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A culinária da política:
coxinha, caviar e mortadela
RENATO NUNES BITTENCOURT*

Resumo:
O artigo analisa de que maneira algumas iguarias tradicionais
foram simbolicamente apropriadas pelo moderno jargão político
para se referir a posicionamentos, tipologias ou espectros,
desnudando alguns dos seus aspectos fundamentais e suas bases
ideológicas.
Palavras-chave: Simbologia; Imaginário Político;
Reacionarismo; Democracia.

*
RENATO NUNES BITTENCOURT é Doutor em Filosofia pelo PPGF-UFRJ/Professor da
FACC-UFRJ.
Prólogo Talvez a pior corrupção
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que exista seja a
O espaço acadêmico é a
intelectual, e esta nasce
dimensão isonômica do
quando não
debate, não importa sob
desenvolvemos a
qual perspectiva
coragem de expressar
axiológica, e quem não
nossas ideias
aceita as ideias
controversas, não
desenvolvidas por
importando as suas
outrem que tenha então a
consequências concretas.
capacidade de estabelecer críticas
Certamente um dos ofícios mais
pertinentes, mediante o uso de uma
complexos nos conturbados tempos de
estrutura comunicacional efetivamente
crise generalizada seja o da análise
dialógica. Se pela defesa incondicional
do espírito democrático recebe-se da filosófica da práxis política, eivada de
paixões, desafetos, discórdias, interesses
intelectualidade formalista o estigma de
conflitantes. Nem sempre se agrada a
“parcial” ou de “anticientífico”, então
outrem o registro público de
tanto melhor ser parcial e anticientífico.
perspectivas políticas que lhes sejam
Não existe neutralidade científica, não
axiologicamente divergentes. Para esse
existe neutralidade intelectual. Toda
sujeito, somente poderemos lhe oferecer
deontologia acadêmica que se paute por
a virtude da tolerância relativa, em
esse paradigma normativo é ideológica,
consideração ao formalismo democrático
isto é, mascara as suas reais intenções
que sustenta nossas frágeis instituições
em nome de abstrações quiméricas que
políticas. Se as ideias por nós
somente beneficiam o status quo e que
apresentadas não agradam uma pessoa,
impedem a democratização do processo
que esta forneça outras mais consistentes
de construção e de difusão do
e quiçá “melhores”. O processo criativo
conhecimento.
da crítica política não deixará de fluir
O discurso filosófico não se adequa aos para satisfazer as demandas contrárias
critérios da objetividade discursiva tal dos descontentes. Convém que todas as
como pretendido pela tecnocracia, ela instituições seculares sejam
mesma sectária de um projeto social que constantemente avaliadas acerca de sua
perpetua a dominação hegemônica da adequação ao progresso social, e se
autoridade administrativa sobre a esfera porventura elas não realizam esse
pública, mantendo-a assim em estado de propósito ótimo, que sejam criticadas,
submissão cultural, no qual apenas os reformuladas, transformadas, quiçá
dados imputados como verificáveis, suprimidas, sem ódio nem preconceito.
objetivos e pragmáticos possuem
validade social. Entre a tecnocracia e os Introdução
dispositivos fascistas existe uma bela
A práxis política brasileira, em todos os
ponte adornada com os enfeites da
seus espectros, está repleta de imagens
neutralidade e do formalismo do dever, e
culinárias. A sociedade brasileira
a consciência que se aferra apresenta um poder antropofágico de
demasiadamente a essas instâncias corre
assimilação criativa das influências
o risco de legitimar a barbárie
externas, e nesse reprocessamento de
institucionalizada. Basta lembrar que ideias são gerados novos elementos que
muitos nazistas diziam apenas cumprir
dinamizam nossa estrutura cultural.
ordens dos seus superiores.
Compreendendo esses símbolos
alimentícios poderemos também transformadora da democracia popular,
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compreender as inúmeras contradições cujo trabalho de desconstrução da ordem
estruturais de nossa organização política, conservadora é paulatino e exige
e assim desmistificar as ideologias que paciência dos seus participantes, pois
obscurecem a gestão pública brasileira e muitas vezes os resultados práticos
suas interfaces sociais. Iguarias que demoram a aparecer. Somente após tal
tanto agradam ao paladar da grande supressão poderemos pensar em
maioria das pessoas se convertem em autêntica unidade nacional, calcada no
instrumento de cisão social no moderno diálogo entre os grupos políticos
cotidiano da política nacional. Todavia, comprometidos com a democratização
a conturbada ordem vigente impede do sistema de poder e da ordem
qualquer concordância entre os grupos institucional. E pensar que muitos
litigantes, e a esperança de um futuro de ufanistas consideram a feijoada como o
consenso soteriológico que venha a unir símbolo da pretensa integração cultural
a nação brasileira em uma grande ceia brasileira. “Integração” essa que se
talvez seja uma quimera vã, pois tal pautou pelo extermínio dos povos
disposição é incapaz de reconhecer a indígenas, pela escravização dos negros,
fragmentação essencial de nosso cindido pela exploração laboral dos camponeses
tecido social. O grande banquete político e dos proletários, pela submissão da
prometido pelo espírito festivo que mulher ao crivo do patriarca familiar,
adorna a história carnavalesca do Brasil pelo clientelismo que submete a coisa
não é para todos. pública aos interesses privados dos
espoliadores sociais.
Para que se obtenha a verdadeira
unidade nacional que promoverá o Coxinha
progresso global da sociedade brasileira A coxinha é uma deliciosa iguaria, um
é imprescindível que os elementos empanado feito com carne de frango
fascistas sejam eliminados de nossa desfiada, massa com ovos e farinha de
ordenança política, assim como os seus trigo, temperada com salsinha,
dejetos reacionários que cada vez mais tradicionalmente consumida em lanches,
se encorajam em expelir publicamente festas de aniversário e outros momentos
sua virulência graças aos recursos gastronômicos aprazíveis.
informáticos. Não é possível que o
espírito radicalmente democrático Não há consenso nas explicações sobre
consiga aceitar a sombra necrófila do por qual motivo o quitute da coxinha foi
fascismo que ameaça a soberania associado no imaginário político ao
popular e os direitos sociais das típico burguês reacionário. Dizem que a
diferenças. Com efeito, expressões coxinha era o único alimento
políticas pautadas pelo ódio à diferença economicamente viável a ser consumido
não devem receber a liberalizante pelas tropas policiais, que recebiam
tolerância que muitas vezes atua como diariamente das autoridades
uma disposição seráfica constantemente incompetentes um parco vale-refeição.
violada pelos grupos caracteristicamente Ocorreu então uma transposição desse
opressores. simbolismo para o imaginário da
etologia do conservadorismo, já que os
As forças reativas presentes nas relações aparatos policiais, grosso modo, são os
sociais e politicas não podem jamais ser mantenedores da ordem elitista em
afirmadas como expressões da diferença vigor, os defensores da propriedade
axiológica, mas suprimidas pela ação privada e dos meios de produção do
sistema capitalista. Essa relação constantemente o tipo coxinha necessita
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indigesta só prejudica a coxinha, salgado de novos estímulos sensórios para que
que não perderá jamais sua dignidade consiga manter o estado de euforia,
culinária perante os seus ávidos fugindo sofregamente do tédio
consumidores para além de toda existencial. Viagens turísticas ao
polarização política. exterior, consumo contumaz de produtos
de luxo, adequação ao crivo estético da
Já o tipo coxinha merece os vitupérios moda, culto narcísico do corpo talhado
que lhe são outorgados pela filosofia nas academias de ginástica,
crítica da política, pois sua conduta desvalorização do pensamento reflexivo
pessoal e sua visão de mundo são em prol das funções imputadas como
incompatíveis com o projeto de imediatamente rentáveis, esforço
instauração de uma sociedade contínuo pela manutenção de uma bela
radicalmente democrática conduzida aparência pública (que muitas vezes
pelos princípios da justiça e da isonomia. mascara suas contradições interiores),
Ao apresentarmos as características eis alguns caracteres do ethos coxinha.
estúpidas da tipologia da pessoa
coxinha, desenvolvemos subsídios para
talvez reeducar tais figuras tacanhas no O sujeito coxinha na práxis política se
porvir, em uma inevitável nova configura como uma pessoa
revolução cultural que formará pessoas conservadora em sua visão de mundo,
comprometidas com o progresso social adequada aos parâmetros normativos do
de uma república sem quaisquer tipos de status quo. Essa pessoa tacanha é
privilégios classistas. Na vigência da refratária em relação a qualquer processo
sociabilidade capitalista será impossível de empoderamento social das classes
realizarmos tal projeto político desfavorecidas, considerando como algo
efetivamente libertador da vida humana natural a discrepância entre os ricos (que
perante as amarras monetaristas. adquiriram sua proeminência econômica
graças ao seu empreendedorismo e
A vida prosaica do tipo coxinha é
mérito pessoal) e os pobres (que vivem
desprovida de aspirações culturais
em condições precárias por causa de sua
superiores, de maneira que podemos
própria incompetência e falta de esforço
considerá-lo como um herdeiro
em superar suas dificuldades
simbólico do filisteu, rebento
estruturais). O tipo coxinha, muitas
degenerado da modernidade burguesa
vezes de maneira hipócrita, não percebe
que subverte todas as avaliações
que a própria cisão social é motivada
culturais ao crivo da lucratividade e do
pela espoliação econômica perpetrada
pragmatismo grosseiro, vivendo
pelos detentores dos meios de produção,
rigidamente sob a égide do cálculo e do
núcleo elitista do qual ele próprio faz
neurótico aproveitamento do tempo. O
parte e que continuamente exploram as
homem-coxinha, apesar de seu elevado
classes trabalhadoras impondo-lhes um
poder aquisitivo que lhe franquearia,
regime laboral terrivelmente extenuante
caso quisesse, amplo acesso aos bens
mediante pagamentos financeiramente
culturais, não é capaz de vivenciá-los
incompatíveis com esse grande
plenamente, preferindo apenas
dispêndio energético. O lucro do
desempenhar funções ociosas que lhe
patronato é inversamente proporcional
proporcionam prazer imediato. Como a
ao estado de miserabilidade do
vida dessa figura gira em torno somente
proletariado.
de paradigmas aprazíveis,
O tipo coxinha se arroga defensor da Caviar
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moral e dos bons costumes, pavoneia os
O caviar, feito com ovas de esturjão
valores da dita família tradicional e, pelo
infertilizadas, salgadas e que usualmente
fato de sua mente ser povoada de
não passam pelo processo de
inimigos imaginários que não foram
pasteurização, é um alimento requintado,
convenientemente superados na
caríssimo produto de alto luxo, acessível
transição da fase infantil para a vida
apenas para as elites financeiras
adulta, luta pela defesa da pátria contra
dispendiosas das suas vultosas riquezas,
os comunistas, inclusive clamando por
que gastam sem qualquer preocupação
medidas de exceção contra todos aqueles
seus abundantes recursos em gêneros
que prejudicam a ordem pública. O
sofisticadíssimos.
homem-coxinha participa de passeatas
contra a “corrupção” governamental, O caviar foi assimilado pelo jargão
contra a máquina burocrática do Estado, político da sociedade moderna para se
contra a inflação, contra governos referir depreciativamente aos adeptos de
legítimos, mas não se esquece de liberar concepções do espectro político da
as babás de seus filhos dos seus afazeres esquerda que na verdade manteriam um
profissionais. O homem-coxinha padrão de vida associado ao ideário
considera que as passeatas são assépticos burguês, considerando ainda que suas
desfiles de moda ou micaretas, fazendo diatribes contra a ordem mercadológica
assim da política um evento espetacular. do sistema capitalista nada mais são do
que retórica populista para agradar a
Para essa bizarra figura política, não há parcela progressista da sociedade que
maiores problemas se porventura as adere aos discursos libertários. Nesse
tropas policiais matam contexto, muitos artistas, intelectuais e
indiscriminadamente pessoas pobres, celebridades axiologicamente conexas
pois assim se realiza uma poderosa aos princípios da esquerda, defensores
assepsia social. O tipo coxinha não da agenda defensora dos direitos
percebe que o seu modo de vida é um humanos, do empoderamento feminino,
dos catalizadores da desestruturação das causas trabalhistas, dentre outras,
social, de modo que a marginalidade são rotulados como membros desse eixo
endêmica dos grandes centros urbanos chamado esquerda caviar, pois seus
só se perpetua em sua intensidade graças discursos politicamente engajados em
ao descompromisso social desses pautas progressistas não resultariam em
distintos “cidadãos de bens” que apenas um compromisso social autêntico.
encontram como meta existencial os Obviamente que nem todas as figuras de
gozos das benesses da sociedade de proeminência social que apregoam
consumo. Os produtos usufruídos de defender causas políticas de esquerda
forma indiscriminada pela classe ociosa seguem de fato esses paradigmas, o que
dos homens-coxinhas são fabricados é um grande prejuízo para a causa
pela mão-de-obra alienada das massas revolucionária. Contudo, é
proletárias que, desprovidas de imprescindível que haja sempre um
qualidade de vida e de qualquer grande discernimento na crítica desse
assistência social mais elaborada, descompasso entre teoria e prática.
adentram muitas vezes na seara Afinal, muito pior do que a incoerência
criminosa como tentativa de sobreviver política de uma pessoa dita de esquerda
na grande selva de pedra do sistema que não realiza em sua vida prática atos
capitalista. socialistas é a falácia publicitária
enunciada por muitas empresas que recursos tecnológicos que propicia para
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difundem uma imagem pública apenas uma distinta parcela social dos
convenientemente progressista de “cidadãos de bens” o acesso a tais
compromisso com os direitos recursos. A filosofia comunista pretende
trabalhistas e com as causas ambientais democratizar o acesso global das pessoas
(em nome do mercadológico conceito de aos bens produzidos pela sociedade,
responsabilidade social) e que na prática anulando o caráter de propriedade
violam os mesmos, enganando assim privada das coisas. Por conseguinte, é
segmentos da esfera pública que se plenamente conveniente para o projeto
comprometem a apenas consumir de instauração de uma sociedade
produtos e serviços de empresas que comunista que o acesso da população
sigam esses critérios deontológicos. aos produtos criados para usufruto civil
Afinal, é mais fácil desmascarar uma seja o mais amplamente eficiente,
pessoa hipócrita travestida de sectária inclusive através de medidas legais de
dos paradigmas da esquerda do que uma distribuição desses recursos por obra do
empresa que descumpre seus propósitos poder estatal, alinhado aos interesses
de responsabilidade social, apesar de seu democráticos genuínos. Toda revolução
discurso contrário. Nessas condições, política pressupõe mudanças na gestão
são as empresas que devem permanecer do conhecimento e da inovação
sob a vigilância constante da sociedade tecnológica. Para Manuel Castells,
esclarecida, e não as figuras famosas
adeptas da agenda da esquerda, Quando se desencadeia o processo
submetidas ao constante crivo da de ação comunicativa que induz a
patrulha ideológica que não perdoa ação e a mudança coletivas,
qualquer tipo de desvio. Azedos prevalece a mais poderosa emoção
jornalistas desprovidos de constância positiva: o entusiasmo, que reforça a
ética usualmente realizam esses ataques mobilização societária intencional.
Indivíduos entusiasmados,
contra a reputação política de pessoas
conectados em rede, tendo superado
ditas de esquerda, assim como o medo, transformam-se num ator
intelectuais espetaculares que se coletivo consciente (CASTELLS,
venderam aos ditames do mercado 2013, p. 158).
editorial e produzem livros desprovidos
de genuína ponderação filosófica. Esses Usualmente se afirma que antes de um
vendedores de ideias não acreditam e revolucionário pretender lutar para
não lutam pela instauração de um mundo mudar o mundo, é necessário
melhor. Apenas anseiam pela primeiramente que ele se modifique
perpetuação das benesses elitistas, que interiormente. Ora, quem pretende
financiam seus livros e palestras para realizar uma transformação radical no
burgueses desocupados. exterior já passou por uma
transformação interior, pois somente se
Um mito estúpido que precisamos
reconhece as contradições concretas do
suprimir é o de que um partidário de um
mundo quando o sujeito percebe-as em
projeto político de esquerda é
seu próprio âmago, e a partir dessa
extremamente refratário ao uso dos
percepção ocorre o ímpeto por mudança
produtos tecnológicos de ponto ou aos
que suprime as velhas condições
bens de consumo mais sofisticados. Na
estabelecidas na ordem social que
verdade, a pessoa associada aos
paradigmas da esquerda é contra a impedem a emancipação plena das
privatização seletiva do acesso aos pessoas.
O discurso reacionário não poupa O principal objetivo da
Administração deve ser o de 51
esforços para desvalorizar o
empreendimento criativo de grandes assegurar o máximo de prosperidade
nomes do pensamento contrário ao ao patrão e, ao mesmo tempo, o
máximo de prosperidade ao
establishment. Os detratores de Marx
empregado [...] A administração
que são avessos ao genuíno debate
científica significará, para os patrões
intelectual repetem constantemente a e operários que a adotarem – e
historieta de que esse grande pensador, particularmente para aqueles que a
apesar de suas sistêmicas críticas ao implantaram, em primeiro lugar – a
modo de gestão capitalista, jamais eliminação de todas as causas de
entrou em uma fábrica, e que por isso disputa e desentendimento entre si
suas críticas não possuiriam legitimidade (TAYLOR, 2012, p. 24; p. 102)
intelectual. Essa perspectiva espúria não
compreende o outro lado da moeda: Voltemos a Marx: esse grande pensador
muitos administradores, gestores, é ainda vilipendiado pelos filisteus
engenheiros de produção e empresários modernos por depender durante anos da
que versaram sobre o mundo inestimável ajuda financeira de Engels,
industrial/corporativo, apesar de vivê-los sem a qual certamente não teria
em sua imanência cotidiana, jamais concretizado seus projetos de pesquisa
reconheceram as contradições mais vigorosos. A obtusidade
intrínsecas do sistema capitalista e o estabelecida salienta que Marx fora
sofrimento metabólico dos inclusive um vagabundo irresponsável
trabalhadores. Pelo contrário, antes descompromissado em relação a
naturalizam tais antíteses estruturais qualquer trabalho. Ora, Marx, quando
como algo inevitável que ao fim gerará o radicado na Inglaterra, durante anos
“benefício” para todos, de modo a se realizou pesquisas por horas a fio na
ratificar assim a exploração econômica biblioteca do Museu Britânico, legando-
do excludente regime capitalista. Afinal, nos obras fundamentais para a
esses ideólogos tecnocratas são porta- desmistificação da ideologia capitalista e
vozes dos detentores dos meios de suas contradições intrínsecas. Para a
produção, e sempre tremem de medo mentalidade reacionária da burguesa,
perante palavras fortes tais como somente o trabalho gerador de lucro para
comunismo, regulação econômica, os cofres do empresariado possui
legislação trabalhista. Para os validade e serventia. As atividades
espoliadores capitalistas e seus asseclas intelectuais que dispendem tempo e
diplomados, a massa proletária nada esforços psicofísicos não são dignas
mais é do que número sem qualquer conforme os seus filisteus critérios
valor humano. A obtusidade reacionária pecuniários. Quem critica a exaustiva
considera o projeto comunista uma dedicação de Marx aos estudos sobre a
utopia e que sua aplicação prática se economia política capitalista deveria, por
converte em totalitarismo ditatorial, mas coerência, também criticar nossos
se analisarmos os discursos falaciosos doutorandos que recebem bolsas de
dos tecnocratas que se prostituíram pesquisa dos órgãos de fomento, sem
existencialmente em favor do sucesso que muitas vezes apresentem resultados
dos seus empresários, perceberemos efetivos após a vigência dessa concessão
nítidas fantasias irrealizáveis, tal como a pública.
proposta por F. W. Taylor em sua
pretensa “administração científica”: Os fariseus direitistas criticam ainda os
ativistas políticos que dedicaram suas
vidas por causas emancipatórias que seus ícones de sucesso, imputados como
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muitas vezes lhes ocasionaram prejuízos os baluartes do progresso material. É
materiais irreparáveis, desestruturação uma pena que a mortadela, um alimento
familiares, perda de emprego, prisões, tão saboroso, seja vituperada nessa
torturas e, nos casos extremos, a própria categorização política, mas na análise
morte. Esses direitistas reacionários são das relações políticas da atualidade não
os apólogos da mediocridade existencial, podemos deixar de abordar as
pois desvalorizam toda iniciativa motivações pelas quais essa iguaria
revolucionária em nome da preservação sofreu uma formatação tão pejorativa.
de suas vidas miseráveis dedicadas ao Na dimensão gastronômica a mortadela
gozo dos sentidos. (um embutido heteróclito de carne suína,
bovina, aves e cubos de gordura), foi
Talvez o grande problema da
tradicionalmente estigmatizada como
configuração política atual seja o fato de
alimento das classes subalternas,
que muitos partidos políticos ditos de
tornando-se vergonha social para quem
esquerda se adequam a paradigmas
se nutrisse da sua substância. Na falta de
conservadores em nome da sua
carnes nobres para o consumo cotidiano
perpetuação no poder ou para que
e de outros frios mais refinados, como o
possam partilhar da grande fatia do bolo
presunto, as pessoas economicamente
governamental. Uma esquerda autêntica
desfavorecidas se encontravam na
jamais pode negociar com partidos
necessidade de comprar esse produto
direitistas, fisiológicos,
mais barato, e por isso, mais vulgar.
descompromissados com as causas
Mesmo a mortadela defumada, cujo
trabalhistas, com a firmação
preparo é mais sofisticado, também
incondicional dos direitos humanos, com
permanece aferrada a esse dispositivo
a rígida separação entre laicidade estatal
socialmente infamante. Em sua
e fé religiosa, com o controle rigoroso da
transposição para a vida política, a
economia nacional e das atividades
mortadela não poderia deixar de sofrer o
bancárias, com a promoção de um
reforço dessa humilhação culinária.
sistema educacional horizontal, com a
valorização da cultura e das artes. Uma O reacionarismo tacanho do homem-
esquerda que cumpra esses pontos de médio o faz defender projetos políticos
pauta certamente obterá êxito na sua que em curto prazo acabam por
afirmação dos princípios libertários do prejudicá-lo absolutamente, mas sua
comunismo sobre todas as ações estupidez intelectual não lhe permite
deletérias dos apólogos do reconhecer os efeitos deletérios sofridos.
neoliberalismo, do livre mercado, da Essa figura idiotizada não percebe que
especulação financeira, da espoliação da suas medidas extremistas são as bases
vida humana pelo trabalho alienado, do ideológicas para a sua própria
autoritarismo fascista que estabelece sua subjugação social. Segundo Ortega y
necrofilia sobre a consciência Gasset,
reacionária da mentalidade burguesa.
O homem-massa jamais teria
Mortadela apelado para qualquer coisa fora
dele se a circunstância não o tivesse
Denomina-se como “direita mortadela” forçado violentamente a isso. Como
na culinária política brasileira a tipologia as circunstâncias atuais não o
do homem médio desprovido de poder obrigam, o eterno homem-massa, de
financeiro, mas adorador do padrão acordo com sua índole, deixa de
elitista de vida e que tudo faz para copiar apelar e se sente senhor de sua vida
(ORTEGA Y GASSET, 2002, p. também a sua na vida cotidiana
95). (CHAUÍ, 2006, p. 7-8). 53

O tipo político que doravante O homem-mortadela consome produtos


denominaremos como “homem- de baixa qualidade, mas considera que
mortadela” é socialmente oprimido, faz belas aquisições que lhe concedem
ainda que acredite piamente que não o respeitabilidade e distinção perante seus
seja. Sua vida é uma constante luta por interlocutores. Essa figura reativa não
sobrevivência em um mercado hesita em querer pechinchar avidamente
capitalista rigorosamente impiedoso e para obter pequenas vantagens em suas
excludente, mas essa triste figura se transações comerciais, e assim poupar
esforça constantemente para manter a alguns centavos a mais das suas magras
vigência do sistema que justamente economias. O homem-mortadela vive
impede o florescimento de suas plenas pressionado pelas dívidas bancárias e
capacidades criativas e de sua própria acredita que um governo de exceção será
emancipação social. O homem- capaz de suprimir a inflação, a
mortadela, não obstante sua exclusão das insegurança pública e a corrupção,
benesses da politicagem partidária, melhorando assim imediatamente sua
sempre atua como bela massa de qualidade de vida. A tacanhez desse tipo
manobra dos interesses dos espoliadores político não reconhece que seus
da coisa pública, acreditando, todavia, comportamentos violadores da coisa
agir em plena autonomia e pública são os piores prejuízos que ele
espontaneidade. O homem-mortadela é pode cometer contra a ordem
assim uma marionete dos especuladores democrática.
políticos, que somente dialogam com as
massas quando isso convém aos seus O homem-mortadela considera
interesses escusos. Os posicionamentos pertinente que um político histriônico,
sociais do homem-mortadela são ideólogo parlamentar das truculentas
reativos e esse tipo político defende a forças policiais, faça a defesa plenária da
ideologia virulenta da direita raivosa, tortura como método legal para a
patriarcalista, sexista, homofóbica, instauração da ordem, ordem fascista,
preconceituosa, difusora de um discurso não podemos esquecer. O homem-
violento que legitima a repressão policial mortadela lincha criminosos de rua,
contra todas as formas de dissenso social pequenos ladrões cujos delitos afetam
e que assim produz a cada dia mais particulares, mas pouco faz para
“presuntos”. Conforme argumenta defenestrar do poder os verdadeiros
Marilena Chauí, sicários da coisa pública, aqueles que
venderam a coisa pública aos interesses
O pensamento e o discurso da escusos do empresariado. O homem-
direita, apenas variando, alterando e mortadela faz da defesa incondicional da
atualizando o estoque de imagens, propriedade privada o fundamento da
reiteram o senso comum que sua existência, já que seus bens foram
permeia toda a sociedade e que conquistados arduamente com sua
constitui o código imediato de
labuta, mas pouco se importa com os
explicação e interpretação da
realidade, tido como válido para prejuízos da coisa pública, exceto
todos. Eis porque lhe é fácil falar, quando os efeitos da crise começam a
persuadir e convencer, pois os afetar suas economias pessoais. Afinal,
interlocutores já estão identificados no fundo, o homem-mortadela gostaria
com os conteúdos dessa fala, que é de ser como esses distintos “cidadãos de
bens”, sem que nunca consiga talvez sepulcros caiados é bazófia hipócrita que
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nem mesmo um dia lustrar com sua escamoteia seus vícios repugnantes, e
língua os sapatos desses senhores. sua desconsideração pela bem comum
não merece piedade das forças
Considerações finais multitudinárias em sua luta por
A instabilidade governamental da reconhecimento existencial.
república brasileira, motivada pelas
Desde sempre os oprimidos foram
ações golpistas das forças direitistas,
educados a aceitar docilmente as
gera na massa social uma polarização
arbitrariedades impostas pelas elites
das suas posições políticas, tornando
plutocráticas como situações inevitáveis,
assim os ânimos mais exaltados e
providencialmente necessárias,
suscetíveis a ofensas, agressões, em
assumindo como algo positivo o
suma, toda sorte de violências contra as
sofrimento cotidiano que lhes foi
perspectivas divergentes. Nessas
imposto, afirmando assim sua própria
condições, todo pensamento que não
negação existencial. A resignação
compactue com aqueles que são
passiva perante a opressão apenas
considerados como os legítimos no
favorece a perpetuação do poder
regime capitalista em vigor são
hegemônico do opressor. Somente
vilipendiados e silenciados. O resultado
através do ato de negação da negação
imediato dessa incapacidade de respeitar
que lhes é outorgada pelas classes
os valores da diferença é o desastre
dominantes os oprimidos conseguem
social, e não seria de modo algum
quebrar as correntes da escravidão social
extravagante descartarmos a ocorrência
e se apropriar das rédeas do processo
de atentados contra os emissores de
histórico, conquistando assim a
ideias contrárias ao status quo.
liberdade política que lhes proporciona a
Cabe sempre lembrar que foram os autonomia para construírem seus
grupos reacionários direitistas que próprios caminhos existenciais e suas
promoveram a insurgência da barbárie histórias singulares. Conforme aponta
nos quadros políticos brasileiros, pois os Paulo Freire,
seus interesses particulares destoam
absolutamente do planejamento Na verdade, porém, por paradoxal
que possa parecer, na resposta dos
democrático nacional. Em verdade essas
oprimidos à violência dos
hordas de “cidadãos de bens” não opressores é que vamos encontrar o
lutaram pela erradicação da corrupção da gesto de amor. Consciente ou
coisa pública brasileira, mas sim contra inconscientemente, o ato de rebelião
os avanços sociais conquistados dos oprimidos, que é sempre tão ou
parcialmente por grupos marginalizados quase tão violento quanto a
historicamente. O sonho dourado desses violência que os cria, este ato dos
elitistas é de fazer a nação brasileira oprimidos, sim, pode inaugurar o
retornar ao período monárquico e suas amor. Enquanto a violência dos
corruptas estruturações societárias opressores faz dos oprimidos
pautadas nos privilégios nobiliárquicos homens proibidos de ser, a resposta
destes à violência daqueles se
hereditários. Por isso essas camadas se
encontra infundida do anseio de
configuram como politicamente busca do direito de ser. Os
reacionárias, pois não poupam esforços opressores, violentando e proibindo
para manter seus benefícios espoliativos que os outros sejam, não podem
sobre a coisa pública. A pretensa igualmente ser; os oprimidos,
elevação moral apregoada por esses lutando por ser, ao retirar-lhes o
poder de oprimir e de esmagar, lhes lacaio do sistema plutocrático. Para os
restauram a humanidade que haviam 55
anônimos oprimidos, o único direito que
perdido no uso da opressão lhes é concedido pelo sistema legal é o
(FREIRE, 2005, p. 48). de não ter direitos. Suas vidas servem
A seráfica visão utópica de mundo apenas de repasto para a satisfação dos
acredita que no porvir o opressor, em um interesses narcísicos das elites
ato de renúncia ao seu egoísmo financeiras, os cancros da democracia. A
congênito, abrirá mão de sua dominação carne dos oprimidos só vale quando
sobre o oprimido, promovendo contribui para a perpetuação dos
fraternalmente a paz para com seu interesses elitistas. Toda a estrutura
próximo, e juntos cearão do suave civilizacional foi construída pelas forças
alimento da paz. Essa crença é sublime, vitais dos oprimidos existencialmente
mas talvez desprovida de qualquer alienados, e a glória de sua realização foi
concretude política. Essa falsa esperança apropriada pelos bens nascidos.
apenas perpetua o estado de menoridade Se a transposição da culinária para a
das massas e sua submissão ao simbologia das disposições políticas nos
patriarcado. Não existe possibilidade de fornece tantos eixos reflexivos insólitos,
consenso social quando a isonomia não é talvez uma análise similar sobre a
o fundamento primordial da relação relação entre a fauna e a dimensão
política. política também permita novas
Todas as mudanças políticas efetivas investigações no porvir. Afinal, tantos
somente ocorreram quando os oprimidos animais na grande selva da realidade
ousaram se lançar ao insólito e enfrentar política certamente são grande objeto de
corajosamente seus opressores, agindo pesquisa de tema tão importante para a
em nome da liberdade para além de todo condução da vida social de nossa
temor ou devoção aos nomes sagrados. conjuntura organizacional. A natureza é
Convém que se desmistifique o pródiga em seus estímulos para a
problema da violência como instrumento criatividade.
de transformação social: para a
supressão da opressão entrada nas
instituições sociais a resistência do Referências
oprimido que adquire consciência de sua CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e de
dignidade existencial e de sua esperança: movimentos sociais na era da
Internet. Trad. de Carlos Alberto Medeiros. Rio
capacidade de empoderamento pessoal de Janeiro: Jorge Zahar, 2013.
se torna não apenas uma necessidade
vital, mas acima de tudo um dever CHAUÍ, Marilena. Cidadania cultural: o
direito à cultura. São Paulo: Editora Fundação
político. A ideologia dominante edulcora Perseu Abramo, 2006.
os corações atormentados da grande
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio
massa social, sacralizando o direito de
de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
propriedade como um fundamento
inalienável, mas estigmatiza toda forma ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião das
massas. Trad. de Marylene Pinto Michael. São
de manifestação multitudinária de luta Paulo: Martins Fontes, 2002.
por afirmação dos seus direitos vitais
como um atentado contra a ordem TAYLOR, Frederick W. Princípios de
Administração Científica. Trad. de Arlindo
pública que deve ser suprimido pela Vieira Ramos. São Paulo: Atlas, 2012.
repressão da força coercitiva do Estado

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