsável,
chamei o médico e expliquei o que tinha constatado. Estava céptico, /llas
aceitou ver a doente antes de lhe administrarem a dose seguinte de
estreptomicine. No inicio da tarde, COlllO afilha da Senhora X vinha vi-
sitar a mãe, falei com ela à parte, para lhe perguntar se achava que a
audição da sua mãe tinha mudado. A filha deu-se de repente conta que
deveria haver algum problema, porque a expressão do seu rosto mudou.
Ela tinha reparado em alguma coisa, mas só tomou consciência do pro-
blema quando falei dele. De qualquer forma, podemos dizei; para
encurtar, que o médico reconheceu que a Senhora X tinha tido uma perda
auditiva e decidiu suspender a estreptolllicina de maneira a nüo provocar
mais danos.

Comentário Reduzido

Estes três exemplos ilustram um leque de observações e de implicações


significativas para uma administração, apropriada e sem perigo, de
medicamentos. Esta competência não engloba a administração apropriada
e sem perigo dos medicamentos, porque é necessário ter em conta as
interacções e as incompatibilidades possíveis entre os medicamentos. É,
igualmente necessário, que a enfermeira vigie de maneira perita os efeitos
secundários, as reacções, as respostas aos tratamentos, a toxicidade e as
incompatibilidades. Uma tal vigilância, como é mostrado nestes exemplos,
pode decidir a vida ou a morte de um doente.

Combater os perigos da imobilidade

Numerosos cuidados de enfermagem tentam prevenir os perigos da


imobilidade como consequência de uma doença ou por causa de
intervenções terapêuticas. Esses cuidados de enfermagem competentes têm
A administração e a vigilância dos protocolos terapêuticos 1 153

numerosas facetas e têm em consideração factores, tais como manter uma


pele sã e em bom estado, fazer andar e mandar fazer movimentos
respiratórios, afim de optimizar a ventilação e a higiene pulmonar. Mas, em
cada caso, a enfermeira deve avaliar as necessidades, assim como motivar
o doente e fornecer as estratégias apropriadas para gerir a dor.

Exemplo I

O observador - Ellenfalava com o médico sobre o caso de um doente.


Era uma conversa amigável, do tipo colaboração, penso eu, entre o
médico e essa enfermeira. Ellen mostrava ao médico o novo produto que
ela tinha utilizado para tratar as escaras que se tinham formado sobre as
nádegas do doente. Ela explicou que tinha ido a uma conferência sobre
o tema. Esse produto era utilizado em Inglaterra já alguns anos, dizia ela,
e tinha sido agora comercializado aqui. Explica a acção sobre o líquido
seroso da zona atingida e continua a explicar a teoria sobre a eficácia do
produto. Esta intervenção fazia parte das estratégias utilizadas pelas
enfermeiras para prevenir as escaras 110 doente (mudança frequente de
posição, massagem, colchões anti-escaras).

Exemplo II

O observador - Elisabete aproximou-se da cama de Cristina, uma


mulher com aproximadamente quarenta anos e muito frágil. Ela
perguntou: "Quer andar um pouco agora?" Cristina recusou'
vigorosamente com a cabeça, mas com um olhar malicioso. Elisabete
acrescentou: "Quando é que eu vou aprender que tem que ser obrigada
e que não posso pedir-lhe!", regressou mais tarde com um tom
apropriado: "Já é tempo de fazer um pequeno passeio." Com um pouco
de paciência, insistência e humor da parte de Elisabete, Cristina lá ficou
em pé e andou, mesmo se não mostrava apreciar muito esse exercício.

Exemplo III

O observador - Nora aproximou-se da cama do doente e disse-lhe:


154 1 De iniciado a perito

"hoje, não o vi fazer os seus exercícios respiratórios." O doente indicou


que lhe doía muito quando utilizava o espirómetro e que não tinha co-
ragem. Nora perguntou se sofria muito. Quando respondeu que sim, ela
propôs dar-lhe analgésicos e indicou-lhe que poderia experimentar li-
bertar-se tossindo e respirando profundamente, logo que se sentisse me-
lhor. Ela insistiu que era muito importante que ele fizesse trabalhar os
seus pulmões.

Comentário Reduzido

Esses exemplos mostram um leque de actos de enfermagem destinados


a prevenir os perigos ligados à imobilidade. Como já foi demonstrado, as
estratégias de tomar conta e de apoiar o doente ao longo das actividades
pouco agradáveis são para ele necessárias. É crucial saber escolher o bom
momento e estimular a motivação do doente para levar a bem essas
intervenções.

Criar uma estratégia de tratamento da ferida que facilite


a recuperação (cura), o conforto e uma drenagem apropriada

Em muitos domínios dos cuidados de enfermagem, as enfermeiras


tratam as feridas dos seus doentes; têm à sua disposição todo um leque de
produtos e de pensos, que são utilizados muitas vezes por hábito, mas
igualmente após reflexão, para que a ferida fique limpa e cicatrize
rapidamente. É nesse domínio que se exige uma grande competência, e que
a avaliação dos diferentes tipos de drenagem é crítico. Este domínio é
ilustrado pelos dois exemplos seguintes:

Exemplo I

O Observador - Diana volta à cabeceira de um novo doente depois


da visita dos médicos. Eles tinham lhe tirado todos os pensos, pondo a nu
um ventre com seis feridas abdominais. Diana passou as primeiras horas
do seu serviço tentando limpar tudo e colocando pensos nas feridas. Isso
implicava antes de tudo tirar a massa de alumínio que foi aplicada aqui
A administração e a vigilância dos protocolos terapêuticos / 155

e ali para proteger a pele. Algumas feridas tinham cateteres de irrigação


e outros não. Havia abcesso de cada lado e um deles exsudava muito
sangue. A enfermeira falava com o doente para o tranquilizar, enquanto
fazia o seu trabalho, coisa que o doente· declarou lembrar enquanto
estava meio consciente. Ela determinou o tipo de dreno e o tipo de penso
correspondente. Para proteger a pele, utilizou diferentes estratégias em
função da natureza e da localização do dreno. Uma vez acabado o
tratamento, ela tomou nota daquilo que tinha feito para tratar as feridas
do doente, que depois de alguns meses, ficou suficientemente
restabelecido para voltar para casa.

Exemplo II

A enfermeira perita - Tratava de uma mulher de uns quarenta anos


que foi hospitalizada durante três meses noutro hospital e tinha dado
entrada no nosso hospital na véspera, por causa de fístulas abdominais.
A noite anterior, a bolsa que recebe os líquidos provenientes das fistulas
tinha-se descolado três vezes e tinhà sido reposta exactamente da
mesma maneira pela enfermeira, porque a doente insistia sobre o facto
de que mais nada funcionava. A sua pele estava muito estragada
nalguns sítios e muito sensível. Ela estava contrariada porque nada
funcionava e tinha medo de se mexer; porque as fistulas deitavam cada
vez mais líquido.
Retirei a bolsa que se escapava e dei conta que o problema era que
ela tinha uma grande greta entre duas fistulas. Como ela recusava asa
minhas sugestões, pedi-lhe para ter confiança porque tinha visto muitos
casos similares com os quais tinha tido bons resultados. " Quer dizer que
já viu um estrago assim? Tão feio?" respondi que era a nossa
especialidade naquele serviço e que estava certa de poder encontrar uma
bolsa que segurasse pelo menos 24 horas, ou até mais. Ela disse que
ficaria muito satisfeita se isso fosse possível e que podia fazer o que
queria.
Fez-me perguntas sobre tudo o que fazia e mostrou-se um pouco
reticente com algumas sugestões, mas insisti. la utilizar uma massa com
água para encher as suas gretas quando ela me disse: "isso nunca
funcionou antes." Depois disse-me que estava a por muita massa e eu
respondi-lhe que se calhar tinha sido por isso que antes não tinha
r
1 156 1 De iniciado a perito

funcionado, porque não tinham posto o suficiente.


Fazia muitas perguntas, o que fez com que apre1Zdesse muitas coisas
sobre a maneira de colocar a bolsa. Encorajava a sua participação.
A bolsa ficou colocada três dias e foi retirada para verificar o estado
da pele. Quando foi reposta novamente, participou cortando a abertura
à sua dimensão, limpando o líquido que saia enquanto arejávamos a pele.
O estado da pele melhorou e ela enjre1Ztou melhor a situação.
Penso que a minha confiança e a minha insistência foram a chave da
sua aceitação para a minha técnica. Nunca duvidei realmente que isso
poderia resultar e penso que consegui transmitir-lhe esse sentimento,
dando-llze todas as informações que ti1Z/za sobre o processo a segui,;
etapa por etapa, de maneira a que a minha atenção fosse de novo
dirigida de maneira positiva e construtiva, e que ela fosse mais receptiva.
Tornando-me sua educadora ela tornou-se minha "aluna", por assim
dizei; e isso deu-me o co1Ztrolo que 1Zecessitava para eliminar as lutas de
poder entre ela e eu. Pôs-se igualmente a participar activamente nos seus
cuidados e teve, dessa maneira, um certo controlo da situação graças às
informações que ela tillha.

Comentário Reduzido

Nesses dois exemplos, a atitude e a aproximação da enfermeira no


tratamento das feridas dos doentes transmitem a impressão que a ferida
estava controlada. Um leque considerável de produtos está à disposição das
enfermeiras para tratar da feridas, e a competência da enfermeira consiste
igualmente em manter-se informada. No entanto, a eficácia das inovações
técnicas depende dos conhecimentos das enfermeiras, não só dos resultados
das últimas investigações, mas igualmente da maneira de utilizar a
tecnologia.

Resumo e Conclusões

Os conhecimentos que decorrem desse domínio estão escondidos por


descrições estritamente processuais que não têm em conta a variabilidade e
as adaptações necessárias e reflectidas, quando iniciamos e vigiamos os
protocolos terapêuticos. A habilidade e a reflexão, fruto da experiência
A administração e a vigilância dos protocolos terapêuticos 1 157

nesse domínio, não são bem apreendidas pelas conversas ou as narrações,


porque as enfermeiras tornam-se competentes ao longo de tentativas e de
erros, e muitas vezes não têm consciência de muitos aspectos que envol-
vem o domínio da competência. Todavia, as pessoas que observaram um
grande número de enfermeiras com diferentes níveis de competência
podem pôr em evidência certas subtilezas e diferenças na prática quotidia-
na.
Muitas vezes, os tratamentos são concebidos sem ter muito em conta a
maneira como terão que ser aplicados. Deixam isso às enfermeiras que
trabalham nesse domínio. Uma vez instaladas as inovações que envolvem
o início de um tratamento, considerámo-las como sendo um tratamento,
mas sem deixar grande margem para descrições sobre a maneira como
foram concebidas.
Polanyi (1958) pôs em evidência a incapacidade dos cientistas em
apreender em termos formais uma grande parte daquilo que se produz nos
meios industriais. Por conseguinte, não procuro descrições processuais
mais detalhadas. Relatos descritivos e interpretativos, tanto das práticas
como das competências associadas, seriam muito úteis. Uma vez,
correctamente descritas, as variações poderiam então ser comparadas em
termos de eficácia. O contexto deveria ser tomado em consideração, porque
as te-rapias são administradas em seres humanos que têm as suas próprias
interpretações e respostas diferentes aos tratamentos que recebem,
consoante se há um envolvimento total, por parte das enfermeiras, ou se se
comportam com indiferença, ou sem calor humano.
CAPÍTULO 9

ASSEGURAR E VIGIAR
A QUALIDADE DOS CUIDADOS
Porque estão sempre presentes e coordenam as relações entre o doente
e os diferentes membros da equipa de cuidados, as enfermeiras têm a
possibilidade de prevenir e de detectar os erros; elas estão particularmente
atentas durante o estado inicial de aprendizagem dos novos internos.
Durante as entrevistas, as enfermeiras evocaram sem nenhum orgulho, e até
mesmo com desgosto, o tempo passado a prevenir e detectar erros. Essas
competências (ver quadro) não foram apresentadas tais como elas são, mas
como "falhas do sistema" parecidas .com as intervenções de urgência
descritas no capítulo 7. Está subentendido que o sistema deveria melhorar
e que erros potencialmente perigosos nunca deveriam acontecer.

Donúnio: Vigiar e assegurar a qualidade dos cuidados

❖ Fornecer um sistema de segurança ao doente aquando dos tratamentos


médicos e de enfermeiros
❖ Avaliar o que pode ser esquecido ou acrescentado às prescrições médicas
sem pôr em risco a vida do doente
❖ Obter dos médicos respostas apropriadas em tempo útil

Hoje em dia este aspecto da profissão incomoda as enfermeiras. O


distinto médico Lewis Thomas (1983) descreve esse aspecto com
simplicidade e traz a respeitabilidade que as enfermeiras têm dificuldade
em dar-lhe dar. Essas observações são feitas tanto enquanto médico como
enquanto doente:
162 1 De iniciado a perito

O que eu descobri, primeiro como doenle do sen,iço de medicina, e


mais tarde de cirurgia, é que esta instit11içéio só se 111antêi1I e111 pé e só
ji.mciona graças às enfermeiras que séio o cimento dessa instituiçc7o. As
boas enfer111eiras evidentemente ( e todas as que estm·a111110 111e11 andar o
eram), fazem 11111 dever de saber tudo o que se passa. Elas detectam os
erros antes que estes possa111 prO\'ocar estragos. Sabem tudo o que está
escrito nos dossiers. E o mais importante de tudo, conhecem os seus
doentes e os considern111-11os como seres lw11wnos únicos dos quais elas
se tor11a111 próximas e até amigas. Graças à qualidade dessas relações,
elas apercebem-se rapidame11te das apree11sões dos doentes e agem e/li
consequência.
Uma pessoa doente num grande lwspital tem a impresséio ele estar
perdido, de já néio ter identidade própria, correndo o risco de se
enco11trar 11111110 111aca, 110 sítio errado, de se submeter a 11111 trata111ento
que 11ão é para ele, 011 ainda pior não ser tratado 110 111omento certo. O
médico do doente ou o que está ele se111iço está geralmente apressado
quando jaz. as visitas. Acontece que por vezes li111ita-se a 11111r11wrar
algumas palavras ele co11solo enquanto se dirige para a porta, mas séio as
enfermeiras atentas, competentes e de bo111 hu11101; presentes o dia todo,
que veio e vê111 nos quartos para fazer u111a coisa ou outra, de noite co1110
de dia, que vos tranquiliza faze,zdo-vos entender que a situação está
controlada.
Sabe11clo aquilo que eu sei, estou do lado das enfermeiras. Se elas
devem continuar a sua batalha com os médicos, se elas querem que o seu
estatuto profissional 111el/zore e que o seu salário awllente, se põem os
médicos zangados, porque pedem para ser tratadas num pé de igualdade,
se elas pedem a lua estou do lado delas'

Lewis Thomas tem razão em associar o conhecimento do doente en-


quanto pessoa na prevenção dos erros. A implicação com o doente
enquanto indivíduo e o empenho numa determinada situação são
necessários ao desenvolvimento de uma sensibilidade suficientemente
aguçada para detectar os potenciais erros (Wrubel, Benner e Lazarus,
1981). A enfermeira que não fica implicada nem se empenha não será

' Lewis Thomas. The Youngest science: notes o/ a 111edici11e-watcher, New York,
Viking Press, 1983, p. 679.
Assegurar e vigiar a qualidade dos cuidados 1 163

sensível aos sinais não habituais que indicam que o doente vai ter
problemas. As enfermeiras devem também ter um sentido aguçado do
comportamento e da aparência habitual do doente para detectar mudanças
subtis mas significativas.

Fornecer um sistema para assegurar a segurança do doente


durante os cuidados médicos e de enfermagem

Por vezes, a enfermeira é obrigada a intervir com um doente enquanto


que a sua acção está em contradição com as indicações habituais de
segurança. Outras vezes, o plano de tratamento cuidadosamente elaborado
anteriormente deverá ser alterado ao longo da evolução do estado do
doente. É então a enfermeira que deve pedir as modificações ao plano de
tratamento inicial. 2

Exemplo I

A enfermeira perita - Muitas vezes, temos que nos desembaraçar com


os médicos inexperientes que sabem menos que nós, quando se trata de
introduzir novos parâmetros sobre o ventilador de um bebé prematuro.
Penso que é o meu dever, quando o estado do doente é crítico, de o
proteger contra os médicos menos experientes que eu em matéria de
assistência respiratória. Prevejo, por isso, que o médico vai efectuar tal
ou tal mudança em função do resultado dos gases no sangue. Se ele não
fez as alterações necessárias vou perguntar porquê. Se ele me puder dar
uma explicação lógica, fundada em dados correctos, então faço o que ele
me pede sem nenhuma dúvida. Se ele me responde que não sabe porquê,
insisto para que ele peça conselho perto de uma pessoa mais qualificada
sobre o assunto. Se ele não o fizer então sou eu que o faço!

Exemplo II

A enfermeira perita - Tinha sido admitido um doente nas urgências


em que o estado parecia crítico. Então ouvi os seus pulmões, não podia
164 1 De iniciado a perito

apenas 011\'ir o ar entrar de u111 dos lados. O seu 111édico de família foi
cha111ado e, qllando chegou, decidill (Jlle o doente estal'a e111
hiperventilação, pelo (Jlte pediu 11111 saco de papel para fazê-lo respirar
gás carbónico. Era ei•idente que o doente es/ava à beira da morte.
Recusei dar-lhe o saco, e cha111ei os Cllidados intensii•os: "Vüo receber
um doellte. Ele está muito mal. Quando c/1egw; quero que chame111 o
111édico responsá-vel," Agi assim porque nüo consegui111osfa~er co111 (Jlle
este médico co111pree11desse que o doe11te tinha necessidade de 11101/ina e
que em necessário introdltzir-lhe gazes 110 sangue. Era preciso
decidinnos se del'ía111os aliviar as suas dores ou tentar Tratar o seu mal.
O doente 111orre11; a sua doença era irreversíi•el. Mas, pelo menos, a
correcta avaliaçêío e as inten•enções destinadas a alil'iar a dor hm·im11
sido feitas.

Exemplo Ili

A enfermeira perita. - Nessa 111anhri, ocltpam-me especiallllel/le de


u111a doe/1/e que, na i·é.lpera, soji·era 11111a obs1ruçêío artériol'enosa e cuja
pressão arterial eslava bastante baixa. Por \"O/ta do 111eio-dia,
transferimo-la para o serviço de cardiologia para ser submetida a wna
perfusrio de dopa111ina; tive1110s bastante dificuldade el/l encontrar uma
cal/la vaga. O médico CJllisera co111eçar a dopa111ina lllllll serviço onde nrio
havia ne-11/w111 111011itor cardíaco. Sabia que este procedimento era
perigoso. Se nêío tivéssemos encontrado 11111a ca111a 110 serviço de
cardiologia, seria necessário arranjar Ulll 111011itor portátil antes de
collleçar a pe1ji1s<io.
O investigador - Pensa que, neste caso, o médico acredi/al'(l que lhe
cabia a si encontrar um 111011itor cardíaco?
A enfermeira perita- Penso que ele estava de tal modo absorvido pelo
proble;na médico, islo é, <l administraçrio de dopmnina, que ncio pensara
nos proble111as práricos, tais como, em caso de complicações, levar a cwna
da doente atrai'és de l'círios Serl'iços 011 de andar em undw: Niio pensam
igualmente no problema de onde encomrar wn 11wnito1;

,,.
Assegurar e vigiar a qualidade dos cuidados 1 165

Comentário Reduzido

As enfermeiras encontram-se frequentemente em situações ambíguas:


devem servir de válvula de segurança, de modo a assegurar, sem perigo, os
cuidados médicos e de enfermagem, e estão conscientes desse seu papel;
por outro lado, isso implica muitas vezes modificar os planos de
tratamentos dos outros profissionais de saúde. As enfermeiras peritas
conhecem as soluções que permitem circunscrever os problemas, à medida
que eles se apresentam; elas trabalham, mantendo-se cépticas, quando
necessário, e continuando a discutir os tratamentos. Sabem por experiência
que o erro é humano. Portanto, quando necessário, são capazes de agir
segundo a sua própria opinião e estão preparadas para fazê-lo.

Avaliar o que pode ser omitido ou acrescentado


às prescrições médicas sem colocar a vida do doente em perigo

Apesar das prescrições médicas fornecerem as grandes linhas


orientadoras da maior parte dos cuidados de enfermagem, as enfermeiras
devem manter a sua liberdade de decisão quando se trata de aplicar os
mesmos. Espera-se que elas se apercebam do que é necessário fazer para
prestar ao paciente os melhores cuidados, mais do que simplesmente seguir
à risca as prescrições médicas, mesmo que essa atitude possa causar
problemas. Esta competência, a um nível mais simples, significa que a
enfermeira não aplicará as prescrições que já não são úteis para o bem-estar
do doente. Mas a um nível mais complexo, como mostram os exemplos
seguintes, esta competência implica pesar os prós e os contras, de modo a
responder a necessidades contraditórias, e decidir se, por exemplo, o
repouso e o conforto moral serão mais eficazes para a cura do doente, num
determinado momento, que o próprio tratamento.
Esta questão apresenta-se frequentemente nas unidades de cuidados
intensivos, onde os problemas associados à falta de sono podem ser mais
significativos que os problemas provocados pelo atraso ou não aplicação de
um tratamento. Várias enfermeiras notaram que, com a experiência, tinham
mais tendência a hesitar na aplicação das prescrições médicas, como, por
exemplo, na verificação dos sinais vitais. Neste caso, evocaram a
necessidade de contrabalançar o controlo dos sinais vitais e a necessidade do
doente dormir e repousar. Em todos os casos, a decisão cabia à enfermeira e
baseava-se na compreensão que esta tinha do estado do doente.
166 1 De iniciado a perito

Exemplo I

A enfermeira perita - Cuidava de um doente, um jovem médico muito


simpático, que tivera uma laparotomia exploratória devido a um ca!lcro
do pâncreas. Ele tivera muita febre. Durante três noites, acordei-o de
quatro em quatro horas e ajudei-o a fazer os seus exercícios
respiratórios. Ele estava realmente deprimido e nunca falava do seu
diag!lóstico, 11e111 de tudo o que lhe acontecera. Na quarta noite, a sua
tempe-ratura diminuíra um pouco, e agora estava completamente
estafado de-vicio à falta de repouso. Pensei que teria mais hipóteses de
poder e que-rer interessar-se pela sua doença se pudesse dormir sem
interrupção. A sua temperatura manteve-se na manhã seguinte. Os seus
pulmões esta-riam, sem dúvida, menos obstruídos se o tivesse acordado
às três da manhã, mas optara por não o fazer dado o seu estado de
extrema fadiga e depresséio.
Néio é fácil optar correctamente. Existem poucos estudos sobre a
eficácia da cinésioterapia respiratória, bem como sobre a necessidade do
sono. Mas néio há nada que prove que X é melhor que Y, sobretudo
quando se trata de wn caso particula,; pelo que deverei saber se a
cinésiote-rapia respiratória de quatro em quatro horas vai realmente
ajudm; ou se é o so110 que !'ai operar esta melhoria. Segundo as
circunstâncias, tenho de exercer as minhas faculdades de deciséio.

Exemplo II

A enfermeira perita - No início, anotava todas as horas às quais de-


veria ser medida a tenséio arterial, e um dia pensei: "Eh, espera um mi-
nuto, deveria ser eu a decidir se é necessário ou néio medi-la. No final de
contas néio é algo que seja obrigatório fazer para que me sinta mel/101:"
Pus-me entéio a reflectir: "Para que serve avaliar a tensão de tal pessoa?
O que é que isso me indica? É realmente necessário medi-la? Sobretudo
em relaçéio aos doentes que foram operados aos olhos e que já estéio no
segundo dia pós-operatório." Cabe-nos a nós saber quando deixar de
medir os sinais vitais durante a noite. É preciso, portanto, estudar
cuidadosamente a evoluçéio do estado do doente. Às vezes, observo os
pacientes atentamente, mais do que verificar os seus sinais vitais, para
que estes possam dormiJ:
Assegurar e vigiar a qualidade dos cuidados 1 167

Comentário Reduzido

Nestes dois exemplos, num determinado momento da doença do


paciente, a enfermeira avalia as vantagens relativas do repouso e do
conforto em relação às prescrições. Nunca pode haver a este respeito
indicações científicas que ajudem as enfermeiras a decidir, porque seria
impossível desenvolver investigações em número suficiente para tratar
cada caso. A enfermeira deverá sempre pesar os prós e os contras e, em
função da si-tuação, fazer opções, tendo como objectivo o interesse do
doente.

Obter dos médicos respostas apropriadas em tempo útil

Se as enfermeiras querem que o médico responda às necessidades


atempadamente e de modo apropriado, devem, então, mostrar-se
convincentes e claras. Devem igualmente saber que é preciso chamar
outros médicos no caso do primeiro não estar disponível. Alguns hospitais
têm melhores sistemas de chamamento e substituição dos médicos do que
outros. As enfermeiras falam da arte e do modo de apresentar
convincentemente um caso ao médico. Evocam igualmente a utilidade de
saber quando é preciso ser-se firme, de conhecer o médico e as suas
hesitações, e de estabelecer a sua própria credibilidade pela sua
competência.
Por vezes, um médico interpretará o estado de um doente de uma
maneira diferente da enfermeira e optará por não proceder como esta
pensara. A enfermeira tem, então, de decidir se deve recorrer aos médicos
responsáveis para dar o máximo de segurança ao doente.

Exemplo

A enfermeira perita - Um doente foi admitido devido a uma


trombofeblite Estava a heparina há dois dias quando o vi pela primeira
vez. Os relatórios da equipa da noite diziam que ele tivera uma noite
difícil. Ele sofrera bastante, mais do que é hábito. A enfermeira chamara
o médico interno do serviço que não viera. Em vez disso, prescrevera
meperi-dina em IM. A meridipina em IM não fizera nenhum efeito, pelo
l!J
1

168 1 De iniciado a perito

que a rnfer111eim chamara o médico para /l1e di~er que o doente estm•a
co111 dificuldades ligeiras de respiraçâo. Mas o médico pensou que a
enfermeira estava preocupada sem 1110ti1•0 e nâo i·eio i·er o doente.
Prescreveu 11111 analgésico.
Por volta das sete horas da manhâ, fui ver o doente. Este estm•a
luí111ido,ji-io, agitado e os seus sinais i•itais estm·a111 a mudw: linha ainda
mais dificuldade em respirar do que a que me tinha111 descrito,
transpirava, o seu pulso eslava ji-aco e ainda tinha dores. Telefonei ao
médico interno que o seguia regularmente e contei-lhe os acontecimentos
da noite. Ele rej/ectiu e perguntou-me se o chamava para lhe pedir outros
analgésicos para o doente. Mantendo a calma, disse-lhe que algo nc7o
estava bem e que 1·0/tar a administrar-lhe mais calmantes nâo resoll'eria
o problema. Acrescentei que solicitava a sua presença porque queria que
li/li médico i·iesse examinar o doente imediatamente. O médico veio logo

de seguida. O estado do doente, be111 como os seus sinais vitais, tinham-


se modificado de modo basta11te dramático. O Íiltemo telefonou ao
médico de serviço. O doente tinha um enfarte pulmonw: Felizmente,
tomaram-se medidas rápidas e chamou-se 11111 especialista que, graças a
uma ope-raçâo, pode salvar o pulmão e a vida deste !tomem. O interno
agradeceu a minha persistência ao pedir-lhe que viesse rapidamente
examinar o doente.

Comentário Reduzido

Os problemas inerentes à obtenção de uma ajuda apropriada e atempada


por parte dos médicos colocam claramente em evidência esta competência.
As situações descritas mostraram que a obtenção de uma tal resposta é
frequentemente uma questão vital.

Resumo e Conlusõcs

Este domínio oferece poucas satisfações à enfermeira, porque é


desconcertante descobrir que poderia ter acontecido uma tragédia. As
competências neste domínio não são notadas quando as coisas correm bem
e se evitam as falhas; quando as coisas correm mal, é então necessário
responder a inquéritos, e a enfermeira é confrontada com um sentimento de
Assegurar e vigiar a qualidade dos cuidados 1 169

culpabilidade por não ter detectado o e1To, seja qual for a fonte do mesmo.
No entanto, a enfermeira é a única a poder servir de ponte entre os
membros de diferentes disciplinas, coordenando os cuidados prestados ao
doente, de modo a que os esforços destes não entrem em conflito.
Questiono-me quando as enfermeiras afirmam com convicção que
respeitam sempre as prescrições dos médicos, apesar das mudanças que se
produzem no estado do doente. Nem sempre é possível ou mesmo
gratificante consultar um médico para pequenas modificações das
prescrições. Fico desiludida quando as enfermeiras seguem à letra as
prescrições do médico, no que diz respeito ao regime alimentar ou a outras
medidas de conforto, quando esta prescrição já não co1Tesponde à situação
e em que o bem-estar do doente é sacrificado no altar da obediência cega
ao médico. Concordo que, num plano ideal, o médico seja mantido ao
corrente das mudanças no estado do doente, que ele as antecipe e faça
prescrições flexíveis que permitam às enfermeiras tomar as suas decisões.
Mas, na rea-lidade quotidiana, a enfermeira perita deve utilizar o seu
julgamento mais do que a obediência cega, e uma decisão boa e lógica é
habitualmente respeitada.
Quando existe uma boa comunicação entre os médicos e as enfermeiras
e prevalece a colaboração, a flexibilidade aumenta, e é o doente que
beneficia. Quando esta comunicação não existe e as regras devem ser
seguidas à letra, os doentes passam frequentemente horas a receber líquidos
ou, pior, esperam inutilmente que lhe suprimamos o "ficar de jejum". Uma
certa flexibilidade foi desenvolvida no que diz respeito aos cuidados pós-
ope-ratórios, graças a prescrições de rotina modificáveis em função da
opinião da enfermeira sobre os progressos do doente. Estudos realizados
nos próprios serviços seriam úteis para realçar os repetidos atrasos na
modificação das prescrições médicas, o que acarreta para os doentes um
desconforto inútil. A conclusão de tais estudos poderia levar ao
estabelecimento de novos consensos entre médicos e enfermeiras no que
diz respeito aos problemas mais correntes.
CAPÍTULO 10

ÁS COMPE1'ÊNCIAS El\1 l\tIATÉRIA


DE ORGA1\1ZAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO
DE TAREFAS
Este domínio, mais do que qualquer outro, exige um bom conhecimento
da profissão. Cada vez mais as escolas de enfermagem incluem nos seus
programas aulas de organização e gestão do pessoal, porque a enfermeira
trabalha sobretudo no seio de organizações complexas. No entanto, mesmo
os princípios ensinados por simulação e estudos de casos não apreendem
toda a complexidade dos problemas de organização que uma jovem
enfermeira deve enfrentar. Esta deve aprender a reconhecer o que é pontual,
particular, acidental e específico de um determinado serviço.
Grande número das competências (ver quadro) descobertas neste
domínio foram observadas nas piores circunstâncias de falta de pessoal.
Sendo o nosso objectivo identificar as competências, não descrevemos as
numerosas carências de cuidados inerentes a esta situação, mas é claro que
as enfermeiras não gostam de trabalhar nestas condições. Sentiam-se pouco
à vontade face aos poucos conhecimentos que possuíam dos seus doentes,
e estavam extremamente insatisfeitas pelo facto de, muitas vezes, apenas
poderem agir muito limitadamente e demasiado tarde. Não houve
descrições de "sinais de alarme precoces". Apenas eram satisfeitas as
necessidades evidentes e mais agudas. A insatisfação destas enfermeiras e
as suas estratégias de acção assinalam um domínio necessário de
investigação descritiva: o realce da insuficiência de cuidados quando uma
organização é deficiente e o pessoal insuficiente.

Domínio: Capacidade de organização e de distribuição das tarefas

❖ Coordenar, ordenar e responder às múltiplas necessidades e solicitações


dos doentes: estabelecer prioridades
❖ Constituir e consolidar urna equipa médica que ponha em prática os me-
lhores cuidados
174 1 De iniciado a perito

❖ Enfrentara falta de efectivos e uma significativa mobilidade do pessoal:


Planificar os acontecimentos
❖ Antecipar e prevenir os períodos de crise em que a quantidade de trabalho
será excessiva para uma equipa
❖ Recorrer e manter o espírito de equipa; conseguir o apoio moral das ou-
tras enfermeiras
❖ Manter um comportamento humano em relação aos doentes, mesmo na
ausência de contactos próximos frequentes e
❖ Manter uma atitude flexível em relação aos doentes, à tecnologia e à
burocracia

Coordenar e responder às múltiplas necessidades


e solicitações dos doentes: estabelecer prioridades

Aquando das entrevistas com os pares iniciadas e orientadoras, uma


competência qualificada de "organização" foi invariavelmente mencionada
como obstáculo ao melhoramento das capacidades. Estas enfermeiras -
tanto as peritas como as iniciadas - falavam do tempo em que respondiam
a todas as exigências com uma celeridade e uma qualidade quase
equivalentes. Em termos de nível de aquisição das competências, este tipo
de resposta produzia-se durante os estádios de aprendiz e iniciante, antes
que a enfermeira adquirisse o sentido do que era importante e do que não o
era. Depois da observação, podíamos notar que as enfermeiras peritas
tinham a capacidade de responder às solicitações e às necessidades de
diferentes doentes, sem descurar informações importantes ou passar ao
lado de necessidades significativas. No primeiro exemplo, a transição entre
1
''
'!
o estado de iniciado e o de competente era evidente.
'!,'

Exemplo I

A recém licenciada - Na escola de enfermagem, tínhamos


pouquíssimos doentes, e depois, vim trabalhar aqui onde, apesar de
As competências em matéria de organização e distribuição de tarefas 1 175

continuar a ter a meu cargo poucos doentes, me dava conta de tudo o que
havia para fazer, do tempo que este trabalho levava, o que queria obter. ..
não sei. .. vinha aqui e alterava todos os meus panos, e fazia as camas.
Bastava que alguém me pedisse um copo de água ou outra coisa
qualquer, para que começasse a correr e me sobressaltasse cada vez que
um doente dizia alguma coisa. E isto apenas contribuía para me
desorganizar completamente. Porque não fazia mais nada que correr de
um lado para o outro e não chegava a lado nenhum. Então, aprendi a
estabelecer prioridades. A água não é uma verdadeira prioridade em
relação a uma injecção de um analgésico. Acabei por dizer: "Espere um
minuto, já volto. "
Se me tivessem visto ao início, não parava de passar no corredor, com
um ar abatido, quase em lágrimas porque nunca era capaz de fazer
grande coisa. Foi necessária muita ajuda. Actualmente, ainda tenho
momentos em que me sinto ultrapassada, quero dizer, isso acontece a
toda a gente quando se é desorganizado, mas, em geral, os cuidados da
manhã estão concluídos por volta das dez horas e os novos medicamentos
distribuídos logo de seguida, os sinais vitais medidos mais cedo, e as
coisas correm melhor. Agora, sinto mais compaixão e empatia pelos
doentes.
O investigador - Mais agora que aquando da sua chegada?
A recém diplomada - Oh, sim. Tinha demasiado medo de tudo para
prestar atenção aos meus doentes, quanto mais sentir simpatia por eles.
O investigador - Actualmente, estou certo de que se trata de um
comportamento típico e que isso faz parte do processo de aprendizagem.
Como conseguiu enfrentar esse problema? Os doentes tornam-se
objectos quando é necessário às enfermeiras coordenar tantas coisas. O
facto de passar tão frequentemente no corredor pode ser difícil no início.
A recém diplomada - Durante um certo tempo, interroguei-me se
realmente queria ser enfermeira. Com efeito, os doentes não eram a
minha prioridade. Já era tão duro para mim distribuir os meus
medicamentos e tudo o resto, que não me preocupava com eles. Agora,
não sei. Presto-lhes realmente atenção. Penso que não consigo descrever
o que se passava no início. Um dia, quando entrava num quarto, senti-me
em casa. Os doentes estavam nas suas camas e no seus lugares; eram
seres humanos que eu queria realmente aprender a conhecer, para
responder às suas necessidades. E senti-me bem.
176 1 De iniciado a perito

Exemplo li

Obsen,ações de registos de uma enfermeira perita: Ela parece saber o


que quer fazer com cada doente durante a noite. E11corajo11 Bob a beber
água porque este está pálido e parece desidratado. Mais tarde recolhe11
uma amostra de urina e constatou que a sua taxa de açúcar era de 5+:
"Não sei por que motivo ele elimina tanto açúcar". O outro doente deve
ser operado aos olhos 110 dia seguinte. Ela disse-Lhe que voltaria mais
tarde para lhe dar algumas explicações respeitantes à operação.
Perguntou-lhe se ele queria beber alguma coisa e ele respondeu q11e Lhe
apetecia bastante um sumo de tomate. Ela ajudou-o a pôr as gotas no olho
esquerdo. Como ele tocou na esclerótica, ela corrigiu-o, dizendo-lhe que
não tocasse no olho quando metesse as gotas. No corredo1; disse-me o que
pretendia fazer com este doente. De seguida, fomos ao quarto de Sarah,
porque o médico encontrava-se lá e ele queria que a enfermeira estivesse
presente enquanto examinava a doente. Ele queira colocar-lhe algumas
questões. Ela disse-Lhe que Sarah, nessa noite, estava mais conscieme, que
estava mais desperta e que estava com o espírito mais claro.
Quando pensa 110s seus doe/lles, Ellen integra todos os dados 11w11
todo. Lembra-se do sumo de tomate prometido ao doente que vai ser
operado ao olho, mas depois de ter feito numerosas coisas. Em primeiro
lugar, foi ao quarto de Sarah depois ao de Jenny, e, 110 entanto, 1u'io
esqueceu o sumo de tomate. Falei-lhe sobre isso mesmo: "Como se
lembrou do sumo de tomate? Parece que tem de se lembrar de muita
coisa." Ela respondeu-me: "Sabe, às vez.es, eu própria me espanto por
tudo o que sou capaz de me lembrar e que 1u'io esqueço, mas se realmente
tivesse de fàzer uma coisa de cada vez, então, passaria o meu tempo a
correr e 1u'io teria tempo para concluir todo o me11 trabalho. Faria
demasiadas idas e vindas."

Comentário Reduzido

Esta competência de alto nível brilha mais frequentemente pela sua


ausência de reconhecimento, e pode, portanto, passar despercebida e não
ser reconhecido o seu real valor. As enfermeiras peritas aprendem a
organizar, planificar e coordenar as diferentes necessidades e solicitações
dos doentes, e a adaptarem incessantemente as suas prioridades às
mudanças constantes do seu estado.

tr
As competências em matéria de organização e distribuição de tarefas 1 177

Constituir e consolidar
uma equipa médica para prodigializar os melhores cuidados

Todos os membros de uma equipa médica (de cuidados de saúde) que


tenham à sua responsabilidade um doente avaliarão o estado potencial de
recuperação deste. E para que o tratamento seja o mais eficaz possível, cada
uma das pessoas implicadas deve apresentar o seu ponto de vista aos ou-
tros membros da equipa. Esta troca é um processo dinâmico porque o
doente muda pouco a pouco, e porque as relações múltiplas realçam dife-
rentes perspectivas e, consequentemente, diferentes possibilidades de te-
rapias.
Trabalhar em equipa é crucial, tanto para prestar ao doente cuidados
eficazes, como para manter a moral da equipa de saúde. As divergências de
opinião são inevitáveis e necessárias para que o tratamento seja eficaz.
Quando as divergências provocam fissuras no seio da equipa, é necessário
tudo fazer para a consolidar novamente.

Exemplo I

Uma enfermeira descreve o desgaste provocado por uma confrontação


entre ela própria e o médico que queria fazer um electrochoque a um
doente:

Passáramos ao lado de alguma coisa importante: levar os médicos a


estabelecer connosco a sua política de cuidados. Mesmo que ela não
fosse a desejável, ao menos que tivesse sido seguida no conjunto porque
implicava toda a equipa de psiquiatria ... o que realmente é importante
dizer é qu_e: "Estamos todos implicados, mesmo, que nem sempre
estejamos todos de acordo".

Exemplo II

O observador - A erifermeira fez notar que a equipa implica


igualmente aqueles que trabalham em outros horários. Uma enfermeira
experiente insiste na importância desta noção vasta de equipa, e mostra
como ela funciona, dando o exemplo da ajuda prestada pela sua equipa
t

1 j
i t; 178 1 De iniciado a perito
l

r
l
à equipa allterior para que esta pudesse exprimir os seus sentimentos a
propósito de um doente que se suicidara durante a noite. Eles
participaram igualmente na admissão de um novo doente para evitar o
caos no momento das transferências. Mas as relações elltre equipas
devem ser de sentido duplo. Assim, quando estas são fortes, é sempre
possível obter ajuda da equipa seguinte quando a equipa de serviço já
não consegue lidar com a situação.
A enfermeira perita - É extraordinário quando existem relações
suficientemente fortes com a equipa seguinte que nos permitam dizer,
quando se foi ultrapassado pelos acontecimentos, que houve coisas que
não se teve tempo de faze,: Diz-se: "úunento, tivemos de colocar de lado
isso, era necessário ocuparmo-nos de outra coisa mais urgente". E é
verdadeiramente extraordinário quando esta relação de simpatia existe.
Finalmente, esta competência inclui a capacidade de recrear ou
consolidar a equipa depois de uma crise.

Comentário Reduzido

Os exemplos de constituição de uma equipa provêm, em primeiro lugar,


de um apurado serviço de psiquiatria; todavia, uma equipa unida e bem
coordenada a cada mudança de horários é essencial em qualquer ambiente
terapêutico - não apenas para a continuidade dos cuidados, mas igualmente
para a sobrevivência e saúde dos membros da equipa. Tratar dos doentes é
demasiado exigente e complexo para ser levado a cargo por um único
membro da equipa. É evidente que as enfermeiras peritas consideram a
equipa como fazendo parte integrante da sua própria eficácia, como
acontece no mundo dos negócios.

Fazer face à falta de efectivos


e a uma mobilidade significativa do pessoal

Faltas intermitentes de pessoal e uma mobilidade significativa deste


aumentam a sobrecarga de trabalho das enfermeiras e levam a uma pressão
suplementar, devido ao facto de trabalharem com um pessoal provisório e
inexperiente. Quando os dados deste estudo foram reunidos, as enfermeiras
eram em número insuficiente, se bem que a situação tenha podido mudar

>
As competências em matéria de organização e distribuição de tarefas 1 179

com a conjuntura económica. Estas diferenças entre a afeita e a procura serão


sempre um factor importante no que diz respeito à avaliação dos cuidados de
enfermagem. Esta profissão é muito difícil de suportar e provoca stress,
mesmo quando as circunstâncias são ideais; mas, quando sofrem pressões
suplementares, as enfermeiras devem mudar completamente os seus
desempenhos e as estratégias que lhes permitam enfrentar as situações. Nos
seis hospitais em que recolhemos estes dados, havia falta de pessoal; apenas
um hospital privado apresentava uma mobilidade reduzida de pessoal.
Um Centro Hospitalar Universitário (CHU), no momento em que reali-
zámos o nosso inquérito, sofria de uma grande falta de pessoal, e esta era de
tal modo impo1tante que as crises se haviam tornado inevitáveis. Havia dife-
renças significativas no conteúdo das descrições feitas pelas enfermeiras
deste hospital. Apenas falavam de situações de crise, de catástrofes evitadas
a tempo e de verdadeiros fracassos. É nestas situações que elas pensavam que
as suas intervenções teriam feito a diferença, mesmo admitindo que
raramente haviam feito o máximo no momento certo. Quando lhes
perguntávamos se elas conseguiam lembrar-se de situações menos críticas,
diziam que estavam de tal modo pressionadas pelo tempo, que apenas
podiam responder às necessidades essenciais dos doentes. Para uma
enfermeira, fazer todas as intravenosas a cerca de vinte e três doentes deixava
pouco tempo para responder às outras necessidades. Uma enfermeira
resumiu a situação desta maneira: "Atende-se o mais necessitado. Aprende-
se a suprimir o supérfluo. Apenas se faz o que é prioritário, os cuidados de
enfermagem urgentes."
Que acontece ao papel da enfermeira nestas condições? Além da
ausência de descrições de cuidados administrados aos doentes quando não
havia uma crise, as enfermeiras deste hospital, nas suas entrevistas, não
falavam dos doentes enquanto pessoas. Davam poucas informações sobre a
identidade destes ou sobre o modo como os seus doentes interpretavam a
sua doença. Era completamente diferente das entrevistas em grupo ou
indivi-duais conduzidas com o pessoal dos outros hospitais. Aquando da
terceira sessão de entrevistas, as enfermeiras foram interrogadas sobre este
assunto. As suas respostas foram eloquentes.

O investigador- Uma das coisas da qual não vos ouvi falar até hoje foi
das vossas relações com os vossos doentes.
A enfermeira 1 - Elas não existiam. Não havia tempo para desenvolver
relações privilegiadas com os doentes porque tínhamos muito que fazer.
180 1 De iniciado a perito

Tínhamos doentes muito, muito graves.


A responsável pela formação - Mas quando vou ao vosso piso, vejo
numerosos cartões e presentes que dizem: "Obrigada, não saberia que
fazer sem si".
Enfermeira 1 - Sim, exacto, mas é porque as auxiliares de enfermagem
lhes fazem companhia. São sempre elas que preenchem o vazio afectivo.
Não sou eu; longe disso.

Estas enfermeiras enfrentam esta falta de contacto, desenvolvendo uma


atitude compreensiva mesmo quando não têm tempo para tratar dos doentes
de uma forma normal.
A pressão contínua, devido à sobrecarga de trabalho, ao facto de traba-
lharem com um pessoal temporário e à necessidade de orientar os novos
membros do pessoal, perpetua este elevado nível de mobilidade do pessoal.
A esta importante fonte de insatisfação juntam-se outras. Estas enfermeiras
enfrentam este sentimento, em primeiro lugar, respondendo ao desafio
lançado pela situação, mas acabam, frequentemente, por sentir que fizeram
pouco e demasiado tarde, nomeadamente no domínio das relações
humanas; por isso, é difícil esperar que se orgulhem deste sentimento de
competência e de cumprimento decorrente de terem agido correctamente e
atempadamente. O ambiente de trabalho destas enfermeiras não lhes dá
qualquer apoio.
As enfermeiras fizeram notar que acreditavam que tudo se passava
como se elas já não tivessem tempo para reflectir, aprender e
aperfeiçoarem-se. A maior parte das suas reflexões efectuaram-se em suas
casas, onde não tinham a possibilidade de verificar ou de prosseguir os seus
raciocínios. Evidentemente, podemos sempre dizer que elas apenas
falavam de períodos de crise porque eram os únicos de que se lembravam.
Como estavam submergidas por informações, apenas retinham estes
acontecimentos. É preciso dizer que estas enfermeiras tiveram dificuldades
em sentir-se orgulhosas dos seus actos porque fazê-lo significaria lançar o
opróbrio sob as suas condições de trabalho. Elas qualificavam o seu
trabalho de "cuidados de urgência" e esperavam que pudessem aguentar até
que as condições melhorassem.

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As competências em matéria de organização e distribuição de tarefas 1 181

Planificar os acontecimentos

Quando a sobrecarga de trabalho é demasiado significativa, a


enfermeira deve avaliar rapidamente os cuidados mais cruciais e as
necessidades de vigilância: ler o dossier, estabelecer prioridades e mudá-las
frequentemente. As normas de cuidados, os procedimentos e as políticas
devem ser continuamente avaliadas no contexto de necessidades múltiplas.
Trata-se de uma trilogia constante. As enfermeiras contam que certas
prioridades são clássicas: por exemplo, os sinais vitais que se degradam, as
urgências médicas e cirúrgicas, tais como o choque, as febres fortes, as
feridas que supuram, as perfusões que não correm ou que se infiltram. Mas
mesmo estas prioridades podem ser postas de lado quando surge se
apresenta uma crise no serviço.

Exemplo I

A enfermeira perita- É precisamente o ritmo que é demasiado rápido.


Em alguns dias, este era tão rápido e davam-se tantas voltas que nos
sentíamos completamente ultrapassadas pelos acontecimentos. É
necessário distribuir os medicamentos, dirigir a equipa, ver se cada uma
faz bem o seu trab~lho, verificar o modo como determinada enfermeira
fez determinado penso. Terá protegido correctamente a ferida? Sabe,
acaba por ser demasiado.

Exemplo II

O investigador - Então, trata-se finalmente - tendo em conta o


contexto e as circunstâncias - de fazer o melhor possível e tratar de
maneira aceitável?
Enfermeira 1 - Atender-se o mais necessitado.
Enfermeira 2 - Saber o que é mais necessário.
Enfermeira 3 - Estabelecer prioridades desde o início do serviço.
Enfermeira 4 - É necessário existir um método, uma aparência de
organização. O mais cansativo, é quando se tem uma urgência e se deve
fazer sair toda a gente do quarto, obter toda a ajuda possível para daí
tirar a cama. Por exemplo, Ellen ajudou-me um dia a tratar de um doente
182 1 De iniciado a perito

ligado ao ventilador enquanto não havia vaga nos cuidados intensivos.


Ellen acabou por ficar. Reuni toda a ajuda que pude no piso.
Transferimos o doente para um outro quarto e entubámo-lo. Pedimos um
ventilador e ela ficou para dar uma ajuda.
Enfermeira l - Com isto, o serviço da noite atrasou-se?
Enfermeira 4 - Não, acabei por compensei o meu atraso porque a
enfermeira que se ocupava dele sabia o que era necessário fazer. Mas é
muito difícil quando há uma emergência no piso, devido à qual é preciso
reunir todo o pessoal, e tudo coordenar.

Antecipar e prevenir os períodos


em que a sobrecarga de trabalho será excessiva para uma equipa

Em situações graves, é necessário uma certa habilidade para repartir o


trabalho no seio da equipa. Mas, durante um serviço, certos períodos estão
sempre particularmente sobrecarregados - por exemplo, aquando da
mudança de equipas. Em períodos críticos, quando a sobrecarga de traba-
lho é muita, as enfermeiras experientes acabam por ter o hábito de antecipar
e evitar os apelos suplementares.

Exemplo

A enfermeira perita -Aprendi a organizar-me correctamente com as


pessoas do serviço de reanimação médica, porque sei que eles esperam
geralmente 14h 45 ou 15 horas para transferir um doente. Peço, então,
às enfermeiras que me dêem o seu relatório antes desse momento. Deste
modo, tenho tempo de ouvir as suas informações, pelo que já estarei ao
corrente da situação seja qual for a hora a que tragam o doente. Isto evita
ser interrompida quando estou afazer outra coisa.

Utilizar e manter o espírito de equipa,


conseguir o apoio das outras enfermeiras

Trabalhar em condições em que cada enfermeira tem a seu cargo um


grande número de doentes obriga a que cada uma encontre uma ajuda,
As competências em matéria de organização e distribuição de tarefas 1 183

mesmo quando as outras enfermeiras não estão disponíveis. O sentimento


de que todas "estão no mesmo barco" gera um espírito de camaradagem
que não pode nascer em outras circunstâncias.

Exemplo

A cânula de traqueostomia de um doente tinha-se obstruído e não havia


aparelho de aspiração - e o que ainda é pior, não havia pinças.

A enfermeira - Bem, houve uma coisa positiva, é que as enfermeiras


do serviço de reanimação responderam muito rapidamente. Elas
gostavam bastante de mim e aceitaram permanecer ali para me ajudar.

Manter um comportamento humano 1 em relação aos doentes


mesmo na ausência de contactos próximos e frequentes

Quando uma única enfermeira tem a seu cargo entre vinte e quarenta
doentes e é a única profissional diplomada da equipa, ela não terá tempo de
estabelecer contactos pessoais com os doentes. Mas dado que há
numerosos pacientes que permanecem durante muito tempo no hospital, ou
porque sofrem de doenças crónicas (pelo que frequentemente se encontram
internados), ou porque o seu estado é bastante grave, a enfermeira acaba
por conhecer estas pessoas e sentir-se pessoalmente implicada pelo seu
destino.

Exemplo 1

O investigador - Há uma coisa que sempre me intrigou. As


enfermeiras parecem reconhecer os doentes provenientes de diferentes
serviços. Como é possível?

'Comportamento humano é uma das formas porque traduzimos a palavra Caring.


(N.da T.)
184 1 De iniciado a perito

Enfermeira 1 - Bem, já o vimos anteriormente.


Enfermeira 2 - Nós tivémo-lo no quinto piso.
Enfermeira 3 - Ele vinha sempre fazer-nos uma pequena visita.
Enfermeira 4 - O que é realmente triste é quando um destes doentes
morre.
Enfermeira 2 - Sim.
Enfermeira 3 - Toda a gente acaba por sabe,:
Enfermeira 1 - Era o que receávamos em relação ao fim ...

Exemplo li

O investigador - Para mim é difícil visualizar a maneira como esta-


belecem a relação entre o corpo doente e o ser humano que nele habita.
Como o conseguem? Podem-me falar dessa relação?
Enfermeira l - Bem, Linda é muito humana, quero dizer com isto que
ela fala e exprime-se facilmente. Quero dizer que é difícil esquecer
completamente Linda, mesmo se tratamos uma certa parte do seu corpo.
Enfermeira 2 - Ela lembra-se de si.
O investigador - Diga-me mais. Fale-me de Linda. Quero dizer
como ... suponho que ela colabora no seu trabalho. Talvez pudesse falar-
me disso.
Enfermeira l - Ela encara a vida de um modo positivo. Mesmo
sabendo que o seu prognóstico é sombrio, parece pensar que vai ficar
melhor e confia no médico. Ela pensa de modo positivo e transmite-nos
essa atitude. Mesmo que saibamos que ela não vai melhorar. Nada mais
fazemos que continuar a tratá-la e, como ela, esperamos que o seu estado
melhore.

Manter uma atitude flexível


em relação aos doentes, à tecnologia e à burocracia

As enfermeiras experientes consideram o seu trabalho em termos de


objectivos. Mas, para atingir estes objectivos num ambiente que está longe
de ser perfeito, elas desenvolvem uma atitude flexível que lhes permite
aceitar os comportamentos idiossincráticos dos doentes, encontrar
As competências em matéria de organização e distribuição de tarefas 1 185

tecnologias de substituição em caso de urgência e mudar o comportamento


rígido dos outros.

Exemplo I

Notas registadas no terreno: As enfermeiras discutiam sobre vários


doentes que tinham acabado de escolher o seu quarto no seu serviço, antes
de se dirigirem ao serviço de admissão. Os dois doentes em questão so-
friam de doenças crónicas. As enfermeiras puseram-se a falar das excep-
ções e das disposições feitas no serviço para estes doentes, porque o
pessoal ouvira falar das suas preferências e do modo como encaravam a
sua doença. Falaram também do seu medo de ver estas doentes serem
derrotados no seu combate contra a doença.

Exemplo II

Uma enfermeira perita descreveu como fixou um dreno torácico quando


não havia pinças disponíveis à cabeceira dos doentes:

Evidentemente, não havia pinças. E eram 4h 20. Estava sozinha no


piso, as outras enfermeiras haviam saído para fazer os seus trabalhos.
Não havia mais ninguém, estava completamente sozinha e não tinha
pinças. Então, peguei no dreno e fixei-o. Alguém encontrou uma pulseira
elástica, e prendemos com ela o dreno. Depois saí a correr; chamei a
esterilização central: "Enviem-me uma pinça". O que na realidade fize-
ram. Não podia acreditar. Elas enviaram-me uma e prendi o dreno.

Exemplo III

Notas registadas no terreno - A política do hospital não permite às


enfermeiras a administração de sangue, fazer electrocardiogramas, fazer
testes cutâneos, e inserir catateres endovenosos. Em situações difíceis, as
enfermeiras têm de contornar essas políticas simplesmente porque a situa-
ção exige que elas actuem. Noutros casos, elas protestam porque não é
adequado que tenham que se coordenar com outro departamento para que
186 / De iniciado a perito

o tal procedimento que é proibido seja realizado. Então, estas acções rea-
lizadas habitualmente pelas enfermeiras são feitas por elas, apesar das po-
líticas do hospital, sempre que as situações o exigem.

Comentário Reduzido

As situações agudas de falta de pessoal e a sobrecarga de trabalho criam


um clima organizacional de crise. Exige-se uma máxima flexibilidade para
que se tenha em conta os constrangimentos e as faltas de pessoal, para que
as enfermeiras encontrem modos de trabalhar flexíveis dentro dos constran-
gimentos das suas circunstâncias.

Resumo e conclusões

Estas competências salientam a exigente e complexa natureza do papel


das enfermeiras num contexto de trabalho hospitalar. As competências
associadas à construção da equipa requerem uma integração social antes que
o novo profissional possa efectivamente ser competente fazendo parte e
integrar realmente a equipa terapêutica. Para se providenciarem cuidados
contínuos e seguros durante todo o dia exige-se coordenação e trabalho de
equipa.
Os nossos limites culturais levam-nos a preferir os aspectos de indivi-
dualismo e de autonomia em qualquer papel profissional, e a enfermagem
pretende diminuir a fragmentação dos cuidados e aumentar a
responsabilização e a visibilidade da enfermeira através da enfermeira de
referência.' Mas, apesar dos esforços para dar às enfermeiras
individualmente a autoridade e a autonomia que são compatíveis com as
suas actuais responsabilidades, as enfermeiras irão continuar a necessitar
de uma organização original e de competências profissionais específicas.
Os próximos dois capítulos descrevem implicações mais abrangentes
nos sete domínios de competência dos cuidados de enfermagem, para a
investigação em enfermagem e para a prática de enfermagem tanto no
desenvolvimento profissional clínico como na educação em enfermagem.

2
Enfermeira de referência ou enfermeira responsável é a forma que encontramos
para traduzir a expressão primary nursing (N. da T.).
CAPÍr.rULO 11

IMPLICAÇÕES

PA.RA A INVESTIGA.ÇÃO
, ,
E A PRA. TICA CLINICA
É um tributo à riqueza da prática em Enfermagem o facto de cada uma
das competências apresentadas nos sete domínios da prática de
enfermagem conduzir a numerosas implicações para a investigação, a
prática clínica, o desenvolvimento profissional e a educação. Abordarei os
dois primeiros pontos neste capítulo.

Envolvimento versus distanciamento

Cada domínio e cada exemplo é assunto de pesquisa. Separei por


exemplo a "função de ajuda" da de "guia e educação" mesmo podendo
consi-derar-se as duas como comportamentos de ajuda, por causa da sua
riqueza e porque o lado humano é distinto do lado puramente educativo,
bem como do lado puramente "terapêutico". A palavra "terapêutico" tem o
seu signi-ficado na psicanálise, que define aquele que ajuda como aquele
que esta-belece uma "distância", elemento indispensável de toda a relação
profissional. Contudo as enfermeiras "auxiliares" descreveram inúmeras
vezes relações onde o envolvimento existia. Diziam coisas como "tornámo-
nos amigos"; "conhecíamo-nos verdadeiramente bem nessa época, e eu
compreendia a faITI11ia e o doente"; "fazia-me lembrar o meu avô e eu
queria saber o que é que lhe estava a acontecer".
Durante estas entrevistas pensávamos em todas as nossas aulas da
escola de enfermagem quando me preveniram para "não me envolver
demasiado". E perguntei como as enfermeiras conseguiam tornar
compatível o facto de estarem emocionalmente envolvidas com o doente e
de no entanto terem de o submeter a tratamentos dolorosos. Desenvolvi
uma hipótese a partir das respostas obtidas, mas até esta data não foi
verificada. Supus que fosse este mesmo envolvimento que ajudava as
enfermeiras, bem como o doente e a família a enfrentar melhor a doença.
1

r
190 1 De iniciado a perito

Creio que as técnicas que visam impor uma certa distância entre elas e os
doentes, protegem insuficientemente as enfermeiras da dor da situação ao
mesmo tempo impedindo-as de aproveitar os recursos e as possibilidades
que engendra o compromisso face a estes doentes e às suas famílias.
Algumas enfermeiras pareciam menos envolvidas, mas tal tratava-se de
uma escolha deliberada, no entanto era uma minoria, como reflectem os
exemplos. Isto abre uma via de pesquisa interessante. O modelo de Dreyfus
de aquisição de competências diria que um certo nível de envolvimento é
necessário para que se desenvolva o sentido de observação. Um observador
"distante" tem menos possibilidades de notar mudanças subtis nos doentes.
Um certo nível de envolvimento é pois necessário para atingir o nível de
perícia. Quando elas trabalham e nos mostram exemplos de da sua perícia,
as enfermeiras que participaram neste estudo, desafiaram algumas das
nossas ideias formais e não formais no que diz respeito a saber se é
necessário manter ou não uma certa distância entre aquele que cuida e o
doente.

As relações Enfermeira - Doente

Enquanto investigador que segue regularmente aulas de psicologia, dei-


me conta que a linguagem que as enfermeiras utilizam nas suas relações de
ajuda é diferente da dos outros profissionais de saúde. Esta especificidade
necessita de ser explorada de maneira mais descritiva. A par da sua
profissão, as enfermeiras colocam-se muitas questões, e os doentes contam
com elas, para um reconforto que eles não solicitam aos outros
profissionais de saúde. Aquando das observações feitas nas sessões deste
estudo, vi por exemplo enfermeiras ajudarem doentes tendo uma ileostomia
ou uma colostomia a mudar as suas bolsas e a fazer os seus curativos. Se o
doente está hospitalizado para uma segunda cirurgia e se ele sobreviveu em
sua casa depois da primeira intervenção, a discussão passará rapidamente
para a sua forma de viver na sua casa: "veste-se e sai durante a manhã?".
As perguntas eram específicas e concentravam-se em coisas banais, como
a organização em casa, e derivavam naturalmente para a maneira como o
doente aceitou a sua situação e se adaptou à mesma.
As questões formuladas pelas enfermeiras provinham de conversas que
elas tinham tido com inúmeros doentes relativamente à forma como eles
enfrentaram a situação e as estratégias que eles utilizavam para refazer com
Implicações para a investigação e a prática clínica 1 191

a sua doença a sua vida quotidiana. Uma doente, da qual já falámos aqui,
perguntava mesmo a uma enfermeira durante uma sessão de preparação a
uma mastectornia se a enfermeira já tinha sido submetida a uma, por causa
da sua maneira de agir e porque os conhecimentos que ela tinha dos pro-
blemas pelos quais passaram os pacientes depois de serem operados era
muito precisa. Desta forma, as enfermeiras como os doentes não conside-
ravam inconcebível que elas possam ter a experiência da mesma doença.
Quando falei disso às enfermeiras, elas disseram-me que era importante
para elas compreenderem bem aquilo com que o doente era confrontado,
para poderem bem trabalhar com doentes que sofram de doenças
patticulares. Os exemplos dados nos domínios da função de ajuda e de
educação propõem indicações que dizem respeito aos conhecimentos não
consignados sobre a relação única enfermeira/doente, que ficam por
desvendar pelos estudos etnográficos sobre casos clínicos existentes.
Já que é a partir de uma aprendizagem informal que as enfermeiras
aprendem estratégias de adaptação, assim como diferentes possibilidades
de evolução da doença e da sua cura, é obrigatório pensar que a procura
sistemática em cuidados de saúde orientados para a fenomenologia de
readaptação dariam à enfermeira competências e conhecimentos
suplementares no seu papel de guia e de educadora. Tais estudos deverão
ultrapassar as simples descrições das informações que os doentes querem
receber. É neces-sário que se tratasse de estudos etnográficos clínicos dos
processos de rea-daptação que apreenderão os problemas postos, as novas
exigências, os medos, os conflitos e as competências a adquirir através de
diferentes doentes tendo personalidades e características diferentes.

Os sinais de alarme precoce

A função de diagnóstico e de vigilância do doente foi acrescida com o


número cada vez mais importante de tratamentos sofisticados apresentando
margens de segurança estreitas. A enfermeira capaz de detectar sinais de
alarme precoces é um elemento crucial numa unidade de cuidados
intensivos, e, ainda mais, nos serviços gerais onde os aparelhos de precisão
não são sistematicamente utilizados. Este fenómeno de reconhecimento
precoce de mudanças de estado do doente deve ser estudado mais adiante
para clarificar aquilo que facilita o desenvolvimento desta competência e
medir o seu impacto sobre a recuperação e cura do doente.
1
192 1 De iniciado a perito

Os professores não estabelecem suficientemente a diferença entre a


capacidade de reconhecer um problema médico e a sua apresentação
correcta e clara ao médico, para que este último possa responder de forma
adequada. Levada a cabo com sucesso a primeira tarefa não quer dizer que
se passará o mesmo com a segunda. As enfermeiras falaram da imp011ância
de terem credibilidade perto dos médicos, para que estes últimos as levem
a sério quando elas dizem que vai haver um problema, mesmo quando os
sinais de alerta são muito subtis e pouco significativos. Por outro lado, pode
revelar-se difícil de reverter a tendência, uma vez que a enfermeira é
considerada como uma alarmista. Para melhorar a sua capacidade de reco-
nhecer muito cedo os primeiros sinais de mudança, as enfermeiras pode-
riam dar indicações por escrito para saber quando elas são postas de lado
de alguma coisa ou quando elas tiveram uma reacção exagerada.
Ou ainda, um serviço poderá melhorar a sua credibilidade conduzindo
estudos internos. Cada equipa de enfermeiras tem, sem dúvida, com os mé-
dicos, os seus próprios problemas de comunicação repetidos e previsíveis,
e uma simples documentação dos problemas por escrito poderia oferecer
soluções espantosamente simples. Os estudos de seguros qualificados
poderão incorporar um estudo sobre a forma como a enfermeira apresenta
a informação e a maneira como o médico lhe faz face. Os problemas
apresentados nos exemplos mostram que apesar das soluções apresentadas
por profissionais sobre os problemas de comunicação médico/enfermeira,
estes últimos estão ainda na origem de numerosas dificuldades.
O domínio do diagnóstico e da vigilância ilustra as mudanças rápidas do
estado dos doentes e a necessidade pura das enfermeiras de desenvolverem
meios de fazer frente a estas mudanças. Estudando o modo como as peritas
procedem, nós podemos aprender novas técnicas pedagógicas destinadas
aos estudantes.
Por exemplo, nós poderíamos ensinar às enfermeiras a fazer registos
sobre "dados previsíveis". Observando os seus preparativos para os
cuidados, a enfermeira perita pode decifrar comportamentos e postulados
muito ricos de um ponto de vista clínico.
Os conhecimentos aprofundados que as enfermeiras têm de certos
grupos de doentes oferecem ao investigador numerosas informações
permitindo o estudo sistemático do stress e dos comportamentos postos em
prática para fazer face durante e entre as diferentes fases das doenças. Já
que Stotland (1969) demonstrou que a perda de esperança é contagiosa e já
que as enfermeiras avaliam de maneira informal a capacidade do doente de
Implicações para a investigação e a prática clínica 1 193

melhorar, este domínio de conhecimentos clínicos pode ser carregada de


inteligência assim como, de percepções erradas. As duas merecem que nos
interessemos por elas.

Para lá dos cuidados de enfermagem

Nós esperamos que a enfermeira consiga gerir as coisas até à chegada


do médico, nas situações que mudam rapidamente. Mas, já que isto a
coloca fora das prerrogativas legais, este domínio de competências não é
formalmente reconhecido nem bem estudado. E então, é a enfermeira que
chama a atenção aos diferentes membros da equipa de saúde que coordena
as suas acções, quer seja chamando o médico, quer seja pondo em
movimento o sistema de urgência (paragem cardíaca). É curioso que não
exista nenhum estudo sobre a rapidez de tomada de decisões em presença
de uma urgência cardíaca, já que as enfermeiras devem decidir em algumas
fracções de segundo se se trata de um simples desmaio, de um mau
funcionamento do monitor ou de um problema grave.
Infelizmente, algumas enfermeiras ao ler estes exemplos dirão: "Mas
isto não faz parte das nossas atribuições!". Pode dizer-se que a gestão das
urgências vitais na ausência de um médico não faz parte do papel de reco-
nhecimento da enfermeira, na prática, exige-se que ela saiba fazê-lo. Uma
melhor definição e o reconhecimento desta função permite melhor preparar
as enfermeiras para este tipo de intervenção. Fiquei chocada pelo facto de
elas não procurarem desempenhar este papel, e de elas não se sentirem va-
lorizadas por um acto que realce as suas competências face aos recursos
limitados e das circunstâncias pouco favoráveis. Muitas vezes elas sentem-
se frustradas porque o sistema não funcionou como deveria ser. Este
domínio oferece importantes oportunidades de investimento. Pode ser que
demonstrando esta frequente responsabilidade da enfermeira se clarifique
uma certa legitimidade que melhoraria por sua vez, as intervenções e os
recursos da enfermeira e do sistema.

Competências de organização e de vigilância (monitorização)

Alguns dos domínios dos cuidados de enfermagem descritos neste livro


não receberam um reconhecimento suficiente, mas não acontece o mesmo
n

194 1 De iniciado a perito

no domínio da vigilância e da aplicação dos programas terapêuticos. As


enfermeiras administram e vigiam tratamentos muito complicados. Elas
passam muito tempo durante os seus estudos a pesquisar os novos proce-
dimentos, mas dá-se pouca importância ao nível elevado de competências
necessárias para conseguir realizar bem estes procedimentos com o mínimo
de dor e de riscos. Uma vez adquiridas, estas competências podem parecer
simples, mesmo pouco importantes. Contudo, temos muito a aprender das
enfermeiras que são capazes de administrar com sucesso medicamentos
anti-arrítmicos ou vaso-compressores. A descrição destes conhecimentos
abriria novos horizontes de pesquisa e novos meios de melhorar a prática
clínica. Não nos limitámos ao facto de as considerarmos enfermeiras "bem
treinadas" e considerarmos como normais as competências que elas
acumularam ao longo da sua prática.
Lewis Thomas (1983) descreve a enfermeira como o cimento que solda
o sistema complexo de cuidados no meio hospitalar. Vigiar e assegurar a
qualidade dos cuidados distribuídos por todos os membros da equipa
médica, assim como organizar e distribuir as tarefas são a composição do
cimento invisível que faz funcionar o sistema. Porque esta função parece
acontecer por si mesma, as próprias enfermeiras não reconhecem a sua
importância. Quer nós queiramos ou não, os recursos em matéria de
organização, os impedimentos e os pedidos estabelecem os limites e criam
opções para uma prática de enfermagem de alto nível. Em consequência, o
contexto - a organização de cuidados de enfermagem - não pode ser
excluído ou considerado como uma variante aleatória, porque cria e é
criada para o papel que aí é desempenhado pela enfermeira. Temos muito
a aprender do estudo das diferentes práticas de cuidados que podemos
identificar caso a caso nas organizações específicas. É necessário
concretizar um grande número de estudos para descrever as relações
enfermeira/doente nos diferentes contextos organizacionais.

O fenón1eno do cuidar humano (Caring)

Há conclusões mais gerais a tirar destes exemplos de cuidados de


enfermagem de qualidade excelente. Colocam a tónica no papel central do
cuidar genuíno, como um compromisso e um envolvimento inerente à
prática de enfermagem. Incluindo o contexto, somos igualmente capazes de
falar da qualidade desta implicação no cuidar, porque este envolvimento é
Implicações para a investigação e a prática clínica 1 195

de ordem relacional. Descrevendo diferentes tipos de cuidados nos dife-


rentes contextos começa-se a compreender o papel do cuidar no processo
da recuperação, da cura e da promoção da saúde. É violentar a noção de
cuidar (caring) quando se separa na nossa prática os conceitos relevantes
acerca do que é "técnico" (papel instrumental) e do que é "psicológico"
(papel expressivo) (Skipper, 1965).
As enfermeiras peritas misturam os dois papeis. Tomem por exemplo a
doente que fez o comentário sobre o seu curativo, que estava tecnicamente
perfeito e seco, e que dizia com um tom de esperança na voz, embora
estivesse desesperada algumas horas anteriormente: "Vejam este curativo,
não é uma verdadeira obra de arte?"(ver capítulo 8). A mudança de penso
revelava tanto o aspecto técnico como o psicológico e transformou o
doente. A relação do doente com a sua lesão, assim como as suas espe-
ranças tinham mudado no percurso da interacção entre enfermeira e doente.
Um meio de separar o psicológico do técnico nos cuidados de
enfermagem é o de relegar o envolvimento (caring) para a arte dos
cuidados de enfermagem. Mas uma vez que consideramos que o
envolvimento é do domínio da arte (e considero que é) arriscamo-nos a
ignorá-lo como tema de estudo, se bem que a prática como a teoria vão
sofrer com isso. É um perigo real para uma profissão cujo fim principal é
cuidar. Para examinar o "cuidar", nós não podemos apoiar-nos em medidas
puramente quantitativas e experimentais fundadas no modelo das ciências
naturais. A ciência da enfermagem é uma ciência humana conduzida por
sujeitos que se auto- interpretam (investigadores) estudando temas que se
auto-interpretam (participantes). E os dois grupos podem evoluir no
seguimento de uma pesquisa (Heidegger, 1962; Palmer, 1969; Taylor,
1971; Bondieu, 1977). O factor humano não pode ser nem controlado, nem
constrangido; só pode se compreendido e facilitado. É impregnado de
significações e de um envolvimento pessoal e cultural (Wrubel, Benher e
Lazarus, 1981; Benner, no prelo). As estratégias de estudo devem então ter
em conta significações e envolvimentos.
Bellah (1982) compara as pesquisas que são "comunicativas, práticas e
éticas, talvez mais que manipuladoras, técnicas e científicas" (se
entendermos por científica somente o modelo das ciências naturais).
Ele declara:

Sugiro reverter as prioridades entre a técnica e a prática, entre o


controlo e a acção. O fim da prática não é o de produzir ou de controlar
196 1 De iniciado a perito

qualquer coisa, mas de descobrir através de discussões e de reflexões


condições actuais, de viver uma vida eticamente correcta e boa. Para se
fazer isto os conhecimentos técnicos podem ser úteis, na condição que
sejam utilizados num contexto de conhecimentos práticos,
(quer dizer éticos e políticos) que tomam o seu próprio lugar'.

Embora Bellah se dirija aos sociólogos, aos políticos e aos moralistas,


os seus conselhos podem aplicar-se às enfermeiras - cuja disciplina
aplicada não pode eliminar o "psicológico", sem considerar a ética e os
significados que estão subentendidos nas práticas de cuidados.

' R.Bellah, "Social science as practical rason", The Hastings Center Report, 12 (5),
32-39, 1982, p.66.
1
1

1
CAPÍTULO 12

ll\tIPLICA.ÇÕES
PARA O DESE1'1VOLVIl\tIENTO
PROFISSIONAi., E PARA A EDlJCAÇÃO
O modelo Dreyfus, aplicado aos cuidados de enfermagem mostra que
poderemos alcançar a especialização graças à experiência. Com efeito, é
permitido medir os riscos tomados pelas enfermeiras peritas, logo quando
elas são levadas a tomar uma decisão. É por isto que o modelo leva a
estabelecer um esquema de formação e de carreira precisa, para que as
enfermeiras no enquadramento saibam até onde é permitido ir quando se
trata de tomar iniciativas. As enfermeiras não são actualmente
reconhecidas pelo seu verdadeiro valor, porque alguns dos actos que elas
realizam não têm nenhuma existência legal. Segue-se um desperdício em
recursos humanos: as enfermeiras peritas não encontram o seu ganho, nem
em termos de salário, nem em termos de reconhecimento das suas
competências.
O modelo Dreyfus fornece um quadro permitindo pôr em prática um
plano de desenvolvimento profissional. Integra as competências e os co-
nhecimentos adquiridos graças à experiência. Toda a gente reconhece o
interesse da formação permanente e da especialização, mas pouca gente
se interessa na experiência clínica. Ora é sobre este último ponto que se
debruça o modelo Dreyfus e a aproximação interpretativa.

O Desenvolvimento profissional

Para fazer face às mudanças internas e externas que afectam a profissão,


é extremamente necessário propor perspectivas de carreira às enfermeiras.
Os progressos de medicina alargaram o papel e aumentaram as respon-
sabilidades da enfermeira. Com efeito, esta profissão tornou-se tão
comple_xa por causa dos cuidados altamente especializados que se tornou
200 1 De iniciado a perito

impossível de codificar todos os actos de enfermagem. Os doentes


hospitalizados estão muitas vezes num estado crítico e o número de
diagnósticos e de intervenções aumentou consideravelmente. Não é
estranho que a hospitalização seja justificada pela necessidade de assegurar
cuidados de enfermagem de alto nível. É esta mesma complexidade do
papel da enfermeira que as torna muito pontualmente aceitáveis e torna as
substituições muito honorosas e pondo-as em contradição total com a
noção de cuidados de qualidade. Ainda mais, numa altura em que a
igualdade dos sexos no trabalho é um direito adquirido, é legítimo, numa
profissão composta na maioria por mulheres, que estas últimas aspirem a
um emprego estável que lhes abra perspectivas de futuro. Seriam
necessários mais elementos masculinos para agitarem as coisas?
Uma outra modificação está a favor do reconhecimento da experiência
das enfermeiras no meio hospitalar. Trata-se do movimento holista, que
permite compreender melhor a doença (Lassei, 1976; Bursztain; Fein-
bloom, Hamm e Brodsky, 1981; Cousin, 1983). Está cada vez mais
admitido que a proximidade global da enfermeira ao doente, permite ter em
conta os efeitos do stress e as estratégias de adaptação como variáveis
determinantes no processo de recuperação e cura. As funções educativas,
relacionais e as observações da enfermeira têm um papel maior na
readaptação do doente e na promoção da saúde. Mas uma tal aproximação
holistica implica necessariamente experiência e a continuidade dos
cuidados. Ora as estadias no hospital são cada vez mais curtas e o
acompanhamento é por vezes difícil de assegurar.
Numa preocupação de diminuir ao máximo os efeitos da rotatividade do
pessoal de enfermagem, os responsáveis tentaram estabelecer protocolos
onde tal fosse possível. Directivas, protocolos e procedimentos prolife-
raram (Gordon, p.191) para substituir a falta de experiência dos novos
diplomados e dos temporários. Os regulamentos internos também se
multiplicaram para responderem às exigências legais sobre alguns pontos
de vista precisos, como a delegação por parte dos médicos de alguns actos
às enfermeiras. Resulta daqui uma codificação excessiva de actos de
enfermagem enquanto que as responsabilidades assumidas pela enfermeira
para assegurar o bem estar do doente não cessam de crescer.
A profissão sendo sobretudo composta por mulheres, leva a que os que
decidem considerarem sempre que as enfermeiras não procuram mais do
que empregos provisórios ou carreiras a curto termo. Quantas mulheres na
realidade fazem uma verdadeira carreira, qualquer que seja o seu domínio?
Implicações para o desenvolvimento profissional e para a educação 1 201

Mais alguém já se perguntou alguma vez porque é que as enfermeiras ficam


tão pouco nesta profissão? Para melhorar o seu salário, a sua qualidade de
vida e o seu estatuto, as enfermeiras deixam a sua profissão ou dirigem-se
para postos administrativos, para o ensino ou para a saúde pública, no lugar
de ficar na cabeceira dos doentes. Daí a falta de enfermeiras peritas. Para
que uma enfermeira atinja o nível de perícia é necessário trabalhar mais de
seis anos neste domínio. Ora para quê atingir um tal nível quando este
último não é reconhecido?
A profissão de enfermeira está em evolução, e ela está ainda pouco
preparada a reconhecer e a valorizar o excelente, sobretudo no meio
hospitalar. Os esforços administrativos estão centrados quase unicamente
sobre a gestão dos movimentos importantes do pessoal de enfermagem.
Mas esta tendência vai contra as perspectivas desenvolvimento profissional
e da promoção da perícia em enfermagem. Hoje, a enfermeira é um
profissional clinico - um trabalhador com muitos conhecimentos - cuja
complexidade e responsabilidade do papel profissional requer um
desenvolvimento contínuo e a longo termo. Este capítulo oferece uma base
para o desenvolvimento clínico na prática hospitalar de enfermagem, para
o desenvolvimento profissional, na prática em posições ligadas aos
cuidados directos e para a gestão dos cuidados que promovam a
compensação e a manutenção das enfermeiras clinicas excelentes junto da
cabeceira dos doentes.

A profissão de enfermeira é caracterizada por dois objectivos


contraditórios: a individualização dos cuidados e a eliminação dos erros,
afim de assegurar os cuidados de qualidade (por exemplo, é preciso colocar
barras nas camas dos doentes para evitar que eles não caiam durante o
sono). Os protocolos, directivas visando obter cuidados de qualidade
podem ao mesmo tempo ir ao encontro da noção de individualização dos
cuidados. As nossas pesquisas mostram que a enfermeira perita é por vezes
levada a contornar estas regras quando ela julga que é para o bem do seu
doente. Assim, a enfermeira perita ultrapassa por vezes as normas e os
processos.
Mas que o leitor não se engane, sobretudo, quanto aos objectivos deste
estudo. Não se deve pensar que o nosso objectivo era o de codificar a
prática de enfermagem, nem acreditar que as trinta e uma competências
descritas aqui constituem uma regra a estabelecer como lei. Uma tal coisa
não seria adequada porque a perita não pode estar mergulhada em leis ou
202 1 De iniciado a perito

modelos. É preferível que ela seja reconhecida e recompensada. É


impossível codificar a perícia na medida em que ela é específica de uma
dada situação que necessita de uma interpretação clara e imediata dos
acontecimentos, senão há o risco de derrapagens. Com efeito, se tentamos
codificar fora do contexto "os elementos essenciais" do processo de
decisão, o resultado será, no melhor dos casos similar àquele que nós
obteremos com um computador, logo de um nível de competência mínimo
(Dreyfus, l 979; Dreyfus, l 982; Dreyfus e Dreyfus, no prelo).
É necessário salientar que os exemplos de especialização apresentados
nos capítulos precedentes não têm por fim mostrar exactamente as
competências que devem adquirir as enfermeiras; ao contrário, eles
formam uma amostra representativa daquilo que se faz habitualmente num
hospital. Querer tirar destes "elementos característicos" para estabelecer
um modelo será uma perda de tempo. Por exemplo, as enfermeiras peritas
interrompem tratamentos que elas julgam inúteis ou perigosos à medida
que evolui o estado dos seus doentes e das suas necessidades. É certamente
possível tirar ensinamentos destas excepções, mas saber corno a perita
apreende urna situação específica é toda uma outra história. Assim, a
codificação das excepções pode revelar-se menos rica de ensinamentos que
o mecanismo do comportamento do perito que, num "piscar de olhos", é
capaz de julgar globalmente um caso específico.
No meio clínico, a enfermeira é confrontada com situações de cuidados
complexos e ambíguos. Decide por vezes destacar uma necessidade de um
doente antes dos outros. Mas mesmo uma enfermeira perita pode ser levada
à dúvida. É a sua experiência que lhe permite ultrapassar as suas incertezas
e dizer que ela age pelo bem do doente. As escolhas difíceis são feitas na
base daquilo que é óptimo numa dada situação. É aquilo a que chamamos
"estabelecer prioridades". Todavia esta expressão trai toda a complexidade
e incerteza subjacentes a estas escolhas. As nossas pesquisas têm por fim
descrever e reflectir sobre a perícia e a prática de enfermagem.
A experiência, no sentido em que nós o empregamos aqui, não faz ne-
cessariamente referência ao tempo passado a exercer uma profissão, mas
sobretudo a um processo muito activo que consiste em formar e modificar
teorias e ideias ligadas de muito perto à realidade. Este modelo supõe que
todas as situações práticas são bem mais complexas que tudo aquilo que é
descrito pelos modelos formais, as teorias e outras descrições livrescas.
Face às situações clínicas, sempre diferentes pelos problemas que elas
apresentam, os clínicos acabam por ter uma outra visão de tudo aquilo que
Implicações para o desenvolvimento profissional e para a educação \ 203

é teórico. A teoria é fundamental, porque ela ajuda a pôr as boas perguntas


numa situação real; ela permite ao médico localizar o problema e saber
antecipar os cuidados que é necessário ter. Mas há sempre numa situação
elementos que a teoria não prevê. É este conhecimento das excepções que
somente a experiência no terreno pode trazer.
No modelo Dreyfus, a competência é definida em relação a uma situa-
ção mais que como uma característica ou um dado que transcende todas as
situações. Assim, este modelo afirma que uma enfermeira pode agir como
perita numa situação clínica (tendo em conta a sua capacidade inata e uma
formação adequada) quando 1) ela tem muita experiência; 2) ela está muito
motivada para trabalhar correctamente; 3) ela dispõe de recursos (materiais
e humanos) necessários para fazer frente às contrariedades geradas pela
situação. Mas, esta mesma enfermeira poderá agir num nível de
competência diferente noutras condições. Pois que as enfermeiras não
escolhem os doentes que têm a seu cargo, e porque se produzem sempre
situações novas e invulgares nos cuidados de enfermagem, nós podemos
por exemplo racionalmente pensar que a enfermeira agiu de maneira perita
em situações familiares e a um nível de competência inferior quando a
situação é menor. Assim, este modelo não é estático na medida em que ele
diz que as enfermeiras não agem eternamente como as iniciadas, existem as
enfermeiras de nível competente ou as peritas em todas as situações.
Para ao desenvolvimento profissional, as estruturas de formação
contínua e de orientação poderiam revelar-se mais importantes que as
medidas pontuais ou a mudança da tabela salarial. As nossas pesquisas
puseram, por exemplo, em evidência que algumas estruturas
organizacionais permitem às enfermeiras especializarem-se, estabilizarem
o pessoal e legitimar cada vez mais as decisões tomadas pela perita.

Especialização clínica

Como tinha previsto, o modelo Dreyfus ressalta as práticas e


observações que uma enfermeira não seja especializada a não ser num
determinado meio. Por exemplo, uma enfermeira perita no serviço de
cardiologia tem dificuldades em trabalhar num serviço de cirurgia geral,
mesmo ao nível da competência. As enfermeiras eventuais, que por
definição, mudam constantemente de serviço, não chegam a atingir a
pericia, porque não ficam o tempo suficiente no mesmo ambiente para
204 1 De iniciado a perito

apreenderem todos os elementos e particularidades de uma determinada


competência. Além disso, uma enfermeira não se torna perita sem que seja
confrontada durante o tempo suficiente com a mesma população de
doentes.
Tudo isto significa que é necessário um pessoal especializado e uma
estrutura adaptada para formar uma nova diplomada ou uma enfermeira
experiente vinda de um outro serviço. O processo de decisão complexa é
posto em evidência nas competências descritas nos domínios "Função de
diagnóstico e vigilância do doente"; "Controlo eficaz de situações de
evolução rápida" e "Assegurar e vigiar a qualidade dos cuidados" o que
implica que as enfermeiras devem ser experientes e que haja estruturas que
permitam assegurar a formação contínua ao nível do serviço. Este tipo de
formação é difícil de pôr em prática porque tem de se adaptar à situação do
momento. Alguns aspectos qualitativos não podem ser revelados a não ser
que a situação clínica o permita, e só a enfermeira perita pode reconhecer
subtis mudanças clínicas.
A especialização clínica é igualmente de extrema importância nos do-
mínios de enfermagem relacionados com a "Função de ajuda" e a "Função
de educação, de orientação". As enfermeiras acabam por apropriar-se de
uma quantidade tal de conhecimentos que se tornam capazes de
compreender, interpretar e responder às necessidades muito variadas dos
doentes. Acabam por adquirir uma certa flexibilidade e inteligência depois
de terem encontrado doentes em diferentes estados de uma doença. Sabem
então como as coisas vão evoluir. Uma enfermeira que tem pouca
experiência clínica terá dificuldades em reconhecer os problemas e em
explicar ao doente aquilo que o espera ou as dificuldades a que ele pode vir
a encontrar.

Programas de formação do pessoal da área da saúde

A formação do pessoal no seio do serviço permite comparar os pontos


comuns e as diferenças entre numerosos casos clínicos. Habitualmente, os
serviços de formação do pessoal insiste na aprendizagem de procedimentos
e de competências particulares. Os nossos trabalhos indicam que é neces-
sário dar muito mais atenção à maneira como se tomam decisões clínicas
de alto nível.
Os programas de formação do pessoal têm como objectivo promover a
.il
n'' ,

1
Implicações para o desenvolvimento profissional e para a educação 1 205

aquisição de conhecimentos clínicos de maneira a que cada enfermeira


adquira experiência. As estratégias de aquisição de conhecimentos clínicos
foram descritos algures (Benner e Wrubel, 1982) também contentar-nos-
-emos de os citar aqui somente. A primeira etapa consiste na utilização por
parte das enfermeiras da mesma linguagem. Isto tornou-se cada vez mais
usual na prática quotidiana, mas é possível encorajá-las ainda mais
pedindo-lhes para explicitarem e compararem os seus julgamentos clínicos
com uma linguagem comum a todas.
As enfermeiras proficientes e peritas podem aproveitar estas mudanças
para aprenderem. Existem muito poucos programas de formação contínua
que respondam às necessidades destas enfermeiras. Se mais esforços
fossem feitos neste domínio, a qualidade de cuidados proporcionados aos
doentes aumentaria igualmente, e tornar-se-ia possível distinguir as
enfermeiras mais competentes. No nosso estudo, as enfermeiras devem
relatar por escrito aquilo que elas entendem por "sinais de alarme
precoces". Devem igualmente descrever os casos que elas consideram
como os mais representativos de um ponto de vista clínico.
O modelo sugere diferentes estratégias de aprendizagem para cada nível
de competências (ver capítulo 2). Prevê que a proximidade do problema é
a mesma para os três primeiros níveis. Existe uma única diferença
qualitativa entre o nível competente e os níveis mais elevados (proficiente
e perita). Podemos então deduzir que uma enfermeira competente será a
mais indicada para guiar uma recém-licenciada. Com efeito, estando mais
próxi-ma da iniciada, poderá reconhecer o momento em que esta última
estará preparada para passar ao nível superior. Trata-se de uma hipótese que
não foi ainda verificada na prática. Se seguirmos o mesmo raciocínio,
podemos admitir que a enfermeira competente aprenderia muito com as
enfermeiras peritas e proficientes.

Estabilidade do pessoal

O modelo prevê que os actos mais qualificados serão realizados em si-


tuações onde será possível promover e desenvolver uma linguagem comum
com os colegas clínicos. Foi sugerido a colocação de uma grelha de
promoção para evitar a saída das enfermeiras, assim como o
desenvolvimento de programas de formação para enfermeiras peritas. A
gestão do pessoal de enfermagem deve ter como objectivo pôr em ordem
206 1 De iniciado a perito

estruturas favorecendo a sua estabilidade de forma a optimizar as


performances clínicas de alto nível. As enfermeiras foram muitas vezes
consideradas como transferíveis - ponto de vista posto em causa por este
estudo. Os problemas de pessoal devem ser resolvidos ao nível dos
serviços, de forma "que as enfermeiras que conhecem bem uma certa
população de doentes possam estar dis-poníveis a todo o momento".

Estratégias de avaliação

As estratégias de avaliação utilizam muitas vezes critérios de


competências fora do contexto. Só considerando o contexto é que os
atributos e aspectos da situação são tomadas em conta. Mesmo que
tentemos sempre avaliar a capacidade da pessoa para reconhecer e a avaliar
as necessidades do doente, este aspecto não toma, contudo, em conta a
importância destas necessidades. O modelo indicará que só os níveis de
iniciados a competentes podem ser avaliados independentemente do
contexto. É necessário seguir uma aproximação mais global e mais
qualitativa para julgar as competências aos níveis superiores.
Um dos hospitais participantes neste estudo pergunta aos candidatos
para descreverem incidentes críticos onde eles desempenharam um papel
importante no melhoramento do estado do doente. Isto permite aos colegas
determinar o nível de competência do candidato e saber se é razoável
permitir que passa para o nível III (ver Huntshman, epílogo). Esta
aproximação narrativa permite considerar o conteúdo e o significado do
incidente ou caso clínico assim como, a estrutura e o processo em causa.

Reconhecimento do profissionalismo

A maior parte dos protocolos e directivas têm por objectivo garantir aos
doentes que eles serão tratados com toda a segurança por enfermeiras que
tenham um mínimo de competência. Mas este aspecto não tem em consi-
deração as enfermeiras clínicas peritas. Ora é necessário legitimar todo este
saber - fazer, fruto de numerosos anos de experiência. Aqui não se põe uma
questão de antiguidade, mas sim de competências reais. O seu
reconhecimento diminuirá enormemente o stress e o mal-estar vivido por
estes profissionais de saúde que têm um enorme valor. Concluindo, só uma
Implicações para o desenvolvimento profissional e para a educação 1 207

gre-lha que reflicta fielmente as competências reais de umas e de outras


poderá finalmente abrir às enfermeiras de todos os níveis, verdadeiras
perspectivas de desenvolvimento profissional.

A formação das enfermeiras

O alargamento da prática de enfermagem, a importância da tomada de


decisões e os riscos inerentes a uma má avaliação indicam que uma boa
formação em biologia, em ciências psicossociais e em ciências de
enfermagem é indispensável para obter profissionais de alto nível capazes
de analisar as situações mais complexas. É necessário muito tempo para
atingir a perícia, e não será nem económico nem prático fazer esse ensino
de forma formal nas escolas ou nas acções de formação. O modelo de
Dreyfus descreve as grandes linhas do processo que permite passar dos
estado de iniciado ao estado de perito. Diz igualmente que a teoria e os
princípios permitem à participante ter acesso de uma maneira rápida e
segura aos co-nhecimentos clínicos. É a partir destas bases que poderá
formular as res-postas correctas aos verdadeiros problemas. Uma pessoa
portadora de uma bagagem limitada não tem os utensílios necessários para
tirar lições das experiências vividas. Por outro lado os conhecimentos
livrescos poderão limitar a enfermeira quando ela tiver que tomar uma
decisão numa dada situação.

Especialização clínica

Todas as enfermeiras têm direito de esperar atingir o nível de especiali-


zação se a sua formação foi bem conduzida. Com efeito, uma boa descrição
dos actos desempenhados quotidianamente pelas enfermeiras pode servir de
base à colocação em prática de um plano curricular realista (ver Faben, epí-
logo). Não é realista, economicamente, pretender que a recém-licenciada
possa atingir níveis de competência elevados em numerosos domínios. É
necessário com efeito ter estado tempo suficiente num mesmo meio e ter
participado num determinado número de experiências similares para adquirir
bases permitindo complementar o julgamento clínico. Por definição a recém-
-licenciada não tem toda esta vivência profissional. Os institutos de
formação tentam ser eficazes alargando os campos de experiências dos seus
estudantes. Mas, as nossas pesquisas sugerem que uma especialização
208 1 De iniciado a perito

precoce num domínio poderá ser extremamente vantajosa no sentido que ela
dará aos estudantes a ocasião de adquirir conhecimentos clínicos particulares.
As enfermeiras obtêm muitas vezes o seu diploma sem compreenderem
bem como fazer para passar do nível iniciado - avançado a competente ou
proficiente. Com efeito, elas ignoram como adquirir novos conhecimentos.
A aquisição de um saber de alto nível num domínio preciso, mostrará ao
estudante de uma forma mais geral como adquirir conhecimentos
avançados. O objectivo dos programas de estudo é evidentemente o de
fornecer o máximo de conhecimentos teóricos em domínios muito
diferentes para formar pessoas polivalentes depois da obtenção do diploma.
Se a escola pro-põe ao menos uma formação especializada muito intensiva,
os estudantes serão, depois, capazes de seguir o mesmo mecanismo de
aprendizagem para adquirir uma segunda especialidade à sua escolha. O
risco reside no facto que uma especialização precoce poderá limitar a
enfermeira em termos de desenvolvimento profissional porque, em cada
momento de mu-dança, de orientação deverá voltar ao zero ou quase.

Ensino clínico

As enfermeiras professoras são confrontados com o difícil problema de


manter o seu nível de perícia, tanto na prática como no ensino, ou em
investigação, e isto sem beneficiar de estruturas que permitem fazer a
ligação entre a prática e a teoria. Pela nossa parte, recomendamos a
utilização de "tutoras" de estágios tendo uma experiência clínica razoável
face ao nível dos alunos. No que diz respeito às inexperientes, não é
necessário que a sua tutora seja capaz de realizar actos de um nível de
competência elevada. Deve contudo poder dar as grandes orientações e os
princípios que tomarão a enfermeira inexperiente confiante e eficaz numa
situação real. Mas à medida que elas avançarem na sua especialização, os
estudantes terão necessidade de professores que façam julgamentos
clínicos correctos. No meio hospitalar, os especialistas poderão insistir num
caso invulgar explicando o que se passa habitualmente com doentes do
mesmo tipo. Este tipo de aquisição de conhecimentos por comparação de
casos clínicos necessita um esforço coordenado da parte da enfermeira -
professora e da tutora que segue o estudante no serviço.
Implicações para o desenvolvimento profissional e para a educação 1 209

Aprendizagem em contexto clínico, princípios

Graças ao modelo Dreyfus, é possível estabelecer a diferença entre os


conhecimentos teóricos e aqueles que nós não podemos adquirir a não ser
pela experiência. As recém - licenciadas começam muitas vezes a sua
carreira no nível inicial na maior parte dos domínios clínicos. É por isso
que é fundamental que eles sejam enquadrados por clínicos especializados,
capazes de lhes oferecer uma formação prática. Subentende-se que as
instituições deverão fazer esforços consecutivos para que as enfermeiras
principiantes possam preparar-se correctamente para a sua profissão.
O modelo prevê igualmente dificuldades de compreensão entre
iniciante e perita. Com efeito esta última põe-se erradamente ao nível da
iniciante, que vive mal esta situação. A tomada de consciência desta
dificuldade por uma e por outra poderá diminuir as frustrações inerentes a
este difícil período de aprendizagem (ver Dolan, Epílogo).
O modelo de Dreyfus (1980) sugere uma nova forma de aprender a
diferença entre a teoria e a prática, e propõe vias de pesquisa destinadas a
tirar o melhor partido daquilo que diferencia o instinto de formação e o
trabalho. As iniciadas devem partir de princípios abstractos, de modelos
formais e de teorias para apreender a situação de uma maneira que lhes
permita aprender tudo com toda a segurança, tirando daí o melhor partido.
Ao contrário a aprendizagem experimental põe as questões e testa os
comportamento em situações reais. A experiência permite à especialista
tomar decisões rápidas fundadas em exemplo concretos. Além da
utilização, como modelo, de exemplos passados concretos, a perita age
muitas vezes por intuição, coisa impossível de aprender ou ensinar de uma
maneira conceptual. Assim, o teórico deve sempre depender da prática para
desenvolver os conhecimentos clínicos e resolver problemas que a teoria
muitas vezes não leva em conta.
No princípio do projecto AMICAE, os estudos relativos às performan-
ces ideais esperadas pelos professores, os recém licenciados e o pessoal de
saúde (referindo também as enfermeiras clínicas peritas) revelaram que
nenhum destes grupos estava de acordo sobre o que podia fazer ou não a
recém licenciada. Esta ausência de consenso está sem dúvida na origem de
numerosos conflitos e incompreensões entre estes três grupos. Pensa-se que
os programas de serviços destinados a formar iniciadas repetem aquilo que
os últimos ensinavam já. Os professores são talvez, sem razão, pessimistas
no que diz respeito às recém-licenciadas. Quanto às enfermeiras iniciadas,
210 1 De iniciado a perito

elas sentem-se talvez desorientadas e surpreendidas pelo pouco que espe-


ram delas as enfermeiras do serviço no qual vão trabalhar. Poderemos então
deduzir que seja difícil para as recém-licenciadas integrarem-se quando há
uma diferença tão importante entre aquilo que se espera delas e a ideia que
elas têm das suas capacidades. O desvio entre os desejos das recém
licenciadas, da formação das enfermeiras e daquelas dos serviços provoca
uma crise ao nível das capacidades?
Esta questão foi posta, à partida, no projecto AMICAE (1979). Neste
estudo, pedimos à recém-licenciada para avaliar ela própria o seu
desempenho e de escolher uma colega do serviço para fazer o mesmo. As
tarefas a avaliar seriam as mesmas que as de um estudo anterior (1978),
mas desta vez pedimos para avaliar as performances reais e não teóricas.
Esperá-vamos que a avaliação de uma recém licenciada seja melhor que a
avalia-ção das recém-licenciadas em geral.
E foi este o caso:

Pelo menos 70% dos membros do serviço deram a melhor nota a 17 dos
80 actos executados pelas recém-licenciadas. Este é um resultado bem me-
lhor que a avaliação feita pelas pessoas que participaram no estudo de
1978, o qual indicou que as recém-licenciadas não atinjam este nível
elevado para nenhuma das competências ... Se nós não considerarmos as
suas capacidades reais e não aquilo que eles querem saber fazer na sua
imaginação, as recém-licenciadas subestimaram a sua performance. Ao
menos 70% das recém-licenciadas pensavam ter atingido a perfeição em
vinte e quatro dos oitenta actos que executaram, contra 15 actos em 80 no
estudo de 1978. (Benner e ai. 1981).

As recém-licenciadas dão-se mais valor porque elas não têm em conta


nada mais do que o seu nível de competência real. O mesmo para as
enfermeiras do serviço. Estes resultados reforçarão a hipótese segundo a
qual as recém-licenciadas são todas julgadas pelo pessoal de
enfermagem do serviço, como sendo menos competentes do que
realmente são na realidade'.

' Estes resultados devem ser interpretados com prudência porque a taxa de volta das
respostas não foi mais do que de 18%, em vez de 46% e 52% respectivamente para as
recém-licenciadas.
Implicações para o desenvolvimento profissional e para a educação 1 211

Podemos explicar de duas formas a diferença de apreciação das


performances das recém-licenciadas pelas enfermeiras dos serviços e os
professores.
❖ A avaliação sistematicamente negativa das recém-licenciadas pelas
enfermeiras dos serviços.

❖ Uma diferença significativa na percepção e na compreensão das


performances de alto nível entre os serviços e as escolas.

Todas estas recém-licenciadas são postas no mesmo saco (nível),


porque a tendência normal está nas apreciações globais. Assim, no
momento em que se encontrem lacunas nas recém-licenciadas num
determinado domínio consideraremos que elas as sintam em todos os
outros domínios. As orientadoras parecem inclinadas particularmente a
fazer este tipo de generalização, pois a sua apreciação das recém-
licenciadas é menos positiva que a das enfermeiras que trabalham mais
com as iniciadas. Estas observações sugerem que as orientadoras deverão
rever o seu julgamento negativo, de maneira a criar um clima de confiança.
A percepção das orientadoras pode estar deformada pelo facto que elas não
vêem senão aquilo que não está bem e têm poucas ocasiões de serem
testemunhas dos actos bem sucedidos; encontram-se por vezes obrigadas a
procurar deliberadamente exemplos positivos para equilibrarem as coisas.
É muito fácil vencer num ambiente onde a aceitação e a confiança são mais
a regra do que a excepção.
A segunda desta disparidade consiste em que o referencial de apreciação
do nível de competência pode ser completamente em função das pessoas
recém-licenciadas, professoras ou enfermeiras do serviço. As recém-licen-
ciadas e as orientadoras podem julgar a competência em simulação à escola,
assim como a enfermeira de serviço, está apta a julgar a competência, tendo
sempre no espírito um grande número de casos complexos de doentes. É
esta segunda explicação que conduziu à comparação sistemática das dife-
renças entre as percepções e as descrições que faziam as iniciadas e as pe-
ritas das situações clínicas, e a examinar aquilo que a experiência permite à
enfermeira experiente aprender. Mas, antes de mais, para compreender as
diferenças de pontos de vista sobre a aquisição de conhecimentos entre
professor e enfermeira de serviço, é útil examinar as disparidades entre os
pontos de vista formais e informais respeitantes à organização de cuidados.
r

212 1 De iniciado u perito

Os trabalhos de Schein (1968) sobre a socialização das organizações é


uma palavra chave para a maior parte dos estudos sobre a socialização
profissional. Como muitos outros formadores, Schein dá primazia aos co-
nhecimentos formais e conceptuais. Põe em oposição valores adquiridos
nas escolas de gestão e aquilo que se passa na realidade. Considera como
indispensável o ensino da racionalidade e da neutralidade. Mas, receia que
uma vez no mundo do trabalho, os jovens recém-licenciados serão de tal
maneira absorvidos pela organização que eles esquecerão estes valores.
Anuncia o individualismo criativo, no qual o novo adepto não fica senão
com os valores principais do seu empreendimento recusando valores secun-
dários. A posição de Schein enquanto formador em gestão reflecte aquela
dos formadores de outras profissões, incluindo as enfermeiras.
Na teoria os conselhos de Schein parecem plausíveis, mas na realidade
é difícil segui-los, porque as instituições funcionam mais seguindo a sua
cultura que segundo o organigrama racional. Não podemos explicar um
pequeno número de valores principais nas escolas de gestão ou nas
empresas. A socialização funciona porque existe todo um conjunto de
postulados e de valores nunca postos em causa, que não são inteiramente
explicados. É então impossível escolher claramente quais os valores que
serão preciso aceitar ou rejeitar. A situação levará o indivíduo a adaptar
numerosos comportamentos, a compreender alguns valores que ele não
reconhece ou não escolhe livremente.
As normas e as políticas das instituições complexas não podem jamais
ser totalmente claras ou explícitas; são vagas. Assim apesar dos esforços
visando clarificar e racionalizar os valores afim de colocar mais evidentes
os objectivos das empresas, é ainda impossível distinguir os numerosos
elementos (Benner e Benner, 1979). Na sua análise numa sala de redacção,
Breed (1955) refere que esta ambiguidade permite ter uma organização do
trabalho mais flexível.

Os regulamentos não são sempre claros, muitas das nonnas séio


vagas e pouco estruturadas. A política é muito ampla e por natureza
muito abrangente. A política, se exposta de maneira explícita, deverá
mostrar as motivações, as razões, as escolhas, os desenvolvimentos, que
ajudaram a pô-la em prática. Parece entéio que existe uma zona delicada
que permite um determinado núme,v de variações.

Ainda que o objectivo de toda a organização é o de atenção em relação


Implicações para o desenvolvimento profissional e para a educação 1 213

a uma maior clareza naquilo que diz respeito à política seguida e a uma
maior racionalização do trabalho, pelo menos dois elementos poderão
aparecer (Benner e Benner, 1979) e neste caso poderão ser eliminadas as
ambiguidades provenientes da vida organizada:
1. O sistema perde o seu poder interpretativo e a sua flexibilidade. Será
parecido a um computador, limitado na sua capacidade de resolver os pro-
blemas pela utilização de regras explícitas para cada operação2 • Os
cuidados dados aos doentes têm lugar em ambientes complexos. Não são
jamais condensados, nem independentes do contexto. Uma política aberta,
com limites delicados, permite uma melhor interpretação e uma maior
adaptação aos acontecimentos complexos, sempre em evolução.

2. Não há espaço suficiente e tempo para responder a todos as


expectativas geradas em contextos organizacionais particulares. Fazê-lo
significaria consagrar a totalidade do espaço e do tempo da instituição a
enume-rar e gerar regras.

É útil tomar as regras explicitas de forma a assegurar que as normas


sejam aplicadas correctamente. Com efeito, a estratégia mais difundida
para reduzir conflitos nas instituições consiste em editar regras e a apoiar-
se nelas para construir uma directiva.
Mas, nós não podemos, nem devemos regulamentar indefinidamente.
Relembremos o exemplo da enfermeira que segue à letra o plano de
cuidados sem reparar nas mudanças que se produziram no doente depois da
redacção do plano. Uma enfermeira que tenha perdido até esse ponto o seu
espírito de análise pode ser considerada perigosa para um tal trabalho.
A iniciada trabalha baseando-se em princípios abstractos, teorias e mo-
delos formais (Dreyfus e Dreyfus, 1980; Dreyfus,1981) que constituem
utensílios importantes, porque permitem-lhes apreender a situação e adqui-
rir os primeiros elementos da sua experiência profissional. Por exemplo um
piloto no seu início começa por aprender todos os procedimentos
operacionais sob forma de regras; à medida que as suas capacidades
progridem, as regras transformam-se em directivas, e finalmente, uma vez

2
Para uma descrição e uma análise mais detalhada dos limites da formalização,
recorra à obra de Hubert Dreyfus, What computers can 't do: the limits of artificial
intellígence, New York, Harper and Row, 1972.
fl'
!

214 1 De iniciado a perito

atingido o estado proficiente, ele utiliza as max1mas. O perito utiliza


exemplos concretos, assim como o cientista usa modelos para guiar as suas
pesquisas. Estes exemplos são muito mais ricos que aqueles que um
modelo formal poderá apreender, visto que estes permitem aproveitar
aquilo que diferencia dois casos aparentemente similares. Este nível de
proficiente baseia-se numa compreensão total da situação e não a
poderemos atingir a não ser com a experiência adquirida no local (Dreyfus
e Dreyfus,1980).
Desvalorizámos e ignorámos os conhecimentos acumulados pela
enfermeira clínica perita. Contudo, se estes conhecimentos forem levados
a sério, então a compreensão sobre o "choque da realidade" mudará. O
choque da realidade é definido aqui como o processo desconfortável que
permite a aquisição de conhecimentos reais, os quais não podem ser
fornecidos nem por modelos ou teorias formais, nem por extrapolações
daquilo que pode ser a evolução da situação. Adiai Stevenson fez um dia a
descrição daquilo que é para ele a experiência:

Os conhecimentos não adquiridos co111 palavras, mas pelo toque, a


vista, a audição, os sucessos, os fracassos, aja/ta de sono, as preces, o
amor - as experiências e as emoções humanas ressentidas sobre esta
terra, por si mesma e os outros hu111a11os.

É evidente que a socialização em cuidados de enfermagem e em


medicina está em vias de mudar. No passado, numa tentativa de melhorar
o nível dos seus alunos, os professores das escolas de enfermagem
preferiam como Schein os modelos formais e racionais de tomadas de
decisão.
Assim, a aprendizagem da tomada de decisão na educação de
enfermeiras terá sido, assim, descontextualizada; as exigências e as
contrarie-dades nos serviços foram esquecidas. Presentemente são feitos
esforços para inverter esta tendência e enriquecer os programas educativos
de situa-ções práticas mais realistas permitindo mostrar as diferentes etapas
do processo de tomada de decisão em enfermagem (Kramer, 1974; Limon,
Spencer, & Waters, 1981).

t
PARA. UJVIA NOVA IDEN'fIDA.DE
E UJ\1A REDEFINIÇÃO
DOS CUIDADOS DE ENFERMAGEM
O estado de espírito face ao trabalho está em vias de mudar. Cada vez
mais os indivíduos querem que o seu trabalho seja gratificante. A palavra
"sucesso" não tem mais o mesmo significado. O indivíduo que sacrifica
uma certa qualidade de vida, as suas relações afectivas e a sua saúde em
nome de um estatuto social e de uma determinada estabilidade financeira
não é mais considerado automaticamente como qualquer um "que
conseguiu". As famílias onde o casal trabalha são cada vez mais
numerosas, e os dois sexos devem adoptar novos comportamentos.
Yankelovitch (1974) chamou esta época como a de "reconhecimento
social". Presentemente, as pessoas querem tirar satisfação daquilo que
fazem, quer dizer, querem sentir-se competentes.
Yankelovitch (1974) destingue três benefícios psicológicos que as
pessoas querem obter a partir do seu trabalho:

1º Deve ser interessante, variado, trazer satisfação e ser bem pago.


2° Deve dar o gosto de trabalho bem feito.
3° Deve responder ao desejo que o indivíduo tem de se expandir num
"trabalho construtivo". Por "trabalho construtivo" entendemos
muitas vezes:
a) Trabalho no qual nós nos encontramos porque encontramos aí
interesse;
b) Um trabalho que deixa ir mais além;
c) Um trabalho no qual participamos no processo de decisão;

Os cuidados de enfermagem podem oferecer vias respondendo a todos


estes critérios psicológicos. Todavia, as enfermeiras não são reconhecidas
- pelos utentes, médicos, pessoal administrativo, e por vezes mesmo pelos
seus próprios colegas - pelo trabalho importante e difícil que elas fazem,
'I'

218 1 De iniciado a perito

nem pelas responsabilidades que ela assumem. Trata-se de uma falta de


reconhecimento do seu valor, mais do que uma ausência de
responsabilidade significativa. As enfermeiras tomam decisões que podem
afectar a vida ou a morte de qualquer um, e têm cada vez mais
conhecimentos especializados.
O desejo das enfermeiras de fazerem bem o seu trabalho é posto em
evidência pelo testemunho de uma enfermeira que deixou a sua profissão
(Godfrey, 1975).
Para ficar com a minha saúde mental e salvar o meu casamento, dei-
xei a profissão. O problema crónico da falta de profissionais, a mudança
frequente de equipas e o trabalho ao fim de semana esgotaram-me e
levaram a crises no meu casamento. Quando cheguei ao ponto de pedir
valium ao meu médico para poder continuar a trabalhar, decidi que era
tempo de parar. Ganho hoje em dia, duas vezes mais do que quando era
enfermeira, mas acontece-me ainda pensar em voltar à profissão. As
satisfações morais que retirei têm mais valor aos meus olhos, que o meu
salário actual, contudo mais elevado. Todavia, não voltarei a trabalhar a
não ser que esteja certa de ter tempo suficiente para responder às
necessidades dos doentes.
Os comentários desta enfermeira ilustram bem a nossa posição. Acen-
tuam as satisfações que pode trazer a profissão quando o pessoal é
suficiente e estável. Mostram igualmente que o desejo por parte das
enfermeiras de fazer bem o seu trabalho provém de que elas têm
consciência que ao mínimo erro poderá haver consequências desastrosas
nas hipóteses de cura dos doentes.
Para Yankelovitch, os cuidados de enfermagem constituem um trabalho
enriquecedor, no qual é possível implicar-se e onde as capacidades do
pessoal de saúde é constantemente solicitado. No hospital, as enfermeiras
são habitualmente excluídas dos conselhos de administração, porque a sua
capacidade de tomada de decisões não é reconhecida. Mas isto poderá
mudar. As jornadas nacionais da National Comission of Nursing nos
Estados Unidos, mostram que as enfermeiras devem ser parte activa em
todas as decisões tomadas no quadro do sistema hospitalar (Flanagan,
1981).
Os progressos científicos mudaram tanto o prognóstico como os
cuidados com os doentes. Como o dizia um médico, professor numa
faculdade de medicina, nas jornadas da National Comission of Nursing, o
papel da enfermeira alargou-se:
Para uma nova identidade e uma redefinição dos cuidados de enfermagem 1 219

Uma das maiores adaptações a estas mudanças explosivas, foi a


transferência progressiva de certas responsabilidades dos médicos em
relação às enfenneiras. Por vezes, planificado e ordenado, este processo
efectua-se muitas vezes na maior anarquia total, donde o
descontentamento das enfermeiras que daí não retiram nenhuma
compensação monetária. O interno e a enfermeira fazem cada vez mais,
são constantemente obrigados a ultrapassar-se encontrando-se sempre
sobe o fio da navalha, e tudo isto por um salário que não progride nem
mesmo ao ritmo da inflação (Flanagan, 1981, p.12).
O impacto do não-reconhecimento deste fenómeno de delegação é mal
encarado pelas enfermeiras principiantes que participaram neste estudo.
Com efeito, elas encaram mal conciliar a imagem que elas têm da sua
profissão com aquela que a sociedade tem delas. O discurso desta recém-
-licenciada é típico:

Uma das coisas mais difíceis a que terei de fazer frente é aquela de
ser enfermeira. As minhas amigas não compreendem porque é que esco-
lhi esta profissão e pensam que aquilo que faço é degradante. Isso
aborreceu-me e explico então que sou levada todos os dias a conviver
com situações de vida ou de morte, e retiro grandes satisfações dos
contactos humanos e das relações que vivo no meu trabalho. Não
imagino quanto tempo me sentirei bem comigo mesma por ter escolhido
ser enfermeira, ou como dizem os meus amigos: "De não ser mais do que
enfermeira"; mas ainda não cheguei aí.

Este tipo de situação empurra a sociedade, as enfermeiras, os médicos e


o pessoal administrativo a reavaliar a função e a importância dos cuidados
de enfermagem. Até que esta profissão seja reconhecida e recompensada
como merece por toda a gente, as enfermeiras continuarão a ter problemas
em reconhecer o seu próprio valor, em afirmar a sua identidade e a envol-
verem-se completamente. As desigualdades do estatuto, a falta de
participação nas decisões e a impossibilidade desenvolvimento profissional
no hospital são difíceis de suportar, à vez pelos jovens recrutas e as
enfermeiras experientes, mesmo se individualmente elas acham o seu
trabalho satisfatório e gratificante. Os numerosos exemplos dados neste
livro relativamente aos actos praticados pelas enfermeiras hospitalares no
âmbito de cuidados graves, demonstram o papel central e complexo que
estas últimas desempenharam na recuperação dos doentes. Mostram bem a
220 1 De iniciado a perito

importância das responsabilidades que deve tomar a enfermeira. Os


modelos formais, os protocolos e as políticas de cuidados utilizados pelos
professores e o seu enquadramento não reflectem a realidade dos cuidados
de enfermagem; com efeito, eles não levam em conta nem o espírito de
iniciativa, nem a perícia clínica das enfermeiras. No melhor dos casos, os
critérios e protocolos escritos, podem ser utilizados até ao nível
competente. Enquanto que a linguagem oral e a linguagem escrita não
estiverem ligadas à realidade da prática de enfermagem, esta falta de
reconhecimento perpetuar-se por si mesma.

Incentivos significativos e sistemas de retribuição

As reestruturações e as transformações rápidas são necessárias se que-


remos que a prática clínica dê oportunidades de carreira comparáveis às
outras profissões. Os cuidados de enfermagem devem fazer frente ao
perigo de uma fuga de cérebros, porque as enfermeiras mais dotadas
escolhem outros domínios que lhes oferecem não só remunerações mais
altas, como também a possibilidade de fazerem uma carreira e de tomarem
parte na tomada de decisões. É todavia possível instituir um sistema de
recompensa em função dos conhecimentos, competências e
responsabilidades de cada uma.

Os incentivos e as retribuições (recompensas) que se descrevem a seguir


são consideradas como cruciais na reorganização da prática de enfermagem
no hospital:

1- Desenvolvimento de carreira das enfermeiras iniciadas e de


enfermeiras que estão a meio da sua carreira trabalhando com o
doente em situações que promovam o desenvolvimento;
2- Sistema de promoção que integre o desenvolvimento dos
conhecimentos clínicos e o desenvolvimento profissional incluído
nos cui-dados directos ao doente;
3- Melhor colaboração entre médicos e enfermeiras;
4- Reconhecimento acrescido da importância do papel da enfermeira
nos cuidados aos doentes.
Para uma nova identidade e uma redefinição dos cuidados de enfermagem 1 221

A maior parte dos hospitais não aprovaram mais do que pequenos


orçamentos para pesquisas destinadas a desenvolver e promover cuidados
de enfermagem. Então, porque é que os fundos são limitados se é muitas
vezes o pessoal que faz as despesas. Por outro lado, estes magros recursos
são também utilizados para orientarem as enfermeiras que acabaram de ser
encaminhadas para gerir os fluxos muito importantes do pessoal. Raros são
aqueles que decidem, que se interrogam sobre as escolhas que se oferecem
profissionalmente a uma enfermeira clínica especializada que está a meio
da sua carreira.
Isto é pena, porque se trata de uma personagem chave que assegura uma
intervenção do mais alto nível, e participa no desenvolvimento dos conhe-
cimentos em cuidados de enfermagem. Esta falta de interesse pelos conhe-
cimentos e pelo desenvolvimento de elementos tão preciosos constitui um
problema maior que leva um grande número de enfermeiras a abandonar os
cuidados directos ao doente e/ou a profissão (Benner e Wrabel, 1982).
Segundo o modelo de Dreyfus, a enfermeira que atingiu o nível
competente pode adquirir novos conhecimentos pelo estudo de casos e
demons-trações junto das enfermeiras proficientes ou das peritas. Isto
permite docu-mentar algumas características do desempenho da enfermeira
afim de os transmitir a partir da escola aos estudantes. Estes últimos
ganharão tempo, porque eles aproveitarão os conhecimentos que os mais
velhos levaram tanto tempo para descobrir por eles mesmos.
Infelizmente, até agora, as enfermeiras não valorizaram suficientemente
a sua perspicácia e a sua experiência clínica para prescrever de forma
sistemática aquilo que elas aprendem da sua prática. As aplicações
apresentadas no epílogo mostram que este tipo de descrições clínicas
podem ser integradas na prática de enfermagem.
Na sua procura de reconhecimento social, as enfermeiras querem fazer
bom trabalho. A complexidade da avaliação do estado dos doentes como
aquela das intervenções (ver capítulo 3) chamam a atenção para novas
maneiras de enriquecerem a aprendizagem experiencial. A utilização dos
conhecimentos (introdução na prática de todas as últimas novidades em
matéria de pesquisa e de tecnologia) e desenvolvimento de conhecimentos
clínicos, descrição e estudo sistemático de aprendizagem experiencial devem
ser tomadas em conta pela direcção dos cuidados de enfermagem (Benner e
Wrubel, 1982). É evidente que o papel dos hospitais no domínio da educação
deve acrescentar-se para responder às necessidades acrescidas de utilização e
de desenvolvimento de conhecimentos pelo serviço de enfermagem.
222 1 De iniciado a perito

Alguns hospitais dispensam, como os autores deste livro, muita atenção


na transição entre a escola e o trabalho. Com efeito, é interessante comparar
a maneira de pensar da iniciante e o da especializada. Podemos assim tirar
elementos construtivos permitindo pôr em pé programas adaptados a cada
nível de competência. É igualmente importante que o primeiro posto da
recém licenciada constitua um teste das suas capacidades, um desafio que
é levada a ultrapassar (Benner e Benner, 1979).
Hall e Hall (1976) e Belew e Hall (1966) pensam que quanto mais
actividade e funções no primeiro ano de trabalho, mais a pessoa se sentirá
bem sucedida cinco a sete anos mais tarde. Num estudo sobre os quadros,
Bray, Campbell e Grant (1974) descobriram igualmente que um primeiro
emprego estimulante constitui uma das condições de uma frutuosa carreira.
É então necessário apoiar as recém-licenciadas na procura da aquisição de
conhecimentos clínicos. Não se devem poupar demasiado, senão elas não
poderão superar o desafio, nem viver plenamente as suas experiências. Não
se sentirão jamais à vontade no seu serviço e consequentemente, nunca se
envolverão totalmente.

Um sistema de promoção na prática clínica

Numerosos serviços de cuidados de enfermagem experimentam agora


sistemas de promoção clínica, de maneira a tornarem o papel de enfermeira
de cuidados directos ao doente mais atractivo a longo prazo (Bracken e
Chestmann, 1978; Mintel e Rodes, 1979; Colavecchio, Tescher e Scalzi,
1974). Para atingir este objectivo, as promoções devem ser fundadas na
constatação que as enfermeiras aumentaram o seu nível de competência.
Walton (1975,p.23) propõe um esquema de perspectivas de carreira, que se
apoia nos seguintes pontos:

1. Em que medida o posto contribui em manter e em desenvolver as


capacidades da pessoa.
2. Em que medida os conhecimentos e as competências recentemente
adquiridas e desenvolvidas podem ser utilizadas em empregos
futuros.
3. Quais as oportunidades disponíveis que permitem obter progressão
na instituição, e como os fazer reconhecer pelos colegas, farru1ia
ou associações profissionais (p.32).
Para uma nova identidade e uma redefinição dos cuidados de enfermagem 1 223

Como já vimos anteriormente, um grande número de directivas, saídas


dos serviços de cuidados de enfermagem, foram concebidas para diminuir
o impacto nos serviços de rotatividade de pessoal permanentemente
elevado; os regulamentos e procedimentos escritos, foram multiplicados
para limitar. os perigos inerentes às responsabilidades ruais importantes
asseguradas pelas enfermeiras inexperientes. Mas estas mesmas directivas,
concebidas para assegurar a segurança podem frustrar a enfermeira perita
que se sente mais segura dela devido à sua longa experiência. O
reconhecimento formal das responsabilidades crescentes e do julgamento
clínico da enfermeira perita nos cuidados sancionará e recompensará este
nível avançado de performance.
Para que signifiquem qualquer coisa para O indivíduo e para a institui-
ção, estas promoções devem apoiar-se em performances e reconhecimentos
clínicos reconhecidos. Será necessário perguntar a opinião das colegas en-
fermeiras e médicos assim como dos doentes sempre examinando os
resultados obtidos nestes últimos. As enfermeiras poderão assim ser
encorajadas a documentar e a ilustrar a excelência corno se propõe no
Epílogo. Tais documentos poderão fazer parte de portfolios preparados
par~ fazer parte do processo de promoção.
E necessário que as grelhas salariais reflictam O avanço indicado por
nível de promoção. As grelhas de índices poderão ser comparadas às
utilizadas na administração e permitirão assim, aumentos em vinte anos.
Actualmente, há pouca diferença em questões de salário entre uma
principiante e uma perita. Numa época em que a tendência está na
compreensão dos custos, uma mudança na tabela salarial levará a uma
redefinição de salários e uma melhor gestão de pessoal. para que elas sejam
bem reais e não limitadas à primeira vista, as promoções devem ser
sinónimo de cuidados mais complexos e de diversidade na função das
enfermeiras; devem suscitar a criatividade: poderemos dar mais
importância às funções de enquadramento e de educação nos serviços, ou
permitir por exemplo à enfermeira desenvolver um papel de conselheira, de
se ocupar dos problemas clínicos recorrentes e fontes de numerosas
complicações, ou de traba-lhos no seio das comunidades hospitalares. Tudo
isto constituirão opções possíveis, destinadas a promover nas enfermeiras
o sentimento que elas desempenham um papel no processo de decisão.
Finalmente, o reconhecimento formal das capacidades acrescidas de
julgamento clínico deverão acompanhar a promoção das competências
clinicas.
224 1 De iniciado a perito

Melhoramento da colaboração

As enfermeiras trabalharam bastante estes últimos anos para melhorar o


seu estatuto em relação ao dos médicos. A ideia que se faz das enfermeiras,
do seu trabalho, é fortemente influenciada pelas reacções que estabelecem
com os médicos. Os médicos, assim como as enfermeiras, devem trabalhar
no desenvolvimento de relações onde a colaboração tem uma parte
importante, não só nos seus programas de formação, como também no seu
local de trabalho.
Os serviços de cuidados de enfermagem, assim como a administração
hospitalar devem elaborar uma política de encorajamento a uma tal cola-
boração. As enfermeiras devem poder encontrar interlocutores atentos
quando elas assinalam problemas médicos urgentes dos quais sofrem os
doentes. As enfermeiras que não podem obter a tempo uma resposta
apropriada do médico de serviço e que acham que os sistemas de
comunicação são pesados ou carregados de tensões sociais muito
negativas, julgam a sua posição insustentável e a sua eficácia limitada.
Neste caso de vida ou morte, a responsabilidade não pode ser confinada às
vias hierárquicas habituais. A enfermeira que assinala uma urgência sem
obter resposta eficaz acaba por ressentir a culpabilidade, sentir-se o objecto
de difamações, e finalmente baixar os braços.

Um reconhecimento acrescido

A falta de reconhecimento do papel da enfermeira na recuperação e cura


do doente, tanto do ponto de vista social, quer profissional, deve ser
combatido sobre diferentes formas. É crucial que as descrições dos actos de
enfermagem sejam reais. Diers (1980) chama a atenção para este problema
quando diz:

- Os cuidados de enfermagem não podem ser explicados numa gíria


conceptual... Se nos sentimos perdidos, é talvez porque somos
prisioneiros do gosto académico por tudo aquilo que é pomposo,
esmagados pelos pesos da hierarquia, assustados por aquilo que poderão
pensar os colegas, e enfim vítimas de uma sociedade que exige a
conformidade (Diers,1980).

' : '

d
Para uma nova identidade e uma redefinição dos cuidados de enfermagem 1 225

O actual desempenho da enfermeira clínica perita ultrapassa a maior


parte das descrições de acções práticas dadas nos modelos formais. As
enfermeiras devem descrever de outra maneira aquilo que fazem na sua
prática.
CAPÍTULO 14

EXCELÊNCI1\ E PODER
NA PRA.TICA DE ENU'ERMAGEM
Coloquei neste livro exemplos, usando a linguagem oral, porque queria
a todo o custo guardar a riqueza do seu conteúdo. Com efeito, as
enfermeiras descrevem de forma directa e viva o seu envolvimento com os
doentes. Foi-lhes simplesmente pedido para não utilizarem a gíria que elas
empregam habitualmente para ganharem tempo enquanto fazem os seus
depoimentos. Estes exemplos ilustram a excelência e o poder exercido
pelas enfermeiras. A excelência necessita não somente das enfermeiras que
têm vontade de se envolverem mas também enfermeiras que têm o poder.
Tendo em conta a natureza dos cuidados de enfermagem, o poder sem
excelência é inconcebível. Inquieta-me ainda quando ouço as enfermeiras
dizer que são as suas qualidades, que são essenciais para o seu papel de
cuidar, que estão na origem da sua ausência de poder no seio da hierarquia
hospitalar, dominada pelos homens. Tais declarações depreciam as
qualidades ditas femininas e encorajam a concepção masculina do poder
que se caracteriza por estas três noções: competição, dominação e controlo.
Mas é um erro querer restringir o "poder" e os "cuidados de enfermagem"
tendo valores exclusivamente femininos ou masculinos. É usual dizer que
as mulheres não podem conquistar o poder porque por natureza elas são
sempre mantidas num estado de servidão. Com efeito, é a desigualdade
entre os sexos que é a fonte do problema. Incriminar a suposta submissão
das mu-lheres volta a penalizar a vítima e a afirmar que a discriminação
parará assim que as mulheres abandonarem os seus valores e participarem
no jogo do poder à maneira dos homens. Isto enviesa as observações que
tentam explicar como é a realidade.
Uma definição de poder que exclui o poder do cuidar inerente à
enfermagem, não contribui para o ganho de poder de autodeterminação. O
facto de aderir a uma concepção coerciva e dominadora do poder nas
relações com os outros implica uma renúncia daquilo que faz a
230 1 De iniciado a perito

especificidade dos cuidados de enfermagem: a capacidade de analisar e de


tomar iniciativas. Gilligan (1982, 1983) faz notar que a ética dos cuidados
e da responsabi-lidade difere da ética do direito e da justiça (ver também
Sande!, 1982). Greer (1973), diz também:

Se as mulheres entendem por emancipação a adopção do papel


masculino, então estamos evidentemente perdidos. Se as mulheres não
podem contrabalançar as faltas de comportamento masculino, a nossa
sociedade agressiva correrá cada vez mais rapidamente para a sua
perda. Quem irá salvaguardar as faculdades animais desprezadas de
compaixão, de empatia, de inocência e de sensualidade? (pp. 411-412)

A interpretação dos cuidados de enfermagem sofreu profundas


modificações. No passado, serviço, queria dizer submeter-se e sacrificar-se,
apagar-se. Todavia, toda a gente ganhará em esquecer estas concepções
obsoletas. Com efeito, ser enfermeira é escolher uma profissão muito
exigente. A dor, os riscos e os perigos encontrados não permitem sempre
que a pessoa que cuida não tenha custos no plano pessoal.
As enfermeiras que participaram neste estudo deram-nos uma ideia da
natureza do seu poder. Utilizaram-no para ajudar os seus doentes e não para
os dominar ou os contrariar. Mas esta relação depende muito fortemente do
contexto. Para ajudar o seu doente, as enfermeiras estão muitas vezes no
limite da contrariedade, como quando os incitam a participar em processos
dolorosos, que este último não empreende sozinho. A diferença entre o
encorajamento e o domínio não pode compreender-se a não ser quando a
relação enfermeira/doente e a situação é bem compreendida. Fora do
contexto, esta relação será sempre sujeita a controvérsias: cuidar é algo
conciso, específico e diferente de pessoa para pessoa.
As enfermeiras deste estudo encontraram um meio seguro de utilizar o
seu poder: tal aconteceu implicando-se genuinamente no cuidado dos seus
doentes. Identificam-se com eles, imaginando que elas mesmas ou alguém
muito próximo poderia encontrar-se na mesma situação. Guardavam sem
cessar na sua memória que o doente é "também uma pessoa". Quando esta
identificação marca o seu comportamento, elas mantêm toda a sua lucidez
e sabem ser profissionais. Perguntam-se então se elas serão sempre capazes
de cuidar e de responder às grandes exigências de cuidados.Conclui-se que
esta lucidez é uma marca de inteligência, da sabedoria e da humildade in-
telectual que vem com a experiência. As enfermeiras são muitas vezes
1 '

1· 1

117: N
Excelência e poder na prática de enfermagem 1 231

confrontadas com dilemas, mais do que com problemas de fácil resolução.


Por vezes, os riscos tomados são grandes, porque elas se sentem
profundamente implicadas e ficam de tal maneira chocadas, que os
investigadores não compreendem também muito bem qual foi a chave do
sucesso destas intervenções de risco. Uma coisa é clara: nenhuma
intervenção correrá bem se a relação enfermeira/doente não repousa sobre
um respeito mútuo e um cuidado genuíno.
Identifiquei seis categorias de poder, no âmbito das relações de
cuidados entre a enfermeira e o doente: o poder de transformação, o cuidar
na reintegração, de defesa (advocacy), o poder da relação terapêutica no
âmbito da recuperação, cura e promoção da saúde (healing), o poder de
participação/afirmação e o da resolução de problemas.

O Poder de transformação

O poder que a enfermeira tem de mudar o estado de espírito de um


doente foi bem mostrado no exemplo do homem que está cansado de ver as
pessoas "fazer-lhe todo o tipo de coisas". Estava deprimido e a enfermeira
que é também uma amiga, fala-lhe sem rodeios dizendo-lhe, evidentemente
bem, que ele tem o poder de decidir e que além disso, ele já o utilizou
decidindo fazer-se transferir para este centro hospitalar. Este discurso é um
pouco arriscado, porque o doente poderá rejeitar e recusar tudo de uma vez.
Mas existe uma relação de confiança suficiente forte entre a enfermeira e o
seu doente para que este último termine por ver as coisas de outra forma,
tomando consciência que ele podia ainda agir sobre os acontecimentos. Foi
evidentemente no outro dia que ele reflectiu bem porque quando a
enfermeira chegou, diz-lhe sorrindo: "tinha razão! Eu estou mesmo a
escolher permitir que me ajudem a curar-me o mais rapidamente
possível!".
Um segundo exemplo deste poder foi posto em evidência durante um
seminário sobre conhecimentos clínicos. Um jovem homem veio agradecer
às enfermeiras que o cuidaram quando o seu estado piorou; a sua dedicação
genuína e a sua criatividade causaram-lhe grande impressão durante o seu
longo período de dores e de fraqueza extrema. Queria dizer-lhes que a sua
maneira de cuidar o transformou. Nunca tinha pensado que alguém tão
impotente, tão pouco atraente e com tão pouco para oferecer no plano
social, pudesse receber tanto apoio moral. Esta experiência relembrou-lhe
232 1 De iniciado a perito

que os seres humano podem ser considerados dignos de todo o valor. Antes
encarava a vida como um contrato que fixava as regras daquilo que pode-
ríamos ter. Hoje em dia, apercebeu-se que podemos ter qualquer coisa
mesmo quando estamos na impossibilidade de dar em troca. Jurou assim
mesmo, que iria fazer tudo para nunca mais se encontrar num estado de
dependência idêntico aquele em que tinha estado, mas os cuidados que ele
recebeu mudaram a imagem que ele tinha anteriormente do que é o cuidar
genuíno e humano.

O cuidar na reintegração
'1
1 Cuidar significa que é possível permitir reinserção da pessoa cuidada na
sociedade. No caso onde a deficiência (handicap) prolongada ou
permanente é inevitável, é muitas vezes a enfermeira que ajuda os doentes
a tirar o máximo das suas possibilidades, permitindo-lhes assim continuar
a ter actividades ricas e úteis apesar dos seus déficites. Foi o caso da
enfermeira que ajudou uma mulher que não deixava o quarto há cinco anos
depois de uma trombose, ajudando-a a participar na vida familiar, mesmo
sendo considerado como extremamente arriscado na altura. O poder de
reinserção dos cuidados era igualmente evidente no caso da enfermeira
:i que, com o apoio da Associação de Ajuda a doentes com miopatias, ajudou
l um estudante do ensino secundário a voltar à escola e a retomar o seu
1 passatempo de comentador desportivo.
1

Neste dois casos, são enfermeiras que permitiram julgar a importância


1
da ajuda a fornecer aos doentes afim de que eles possam continuar a ter
1' uma actividade normal e sair do seu isolamento, sinónimo de depressão e
de inactividade. E as enfermeiras propuseram a opção de reintegração
abrindo assim aos doentes e às suas fairu1ias novas perspectivas quando
elas são confrontados com as perdas e privações.

A defesa (Advocacy)

Os doentes e as suas fairu1ias têm muitas vezes necessidade da


enfermeira para reforçar a sua causa. Acontece que eles podem ser
induzidos em erro pela gíria médica ou que eles não percebem aquilo que
lhes é dito porque estão bloqueados pelo medo. A enfermeira pode explicar

1
•I

ili\: tr
Excelência e poder na prática de enfermagem 1 233

a atitude do doente ao médico e o comportamento do médico ao doente.


Qualifico este tipo de poder de "mediação", ou poder de eliminar os
aspectos que po-dem ser obstáculos ao não favorecimento da autonomia e
da acção. Temos um bom exemplo com a enfermeira que conseguiu
convencer o médico a esperar antes de prescrever os medicamentos que
impediria o doente de respirar por si mesmo, ainda que a hiper-ventilação
fosse um sério problema e que os seus valores de gazes no sangue fossem
maus. A enfermeira ajudou o jovem homem a acalmar-se, permitindo-lhe
guardar o controlo dos últimos músculos que ainda lhe obedecem. Vejam
um extracto deste exemplo:

Demorou três horas e meia a parar. Tinha necessidade de


compreender que lhe tinha acontecido e que estava para lhe acontecer.
Tinha necessidade de se sentir confiante e, sobretudo de aprender a ter
confian-ça em nós. Ele tinha necessidade de saber que nós nos
preocupamos com ele enquanto pessoa, e que ele não é apenas alguém
sem defesa. Quando ele começou a compreender isto tudo, ele aprendeu
a ter confiança; ali se encontrava a chave, tinha necessidade de estar
envolvido e não de ser aquele a quem nós prescrevíamos os tratamentos,
porque ele se sentia então inútil.
Este caso é importante para mim porque representa a concepção que
eu tenho dos cuidados de enfermagem. Quando nós tratamos este tipo de
doente, estas considerações passam muitas vezes muito longe.
O epílogo foi uma simples declaração feita com os lábios, mais tarde
nesse dia, quando ele pode encontrar um ritmo respiratório à volta de
vinte e não se sentiu mais ameaçado de perder os poucos músculos que
ainda funcionavam por uma paralesia química: "Vocês ajudaram-me
verdadeiramente muito. Não consigo imaginar o que se teria passado se
vocês não tivessem estado aqui e não tivessem cuidado de mim".

O poder da relação terapêutica no âmbito da recuperação,


cura e promoção da saúde (healing)

O exemplo aqui apresentado constitui igualmente um exemplo de poder


na recuperação e promoção da saúde. As enfermeiras estabelecem uma
relação terapêutica e um clima propício à recuperação, à cura e à promoção
da saúde: 1) suscitando a esperança nos doentes, na equipa e acreditando
234 1 De iniciado a perito

nisso elas mesmas; 2) encontrando uma forma de compreensão acerca da


J, situação (por exemplo a doença, a dor e o medo de outras emoções
causadoras de stress) e explicando-a claramente ao doente; e 3) ajudando o
doente a exteriorizar-se expressando as suas emoções ou incentivando-o a
procurar apoio social, emocional e espiritual. O poder da relação
terapêutica entre a enfermeira e o seu doente foi igualmente demonstrado
no exemplo da jovem mulher que foi confrontada com um conflito de
decisões para a escolha do seu tratamento.
Este tipo de relação solicita os recursos internos e externos do doente e
torna-o mais forte trazendo-lhe esperança e fazendo-o ter confiança nele e
nos outros. Os estudos sobre as endomorfinas e a sua descrição que fez
Norman Cousins (1976, 1983) da sua recuperação, vieram trazer mais
atenção relativa ao processo pessoal e social da recuperação assim como
uma reabilitação do "efeito placebo". É difícil dizer precisamente quando a
recuperação é mais resultante de aspectos tecnológicos do que dos
relacionais; de qualquer forma, é evidente que um não substitui o outro e
os dois são complementares.

O poder de participação/afirmação

Podemos pensar que o envolvimento nos cuidados acabará por levar a


enfermeira nos "braços" desta doença moderna e irredutível que nós
chamamos o burn out, ou cansaço físico e moral. A noção de burn out é
fundada na metáfora naive do meio virtual (a noção que uma pessoa dispõe
de uma quantidade dada de recursos que ela pode utilizar até um certo
ponto, para curar). Seyle (1964) utiliza a analogia da conta bancária. Trata-
se de uma variação moderna do tema do elan vital.
Todo a gente se lembra de dizer que o pessoal de saúde deve ter em
conta o tempo de descansar, partir para férias, divertir-se. Todo o mundo
admite também que os seus salários e a sua carga de trabalho devem ser
equivalentes. É aqui que está a questão, é para evitar sofrer moralmente e
não se deprimir, que numerosos profissionais de saúde pensam que eles não
devem investir afectivamente no seu trabalho. Não penso que uma atitude
distante da perspectiva do doente evite ao profissional de saúde que sofra.
Com efeito, para manter as distâncias, o profissional de saúde gasta uma
enorme quantidade de energia que ele poderá utilizar para trazer conforto
ao seu doente quando este necessita desesperadamente dele. No exemplo
Excelência e poder na prática de enfermagem 1 235

onde a enfermeira reconforta e apoia uma doente moribunda, que espera


ver o seu filho uma última vez, damo-nos conta que é o sentimento de ter
dado o melhor de si, que é o melhor dos antídotos contra a depressão,
mesmo nas circunstâncias trágicas. É aquilo a que chamo o poder de
participação/afirmação dos cuidados de enfermagem.
Através desta experiência moralmente gratificante, esta enfermeira
afirmou a sua identidade de tratamento transmitindo a sua força ao doente.
Testemunha de uma aventura humana que muitos não viverão jamais, saiu
mais forte e mais segura dela. Poderemos imaginar que uma atitude mais
desprendida não teria trazido nenhum conforto à doente deixando um gosto
de insatisfação à enfermeira.

Resolução de problemas

Finalmente, para poder resolver eficazmente um problema é necessário


envolver-se e acreditar naquilo que fazemos. Com efeito, os problemas
mais difíceis necessitam uma grande sensibilidade e um bom espírito de
análise.
Não é preciso então ter medo de se envolver e de ser aberto aos outros.
As pessoas muito egocêntricas têm a estranha faculdade de ouvir
pronunciar o seu nome num quarto cheio de gente. Da mesma forma, a
abertura aos outros aguça a sensibilidade e permite reconhecer os sinais
podendo revelar-se ser as chaves de uma solução sem que tenhamos por
vezes despendido grandes esforços para a encontrar. Polanyi (1998)
descreveu bem o papel da paixão intelectual e a sua importância no
processo de re-solução de problemas no ser humano. Para ele, nós
percebemos as coisas antes de tomar consciência dos conceitos. Por
exemplo, as enfermeiras tornam-se especialistas na arte de ler as caras dos
doentes e de discernir as mudanças globais e subtis antes mesmo que eles
sejam detectados pelo ECG ou a avaliação da tensão arterial.
A perícia depende do envolvimento da pessoa numa dada situação. A
perita apreende rapidamente um problema fazendo uma comparação com
situações similares, ou contrárias, já vividas. Ao contrário a iniciada não
deve contar a não ser com o exame das mais diferentes variantes. O melhor
exemplo é a diferença entre o estudante de medicina e o especialista. O
primeiro facto e cálculo elaborado num exame físico que toma em conta
todos os factores ·possíveis, enquanto que o segundo vai directamente ao
r
236 1 De iniciado a perito

coração do problema não abordando senão as questões pertinentes.


Preferir a análise fria dos sinais mensuráveis e os conhecimentos
formais explícitos faz passar em silêncio, o aspecto humano com todo o
lado emocional que isso supõe - sensações vagas, suposições, um
sentimento que qualquer coisa não resulta - ou a procura criativa e a
sensibilidade aos indicadores que resultam da implicação. O podér da
implicação é subestimado e sub avaliado neste domínio onde o estatuto e
os conhecimentos (interpretados como pensamentos distintos) são
considerados como as fontes de poder. Mas uma tal concepção é unipolar e
rígida. Abandonar o poder do relacional, é trair um ideal e, ainda pior, é
desfazer-se da sua própria identidade e negar as suas próprias qualidades.
Em definitivo, o nosso poder, em termos de estatuto, que ensina e controla
a nossa prática, depende da excelência.
Sem envolvimento do cuidar, os cuidados de enfermagem não terão po-
der e serão arrasadores. As enfermeiras podem ter uma influência enorme
sobre a forma como um doente vai passar as suas primeiras ou últimas ho-
ras de vida. Ainda que as enfermeiras contribuam muito para que os pri-
meiros momentos da vida se passem num ambiente familiar, com amor, as
últimas horas passam-se muitas vezes agarradas às barras de uma cama ou
com uma sonda urinária, para facilitar a vida do pessoal de saúde. O
exemplo certamente mais falado sobre abuso de poder do pessoal de saúde,
foi mostrado no livro (Kesey,1962) e o filme "Voando sobre um ninho de
cucos".
As enfermeiras têm realmente poder, ainda que elas estejam em último
na escala hierárquica. Porque a sua presença é constante, elas sabem como
adaptar-se ao sistema ou contorná-lo. Um doente pode ter um médico
muito correcto ou experiente, mas se a enfermeira não se apercebe que ele
está mal não sabe vigiá-lo, ou simplesmente não sabe tratá-lo, (no sentido
literal do termo) e o que ainda é pior, se ela não tem nada que fazer - as
hipóteses do doente morrer dignamente ou de se curar são fracas. É
importante clarificar este aspecto negativo do poder da enfermeira, porque,
tanto como os aspectos positivos, são necessários para que a sociedade
tenha consciência do da importância do papel da enfermeira. As
enfermeiras têm uma missão capital que necessita uma grande inteligência,
uma boa educação científica e bases éticas e sólidas que dizem respeito ao
direito,justiça, cuidado e a responsabilidade (Gilligan, 1982, 1983; Sande],
1982).
Toda a aproximação independente do contexto corre o risco de ignorar

E
Excelência e poder na prática de enfermagem 1 237

a qualidade dos cuidados ou de se enganar no seu assunto. Steinbeck (1941)


apreendeu bem os erros inerentes à análise dos factos fora do contexto:
A Sierra Mexicana é um peixe que tem vinte e seis espinhas dorsais,
das quais nove sobre as costas. Podemos contá-las facilmente.
Mas, se a Sierra se debate violentamente ao fim da linha, ao ponto de
queimar as mãos do pescador e acaba por aterrar sob a ponte, mudando a
cor e a cauda batendo no ar; é uma toda nova relação que se instaura, que
representa mais do que a soma do peixe e do pescador. O único meio de
cortar as espinhas do Sierra, esquecendo esta nova relação, é a de
assegurar num laboratório, de abrir um bocal malcheiroso, retirar do
formo[ um peixe duro e tenro, contar as espinhas e descrever a verdade...
Vocês trans-crevem assim uma realidade indescutível, provavelmente a
realidade menos importante naquilo que vos diz respeito, a vós ou ao
peixe...
É necessário saber o que fazeis. O homem, com o seu peixe metido em
sal, estabeleceu uma só verdade, mas cometeu numerosos erros. O peixe
não tem esta cor na natureza, nem esta textura, nem este estranho odor.

Os exemplos dados neste livro, foram apresentados como uma tentativa


visando por em evidência uma globalidade, incluindo o conteúdo, as
acções, e o contexto. Estas pesquisas exploram os significados inerentes
aos cuidados de enfermagem; é uma tentativa de dar à Prática o lugar de
detaque. Para fazer isto dois postulados foram abandonados (Taylor, 1982):

1. que o significado pode ser visto em termos de representação de uma


realidade independente (fundado nos filósofos do século XVII,
Hobbes e Locke). Uma tal concepção trata inevitavelmente o
sujeito de pesquisa como objecto e ignora a influência quotidiana
do mundo através da competência, da sensibilidade dos
conhecimentos que provêm de uma relação verdadeiramente
humana;
2. que a teoria pode ser gerada a partir de um observador exterior aos
acontecimentos, propondo as suas próprias deduções que são
depois testadas ou comparadas com actividade de grupos maiores,
que são publicas.

Este ponto de vista ignora o facto de que o investigador é um ser


humano, que se auto-interpreta e que é parte activa num conjunto parti-
238 1 De iniciado a perito

lhado de significados comuns que podem ser tornados públicos pelo


diálogo (Heidegger, 1962; Palmer, 1969). Nesta última perspectiva, mesmo
as necessidades de base são impregnadas de significados dos quais não nos
é possível separar.
As pesquisas referidas neste livro tomaram um rumo dialógico e o fim
desta pesquisa foi descobrir sentidos e conhecimentos saídos de uma
prática competente. Colocando estes significados, estas competências e
estes conhecimentos à disposição do público, novos conhecimentos e uma
nova compreensão apareceram, tal como o sublinha Taylor (1982).

A linguagem não serve somente para descrever ou representar as


coisas. Ao contrário, existem certos fenómenos indispensáveis à vida
humana que são em parte constituídos pela linguagem... O laço que nos
uniu foi devido à nossa língua e é isso que nos forma; assim,
contrariamente aos animais, as nossas preocupações puramente
humanas não existem a não ser pela articulação e a expressão... segue-
se que as nossas sensações não podem ser modeladas à vontade pelas
descrições que nos coordenam... as formulações que nós propomos das
nossas preocupações são postas à frente com o objectivo de as tornar
justas ...
Quer dizer, que nós reconhecemos que as descrições que nós fazemos
de nós mesmos podem ser mais ou menos exactas, mentirosas ou cegas,
escavadas, etc... Mas não são só os nossos sentimentos que são em parte
constituídos pelas descrições que nós temos de nós mesmos. As nossas
relações também o são, assim como o género de situações nas quais nós
nos envolvemos (pag.305- 306).

Mais simplesmente, nós modelamos e somos modelados pela nossa


linguagem. A linguagem utilizada nos cuidados de enfermagem tornou-se
muito estreita por causa de teorias unívocas e tentativas de
desenvolvimento de uma linguagem geral, tirada do contexto e da realidade
dos cuidados de enfermagem. Isto põe-nos numa posição perigosa face aos
doentes e a nós mesmos. Isto coloca-nos numa posição precária que
minimiza a angústia dos doentes, transforma os dilemas e a angústia em
"problemas" a resolver, (Lazarus, no prelo). É encorajador observar que a
prática de perícia é mais objectiva que as nossas formulações e os nossos
modelos formais. As enfermeiras peritas levam a sério a angústia dos seus
doentes. A nossa linguagem tem necessidade de ser enriquecida por uma
Excelência e poder na prática de enfermagem \ 239

nova imersão na prática de enfermagem. O ideal linear que pressupõe que


a teoria precede a prática deu-nos a imagem deformada da realidade da
enfermagem não nos deixando ver mais que as imperfeições. Nós não
podemos permitir ignorar os conhecimentos tirados da experiência clínica,
considerando-os apenas como modelos simplificados ou pontos de vista
idealizados fora do seu contexto. Nós não podemos também permitir-nos
não legitimar aquilo que nós retiramos das experiências científicas; a
extensão e a complexidade da nossa prática são demasiado importantes
para isto. Nós devemos escolher as nossas experiências com discernimento
de maneira a que elas clarifiquem as controvérsias e as questões que se
levantam. Por razões de economia, não podemos deixar-nos absorver pelo
que é óbvio, mas sobretudo consagra-nos na pesquisa de questões ainda em
suspenso e que são fonte de controvérsias.
As selecção cuidadosa de programas de investigação depende, contudo,
de os enfermeiros clínicos conversarem uns com os outros acerca do que
aprendem a partir da sua experiência prática. A utilização do conhecimento
tem sido realçada como forma de desenvolver o próprio conhecimento. Se
queremos humanizar a maneira de cuidar num mundo onde a medicina é
cada vez mais dependente da tecnologia, temos de dominar essa mesma
tecnologia. Precisamos também de criticar esta tecnologia e não considerá-
la como o último recurso para a recuperação, a dignidade e a saúde. Como
antídoto a um ponto de vista puramente técnico em matéria de saúde e de
poder, precisamos de compreender e considerar bem o poder de cuidar, o
poder da excelência.
EPÍLOGO
A.PLICAÇÕES PRATICAS

Na introdução, expliquei que este trabalho tinha como objectivo mostrar


a interacção existente entre as enfermeiras e as exigências dos cuidados de
enfermagem; este capítulo retoma um aspecto dessa interacção. Penso que
a melhor forma de explicar um domínio consiste em dar a palavra às
pessoas que nele trabalham. Em cada caso, as autoras tiveram acesso a uma
primeira versão do manuscrito e/ou participaram directamente no projecto
AMICAE. No entanto, não tiveram a possibilidade de dialogar para
compararem as suas experiências. Os seus textos reflectem a diversidade de
inovações. Os seus relatórios fornecem elementos e opiniões sobre a
utilização e melhoria das ideias apresentadas neste livro.
O artigo de Deborah Gordon é um exemplo de investigação baseado
nestes trabalhos. Antropóloga médica, Deborah Gordon participa no
projecto AMICAE, contribuindo para este com as suas próprias
investigações, a fim de redigir a sua tese de doutoramento. Ela examina as
práticas de formalização num centro médico urbano e analisa as funções e
os perigos de utilização de modelos formais específicos, tal como são
utilizados em dois serviços de cuidados médico-cirúrgicos. A sua análise
muito crítica desafia as enfermeiras a controlar os seus modelos formais.
Além disso, ela interroga-se se elas são escravas destes modelos ou se deles
se servem como verdadeiras ferramentas de trabalho.
Ann Huntsman e os seus colegas do serviço de formação do hospital EI
Camino Mountain View (Califórnia) descrevem os esforços que
desenvolveram para elaborar uma grelha de promoção baseada no modelo
Dreyfus de aquisição de competências. Este artigo mostra como
organizaram um processo de avaliação das competências a partir das
apreciações formuladas por algumas enfermeiras sobre o trabalho das suas
colegas. A enfermeira avaliada apresenta aqui alguns casos retirados da sua
prática, que realçam as suas competências profissionais. As enfermeiras do
242 1 De iniciado a perito

hospital EI Camino part1c1param no projecto AMICAE e, portanto,


procuraram desenvolver estratégias que permitam avaliar o nível das suas
jovens colegas.
Estas enfermeiras tiveram a boa ideia de conservar para estudo os casos
resultantes dos processos de avaliação. Do que dificilmente nos poderemos
dar conta, neste estádio, é dos benefícios profissionais que estas
enfermeiras daqui puderam retirar. Os cuidados de enfermagem são
abstractos. Também estas enfermeiras tiveram, em primeiro lugar,
dificuldade em definir a sua contribuição para o bem-estar e recuperação
dos doentes. Elas refugiavam-se numa gíria incompreensível e faziam
descrições vagas. Com o tempo, tornou-se-lhes mais fácil descrever o que
faziam e apontar qual havia sido o seu papel na recuperação dos pacientes.
Para acabar com a falta de conhecimentos sobre a natureza do trabalho dos
profissionais de enfermagem, é necessário começar, em primeiro lugar,
pelas próprias enfermeiras. Só quando reconhecermos e melhor
compreendermos o nosso papel seremos bem compreendidas pelos outros.
O elevado nível dos julgamentos formulados e a importância dos riscos
tomados são agora claramente postos em evidência na estratégia de
avaliação, e tomam-se cada vez mais claros no espírito das enfermeiras e
no dos administradores.
Jeanette Ullery, directora do serviço de formação do CHR St. Luke em
Boise (Idaho), organizou uma série de seminários de desenvolvimento dos
conhecimentos clínicos. Formaram-se auxiliares por cada serviço, e
diversos aspectos dos conhecimentos clínicos foram sistematicamente
explorados em pequenos grupos. As enfermeiras apresentaram e
compararam casos retirados da sua prática. Estes tinham-lhes ensinado algo
de novo, ou então, haviam-lhes permitido desempenhar um papel decisivo
na evolução dos seus pacientes com vista à sua cura. Esta abordagem
necessita de formar, de maneira específica, tanto animadores como
participantes. No início, os acontecimentos quotidianos considerados como
demasiado comuns ou demasiado particulares não foram considerados.
Mas, com o tempo, as enfermeiras começaram a detectar nestas
experiências uma vivência comum. Um ano após o início do programa o
acento será colocado no estudo dos aspectos caracterizadores das
populações específicas de doentes. Este grupo prepara-se para abandonar a
descrição pura para sintetizar as informações e encontrar explicações.
Mary Fenton, professora associada da Universidade do Texas, em
Galveston, descreve um sistema de avaliação original que utiliza uma
Epílogo 1 243

metodologia interpretativa e avalia o desempenho dos especialistas clínicos


preparados ao nível do domínio das ciências de enfermagem. Esta
estratégia de avaliação identifica os domínios de competência e os pontos
fracos, como os descritos e identificados pelas dinamizadoras e pelas
enfermeiras aquando das conversas mantidas em pequenos grupos. Este
projecto foi conduzido pelos próprios professores, que queriam
informações em primeira mão sobre as dificuldades e os constrangimentos
com os quais se vêem confrontados os especialistas clínicos na sua prática
quotidiana. Além disso, daqui retiraram novos elementos que poderão
utilizar como estudos de casos para formar os seus alunos.
Por fim, Kathy Dolan, directora-adjunta do serviço de investigação e
formação em cuidados de enfermagem do Centro médico de São Francisco
(Universidade da Califórnia), descreve aplicações práticas destes trabalhos
no desenvolvimento de programas de formação específicos para as recém-
-licenciadas, as preceptoras ou tutoras e as enfermeiras experientes. O seu
artigo insiste no facto do estudo da prática clínica poder ser um meio de
estabelecer pontes entre a prática da enfermagem e a formação das
enfermeiras. Ele reflecte a importância da sua participação no
desenvolvimento deste trabalho, e dá exemplos concretos que serão úteis
aos administradores, aos responsáveis pela formação, bem como às recém-
licenciadas.
244 1 De iniciado a perito

Do bom e mau uso


dos modelos formais em cuidados de enfermagem

Deborah R. Gordon, Ph. D.

As investigações em matéria de cuidados médicos são essenciais para


deles se fazer uma ideia precisa, para compreender os seus mecanismos e
conseguir uma boa eficácia. Estas experiências progridem graças a novos
conceitos, paradigmas e métodos, que, por seu lado, contribuem com novos
elementos. Tal era o caso aquando das minhas primeiras investigações
enquanto antropólogo participante do projecto AMICAE. A utilização de
,) conceitos como modelos formais, experiência, aprendiz e perito ... permitiu
t
1
í: o surgimento, a análise e compreensão de um grande número de novos
1 dados.
lH Empregando os métodos privilegiados em antropologia de observação e
1 de entrevista, estudei dois serviços de cirurgia geral durante dois anos.
Estes serviços eram caracterizados, no momento do inquérito, por uma
mobilidade constante do pessoal e, consequentemente, pela presença de um
grande número de recém-licenciadas.
A equipa de serviço era composta sobretudo por enfermeiras licencia-
das que se revezavam de doze em doze horas. O sistema de tratamento, que
incluía aulas, era inspirado nos cuidados primários. As enfermeiras
estavam repartidas em níveis I, II, III e IV. No quadro das minhas observa-
ções, pude constatar diversas coisas:

Como era encarada e encorajada a passagem do nível de aprendiz ao nível


de perito.
Como a enfermeira concebia a avaliação.
O que impedia as enfermeiras destes serviços chegar ao nível de perito.

Pude igualmente ver que a mobilidade do pessoal era aqui tão


importante que ela se tinha tornado quase normal; com efeito, as pessoas
pensavam frequentemente que as enfermeiras eram permutáveis dado que
estavam constantemente a ser substituídas. Para contornar este problema os
responsáveis tinham desenvolvido, pouco a pouco, uma estratégia de
compensações, fundada nos modelos formais, para que esta mobilidade do
pessoal perturbasse o menos possível a organização dos serviços (Gordon,
1981; 1984).
Epílogo 1 245

É, portanto, sob estes modelos formais que aqui me vou debruçar,


tentando apresentar as vantagens e os inconvenientes dos mesmos.

Os modelos formais

Os modelos formais desempenhavam um papel capital, tanto na


organização, como na definição dos actos que eram praticados nestes
serviços. As enfermeiras recentemente admitidas, e que eram numerosas,
recebiam listagens (check-lists) a explicar-lhes os actos dispensados, os
procedimentos a seguir, os medicamentos utilizados e as intervenções
praticadas no serviço. Ao fim de dois meses, seis meses e um ano, estas
jovens licenciadas eram avaliadas, com alguma dificuldade, pelos seus
colegas, a partir de um perfil baseado no processo de cuidados de
enfermagem: avaliação inicial, planificação, intervenção e avaliação final.
As enfermeiras que estavam há muito tempo no serviço eram avaliadas
todos os anos segundo o mesmo esquema, ou sempre que pediam uma
promoção.
Nestes serviços, os planos de cuidados de enfermagem eram uma prio-
ridade. Tratavam-se de "normas de cuidados" para os principais tipos de
operações praticadas. Por exemplo, havia normas de cuidados para
"intervenções abdominais maiores"; os problemas típicos sentidos pelos
doentes sujeitos a estas operações eram enumerados com os resultados
esperados e as prescrições de "cuidados de enfermagem". As transmissões
escritas ou notas de observação eram redigidas segundo o modelo de Weed
(1970), com a abreviatura SOQP (subjectivo, objectivo, questão, plano, isto
é, informações subjectivas, objectivas, problema, planificação). Por fim,
estes serviços utilizavam igualmente os manuais de procedimentos formais
para explicar como alimentar um doente, mudar os pensos ou agir aquando
de situações urgentes, tais como uma paragem cardíaca.
Antes de explorar alguns dos bons e maus usos dos modelos que
observei, vou, em primeiro lugar, dar a minha definição de modelos

O autor deseja agradecer às numerosas enfermeiras que participaram activamente


neste estudo, bem como às doutoras Esther Lucile Brown e Patricia Benner, pela sua
contribuição sobre o fundo e a forma.
Para preservar o anonimato do estabelecimento, o seu nome foi alterado.
ri
246 1 De iniciado a perito

formais. Estes são enunciados explícitos compostos por elementos que


foram escolhidos num contexto mais vasto e reordenados de modo
diferente para criar um novo conjunto. São representações e, neste sentido,
são abstractos, aparecendo mais frequentemente sob forma escrita. Fixam
sob a forma de enunciados elernentós muitas vezes implícitos, não
expressos, e frequentemente interpretados num sentido vasto. Clifford
Geertz fala de "modelos", tendo estes dois sentidos diferentes em função de
dois tipos de culturas: os modelos precedendo a realidade e os saídos da
realidade (1973, p. 93). Esta distinção aplica-se igualmente às funções dos
modelos formais. Estes últimos fornecem um esquema precedendo a
realidade, uma representação abstracta semelhante a um guia, fixando, ao
mesmo tempo, urna norma que permita dizer corno deveria ser a realidade.
Eles representam e orientam.

Os modelos formais:
guias que permitem compensar uma falta de domínio da prática

Os modelos formais podem perfeitamente funcionar como um guia para


aqueles que não têm experiência suficiente ou que não dominam um
determinado campo. É necessário dar a estas pessoas ou grupos de pessoas
directivas que enumerem regras a aplicar ou que descrevam os
comportamentos a apresentar segundo as situações (Bourdieu, 1977, p.2).
Desta maneira, o modelo formal substitui-se à prática tal como um guia dá
ao estrangeiro as informações que o indígena possui. Esta falta de prática
pode aplicar-se a uma profissão no seu conjunto, por exemplo, numa
situação de perturbações culturais, bem como aos indivíduos que não têm,
nem expe-riência, nem conhecimentos práticos.
Para os grupos de profissionais que apresentem lacunas, os modelos
formais podem constituir um meio de institucionalizar novos
comportamentos e novas atitudes. Podem fornecer um plano de mudanças,
especificando os novos comportamentos e as novas atitudes que os quadros
de enfermagem desejam empregar. Os comportamentos que antigamente
eram escondidos, informais ou raros, podem ser oficializados, legitimados
e passar a uso graças aos modelos formais.

Exemplo. As descrições de posto nos serviços que estudei foram


cuidadosamente redigidas pelos quadros de enfermagem durante um

>
Epílogo 1 247

período de três anos. Os autores procuraram realçar certos


comportamentos, tais como a avaliação inicial do doente, para a partir
destes formar uma competência válida e reconhecida. Procuraram
legitimar certos poderes não reconhecidos e fazer reconhecer o verdadeiro
trabalho efectuado pelas enfermeiras. Além disso, procuraram tomar
habitual certos comportamentos ocasionais, como a importância dada, por
vezes, às questões psico-sociais. Por fim, procuraram introduzir com mais
frequência novos comportamentos, tais como a investigação. Utilizaram
um modelo formal, contendo descrições de função detalhadas, a fim de
apresentar estes comportamentos como as novas normas que permitiriam
avaliar todas as enfermeiras. Isto passou-se, com efeito, enquanto que
fazia as minhas observações nos serviços.

Apesar dos resultados evidentes que obtivemos através da utilização de


tais modelos, é necessário não negligenciar os riscos. O modelo formal
pode facilmente tornar-se um fim em si mesmo, e não um meio para atingir
um objectivo. O modelo, que é apenas uma abstracção, é por vezes
abordado como qualquer coisa de concreto e de muito real; ele torna-se a
norma. Por exemplo, indicámos por vezes às enfermeiras que elas se ti-
nham "ajustado 98% mesmo 100% às descrições de funções". Tendíamos,
assim, a fazer crer que o facto de se ajustar a estas descrições queria dizer
que se era uma boa enfermeira, mesmo se as descrições apenas apreendiam
a míriade de detalhes que caracterizam os cuidados de enfermagem de alto
nível.
Além disso, dado que as funções são descritas em termos de
comportamentos tipo quantificáveis, há importantes aspectos dificilmente
mensuráveis, tais como a implicação e a sensibilidade, que quase não são
tidos em conta. Por outro lado, uma das características da experiência é a
sua adap-tabilidade ao que não é habitual, isto é, uma acção é apenas
empreendida em função de uma acção particular e não no seguimento de
uma situação tipo. Algures na sua natureza, esta flexibilidade face aos
acontecimentos não pode ser prevista por um modelo formal.
Subsiste ainda um outro risco: se bem que os modelos formais como as
descrições de posto possam ajudar a tornar as enfermeiras mais autónomas,
esta autonomia, uma vez obtida, poderá ser posta em questão, porque será
contraditório formalizar a autonomia. ·
Para a enfermeira em início de carreira, os modelos formais podem
servir como substituto da experiência. Com efeito, eles podem compensar
l, i

248 1 De iniciado a perito

uma falta de domínio e conhecimentos insuficientes. Estes modelos são,


portanto, guias essenciais, na medida em que mostram o caminho a seguir
em certas situações típicas. Ao dividir os cuidados numa série de actos
elementares, e ao fornecer regras pertinentes, eles permitem às enfermeiras
pouco experientes agir com uma relativa segurança, que é o que desejamos.
Os manuais de procedimento, os protocolos e as normas são categorias de
modelos formais.

Exemplo. Certas enfermeiras experientes que observei participaram


na redacção de normas de cuidados para grandes operações, tais como as
mastectomias, as intervenções ao abdómen ou as hérnias estranguladas.
Baseando-se na sua experiência e na literatura publicada sobre o assunto,
elas anotaram, por etapas, os problemas previsíveis e as medidas a tomar
em relação aos doentes sujeitos a este tipo de intervenções. Elas
colocaram a tónica nos sinais a procurar, nas complicações que podem
ocorrer (tais corno a infecção ou a dor) e nas acções a desenvolver. O
objectivo era que uma recém-licenciada ou uma provisória se pudesse
servir destes apontamentos em qualquer situação.

É muito importante notar que estas normas de cuidados e outros textos


do mesmo género se tornam modelos de comportamento não apenas para
aquelas que estão a começar a sua carreira ou para as provisórias, mas
1: igualmente para as enfermeiras mais experientes. Acabam por ser parte
"
1 integrante das formações e tornar-se critérios incontornáveis na avaliação
da qualidade dos cuidados prestados (Gordon, 1981). Em outros termos, os
modelos formais são, frequentemente, guias de aprendizagem e desempe-
nham um papel essencial na integração e avaliação das enfermeiras. Até
um certo ponto, têm prioridade em relação à opinião do pessoal
experimentado.
Há vantagens evidentes nesta exteriorização de conhecimentos. O facto
de os colocar por escrito, legíveis e utilizáveis por uma jovem enfermeira,
permite atenuar a falta de pessoal. Pode estender-se à avaliação quando já
não há enfermeiras experientes. Com efeito, os modelos facilitam a
permutabilidade das enfermeiras; diferentes enfermeiras podem, por
exemplo, ter um mesmo procedimento e agirem sem demasiados riscos
para os pacientes. As coisas seriam diferentes se apenas um pequeno grupo
de enfermeiras fosse depositário destes conhecimentos. Face à importância
da mobilidade ou da falta de pessoal, bem como à ausência de
Epílogo 1 249

reconhecimento do contributo que a experiência traz, esta permutabilidade


tem, frequentemente, muita importância no meio hospitalar.
O registo dos conhecimentos de enfermagem constitui igualmente um
auxiliar de memória, tanto para as mais experientes, como para as recém
licenciadas. De facto, numerosas enfermeiras experientes consideram que
estes procedimentos eram úteis na medida em que fornecem uma segurança
suplementar em caso de esquecimento. Com efeito, tendo em conta o
número de intervenções que as enfermeiras têm de desenvolver ao mesmo
tempo, é previsível que esqueçam alguma coisa. Com um auxiliar de me-
mória, o esforço é menor.
Mas estes modelos formais são empregues para compensar a falta de
experiência. Há, então, um perigo, na medida em que os níveis de
competências nos quais se encontram as enfermeiras já não são tomados
em conta, do que advém um sentimento agudo de injustiça por parte das
mais experientes.

Exemplo. Os planos de cuidados de enfermagem comportam,


simultaneamente, procedimentos de cuidados para problemas típicos
identificados por uma determinada enfermeira, e prescrições específicas
fundadas na identificação destes problemas. Por exemplo, para um doente
deprimido, a enfermeira poderá, partindo das referências, recomendar que
este seja visto de duas em duas horas e estimulá-lo a exprimir os seus
sentimentos. Esta prescrição não tem em conta o facto do doente não
desejar talvez abrir-se com qualquer enfermeira. Mas não se trata aí de um
único problema. Para parafrasear as reacções de uma enfermeira
experiente a este tipo de prescrições: "Não gosto que me digam para ir
falar com um paciente deprimido. Procederia desse mesmo modo, por
minha própria iniciativa. Não tenho necessidade que mo ordenem".

As prescrições de enfermagem para regulamentar uma situação típica


não têm como objectivo responder às necessidades e aos desejos do paciente
enquanto indivíduo, e não são destinadas a uma enfermeira específica. Elas
são eficazes em situações estáveis, e são, por vezes, desajustadas na maior
parte das situações de crise. Além disso, estas ordens não têm geralmente
em conta o nível de competências da enfermeira. Para aquelas que já sabem
como proceder e que conseguem distinguir as mínimas mudanças no estado
de um paciente, competências estas que os manuais e protocolos não podem
descrever, estas ordens podem ser sentidas como um ultraje.
250 1 De iniciado a perito

Além disso, os modelos formais deixam pouca liberdade e podem ser


uma fonte de frustrações, na medida em que constituem um freio à evolu-ção
profissional das mais experientes. Com efeito, os modelos formais são
impessoais e colocam todas as enfermeiras ao mesmo nível. Para valo-
rizarem a avaliação, demarcarem-se da obediência cega às prescrições
médicas e, assim, conquistarem a sua autonomia, as enfermeiras devem
absolutamente evitar reforçar o carácter impessoal dos modelos e recusar
acrescentar outras regras que acabarão por restringir as suas capacidades de
raciocínio ao ponto de delas fazer... robots!
O perigo é grande quando tentamos expor os actos de enfermagem de
uma maneira explícita e simples. Os modelos formais podem dividir uma
situação complexa em pequenos problemas contornáveis, mas há o risco de,
ao realizar esta divisão, esses problemas se tomarem de tal modo numerosos
que a situação smja como irresolúvel. Apesar de tentarem ser muito
completos, de nada tomarem por adquirido, os modelos formais podem
transformar-se em listas intermináveis, pelo que as enfermeiras que os lêem
sentir-se-ão completamente ultrapassadas.

Exemplo. Certos procedimentos de cuidados podem ocupar vanas


páginas. Os cuidados das feridas, descritos etapa por etapa, dão
frequentemente às enfermeiras, mesmo às mais competentes, uma
impressão de insegurança, porque acreditam estar completamente
ultrapassadas. Tendo várias enfermeiras lamentado-se da sua dificuldade
em seguir o plano de cuidados que descreve a mudança do penso, foi a
própria enfermeira vigilante que acabou por realizar a tarefa, seguindo o
plano à letra. Ela também se sentiu perdida e pouco à vontade em frente
de todas estas páginas. Foi necessário lê-las várias vezes antes de
distinguir os procedimentos familiares, antes de ter uma ideia do que era
necessário fazer e de que, finalmente, a operação não era assim tão
complicada. Ela não ficou surpreendida pelo facto de tanto as recém-
licenciadas como as enfermeiras mais antigas terem sido ultrapassadas
por esta avalanche de descrições procedimentais.

Em outros termos, se detalhamos excessivamente os actos de uma


profissão, esta operação pode levar a um sentimento de complexidade mais
ou menos importante. Em filosofia, chamamos a esse sentimento o
problema da regressão infinita (Dreyfus, 1979): cada vez que detalhamos
dema-siado o que é tomado como adquirido, encontramo-nos face a um
outro conjunto de postulados que devem ser detalhados.

t::
Epílogo 1 251

Como gerir uma situação difícil

A par do seu aspecto redutor e do seu carácter explícito, os modelos


formais podem, por vezes, ajudar a gerir uma situação difícil. Estes podem
servir de referência. Neste sentido, oferecem um meio para enfrentar situa-
ções difíceis no plano emocional.

Exemplo. Uma recém-licenciada, encontrando-se pela primeira vez


frente a um paciente moribundo, não ficou muito perturbada com esta
experiência. Aquando de uma reunião de enfermeiras realizada a seu
pedido, apresentámo-lhes o modelo de Kübler-Ross sobre os diferentes
estados do processo de luto. Os estádios nos quais se encontravam,
respectivamente, o paciente e a enfermeira foram identificados pelo
grupo. A recém-licenciada retirou desta experiência uma melhor
compreensão da sua situação.

No entanto, aqui o perigo reside no facto deste fornecer explicações e


meios para gerir uma situação complexa simplificando exageradamente e
resumindo demasiadamente as situações.

Exemplo. Numa situação semelhante à precedente, identifiquei que a


enfermeira estava no estádio conhecido pelo nome de "ajuste". Ela queria
transmitir esperança ao doente. Depois de tê-la observado e de ter
discutido sobre a sua implicação, dei-me conta que ela sentia emoções
bastante mais fortes do que as descritas no modelo, que destas fazia uma
simplificação grosseira. O facto de a "inserir" neste estádio significava
negar uma grande parte do que ela havia vivido.

É necessário, pois, ver o outro lado da medalha. Ao reduzir numa


estrutura fixa um grande número de variáveis seleccionadas, os modelos
formais reduzem e abafam a complexidade das situações reais. Esta
simplificação é, em alguns momentos, desejável, mas, por vezes, a
complexidade é essencial. Os modelos formais podem dificultar a
compreensão, mais do que a facilitar, em particular em situações sensíveis
como os cuidados aos doentes moribundos. Fornecem, assim, um
sentimento enganador de certeza e de controlo, enquanto que tudo era
ambiguidade. Acontece, às vezes, que quando ajuda um paciente, a
252 1 De iniciado a perito

enfermeira se envolve demasiado, acabando por complicar inutilmente a


situação. O carácter redutor dos modelos formais simplifica e ordena, mas,
quando este é levado demasiado longe ou mal utilizado, pode esconder e
excluir elementos importantes da situação.

Os modelos formais, base de consenso e uniformização

Vimos de que modo os modelos formais serviam como guias ou


substitutos do conhecimento. Uma segunda utilização maior destes últimos
consiste em empregá-los como ponto de partida em direcção ao ideal. Estes
modelos podem ajudar a normalizar os comportamentos face à diversidade
das situações. Podem também gerar o consenso em caso de conflito sobre
a conduta a ter em determinadas situações.
Assim, os membros de uma sociedade devem aceitar submeter-se a
regras razoáveis. Devem também chegar a um consenso sobre o que é
importante para responder às suas necessidades e às do grupo. Este
consenso provém habitualmente das experiências comuns e do tempo
passado em conjunto. Em geral, os grupos sociais comunicam graças a uma
linguagem particular que todos compreendem a um nível implícito. Assim,
quanto mais os membros de um grupo se encontram, mais partilham a
mesma compreensão das práticas, das interpretações e dos valores.
Mas o que se passa nos grupos que não têm nenhuma história comum,
cujos membros provêm de diferentes horizontes e que apenas trabalharão
em conjunto por um breve período de tempo? Que dizer dos grupos que
sofrem transformações culturais, a ponto dos conhecimentos partilhados se
tomarem obsoletos? Em tais situações, os modelos formais podem fornecer
um índice de base, contendo um conjunto de critérios de comportamentos
tipo que todos poderão seguir. Assim, onde não podemos apoiar-nos numa
linguagem implícita, é possível voltarmo-nos para uma linguagem explícita
fornecida pelos modelos formais que descrevem comportamentos gerais. É
neste aspecto importante que os modelos formais se substituem ao conjunto
de conhecimentos e de práticas de grupo.

Exemplo. As descrições de funções utilizadas nos serviços eram


redigidas com cuidado, de modo a poder servir como modelos aos novos
comportamentos. Mas é claro que eles eram mais do que modelos.
Tratava-se de novos critérios, de critérios universais destinados a avaliar

J,
Epílogo 1 253

todas as enfermeiras. Para o fazer, as descrições foram redigidas de


maneira formal e quantificável, como, por exemplo, "explicar a razão do
tratamento ao paciente". O carácter novo de um grande número de actos
indicados mostrava lacunas em matéria de conhecimentos comuns. Em
numerosos casos, as enfermeiras não tinham simplesmente nunca
praticado estes actos. Como vinham de horizontes diversos, a maior parte
não tinha uma linguagem comum que lhes permitisse comunicar e agir de
maneira ideal. Era necessário, então, explicar que as descrições
subentendiam um comportamento baseado numa prática da enfermagem
ideal forjada através de modelos científicos, autónomos e racionais.

Poderíamos argumentar que a compreensão seria facilitada pela


explicação clara das opiniões, das expectativas e dos valores em vigor no
grupo. Mas se as declarações explícitas podem substituir-se à compreensão
tácita, não se trata da mesma coisa. As declarações formais explícitas dão
o signi-ficado dos actos, e não deixam lugar a interpretações matizadas
como a compreensão tácita. Dar explicações claras demora igualmente
tempo. Este tipo de comunicação, que pode ter o seu lugar entre outros
tipos mais farni-liares, tais como a palavra ou o olhar, "que fala sozinho",
é praticamente impossível sem uma cultura comum. Mesmo que ela exista
e que tentemos explicitar as palavras utilizadas no grupo, subsistem ainda
problemas, apenas algumas coisas podem ser explicadas por palavras.
Foram necessários três anos para redigir estas descrições de funções (e
conceber uma nova grelha de promoção); foram igualmente necessários
vários anos para escre-ver as normas de cuidados.
Os modelos formais utilizados como base de uma cultura comum e de
avaliação levam a um outro perigo: a sujeição excessiva. É muito fácil
apenas perseguir objectivos simples para se submeter aos comportamentos
especificados no modelo. Podemos, então, esperar que os utilizadores
adiram a este.

Sobre o mau uso dos modelos

Os modelos formais podem ser muito importantes, mesmo essenciais,


em certas situações, mas, por causa da confiança excessiva que lhes é
concedida, e a ausência de questionação nos meios de enfermagem, e na
sociedade em geral, é importante examinar mais seriamente as situações
254 1 De iniciado a perito

1
i
onde eles são mal utilizados. Também aqui vou servir-me de exemplos.

A normalização do imprevisto:
a capacidade de raciocínio é suplementada pelas regras

Quando cuidam dos pacientes, as enfermeiras devem tomar numerosas


decisões complexas. Os protocolos escritos poderiam substituir-se ao
raciocínio, de modo a normalizar as actividades. Esta ideia parece
reconfortante, mas é ineficaz. Com efeito, em certos casos, protocolos e
fórmulas não podem substituir-se ao espírito de análise, o único que
permite a apreensão de uma situação no seu conjunto.

Exemplo. Nos serviços onde realizei as minhas observações, as jovens


enfermeiras aprendiam o seu papel em sete a oito semanas. Em primeiro
lugar, elas eram supervisionadas, depois encontravam-se sozinhas. Muitas
enfermeiras tiveram, no início, dificuldades contínuas a gerir as exigências
múltiplas da sua função. Num esforço para aliviar estas dificuldades, uma
enfermeira organizou-se segundo um protocolo. Tratava-se de uma lista
completa das coisas a lembrar-se, mas esta lista não permitia dar prioridade
a uma situação mais do que a uma outra, nem a um pedido mais do que a
um outro; ela não podia avaliar a utilidade de algum procedimento, nem
antecipar os problemas; ela não podia dar indicações à nova enfermeira,
incluindo nesta designação as enfe1meiras que teriam necessidade de ajuda
num determinado momento. Ela não permitia à enfermeira "ver o serviço
como um todo", o que é tão necessário na tomada de decisão de diferentes
tarefas que aqui são realizadas.
A recém-licenciada tinha igualmente dificuldades em sintetizar as
informações a transmitir aquando das mudanças de equipa. Uma boa
transmissão de ordens não pode nunca ser estandardizada, porque o seu
papel apenas consiste em transmitir as informações essenciais e a antecipar
os problemas para a equipa seguinte. Assim, os sinais vitais, por exemplo,
não têm a mesma importância segundo os pacientes; em certos casos eles
fornecem uma informação crucial, em outros têm pouca importância. O
mesmo se passa com os regimes alimentares, os solutos intravenosos, as
"entradas e saídas", e outros elementos constantes na lista. É necessário
escolher o que é mais importante em função de cada paciente. Trata-se de
uma escolha e não de uma lista pré-estabelecida de informações. E, para
poder escolher, a enfermeira deve conhecer o estado geral do doente.

n
Epílogo 1 255

Nos dois exemplos, as enfermeiras implicadas conheciam bem a dife-


rença entre um bom e um mau relatório, entre um acto bem e mal praticado.
Mas penso que, face à necessidade de ter as novas enfermeiras rapidamente
operacionais, preferimos os modelos formais que, dando uma certa ajuda,
nunca poderão constituir uma solução. Talvez pudéssemos encontrar a
resposta numa boa apreensão da situação e dando mais tempo às novas
enfermeiras antes de lhes confiar a responsabilidade do serviço ou da
unidade.
Os modelos formais não podem substituir-se ao espírito de análise. Se
bem que sejam muito importantes em relação aos cuidados de enfermagem,
as normas de cuidados são estabelecidas a partir de uma situação tipo - o
paciente "normal", e não de um paciente particular. É à enfermeira que
cabe dizer se uma situação exige ou não um determinado procedimento.

Exemplo. Um plano de cuidados tipo designa a "dor" como um pro-


blema típico dos pacientes que sofreram uma intervenção ao abdómen. É
incapaz de quantificar a dor em função das reacções do paciente. É
evidente que todos os pacientes sofrem, mas a partir de que ponto esta dor
constitui um problema? Uma interpretação é necessária. Para gerir a dor
pós-operatória, é necessário uma sensibilidade aguda, de modo a que o
doente receba a quantidade certa de antálgicos, isto é, nem poucos nem
em demasiada. Aquando das minhas observações, constatei que as novas
enfermeiras que ainda não reconheciam bem os sinais de desconforto e de
dor avaliavam, por vezes incorrectamente, a necessidade de antálgicos.
Portanto, vemos que os modelos formais apenas são fiáveis se os
utilizadores o forem igualmente.

O recurso excessivo aos modelos formais


para manter a ordem e tudo controlar

Os procedimentos, as normas e as regras dão uma aparência ordenada a


uma situação e fazem crer que tudo se passa sem dificuldades. Não dão, no
entanto, nenhuma garantia sobre a "qualidade dos cuidados", para retomar
uma expressão frequentemente utilizada.

Exemplo. As enfermeiras dos serviços estão frequentemente sob pres-


são devido ao número significativo de recém-licenciadas que chegam ao
256 1 De iniciado a perito

seu serviço. Com efeito, elas devem mostrar às suas jovens colegas como
assegurar cuidados correctos com toda a segurança. As enfermeiras-chefe
querem a todo o preço assegurar "cuidados de qualidade" e insistem cons-
tantemente na necessidade de escrever os planos de cuidados e os antece-
dentes dos doentes, com o objectivo de possuir informações correctas e
de se conformar às normas. Penso que a qualidade dos cuidados prestados
neste serviço alcança frequentemente a qualidade dos cuidados formais.
No entanto, estes critérios externos, destinados a garantir a segurança dos
pacientes, não podem, em caso algum, tomar em conta a qua-lidade dos
cuidados que uma enfermeira presta realmente. Efectivamente,
numerosas enfermeiras esquecem estes planos de cuidados quando estão
sob pressão. Algumas queixaram-se da ausência de reconhecimento do
seu papel na gestão do serviço aquando de períodos de crise, ou quando
prestaram cuidados de boa qualidade mesmo quando o pessoal era
claramente insuficiente. Efectivamente, elas queixam-se do facto dos
planos de cuidados não terem em conta as suas condições de trabalho.
Algumas pensam mesmo que o mais importante era obedecer às regras
formais.
Se estudamos as descrições de função e o conteúdo real das avaliações
efectuadas pelas colegas neste ambiente, concluímos que é dada muita
importância às capacidades de redacção da enfermeira, como, por
exemplo, à sua capacidade de anotar os antecedentes do paciente, à sua
forma de estabelecer um plano de cuidados eficaz ou uma folha de
cuidados bem legível. Estas características mais formais acabam por se
associar à imagem do que deve ser uma boa enfermeira, enquanto que
acabamos por ignorar critérios tais como o envolvimento, o facto de agir
atempadamente, ou ainda de reconhecer precocemente as mudanças no
estado do paciente.
Apesar do cumprimento das regras ser para a aprendiz ou para a
enfermeira inexperiente, este apenas fornece um certo tipo de organização,
que não é em nenhum caso a melhor. Podemos igualmente ter ordem sem
recorrer às regras (Dreyfus, 1979), mas baseando-nos na avaliação de uma
situa-ção paiticular segundo as capacidades de cada enfermeira. Esta ordem
decorre de uma adequação entre as preocupações, a interpretação de uma
situação e as acções empreendidas segundo os actores e as situações. Além
disso, esta ordem é apreendida de modo global ou holístico. A acção pode ser
reduzida ao essencial dado que o que é inútil pode ser eliminado; o que não
se passa no caso dos modelos formais.

r:
Epílogo 1 257

Quando a organização e a qualidade dos cuidados são postas ao mesmo


nível que o cumprimento das regras, como ocorreu às vezes nos serviços
que observei, podemos mesmo dizer que o nível competente, tal como é
descrito no modelo Dreyfus, acabou por se tornar o ideal (Gordon, 1982).
Os critérios que descrevem as enfermeiras experientes parecem muito
diferentes de regras explícitas ou formais. Efectivamente, os modelos
formais podem dar o sentimento errado de poder tudo controlar com
certeza; podem permitir, sem dúvida, prodigalizar cuidados sem perigo,
mas não os melhores cuidados. Esta nuance não deve ser perdida de vista.

A Mistificação

Um outro perigo resultante da confiança excessiva dada aos modelos


formais e à linguagem formal é o perigo da mistificação. A fala e o
pensamento ganham a forma de slogans e são formalizados a um tal ponto
que nos encontramos face a um discurso simplista e indiscutível,
dissimulando a complexidade da situação real aos diferentes intervenientes.
Esta simplificação é frequentemente uma função necessária para as
enfermeiras que se encontram em situações complexas e muito assustadoras,
mas é necessário examinar os perigos e compreender os limites desta. As
pessoas acabam por pensar que compreendem bem a situação, quando,
efectivamente, não é o caso.

Exemplo. Depois de ter observado duas enfermeiras experientes


durante dois meses cada, redigi as minhas observações, notando, em
particular, como era diferente a forma como estas duas excelentes
enfermeiras praticavam a sua profissão. Uma delas possuía um grande
carisma do qual sabia tomar partido; a outra procurava mais fazer-se notar
o menos possível. Quando falei nesta particularidade à enfermeira-chefe,
que as conhecia, ela disse-me que ambas eram excelentes do ponto de
vista das competências "psicosociais". Não obstante, colocar no mesmo
saco as competências psicosociais, que são as mais subtis, destas duas
enfermeiras equivalia a desvalorizar o seu alto nível de competências. O
termo "psicosocial" ganhou um tal significado que acabou por não signi-
ficar já grande coisa. Utilizamo-lo seja para descrever o modo como as
enfermeiras se comportam com os pacientes, seja para descrever as
necessidades não biológicas destes. Um uso assim tão frequente e geral
258 1 De iniciado a perito

deste importante conceito acaba por o esvaziar do seu significado.


Resumo

Dado que a utilização de modelos formais em termos dos cuidados de


enfermagem parece tão apreciado, resumamos certos perigos decorrentes
de uma utilização exagerada dos mesmos:

O modelo tem força de lei: ele torna-se a realidade.


Produz-se um eclipse ou uma desvalorização das competências que
não podem ser formalizadas.
Ele rege os comportamentos e encontra-se em completa contradição
com o espírito dos cuidados de enfermagem, entre eles a
autonomia.
Produz-se um nivelamento por baixo em termos de perspectivas de
carreira a favor das enfermeiras menos experientes.
Dá tantos detalhes que complica em vez de ajudar.
Simplifica ao extremo situações complexas.
Exige uma conformidade excessiva: a utilização do mesmo critério
por todos os profissionais pode levar à sujeição excessiva a um
conjunto particular de critérios.
É insensível ao que diferencia as situações e as enfermeiras: as decla-
rações formais são destinadas a descrever situações tipo e não si-
tuações particulares.
Há uma oposição confusa entre o cumprimento das regras e o parecer
clínico.
Há uma mistificação: o discurso está tão regulamentado que se torna
trivial e simplista.

Que podemos concluir destas investigações? Em primeiro lugar que as


funções dos modelos dependem da situação e das intenções dos
utilizadores. Algumas destas características dos modelos formais (o seu
carácter redutor, a sua abordagem elementar e explícita, a sua
objectividade) servem adequadamente em certas situações. No entanto, em
outras, vão ao encontro dos objectivos e das intenções dos utilizadores,
porque restringem, por exemplo, a autonomia das enfermeiras, regendo os
actos de enfermagem por "prescrições" ou por descrições elaboradas de
funções.
É importante que os modelos formais sejam não apenas utilizados com
Epílogo 1 259

discernimento, mas é necessano igualmente diminuir o seu alcance e


realçar, sobretudo, o que não é passível de formalização, como as relações,
o imprevisto, o não-dito, a intuição. O perigo é bastante real, porque a
nossa sociedade tende a tudo encerrar em modelos científicos.
No seu combate por obter reconhecimento profissional, uma autonomia
e uma maior legitimidade, as enfermeiras devem abandonar o recurso
exagerado a tais modelos formais e a idealização de características que não
existem nos cuidados de enfermagem. Devendo enfrentar os
constrangimentos institucionalizados pelos médicos e pelos burocratas, as
enfermeiras não podem permitir-se criar novos grilhões, sobretudo em
nome da liberdade. Em numerosos casos, é necessário considerar os
modelos formais como ferramentas auxiliares, essenciais no início, mas
inúteis e redutoras aquando da aquisição de um maior nível de
competências. É necessário não confundir o modelo com a realidade e não
esquecer que ele é apenas um utensílio de trabalho e não uma referência.
260 1 De iniciado a perito

Integração de uma enfermeira de nível III no hospital El Camino

Anne Huntsman, Janet Reiss Lederer


e Elaine M. Peterman

Como disse Patrícia Benner, "tanto as descrições objecti vas da sua


profissão, como o reconhecimento do seu valor, a melhoria dos salários e
as medidas destinadas a impedir a "fuga de cérebros", constituem a
primeira etapa com vista ao melhoramento das qualidades dos cuidados
dispensados aos pacientes"'. No hospital EI Camino de Mountain View,
quisemos desenvolver uma hierarquização da carreira que teria em conta as
reais competências de cada enfermeira.
Formámos uma equipa de projecto formada por enfermeiras que deti-
nham diferentes níveis de responsabilidade: enfermeiras que trabalhavam
nos serviços, uma enfermeira docente, uma enfermeira chefe, uma vigilante
e uma coordenadora responsável do serviço de formação. A coordenadora
do projecto AMICAE foi indicada como consultora'.
Dois membros da equipa tinham participado nas entrevistas do projecto
AMICAE; tinham descrito situações onde a sua intervenção havia
desempenhado um papel significativo na evolução do estado do seu pacien-
te.
Estávamos entusiasmados com a ideia de uma abordagem que
implicasse situações em que a intervenção de enfermeiras experientes se
tivesse revelado capital. Depois de reler alguns exemplos retirados do
projecto AMICAE, a equipa desenhou o perfil da enfermeira de nível III.
Para saber se uma enfermeira tinha atingido este nível, foi decidido pedir-
lhe que descrevesse a sua forma de trabalhar. A forma como os cuidados
foram prestados é a base do perfil de posto da enfermeira do hospital de EI
Camino.

1
Patrícia Benner, "From novice to expert", Am. J. Nursing, 82, Março 1982, p. 402-
407.
' AMICAE: Achieving Methods of lntra-professional Consessus, Assessment and
evaluation ou "Investigação de Métodos Intra-profissionais de Consensos e de avalia-
ção", é um estudo financiado pelo estado cujo objectivo é avaliar as capacidades das
recém-licenciadas de sete escolas de enfermagem da região de S. Francisco. Aquando
deste estudo, os investigadores igualmente observaram e descreveram os actos
dispensados por quarenta enfermeiras clínicas experientes.
Epílogo 1 261

Durante quatro meses, a equipa reuniu-se em sessões de trabalho diárias


animadas por uma consultora. Emergiram novas ideias respeitantes ao
desenvolvimento de um método de avaliação objectiva das competências
de uma enfermeira. O primeiro problema consistia em desenvolver um
sistema contínuo de avaliação, uma vez conhecido o nível inicial. A outra
dificuldade era de ordem estatística: com efeito, sabíamos que um certo
número de enfermeiras nunca chegariam ao nível III. Para resolver este
problema, e depois de numerosas discussões, foi decidido que as
enfermeiras que tivessem mostrado uma progressão mais importante que as
suas colegas deveriam ser recompensadas.
O nível III comportava exigências de ordem geral, bem como a
exigência de assumir quatro tipos de responsabilidades: centradas no
paciente, no serviço e no hospital, na progressão dos conhecimentos em
cuidados de enfermagem e no desenvolvimento pessoal e desenvolvimento
dos outros.
Por duas vezes, enviámos, para releitura e correcção, as primeiras
descrições da enfermeira de nível III a todas as vigilantes, às enfermeiras
chefe, bem como às docentes. As suas recomendações foram incluídas na
descrição final. Uma reunião permitiu explicar às enfermeiras, que deve-
riam fazer parte dos comités de avaliação, como aplicar os critérios
caracterizadores da enfermeira de nível III. Era necessário igualmente fazê-
las compreender que dever-se-iam envolver neste trabalho de modo
responsável.

O processo de avaliação pelos seus pares

O procedimento de avaliação pelas suas colegas, utilizado para aferir e


promover as candidatas ao nível III, forneceu um meio objectivo de:

dar às candidatas ao nível III o feed-back respeitante à sua prática


clínica
reconhecer a profissional clínica possuidora de conhecimentos e
competências avançadas
promover um sistema que encorajasse a avaliação e responsabilização
profissionais.
262 1 De iniciado a perito

Os membros do comité de avaliação foram recrutados pela directora


adjunta. Tratava-se de enfermeiras nomeadas por um ano no mínimo. Este
sistema permite a continuidade e a mudança na composição dos comités.
Cada um deles inclui uma coordenadora, uma enfermeira-chefe, uma
responsável pela formação e três enfermeiras de nível III provenientes de
diferentes serviços. A composição do comité permite uma abordagem
completa sem prejuízo das competências da candidata.
Os comités reuniram-se todos os trimestres para reavaliar as candidatas
ao nível III. Os únicos dados tomados em conta para a aceitação da
promoção são a entrevista e o dossier da candidata. Portanto, quanto mais
o dossier de uma candidata corresponder aos critérios definidos, mais
facilmente o comité emitirá uma opinião favorável. Eis o que o deve
constar no dossier:

Um formulário que indica a adesão da candidata ao regulamento


interno e que descreve a sua formação.
Uma cópia da última avaliação.
A avaliação feita pela candidata do seu desempenho em cada domínio
da sua função, e descrição dos seus objectivos profissionais a curto
e longo termos.
A avaliação por duas madrinhas, a enfermeira-chefe e uma colega, da
escolha feita pela candidata nos seus domínios de
responsabilidade.
A descrição de uma situação clínica em que a candidata revelou as
suas competências enquanto clínica.
A prova escrita das sua implicação em comités ou em projectos
particulares.
- Os pontos particulares que retlictam a qualidade do trabalho da
candidata, tais como o estabelecimento de planos de cuidados de
enfermagem, as notas registadas pela enfermeira, os seus projectos
profissionais.
Uma carta de recomendação de uma colega dizendo respeito à
candidata (facultativo).

Antes da entrevista, cada membro do comité estuda independentemente


o dossier da candidata, com o objectivo de manter a objectividade e reduzir
possíveis falhas. O conteúdo do dossier, bem como as impressões emitidas
aquando do seu exame, são confidenciais.

l
Epílogo 1 263

Durante a análise do dossier, os membros do comité começam por


formular e anotar as questões que desejarão colocar à candidata aquando da
entrevista. Com o objectivo de permitir que o exame dos dossiers siga uma
abordagem estruturada e fiável, foi elaborado um formulário de trabalho
para registar os comentários, as questões, as impressões, etc. Esta folha é
utilizada por cada membro do comité como referência antes e durante a
entrevista.
Pede-se à candidata que se submeta a uma entrevista de 45 minutos,
momento obrigatório do processo de avaliação. Uma animadora facilita a
dinâmica de grupo antes e durante a entrevista, bem como aquando das
discussões que se seguem a esta. Considerámos que seria importante que
cada membro do grupo colocasse, pelo menos, uma questão às candidatas,
dado que estas têm frequentemente a tendência a interpretar negativamente
os silêncios de certos membros do grupo.
Tentámos criar uma atmosfera descontraída, decidindo que o local da
entrevista teria um carácter informal, com cadeiras confortáveis, um sofá e
uma mesa baixa. Oferece-se sempre um café. A entrevista começa à hora
marcada. É disposta uma cadeira no exterior da sala, no caso da candidata
chegar antes.
Uma vez que a candidata esteja instalada para a entrevista, procede-se
apresentação. Cada membro do comité indica o seu nome, o seu título e o
seu domínio de especialidade. De seguida, a animadora, num tom amigá-
vel e caloroso, explica à candidata o modo como se vai desenrolar a
entrevista. Dado que, muitas vezes, as candidatas estão nervosas durante a
entrevista, tentamos, na medida do possível, criar um ambiente simpático,
e com elas manter verdadeiras conversas. Os aspectos positivos do dossier
são sempre realçados durante a explicação do desenrolar da entrevista. A
candidata tem tempo suficiente para responder às questões e comentários,
e é encorajada a clarificar as questões e as reacções às questões. De igual
modo, pede-se à candidata que conte um episódio da sua vida profissional
em que revelou a sua capacidade para efectuar actos de nível III. A história
deve deixar transparecer, simultaneamente, as qualidades técnicas e
humanas da enfermeira. Os membros do comité podem pedir
esclarecimentos sobre certos aspectos da narração, ou colocar questões
destinadas a sondar a candidata para determinar o seu nível de
competência. Vejamos três exemplos de narrações.
264 1 De iniciado a perito

Narração de KATHY BROWN

Um dia, à tarde, quando tinha a meu cargo três doentes, no serviço de


cardiologia, pediram-me que transferisse um outro doente para o serviço 4
às 16 horas. Por dia tínhamos de responder a muitas solicitações.
Tencionava visitar os meus três doentes, depois de ter dado uma vista de
olhos ao paciente que seria transferido, o Senhor M., do qual me tinha
ocupado durante o fim de semana. Pensava conhecê-lo suficientemente
bem apenas passar por ele e dizer-lhe que regressaria mais tarde. Mas algo
não decorria como seria de esperar. O doente encontrava-se caído de lado
e tinha dificuldade em respirar. No entanto, não estava pálido. Voltei a
1 confirmar a sua transferência para as 16 horas. O relatório da transferência
1
,: estava escrito, os papéis prontos, os seus assuntos ultimados, e apenas tinha
que o levar ao fundo do corredor.
Mas, com efeito, acabei por mudar os meus planos. Observei
rapidamente os outros doentes (tensão e pulsos estáveis, ausência de dor) e
pus-me a ler as notas do dossier para saber o que se tinha passado desde
ontem. Além de uma mudança de médicos por causa do fim de semana,
parecia nada haver de anormal. O edema pulmonar tinha sido bem
reabsorvido e havia-se eliminado a presença de um enfarte do miocárdio.
Decidi, então, fazer um exame mais detalhado ao senhor M., lamentando
ter outros três "verdadeiros doentes". Acabei por informar a enfermeira-
chefe de que o estado do senhor M. me preocupava, e pedi-lhe que vigiasse
os outros pacientes e que tentasse adiar a transferência. Os sinais vitais não
tinham sofrido alteração, mas o ritmo respiratório subira a 30. O senhor M.
apresentava uma pieira pulmonar ligeira, a tez cerosa, um débito mínimo
de urina, e estava muito fraco. Não sentia nenhuma dor específica.
Sem muitas provas clínicas e levada pela minha intuição, telefonei ao
médico dando-lhe conta das minhas observações. Ele não estava; consegui,
então, contactar o cardiologista que decidiu, apesar dos sinais vitais se
encontrarem praticamente normais, pela necessidade de gazes arteriais. A
radiografia feita ao pulmão nesse dia mostrava uma certa melhoria, mas o
médico aceitou anular a transferência. Pedi à enfermeira-chefe que me
aliviasse de um doente. O paciente em questão mostrava sinais de angústia
pouco habituais, dos quais dificilmente discernia a causa.
Os resultados anormais enviados pelos laboratório confirmaram a
minha intuição, pelo que chamei de novo o médico, que chegou pouco
depois para examinar o doente, e que suspeitou de uma embolia pulmonar,

ri:
Epílogo 1 265

ou mesmo de um derrame pleural acompanhado de insuficiência renal,


enquanto eu o preparava para uma toracentese e um angiograma pulmonar.

O destino do Senhor M. era incerto porque vários diagnósticos tinham


sido avançados, o que tornava o tratamento difícil. É com estas dificuldades
que temos de aprender a lidar serviços de reanimação. A recompensa surge
quando um médico, particularmente exigente, nos agradece por termos
avaliado correctamente o estado do doente e de ter agido em conformidade.

Narração de LUCY ANN NOMURA

O Senhor Smith era um homem de setenta anos que havia sido


submetido a uma cirurgia a um cancro nos intestinos. Foi transferido do
serviço de cirurgia para o serviço de cuidados intensivos depois do terceiro
dia pós-operatório. Aquando do seu primeiro dia no serviço, prestei-lhe
alguns cuidados e achei-o agradável e desejoso de cooperar. Nesse dia, era
eu que estava responsável pelo doente. À noite, vomitou abundantemente.
De manhã, as radiografias ao abdómen revelaram líquido nos intestinos e
foi necessário introduzir uma sonda nasogástrica. O meu primeiro exame
mostrou sinais vitais quase normais (pressão arterial de 110/70,
temperatura 39º; pulso a 1000 e ligeiramente irregular; respiração a 20). O
seu abdómen encontrava-se ligeiramente inchado e sensível ao toque.
Reparei igualmente na lentidão das suas reacções que, pensava eu, se devia
à falta de sono.
Quando a sua esposa veio vê-lo, confirmou as minhas suspeitas ao
perguntar se o seu marido havia tomado medicamentos para dormir. Como
penso que é importante manter as familias informadas, acalmei-a, dizendo-
lhe que o médico, e eu própria, notáramos a mudança do nível de cons-
ciência do seu marido, e falei-lhe do tratamento previsto.
Já tinha expresso as minhas preocupações ao médico ao início da
manhã. O médico pensava que o senhor Smith estava apenas desidratado e
que a aceleração das, suas perfusões melhoraria o seu estado clínico. Ao
início da tarde, houve uma ligeira alteração dos seus sinais vitais (pressão
arterial de 1000/60; temperatura 39°; pulso 102; respiração 20) e tornava-
se-lhe cada vez mais difícil acordar. Sentindo instintivamente que alguma
coisa não estava bem, lembrei-me de um artigo sobre a instalação insidiosa
da septicemia nas pessoas mais idosas (a pressão arterial que baixa

___________________________ _________ ..,


266 1 De iniciado a perito

ligeiramente, um estado febril e uma significativa degradação mental, que


é, por vezes o único sinal de alerta). Chamei de novo o médico para lhe
falar da insuficiência da diurese face ao aumento das entradas liquidas.
Apesar de não possuir nenhum outro sinal preciso, a minha insistência e
inquietação face ao estado do doente levaram o médico a regressar ao
hospital. Seguindo as minhas instruções, instalou um cateter para vigiar a
pressão venosa central e prescreveu um hemograma. Mais tarde, o senhor
Smith deu novamente entrada no bloco para ser operado de urgência,
devido a uma elevada taxa de glóbulos brancos e a uma crescente falta de
reacção.
No dia seguinte, o seu médico disse-me que tinha detectado uma fuga
no lugar da anatomose, que provocara a peritonite. Agradeceu-me então
pela minha competência e pela preocupação que revelara na véspera.

Narração de JANET CROWLEY

O meu doente, um menino de seis semanas, algo robusto, tinha sido


operado na véspera a uma estenose do piloro. As prescrições do pós-ope-
ratório eram as seguintes: "Esperar duas horas antes de dar 50 gramas de
água com açúcar, depois 75 gramas de leite substituto, depois 50 gramas de
leite materno; de seguida, aumentem à vontade a alimentação ao peito". A
criança tolerou bem as suas refeições na noite a seguir à operação e, às 23
horas, havia já tomado 250 gramas de leite. À meia-noite, a criança
vomitou tudo, até mesmo um pouco mais. Às 6 horas da manhã, tinha
vomitado ligeiramente mais do que tinha ingerido durante a noite. O
cirurgião foi informado e deu instruções para que se prosseguisse a
alimentação oral e que se prevenisse a pediatria se a criança continuasse a
vomitar.
Aquando do exame, a criança estava acordada, a turgescência da pele
estava boa e as mucosas estavam ligeiramente húmidas. Urinou logo
quando lhe tiraram a temperatura. Deste modo, deduzi que não se
encontrava ainda em estado de desidratação. No entanto, poderia ficar,
1 1
devido a vómitos frequentes e à presença de um líquido fraco.
A minha experiência com as crianças que sofrem de estenose do piloro
permitira-me constatar que a maior parte tinha dificuldade em tolerar 50
gramas de uma só vez. Constatei que estes doentes ficavam melhores
quando recebiam rações menos significativas, mas mais frequentes. O meu
Epílogo 1 267

plano de cuidados consistiu em dar-lhe 12 gramas de água com açúcar


todos os 30 minutos. Logo que a criança tolerou três refeições seguidas,
aumentei progressivamente as doses. Depois de cada refeição, deitava a
criança, sob o lado direito. Quando terminei o meu serviço, a criança já to-
lerava 30 gramas de leite materno a todas as horas. Ele tinha tomado e
mantido 150cc e apenas vomitara 20. A criança não colocou problemas à
equipa da noite e pode sair no dia seguinte.
Escolhi este exemplo porque acredito que ilustra perfeitamente o papel
de enfermeira. A criança recuperou a saúde sem tratamentos e custos
inúteis. Esta criança não ficou desidratada, o que evitou uma terapia por via
intravenosa.

Logo que os membros do comité tivessem explorado todos os factores


que pudessem levar à tomada de uma decisão, a entrevista terminava.
Depois, reuniam-se com o objectivo de tomar decisões e redigiam uma
recomendação dirigida à directora dos cuidados de enfermagem, para que
ela pudesse tomar a decisão final e notificar por escrito as candidatas, no
prazo de dez dias. Se a directora necessitasse de esclarecimentos sobre
questões específicas ou manifestasse alguma preocupação depois da leitura
do dossier e da recomendação do comité, ela podia pedir que este se
reunisse novamente para completar a informação.
Como nos podemos aperceber, este sistema de entrevistas apresenta
algumas falhas: uma diz respeito aos erros de apreciação e a outra à
dificuldade de chegar a um consenso.
Não é seguramente possível escolher membros que não conheçam as
candidatas, dado que estas necessariamente algum dia trabalharam com os
colegas do nível III que pertencem ao comité, seja aquando das reuniões no
hospital, seja nos serviços. Isto pode influenciar o processo de decisão
(positiva ou negativamente). Durante a discussão que se segue à entrevista,
este fenómeno é tido em conta e os membros do comité tomam a sua
decisão em conformidade.
Dado que seis enfermeiras interrogam a candidata, achámos que a
audição pelo grupo das opiniões dos membros que não conhecem
pessoalmente a candidata reduz este efeito. Cada vez que o comité pensou
que havia um obstáculo ao processo de decisão, o caso foi re-examinado
por um outro grupo, tendo a candidata se submetido a uma outra entrevista.
A decisão é o resultado de um consenso entre todos os membros do comité.
Este tipo de entrevista pratica-se para as postulantes nível III, e de dois
268 / De iniciado a perito

em dois anos para a renovação deste estatuto. No meio desse tempo, apenas
é necessária a análise do dossier por parte do comité.

Impacto sobre a organização

Por que razão pedir a uma enfermeira de se apresentar oralmente e por


escrito para mudar de escalão? Vários membros da equipa do projecto
pensavam que certas clínicas poderiam apresentar os factos melhor que as
outras. De um momento para o outro, isto revelou-se exacto; uma
enfermeira podia apresentar um dossier surpreendente por escrito; mas
perder todas as suas possibilidades no momento da entrevista, e
inversamente. Mas habi-tualmente, o dossier dá uma boa ideia da
apresentação oral.
Os responsáveis administrativos tiveram igualmente problemas para
avaliar o nível dos candidatos consultando apenas os seus trabalhos escritos
e os das suas madrinhas. No geral, as enfermeiras mostram-se reticentes a
exaltar os seus méritos ou a colocar-se à frente, tanto oralmente como por
escrito. Elas descreviam muitas vezes o que elas faziam em termos gerais,
ou imitavam a descrição dada nos processos sem dar exemplos específicos
permitindo avaliar o seu nível real. Para falar da questão da
responsabilidade para com os pacientes, um número surpreendente de
candidatas escrevia na terceira pessoa. As madrinhas não eram muito
precisas quando descreviam a maneira de trabalhar da candidata.
Todavia, isto melhorou consideravelmente à medida que o número de
enfermeiras de nível III aumentou. As enfermeiras promovidas à função de
repetidoras ajudam as suas colegas a preparar as suas exposições. Um
grupo de enfermeiras que trabalham num hospital colocaram em prática
uma aula destinada a ajudar as suas jovens colegas a preparar o seu pedido
de promoção. No início, circulavam rumores quanto ao número limitado de
admissões ao nível III. Além disso, receamos que a redacção do dossier não
passe à frente dos méritos profissionais das enfermeiras. Mas
presentemente, depois de dois anos de prática, as enfermeiras sabem bem
que, se elas preenchem os critérios pedidos, elas serão promovidas. Elas
falam agora na primeira pessoa e escolhem com cuidado os seus exemplos,
o que apresenta uma outra vantagem: as enfermeiras falam da sua própria
prática e são reconhecidas pelo seu trabalho clínico de alto nível.
As melhores pessoas colocadas para ajudar a candidata ao nível III a
preparar o seu dossier e a sua entrevista são aquelas que estão a este nível
Epílogo \ 269

e que fazem parte da comissão que as julgará. As enfermeiras-chefes e os


responsáveis de formação agem também como pessoas de meios.
Os problemas de apreciação de perfomance eram também devidas ao
facto de a direcção dos cuidados de enfermagem não poder ter uma ideia
clara e precisa do nível da candidata. O formulário de avaliação não retoma
forçosamente os critérios da descrição do lu ar. Frequentemente, a aprecia-
9
ção das perfomances não oferecia à comissão nenhum meio sobre o qual
fundar as suas recomendações.
Os processos de avaliação pelos pares acentuou a necessidade de
apresentar casos permitindo julgar as perfomances das candidatas. As
enfermeiras chefes das comissões de avaliação deram indicações às suas
colegas. Além disso, a directora adjunta dos cuidados de enfermagem
organizou pequenos ateliers para que todos se baseiem nos mesmos
critérios quando se trata de avaliar precisamente o nível de uma candidata.

Resumo

Esta experiência foi muito gratificante, porque ela permitiu a excelentes


enfermeiras de serem, enfim, reconhecidas e recompensadas em função do
seu nível de competências. Todas as enfermeiras que transitaram para o
nível III encontraram que tinham enriquecido profissionalmente. Do
mesmo modo, elas encontraram que era valorizador serem assim reco-
nhecidas a ponto de ter de explicar aos doentes que lhes perguntassem o
que significava o nível III sobre o seu badge. Financeiramente, a promoção
significava um aumento de 5% do salário.
É interessante verificar que as enfermeiras de nível III que fazem
presentemente parte das comissões são intransigentes quanto aos critérios
do programa de nível III. A conservação da qualidade do processo é muito
importante para elas.
Existiram vários exemplos onde as enfermeiras do nível III
manifestaram a sua influência para melhorar a qualidade dos cuidados no
seu domínio, a saber a comunicação informal entre as enfermeiras do
serviço, onde os acontecimentos formais como quando uma enfermeira do
nível III desempenha o papel de preceptora, uma pessoa recurso ou
representante do seu serviço numa comissão. Muitas vezes, uma enfermeira
do nível III ajuda uma das suas colegas a preparar o seu dossier de pedido
de promoção.
270 1 De iniciado a perito

Acreditamos que a nossa expenencia penrutm fazer reconhecer a


enfermeira especialista, de lançar as bases de um desafio: aquele de
descrever uma enfermeira clínica experiente.

O que é a excelência?

Escreveu-se muito sobre a necessidade de reconhecer e valorizar as


enfermeiras que trabalham nos serviços, mas conhecemos poucos exem-
plos concretos. No CCHR St. Luke, pensamos ter desenvolvido um
programa original tendo justamente como objectivo o reconhecimento da
profissão. Deste modo, quisemos incitar o pessoal de saúde a desenvolver
os seus conhecimentos clínicos de modo a que tenham sempre como
objectivo alcançar a excelência.
Em Março de 1982, um simpósio intitulado "O que é a excelência?" foi
organizado pelo nosso pessoal de enfermagem, é o comanditário deste
congresso (um doente e a sua farru1ia que apreciaram os cuidados
dispensados no nosso estabelecimento) que nos deram a ideia, com o
objectivo de contribuir para os melhoramentos dos conhecimentos e das
competências das enfermeiras. O comanditário trouxe os fundos
necessários ao aluguer do lugar onde decorresse o simpósio e financiaria
também as refeições dos participantes assim como os honorários dos
consultantes. O simpósio foi reconduzido três dias sem interrupção e 95%
do pessoal enfermeiro de St. Luke assistiu, ou seja, duzentas e trinta
pessoas, mais treze professoras em ciências de enfermagem da
Universidade de Boise.
O simpósio foi organizado com muito tempo de avanço. A directora
adjunta dos cuidados de enfermagem reuniu uma comissão de organização
composta de enfermeiras, de enfermeiras-chefes, de quadros superiores em
cuidados de enfermagem, de formadores, assim como o director da
faculdade de ciências da saúde da Universidade de Boise. A tarefa da
comissão era ajudar a seleccíonar os assuntos do simpósio e dos
intervenientes.
O tema era o reconhecimento e a valorização da excelência em cuidados
de enfermagem. A interveniente no simpósio foi Patrícia Benner, que tinha
já feito parte de um estudo sobre a identificação de competências de recém-
licenciadas num período de dez anos. Ela aplicou o modelo Dreyfus de
aquisição de conhecimentos aos cuidados de enfermagem e, deste modo,
apresenta as grandes linhas de um desenvolvimento da carreira e dos co-
Epílogo 1 271

nhecimentos no meio clínico. Este simpósio foi a ocasião de propor as


teorias e de trocar conhecimentos práticos. Daqui resultou um
conhecimento real da importância do papel da enfermeira como
profissional da saúde a tempo inteiro.
Sessões de pequenos grupos de dez a quinze enfermeiras provenientes
de diferentes serviços tiveram lugar com as animadoras, de modo a descre-
ver as verdadeiras situações clínicas que trouxeram alguma coisa de novo
ou permitiram uma evolução positiva do estado do doente. A função
principal das animadoras, que seguiram uma formação de oito horas
mesmo antes do início deste programa, era de incitar as enfermeiras a dizer
o que ela faziam cada dia. Pediu-se-lhes para descrever os seus
pensamentos, os seus pressentimentos, assim como os factos detalhados.
As animadoras encorajaram as enfermeiras a incluir nas suas descrições o
"contexto", isto quer dizer o conjunto dos elementos exteriores que tiveram
um impacto sobre a situação.
As enfermeiras acolheram com entusiasmo a ocasião que lhes era assim
oferecida a reflectir à excelência da sua prática clínica. Elas apreciaram
particularmente as trocas de experiências vividas onde as suas intervenções
trouxeram melhoramentos no estado dos doentes. Certos comentários
depressa indicaram que este simpósio foi "a única ocasião para as
enfermeiras de St. Luke encontrarem as suas colegas, acontecimento que
ela, nunca poderiam ter no seu local de trabalho". Deste modo, elas
acabaram por se sentir orgulhosas de serem enfermeiras e sentiram um
novo entu-siasmo pela sua profissão, assim como um bem estar físico. No
lugar de falar de problemas a resolver ou de anomalias do sistema, elas
pedem verdadeiramente o tempo de ver o lado positivo das coisas. Logo
que uma enfermeira contava uma coisa que lhe tinha acontecido, as outras
recordavam-se de situações semelhantes. Dando esta ocasião única às
enfermeiras de reflectir sobre o que elas faziam bem, o simpósio permitiu
abrir novos domínios de aprendizagem clínica. O melhoramento dos
julgamentos clínicos e das competências pode-se fazer pouco a pouco no
tempo e passar despercebido à enfermeira como às suas colegas. Os
seminários de desenvolvimento de conhecimentos clínicos permitiu às
enfermeiras aperceberem-se e serem reconhecidas pelo que são.
Depois deste simpósio, nós continuámos a interessar-nos pela
excelência encorajando o pessoal a partilhar casos exemplares. As
enfermeiras que estiveram nas sessões de pequenos grupos durante o
simpósio ajudam presentemente as suas colegas dos serviços a apresentar
272 1 De iniciado a perito

os casos clínicos representativos onde elas pensam que a sua intervenção


modificou o curso das coisas.
Estes episódios clínicos tratam geralmente mais de certos aspectos
específicos da situação de um doente que da duração da sua estada. Daí
resulta que as nossas enfermeiras começam a ter em atenção toda uma
vivência comum de que elas podem discutir e que elas podem comparar
quando novos casos se apresentam. Revelou-se muito positivo permitir ao
pessoal exprimir o que sentia quando cuidava dos doentes, pois isto
permitiu descrever as situações complicadas e enriquecer os conhecimentos
clínicos dos outros transmitindo os conhecimentos dificilmente adquiridos
ao longo da experiência.
Nós devíamos ter aumentado o número das animadoras, para ter uma
em cada serviço. Os nosso critérios de selecção que lhes são respeitantes
eram os seguintes: 1) que elas tenham participado no simpósio sobre a
excelência; 2) que elas sejam abertas, desnudadas de preconceitos e
respeitadas pelas suas colegas; 3) que sejam escolhidas pela sua
enfermeira-chefe assim como pela animadora que está no lugar.
Faz, precisamente, um ano que teve lugar o simpósio. Nós conti-
nuamos a valorizar os conhecimentos e o espírito de análise que permitiu
às enfermeiras ter um papel preponderante nos cuidados administrativos
dos doentes. Nem todas as enfermeiras tiveram o mesmo entusiasmo por
este programa, mas a maioria diz que este lhes permitiu melhorar a sua
maneira de trabalhar e de saber perguntar conselhos no momento das
decisões difíceis e arriscadas. Nós continuamos os nossos seminários de
desenvolvimento de conhecimentos clínicos a nível dos serviços, e nós
temos em vista um outro simpósio para dar ao pessoal a oportunidade de se
debruçar de novo sobre o tema da excelência.
Epílogo 1 273

Identificação das competências das enfermeiras


que têm uma pós-graduação em ciências de enfermagem
para planificar e avaliar um programa universitário

Mary V. Fenton

Há dois anos, os professores do programa de pós-graduação em ciências


de enfermagem de Galveston quiseram melhorar a avaliação dos
conhecimentos clínicos. Deste modo, estudámos outros doze sistemas de
avaliação que nos deixaram a todos insatisfeitos. Após a discussão com os
utilizadores, apercebemo-nos que as suas manifestações provinham de uma
falta de dados e de uma concepção diferente relativamente ao nível de
perfomances clínicas requerido às licenciadas de pós-graduação.
Esta conclusão conduziu-nos a redefinir o nosso primeiro objectivo: era
necessário identificar novamente o papel e as capacidades das candidatas,
assim como os incómodos aos quais elas eram submetidas no seu meio
clínico, antes de elaborar um sistema que permita a avaliação do curso.
Anteriormente, os dados respeitantes às atitudes das enfermeiras em situação
real não tinham sido objecto de estudos sérios. Elas não tinham, então, podido
ter nenhum papel na planificação e avaliação do curso. Concluímos que os
conhecimentos retirados da prática diária de uma enfermeira formada do
segundo ciclo poderiam servir de base ao programa e permitir a identificação
dos domínios que contribuem para o sucesso no exercício da actividade.
Nós quisemos saber, por métodos completamente empíricos, em que
domínios de competências estas enfermeiras se distinguiam
particularmente no hospital. É neste estado que, guiadas pelo projecto
AMICAE (Benner et ai, 1981), nós decidimos quais os domínios do exame
poderiam ser utilizados como base de estudo das competências que seriam
supostas possuir estas enfermeiras. Pensamos que estes domínios poderiam
constituir as bases da colocação em prática e da avaliação da pós-graduação
em enfermagem clínica.
Decidimos, então, avançar com um estudo para identificar as
competências destas enfermeiras no quadro de um grande centro de procura
em ciências da saúde. É a metodologia utilizada no projecto AMICAE que
serviu de modelo a este estudo, e a Dr.ª Benner foi o nosso consultante.
Todos os professores em ciências de enfermagem tiveram um papel de
inquiridores e observadores. Os dados foram colhidos por registo de
conversas descrevendo os incidentes críticos, aos quais juntaram as
27 4 1 De iniciado a perito

observações de trinta e quatro part1c1pantes que exercem funções de


especialistas clínicos, oficiais superiores, criadores. Estes três domínios
foram esco-lhidos porque a nossa faculdade forma enfermeiras capazes de
exercer no meio clínico, de gerir um serviço e de ensinar. Todas as pessoas
formadas a nível da pós-graduação aceitaram participar neste estudo. Sete
eram licenciadas da nossa faculdade, dezassete eram especialistas de
clínica, três faziam parte do serviço de formação, nove eram
administradoras, duas enfermeiras-chefes e três enfermeiras que
trabalhavam no serviço.
A análise foi dividida em três partes: verificação das competências das
enfermeiras conhecedoras segundo o projecto AMICAE; identificação de
novos domínios de competências; aparecimento de cinco categorias
preliminares úteis à avaliação do programa da pós-graduação em ciências
de enfermagem. Os incidentes críticos e os dados transmitidos pelas
participantes reflectem o conjunto de domínios identificados por Patrícia
Benner, que caracterizam o conhecimento das peritas junto das
enfermeiras, ainda que algumas tenham tido mais importância que outras.

Competências complementares
i1

11 Dois domínios - "Competências em matéria de organização e de divisão


de tarefas" e "Assegurar e vigiar a qualidade dos cuidados" foram
i alargados. Além disso, as novas competências foram identificadas,
colocando em evidência as responsabilidades mais abrangentes do que
aquelas habitualmente exigidas às nossas licenciadas. Por exemplo, o
primeiro domínio compreendia um subgrupo intitulado "Competências que
visam fazer face à resistência do pessoal à mudança"; o melhoramento dos
cuidados aos doentes passa por mudanças de organização, muitas vezes
colocadas em funcionamento pelas enfermeiras interrogadas. Elas
desenvolveram a capacidade de escolher o momento adequado e escolher
certas estratégias para chocar o menos possível as sensibilidades e fazer
aceitar as mudanças nas melhores condições possíveis.
1
i
Muitas enfermeiras documentaram-se sobre o assunto antes de tentar
11 instituir uma mudança. Com efeito, elas queriam ter argumentos científicos
li
1 suficientes para responder aos seus difamadores. Uma enfermeira descrevia
este passo como um modo "de armazenar munições". Outras eram
suficientemente habilidosas para planificar com avanço as mudanças e
esperar o momento mais propício para os apresentar.

1 1
. L
Epílogo 1 275

Um outro exemplo do mesmo dorrúnio era "Fazer de modo que a


administração responda às necessidades dos doentes e das famílias". Estas
enfermeiras tinham encontrado numerosas maneiras de contornar a buro-
cracia.
Apareceu um novo assunto no dorrúnio "Assegurar e vigiar a qualidade
dos cuidados": trata-se do "reconhecimento de um acontecimento ou de um
problema recorrente necessitando de uma mudança de política". Esta
competência supõe que a pessoa seja capaz de distinguir um acontecimento
isolado, invulgar, que pode colocar em perigo a saúde e a segurança das
pessoas, se não se muda de método permitindo a sua prevenção. Esta
competência permite eliminar os incómodos da burocracia abusiva, onde se
penaliza injustamente todos os doentes diminuindo o número de visitas, de
passeios, ainda que o incidente que produziu o problema é pouco provável
que se repita.
Os numerosos exemplos dados fizeram sobressair um novo dorrúnio de
competências, aquela do conselho. Consiste em que as enfermeiras que têm
uma pós-graduação oferecem experiência e conhecimentos aos outros
profissionais de saúde de maneira formal ou informal.
Os resultados do nosso estudo demonstraram que as enfermeiras da
nossa amostra possuem as competências das enfermeiras experientes
descritas por Patrícia Benner. Foi frequentemente constatado que o seu
papel era mais importante e mais complexo que nas suas descrições
anteriores, visto que põe em relevo as funções de vigilância e avaliação dos
cuidados.
Uma análise posterior de dados fez aparecer cinco categorias úteis para
a planificação e avaliação do cursus do segundo ciclo: 1) os dilemas éticos,
clínicos e políticos; 2) os pontos de vista ou posições que conduzem ao
sucesso ou ao fracasso; 3) as práticas não codificadas; 4) as más
perfomances devidas às lacunas nos conhecimentos; 5) os novos
conhecimentos, misturam a teoria e o empirismo. Cada uma destas
categorias será descrita seguidamente, determinando o seu potencial
impacto sobre a planificação e a avaliação do cursus da pós-graduação em
ciências de enfermagem.

Os dilemas

Numerosos casos críticos tinham, de uma maneira ou de outra, colocado


dilemas às enfermeiras, se bem que estas foram levadas muitas vezes a
,,
1
:-,
[ 1

276 1 De iniciado a perito


i'

tomar decisões muito dolorosas e mal recebidas. Estes casos críticos


deixaram impressões duradouras às enfermeiras, que levaram tempo a
resolvê-las. Um número de dilemas éticos apresentados diziam respeito ao
prolonmento da vida junto do doente por meios artificiais e as decisões a
tomar em matéria de reanimação. As descrições indicavam, claramente,
que as enfermeiras eram raramente ajudadas pelos médicos para resolver
estes dilemas. A maior parte do tempo, era-lhes preciso identificar o pro-
blema e insistir para que a pessoa responsável tome as decisões necessárias.
Por vezes, certos dilemas são de natureza legal ou política. Por exem-
plo, uma enfermeira encontrou-se com um doente com paragem
respiratória. Os dois médicos presentes nada fizeram e disseram-lhe para
chamar o médico que o tratava. A enfermeira resolveu o problema tomando
as coisas em mão e agindo de forma correcta. No entanto, este incidente
coloca em relevo os enormes dilemas legais e políticos aos quais fazem
face as pessoas que tomam decisões que, normalmente, não são legalmente
da sua competênc-ia. No momento de uma urgência, quando estão presentes
enfermeiras e médicos e que estes últimos não actuem ou actuam de
maneira inadequada, colocam-se numerosas questões que, infelizmente,
ficam sem respostas. Em casos de extrema urgência como esta apresentada,
as responsabilidades legais e a autoridade hierárquica deveriam incumbir à
pessoa capaz de gerir a situação do momento.
A análise dos incidentes mostram claramente que a maior parte dos
dilemas resultam de uma ausência de delimitação clara da autoridade
quando as situações de urgência imprevisíveis se produzem. Isto implica
que a enfermeira que tem a intenção de gerir um serviço deveria ter
competências suficientes não somente para identificar os dilemas clínicos,
políticos ou éticos, mas também para resolver os problemas de poder e de
autoridade na origem destes dilemas. Isto também implica determinar se as
enfermeiras que têm seguido um programa de pós-graduação estão
suficientemente preparadas para identificar os primeiros e pôr em prática os
segundos. É necessário então que os programas integrem estes problemas e
proponham as estratégias para lhes fazer face. Os incidentes críticos
fornecem excelentes casos de estudo para os estudantes no âmbito do seu
ensino teórico e prático.
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1'

"
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1
Epílogo 1 277

Uma questão de pontos de vista

O corpo docente universitário pergunta-se muitas vezes porque algumas


licenciadas da faculdade conseguem melhor que outras. A questão é
complexa, e não podemos responder facilmente devido a todos os factores
não mesuráveis a ter em conta para esperar um êxito. No entanto, no
momento do nosso estudo, identificámos alguns através da conversação
com as enfermeiras interrogadas sobre a maneira como elas concebiam a
sua função.
Os elementos que conduzem ao sucesso formam um quadro singular.
Um deles consiste na afirmação de si face aos médicos de modo a trazer o
seu ponto de vista sobre uma ou outra situação. Uma enfermeira irá discutir
no consultório dos médicos, assistirá à sua reunião hebdomadária, colocará
questões durante a reunião e pedirá para expor o seu ponto de vista no
momento das conferências médicas. Como dizia uma enfermeira: "Penso
que isto tem muito a ver com o facto de quando de nos apercebemos de
repente que é a outra pessoa que falamos, e não alguém que está sobre um
pedestal; a vossa timidez desaparece, e sentem-se capazes de dizer o que
lhes apetece".
Existem outros factores de sucesso, passamos a apresentar a lista não
exaustiva: o desenvolvimento de um sistema de suporte activo; a perseve-
rança; a capacidade de ouvir os outros; saber quando é necessário actuar ou
quando é melhor esperar; a capacidade de colocar as boas questões e ser
capaz de tolerar as ambiguidades do sistema. Cada um destes elementos é
sustentado por exemplos específicos; não se trata então somente de conse-
lhos independentes do contexto. Por exemplo, uma enfermeira descrevia
uma intervenção coroada de sucesso tendo como finalidade modificar de
maneira importante a política das admissões, de modo a individualizar os
cuidados aos doentes e aumentar a responsabilidade do pessoal. Ela dizia
que teve de reencontrar os outros membros da equipa, falar-lhes, ouvir os
seus problemas e esperar para que as mudanças previstas sejam
progressivamente aplicadas. O processo durará dois anos. Uma outra
enfermeira evocava a maneira como ela tinha colocado em causa a política
das urgências. Escolheu dirigir-se ao chefe do serviço logo após uma
urgência, onde a falta de pessoal se fez bruscamente sentir e foi necessário
provocar um drama. Foi por ter escolhido um bom momento que ela
recebeu o apoio total do chefe do departamento.
278 1 De iniciado a perito

As práticas não codificadas

Os actos não codificados são aqueles que o quadro de enfermeiras


efectua frequentemente, mas que não são supostos fazer parte da sua
função. Deste modo, não se falam, não se discutem, e não são descritos em
nenhum manual. Assim, o aconselhamento e o apoio aos outros membros
do pessoal de enfermagem, quando o ânimo está baixo, ou em caso de burn
out ou de problemas de comunicação, são as actividades habituais, mas não
mencionadas nas descrições formais da função. Outra tarefa
frequentemente encontrada consiste em guiar e encorajar outros tipos de
pessoas que cuidam, inclusive os médicos, com o objectivo de lhes fazer
compreender os problemas dos doentes tais como estes últimos os vêem e
os vivem.
Mais evidente é a relação enfermeira / doente. Ela é muitas vezes
descrita como calorosa, amiga, positiva em relação ao doente. As
enfermeiras tocam frequentemente os seus doentes e, por vezes, apertam-
nos nos seus braços para os encorajar ou segurá-los. Estas colocam-se
muitas vezes mentalmente no lugar dos doentes para tentar saber o que eles
sentem quando estão apreensivos em relação aos membros pouco atentos
da equipa de cuidados. A enfermeira identifica os problemas e, então,
explica o que é aos outros profissionais, tendo em conta medidas para
melhorar a situação, como no exemplo seguinte:

A enfermeira: Na consulta de pediatria, era frequente a mãe e a criança


terem de se deslocar de sala em sala para ver cada especialista, como por
exemplo os médicos, a assistente social, a dietética. Instituí uma nova
maneira de trabalhar, onde mãe e criança ficavam na mesma sala, os
especialistas passavam de sala em sala. Muitos entre eles disseram-me
que não gostavam do novo sistema. Queixavam-se de terem de levar
consigo os seus papéis. Expliquei-lhes como era difícil para uma mãe
deslocar-se de sala em sala com a criança, os seus irmãos e irmãs, um
carrinho de criança, um saco com as fraldas, uma garrafa termos,
brinquedos e um saco. Eles acabaram por render-se aos meus argumentos.

Outras vezes, as enfermeiras ignoravam cientemente as regras quando


se tratava da saúde ou segurança do doente. Por exemplo, uma enfermeira
entrega a um doente um objecto cortante. O seu queixo é imobilizado com
fios de aço em posição fechada, e ela devia fazer mais horas de voo para
Epílogo 1 279

voltar para sua casa. Constata-se, então, que a enfermeira não considera que
a sua função acaba com a saída do doente do hospital. Ela preocupa-se
igualmente com o futuro dele, mesmo quando ele está em casa.
Numerosos exemplos mostram que as enfermeiras tinham autoridade
para assegurar que o doente encontre em sua casa um ambiente propício à
sua convalescência e à sua cura.

As lacunas nos conhecimentos

Verificam-se certas lacunas nos conhecimentos das enfermeiras. É, por


exemplo, difícil definir o perfil da especialista clínica ou da enfermeira do
nível da pós-graduação junto de outros profissionais de saúde como os
médicos, os trabalhadores sociais ou os psicólogos. Este problema de
definição do papel da enfermeira parece dar-lhe uma má imagem
profissional e de a tornar incapaz de avaliar o seu valor real. É difícil saber
se são as enfermeiras que não conseguem definir-se. Em contrapartida é
evidente que as enfermeiras da nossa amostra colocavam em prática os
conceitos e os princípios do programa. Elas eram capazes de mostrar de
forma muito competente o papel da enfermeira nas conversas como nas
observações, mas muitas vezes manifestavam a sua frustração de ter de
situar e justificar o seu valor junto da administração e dos médicos.
Outra falha parece dizer respeito aos valores culturais e de trabalho em
relação ao resto do pessoal do hospital. As participantes mostravam uma
forte tendência em aceitar e respeitar os valores culturais diferentes dos
doentes e das famflias, mas tinham dificuldades em aceitar as diferenças
culturais dos suas colegas, no que diz respeito aos valores e às expectativas
ligadas ao trabalho. Era como se elas tivessem aprendido a ter em conta as
diferenças culturais relacionadas à doença, mas era claro que não estavam
preparadas para as diferenças de valores e das expectativas ligadas ao
trabalho das suas diversas colegas.

Os novos conhecimentos

Existiram poucos exemplos de novos conhecimentos ou de interacção


entre os conhecimentos teóricos e conhecimentos empíricos, mas o facto de
saber que esta categoria existe permitiu-nos aperceber dos numerosos actos
280 1 De iniciado a perito

ainda não codificados. Um exemplo de aplicação de conhecimentos


teóricos em meios clínicos é aquele de uma especialista que utilizava a
teoria do auto-cuidado de Dr. Orem como meio para as enfermeiras e os
membros da equipa multidisciplinar estabelecerem um plano de reeducação
e de regresso à independência para uma jovem deficiente. Neste exemplo
quase inacreditável, a enfermeira persuade a equipa de reabilitação a
aceitar esta criança de oito anos, considerada como perdida para a
reeducação devido ao desinteresse da sua famflia. A criança foi gravemente
queimada e toda a actividade pessoal necessitava de várias próteses. A sua
fanu1ia não se ocupava dela, a criança não fazia nada dos seus dias e não ia
à escola. A enfermeira assegurava a coordenação da equipa que ensinaria a
criança a ser independente, uma vez que ela não podia contar com a sua
fanu1ia. Como diz a enfermeira: "Era uma questão de sobrevivência". A
criança aprendeu a tomar banho, a lavar os cabelos, a vestir-se e mesmo a
preparar as suas refeições, ainda que tivesse cotos no lugar dos dedos,
assim como diversas próteses. A última lição consistia em ensiná-la a
utilizar o despertador para se levantar, a vestir-se, a comer e a apanhar o
autocarro para a escola, e acabou por conseguir! Ela voltou para casa e
pôde retomar a escola. Este exemplo mostra que a teoria de Dr. Orem é
aplicável, mesmo nas piores circunstâncias. Num outro exemplo, a
enfermeira especialista clínica descreve como ela pôde diferenciar uma
psicose pós-parto de um simples cansaço de uma jovem que tinha acabado
de dar à luz. Ela conta:

Escutava muito atentamente. Uma pessoa esgotada fala de uma certa


maneira, mas sempre claramente. Ela ouve-nos e responde às questões.
Uma pessoa psicótica apanha um ou outro elemento da conversa, e fala
de diversas coisas. Esta pessoa podia falar do amor pelo seu bebé a meio
da conversa a propósito dos seus seios. Perguntei-lhe, por exemplo, se os
seus seios lhe doíam. Ela respondeu-me: "Mas, eu amo o meu bebé".
Colocava-lhe questões sobre a sua vida. Aparentemente, poderíamos
acreditar que ela estava bem e respondia de maneira adequada. Mas é
estando com atenção que descobrimos que há mais qualquer coisa de
estranho. Tive então muita atenção à maneira como as pessoas se
comportam. Esta mulher estava sentada com as mãos juntas, inclinada
para a frente, os olhos fixos em alguma coisa, passando a mão sem parar
no cabelo. Tudo se passava como se ela quisesse curvar-se sobre ela
mesma para se tornar numa bola.
Epílogo 1 281

Avaliação

Este projecto prossegue com a recolha e análise de novos dados. O


objectivo é obter um programa de estudos concebido a partir dos
conhecimentos teóricos e clínicos tirados da prática. Os professores
apercebem-se, que após um estudo impelido pelo comportamento destas
enfermeiras, que levantamos mais questões do que respostas. Pensamos, no
entanto, que estas questões são as mais importantes que nos podemos
colocar, porque elas surgem de problemas de preocupações, da prática e de
experiências das nossas licenciadas.
Ainda que estejamos muito longe do nosso primeiro objectivo, a saber
o melhoramento da avaliação do aspecto clínico dos programas, estimamos
que o que se aprendeu do papel da enfermeira é um primeiro passo que
contribui de maneira significativa ao desenvolvimento do nosso programa
de estudos. Os dados e as relações com as enfermeiras durante estas
procuras deram ao corpo docente uma percepção muito realista do mundo
no qual elas evoluem. O ano que vem, utilizaremos estes dados para avaliar
de maneira sistemática os aspectos clínicos do programa actual, de maneira
a determinar se ele fornece as bases de desenvolvimento das competências
identificadas ao longo do estudo. O corpo docente passará igualmente em
análise os dados para daí extrair os estudos de casos destinados a aguçar o
espírito de análise dos nossos alunos. As lacunas estudar-se-ão com
cuidado e introduziremos os complementos no programa se necessário. A
utilização dos incidentes críticos já foi integrada nos diversos cursos
clínicos para mostrar o que é a peritagem e ensinar o procedimento
intelectual que permite passar da teoria à pratica.
Descobrimos diversas vantagens inesperadas no momento da
planificação dos programas e da sua avaliação. O corpo docente e as
enfermeiras de nível de pós-graduação de hospital trabalham de concreto
sobre o projecto, o que teve como resultado uma partilha formal ou
informal de ideias, deixando prever os projectos de colaboração. O corpo
docente teve a ocasião de validar as práticas não codificadas, e, as
enfermeiras puderam experimentar diferentes práticas pedagógicas. A
impressão geral do corpo docente é que afastamento entre prática e ensino
reduziu-se consideravelmente após o início deste projecto, e que continuará
a reduzir-se à medida do seu avanço.
282 1 De iniciado a perito

Como estabelecer uma troca permanente entre a teoria e a prática

,1. Kathleen Dolan


11
íl Faz agora uma dezena de anos que Kramer falou do choque de realidade
íl e das suas consequências em cuidados de enfermagem. Depois, tentou-se
·1';
i muitas vezes criar passagens destinadas a facilitar a transição entre a teoria
i; e a prática. Numerosos programas foram concebidos para que as alunas
11 enfermeiras pudessem aventurar-se ao mundo do trabalho quando elas se
i! encontram ainda no casulo protector da escola, quer isto dizer mesmo antes
·11 \
de serem confrontadas com as realidades da sua futura profissão.
1
Numerosos artigos indicam que os hospitais e outras estruturas de cuidados
li
'· procuram igualmente facilitar a passagem da enfermeira principiante no
mundo do trabalho. Daí resulta que, desde a escola, a enfermeira sabe qual
o choque da realidade. Ela tem então uma "dupla cultura": a da escola e a
do mundo do trabalho (Kramer, 1974).
No entanto, em favor destes esforços, as enfermeiras principiantes bem
1
como as enfermeiras experientes têm ainda dificuldade em fazer um uso
profissional dos conhecimentos adquiridos no terreno. Um reflexo puxa-as
a apoiarem-se primeiro sobre o que aprenderam na escola. Uma nova
:, 1

1I .
1
licenciada descrevia-se recentemente como num campo de batalha onde
entram em conflito permanente valores escolares e valores tirados da
prática. A imagem do campo de batalha traduz o pessimismo desta jovem
enfermeira que não via como conciliar valores profissionais e valores
escolares. As recém-licenciadas querem melhorar a qualidade dos cuidados
que empregam aos doentes. Os quadros de enfermeiras querem que elas
adquiram as competências necessárias para serem eficazes no sistema, mas
guardando o seu idealismo.
A evolução de carreira proposta nos trabalhos da Dr.ª Benner pode rea-
nimar a esperança das enfermeiras principiantes como a das enfermeiras
experientes. As primeiras podem ter em vista uma progressão desde o
estado iniciado avançado até ao estado competente e ainda mais. As
j
segundas, que elas sejam competentes, performantes ou experientes,
podem implicar nos domínios dos cuidados de enfermagem ainda não
codificado e trazê-los à luz do dia com orgulho.
Na Universidade da Califórnia, o serviço dos cuidados de enfermagem
pôde colaborar com Patrícia Benner para aplicar o modelo Dreyfus e o
esquema de desenvolvimento de conhecimentos clínicos. As relações es-
Epílogo 1283

treitas entre a faculdade das ciências de enfermagem e o pessoal enfermeiro


dos Hospitais da Universidade facilitaram a cooperação entre a Dr.ª Benner
e o Departamento de Ensino e de Pesquisa, ponto de partida da formação
do pessoal enfermeira. Sensibilizados com as potencialidades de
perspectiva de carreira contidas nos trabalhos de Patrícia Benner, os
responsáveis deste departamento incluíram algumas das ideias e noções
propostas por estes trabalho nos programas de formação do pessoal
empregados pela Universidade.

Programa de orientação

Uma conferência-debate sobre o modelo Dreyfus e a sua aplicação aos


cuidados de enfermagem dá desde o primeiro dia o tom do conteúdo do
nosso programa de orientação para recém-licenciadas. A maioria destas
enfermeiras já passaram um mês no serviço. Elas eram seguidas por uma
enfermeira preceptora encarregada de supervisionar as suas actividades
quotidianas e a sua progressão.
Uma sumária exposição do projecto AMICAE mostra até que ponto
estudantes, enfermeiras que realizam os cuidados e as que ensinam têm
uma visão diferente das competências que deve ter a nova licenciada.
Seguindo uma descrição de investigações levadas a cabo por Benner para
encontrar uma explicação para este fenómeno com ajuda de conversas tidas
com as enfermeiras experientes. Após apresentação do modelo Dreyfus, os
debates estão abertos para determinar como utilizar estas informações na
aprendizagem efectiva de um novo papel. A principiante aprende também
que uma orientadora proficiente sabe quando é necessário refazer um penso
complicado de modo diferente daquele que está escrito no manual. A turma
aprende também que enquanto enfermeira clínica, a enfermeira experiente
age em função de máximas que não fariam sentido para uma principiante.
O modelo Dreyfus propõe aos recém-licenciados um quadro permitindo-
lhes compreender o comportamento das enfermeiras experimentadas,
comportamento que pode no passado ser interpretado sem razão como
fechado ou misterioso quando julgado em função de critérios escolares.
Elas descobrem que, para esperar a excelência e servir-se do seu
julgamento clínico, devem por vezes evitar a prisão dos procedimentos
formais.

mi-----------
284 1 De iniciado a perito

Estratégias combinadas que permitem ter em conta o facto da


orientadora e principiantes não terem sempre a mesma percepção do que é
importante. A recém-licenciada é encorajada a interrogar a especialista
sobre o sentido das suas máximas. Graças às discussões de grupo, estas
recém- -licenciadas têm a oportunidade de partilhar as experiências de
enfermeiras competentes, proficientes e peritas. Os debates são muitas
vezes animados quando se quer saber se as orientadoras atingiram o nível
proficiente ou somente competente. O resultado mais significativo desta
sessão é a espe-rança suscitada junto destas enfermeiras principiantes por
esta antevisão do futuro no qual elas podem projectar-se para ter uma ideia
do que será o seu desenvolvimento na prática clinica.

Desenvolvimento das orientadoras

A enfermeira orientadora é um elemento central do nosso programa de


orientação. Ela está preparada para este papel por um seminário de um dia
ao longo do qual o modelo Dreyfus lhe é apresentado como um utensílio
graças ao qual ela poderá compreender o comportamento das recém-
licenciadas. Ela poderá também servir-se dele para apreciar as diferentes
competências e conhecimentos entre uma orientadora e uma principiante, e
determinar assim as bases das estratégias de aprendizagem e os métodos de
avaliação.
Discutindo o modelo e os domínios dos cuidados de enfermagem, as
enfermeiras competentes, proficientes ou peritas preparam-se para o seu
1

I' futuro papel de orientadora. Elas reconhecem-se muito depressa na


·1
!1 descrição dos diferentes estados do modelo, abanando a cabeça e falando
:i com as suas colegas recordando-se do tempo em que elas não viam o que
/1
era importante.
Para além do seu impacto directo sobre a sua actividade de orientadora,
este modelo mostra-lhes os enormes progressos que elas cumpriram no
domínio dos conhecimentos clínicos. Elas reconhecem facilmente as suas
competências clínicas actuais e vislumbram a forma que poderá tomar a sua
I'
carreira no futuro.
1
Ao longo destas jornadas discutiram-se igualmente as estratégias
identificadas a partir dos trabalhos de Patrícia Benner e que dizem respeito
especialmente à formação das novas licenciadas. Acentua-se a utilização
das directivas gerais destinadas a ajudar as principiantes a fazer face aos
1
Epílogo 1 285

pedidos particulares do serviço. A utilização de máximos sem explicação é


cuidadosamente afastada. Pediu-se às orientadoras para não mudarem a sua
forma de trabalho, sublinhando que o que elas faziam era diferente das
soluções propostas pelos manuais. As discussões com as recém-licenciadas
no final do dia são então centralizadas na exploração de situações clínicas
e na origem destas divergências. Este equilíbrio entre directivas gerais e
contexto sossega a principiante, porque permite utilizar um estilo de
aprendizagem familiar, fazendo sempre sentir como a enfermeira
experiente percebe as coisas.
Ainda que a apresentação tenha sido centrada sobre a iniciada, as
enfermeiras destinadas à função de orientadoras colocam questões
interessantes sobre a aplicabilidade do moqelo às enfermeiras experientes
que acabam de ser contratadas. Sentindo a necessidade imperiosa de ajudar
estas enfermeiras a integrar os métodos em vigor na Universidade da
Califórnia, as orientadoras perguntam-se se o peso dos procedimentos
hospitalares não vai desencorajar as enfermeiras experientes que procuram
melhorar os seus conhecimentos clínicos. As orientadoras foram encorajadas
a trabalhar de igual para igual com as enfermeiras experientes discutindo as
diferentes aproximações possíveis de casos modelo (paradigmas) onde a
situação era complexa.

Seminário sobre o julgamento clínico da enfermeira

Na Universidade da Califórnia, as enfermeiras que partilham de expe-


riências semelhantes tiveram ocasião de se reencontrar para discutir a sua
prática, no quadro dos trabalhados de Patrícia Benner. Encorajadas pela
directora adjunta dos cuidados de enfermagem, as enfermeiras experientes
provenientes de diferentes serviços de cirurgia geral ou especializada
participaram numa série de seminários animados por Patrícia Benner. O seu
objectivo era investigar as condições em que elas exerciam. Na primeira
sessão, a Dr.ª Benner apresentou as grandes linhas do modelo Dreyfus e
enumerou os domínios principais de prática de enfermagem. As educadoras
do departamento de formação do pessoal aproveitaram para aprender como
interpretar as discussões de grupo.
As sessões seguintes trouxeram a exame e à discussão casos escritos
propostos previamente pelos membros do grupo. Estas discussões davam
sempre os factos em bruto muitas vezes sem explicitar o contexto. A Dr.ª
286 1 De iniciado a perito

Benner pedia então que precisassem, o que trazia em geral informações


complementares sobre a personalidade do doente enquanto pessoa, a espe-
rança de melhorar a situação e os objectivos a prosseguirem.
Ao longo das sessões as participantes abandonaram a linguagem formal e
sem alma da apresentação rigida dos casos e adaptaram um estilo mais
expressivo, onde o contexto estava presente, o que mostrava que elas tinham
uma percepção global da situação. No início os casos apresentados eram das
urgências onde a tecnologia tinha um papel importante. Depois as enfermeiras
apresentaram casos mais centrados sobre o doente, onde eram elas e não as
máquinas que tinham um papel preponderante. As participantes começaram a
exprimir-se mais e a dar o justo valor à contribuição de cada uma.
As enfermeiras experientes consideram que esta série de seminários
enriqueceu a sua prática profissional e reforçou o respeito de cada uma em
relação às suas colegas. Uma enfermeira declarou que os seminários lhe
permitiram tomar consciência que, quando falava de cuidados de
enfermagem, não falava verdadeiramente da prática de enfermagem. A Dr.ª
Benner e as educadoras fizeram o seu próprio balanço por sessões de
análise após cada sessão e mesmo no fim. Estas sessões em paralelo foram
essenciais para permitir às animadoras apreenderem as atitudes do grupo.
Esta série de seminários conseguiu então criar um espaço de discussão
onde as enfermeiras podiam descobrir novos conhecimentos. Ficou
decidido manter um seminário mensal para as enfermeiras efectivas. Ainda
que eles não tenha começado por falta de tempo, esta nova série seguirá os
mesmos princípios acima enunciados e será dirigida por animadoras
formadas pela Dr.ª Benner.

A administração dos cuidados de enfermagem

O pessoal da administração e da gestão foi sensibilizado para o modelo


Dreyfus e os trabalhos de Patricia Benner no quadro do seu programa
mensal de formação. Guiadas pelo princípio enunciado por esta última,
segundo o qual é melhor escolher uma enfermeira competente que uma
"proficiente" ou uma perita como orientadora para uma recém-licenciada,
as enfermeiras-chefes encorajaram, as suas enfermeiras competentes a
seguirem aulas de formação para se tornarem orientadoras. As enfermeiras
proficientes e peritas foram colocadas como orientadoras para as
enfermeiras recém contratadas mas já experientes. Ainda que não tenha
Epílogo 1 287

havido nenhuma avaliação sistemática, dados informais indicam que a


orientadora competente que se lembra do seu início é favorável a uma
aproximação formal e concreta da orientação da enfermeira.
Apesar das lacunas das enfermeiras principiantes, as enfermeiras-chefe
têm agora um quadro de apreciação do potencial que só o tempo e a expe-
riência colocarão em valor, na condição que o ambiente seja
suficientemente estimulante para aí promover os valores profissionais
procurados. Várias enfermeiras-chefe modificaram o conteúdo do seu
programa de orientação em função das necessidades da principiante
que elas enquadravam. Infelizmente, as necessidades da enfermeira mais
experiente são menos tidas em conta, em parte por causa de uma falta de
compreensão da natureza das suas necessidades, obrigações económicas e
exigências de serviços às quais as enfermeiras-chefe devem continuar a
responder. Pode acontecer que a enfermeira-chefe saiba claramente como
satisfazer as necessidades da enfermeira experiente no que respeita a
evolução da carreira, mas que a sua acção seja limitada por razões
financeiras.

Resumo

Levados pelos problemas ligados à rotação do pessoal e a uma


tecnologia sempre em evolução, os serviços de formação foram obrigados
a subs-tituir um número de programas de formação por outros visando
simplesmente disfarçar a falta de pessoal ou a fazer face à complexidade da
tecno-logia. Paradoxalmente, os serviços de formação do pessoal reforçam
junto da enfermeira a ideia que o hospital não é um lugar para o
desenvolvimento profissional - não tendo em conta que a rotação do
pessoal e da tecno-logia, os serviços de formação do pessoal contribuem,
sem o querer, para manter um meio que não faz progredir a prática
profissional. Se os programas de orientação dos serviços de formação do
pessoal derem a mesma importância às perspectivas de desenvolvimento
profissional que ao dia-gnóstico de arritmias, as jovens enfermeiras
ficariam na profissão e poderiam assim limitar os problemas de rotação de
pessoal.
O potencial de desenvolvimento profissional descrito nos trabalhos de
Patrícia Benner está fundado sobre o alargamento da nossa visão das rea-
lidades da prática e do conhecimento de enfermagem. Os serviços de
288 1 De iniciado a perito

formação do pessoal deveriam favorecer as reflexões sobre a prática clínica


e avaliar e estudar os domínios de competências. A redacção e a difusão de
estudos de casos (paradigmas) constituem um meio importante de saber em
que consiste a prática de enfermagem. Conferências animadas por
enfermeiras experientes abririam vias novas junto da principiante como
junto da enfermeira competente, valorizando a experiência e a sua
importância na transmissão do saber e do julgamento. Os serviços de
formação do pessoal têm um papel importante a jogar criando um meio no
qual uma nova visão de cuidados de enfermagem se poderá desenvolver.
Não é fácil resumir as numerosas e diversas aplicações práticas destes
trabalhos. O ponto comum essencial é que as enfermeiras trabalham em
meios diferentes reflectindo sobre a sua profissão e aí encontramos um
saber e uma riqueza que não são facilmente captados pelos modelos
formais. É o ideal que é tradicionalmente procurado em cuidados de
enfermagem, e é preciso que assim o seja porque estudamos
frequentemente em presença de problemas de vida ou morte. Os doentes
merecem o que há de melhor, e sabemos bem que em caso de necessidade,
queremos o que há de melhor para nós mesmos e a nossa família.
Este zelo por vezes fez-nos somente olhar as lacunas e as faltas. Estes
cinco artigos e as investigações trazidas neste livro mostraram que temos
muito a aprender do estudo da excelência. Mas, e é mais importante ainda,
estes estudos ilustram que a excelência e o poder de enfermagem
progridem na boa direcção. Afinal, não podemos esperar que sejamos
reconhecidos pela sociedade se não nos reconhecermos a nós mesmos
como profissionais de saúde.
Epílogo 1 289

ANEXO
GUIA PARA A DESCRIÇÃO DE INCIDENTES CRÍTICOS

Deborah R. Gordon e Patricia Benner


Projecto AMICAE, Universidade da Califórnia

A equipa do projecto AMICAE pediu-vos para descrever os incidentes


críticos identificados pela vossa prática clínica. Estes incidentes servirão de
base à elaboração de exames fundamentados sobre as competências tendo
em vista uma avaliação de recém-licenciadas. Eles servirão também
material de base para uma publicação sobre a natureza da prática de
enfermagem aplicada, o valor será particularmente posto sobre a
significação da experiência em prática clínica como meio de diferenciar a
enfermeira iniciada da enfermeira perita.
Podeis utilizar os formulários inclusos para narrar um incidente crítico.
É preciso, no entanto, primeiro precisar a definição. É considerado como
tal todo o incidente que encaixe numa das seguintes descrições:

A . O que constitui um incidente crítico:


❖ Incidente ao longo do qual pensamos que a vossa intervenção fez
muita diferença quanto ao futuro do doente, quer directa quer
indirectamente (ajudando outros membros do pessoal).
❖ Incidente que terminou particularmente bem.
❖ Incidente ao longo do qual ele se transformou em problema (quer
dizer que as coisas não se passaram como se tinha previsto).
❖ Incidente muito vulgar e típico.
❖ Incidente que, na vossa opinião, reflecte bem o mais alto nível dos
cuidados de enfermagem.
❖ Incidente que requer particularmente a vossa participação.

B . O que é preciso incluir na vossa descrição do incidente crítico:


❖ O contexto (por exemplo a equipa, a hora, o pessoal disponível).
❖ Uma descrição detalhada do que se passou.
❖ A razão pela qual é qualificado como incidente crítico.
❖ A vossa preocupação do momento.
❖ O que vos passou pela cabeça.
❖ O que foi sentido durante e depois.
290 1 De iniciado a perito

❖ Eventualmente, o que reconheceis como sendo o mais difícil da si-


tuação.

C . Informações pessoais:
❖ Nome: (facultativo) Data de nascimento:
❖ Função:
❖ Instituição:
❖ Há quanto tempo estais no serviço?
❖ Há quanto tempo sois enfermeira?
❖ Serviço onde o incidente aconteceu:

D . Descreva abaixo, em detalhe, um incidente identificado na vossa


prática de enfermagem, respondendo às questões do parágrafo B

E . Descreva abaixo, em detalhe, um incidente identificado na vossa


prática de enfermagem, com o qual foi recentemente confrontada
❖ Porque era este incidente crítico?
❖ Qual era a sua preocupação nesse momento?
❖ Que experimentaram durante e depois?
❖ Eventualmente, o que encontraram como sendo o mais difícil na
situação?
❖ Que elemento vos tem particularmente proporcionado satisfação?

F . Um dia de trabalho vulgar:


❖ Descreva abaixo um dia de trabalho vulgar recente.

G. Um dia de trabalho excepcional:


❖ Descreva abaixo um dia de trabalho que tenha de uma maneira ou,
de outra uma característica invulgar.

Parece útil recolher exposições de factos do mesmo incidente feitos por


diversos participantes, em particular as participantes que não têm a mesma
experiência em termos de prática clínica. Apreciaremos então todas as ou-
tras exposições de factos deste incidente de todo o pessoal que teria sido
implicado. Deste modo, os comentários e as questões são bem vindos.
BIBJ..,JOGRAFLi\.

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ÁNEX() TERL'1IN(}L(}(;.IC()

Caring Cuidar; Cuidar humano

Healing Recuperação para a saúde; Cura

Management Gestão

Expert Perito

Novice Iniciado; Noviças

Skill Competências; Destrezas

Cooping Lidar com; Cooperar; Colaborar;

Set Contexto; Comportamento tipo;


Definição

Caregiving Cuidar; Realizar os cuidados;


prestar cuidados

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