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Tradução preliminar de Messias Basques – SEM REVISÃO. NÃO CITAR EM OUTRAS PUBLICAÇÕES.

Texto disponibilizado para uso em aula. Curso de Extensão Vozes Negras na Antropologia, UNILAB, 2021

DA IGUALDADE DAS RAÇAS HUMANAS:


ANTROPOLOGIA POSITIVA.
Paris, 1885.

AO HAITI

Que este livro seja meditado e ajude a acelerar o movimento de


regeneração que minha raça está realizando sob o céu azul e claro das Índias
Ocidentais!
Que inspire em todas as crianças da raça negra, espalhadas sobre a imensa
esfera da terra, o amor ao progresso, à justiça e à liberdade! Pois, ao dedicá-
lo ao Haiti, estou também dedicando-o a todos eles, aos deserdados do
presente e aos gigantes do futuro.

A. FIRMIN.

PREFÁCIO

O acaso desempenha um papel significativo em todas as coisas humanas.


Quando cheguei em Paris, estava longe de pensar em escrever um livro como
este. Eu não tinha a ideia de dirigir minha atenção para uma esfera onde eu
pudesse ser considerado um leigo, por causa de minha profissão como
advogado e de meus estudos, eu estava mais especialmente disposto a lidar
com questões relacionadas às ciências morais e políticas.
A maioria de meus amigos chegou a acreditar que eu teria aproveitado
minha estadia na grande capital para frequentar a Faculdade de Direito, a fim
de obter os graus de Bacharel e Doutorado. Este teria sido certamente um
resultado digno de minha ambição, não fossem as exigências da escolaridade
e minhas obrigações familiares. Entretanto, além de qualquer outra razão,
acredito que quando não se teve a sorte de crescer na Europa, mas se
trabalhou conscienciosamente em casa para ganhar o título que se ostenta, é
inútil recomeçar como estudante em um ramo do conhecimento já
perseguido com diferentes graus de sucesso. Existem outras necessidades da
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mente que também exigem ser satisfeitas. Ao fazê-lo se compensa a falta de


um título muito apreciável, mas cuja ausência nada tira do mérito do trabalho
realizado fora das universidades europeias.
Foi isso o que me motivou a levar a cabo este trabalho. O doutor Auburtin,
cujo caráter simpático e liberal nunca posso elogiar o suficiente, tendo me
encontrado várias vezes, teve a indulgência de achar interessantes as
conversas que tivemos juntos e me fez a graciosa oferta de me propor à
votação da Société d'anthropologie de Paris. Meus estudos gerais me
permitiram aproveitar imediatamente do trabalho desta sociedade, onde
tantos homens eminentes se encontram para discutir as questões mais
elevadas e interessantes que se pode imaginar, dado que se trata do próprio
estudo do homem, aceitei com gratidão esta oferta, que foi ainda mais
preciosa porque foi espontânea.
A recomendação do senhor Auburtin foi bem sucedida. Apresentado por
ele e pelos senhores Mortillet e Janvier, fui eleito membro pleno desta
sociedade erudita, em sua sessão de 17 de julho do ano passado. Gostaria de
expressar minha profunda e inteira gratidão a eles.
Não tenho que escondê-lo. Minha mente sempre ficou chocada ao ler em
várias obras que afirmam, dogmaticamente, a desigualdade das raças
humanas e a inferioridade congênita da raça negra. Quando me tornei
membro da Sociedade Antropológica de Paris, o assunto não deveria ter
parecido ainda mais incompreensível e ilógico? É natural, por acaso, ver
pessoas consideradas desiguais ocupando lugares dentro dessa Sociedade
com o mesmo estatuto dos homens que representam essa mesma ciência?
Eu poderia, no final do ano passado, quando retomamos nosso trabalho,
ter provocado uma discussão dentro da Sociedade que teria lançado luz sobre
a questão ou, ao menos, para conhecer as razões científicas que autorizam a
maioria de meus colegas instruídos a dividir a raça humana em raças
superiores e inferiores; mas – se o fizesse - eu não seria considerado um
intruso? Um questionamento desafortunado não faria com que meu pedido
fosse retirado, antes de qualquer exame? O simples bom senso me indicou
uma dúvida legítima sobre este ponto. Foi então que eu concebi a ideia de
escrever este livro, que ouso recomendar à meditação e à indulgência de
homens especiais. Tudo o que nele possam encontrar de bom deve ser
atribuído à excelência do método positivo que tentei aplicar à antropologia,
baseando todas as minhas induções em princípios já reconhecidos pelas
ciências definitivamente estabelecidas. Ao fazê-lo, o estudo de temas
antropológicos assume um caráter cujo valor é indiscutível.
É certo que tal assunto requer um longo e laborioso estudo. A pressa com
que o tratei deve, sem dúvida, ser prejudicial ao resultado desejado. Mas eu
não terei sempre ócios involuntários. O tempo é curto; e não sei se há entre
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os meus semelhantes da raça negra quem possa contar com a suficiente soma
de boa-vontade e paciência acumulada como a que me faltou empregar para
trabalhar, combinar e apresentar os argumentos e pesquisas da maneira que
me esforcei a fazer.
Será que consegui, em certa medida, difundir em meu livro a clareza, a
precisão, todas as atrações que cativam a mente e fazem o encanto das obras
destinadas a propagar ideias corretas, mas ainda assim disputadas e mal
compreendidas? Eu não ouso contar com isso. Eu nunca tive total confiança
em meu talento como estilista. Além disso, as condições morais em que me
encontrei, ao desenvolver a tese da igualdade das raças, certamente
exerceram sobre meu pensamento uma influência depressiva, altamente
prejudicial à elegância e especialmente à amplitude de expressão, que
sempre correspondem à boa saúde da mente, ao ardor expansivo do coração!
Aqui e ali, eu devo ter deixado escapar alguns erros. Peço ao leitor sua
total benevolência, pedindo-lhe que considere as dificuldades das perguntas
que tive que abraçar e a pressa que as circunstâncias, por assim dizer, me
impuseram. Talvez eu tenha confiado demais em minhas forças. Às vezes
me dei conta. Somente a sede pela verdade e a necessidade de luz me
sustentaram no decorrer do meu trabalho. Contudo, seja qual for o resultado
obtido, jamais me arrependerei de ter me entregado a ele.
"Nesta massa flutuante da humanidade que se volta sobre si mesma", diz
o Sr. Mason, "há um movimento ordenado". Nosso pequeno círculo é parte
de um grande círculo, e nossas mentes se satisfazem em cada instante em
que percebem uma nova verdade. A busca dessa verdade fortalece a
inteligência: assim se produz a seleção natural da mente. E enquanto alguns
se cansam e são incapazes de ir mais longe, outros avançam e se fortalecem
pelo esforço.1
Em todo caso, ao defender a tese que constitui a base deste volume, eu
estava essencialmente preocupado em justificar a gentil recepção da
Sociedade Antropológica de Paris. É uma homenagem que presto aqui a cada
um de seus membros, meus honrados colegas. Frequentemente me
contraponho à maioria dos antropólogos e às suas opiniões; entretanto,
respeito e honro infinitamente seu alto valor intelectual. Tenho o prazer de
pensar que, ao refletir sobre todos os pontos levantados por minha
controvérsia, eles se inclinarão a reformar essas opiniões, no que diz respeito
às capacidades de minha raça. Não em razão de acreditar que eu tenha
prevalecido na tarefa que me propus; mas para homens instruídos e

1 « L'anthropologie, son domaine et son but » na Revue scientifique de 1º de dezembro


de 1883.
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inteligentes é suficiente apontar uma ordem de ideias, para que a verdade que
se segue dela resplandeça em seus olhos com eloquente evidência:
Verum animo satis hœc vestigia parva sagaci Sunt 2
[esses poucos vestígios são o bastante ao ânimo sagaz]

Eu sou negro. Por outro lado, sempre considerei o culto à ciência como o
único verdadeiro, o único digno da atenção constante e devoção infinita de
todo homem que é guiado apenas pela razão livre. Como eu poderia, então,
conciliar as conclusões que parecem ser tiradas desta mesma ciência contra
as capacidades do negro com aquela veneração apaixonada e profunda que é
para mim uma necessidade imperativa do espírito? Poderia eu me abstrair da
condição de meus semelhantes e me considerar uma exceção entre outras
exceções? Sou, sem dúvidas, demasiadamente lógico em minhas concepções
para me deter nesta distinção, que é tão orgulhosa quanto ilusória e tola. Não
há diferença fundamental entre o negro africano e o negro haitiano. Nunca
consegui entender por que, quando se fala da inferioridade da raça negra, a
alusão deveria ser mais contra a primeira do que contra a segunda. Ainda que
me satisfizesse um pensamento tão falso e inepto, a realidade, que nunca
mente, me faria sentir, a cada momento, que o desprezo sistemático
professado contra os africanos me envolve inteiramente. Se o antilhano
negro dá mostras de uma inteligência superior; se ele exibe aptidões
desconhecidas de seus antepassados é porque herdou dos mesmos o primeiro
germe mental que a seleção fortificou e aumentou nele.
O Haiti deve ser utilizado para a reabilitação da África.
É com isto em mente que tenho constantemente tirado meus exemplos
apenas da República Haitiana, sempre que se tratava de provar as qualidades
morais e intelectuais da raça negra. Do negro ao mulato há muitos
cruzamentos antropológicos. Portanto, mencionei muitos nomes,
lamentando que o escopo do meu trabalho e o medo da monotonia não me
tenham permitido mencionar mais. Assim, gostaria de citar, ao lado de outros
exemplos da raça haitiana, os senhores Alfred Box, Anselin, Nelson
Desroches, Edmond Roumain, Georges Sylvain, Edmond Cantin, em suma,
um conjunto de mentes jovens e brilhantes que eu mencionaria com prazer,
se não fosse para evitar aqui a culpa em que eu estava tão tentado a cair no
próprio curso deste livro.
Mas o Haiti oferece um exemplo muito edificante em favor da raça que
se orgulha de representar entre os povos civilizados? Como provar que
possui as qualidades que são contestadas contra os negros africanos? Para

2 Lucrécio, De rerum natura, Liv. I, v. 396.


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responder adequadamente a estas perguntas, seria necessário desenvolver


uma nova e muito interessante tese, mas que exigiria nada menos que a
escrita de um extenso volume. Além disso, vários de meus compatriotas já o
defenderam brilhantemente. Basta lê-los para se convencer de toda a lógica
profunda e a minuciosa ciência presentes nos argumentos que extraíram da
sociologia e da filosofia da história. Mas primeiro devemos nos perguntar:
Se a doutrina da desigualdade das raças deu origem aos preconceitos mais
estúpidos, assim como produziu um antagonismo maligno entre os vários
elementos que compõem o povo haitiano, por acaso não seria essa mesma
doutrina a causa mais evidente das discrepâncias e das rivalidades intestinas
que enfureceram e aniquilaram as melhores disposições dessa jovem e
orgulhosa nação? A ausência de todo estímulo real para o seu
desenvolvimento social não se deve à desacertada crença que se tem de sua
inferioridade? Não se poderia atribuir todas as calamidades que recaíram
sobre ela às pretensões sempre ridículas de uns e às reivindicações torpes de
outros? A fim de obter todos os resultados que temos o direito de exigir da
raça haitiana, devemos esperar até que a educação, espalhada sem reservas
entre as massas, chegue finalmente para reprimir e aniquilar todos aqueles
preconceitos que são como um empecilho ao progresso.
Essa era chegará infalivelmente. Outros povos, mais velhos que eles,
viveram muitos dias dolorosos em desordem e barbárie; mas na hora
marcada pelo destino, o sol do progresso e da regeneração brilhou em seu
horizonte nacional, sem que nenhum obstáculo pudesse apagar essa luz.
Encontro nesses exemplos, tão eloquentes e significativos, uma força
consoladora, uma esperança inabalável.
Não se deve, entretanto, admitir sem restrições o método que consiste em
recorrer sempre a comparações históricas, tão logo se trate de justificar um
erro ou práticas infelizes na vida de um povo jovem. Estas comparações têm
um motivo racional, podem demonstrar que todos os povos e todas as raças
que chegaram à civilização passaram inevitavelmente por um período mais
ou menos longo de tentativa e erro e organização inferior antes de alcançá-
la. Não constituiriam, no entanto, um perigo verdadeiro, se fossem utilizados
em defesa de certos abusos que, sem dúvida, têm precedentes históricos, mas
cuja influência tem sido geralmente reconhecida como prejudicial a toda a
evolução social?
Assim entendido, o estudo do passado, ao invés de beneficiar os povos
jovens que deveriam ser estimulados na busca do belo, do verdadeiro e do
bom, serviria apenas para inspirá-los com uma apatia perniciosa, uma
despreocupação mortificante, contrária a toda ação reformadora e evolutiva.
Por falsos raciocínios, eles podem muito bem concluir que são livres para
perseverar de maneiras menos progressistas, já que nações ilustres há muito
tempo permaneceram nelas. Portanto, embora reconhecendo que a raça negra
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do Haiti evoluiu com espantosa rapidez, estou longe de negar que, mesmo
agora, ela precisa fazer muitos esforços para romper com certos hábitos que
provavelmente só irão paralisar seu crescimento. Quando se está atrasado,
deve-se evitar distrações ao longo do caminho.
Eu não me considero um homem corajoso, nem sábio. Para a verdade que
estou tentando defender, trago apenas minha devoção e minha boa vontade.
Mas que orgulho eu não teria se todos os negros e seus descendentes se
convencessem, pela leitura deste trabalho, que é seu dever trabalhar,
melhorar incessantemente, a fim de limpar a sua raça da imputação injusta
que há tanto tempo paira sobre ela! Como eu deveria estar feliz por ver meu
país, que amo e venero infinitamente, mesmo por causa de seus infortúnios
e seu laborioso destino, entender finalmente que tem um trabalho muito
especial e delicado a realizar, o de mostrar ao mundo inteiro que todos os
homens, negros ou brancos, são iguais em qualidades como são iguais em
direitos! Tenho uma convicção profunda: uma viva e luminosa esperança me
diz que este desejo se realizará.
Não são, além disso, as próprias leis da evolução que indicam e justificam
tal aspiração? Não é o fim inevitável de toda a sociedade humana caminhar,
perseverar no caminho da perfeição, uma vez que o impulso tenha sido dado?
Basta, portanto, libertar as forças morais, que são a alma do progresso, de
toda compressão paralisante, para que o movimento gradual e harmonioso
ocorra espontaneamente, em razão da elasticidade própria de todo organismo
social. É ainda à liberdade que todo povo jovem e vigoroso deve apelar como
um princípio de salvação. Todas as leis naturais e sociológicas estão unidas
na proclamação desta verdade.
No Haiti, como em outros lugares, a raça negra precisa de liberdade,
liberdade real, efetiva, civil e política, se quiser florescer e progredir. Se a
escravidão nos causa horror, o despotismo também deve parecer horrível.
Pois o despotismo nada mais é do que uma escravidão moral: permite a
liberdade de movimento aos pés e às mãos; mas algema e garroteia a alma
humana ao sufocar o pensamento. Agora, é indispensável lembrar que é a
alma, ou seja, a força da inteligência e do espírito, que interiormente traz a
transformação, a redenção e a elevação de todas as raças, sob o impulso da
vontade livre, iluminada, livre de todas as restrições tirânicas!
Desde o senhor Gobineau, cego pela paixão, ao senhor Bonneau, tantas
vezes imparcial, tem se repetido com demasiada frequência que "o negro não
entende a ideia de governo sem despotismo"; tem-se abusado dessa opinião
- corroborada por exemplos infelizes - para declarar que a inferioridade
moral do etíope o impede de ascender à noção exata do respeito que é devido
à pessoa humana, sem o qual a liberdade individual deixa de ser uma coisa
sagrada.
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Desejo para minha raça, onde quer que ela viva e se governe a si mesma,
que rompa com os costumes arbitrários, com o desprezo sistemático pelas
leis e pela liberdade, com o desprezo pelas formas jurídicas e pela justiça
distributiva. Esses são assuntos soberanamente respeitáveis, pois formam a
coroa prática do edifício moral que a civilização moderna ergue laboriosa e
gloriosamente sobre as ruínas acumuladas das ideias medievais.
É especialmente do Haiti que o exemplo deve partir. Os haitianos negros
já não demonstraram a mais bela inteligência e a energia mais brilhante? Eles
logo perceberão, estadistas ou escritores, jovens ou velhos, que a
regeneração do sangue africano não estará completa até que sejamos tão
respeitosos com a liberdade e os direitos dos outros quanto o somos em
relação à nossa própria liberdade e aos nossos direitos. Pois daí surgirá para
o etíope aquela auréola que embeleza nossa testa e os transfigura, o esplendor
da dignidade moral, a única nobreza natural que eleva e iguala todos os
homens e todas as raças.
Digna e orgulhosa, inteligente e trabalhadora, deixem-na crescer,
prosperar e elevar-se de forma constante, de progresso em progresso, esta
raça negra tão cheia de vigor e de generosa vitalidade! Para ajudá-la em sua
ascensão, nunca serão poucos os trabalhadores nem insuficiente a devoção.
Este livro é a minha humilde e respeitosa oferenda à raça em um espírito
religioso. Algum dia, outros o farão ainda melhor, mas não com mais paixão
por sua recuperação e sua glória do que aquela que tenho.

A. FIRMIN.
Paris, 11 de maio de 1885.

A antropologia, sua importância,


suas definições, seu campo.
‘πάντων χρημάτων μέτρον’ ἄνθρωπον εἶναι (Protágoras)
[O homem é a medida de todas as coisas]

Conhece-te a ti mesmo, Thales e depois Sócrates, que tão


alegremente se apropriou deste apotegma, chegaram mais alto do
que talvez imaginassem. Eles pensavam que estavam apenas
proferindo um pensamento moral, e estabeleceram a lei do
progresso humano.
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O conhecimento de si mesmo é, de fato, paralelo ao que se


adquire do mundo, e se o homem se conhecesse inteiramente a si
mesmo, só chegaria a esta altura de visão depois de ter esgotado o
estudo de tudo o que está fora de si. (Jules Baissac).
Há no homem um sentimento tão vivo e tão claro de sua
excelência acima dos animais, que é em vão que se finge
obscurecê-lo, por pequenos raciocínios e pequenas histórias vãs e
falsas. (Nicole).

I. IMPORTÂNCIA DA ANTROPOLOGIA.

Desde Bacon, cujo tratado De augmentatis et dignitate scientiarum é uma


primeira tentativa de sistematização e classificação das ciências, a mente
humana, sempre ansiosa em regular suas conquistas, não deixou de
direcionar seus esforços para uma ordenação lógica dos diferentes ramos do
conhecimento, a fim de formar um todo harmonioso, no qual os sucessivos
graus desta grande escada luminosa que, como na visão de Jacó, alcança da
terra ao céu, e com seus raios abraça o universo e o homem, o espaço e o
pensamento, são metodicamente indicados. A ciência!, é de fato o deus
desconhecido a quem a humanidade muitas vezes obedece sem o saber, e
cujo culto cresce diariamente, governando inteligências, subjugando mentes,
submetendo os corações e dominando a razão. Os grandes trabalhadores da
ideia vem lhe oferecer sacrifício, cada um por sua vez. Há muita disputa
sobre o privilégio de codificar as grandes leis pelas quais ela se manifesta.
Bacon depois de Aristóteles; depois de Bacon, a Enciclopédia, Bentham3,
Ampère4, Charma5, Augusto Comte6, Herbert Spencer7, e tantos outros que
brilham no caminho da humanidade, empreenderam este trabalho que é ainda
mais difícil porque sua execução pressupõe um conhecimento profundo e
universal.
Sem nos determos a apreciar o resultado mais ou menos notável
alcançado por cada um, ou a discutir os princípios de hierarquia adotados por
uns e contrariados por outros, digamos que em todos os ramos que formam
a árvore da ciência, a antropologia, nos últimos trinta anos, tem sido o estudo

3 Ensaio sobre a classificação da arte e da ciência, 1823.


4 Ensaio sobre a filosofia da ciência. Exposição de uma nova classificação. 1834.
5 Curso de filosofia positiva, 1834-1842.
6 Uma nova classificação das ciências, 1850.
7 Classificação das ciências.
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que mais atrai a mente pesquisadora, ávida por resolver o grande problema
da origem, da natureza do homem e do lugar que ele ocupa na criação.
Por outro lado, o assunto é digno daquela emulação em que vemos todas
as inteligências de elite tentando encontrar uma solução, sem que a
controvérsia chegue ao fim; sem que os mais perspicazes ou os mais cultos
tenham se deparado com tal exposição lógica, tal demonstração clara, que o
bom senso esteja em conformidade com as deduções científicas, apontando
finalmente aquela verdade pela qual estamos sedentos, aquela luz que
ansiamos. Isto porque se trata do homem: o ser vaidoso, ondulante e
diversificado de Montaigne, o junco pensante de Pascal, o primata do
Professor Broca. Estudar o homem, seja qual for o objetivo e o ponto de vista
em que nos situemos, como naturalista ou como filósofo, é abraçar o
conjunto das características que constituem o ser humano.
E quantas questões diferentes surgem a cada momento de investigação!
O homem é Deus e a besta reunidos em proporções indefiníveis. Se cruza o
nosso caminho com um ser punido, doente, feio, deformado, acrescentando
a essas desgraças da natureza o horror da depravação moral, covarde e
impuro, cínico e rastejante, pronto para morder o pé que ele lambe e beija,
encontrando prazer na sujeira e alegria feroz na perpetração do crime; e que
um pouco mais adiante, nos encontremos diante de um homem sábio que se
sacrifica para o triunfo da verdade e a melhoria de seus semelhantes, belos e
fortes, gentis e humildes, lutando contra a adversidade com a paciência
inabalável e a constância dos justos, será que podemos imaginar que eles são
da mesma espécie, da mesma família? No entanto, é este contraste que torna
o homem grande. Ele pode descer ao abismo da mais profunda ignorância e
chafurdar na lama do vício, mas também pode elevar-se às alturas luminosas
do verdadeiro, do bom e do belo.
Desde Antínoo, cuja beleza brilha, até Térsites e sua feiura espantosa,
desde Jesus, cuja bondade perdoa, até Judas, cuja traição horroriza, desde
Humboldt até o cretino de Auvergne, desde Toussaint-Louverture até o
negro embrutecido, parece haver uma distância intransponível; mas, na
verdade, não há solução de continuidade entre eles: tudo harmoniza e tudo
concorre em proclamar a dignidade da espécie humana colocada tão abaixo
e ainda capaz de subir tão alto. Certamente, seja o homem um animal, um
primata bípede, ele será sempre um animal privilegiado, dotado de um
espírito superior, do qual fala o poeta dos Metamorfoses [Ovídio].

Sanctius his animal mentisque capacius altae,


[E enquanto outros animais contemplam inclinados para a terra, aos homens ele deu altivo rosto e
ordenou que o céu fitassem e erguessem, eretos, a face para as estrelas]
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A antropologia, chamada a estudar tal ser, assume uma real importância


entre as outras ciências. Esta ciência, nascida ontem, recebeu, desde o início,
um impulso tão vigoroso que parece já ter anos, sobrecarregada como está
com fórmulas, doutrinas, métodos independentes, oferecendo juntos um
aparelho imponente, mas muito difícil de manejar. Todas as demais ciências
se convertem de maneira gradual em suas tributárias. O antropólogo iniciante
que queira ser indiscutivelmente competente estará obrigado a aprender
todos os tipos de estudos e a passar por todas as esferas do conhecimento,
sem omitir nenhuma de suas partes.
Nunca um estudo foi tão complexo, com tamanha necessidade de
raciocínio sobre todos os temas relacionados com o espírito ou a matéria.
Deve-se considerar o mundo e o pensamento, o fenômeno e o númeno, de
acordo com a terminologia de Kant. Isto não é algo que todos possam fazer,
e mais de um antropólogo dogmático retrocederia diante do trabalho se
estivesse suficientemente consciente das condições intelectuais necessárias
para apoiar adequadamente o papel que almeja. O objetivo principal da
ciência, no entanto, merece este nobre esforço, mesmo que fosse necessário
refazer sua educação científica, ampliar sua base, talvez ao custo de
renunciar a uma posição superior em alguma especialidade. É sobretudo na
antropologia que devemos ter cuidado com esta especialização exclusiva,
que estreita os horizontes da inteligência e a torna incapaz de considerar os
objetos em todos os seus aspectos.
Mas será possível para um só homem, em nossa época de trabalho e
iniciativa, em que as grandes divisões da ciência estão sendo subdivididas
diariamente, abraçar todas as noções científicas e chegar a uma concepção
suficientemente clara de cada uma delas? Certamente que não. Um Pico della
Mirandola, como já foi repetido muitas vezes, é um fenômeno impossível
nos dias de hoje. É necessário, portanto, a fim de evitar uma erudição
dispersiva e paralisante, procurar as divisões científicas mais indispensáveis
para colocar o antropólogo em condições de racionalizar seus estudos
pessoais. Talvez desta forma seja encontrado um método seguro e luminoso
por meio do qual o objetivo proposto possa ser alcançado.

II. DEFINIÇÕES.

Aqui surge naturalmente a seguinte questão: Qual é o conhecimento que


contribui para a formação de dados antropológicos? Cada um responderá de
acordo com o ponto de vista a partir do qual considera a ciência e, neste
ponto, estamos longe de um acordo.
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Filósofos e cientistas têm disputado o campo da antropologia. Os


primeiros queriam fazer dela uma ciência filosófica, e os outros uma ciência
puramente biológica ou natural. Isto deu origem a definições que se cruzam
ou se fundem.
Entre os filósofos, é especialmente em Kant que encontramos pela
primeira vez uma definição sistemática, rompendo positivamente com a ideia
que os estudiosos têm desde Blumenbach. É bem conhecido que o sábio
filósofo de Koenigsberg escreveu um tratado sobre Antropologia
Pragmática; mas é em outra de suas obras que ele define o que ele quer dizer
com esta expressão. “A física”, diz ele, “tem de fato, além de sua parte
empírica, sua parte racional.” O mesmo é válido para a ética. Mas a parte
empírica da ética poderia ser chamada de antropologia prática, e a parte
racional poderia ser chamada de moralidade89. Esta divisão pode parecer
estranha, mas se enquadra perfeitamente no método geral do eminente
filósofo que distinguia em toda noção que pudesse resistir à crítica da razão,
do objetivo e do subjetivo, do realidade e do pensamento.
A escola kantiana mantém há muito tempo a mesma definição e anexou
as mesmas ideias às mesmas palavras, exceto pelas mudanças de forma que
o kantismo sofreu ao passar do mestre a Hegel. Este, que arruinou o prestígio
das especulações metafísicas, forçou a controvérsia sobre as noções mais
claras, tocou em todos os ramos do conhecimento humano em uma série de
obras algo confusas, mas dos quais às vezes surgem clarões brilhantes,
através do labirinto de uma terminologia demasiado arbitrária para ser
sempre sábia.
Assim, a antropologia, segundo Hegel, é a ciência que considera as
qualidades do espírito ainda engajado na natureza e ligado ao mundo
material por seu invólucro corporal, uma união que é o primeiro momento
ou, mais claramente, a primeira determinação do ser humano! "Este estado
fundamental do homem, se podemos nos expressar desta forma, diz ele, é
objeto de antropologia10". Aqui podemos sentir que a definição de Kant
passou do idealismo transcendental de Fichte para a filosofia da identidade
absoluta de Schelling para chegar ao idealismo absoluto, coroado pela
Filosofia do Espírito de Hegel.
Este ‘envelope’ corpóreo do espírito dificilmente seria aceito por
espiritualistas ortodoxos. Duvido muito que Janet ou o Professor Caro
alguma vez consentiriam em abrir espaço para isso em suas doutrinas

8 Kant, Fondements de la métaphysique des mœurs, traduzido por Tissot.


9 Esta palavra é aqui mais exata do que prática; seu aspecto difícil por si só deve ter
levado o tradutor a usar este último termo muito menos expressivo.
10 Diese - wann wir so sagen dürfen - Grundlage des Menschenmaeht den Gegenstand
der Anthropologie. (Hegel, A Filosofia do Espírito).
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filosóficas; pois isso já seria distrair-se demasiadamente nesta caminhada


através de entidades e essências. O que certamente poderia nos surpreender
é que Kant e sua escola ignoraram o trabalho de seus estudiosos
contemporâneos sobre antropologia, tal como tem sido constituída desde o
final do século passado. Sua Antropologia Pragmática data de 1798. Mas
bem, em 1764, Daubenton publicou seu belo trabalho Sur les différences de
positions du trou occipital dans l'homme et les animaux; depois vieram as
dissertações de Camper 11Soemmering12, a tese inaugural de Blumenbach13,
que, juntamente com o discurso de Buffon sobre L'homme et les variétés
humaines publicado em 1749, deram consagração suficiente à ciência
antropológica para que ela se distinguisse claramente de outros
conhecimentos humanos.
É dessa maneira, a saber, intencionalmente, que Kant adotou o título sob
o qual expôs suas ideias sobre a moralidade prática. Ele não só tinha dado à
palavra antropologia um significado e uma definição diferentes daqueles que
os estudiosos lhe atribuíram; mas ele também discutiu a propriedade deste
termo para o estudo natural do homem. "No que diz respeito", disse ele, "aos
simples crânios e sua forma, que é a base de sua figura, por exemplo, o crânio
dos negros, o dos calmucos, o dos índios do Mar do Sul, etc., tal como
Camper e especialmente Blumenbach os descreveram, são antes de tudo o
objeto da geografia física do que da antropologia prática.”14
Hegel, que meramente apresenta as ideias do mestre de uma nova forma,
passa ligeiramente sobre a questão das raças humanas, retendo, na sua
essência, a opinião de Kant. “A diferença das raças,” diz ele, “ainda é uma
diferença natural, ou seja, uma diferença que se relaciona com a alma natural.
Como tal, esta está relacionada com as diferenças geográficas da terra onde
os homens se reúnem em grandes massas.”15
Mas, por outro lado, os estudiosos, despreocupados com as opiniões do
grande filósofo, continuaram a trabalhar em suas próprias esferas e, com
Blumenbach, persistiram em considerar a palavra antropologia como
sinônimo da história natural do homem. Uma vez aceito e estabelecido este
significado, os naturalistas reivindicaram, como era de se esperar, o
privilégio exclusivo de lidar com a ciência da antropologia em preferência a
todos os outros estudiosos. Nada mais racional à primeira vista. Mas, ao
examinarmos mais de perto, descobrimos um fato incontestável: o método

11 Camper, Dissert, Sobre as variedades naturais de fisionomia nas raças humanas


(1768).
12 Sœmmering, Ueber die Körperliche Verschiedenheit des Negersvon Europoer,
1780.
13 Blumenbach, De generis humani varielate nativa.
14 Kant, Antropologia (traduzido por Tissot).
15 Hegel, Filosofia do Espírito (traduzido pela Dra. Vera).
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imposto à história natural, quando se trata de estudar minerais, plantas e


animais inferiores ao homem, nem sempre pode ser adaptado ao estudo
completo deste último desde o ponto de vista da criação. Enquanto a
conformação dos seres inferiores tende essencialmente para a realização da
vida vegetativa e animal, a do homem tende para a vida social, que sempre
alcança e constitui a sua própria história.
Esta distinção é tão significativa que, desde a primeira tentativa de
sistematizar a ciência, manifestou-se um certo cisma entre os próprios
naturalistas. Era necessário saber se o homem, assim definido, deveria, no
entanto, entrar no quadro das classificações geralmente adotadas para toda a
série zoológica, ou se deveria, ao invés disso, ser estabelecida uma categoria
especial.
Lineu, que primeiro incluiu o homem na série animal, classificou-o entre
os primatas, ao lado dos macacos, quirópteros e preguiçosos. Que
acontecimento! O rei da criação assim colocado entre os animais mais feios
e menos graciosos! Alguns naturalistas, humilhados por verem suas espécies
agrupadas em tão bruta e vil companhia, revoltaram-se contra a taxonomia
do grande naturalista sueco.16 Blumenbach17 logo dividiu a ordem dos
primatas em bímanos e quadrímanos e colocou o homem na primeira
categoria, isolando-o dos outros animais por toda a distância de uma ordem.
Lacépède,18 cuja alma elevada e a amplitude de sua mente deveriam
naturalmente conduzir a ver em si mesmo um modelo humano colocado tão
longe e tão acima dos símios, adotou a classificação do eminente naturalista
alemão. Quando a esta escola foi acrescentado o peso e a autoridade da
opinião do imortal Cuvier,19 cuja personalidade elevada domina toda a
história da ciência natural na primeira metade deste século, tudo parecia
inclinar-se no sentido de uma distinção ordinária entre o homem e os outros
animais que circulam na superfície do globo e no imenso oceano.
O que impressionou os cientistas que tentaram isolar a espécie humana
do resto do reino animal é a grande sociabilidade do homem e o resultado
que dela se adquire. "O homem somente é o homem", escreveu Buffon,
"porque ele soube se unir ao homem”20

16 Entretanto, não se deve acreditar que Linnaeus quisesse desconsiderar a dignidade


do homem. Na introdução ao Systema Naturœ ele escreveu, falando do homem:
Finis creationis telluris est gloria Dei ex opère Naturæ per hominem solum [A
criação da Terra é a glória de Deus, tal como somente o homem o vê pelas obras
das Natureza]. Uma expressão de entusiasmo visível na qual ele torna o homem
maior do que o resto da criação.
17 Manual de história natural.
18 História natural do homem.
19 Tabela elementar da história natural dos animais.
20 Natureza dos animais.
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Esta necessidade da sociedade é encontrada em seu desenvolvimento


mais pleno somente na humanidade. Outros animais, sem dúvida, andam em
bandos, e às vezes impulsionam o sentimento de solidariedade a ponto de se
sacrificarem pela salvação de sua comunidade, exibindo uma energia que
nos surpreende; mas quem jamais pensará em comparar esses movimentos
instintivos e acidentais com a constância racional que o homem investe na
constituição da sociedade, mesmo através das lutas mais sangrentas?
Uma ideia altamente filosófica domina todas as outras considerações.
Cada ser tem condições fora das quais lhe é impossível cumprir seu destino,
ou seja, desenvolver toda a gama de aptidões com as quais é dotado. Os
indivíduos podem ser autossuficientes em toda a escala da criação, desde que
tenham energia suficiente para lutar contra as dificuldades materiais do
ambiente em que vivem. Mas o homem nunca é autossuficiente. O orgulho
ou misantropia depressiva que às vezes o inspira com a ideia deste
isolamento nunca é outra coisa senão um caso patológico que sempre revela
algum tipo de lesão no organismo. É porque o homem precisa do homem
para o aprimoramento e o estudo de sua própria personalidade. Goethe,
combinando a ciência do naturalista e do filósofo ao amplo entendimento do
poeta, disse em algum lugar:

O ser humano está apenas na raça humana, apenas


Das Leben lernt Jedem era er sei!
[O homem se reconhece somente no homem, somente a vida ensina a todos o que ele é]

Nada poderia ser mais verdadeiro. O homem aprende a conhecer a si


mesmo somente em seu semelhante, e somente através das relações diárias
cada um aprende o seu próprio valor. Mas voltemos às discussões dos
naturalistas, que se esforçam em estabelecer o lugar do homem nas
classificações zoológicas.
A autoridade de Cuvier repousava em títulos realmente sólidos. O
verdadeiro criador da anatomia comparativa, que só foi vagamente estudado
nas obras de Vic d'Azir e Daubenton, obras que não são muito notáveis se
considerarmos as importantes aquisições já feitas à ciência por Aristóteles,
Cuvier era o mais indicado a elucidar a questão de que o homem mereceria
um lugar a parte na série zoológica. Dessa maneira, suas opiniões e as de sua
escola logo se tornaram a expressão da ortodoxia científica.
Mas não apenas isso! Isidore Geoffroy Saint-Hilaire, seguindo os passos
de seu ilustre pai no cultivo de uma ciência cujos traços superam a qualquer
outra, ainda que mantendo a independência de espírito que caracteriza o
verdadeiro cientista, vai mais longe que a escola clássica ao propor o
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reconhecimento de um reino humano. Aqui, não só o homem está separado


dos animais superiores, como ele também ocupa um lugar especial na
criação. Ele supera a tudo em dignidade e preeminência. Hollard, Pruner-
Bey, M. de Quatrefages, para mencionar apenas alguns nomes, juntaram-se
à opinião do autor da teoria da variabilidade limitada das espécies. Mas tudo
em excesso se debilita. Os estudiosos que se declararam partidários do reino
humano não poderiam negar que o homem seja um animal sujeito às mesmas
exigências naturais que outros animais, tanto por suas funções orgânicas
quanto por sua conformação anatômica. Nesta teoria, a palavra reino teve
que perder o significado ordinário que possui na história natural. O terreno
sobre o qual Blumenbach e Cuvier tinham se colocado foi assim perdido de
vista, e somente as altas qualidades intelectuais e morais que nos fazem uma
espécie única foram consideradas.
De fato, Isidore Geoffroy Saint-Hilaire, reconhecendo que as diferenças
taxonômicas que separam o grupo humano dos grupos símios são apenas
diferenças familiares e não ordinais, voltava, intencionalmente ou não, ao
rebanho dos naturalistas que haviam adotado, com mais ou menos
modificações, o sistema de classificação de Linnaeus, como Bory de Saint-
Vincent, Lesson, etc. O resultado foi uma espécie de compromisso pelo qual
cada opinião permaneceu dona de seu próprio campo, negligenciando o
restante. Lacenaire, chamado a dizer suas palavras ao público que o ouvia
com um encanto renovado, finalmente formulou esta transação: "Sim, por
sua forma, por sua estrutura, pelo conjunto de suas disposições orgânicas",
disse ele, "o homem é um símio; mas por sua inteligência, pelas criações de
seu pensamento, o homem é um deus." O professor erudito saiu assim de
uma posição delicada com habilidade incomum; mas ali a luta não terminou
ali.
A escola ortodoxa havia obtido a sua principal força do crédito das
doutrinas espiritualistas que reinavam supremas sobre as mentes no início do
século. O idealismo alemão e o racionalismo francês levaram a isso. Mas não
foi assim por muito tempo. Logo a psicologia, até então confinada dentro dos
limites da metafísica, foi invadida por uma tropa de pessoas profanas. De
todos os lados se quis controlar os pensamentos e ações humanas, tentando
explicá-los por impulsos fisiológicos. A química deu as mãos à fisiologia, o
pensamento livre deu as mãos à ciência, e estudiosos ilustres foram vistos
negando categoricamente a origem divina e a preeminência da inteligência
humana, e considerando-a como o resultado de uma mera função do cérebro.
A palavra foi finalmente pronunciada: Ohne Phosphorus, kein Gedanke [sem
fósforo, não se pensa], exclamou Moleschott. Toda a geração científica, cuja
primeira eflorescência remonta a 1850, se juntou à nova escola. O fósforo
destronou o espírito divino e recebeu toda a honra do pensamento. Em vão,
invocou-se o materialismo.
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Quando Flammarion, um dos poucos estudiosos espiritualistas desses


dias, escreveu seu livro de batalha, Deus na Natureza, sua voz, embora
imbuída de uma maravilhosa unção, tão clara quanto a linguagem de Platão,
tinha menos eco que a de Louis Büchner. A força ou a energia foi
reconhecida como parte integrante da matéria. O que tinha sido considerado
uma manifestação divina, parecia ser um simples fenômeno orgânico, de
nutrição ou desassimilação de tecidos, excitação nervosa ou depressão! A
ingratidão humana esqueceu todos os belos discursos que nasceram sob a
inspiração do mens agitat molem [o espírito move a matéria] e o
espiritualismo teve o seu duelo. Era o fim da história. As mentes cansadas
de controvérsias e saciadas de especulações se refugiaram no positivismo de
Auguste Comte ou no evolucionismo de Herbert Spencer, quando puderam
escapar da filosofia do inconsciente de Hartmann. Grandes lutadores, como
Paul Janet, Renouvier, Saisset, especialmente o Professor Caro, levaram sua
coragem tão longe quanto as suas convicções, têm lutado e continuam
lutando; mas a corrente não pode ser revertida.
Qualquer evolução filosófica inevitavelmente leva a uma evolução
apropriada nas teorias científicas, assim como estas atuam lentamente na
desintegração e transformação das ideias atuais. A influência das teorias
predominantes não precisa, portanto, ser explicada. O homem é agora
geralmente considerado como um animal de algum tipo. Para a maioria dos
estudiosos, ele difere dos outros animais apenas por alguns graus de
superioridade. Nas melhores classificações aceitas, ele é colocado na
primeira família da ordem dos primatas. Ele nasce, vive e morre, é
condenado ao trabalho e passa por todas as transformações impostas pelas
leis naturais, de acordo com as exigências dos ambientes em que vive. A luz
da inteligência ainda brilha em sua testa; não se trata mais daquela antiga
coroa, mas do modesto atributo de um rei destronado que se tornou o
primeiro entre seus iguais na república zoológica.
Este pequeno percurso através da trama da filosofia foi necessário para
nos ajudar a entender as definições que os naturalistas dão à antropologia.
Elas geralmente são percebidas do ponto de vista que adotaram ao considerar
o assunto.
"A antropologia é o ramo da história natural que trata do homem e das
raças humanas," diz Topinard.21 De acordo com o sábio professor, esta
definição abarca as seguintes:

21 Topinard, Antropologia.
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1° "Antropologia é a ciência cujo objeto é o estudo do grupo humano,


considerado em seu conjunto, em seus detalhes e em suas relações
com o resto da natureza." (Broca)
2° "A antropologia é uma ciência pura e concreta cujo objetivo é o
conhecimento completo do grupo humano considerado: 1) em cada
uma das quatro divisões típicas (variedade, raça, espécie, se aplicável)
comparadas entre si e com seus respectivos ambientes; 2) em seu
conjunto, em suas relações com o resto da fauna." (Bertillon).
3° "A antropologia é a história natural do homem feita
monograficamente, como um zoólogo estudaria um animal." (De
Quatrefages).

Mas para aqueles de nós que pensam que a história natural do homem, de
qualquer ponto de vista que nos colocamos, nunca será bem feita se o
estudarmos exatamente como estudaríamos outro animal, consideraremos a
antropologia como "o estudo do homem do ponto de vista físico, intelectual
e moral, através das diferentes raças que constituem a espécie humana". Esta
definição difere sensivelmente daquelas dos estudiosos corretamente
considerados como os mestres da ciência; entretanto, apesar da grande
autoridade de sua opinião, eu não achei que deveria concordar com ela. Eu
não considero que a minha seja a melhor; mas ela responde admiravelmente
ao plano que pretendo seguir no decorrer deste trabalho, e também torna
possível prever que conhecimento eu acredito ser indispensável ao
antropólogo.
Divido estes conhecimentos em quatro grandes classes, seguindo na
medida do possível a hierarquia adotada por Auguste Comte e a escola
positivista. Em primeiro lugar, nos situaremos nas ciências cosmológicas,
nas quais devemos abarcar a geologia, física, química inorgânica, geografia
e etnografia.
Virão depois as ciências biológicas, que reúnem a anatomia, química
orgânica, fisiologia, botânica, zoologia, paleontologia e etnografia.
Depois dessas há as ciências sociológicas, incluindo história,
arqueologia, linguística, economia política, estatística e demografia.
Finalmente, as ciências filosóficas propriamente ditas, incluindo
jurisprudência, teologia, psicologia, estética e moral.
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III. CAMPO DA ANTROPOLOGIA.

Algumas pessoas certamente pensarão que se pode lidar facilmente com


a antropologia sem ter que estudar em particular todas as ciências das quais
tentamos esboçar uma classificação rápida. Mas isto seria um erro muito
grave. Sem esta preparação preliminar, a melhor mente sempre carecerá de
certas bases de julgamento, na ausência das quais é incapaz de formar uma
opinião pessoal sobre as questões mais discutidas e importantes. É preciso
dizê-lo? Mesmo armado com este conhecimento geral, às vezes ficar-se-ia
bastante embaraçado se não se seguissem certas subdivisões até sua
conclusão científica final. Talvez eu tivesse acrescentado as ciências
matemáticas se não achasse que, para encontrar um método de investigação
suficientemente claro, não há necessidade de aplicar à craniometria os
cálculos trigonométricos propostos pelo Dr. Broca. Pois dificuldades
acrescentadas a outras dificuldades não são suficientes para suavizá-las; é o
efeito exatamente oposto que produzem. Entre as matemáticas aplicadas, as
noções de mecânica, por exemplo, podem ser necessárias para quem estuda
a organização do corpo humano, quando se trata de realizar certos
movimentos de locomoção ou de coreografia que parecem incompatíveis
com a postura ereta, própria da espécie humana. Ao caminhar, correr e
dançar, os braços executam movimentos de equilíbrio inteligentes sem
qualquer suspeita disso. Entretanto, os anatomistas mais ilustres falam deles
com a maior sobriedade. Devemos mostrar por isso maior moderação, já que
o propósito não é observar as leis do equilíbrio e sim descrever as
características diferenciais das raças ou tipos.
Deve-se notar também que a maioria dos etnógrafos, em vez de
considerar a etnografia como o estudo descritivo dos povos espalhados pela
superfície do globo, fazem dela uma ciência geral da humanidade. Nesta
visão, é sua ciência que engloba a antropologia, que é então relegada para
segundo plano. Nas palavras de Castaing, "a antropologia quebraria de todos
os lados se tentasse abranger apenas um quarto do que a etnografia abraça
sem restrições.”22 "É, entretanto, culpa dos etnógrafos que as noções mais
lógicas sejam assim confundidas e anuladas? Não é antes culpa dos
antropólogos? A Sra. Clémence Royer23 afirmou-o bem quando disse que a
Sociedade Antropológica tem uma tendência à esqueletomania, em vez de
se elevar aos grandes objetivos da ciência. “De fato", diz ela, "a atual escola
de antropologia deixa de fora muito do homem moral e intelectual; ela se
preocupa muito exclusivamente com o homem físico."

22 Congresso Internacional de Ciências Etnográficas, realizado em Paris em 1878, p.


441.
23 Ibid, p. 438.
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De minha parte, afirmo que o antropólogo deve estudar o homem não


apenas do ponto de vista físico, mas também do ponto de vista intelectual e
moral, situando a etnografia em seu verdadeiro lugar. Eu a considero um
ramo das ciências cosmológicas, pois é infalivelmente encontrada assim que
se lida com o estudo do universo. Foi o que ocorreu ao ilustre Alexander de
Humboldt em seu Kosmos, o melhor tratado sobre cosmologia que já foi
publicado. Assim, podemos diferenciá-la da etnologia, que não se detém
apenas na simples descrição dos povos, mas também os divide em raças
distintas, estuda seus variados organismos, considera as variedades típicas,
tais como cabeças longas, pontiagudas ou arredondadas, mandíbulas
salientes ou retas; narizes aquilinos, retos ou arqueados, etc.; e, finalmente,
tenta descobrir se certas influências não resultam disso, explicando as
diversas aptidões das quais cada grupo humano parece fornecer um exemplo
particular. Em uma palavra, a etnografia, como a etimologia indica
suficientemente, é a descrição dos povos, enquanto a etnologia é o estudo
racional desses mesmos povos considerados do ponto de vista das raças. A
primeira analisa apenas as grandes linhas; o segundo examina as partes,
mede-as, compara-as e procura sistematicamente levar em conta cada
detalhe.
Todos os grandes viajantes serão etnógrafos ainda mais competentes por
terem visto e examinado as populações que visitam; mas para se tornar um
etnólogo será necessário possuir, além disso, conhecimentos anatômicos e
fisiológicos, assim como os princípios gerais da taxonomia.
Quando a etnografia e a etnologia fazem o seu trabalho, entra em cena a
antropologia. Ela compara o homem com outros animais, a fim de isolar o
objeto de seu estudo de todos os assuntos circunvizinhos; mas o que ela
estuda mais especialmente são os seguintes pontos: Qual é a verdadeira
natureza do homem? Em que grau e sob que condições ele desenvolve suas
aptidões? Podem todas as raças humanas subir ao mesmo nível intelectual e
moral? Quais delas parecem ser mais especialmente dotadas para o
desenvolvimento superior da mente, e quais são as peculiaridades orgânicas
que lhes asseguram essa superioridade? Esta é uma esfera suficientemente
vasta para ocupar com dignidade as inteligências de elite. Escusado será
dizer que, para obter um resultado sério, não será suficiente para o
antropólogo estabelecer uma hierarquia arbitrária das raças humanas ou de
suas aptidões. Ele terá primeiro que delimitar com certeza as categorias
étnicas que pretende comparar. Mas será possível uma classificação das
raças humanas com os elementos disponíveis para a ciência contemporânea,
com os quais ela é obrigada a se contentar? Isto é o que tentaremos estudar,
a fim de ter uma ideia exata da solidez dos argumentos que os naturalistas
apresentam para apoiar suas conclusões.

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