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Texto disponibilizado para uso em aula. Curso de Extensão Vozes Negras na Antropologia, UNILAB, 2021
AO HAITI
A. FIRMIN.
PREFÁCIO
os meus semelhantes da raça negra quem possa contar com a suficiente soma
de boa-vontade e paciência acumulada como a que me faltou empregar para
trabalhar, combinar e apresentar os argumentos e pesquisas da maneira que
me esforcei a fazer.
Será que consegui, em certa medida, difundir em meu livro a clareza, a
precisão, todas as atrações que cativam a mente e fazem o encanto das obras
destinadas a propagar ideias corretas, mas ainda assim disputadas e mal
compreendidas? Eu não ouso contar com isso. Eu nunca tive total confiança
em meu talento como estilista. Além disso, as condições morais em que me
encontrei, ao desenvolver a tese da igualdade das raças, certamente
exerceram sobre meu pensamento uma influência depressiva, altamente
prejudicial à elegância e especialmente à amplitude de expressão, que
sempre correspondem à boa saúde da mente, ao ardor expansivo do coração!
Aqui e ali, eu devo ter deixado escapar alguns erros. Peço ao leitor sua
total benevolência, pedindo-lhe que considere as dificuldades das perguntas
que tive que abraçar e a pressa que as circunstâncias, por assim dizer, me
impuseram. Talvez eu tenha confiado demais em minhas forças. Às vezes
me dei conta. Somente a sede pela verdade e a necessidade de luz me
sustentaram no decorrer do meu trabalho. Contudo, seja qual for o resultado
obtido, jamais me arrependerei de ter me entregado a ele.
"Nesta massa flutuante da humanidade que se volta sobre si mesma", diz
o Sr. Mason, "há um movimento ordenado". Nosso pequeno círculo é parte
de um grande círculo, e nossas mentes se satisfazem em cada instante em
que percebem uma nova verdade. A busca dessa verdade fortalece a
inteligência: assim se produz a seleção natural da mente. E enquanto alguns
se cansam e são incapazes de ir mais longe, outros avançam e se fortalecem
pelo esforço.1
Em todo caso, ao defender a tese que constitui a base deste volume, eu
estava essencialmente preocupado em justificar a gentil recepção da
Sociedade Antropológica de Paris. É uma homenagem que presto aqui a cada
um de seus membros, meus honrados colegas. Frequentemente me
contraponho à maioria dos antropólogos e às suas opiniões; entretanto,
respeito e honro infinitamente seu alto valor intelectual. Tenho o prazer de
pensar que, ao refletir sobre todos os pontos levantados por minha
controvérsia, eles se inclinarão a reformar essas opiniões, no que diz respeito
às capacidades de minha raça. Não em razão de acreditar que eu tenha
prevalecido na tarefa que me propus; mas para homens instruídos e
inteligentes é suficiente apontar uma ordem de ideias, para que a verdade que
se segue dela resplandeça em seus olhos com eloquente evidência:
Verum animo satis hœc vestigia parva sagaci Sunt 2
[esses poucos vestígios são o bastante ao ânimo sagaz]
Eu sou negro. Por outro lado, sempre considerei o culto à ciência como o
único verdadeiro, o único digno da atenção constante e devoção infinita de
todo homem que é guiado apenas pela razão livre. Como eu poderia, então,
conciliar as conclusões que parecem ser tiradas desta mesma ciência contra
as capacidades do negro com aquela veneração apaixonada e profunda que é
para mim uma necessidade imperativa do espírito? Poderia eu me abstrair da
condição de meus semelhantes e me considerar uma exceção entre outras
exceções? Sou, sem dúvidas, demasiadamente lógico em minhas concepções
para me deter nesta distinção, que é tão orgulhosa quanto ilusória e tola. Não
há diferença fundamental entre o negro africano e o negro haitiano. Nunca
consegui entender por que, quando se fala da inferioridade da raça negra, a
alusão deveria ser mais contra a primeira do que contra a segunda. Ainda que
me satisfizesse um pensamento tão falso e inepto, a realidade, que nunca
mente, me faria sentir, a cada momento, que o desprezo sistemático
professado contra os africanos me envolve inteiramente. Se o antilhano
negro dá mostras de uma inteligência superior; se ele exibe aptidões
desconhecidas de seus antepassados é porque herdou dos mesmos o primeiro
germe mental que a seleção fortificou e aumentou nele.
O Haiti deve ser utilizado para a reabilitação da África.
É com isto em mente que tenho constantemente tirado meus exemplos
apenas da República Haitiana, sempre que se tratava de provar as qualidades
morais e intelectuais da raça negra. Do negro ao mulato há muitos
cruzamentos antropológicos. Portanto, mencionei muitos nomes,
lamentando que o escopo do meu trabalho e o medo da monotonia não me
tenham permitido mencionar mais. Assim, gostaria de citar, ao lado de outros
exemplos da raça haitiana, os senhores Alfred Box, Anselin, Nelson
Desroches, Edmond Roumain, Georges Sylvain, Edmond Cantin, em suma,
um conjunto de mentes jovens e brilhantes que eu mencionaria com prazer,
se não fosse para evitar aqui a culpa em que eu estava tão tentado a cair no
próprio curso deste livro.
Mas o Haiti oferece um exemplo muito edificante em favor da raça que
se orgulha de representar entre os povos civilizados? Como provar que
possui as qualidades que são contestadas contra os negros africanos? Para
do Haiti evoluiu com espantosa rapidez, estou longe de negar que, mesmo
agora, ela precisa fazer muitos esforços para romper com certos hábitos que
provavelmente só irão paralisar seu crescimento. Quando se está atrasado,
deve-se evitar distrações ao longo do caminho.
Eu não me considero um homem corajoso, nem sábio. Para a verdade que
estou tentando defender, trago apenas minha devoção e minha boa vontade.
Mas que orgulho eu não teria se todos os negros e seus descendentes se
convencessem, pela leitura deste trabalho, que é seu dever trabalhar,
melhorar incessantemente, a fim de limpar a sua raça da imputação injusta
que há tanto tempo paira sobre ela! Como eu deveria estar feliz por ver meu
país, que amo e venero infinitamente, mesmo por causa de seus infortúnios
e seu laborioso destino, entender finalmente que tem um trabalho muito
especial e delicado a realizar, o de mostrar ao mundo inteiro que todos os
homens, negros ou brancos, são iguais em qualidades como são iguais em
direitos! Tenho uma convicção profunda: uma viva e luminosa esperança me
diz que este desejo se realizará.
Não são, além disso, as próprias leis da evolução que indicam e justificam
tal aspiração? Não é o fim inevitável de toda a sociedade humana caminhar,
perseverar no caminho da perfeição, uma vez que o impulso tenha sido dado?
Basta, portanto, libertar as forças morais, que são a alma do progresso, de
toda compressão paralisante, para que o movimento gradual e harmonioso
ocorra espontaneamente, em razão da elasticidade própria de todo organismo
social. É ainda à liberdade que todo povo jovem e vigoroso deve apelar como
um princípio de salvação. Todas as leis naturais e sociológicas estão unidas
na proclamação desta verdade.
No Haiti, como em outros lugares, a raça negra precisa de liberdade,
liberdade real, efetiva, civil e política, se quiser florescer e progredir. Se a
escravidão nos causa horror, o despotismo também deve parecer horrível.
Pois o despotismo nada mais é do que uma escravidão moral: permite a
liberdade de movimento aos pés e às mãos; mas algema e garroteia a alma
humana ao sufocar o pensamento. Agora, é indispensável lembrar que é a
alma, ou seja, a força da inteligência e do espírito, que interiormente traz a
transformação, a redenção e a elevação de todas as raças, sob o impulso da
vontade livre, iluminada, livre de todas as restrições tirânicas!
Desde o senhor Gobineau, cego pela paixão, ao senhor Bonneau, tantas
vezes imparcial, tem se repetido com demasiada frequência que "o negro não
entende a ideia de governo sem despotismo"; tem-se abusado dessa opinião
- corroborada por exemplos infelizes - para declarar que a inferioridade
moral do etíope o impede de ascender à noção exata do respeito que é devido
à pessoa humana, sem o qual a liberdade individual deixa de ser uma coisa
sagrada.
Tradução preliminar de Messias Basques – SEM REVISÃO. NÃO CITAR EM OUTRAS PUBLICAÇÕES.
Texto disponibilizado para uso em aula. Curso de Extensão Vozes Negras na Antropologia, UNILAB, 2021
Desejo para minha raça, onde quer que ela viva e se governe a si mesma,
que rompa com os costumes arbitrários, com o desprezo sistemático pelas
leis e pela liberdade, com o desprezo pelas formas jurídicas e pela justiça
distributiva. Esses são assuntos soberanamente respeitáveis, pois formam a
coroa prática do edifício moral que a civilização moderna ergue laboriosa e
gloriosamente sobre as ruínas acumuladas das ideias medievais.
É especialmente do Haiti que o exemplo deve partir. Os haitianos negros
já não demonstraram a mais bela inteligência e a energia mais brilhante? Eles
logo perceberão, estadistas ou escritores, jovens ou velhos, que a
regeneração do sangue africano não estará completa até que sejamos tão
respeitosos com a liberdade e os direitos dos outros quanto o somos em
relação à nossa própria liberdade e aos nossos direitos. Pois daí surgirá para
o etíope aquela auréola que embeleza nossa testa e os transfigura, o esplendor
da dignidade moral, a única nobreza natural que eleva e iguala todos os
homens e todas as raças.
Digna e orgulhosa, inteligente e trabalhadora, deixem-na crescer,
prosperar e elevar-se de forma constante, de progresso em progresso, esta
raça negra tão cheia de vigor e de generosa vitalidade! Para ajudá-la em sua
ascensão, nunca serão poucos os trabalhadores nem insuficiente a devoção.
Este livro é a minha humilde e respeitosa oferenda à raça em um espírito
religioso. Algum dia, outros o farão ainda melhor, mas não com mais paixão
por sua recuperação e sua glória do que aquela que tenho.
A. FIRMIN.
Paris, 11 de maio de 1885.
I. IMPORTÂNCIA DA ANTROPOLOGIA.
que mais atrai a mente pesquisadora, ávida por resolver o grande problema
da origem, da natureza do homem e do lugar que ele ocupa na criação.
Por outro lado, o assunto é digno daquela emulação em que vemos todas
as inteligências de elite tentando encontrar uma solução, sem que a
controvérsia chegue ao fim; sem que os mais perspicazes ou os mais cultos
tenham se deparado com tal exposição lógica, tal demonstração clara, que o
bom senso esteja em conformidade com as deduções científicas, apontando
finalmente aquela verdade pela qual estamos sedentos, aquela luz que
ansiamos. Isto porque se trata do homem: o ser vaidoso, ondulante e
diversificado de Montaigne, o junco pensante de Pascal, o primata do
Professor Broca. Estudar o homem, seja qual for o objetivo e o ponto de vista
em que nos situemos, como naturalista ou como filósofo, é abraçar o
conjunto das características que constituem o ser humano.
E quantas questões diferentes surgem a cada momento de investigação!
O homem é Deus e a besta reunidos em proporções indefiníveis. Se cruza o
nosso caminho com um ser punido, doente, feio, deformado, acrescentando
a essas desgraças da natureza o horror da depravação moral, covarde e
impuro, cínico e rastejante, pronto para morder o pé que ele lambe e beija,
encontrando prazer na sujeira e alegria feroz na perpetração do crime; e que
um pouco mais adiante, nos encontremos diante de um homem sábio que se
sacrifica para o triunfo da verdade e a melhoria de seus semelhantes, belos e
fortes, gentis e humildes, lutando contra a adversidade com a paciência
inabalável e a constância dos justos, será que podemos imaginar que eles são
da mesma espécie, da mesma família? No entanto, é este contraste que torna
o homem grande. Ele pode descer ao abismo da mais profunda ignorância e
chafurdar na lama do vício, mas também pode elevar-se às alturas luminosas
do verdadeiro, do bom e do belo.
Desde Antínoo, cuja beleza brilha, até Térsites e sua feiura espantosa,
desde Jesus, cuja bondade perdoa, até Judas, cuja traição horroriza, desde
Humboldt até o cretino de Auvergne, desde Toussaint-Louverture até o
negro embrutecido, parece haver uma distância intransponível; mas, na
verdade, não há solução de continuidade entre eles: tudo harmoniza e tudo
concorre em proclamar a dignidade da espécie humana colocada tão abaixo
e ainda capaz de subir tão alto. Certamente, seja o homem um animal, um
primata bípede, ele será sempre um animal privilegiado, dotado de um
espírito superior, do qual fala o poeta dos Metamorfoses [Ovídio].
II. DEFINIÇÕES.
21 Topinard, Antropologia.
Tradução preliminar de Messias Basques – SEM REVISÃO. NÃO CITAR EM OUTRAS PUBLICAÇÕES.
Texto disponibilizado para uso em aula. Curso de Extensão Vozes Negras na Antropologia, UNILAB, 2021
Mas para aqueles de nós que pensam que a história natural do homem, de
qualquer ponto de vista que nos colocamos, nunca será bem feita se o
estudarmos exatamente como estudaríamos outro animal, consideraremos a
antropologia como "o estudo do homem do ponto de vista físico, intelectual
e moral, através das diferentes raças que constituem a espécie humana". Esta
definição difere sensivelmente daquelas dos estudiosos corretamente
considerados como os mestres da ciência; entretanto, apesar da grande
autoridade de sua opinião, eu não achei que deveria concordar com ela. Eu
não considero que a minha seja a melhor; mas ela responde admiravelmente
ao plano que pretendo seguir no decorrer deste trabalho, e também torna
possível prever que conhecimento eu acredito ser indispensável ao
antropólogo.
Divido estes conhecimentos em quatro grandes classes, seguindo na
medida do possível a hierarquia adotada por Auguste Comte e a escola
positivista. Em primeiro lugar, nos situaremos nas ciências cosmológicas,
nas quais devemos abarcar a geologia, física, química inorgânica, geografia
e etnografia.
Virão depois as ciências biológicas, que reúnem a anatomia, química
orgânica, fisiologia, botânica, zoologia, paleontologia e etnografia.
Depois dessas há as ciências sociológicas, incluindo história,
arqueologia, linguística, economia política, estatística e demografia.
Finalmente, as ciências filosóficas propriamente ditas, incluindo
jurisprudência, teologia, psicologia, estética e moral.
Tradução preliminar de Messias Basques – SEM REVISÃO. NÃO CITAR EM OUTRAS PUBLICAÇÕES.
Texto disponibilizado para uso em aula. Curso de Extensão Vozes Negras na Antropologia, UNILAB, 2021