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1/10/22, 3:17 AM A ideologia na era da sua hiper-reprodutibilidade técnica/ a internet – Quilombo Spartacus

Quilombo Spartacus

Blog de Santiago Marimbondo para debater temas da política nacional, internacional e de teoria
marxista.

A ideologia na era da sua hiper-


reprodutibilidade técnica/ a internet

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1/10/22, 3:17 AM A ideologia na era da sua hiper-reprodutibilidade técnica/ a internet – Quilombo Spartacus

[Por Santiago Marimbondo]

Está em voga a crítica à internet; artigos, ensaios, séries televisivas, tem como tema atualmente
uma visão negativa desse meio de difusão da ideologia. Os últimos fenômenos políticos em
escala global aprofundaram essa juízo negativo da rede; segundo essa visão (bastante
aristocrática e preconceituosa) grande parte da responsabilidade por fenômenos grotescos como
a eleição de Trump nos EUA e a mais recente vitória de Bolsonaro no Brasil, por exemplo,
teriam como uma de suas causas o enfraquecimento da legitimidade dos organismos
tradicionais de emissão e difusão de ideias, a que levou a popularização da internet.
Supostamente ao dar voz para setores que estão por fora dos canais, instituições e organismos
que legitimavam e produziam o discurso “legítimo”, “correto”, “verdadeiro” a internet teria
dado vazão a preconceitos e superstições retrógrados e reacionários.

O autor dessas linhas não participa dessa voga; o potencial democratizante e emancipador da
rede parece por demais evidente para que se possa legitimar o discurso elitista de que apenas os
meios tradicionais, ligados, certamente, e construídos para defender os interesses da classe
dominante, seriam os supostos guardiões de um discurso “autêntico”, “verdadeiro”, etc.

Superar a crítica superficial a internet não pode significar contudo, cair no erro unilateral oposto
e ver nela apenas seus aspectos positivos. Um meio técnico que certamente revoluciona os meios
de produção e principalmente de difusão de ideias, em suas mais diferentes formas, as
potencialidades que envolvem a internet não podem ser descoladas das relações sociais,
capitalistas, em que ela está inserida.

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Refletir-projetar de forma crítica o potencial emancipador, e as possibilidades alienantes, desse


novo meio revolucionário de produção e difusão de ideologia, nesse sentido, é fundamental. As
transformações nas relações sociais que tem se manifestado nas últimas décadas, sob o impacto
direto da internet, que tem profundas implicações políticas, culturais, artísticas, etc, não deixam
espaço pra dúvida sobre a influência dessa nova esfera da realidade social sobre nossa vida
individual e coletiva.

Reprodutibilidade da ideologia

A ideologia, por sua própria essência, sempre foi reprodutível. O conjunto de ideias, signos,
símbolos, que articulados de forma relativamente orgânica formam o fenômeno ideológico tem
como característica fundamental sua comunicação. Um signo só ganha valor semiótico, e
portanto se torna fenômeno ideológico, na medida em que é transmissível. Das ondas sonoras
emitidas de forma articulada pela voz humana, às pinturas rupestres nas cavernas pré-
históricas, das primeiras impressões gráficas na era moderna às ondas de rádio, a característica
da reprodutibilidade sempre foi fundamental para a existência mesma do fenômeno ideológico.
O conceito, como átomo da ideologia, só pode existir como fenômeno comunicável, e portanto
reprodutível.

Mesmo como discurso interno, na psique individual, os signos e símbolos ideológicos só podem
existir na medida em que são, pelo menos potencialmente, comunicáveis. Os meios de produção
e difusão de conceitos e ideias, no entanto, se alteram historicamente; as estruturas técnicas, os
meios de produção da super-estrutura se modificam ao longo da história.

As formas, os meios técnicos, através dos quais se produz e difunde a ideologia, dessa maneira,
são historicamente determinados; e as transformações técnicas nas maneiras de produção e
difusão da ideologia não afetam suas formas de ser e de manifestação apenas de forma
quantitativa, numa maior possibilidade de sua emissão e recepção, por exemplo; essas
transformações afetam qualitativamente o ser mesmo e as formas de manifestação da ideologia.

Uma ideologia que pode apenas ser produzida e difundida usando o aparelho técnico vocal,
fisiologicamente determinado, que possui o ser humano, certamente terá grandes diferenças em
relação a ideologia que pode ser também transmitida pela tecnologia da palavra escrita, que se
transforma ainda mais quando a escrita pode ser reproduzida industrialmente com a invenção
da imprensa.

As transformações ideológicas profundas que se desenvolveram com os novos meios técnicos


que apareceram entre o final do século XIX e a metade do século XX (fotografia, rádio, cinema,
televisão) foram por demais evidentes e se manifestaram nos mais diferentes campos da cultura,
da política, das relações sociais. Pela primeira vez foi possível produzir uma cultura de massas,
uma produção cultural que tinha por objetivo a massificação e padronização dos indivíduos
proletarizados.

Cultura de massas e indústria cultural (perda da aura e o ser humano unidimensional)

A possibilidade da produção em massa da obra de arte, sua reprodutibilidade técnica (e da


mesma forma da ideologia de conjunto) continha em si um potencial emancipador profundo. A
obra de arte reprodutível, em que a própria ideia de autenticidade se perde, pois ela é

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produzida para a reprodução, ao perder seu caráter “aurático” se emancipa de seu papel ritual,
de seu valor de culto, para ganhar um papel diretamente político, ser jogada de forma direta nas
contradições da sociedade em que está inserida.

Após, contudo, a história de absorção e institucionalização desses meios técnicos por parte da
indústria da cultura – e através dessa absorção sua transformação em potentes formas de
passivação das massas, como forma de pasteurização e produção de uma cultura alienante e
alienada – não nos é mais permitida nenhuma visão ingênua sobre um potencial
unilateralmente positivo do desenvolvimento de qualquer meio técnico para a produção e
difusão da ideologia.

Se a arte produzida pela indústria da cultura perde sua aura, e o valor de exposição aqui apaga
o valor de culto, o ritual perdendo espaço para as relações mundanas, isso não se dá através da
democratização da arte, de sua produção, difusão ou recepção. Submetidos à lógica do capital,
sendo meios técnicos passíveis de serem monopolizados e transformados em propriedade
privada, esses novos meios se tornaram potentes veículos da transmissão massiva da ideologia
burguesa para os mais amplos setores das classes subalternas.

Através do rádio, da televisão, do cinema, a classe burguesa em sua época imperialista passou a
contar com o monopólio de meios de produção e difusão da ideologia numa escala massiva,
projetando e refletindo seus interesses particulares, numa escala impar em sua história e talvez
na história de qualquer outra classe dominante antes dela.

Através desses meios o capital financeiro pode projetar e difundir seus valores e formas de
socialização (na verdade aqueles que ele vê como os mais adaptados para a reprodução em
escala ampliada da condição de subalternidade que caracteriza a classe operária) em todos os
espaços do globo, mesmo para aqueles pequenos interstícios da sociedade que conseguiam se
manter até então imunes a influência dissolvente das relações sociais e modos de vida pré-
capitalistas que caracterizam a sociedade burguesa.

A destruição da aura

Benjamin nos diz que “no interior dos grandes períodos históricos a forma de percepção das
coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de vida“; a forma como a
percepção e apropriação humana sobre o ambiente natural e social se organiza não é
determinada apenas pelos elementos fisiológicos que nos foram legados pela história natural (e
mesmo essa forma de apropriação pressupõe determinações sociais) mas também pelos
elementos sociais e históricos. Mesmo em nossa percepção mais imediatamente sensível sobre o
ambiente natural ou social as estruturas ideológicas e culturais em que estamos inseridos são
elemento determinante para sua realização.

A perda da aura que caracteriza tanto a obra de arte quanto a ideologia em geral na época de
sua reprodutibilidade técnica, a ruptura com seu papel predominantemente ritual, e com seu
valor de culto, levam a um “desencantamento do mundo”, a uma laicização contraditória da
cultura, possibilitando que algumas camadas da sociedade possam proclamar inclusive “a
morte de deus”.

Contudo, aqueles que monopolizam de forma privada esses meios de produção e difusão da
cultura e da ideologia, nesse período histórico determinado, organizam e moldam as formas de
percepção de si mesmas das grandes coletividades humanas de forma a que essas reproduzam

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seus interesses. O capital financeiro, a grande burguesia imperialista, detentores monopólicos da


propriedade privada desses meios, os utilizam para reproduzir a condição de subalternidade do
proletariado e demais setores oprimidos da sociedade. Formas de percepção de si e da vida
coletiva que passivizam e infantilizam, que ao invés de produzir subjetividades autônomas e
emancipadas produzem formas subalternizadas e dependentes, é esse o sentido da produção
ideológica e artística da indústria da cultura.

A internet e a hiper-reprodutibilidade técnica da ideologia

A internet, contudo, não pode ser vista apenas como um desenvolvimento quantitativo dos
meios técnicos que apareceram durante o século XX; ela é mais que apenas a síntese desses
instrumentos; a rede é efetivamente um novo meio revolucionário para a produção e difusão de
cultura e ideologia em sua mais diferentes formas (arte, política, costumes, moral, etc). Com
seus poucos mais de 20 ou 30 anos de existência, com seu tempo ainda menor de efetiva difusão
e relativa democratização (ainda mais parcial e lenta em nosso país) a internet já produziu
profundas transformações nas formas de interação e nas relações sociais.

As formas como namoramos, fazemos amigos, debatemos política ou procuramos emprego, se


modificaram substancialmente nas últimas décadas, e papel não menor nessas modificações
podem ser atribuídos de forma direta à rede. A característica particular mais marcante da
diferença da internet em relação às estruturas de produção e difusão de ideologia que
apareceram durante o século XX é que ela não apenas democratiza a recepção da ideologia, mas
também sua produção e difusão.

Num filme ou num programa de TV ou rádio a arte (e a ideologia de conjunto) perdiam seu
valor de culto e ganhavam valor de exposição, se tornando formas de manifestação massiva de
ideias, e sua recepção, dessa forma, se tornava “democrática”, na medida em que era massiva,
mas ainda se mantinham o monopólio das formas de sua produção e difusão. A internet, de
forma distinta, permite não só a democratização da recepção, mas da produção e difusão da
ideologia. Se é evidente que ainda existe uma óbvia restrição ao acesso não só a internet, mas
aos meios técnicos de produção e difusão de ideologia e cultura por meio da rede, esses meios
hoje são qualitativamente mais acessíveis do que eram os meios para a produção de um filme ou
mesmo um programa de rádio a não mais que 30 anos atrás.

Os aparelhos celulares com câmeras, os computadores com a acesso à internet, são certamente
muitíssimo mais difundidos hoje do que eram uma estação radiodifusora ou uma câmera de
cinema a algumas poucas décadas. Essa transformação radical nas formas de produção e
difusão da ideologia não poderiam de deixar de impactar de forma profunda nas formas como
organizamos e construímos nossa apropriação e percepção coletiva do ambiente social. Hoje não
mais as pessoas querem ser espectadoras passivas, receptoras indiferentes, de produções sobre
as quais elas não têm nenhuma participação.

Do fenômeno dos ‘youtubers’ às novas formas que tomam os debates sobre política e sobre
costumes nas redes sociais, vemos hoje um surto de emissão e difusão de posições de forma
massiva que possivelmente não tem paralelo na história. Todos querem participar dos debates e
emitir sua opinião, sobre os mais diferentes temas, com as mais distintas posições, hajam ou não
embasamento e argumentos. Para horror dos elitistas e dos reacionários, o ser humano comum,
não apenas aqueles que ocupam posições e pedestais dentro do mundo acadêmico e midiático,
podem emitir e buscar difundir suas opiniões e posições.

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Apenas os mais aristocráticos, os pertencentes à “fina flor” do sociedade, não podem ver nisso
um profundo potencial emancipador, revolucionário mesmo. Defendendo seus privilégios e
interesses egoístas de grupo dizem que essa possibilidade de participação massiva na produção
e difusão de ideias, a possibilidade de que todos possam efetivamente participar dos debates,
pretensamente apagaria e enfraqueceria os meios tradicionais e

“legítimos” de produção e difusão de ideias pretensamente “autênticas”, “verdadeiras”. Como


ficam os grandes meios de comunicação e toda a “sabença” acadêmica se todo é qualquer um
pode questionar esses meios e propor visões e interpretações alternativas? Onde ficam a
“verdade” e a “autenticidade” (a aura) se o monopólio da difusão de ideias e conceitos
“legítimos” se enfraquece?

Esquecem de dizer (pois não pensamos que são tão ingênuos) que esses organismos e
instituições pretensamente legítimos jamais estiveram ligados à produção da “verdade”, ou de
ideias supostamente “autênticas”. A “verdade” desses discursos, a “autenticidade” desses
relatos, está ligada à um “regime de verdades” que tem como função legitimar e reproduzir
uma determinada relação social, em que grupos humanos tem interesses antagônicos. Numa
sociedade dividida em classes com interesses opostos não há produção cultural/ideológica
neutra; que os meios e instituições de produção e difusão de ideologia percam sua aura, percam
seu valor ritual, só pode ser visto como algo com grande potencial emancipador e
revolucionário.

A hiper-reprodutibilidade e a historicização da ideologia (perda da aura e crise da metafisica)

Quanto menos reprodutível é a ideologia e a cultura, quanto mais os meios de sua produção e
difusão são passiveis de monopolização, maior tende a ser o valor de culto dessas
manifestações, seu caráter ritual, sua forma aurática. Acessível apenas a uns poucos “eleitos”,
que concentram e centralizam esses meios materiais que permitem que determinadas ideias se
tornem aquelas que hegemonizam um determinado ambiente cultural, esses grupos e setores
passam a ter interesses próprios, particulares, a serem defendidos, que em geral tendem a se
ligar aos interesses da classe dominante na relação social onde esses setores detém esses
privilégios.

É aceitável, legítimo, autêntico, verdadeiro, apenas o discurso, o conjunto de ideias, que passa
pelo crivo desses grupos particulares que se erigem como os guardiões da veracidade e
legitimidade do discurso. Sua ordem e formas de organização, assim, estão ligados e
submetidos, por N mediações aos interesses desses grupos. As formas de legitimação dessa sua
posição é dada pelo respeito e ligação a tradição cultural em que estão inseridos. Esse valor
ritual das ideias, essa sua manifestação aurática, como culto, se expressa na metafisica através
da qual se legitimam determinadas “verdades”.

Não por acaso a invenção e difusão da imprensa foi um duro golpe contra o poder da igreja e foi
um dos marcos da ruptura com a idade média; a possibilidade de uma produção e difusão mais
democrática de ideias, de discursos e relatos, foi elemento fundamental para que se pudesse
romper com o monopólio da produção de saberes de que gozava a igreja católica até ali. A
democratização da produção e difusão das ideias foi uma das fontes fundamentais da ciência
moderna. A possibilidade da crítica e do questionamento amplo, uma das bases do pensamento
científico, só foi real quando aqueles com uma posição distinta podiam minimamente dispor
dos meios para emitir suas discordâncias sem passar pelo crivo dos setores que se colocavam
como portadores da verdade.

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O caráter metafísico do conhecimento quando os meios de sua produção e difusão das ideias e
da cultura são monopolizáveis se dá pois para que um indivíduo seja aceito como parte do
grupo que monopoliza a produção do saber ele deve se submeter as suas tradições, a seus ritos,
as suas formas de expressão e manifestação de um dado “regime de verdades”. Para reproduzir
seus privilégios e seu monopólio das formas de difusão e produção de saberes, os grupos,
classes, castas e estamentos que o detém buscam submeter todos os discursos e saberes
alternativos a suas regras, tradições, regimes de verdade, ou se não é possível, a suprimi-los e
apagá-los. O discurso metafísico, que caracteriza grande parte das formas de discurso e do
regime de verdades que se estabeleceu no ocidente, é a sistematização lógica mais aguda e
profunda desse caráter ritual, aurático, da produção ideológica que tem seus meios de produção
e difusão monopolizáveis.

Quanto mais amplos e democraticamente acessíveis são os meios de produção e difusão de


cultura e ideologia, de artes, ideias políticas e morais, etc, mais impossível é impor uma visão
metafísica, absoluta, sobre um determinado regime de verdades, sobre determinadas formas de
manifestação de determinados discursos. Reprodutível tecnicamente de forma profunda, a
ideologia perde caráter absoluto, metafísico, para se tornar cada vez mais histórica. Saindo e
rompendo com os pequenos círculos e seitas de produção e difusão, as ideias são jogadas
novamente na polis, se politizam, se emaranham e passam a viver de forma cada vez mais clara
os conflitos em que a sociedade está submergida.

A ideologia, quanto mais reprodutível, mais ganha caráter histórico. Se com o monopólio dos
meios de sua produção e difusão essa tende a ser metafísica e a-histórica, com a potencial
democratização desses meios ela tende cada vez mais à historicidade. Tudo é criticável,
contestável, é necessário que seja provado. Não mais pequenos círculos passam a ser os únicos
com legitimidade para garantir a autenticidade, a verdade, de determinado discurso. É preciso
legitimar esse discurso no embate dentro das contradições que envolvem os choques e
antagonismos presentes na sociedade. Se o discurso e a ideologia evidentemente sempre
tiveram caráter político, qualquer véu de neutralidade é rasgado quando não existem mais
setores que monopolizam a legitimação de determinados “regimes de verdade”.

“Fake News”, “pós-verdade” e a distorção do potencial emancipador da internet

O potencial emancipador da hiper-reprodutibilidade da ideologia, a possibilidade de que os


discursos para se legitimarem não tenham que passar pelo crivo das instituições tradicionais
que se apresentam como neutras (como a academia ou a mídia burguesa) mas que na verdade
representam os interesses da classe dominante é negado pelo caráter capitalista a que esses
meios ainda estão submetidos. As épocas de crise e suas contradições são também épocas de
contestações e crises ideológicas; o niilismo que parece se expressar nesses momentos é
expressão disso. Dizia Hegel em uma passagem do prefácio de sua fenomenologia: “a frivolidade
e o tédio que invadem o que ainda subsiste, o pressentimento vago de um desconhecido são os sinais
precursores de algo diverso que se avizinha’’. Nem todas as classes e grupos sociais, no entanto, tem
a mesma capacidade de se reorganizar e reconfigurar para responder a essas transformações.

Mais treinadas e disciplinadas, pelo acúmulo das experiências históricas, as classes dominantes
tem no imediato uma maior capacidade de manipular esses momentos de crise. Todo o
fenômeno expresso hoje nas manipulações existentes através das chamadas “fake news” são
expressão disso. Intuindo e percebendo as profundas transformações existentes nas formas de

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produção e difusão das ideologias que são efeito da expansão da rede as classes dominantes
tentam manipular de forma distorcida esse fenômeno, buscando negar seu caráter
potencialmente emancipador.

As “fake News” são expressão distorcida da perda do caráter aurático, ritual, da ideologia. O
enfraquecimento das antigas instituições e organismos que legitimavam e organizavam a
autenticidade e veracidade de formas de discurso e regimes de verdade cria um vácuo em
relação a produção desse caráter “autêntico”, “verdadeiro’’, de determinadas manifestações
ideológicas. Numa sociedade onde o conhecimento e a informação são produzidos através de
múltiplos pontos, onde são dispersos e pouco dialogam entre si, o que garante a autenticidade e
veracidade de afirmações que se pretendem legítimas, se os antigos órgãos de sua autenticação
perdem sua legitimidade?

As “fake News” dessa forma, são uma tática da classe dominante para jogar com e manipular
essa contradição. Frente ao fato de que as antigas formas de legitimação e produção de
autenticidade dos discursos perdem sua legitimidade todo e qualquer discurso seria legítimo,
toda qualquer afirmação pretensamente “verdadeira”; ou talvez não se possa mais falar em
verdade e autenticidade no discurso.

Manipulando e se aproveitando da ignorância e das superstições arraigadas no seio das classes


subalternas por sua secular exploração e opressão a burguesia em sua época imperialista se
aproveita do momento de confusão e desorganização para em meio ao caos artificialmente
produzido invocar “os valores morais imperecíveis”, os “totens e tabus”,  que manteriam
pretensamente a ordem dentro das relações sociais (as campanhas de Trump e Bolsonaro à
presidência de seus respectivos países, por exemplo, trabalharam muito com essa produção
consciente e artificial do caos e confusão para se apresentarem como defensores dos valores
morais tradicionais).

Setores de “esquerda” em aliança com partes da burguesia dentro do ‘establishment’ político


tradicional, a partir disso, passam a advogar pela relegitimação dos antigos organismos de
produção e difusão de ideologia (a academia, as mídias já estabelecidas, etc) como forma de
combater o caos pretensamente produzido pela participação ampla do “cidadão comum” no
debate político, cultural, moral, etc. Um discurso que combate as contradições que se criam a
partir de um ponto de vista reacionário, portanto.

Uma política transformadora, revolucionária, para o novo fenômeno não pode de forma alguma
legitimar esse discurso de que seria necessário afastar o “cidadão comum”, o “indivíduo
médio”, do debate e fortalecer novamente os antigos organismos e instituições que
pretensamente seriam os organizadores de um discurso “autêntico”, “verdadeiro”, afastados
das pessoas reais e concretas (a academia burguesa, a mídia capitalista, etc), que seriam
pretensamente os únicos espaços legítimos de produção de saberes e conhecimentos.

Que as formas de produção e difusão de ideias sejam democratizadas, o mais possível acessíveis
a todas e a todos, só pode ser visto como algo com potencial profundamente emancipador para
qualquer um que tenha como perspectiva uma sociedade efetivamente democrática (pra não
dizer aqueles que veem a necessidade da construção de uma sociedade comunista).

E isso não quer dizer que tenhamos que nos adaptar a perspectiva da “pós-verdade”, onde toda
e qualquer afirmação tem o mesmo peso e legitimidade. Existe um critério efetivo, concreto para
a verdade de uma afirmação, uma perspectiva, uma ideia, e esse critério não é o crivo da
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academia (a serviço da classe burguesa) e nem o da mídia (monopolizada pelos capitalistas).


Esse critério é a práxis, a ação coletiva do ser humano socialmente organizado.

E na sociedade capitalista, com sua disputa entre as classes fundamentais pelo sentido da práxis,
da ação humana, a classe que representa os interesses universais da sociedade, contra os
interesses particulares e egoístas dos capitalistas, é a classe operária, pois o sentido de sua ação
não é a reprodução em escala ampliada de uma taxa de lucro constante ou ascendente (algo por
definição acessível a pouquíssimos) mas o bem estar coletivo organizado de forma democrática
pelos produtores livremente associados.

Nesse sentido, que seja amplamente acessível que todo e qualquer ser humano, de forma
coletiva ou individual, possa produzir e difundir ideologia (algo a que a internet dá grandes
possibilidades) só pode ser visto como algo com potencial profundamente emancipador, para
que possamos de forma coletiva construir uma sociedade nova.

Por um programa revolucionário para a internet

Esse artigo evidentemente não visa construir um programa completo sobre a política dos
revolucionários para esse novo meio de produção e difusão da ideologia que é a internet. Busca,
na verdade, apresentar bases teórico-ideológicas para que possamos construir de forma coletiva
esse programa, afastando a crítica superficial que tem se expresso à esquerda contra a rede,
frente aos fenômenos contraditórios que tem se manifestado ligados a sua difusão (a esquerda
“girou” muito rápido a chave em sua avaliação em relação ao potencial da internet como
ferramenta ideológico-política. De uma avaliação acriticamente positiva em relação a rede após
sua utilização como elemento fomentador da “primavera árabe” no começo da década, passou a
ter uma visão unilateralmente negativa, com fenômenos como a eleição de Trump, na qual a
internet também foi amplamente utilizada. É pra combater ambos os aspectos unilaterais dessas
visões que é escrito o presente artigo).

A primeira coisa a se ter claro é que apesar de criar uma efetiva nova esfera da vida social a
internet não substitui a vida real e concreta; a “dimensão” virtual da vida social está,
evidentemente, submetida a sua dimensão material e objetiva. O combate as “fake News” por
exemplo, não pode se dar através da censura da emissão e difusão da informação por meio da
rede, como pensam setores reacionários, fazendo com que apenas os setores pretensamente
“reconhecidos” (por quem?) tenham o direito de divulgar informações “verdadeiras’’. Esses
setores que pretensamente gozam de legitimidade para avaliar a “autenticidade” e “veracidade”
de determinados discursos e perspectivas sempre estiveram a serviço das classes dominantes (a
academia burguesa, a mídia capitalista, etc), sua “verdade” não é a nossa verdade.

Numa sociedade em que a informação, verdadeira ou não, circula com velocidade estonteante,
onde existem múltiplos pontos de sua produção e difusão, é necessário que todos os receptores
dessa informação desenvolvam o senso crítico que lhes possibilite lidar com ela. Não é a mídia
capitalista, ou a academia burguesa, que deve dar o crivo sobre o que é “verdadeiro” ou
“autentico”, mas cada indivíduo, como sujeito emancipado, deve ser capaz de julgar e lidar de
forma crítica com as múltiplas informações de que dispõe. Isso não se faz pela reprodução de
uma atitude paternalista em relação a esse sujeito (como se instâncias superiores tivessem que
filtrar por ele as informações) mas pela produção e reprodução coletiva da subjetividade
individual como subjetividade emancipada.

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Uma educação crítica produzida de forma massiva (e não uma educação que sirva apenas para
reproduzir nossa subjetividade proletária como subjetividade passiva, subalterna, pronta a
responder às necessidades da reprodução ampliada do capital), que participemos, nós
trabalhadores, de forma legitima e democrática, e de forma efetiva, da decisão concreta sobre os
rumos que seguirá a ação coletiva dos seres humanos socialmente organizados, a ruptura com
uma estrutura social onde alguns tem posição de mando (e os privilégios que daí derivam) e
outros posição subalterna, todos são pontos bastante gerais para que possamos aproveitar o
caráter potencial de profunda emancipação que pode representar a internet. Que esses pontos
não podem se realizar dentro da presente forma de organização social não pode ser uma objeção
efetiva, pois em lugar algum está escrito que essa própria forma de organização social não pode
ser superada.

Outro elemento fundamental para um programa revolucionário para a rede é que superemos a
propriedade privada de seus meios de produção e difusão. Tanto as estruturas materiais da
possibilidade de sua existência (seu “hardware”) quanto as plataformas digitais onde ela se
manifesta (as redes sociais, por exemplo) são hoje propriedade privada (ou de estados
imperialistas) restritas a alguns poucos. É isso que leva a que os dados presentes nas redes
sociais, por exemplo, sejam base para a manipulação massiva de subjetividades que vemos hoje
(como a venda de dados dos usuários pelo facebook para que as grandes empresas possam
manipular as propensões para consumo da população).

Essa transformação do potencial emancipador da internet numa gigantesca base de dados para a
manipulação capitalista de subjetividades é uma de suas maiores contradições presentes. Sua
superação só é possível com a superação da estrutura social em que se baseia a rede hoje. Os
meios técnicos não são formas neutras, nem só objetivamente emancipadores ou reacionários,
mas se expressam e manifestam dentro de determinadas relações sociais. Se eles apontam
determinadas tendências e potencialidades essas só podem se realizar quando ligamos esses
meios técnicos a formas de organização das relações sociais adaptadas a permitir a expressão
dessas potencialidades.

Na luta para libertar o potencial emancipador da rede para as relações sociais devemos
parafrasear Walter Benjamim: contra a ideologização da política produzida pelos setores
reacionários da burguesia imperialista o proletariado deve responder com a politização da
ideologia.

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Adorno, T. e Horkheiner, M. “A dialética do esclarecimento”

Bakhtin, M. e Voloshnov, N. “Marxismo e filosofia da linguagem”

Benjamin, W. “A arte na era de sua reprodutibilidade técnica”

Foucault, M. “A ordem do discurso”

Gramsci, A. “Os intelectuais e a organização da cultura”

Hegel, G.W.F “A fenomenologia do espírito”

Marx, K. e Engels, F. “A ideologia Alemã”

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Marcuse, H. “O homem unidimensional”

Weber, Max. “A ciência como vocação”

Publicado por Santiago Marimbondo


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6 de janeiro de 2019
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