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A Justiça Platônica em Kelsen

(sábado, 24 de abril de 2004) - Redigido por Warley Belo

O dualismo na filosofia platônica - Platão e seu desejo pela política -


O aspecto subjetivo da vida de Platão e sua filosofia – A verdade em Platão – O mistério da justiça
Bibliografia
O dualismo na filosofia platônica

A alegoria da caverna é, certamente, a passagem mais popular do filósofo Platão. Ali já nos deixa ressaltar o importante
para essa introdução ao estudo da justiça em sua doutrina: o dualismo, ou seja, o mundo perceptível sensorialmente e o
mundo inteligível, das idéias.
A arte também tem sua vertente, veja, por exemplo, o poema de Pignatari, Pleroma (in Revista Caspa, São Paulo,
1979, apud, ARAUJO LIMA, p. 19).
A marca da filosofia platônica é esse dualismo radical. São dois mundos que Platão enxerga quando, com os olhos da
alma, contempla um Domínio transcendente, sem espaço nem tempo, da Idéia, da realidade absoluta, verdadeira e
quando a este domínio transcendente ele opõe a esfera espaço-tempo, do mundo da percepção sensorial, ilusório, da
realidade do não-ser. Esse dualismo manifesta-se também na oposição entre o conhecimento verdadeiro (epistéme) e a
mera opinião (dóxa), o limite (péras) e o ilimitado (ápeiron), o imortal e o mortal, o divino e o humano.
Nesse dualismo, analisa a oposição entre o bem e o mal. Essa conotação ética não é a única possível em sua obra, mas
a mais profunda de seu pensamento, da qual decorrem as demais. É assim porque esse dualismo é básico, primário,
onde se evidencia uma oposição de valores evidente. Platão se esforça, em sua filosofia, em encontrar o bem absoluto. O
bem, contudo, é inconcebível separado do mal. Se o bem deve ser o objeto da cognição, então essa deve reconhecer o
mal. A doutrina platônica, nesse diapasão, especula sobre o bem e o mal.
A idéia do bem, é verdade, destaca-se mais do que a idéia do mal, na representação platônica. Isso é explicado porque
Platão se volta para a especulação do bem. O mal nunca seria pensado não fosse a necessidade de concebê-lo como
antítese do bem; mas ele permanece subordinado, tolerado, como sombra na luz do bem. É por isso que essa concepção
original do dualismo platônico sustenta que apenas o mundo da Idéia, que é o mundo do bem, participa da existência
real, ao passo que o mundo das coisas, do devir, deve ser considerado como não-ser, porque esse mundo do devir, o
mundo da realidade sensorial, perceptível, é o mundo do mal, na medida que, dentro de sua filosofia dualista, está em
oposição ao mundo do bem.
No sistema puro do bem não há lugar para o mal. Por isso, o pensamento que se volta para o verdadeiro ser deve ser
colocado acima da percepção sensorial, dessa aparência de ser; a ética deve Ter precedência sobre a ciência natural,
para que o bem se afirme como realmente é.
O mal é a completa negação do bem. Em geral, o processo de tornar relativa essa oposição fundamental de bem e mal é
uma das pontes por sobre as quais o pensamento humano passa da ética para a ciência natural. O ponto decisivo
nesse processo é este: não apenas o bem, mas também o mal é concebido como ser, como realidade;
consequentemente, a realidade empírica é percebida não penas como mal, mas também como bem, como uma mistura
de bem e de mal. Esse processo de tornar relativa a oposição entre o bem e o mal é o primeiro passo para o abandono
de uma interpretação exclusivamente normativa do mundo por meio da especulação sobre o bem e o mal; essa especulação
é suplantada em favor de uma cognição objetiva da realidade empírica.
Dessa forma, o que Platão pretende com a alegoria da caverna é que “a verdadeira analogia para esse poder que reside
no espírito e o instrumento por meio do qual cada um de nós percebe é o de um olho que não pudesse ser convertido à luz
a partir da escuridão, a não ser girando todo o corpo. Ainda assim, deve-se afastar esse órgão do conhecimento do mundo
do devir juntamente com toda a alma até que a alma possa suportar a contemplação da essência e da mais brilhante
região do ser.”
Nessa doutrina é certo que apenas a experiência ética de um pecador que se tornou santo pode aproximar-se da
consciência da aventura típica de tal avassaladora conversão.

O aspecto subjetivo da vida de Platão e sua filosofia

Partindo do pressuposto que a atividade intelectual dos grandes moralistas está enraizada na sua vida pessoal,
Kelsen especula que a filosofia platônica origina-se de uma experiência moral pessoal.
Explicita que a vida de Platão é determinada essencialmente pela paixão do amor, do Eros platônico. Platão não detinha
uma natureza fria, contemplativa típica do erudito que olha o mundo como simples objeto de conhecimento. Antes, surge
um espírito sacudido pelas mais violentas paixões, um espírito humano em que vive, em íntima e inextricável união com
seu Eros, uma vontade indômita de poder, de poder sobre homens. Diz Kelsen:

“Amar homens e ao mesmo tempo moldá-los, amá-los na própria moldagem em si – essa é a aspiração da vida de Platão.
Seu objetivo era formar homens e reformar sua comunidade. Assim, não há nada com o qual seus pensamentos mais
se preocupem do que com a educação e o Estado; e, como conseqüência o seu maior problema torna-se o do bem ou da
justiça, que em si constitui a única justificativa para o governo de homens sobre homens, o único aspecto legítimo da
educação e do Estado. A paixão pedagógica e política de Platão porém, tem origem em seu Eros.”

Esse Eros, coloca Platão em oposição à sociedade e ao mundo em geral, pois não surge nele como expansão e
enriquecimento da vida sexual normal da sociedade aristocrática (diversa dos níveis sociais inferiores). A natureza de
Platão exclui a vida sexual normal, seu Eros é o amor pelos jovens, tanto que nenhuma mulher desempenhou qualquer
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papel na vida de Platão. Em verdade, passou sua vida num círculo de homens. Nesse profundo conflito com a realidade
social, cujas leis estranhas ao temperamento do filósofo, é explicitado nos diálogos O Banquete e Fedro, onde defende
seu amor por meninos, confessando-o ele próprio, embora apenas na sua forma espiritualizada.
Com isso, o dualismo platônico assume um viés otimista. Tende a relativisar a oposição entre o bem e o mal, a sua
filosofia volta-se para este mundo e almeja um mundo unificado que abranja a natureza. Platão afirma repetidamente
que o Eros que ama meninos, se é espiritualizado (e é o único amor capaz de espiritualização), é uma força procriadora.
Conclui Kelsen:

“É uma confissão extremamente pessoal de Platão, pois esses são os filhos que Eros desejava: as melhores leis, a ordem
justa do Estado, a educação correta da juventude. Revela-se aqui da maneira mais clara a conexão íntima que existia
entre o Eros platônico e sua vontade de poder sobre homens, entre suas paixões eróticas e pedagógicas.”

Platão e seu desejo pela política

Kelsen afirma que sua crença em Platão como filósofo teórico abalou. Para o autor alemão, Platão era por temperamento
mais um político do que um teórico. É visto como fundador e educador. Ele desejava ser o que, por razão exteriores e
interiores, lhe foi negado. Toda a sua posição política é menos uma visão do ser do que uma consideração do dever-ser
que sempre se volta mais para a vontade que para a cognição. E continua Kelsen:

“... e, como sua vontade política ética era inteiramente fundada na metafísica e, consequentemente, expressa em uma
ideologia religiosa declarada, suas obras dão a impressão não tanto de um sistema erudito de ciência moral, mas de um
profecia do Estado ideal. Platão revela-se menos um psicólogo ou um sociólogo preocupado com a realidade social que
um pregador da justiça.” (O que é justiça?, p. 89).

O testemunho disso é visto em sua autobiografia (Epístola VII), na qual o homem, agora velho, em um dos seus
momentos mais sérios, oferece ao mundo um relato de sua vida. Ali Platão confessa, nas palavras de Kelsen, o seu real
desejo: a política. Não procura as respostas para a questão da justiça, mas sim descobrir um fundamento moral para a
atividade. O seu desejo mais ardente era o domínio do Estado, explicitamente quando firma a sua tese principal em dizer
que a tarefa dos filósofos deveria de ser a de governar. (Nesse sentido, O que é justiça?, p. 90).
É particularmente na função política da Academia, no seu caráter como preparação para a vocação de estadista, que se
reconhece o seu objetivo. A obra da Academia voltava-se não tanto para a ciência exata como para a especulação ética
e mística. Assim, a escola foi corretamente denominada “seita metafísica”. Essa posição é marcada por um abandono
completo do racionalismo socrático: como o irracional não se presta à expressão do racional, Platão recorre mais e mais
mitos quando deseja explicar o que considera essencial.
Platão deixou perplexo seus leitores com a declaração de que suas obras publicadas não devem ser tomadas como
expressão do seu pensamento verdadeiro, que, na verdade, não devem nem mesmo ser consideradas como sua obra.
Essa é a postura de um político, para quem a teoria não é um fim em si, mas o meio para um fim inteiramente diferente,
a saber: um fim que busca não saciar a sede de conhecimento do homem, mas antes determinar a sua vontade, formar
seu caráter, educá-lo e governá-lo.
Platão escolheu a forma de diálogo, cuja natureza é essencialmente dividida, pois Platão tinha um adversário no
próprio peito e, apenas permitindo que falasse podia livrar-se desse conflito interior. Era a forma que encontrou para
escapar da possível identificação de qualquer teoria, por mais bem-fundada que pudesse ser. Os diálogos são
dramáticos, e no drama nenhuma das opiniões expressas pelas pessoas que atuam pode ser positivamente tomada
como a opinião do dramaturgo. Platão não é apenas um filósofo, mas também, na verdade mais ainda, um poeta. Platão
é um poeta no sentido de que se preocupa pouco com o que dizem seus personagens. Platão é realmente um
dramaturgo. O conhecimento de Platão não é, portanto, um fim em si. A ciência para ele, assim como para os
pitagóricos, é apenas um meio para um fim. O homem precisa de conhecimento para agir acertadamente; e justamente
por esse motivo, o único conhecimento real é o do bem, da divindade.

A verdade em Platão

A concepção platônica de verdade apresentada em A República é a doutrina que justifica, até mesmo requer, a mentira
como um meio para o melhor governo; e isso implica a distinção adicional de mentiras más e mentiras “verdadeiras”. Uma
mentira “verdadeira” é saudável, é uma mentira de Estado. Platão diz que no Estado ideal (que é o Estado governado
pela filosofia platônica), o governo deve usar algumas fraudes e engodos para o “bem-estar dos governados”. Por
exemplo: a orientação estatal para o propósito de controle de natalidade.
Nessa esfera pessoal encontra-se um interesse vital do estado, e o interesse do Estado, que no Estado ideal coincide
com a justiça, está acima de tudo em importância – até mesmo da própria verdade. A máxima de que “os fins justificam os
meios” cai bem na doutrina platônica. Assim, não é tão essencial que os sujeitos saibam da verdade, mas sim saibam do
que é útil para o Estado. Platão reivindica, pois o direito do governo de determinar a opinião de seus cidadãos por
qualquer meio que julgar adequado. Nesse diapasão o Estado deve proclamar que a justiça conduz à felicidade e a injustiça
à infelicidade.
Platão formula o famoso símile dos homens como fantoches nas mãos da divindade, do operador divino do espetáculo
de fantoches. De modo similar, o governo, que é o representante da divindade, pode manipular os fios enquanto se
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mantém tão invisível quanto pode. Apenas desse modo a justiça pode se realizar. Platão faz outras propostas que, todas,
visam a obrigar a ciência, a poesia e a religião, na sua função de produtoras de ideologia estabelecendo assim uma
ditadura.
Cria-se, pois um pragmatismo: o que é útil para o Estado, constitui justiça e, igualmente, constitui uma verdade.

O mistério da justiça

Percorrido esses temas, que Kelsen denomina de pressupostos para entender a doutrina platônica de justiça, passamos a
analisar a temática central aos olhos do professor.
Os diálogos escritos por Platão na juventude perdem-se em uma análise estéril de conceitos, em tautologias vazias;
eles são mais ou menos sem resultado. Em A República, após uma discussão um tanto prolongada em que Sócrates
tentou por todos os meios disponíveis chegar a uma definição de justiça, encerra com a declaração de Sócrates de que, para
ele, o resultado de toda a discussão é meramente a informação de que ele não sabe nada, pois a questão real e decisiva
quanto à essência da justiça não foi discutida. Na medida em que não se sabe o que é justo, não se pode decidir se o
justo é ou não uma virtude ou se o homem justo é ou não feliz.
O mistério da justiça em Platão se intensifica quando se familiariza com a metafísica política e religiosa da escola
pitagórica.
A essência da doutrina pitagórica, que nesse ponto concorda com a sabedoria dos mistérios órficos, é a crença de que
após a morte a alma do homem será punida pelo mal e recompensada pelo bem. Essa concepção ética-religiosa implica
uma justificação do mundo tal como é dado e a convicção de que o bem finalmente triunfará sobre o mal. De um ponto de
vista político, essa metafísica de um mundo futuro de almas, ou da metempsicose, indica uam doutrina de justiça cuja
essência é a retribuição. Na medida em que essa retribuição não é concretizada neste mundo, ela será adiada para o
outro mundo ou para uma Segunda vida nesse mundo. As principais teses decorrentes dessa assertiva é que é melhor
sofrer injustiça do que cometê-la, e que é melhor submeter-se à punição jurídica que escapar dela porque os bons são
recompensados e os maus são punidos no outro mundo. Essa crença profética, primeiramente exposta no Górgias, de
que a justiça é retribuição no outro mundo, domina a obra de Platão desse ponto até sua morte.
Essa aceitação da retribuição no outro mundo implica necessariamente a crença na alma. Ao buscar a justiça no outro
mundo, Platão encontrou a alma neste mundo – na verdade, encontrou-a no homem. A alma deve continuar a viver
depois da morte em uma esfera transcendental para que seja objeto de retribuição. A ligação íntima entre as doutrinas
platônicas da alma e da justiça é óbvia. Assim como o problema da justiça conduz inevitavelmente à doutrina da alma, assim
esta conduz à doutrina das idéias. A crença na concretização da justiça no outro mundo compele à concepção de uma
existência futura da alma. Explica Kelsen:

“a necessidade de uma cognição da natureza da justiça conduz à concepção de uma preexistência da alma, à teoria do
conhecimento como reminiscência do que foi visto pela alma no outro mundo, antes de seu nascimento neste mundo.
Essa teoria é desenvolvida pela primeira vez no Mênon; e aí se encontra o germe da doutrina das idéias. O que a alma
viu na sua preexistência são idéias e, acima de tudo, a idéias de justiça.” (O que é justiça, p. 99)

Platão, ao identificar a justiça como retribuição, assume a doutrina órfico-pitagórica e aceita a visão do povo grego que ve
da Antigüidade. Todavia, a fórmula da retribuição não deu resposta à questão da natureza da justiça. Trata-se de uma resposta
aparente, pois revela apenas função concreta do Direito positivo, que meramente vincula ao mal da sanção como sua
conseqüência. Reflete apenas uma estrutura externa, uma ordem coercitiva, um mecanismo de culpa e punição. Na
verdade, a retribuição é ela própria uma fórmula de igualdade, já que não diz nada mais além de que o bem será para os
bons, o mal para os maus, o semelhante para os semelhantes. Mas, o que é o bem? Qual a sua natureza? Temos, pois
que a questão da natureza da justiça se resume à natureza do bem.
Em A República, há uma relação entre o bom e o justo, onde esse se torna útil e vantajoso apenas pelo uso daquele,
o que significa dizer que a idéia de justiça deriva seu único valor da idéia de bem. O bem é, assim, a substância da
justiça. Então, a justiça, na medida em que se refere a assuntos terrenos, é o Estado, que funciona como aparelho
coercitivo da retribuição. É o Estado que deve garantir o triunfo do bem sobre o mal neste mundo. A República (na
verdade O Estado) tem como objetivo fornecer uma resposta para a questão da substância da justiça. Portanto, o ponto
central de A República está na explicação do problema do bem.
Nesse sentido ver também (A ilusão da justiça, p. 447/448).
O que é realmente o bem, porém, não se descobre nesse diálogo, que restringe à afirmação de que o bem existe. Platão
representa principalmente a constituição do Estado, a sua organização, não uma ordem completa regulando as relações
humanas materiais. Na vida da sociedade exibe apenas as condições de organização sob as quais a vida presumivelmente
irá se moldar para os fins da justiça, mas não explica essa vida justamente regulada. Não se encontra nenhuma norma
para a regulamentação da vida do povo que se submete às duas classes reinantes. Aí, tudo é deixado às decisões
individuais do governo, que é composto de filósofos, que, por causa de sua educação, conhecem e, portanto, querem o
bem. Mas em que consiste esse bem que deve realizar-se no governo? Qual é a substância dos atos de governar?
Apenas da resposta a estas perguntas pode-se apreender a natureza da justiça.
Todavia, não ocorre a afirmação: esta é a justiça pela qual estivemos procurando. Platão percorre pelo princípio da divisã
do trabalho, i. e., que cada um fará apenas seu próprio trabalho, mas esse princípio não é admitido sem reservas como o
princípio de justiça. Antes, é proposto que se examine se esse princípio é aplicável a uma comparação entre o Estado e a
alma individual. “Se Não for”, é dito, “procuraremos por outra coisa”. É evidente que Platão tem consciência, desde o início,
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que não se alcançaria a natureza da justiça por meio de uma analogia entre Estado e indivíduo. Depois de estabelecido
esse paralelo e encontradas as três partes da alma que correspondem às três partes do Estado, poder-se-ia crer que a
resposta à questão da justiça é óbvia, embora não significativa. Essa resposta seria que as três partes da alma – a racional,
a espiritual e aquela onde residem os apetites – cada uma delas exercerá a sua própria função e nenhuma outra. Essa
preposição conduz à conclusão de que a ação justa resulta no Estdao verdadeiro quando os filósofos, com a ajuda dos
guerreiros, governam a classe trabalhadora, da mesma maneira que o indivíduo alcança a justa ação dominando as suas
paixões com a parte racional da alma. A ação justa resulta, assim, da atividade dirigida pela razão. A questão da substância
da justiça é relacionada com a substância da razão. Segue-se, então, a uma comparação da justiça com o bem-estar da
alma, que nada exprime além da constituição correta da alma e, portanto, não esclarece a analogia entre as constituições
da alma e do Estado. O conhecimento que foi até então alcançado quanto à natureza da justiça é novamente negado. Diz
Kelsen (O que é justiça? Pag. 103):

“Mal uma resposta para a questão parece Ter sido encontrada, a posição atingida é abandonada; o resultado obtido é
rejeitado como inexato ou errôneo, e o fim é novamente adiado.”

Nesse ponto da discussão, Platão faz uso de sua técnica peculiar substituindo o conceito de justiça pelo de bem, assim
como antes o substituiria pelo de razão. Mas, quando Sócrates julga necessário responder à questão sobre o que
considera ser o bem, ele usa o estratagema do começo da discussão e esquiva-se. Glauco exclama: “Em nome do céu,
Sócrates, não te esquives, por assim dizer, justamente diante do objetivo. Pois contentar-nos-á que expliques o bem
como expuseste a natureza da justiça, da sobriedade e de outras virtudes”. Ou seja, ele nunca responde à questão. Ao final
temos por concreto que o filósofo que governa no Estado ideal conhece o bem. Os outros devem se contentar em adorar
e obedecer.
Com certeza Platão prescreve um plano para a educação dos filósofos designados para governar. A idéia do bem encontra-
se além de todo conhecimento racional ou científico. A realização do bem está reservada a outro poder da alma. O que
Platão descreve em Epístola VII é uma experiência religiosa. A especulação racional sobre o conceito de bem não
proporciona um acesso direto a essa experiência; a dialética deve ser compreendida antes como um exercício
espiritual similar ao da oração. O conhecimento do bem não resulta como conclusão lógica do processo dialético, mas é
uma oferta de graça à alma que se purificou de toda sensualidade pela meditação. Expõe Kelsen (O que é justiça?, p. 105):

“Como Platão rejeita que qualquer experiência adquirida por meio dos sentidos exteriores possa levar à compreensão da
idéia mais elevada do bem divino, ele tem de alcançar essa compreensão por meio de outra experiência que não a dos
sentidos. Não é possível Ter nem mesmo um conhecimento interior sem nenhuma experiência, portanto deve haver um
sentido interior que torne possível essa experiência religiosa específica. Essa experiência interior é especificamente
distinguida da exterior pelo fato de que nem todos são capazes dela como são capazes da experiência exterior. O
conhecimento interior é possível apenas para uma pequena elite, talvez apenas para uma única pessoa escolhida por
Deus. Tal pessoa é elevada acima dos outros homens porque sua experiência religiosa derivada de um sentido interior
tão raro não pode ser expressa racionalmente em conceitos como pode a experiência dos outros sentidos; tampouco
pode ser comunicada a outros. Aqui, torna-se evidente que Platão não pode oferecer nenhuma resposta à questão do bem
absoluto, que é o objeto de sua experiência religiosa. A essência do seu Deus permanece inexprimível.”

Conclui Kelsen que não é surpreendente que um filósofo deva ocultar na condição de inexprimível o seu conhecimento do
bem absoluto ou colocá-lo no âmbito de uma filosofia esotérica. Mas pode-se admitir isso quando o filósofo é chamado a
governar o Estado e ser o legislado? A questão da natureza da justiça é esta: um mistério divino.
Os sofistas haviam cientificamente negado a existência de uma justiça absoluta; Sócrates afirmara-a apaixonada e
dogmaticamente, mas foi finalmente obrigado a confessar que não sabia o que ela realmente era. Platão declara que se
pode obter esse conhecimento por meio de sua filosofia; mas diz também que o resultado será inexprimível. Assim, o
caminho que devia conduzir do relativismo racionalista ao absoluto metafísico culmina no misticismo religioso.
Contesta-se que Platão tenha sido um místico, e isso realmente pode-se por em dúvida. Sua filosofia tem um caráter
social pronunciado; sua doutrina das idéias possui clara orientação política. Na verdade, o pensamento de Platão é um
misticismo genuíno, pois a visão do ser supremo é inexprimível – é uma experiência que não é comunicável, e não o
produto da consideração racional. Quem viu o bem, o escolhido, é isolado dos muitos que não contemplaram nem
poderão jamais contemplar essa visão.
Ainda assim, ele novamente sustenta a antiga exigência de que o filósofo, e apenas o filósofo, seja nomeado para
governar. Isso parece uma completa contradição. Como pode um anseio para a salvação pessoal se conciliar com uma
reivindicação de reconhecimento como governante em um mesmo lugar?
A salvação do escolhido – o que foi abençoado com a graça – será realizada pela visão do bem; mas isso, o segredo do
governante, realizará também a salvação para todos os outros, ou seja, para os que são governados. Estes não podem
acompanhar seu governante pelo caminho da salvação até uma visão do bem, e, por esse motivo, são excluídos do
governo. Podem encontrar a salvação apenas na submissão completa à autoridade do governante, que é o único que
conhece e, portanto, deseja o bem. Como o filósofo governante tem um conhecimento do bem divino e é o possuidor
exclusivo desse segredo, ele é inteiramente diferente dos outros homens. A massa do povo não tem outra escolha.
Essa crença é o fundamento da obediência incondicional dos sujeitos sobre a qual a autoridade do Estado platônico
repousa. Conclui Kelsen (O que é justiça, p. 107):

“O misticismo platônico, a mais completa expressão do irracional, é a justificação da sua doutrina política antidemocrática;
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é a ideologia de todas as autocracias.”

Para Kelsen, a título de curiosidade, a justiça é a felicidade social, conforme se depreende da Teoria Geral do Direito e
do Estado.

Bibliografia:

1) O que é justiça? Hans Kelsen


2) A ilusão da justiça. Hans Kelsen
3) O problema da justiça. Hans Kelsen
4) Permanência e Mutabilidade em Hans Kelsen. Carlos Eduardo de Araújo Lima. RJ: Lumen, 1998.
5) A filosofia do não: filosofia do novo espírito científico. Trad. Joaquim José de Moura Ramos. 4. Ed. Lisboa: Presença,
1987.
6) A instituição imaginária da sociedade. Trad. Guy Reynaud. 3. Ed.. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
7) O direito, um mito. João Uchôa Cavalcanto Neto. RJ: Rio de Janeiro, 1977.
8) Estudos de filosofia do direito: uma visão integral da obra de Hans Kelsen. SP: ERT, 1985
9) Filosofando – Introdução à filosofia. Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helene Peires Martins. Moderna: SP, 1993.

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