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ihre ie Pen ia © tempo do liberalismo excludente da Proclamagao da Republica a Revolucg3o de 1930 Jorge Ferreira Lucilla de Almeida Neves Delgado organizacao Organizado por Jorge Ferreira ¢ Lesa de Almeida Neves Delgado O Brasil Republicano O tempo do liberalismo excludente - da Proclamacdo da Republica 4 Revolucdo de 1930 Livro 1 3? edigdo CIVIL C40 BRASH ERG — Ras de fomerre 200R Cerrerinal 0 tinge Veriewa e Lanta de Aleneate Biever Dalgety. 205 Cae Vache bewnanyh Paco canrcg Fost Geumach @ Jodo de Sosa Latte Aa | BE 38 ‘BANE 8300 GT BRAS? CATALOG ACAD NAFONTE AINDICATO MACIONAE FOR LOB VOH LNRUS RE 0 temps Se herilione enbelsenr da Proton ape de Rapdce te a Revolugzo de 1910 1 argumeayta Jorge Fesierce « Laces de wed ends Neve Degas = Feat Riv de Yaneue Col sagse tant epebaaney y 1) Center Uenogtata Jostut Bibbografis ISHN 74m® 206 992-1 1 Beat Unsere 180% 2 Bese Hones Repables Veh my UR = Wile eee ane Pe 4 Catalaina | Bonen beget Delgat: bo be de Means Seo ML Sene COD vatas us torr din co sltenian vewrvailon Procbeda a represlugie. armatenumenty ou tranvmnats de pariee dete hwro, steaves de quassquet men. rem petra auslonzaydo por esctito Ltrenos dessa elicao atquie din peta EOUTORA CISILIZACAQ BRASIL FIRA Une yeloodts EDIrORA RECORD LTDA fu Argemna 171 20921 480 Roo de Jane, RI- bel. 2585 2000 PERRO PLEO RERMBOLSO PONTAL tal S105 — Rake bimeres, RE 292200 pews ay Neat Sumario ageesintaghD 7 Jorge Ferrera e Luctha de Alneda Neves Delgado Os ceninios da Republica, O Bras na viesta ilo séculu XIX paca osiculoXX 13 Profs Dra Margarita ste Somes Neves (PUC Rio) A consolidasin da Republica: rebelibes de ordeni e progressy 4 Prof It Lhe Chaves Hares (UFEB) O provesto politico na Prameira Repiiblica ¢ 0 libetaliamo oligirqui Profa Dra. Maria Ufisénta Lage de Resende (UIMG) Kehguio ¢ polincs nv alvorecer da Republica: os movimentoy de Ju Canudos ¢ Contestado 121 Prufa Dra, Jacqueline Hermann (UFR) Formag3o da classe operitia ¢ proyetas ile denudade coletiva tet Prof. De Claudia HM, Batalba (Umea) Pamara Remibhea; economia cateciea, unbanizigio ¢ mdnsirihei30 19) Drof Dr Jose Mogae} Arias Neto (VEL) O mmASel MErvesecawe jorma urbana ¢ Revolta da Vacina na cidade do Rio de Janaro 7 J. Dr. Jaune Benchvnol (Fiocruz) x10 € O trago: 4 tmagem de nossos primeiros presidentes através do humor ¢ da caricatura 287 1. Tsabel Lustose (FCRB} rentismo ¢ crises politicas wa Primeira Repdblica 313 f. Dr, Mario Cléber Martins Lanna Jiinior (PUC-Minss/FJRMG} mudernismo ¢ a questio nacional 35! . Montes Penta Vellaso (FCRB) rise dos anos 1920 € a Revolugio de 1930 387 fu. Dia, Maneta de Morses Ferreira (UFRJ CPDOC FGY) « fa, Ora, Surama Conde St Pinto 1G Aaa CHRar 417 GHANA 43S wiomts 447 WOCIKAL DACOUGAD 44) Apresentacao Andlises ¢ interpretagées telanvar 3 luméria do Brawl tepublicano tém, maior parte das veres, destacado uma quesiio recotrente: a de que 4 cor tnusio ¢ consolidagio da adsdania ¢ da democracia sio, simultancainen dilema ¢ desafio que perpassam © condiano nacional brasttetro. Dilems, pois a heranga do passado colonial/parrimonial persiste sob ferentes formas ¢ graus ac longo da trayetdria republicana, reproduzin manifestaydes de princas autontiriss, tanto na esfera puuvada quanto pablica Desafio, por a construgdo da Cemocracia tens encontrado tiniimernon cos de resisténcta que xe manifestam sod dilerentes formas de comportamiet polinco autonrirto, destacando.ac os per fodos ditatortais, tanto o do Lista Novo quanto o do tegune militar, além das antigas, mas ainda usuais, pr. cas de mandonising local, que teamam em persistir, mesmo que nv alvorc dc am novo milena potsam parecer ultrapassadas. Na verdade, a democtacta ¢ a plena realizagso da ctdadania nu Ir, apeesentam:se como um dilema hist6rico ainda a set decifrado ¢ um des aser enfrentado, Paruthando dessas preocupa,des for que planejamos ¢ organizaut O Beasil Repuctslicano, em quairo volumes. O ¢ixe que interliga os difrrer textos, com suas miltiplas abordagens ¢ temiticas diversas, € a quesito odgdanu, anahssda de ingulos ¢ perspectivas plural stas, Desta mane’ conuderados tanto os mormmentos ¢ as aches de cerceamento ¢ de limirs da princa erdadi quanto os de resisténaa ¢ lute contra 2 exclusie soci: coatra a prdiiecas antoniténas, em sanadas experiéncias hntGncas, Sob o p ma da hiidna politica, socral, cultural ¢ ccondnnca, os autores wiger ent Poteres merpretativas quc visam aconinbur como csforye reflexive so © OeANtt eneyericane peculinidades da hivtdria do Brawl Republica, destacando a atussio dos jertoy Livtéricos que a canstrufeam. Unis opso foi a do piblico leitor, Nosso. objetivo é atingir todos os brasi- rs curiasos pela propria histéna ¢ que buscam conhecer seu lugar no mun- . Fim particular, preocupamt-nos os alunos de graduacio da Srea de Géncaas wnanas que, via de regra, tém dificuldades em sdquirir livros que resultam Pesquisas onginan. Mas, sobrenado, é nosso unteresse alcancar um pablo c, na maioria das vezes, ¢ exquecido: alunos ¢ professores de nivel médio. rta-xe, neste caso, de amplay parcelas da populacso brasileira distantes ds Miss histonogriiica mais avangada, obrgada a recorrer, por falta de alter vas, a fesuinos, aposulas ¢ livros diditicos defasados ¢ tradicionais. Asam, 580 proposta € alcangar um pibhico bem maior, ainda nos esmudes secunds- , permitindo que nossas reflex6es contribuam para a sua formacio. Os autores que redigiram ov textos, por sux ver, foram canvidados con- ceando-se ov critérros de pluralidade, expectalidade ¢ reconhecimento émuco. Est$o aqui reundos, portanto, profismonais de diversas univer udev e instituigdes de pesquisa bravleiras, disterbufdas por diferentes esra- s dla federagso. A obra é constitufda por quatro volumes e, do creprisculo do Império até rip presenic, resgity a experiencia republicana no Brasil, Assim, o pre iro volume, O tempo do trberalisma excludente — da Proclamagdo da niblia d Revolugdo de 1930, abordao proceso politico, a exlutsosocul unditica, bem commu os movimentos culturass na Primeiea Repablua aira- dos seguintes temar: “Os censrios da Repdbhca. O Braul na vireda do ilo NIX para o século XX", texto de Margarida de Souza Neves (PUC- ), “A convoldacio da Repiiblica: cebelides de ordem € Progresso”, de 1 Chaves Hores (UFPB); “O proceso polio na Primerra Repdbi:ca co tulismo olgirquico”, de Maria Efigénia Lage de Resende (UFMG), “Re- Ww ¢ polftwca no alvorecer da Republica: os movimentos de Juazetro, Ca- ¢ Contestado”, de Jacqueline Hermann (UFR]), “Formacio da clase 4c ptojetos de ientidade coletiva”, de Cldudio Baralha (Unicamp), imicira Repabhea: econonna cafecira, urbantes So ¢ mdustrializacso", de ‘Miguel Arias Neto (UEL), “Reforms urbana e Revolta da Vactna na ce edo Kio de Janeiro", de Jame Benchimol (hua re); °O 1eute © 0 130 senrimtacao 4a imagem de nossos primesros presidents através do humor ¢ da caris 12”, de Isabel Lustoss (FCRB), “Tenentisnioe crises politicas na Primeir: pGblica", de Mario Cléber Martins Tanna Jdnior (PUC-MinavFJP MG) modernismo ¢ a questo nacional”, de Monica Pimenta Veloso (FCRE fechando 0 volume, “A crise dos anos 1920 ¢ a Revolugio de 1930' Surama Conde $§ Pinto ¢ Maneta de Moraes Ferreita (UFRJ/CPDOC.Fe O segundo volume, O tempo do nacional -estattsmo — do tlcto da dé de 1930 a0 apogeu do Fstado Novo, enfanza a convrigso da cidadania vob patrocinio da Estado, além de andlises relativas A dindmica politica ¢ péenica que encontra cm um Estado fortemente centralizado 0 seu sujeite rigente. O volume € composto pelos seguintes capinilos: “Os anos 1931 incertezas do regime”, tema de Dulce Pandolfi (CPDOC-FGY); *A Incegralista Brasileiza: um movumento fascista no Brasil (1932-1938)" Marcos Chor Maio (Fiocruz) ¢ Roney Cytrynowice (AHJB), °O PCB, a / © as insurecicde de novembro de 19357, de Marly de Almeida G. Vea (LFSCar}, “O Estado Novo. o que troune de novo?" de Mania Helena Cape (USP), “Os imetectuan ¢ a poktuca cultical do Estado Novo", de Monies menta Veloso (FCRB); “Historiogeafta, tratulho ¢ adadania no Brisil™ Alexandre Fortes (PA) ¢ Antomo Lungs Negro (UFRa); “Estado, classe ter Ihadora ¢ polincas soma”, de Mana Celina D'Araujo (UFF/CPDOC-FC “A economia politica do primero governo Vargay (1930-1945). a politica ¢ oheneca con tempos de turbuléneia®, de Macia Antonieta Leopoldi (UF); Povons rus manifestacdes culturan como expresso de cadadanis”, de Rai Souhet (UFF); ¢, por fim, “Sinan da modernedade na era Vargas. vida liters cinema ¢ ribo”, de Licta Lipps Oliveira (CPDOC-FGV) O terceuro volume, O tempo da expenténcia democrdtica — da der tezacdo de 1945 20 golpe ciust-militar de 1964, resgaia atores soxiais que, manera crescente, se engayaram em |nias pela amphacio dos direitus de dadania. como também os grupos politicos ¢ soctais comtrariados cont Avangos dos movnucntos rovindicatérios. Os aseumtos traiados tie voli So on segunmtes “A demuxtatizagio de 1945 ¢ @ mosinente queremist tema de texpomalahdade de Joee Ferreira (WT); “Teabalhadores, andi tov e pobinca (1945. 1904)", de Fernanda Terveita da Silva (Unimepf c Au pao Langs Negro (V1 Ba), *hotyas Aniadas ¢ polinica, 1945-864 antes © ONASIL MeWsiIesR® pecntandades da histérta do Brau! Repdblica, destacando a stuag3o dos jeitas histéricos que a consttufram. Uma opgio foi a do piiblico Icitor, Nosso objenvo é atingir todos os bras- ros curiosos pela prdpria hisiéria e que buscam conhecer seu lugar no mua- 9. Em parncular, preocupai-nos os alunos de gracuacio da irca de Gidncias umanas que, via de regra, tém dificuldades em adquirir livros que resolam > Pesquisas origin.as. Alas, sobretudo, € nosso intcresse alcangar um pidico le, na maiona das veres, é esquecido: alunos ¢ profersores de nivel mesa ata-se, neste caso, de amplas parcelas da populasdo beasileira distantes da squisa histonogrdfica mais avangada, obrigads a recotter, por falta de alter- lias, a resumos, aposnias ¢ livros didSuucos defasados ¢ tradiaonas. Assam, 8a Proposta é alcangar um pubbco bem mayor, ainda nos estudos secunds- 2s, permutinda que nossas reflexdes contribuam para a sua formag3o. Os autores que redigiram 0s textos, por sua vez, foram convidades coa- lerando-se 03 critérios de pluralidade, especialidade ¢ reconhecemenzo adéimico, Fetdo aqun ccuntdos, pottanto, profiuionais de diversas umver- hades e instrturgdes de peuquiza brauleras, df srribufdas por diferentes esta da federasho. A obra éconsttulda por quatro volumes ¢, do crepitsculo do Império até enipo presente, resgata a experiéncia republicans no Brasil. Ausim, 0 pn- city volime, O tempo do liberahsmo exeludente — da Proclama¢so da piblica d Revohegde de 1930, aborda o processo polftico, a exclusso sonal ‘condmica, bem como os movimentos culturais na Primeita Republica atra- s das srguintes temas: "Os crnidrios da Repdblica. O Brasil na vitada do clo XIX para o século XX", texto de Margatnda de Souza Neves (PUC- 0), “A consolidasio da Repablica. rebehdes de ardem ¢ progresso”, de 10 Chaves Floges (UFPB); “O processo politico na Primesra Repdblicae o cralismo oligarquico”, de Maria Efigémta Lage de Resende (UFMG), “Re- Nw ¢ politica no alvorecer da Reptblica: os mommentos de Juazerro, Ca- wloy ¢ Contestado”, de Jacqueline Hermasa (UFRJ); “Formagio da clase cerita e propetos de identidade coletiva”, de Clindio Batalha (Unscamp), Haneia Republica: economn vafeerra, urbanizagdo ¢ industirahza,$0", de s¢ Miguel Arias Neto (UPL ‘le oho Row de Janeiro”, de Jamie Benclomol (Frouruz), “OQ texto ¢» rraye “Reforma urbana ¢ Revolia da Vaca na cr AORTSENIAGAG a umagem de nossos primeiros prenidentes através do humot ¢ da car a”, de Isabel Lustosa (FCRB); ~Tenentismo ¢ crises politicas na Primeir pablica®, de Mario Cléber Marnns Lanna Jiinior (PUC-MinadFJP-MG modernismo ¢ a quest3o macional”, de Montca Pimenta Velloso (FCKI fechando 0 volume, “A cnse dos anos 1920 ¢ a Revolugio de 1930 Surama Conde $4 Pinto ¢ Maneta dz Moraes Fetreira (UFRICPDOC-F O segundo volume, O tempo do nacronal-estattsmo — do inicio dit de 1930 a0 apogene do Estado Novo, enfatira » comtrucho da ctdadama 5 sob patrocimo do Estado, além de andliscs rclativas 3 dindmica politica ¢ ndmica que encontra em um Estado fortemente centtalizado 0 seu stjen ngente, O volume é composto pelos seguintes capitulos: “Os anos 193 tncertezas do regime”, tema de Dulce Pandolfi (CPDOC-FGY); " Integralista Brasileira, um movimento fascista no Brasil (1932-1938) Marcos Chor Maio (Fiocruz) ¢ Roney Cyttynowiez (AJB), “O PCR, a ¢ ax insurreighes de novembro de 1935”, de Matly de Almenta G, Vi (UFSCar), °O Estado Novo. o que trouxe de novo”, de Mana Belen Cap (USP), “Os intelestuais ¢ @ politica cultural do kstado Novo", de Muniic menta Velloso (FCRB); “Historiografia, trabalho ¢ adadania no brasil Alexandre Fortes (FPA) ¢ Aniomo Luigi Negro (UF Ba); “Mstado, classe 1 Dhadora ¢ polfticas sociats”, de Maria Celina D'Araujo (UFFICPDOG: “A cconom a politica do primeiro governy Vargas (1930-194$): a politic ndmuca cm tempos de turbuléacia", de Maria Antonieta Leopoldi (tIEF) povona tus. manifenacdes culrurans como expreaso de cxbxtinis”, de It, Soubet (UFF); ¢, pot fim, “Sinai da modernidade na era Vargas: vida liter nema € tidio”, de Lacsa Lipps Oliveira (CPDOC-FGY) Orerccito volume, O tempo da expenéncea democrdtica — sda fern tzagdo de 1945 uo golpe civil-militar de 1964, resgata atores sociais qin mancira crescente, se engayaram em lutas pela ampliaso dos direitos d dadams, como também os grupos politicos ¢ sociais comtrariados Gor arangos dos movements reiindicaténos, Os axsinios tratados no val ado cn sepuuites: “A democranrayao de 1946 ¢ 6 mavimenty quereine tema de raponsaluhdade de Jorge Ferrena (IIT), “Traballadores, anc tose politica (1946 1964)", de hermano Teivena da Silva (Ihunep) eA mw Lung Nepro (VER), “Forgas Atmiadas ¢ politica, 1945-194 3 ante de Joto Roberto Martins Filho (UFSCar); “Partidos politicos ¢ amentarcs: projetos, deyafios ¢ cunflitus na democracia”, de Lucilia a Neves Delgado (PUC-Minas); “Os anos JK: industrializagio ¢ igarquico de desenvolvimento rural”, de Vinia Maria Losada JFES); “Do nacional-desenvolvimentismo a Polftica Externa In- ¢”, de Paulo G. Fagundes Vizentini (UFRGS); “PCB: a questo na- lemocracia”, de Jasé Antonio Segatto (Unesp); “Ligas Camponesas s rurais em tempo de revolugdo”, de Antonio Montenegro (UFPE); experimentos culturais nos anos 1940/50; propascas de demo- da arte no Brasil”, de Sancuza Cambraia Naves (PUC-Riof/UCAM); Reptiblica: 1954, 1955 ¢ 1961", de Jorge Ferrcira (UFF); ¢, final- governo Goulart ¢ 0 golpe civil-militar de 1964", do mesmo autor. 1, 0 quarto volume, O tempo da ditadura — Regime militar e mo- ociais em fins do século XX, volta-se para o processo de exclusio sondmica ¢ social sob a égide da ditadura inaugurada em 1964, m para a luta pelos dircitos de cidadania com os movimentos so- > afirmaram nas duas tiltimas décadas do século XX. Os capitulos dos no volume so: “A Doutrinn de Seguranga Nacional ¢ os go- itares”, tema de Nilyon Borges (UFSC); “Esquerdas revoluciond- armada”, de Denise Rollemberg (UEF); “Catolicismo: direitos reitos humanos”, de Lucilia de Almeida Neves Delgado (PUC-Mi- iro Passos (PUC-Minas); “Cultura ¢ polftica: os anos 1960-1970 ¢ a", de Marcelo Ridenti (Unicamp); “Espionagem, policia politica, ropaganda: os pilares basions da repressio”, de Carlos Fico (UFRJ); ¢’ brasileiro: crescimento acelerado, integracéo internacional e con- de renda — 1967-1973”, de Luiz Carlos Delorme Prado (UFRJ) e arp (UFRJ); “Crise da ditadura militar e o processo de abertura Brasil, 1974-1985", de Francisco Carlos Teixcira da Silva (UFRJ); Jores cm movimento: o sindicalismo brasileiro nos anos 1980/ Marco Aurélio Santana (Uni-Rio); “A questée agriria no Brasil ro MST”, de Mario Grynszpan (UFF/CPDOC-FGY); ¢, por fim, isino dos antigos ¢ o bolivarismo dos modernos: 0 Brasil ¢a Amé- )na década de 1990”, de Carlos Aurélio Pimenta de Faria (PUC- Aarco Aurélio Cepik (UFMG). Ao fim de cada um dos volumes, o Ieitor encontrar4, na parte aos Ancxos, instrumentos que permitirie aprofundar algumas da tratadas nos capltulos. O primciro é a Bibliografia Geral do Volum do conjunto de livros citados por todos os autores, actescidos de tulos importantes na rea das Ciéncias Humanas. O segundo é a Fi Aqui, procuramos arrolar filmes brasileiros, de facil acesso, que, p gem cincmatogréfica, “reconstituem”™ a histéria do perfode. Para : bliografia ¢ Filmografia, chamamos a acencio para o fato de quen de Jistas que queiram ser definitivas e que, em casas com esses, ¢5q1) €, portanto, injusticas sempre acuntecem. Finalmente, quercmos agradecer a todos os colaboradores da empenho ¢ dedicagdo com que redigiram os seus textos. £ preciso, ig agradecer aos dirctores da Civilizagaio Brasileira, que acreditaram Projecto, bem como ao conjunto de funciondrias da Editora pelo ¢ trato com as autores ¢ suas Obras. Agradecemos, também, ao apait mos de Raquel Fernandez Queiroz, secretiria do Centro de Pesqu tica da PUC-Minas, Por fim, um agradecimento especial aos nos: que redigiram as sinopses ¢ as fichas técnicas dos filmes, A cles, maior de nossa profissia, dedicamas a obra. Jorge Ferreira ¢ Lucilin de Almeida Nev Vertigem ¢ accleragio do tempo. Esta seria, sem duvida, a sensa¢ao mais for- te experimentada pelos homens ¢ mulheres que viviam ou circulavam pelas ruas Co Rio de Janciro na virada do século XIX para o século XX. Ainda que de forma menos contundente, o mesmo sentimento estaria presente nas prin- cipais cidades brasilciras, que, tal como a cidade-capital,' cresciam como nunca, tornavam complexas suas funcdes e recebiam levas de imigrantes europeus que atravessavam o Atlantico em busca do sonho de fazer a Améri- ca. Tudo parecia mudar em ritmo alucinante. A politica ¢ a vida cotidiana; as idéias ¢ as praticas sociais; a vida dentro das casas ¢ o que sc via nas ruas, Como nas subidas, descidas, voltas e reviravoltas de uma montanha-russa estonzeante, na feliz imagem utilizada por Nicolau Sevcenko (2001, p. 11- 22), 0 progresso, tudo parecia arrebatar em sua corrida desenfreada. Marasmo. E um tempo que parecia transcorrer tao lentamente que sua marcha inexordvel mal era percebida. Assim, nas fazendas, nas vilas do inte- rior ¢ nos sertées do pais, essa mesma virada do século seria percebida. Ali, nada parecia romper uma rotina secular, firmemente alicergada no privilé- gio, no arbftrio, na Idgica do favor, na inviolabilidade da vontade senborial* dos coronéis e nas rigidas hicrarquias assentadas sobre a propriedade, a vio- léncia eo medo. Tudo parecia ser sempre igual, ¢ o tempo, 20 menos aparen- temente, ainda seguia o ritmo da natureza. Como nas mem6rias de infancia de Graciliano Ramos, a vida transcorria lenta ¢ sem outras alteragées que no aquelas que distinguiam a estag3o das chuvas daquela da estiagem: Mergulhei numa comprida manha de inverno. O asude apojado, a roga ver- de, amarela e vermelha, os caminhos estreitos mudados em riachos, ficaram- me na alma. Depois veio a seca. Arvores pelaram-se, bichos morreram, 0 sol 65 © BRASIL REPUBLICANO cresceu, bebcu as guas, € ventos mornos espalharam na terra queimada uma potira cinzenta. Olhando-me por dentro, percebo com desgosto a segunda pasagem, Devastagso, calcinacdo. Nesta vida lenta sinto-me coagido entre duas situagdes contraditérias — umalonga noite, um dia imenso e enervante, favorivel & modorra (Ramos, 1978, p. 20). Na Repéblica Velha, uma légica paradoxal diferencia e ao mesmo tempo relaciona organicamente esses dois cendrios — o da capital federal ¢ o do interior —, & primeira vista opostos pelo vértice, o cendrio do progresso montado na cidade que, apés 0 15 de novembro, assume foros de capital federal + o cendrio do interior do pais, onde a Reptblica recém-implantada, aparentemente, muda apenas, no cotidiano, os selos que estampilham as cartas que o correio de quando cm vez faz chegar, a bandeira nacional hasteada nas festas, as notas ¢ moedas que pouco drculam ¢ algumas das datas patrias festejadas com fanfarra bandeirolas. Aprofundar na relagao entre esses dois cendrics, sem deixar de perceber as diferencas entre a modorra da vida no interior ea vida vertiginosa’ do Rio de Janeiro, € premissa fundamental para o entendimento da histéria do primeiro periodo republicano no Brasil. Como poucos, entre aqueles que viveram 0 tempo conturbado do fim do Estado imperial ¢ do inicio da Republica, Euclides da Cunha experimentou na prépria vida ¢ trouxe para a sua obra o paradoxo entre os dois cenarios da Repiiblica ¢ os impasses do sonho republicano. Nascido em uma fazenda em Santa Rita do Rio Negro, interior da entao provircia fluminense, peregrinou desde muito pequeno pelo Brasil afora em razdo da morte precoce de sua mae ¢, jA adulto, ao sabor dos deveres de offcio que assume como militar, como engenheiro ou como jornalista. Ainda meni- no, é levado, da Fazenda Saudade em que nascera, para 2 cidade serrana de Teresopolis; dali a So Fidélis, para a fazenda de um wo, coronel da Guarda Nacional, Depois, muda-se para Salvador, na Bahia, onde vive entre os 1] ¢ os 42. anos em companhia dos avés paternos. Transfere-se entao para o Rio de Janeiro em 1879, onde, mais tarde, ingressa na Escola Militar, sem no entanto concluf-la em fungio de um famoso episédio ocorrido no més de novembro de 1888, em que ostenta suas conviccées republicanas diante de Tomds Coe- Iho, ministro da Guerra do governo imperial. J4 adulto, continuar4 o périplo pelo Brasil: $40 Paulo, novamente o Rio de Janeiro, interior de Minas Gerais, 16 OS CENARIOS CA REPUBLICA € outra vez Sao Paulo, onde retoma a colaborac3o com a imprensa no periddi- co O Estado de S. Paulo, que o enviar4 como repérter A cena do mais éesconcertante confronto a que fez frente a Repiiblica em seus primeiros anos: 2quels que resultou do enfrentamento, no interior da Bahia, entre o Exército nacional ¢ os sertanejos que buscavam nas pregacées de Anténio Conselhciro 2 esperarca que o Estado republicano — tal como a monarquia — insistia em regar-lhes no plano dos mais clementares dircitos de cidadania. Depois da expedigao a aldcia sagrada de Canudos, para 0 escritor uma verdadeira cpifania c= que o Brasil revelou-se por inreiro, Euclides seguiria ainda a peregrinagio gee nao cessava de levi-lo e de trazé-lo do cendrio do progresso montado no Rio de Janeiro para os grotées mais remotos do Pais; das vilas pacatas para as ‘apitais dos estados; da rotina das fazendas ¢ plantagées Para a exuberancia indomavel da selva amazénica. Depois de testemunhar a tragédia de Canudos ¢ antes de sua morte violenta em 1907, aos 43 anos de idade, Euclides viajaria anda por todo o interior de Sao Paulo como engenheiro de obras publicas; conhecer:a a tranqiiilidade da vida em Guaratingucta e Lorena; viveria no Guarujé enquanto trabalhava em Santos; percorreria boa parte da Amazénia, chegaria 4s nascentes do rio Purus ¢ regressaria A vida agitada da capital fede- ral jd travestida em Paris tropical pela reforma Pereira Passos. Por ter testemunhado o fim tragico daquilo que cle préprio qualificou de A nossa Vendéia (Cunha, 1966, vol. 1, p. 575), Euclides pode escrever Os ser- !des, um dos mais lticidos ¢ draméticos Retratos da Brasil* do inicio do século passado. Nesse livro, engastada no meio de uma rebuscada descrigao da caa- tinga e do homem sertanejo escrita conforme os canones Positivistas em que fora formado, aparece uma rara sintese que condensa o contrast entre os ideais de progresso e civilizagio que pautam os sonhos de scu tempo ¢ a dura reali- dade do Brasil. Destilada no incessante ir-e-vir, na experiéncia na vida familiar entre os coron¢is das fazendas fluminenses ¢ da Bahia, no Exérciro, no jornal € no trabalho como engenheiro e funciondrio do govemno pelo Brasil afora, esse trecho daquela que é uma das obras maiores da literatura brasileira ofere- ce uma cartografia simbélica dos dois cendrios republicanos: Estamos condenados & civilizagao. Ou progredimos ou desaparecemos. A afirmativa é segura. {...] 17 © BRASIL REPUBLICANO Vivendo quatrocentos anos no litoral vastissimo, em que palcjam reflexos de vida civilizada, tivemos de improviso, como heranga inesperada, a Republi- ca. Ascendemos de chofre, arrebatados no caudal dos ideais modernos, dei- xando na penumbra secular em que jazem no Smago do pais um tergo da nossa gente. Iludidos por uma civilizagio de empréstimo, respingando, em faina vega de copistas, tudo o que de melhor existe nos cddigos organicos de ou- tras nagdes, tornamos, revolucionariamente, fugindo a0 transigir mais ligci- ro com as exigéncias da nossa propria nacionalidade, mais fundo o contraste entre o nosso modo de viver ¢ 0 daqueles rudes patricios mais estrangeiros nessa terra que os imigrantes da Europa. Porque no no-los separa um mar, separam-no-los trés séculos (Cunha, 1966, vol. 2, p. 41 231). Na esteira dessas palavras, 0 que se pretende aqui é, em primeiro lugar, re- fletir sobre a Republica, regime polftico que Euclides da Cunha afirmava ser, no caso brasileiro, uma heranga inesperada, bem como sobre as relagées en- tre a nava institucionalidade implantada cm 1889 e os sonhos de progresso € civilizagdo, sem esquecer que, para o autor de Os sertGes, 0 primeiro termo esta associado a uma condenagdo inexoravel ¢ 0 segundo constitui-se em um ideal de empréstimo. £ também, em segundo lugar, aprofundar nessa curiosa geometria euclidiana que mede em séculos a distancia entre o dmago do pais co litoral vastissimo, representagSes espaciais dos dois cenérios da Republi- ca da perspectiva do autor. £ ainda — e sobretudo — pensar como, apesar das transformagées de toda ordem que caracterizam aquela virada de século, permanece intransponivel o fosso que exclui da arena politica formal os rv- des patricios € como sc mantém intocadas as hierarquias que subordinam aos interesses ¢ a0 mando dos que imprimem direg3o a Republica aqueles que Euclides, num céleulo ralvez otimista, estima serem 1071 tergo da nossa gente. © CAUDAL DOS IDEAIS MODERNOS Ao associar discursivamente o momento do advento da Republica no Brasil as idéias de improviso, de arrebatamento, de ascensdo, de velocidade e de inesperado, Euclides da Cunha reine ¢ resume um sentimento fortemente presente entre os scus contemporaneos, em especial entre aqueles 522.651 18 OS CENARIOS DA REPOBLICA bomeas ¢ mulheres que o censo de 1890 contabilizava como sendo a popu lac30 da cidade do Rio de Janeiro. De fato, era sob o signo de uma certa pirotecnia de stibitas mudangas qze o tempo vivido era percebido na cidade que, na sexta-feira, dia 15 de novermbro de 1889, amanhecera como corte imperial para anoitecer capital republicana. Arrebatado no caudal dos ideais modernos, o Rio de Janeiro, no fim do século XIX e inicio do século XX, cra palco de no poucas transfor- magées na esfera publica ¢ na vida privada. De olhos postos no outro lado do Adantico, o Brasil, metonimizado em sua capital, procurava imitar, ev: faina cega de copistas ¢ fugindo ao transigir mais ligeiro com as exigéncias da nossa prépria nacionalidade, nas palavras de Euclides, os modos de viver, os valores, as instituigées, os codigos ¢ as modas daquelas que entio ram vistas come as nacées progressistas ¢ civilizadas. Esses ideais »odernos, condensados no quc entao era visto como a asso- ciagdo indissolivel entre os conceitos de progresso ¢ de civilizagao, redesenhavam o quadro internacional, acenavam com a possibilidade de um orimismo sem limites em fungZo das conquistas da ciéncia e da técnica, im- punham uma determinada concepgio de tempo ¢ de hist6ria, ¢ ocultavam aos clhos da grande maioria o reverso de um panorama apresentado, quase sempre, como uma espécie de parusia terrena na qual as conquistas da técni- cae do engenho humano transformariam a barbarie das guerras no reinado da emulacao entre os pafses mais aptos, destinados a anunciar, por todo o be, a boa-nova da reden¢ao do atraso. S40 muitas as novidades do tempo. Novos protagonistas assumem um papel importante no cendrio interna- cional ¢, ao lado da Inglaterra, que havia sido até entioa poténcia hegeménica inconteste, senhora do império onde o sol jamais se punha, ¢ que subordinara a seus interesses boa parte dos jovens paises da América Latina — entre eleso Bras] —, outros paises passam a desempenhar um papel imperialista de desta- que. A Franca, até o periodo napoleénico poténcia eminentemente continen- tal, que ocupara a Argélia desde 1830, alarga seus dominios africanos depois de 1878 na bacia mediterranca, na Mauritania, na Africa Ocidental, no Gabao, na itha de Madagascar; ocupa no Pacffico o Taiti, as ilhas Marquesas ¢ a Nova Caledénia, ¢ passa a dividir com os britanicos territérios significativos no 14 © BRASIL REPUBLICANO Oriente: Cochinchina, Camboja, Anam, Tonquim e Laos, ocupados entre 1862 ¢ 1893, vao constituir a Indochina Francesa. A Alemanha, unificada em 1870, apossa-s¢ na Africa de Camarées, do Togo e de vastos territérios da Africa sul- ocidental c oriental, além de parte significativa da Nova Guiné e das ilhas do Pacifico a partic de 1878. Simultancamente, a Icdlia, também unificada no mesmo periodo que a Alemanha, ocupa a Libia, a Eritrdia e parte da Somélia no territério africano. A Bélgica planta, em 1908, no coragao da Africa o Congo Belga, enquanto Portugal ¢ Espanha, hd muito presentes na Africa, aumentam seus dominios. A Holanda mantém os territérios em Sumatra, Java, Bornéu, thas Célebes e Nova Guiné, No Extremo Oriente, o Jap’o rompc 0 insulamento ¢ ocupa territérios na Coréia ¢ na China. A Russia expande-se pelos Balcas, pelo Turquestao, pela Pérsia, pela Mongélia Exterior ¢ pela China. Nas Amé- ricas, os Estados Unidos, considerados como um modelo de pais jovem ¢ em- preendedor, entram na corrida imperialista e estabelecem bases militares ou ocupan, entre 1867 € 1915, o Alasca, o Havaf, Guam, Cuba, Haiti, Porto Rico, ithas Virgens, Nicaragua, Panama, parte do territério mexicano, algumas ilbas no Pacifico ¢, em 1898, substituem os espanhdis nas Filipinas. O mapa politi- co do mundo passa a Ser outro, ¢ 0 Brasil nele continua inscrito como pais dependente ¢ periférico, mas nao mais exclusivamente na area de influéncia inglesa. Outros investimentos € interesses internacionais aqui aportam, notadamente os norte-americanos. Novas engrenagens internacionais transformam a economia mundial, as grances poténcias hegeménicas deseobrem, nas areas periféricas — inclusive no Brasil —, um mercado lucrativo para aplicagées financeiras ¢ passam a juvestir fortemente ali, onde a mio-de-obra é barata, os direitos sociais estao longe de serem conquistados ¢ a matéria-prima é farta ¢ disponivel. O capi- talismo financeiro eomplementa as conquistas dos paises industrializados ¢ os trustes ¢ cartcis darfio novas formas as politicas monopolistas. Por toda parte, novos agentes ¢ novas praticas sociais transformam as cidades. Empresirios ¢ operdtios redesenham os pélos da conflitividade so- cial, se os primeiros ostentam riqueza nos saldes ¢ nas festas suntuosas, Os segundos encontram nas greves ¢ nos sindicatos a forma de reivindicar seus dircitos. Crescc 0 ntimero das fortunas feitas da noite para 0 dia, ¢ Balzac, eseritor francés que traz para a fiteratura as transformagées que, entao, afe- 20 OS CENARIOS DA REPOBLICA tavam tantas vidas, sustenta com argiicia que, por tras de uma grande fortu- na, h4 sempre um crime inconfessavel (Balzac, 1965, p. 139). Simétrica ¢ oposta, cresce também a pobreza nas cidades; jé em 1859 Charles Dickens ¢ em 1862 Vitor Hugo a transpordo para a literatura em Um conto de duas exdsdes ¢ em Os miserdveis. Os pobres — cada vez mais numerosos nas cida- des — se amontoam em casas de cémodos, pardiciros, pensdes, 4guas-furta- das ¢ tugurios nos bairros miserdveis e nas periferias. A multidao, outra das novidades do tempo, ocupa as ruas e, paradoxalmente, faz crescer a sensa- ga0 de isolamento e solidio ao instaurar 0 anonimato. Para conté-la os urba- nistas reformam as cidades. Para diverti-la, os mesmos maquinismos, que nas fabricas est3o associados a dura rotina do trabalho, sao utilizados nos gran- des parques de divers6es. Para amenizar a distancia que a separa da natureza s4o construidos os grandes parques urbanos, como o Central Park, em Nova York, ou o Bois de Boulogne, em Paris.’ Para educa-la, curd-la, disciplind-la e civilizé-la mobilizam-se os intelectuais eo poder puiblico. Também no Brasil, em especial no Rio de Janeiro, esse mesmo fenémeno pode ser observado € é captado pela literatura. Machado de Assis, em 1904, faz do contraste entre 9 morro do Castelo e os palacetes da rua Sao Clemente um dos temas de Esati e Jacé, e, talvez como nenhum outro escritor de seu tempo, Lima Barreto tra2 para seus romances, contos ¢ crénicas © universo dos pobres ¢ dos su- burbios que se ocultava nos desvaos da capital da ordem ¢ do progresso. Novas conquistas da ciéncia e da técnica ¢ novas invengées revolucio- nam os habitos ¢ o cotidiano. Na medicina sao extraordinérios os avancos. Por um lado, os segredos da satide do corpo vao sendo desvendados a partir da identificagao do bacilo da febre tiféide por Eberth em 1880, do bacilo da tubzrculose por Koch em 1882, do bacilo da difteria por Klebs em 1883, do bacilo da peste bubdnica por Yersin em 1894, da descoberta do radio por Pierre ¢ Marie Curie em 1894 € dos grupos sanguineos por Landsteiner em 1900. Por outro, os mistérios do inconsciente comegam a ser revelados des- de que, no anode 1900, Sigmund Freud escreve A interpretacao dos sonhos. No Brasil, os higienistas, tendo a frente Osvaldo Cruz, terao um papel im- portante na ciéncia e na moderniza¢io da capital, ¢ alguns cientistas, tais como Carlos Chagas, que em 1909 isola o Trypanosoma cruzi, se destacario no mundo cientifico internacional. © BRASIL REPUBLICANO Oriente; Cochinchina, Camboja, Anam, Tonquim ¢ Laos, ocupados entre 1 862 e 1893, vio constituir a Indochina Francesa. A Alemanha, unificada em 1870, apossa-se na Africa de Camaroes, do Togo ¢ de vastos territ6rios da Africa sul- ocidental ¢ oriental, além de parte significativa da Nova Guiné e das ithas do Pacifico a partir de 1878. Simultaneamente, a Itdlia, também unificada no mesmo perfodo que a Alemanha, ocupa a Libia, a Eritréia c parte da Somalia no territério africano. A Bélgica planta, em 1908, no coragao da Africa o Congo Belga, enquanto Portugal e Espanha, h4 muito presentes na Africa, aumentam scus dcminios. A Holanda mantém os territérios em Sumatra, Java, Bornéu, ilhas Célebes e Nova Guiné. No Extremo Oriente, 0 Japaorompe 0 insulamento ¢ ocupa territérios na Corcia ¢ na China. A Riissia expande-se pelos Balcas, pelo Turquestao, pela Pérsia, pela Mong(lia Exterior ¢ pela China. Nas Amé- ricas, cs Estados Unidos, considcrados como um modelo de pais jovem ¢ em- preendedor, entram na corrida imperialista e estabelecem bases militares ou ocupam, entre 1867 ¢ 1915, 0 Alasca, o Havaf, Guam, Cuba, Haiti, Porto Rico, ihas Virgens, Nicaragua, Panama, parte do territério mexicano, algumas ilhas no Pacifico e, em 1898, substiruem os espanhsis nas Filipinas. O mapa politi- co do mundo passa a ser outro, ¢ o Brasil nele continua inscrito como pafs dependente ¢ periférico, mas nao mais exclusivamente na rea de influéncia inglesa. Outros investimentos € interesses internacionais aqui aportam, notadamente os norte-americanos. Novas engrenagens internacionais transformam a economia mundial, as grandes poténcias hegem6nicas descobrem, nas reas periféricas — inclusive no Brasil —, um mercado lucrativo para aplicacées financeiras ¢ passam a investir fortemente ali, onde a mao-de-obra ¢ barata, os direitos sociais estao longe de serem conquistados ¢ a matéria-prima é farta c disponivel. © capi- talismo financeiro complementa as conquistas dos paises industrializados € os trustes ¢ cartéis dario novas formas as politicas monopolistas. Por toda parte, novos agentes € novas praticas sociais transformam as cidades. Empresiirios ¢ operdrios redesenham os pélos da conflitividade so- cial, ¢ se os primeiros ostentam riqueza nos saldes e nas festas suntuosas, Os segundos encontram nas greves € nos sindicatos a forma de reivindicar seus direitos. Cresce o ntimero das fortunas feitas da noite para o dia, ¢ Balzac, escritor francés que traz para a literatura as transformagées que, entio, afe- 20 OS CENARIOS DA REPUBLICA tavam tantas vidas, sustenta com argiicia que, por tras de uma grande fortu- =a, hd sempre um crime inconfessavel (Balzac, 1965, p. 139). Simétrica e oposta, cresce também a pobreza nas cidades; ja em 1859 Charles Dickens ¢ 2m 1862 Vitor Hugo a transpordo para a literatura em Um conto de duas cidades e em Os miserdveis. Os pobres — cada vez mais numerosos nas cida- des — se amontoam em casas de cémodos, pardieciros, pensdes, 4guas-furta- das e mgurios nos bairros miser4veis ¢ nas periferias. A multidao, outra das novidades do tempo, ocupa as ruas ¢, paradoxalmente, faz crescer a sensa- ¢30 de isolamento e solidao ao instaurar o anonimato. Para conté-la os urba- nistas reformam as cidades. Para diverti-la, os mesmos maquinismos, que nas fabricas esto associados a dura rotina do trabalho, sao utilizados nos gran- des parques de diversoes. Para amenizar a distancia que a separa da natureza so construfdos os grandes parques urbanos, como o Central Park, em Nova York, ou o Bois de Boulogne, em Paris.’ Para educd-la, curd-la, disciplind-la e civilizé-la mobilizam-se os intelectuais e o poder publico. Também no Brasil, cm especial no Rio de Janeiro, esse mesmo fenémeno pode ser observado € écaptado pela literatura. Machado de Assis, cm 1904, faz do contraste entre o morro do Castelo e os palacetes da rua Sio Clemente um dos temas de Esai e Jacd, ¢, talvez como nenhum outro escritor de seu tempo, Lima Barreto traz para seus romances, contos ¢ crdmicas o universo dos pobres e dos su- burbias que se ocultava nos desvaos da capital da ordem e do progresso. Novas conquistas da ciéncia e da técnica ¢ novas invengdes revolucio- nam os hdbitos ¢ 0 cotidiano. Na medicina sfo extraordin4rios os avangos. Por um lado, os segredos da satide do corpo vao sendo desvendados a partir da identificagio do bacilo da febre tifdide por Eberth em 1880, do bacilo da tuberaulose por Koch em 1882, do bacilo da difteria por Klebs em 1883, do bacilo da peste bubénica por Yersin em 1894, da descoberta do radio por Pierre ¢ Marie Curic em 1894 ¢ dos grupos sanguineos por Landsteiner em 1900. Por outro, os mistérios do inconsciente comegam a ser revelados des- de que, no ano de 1900, Sigmund Freud escreve A interpretagao dos sonhos. No Brasil, os higicnistas, tendo a frente Osvaldo Cruz, terao um papel im- portante na ciéncia e na modernizacao da capital, ¢ alguns cientistas, tais como Carlos Chagas, que em 1909 isola o Trypanosoma cruzi, se destacario no mundo cientifico internacional. © BAASIL REPUBLICANO E novo também o ritmo da vida e, com a associacao da ciéncia a técnica, as distancias parecem encurtar-se- Em terra, amplia-se 2 poderosa rede de ferrovias que corta OS cinco continentes €, cm 1890, um trem, 0 Empire State Express, atinge uma yelocidade de mais de 400km por hora. Um novo vei- culo ganha as ruas de todas as cidades desde que Daimler ¢ Benz constroem um autombvel movido a gasolina em 1885 ¢ Henry Ford comega a fabricar em série seus modelos T em 1908. Nos mares, desde 1873, 2 maquina Normand, de expansio tripla, torna os navios transatlanticos mais velozcs, ¢ © submarino langado por Laboeuf em 1899 traz para a realidade o que antes era possivel apenas na ficgdo de Julio Verne, que ja fizera o capitao Nemo singrar as profundezas do mar nas paginas de Vinte mil léguas submarinas. oO telcfone, o radio, o telégrafo e a linotipo inventada por Mergenthaler em 1884 revolucionam as possibilidades de comunicagao. E os baldes, os dirigi- veis, os zepelins € outras engenhocas voadoras tornam cada vez mais tangi- vel o mito de fearo eo sonho de Leonardo da Vinci, que se tornaré realidade gracas a um brasileiro franzino, Alberto Santos Dumont, que cruza os céus de Paris em 1906 a bordo do primeiro avido, © 14 bis, ainda que muitos afir- mem que a procza de voar a bordo de um aparelho mais pesado que o af pertenceu 20s irmaos Wright. Também o espago privado se transforma com mil novidades desde que Siemens inventa um forno clétrico em 1870, surge 2 baquelite — a primeira matéria plastica— em 1872, Edison acende a primeira lampada incandescente no vécuo em 1876 0 primeiro fogao elétrico comega a ser vendido em 1893. O progresso técnico invade as casas, transforma os ritos, os costumes ¢ OS hordrios da rotina doméstica. Quando, em 1905, Einstein propde 4 teoria da relatividade, revolucionando a fisica moderna, 3 quimica cotidiana da cozinha da maioria das casas ja havia sido transformada pela descoberta de uum nozte-americano de nome Normann que, em 1903, patenteara o proces: so de hidrogenagao para 2 fabricacio da margarina. Entre nés, alguns desses artefatos comegam a modificar os habitos dos casarbes da rua S40 Clemente e da avenida Paulista.‘ Uma nova concepgao de tempo e de histéria acompanha as miliplas mudangas que, aproximadamente entre 1870 ¢ a primeira grande guerra de 1914, se multiplicam em todos os Ambitos. O Ocidente vive um desses pe- 22 OS CENARIOS OA REPORBLICA riodes em que a histéria parece acelerar-se, ¢ N40 é apenas a experiéncia do tempo vivido que reflete ¢ provoca essa sensa¢ao: a propria percepgao mais abstrata do tempo e a concepgio de histéria que € seu corolario estarao pau- sadas pela primazia da nogao de evolugio ¢ por uma representagao linear, em constante aceleragio, do tempo histérico, que certamente ganha uma nova coloracio, ainda que possa ser percebida desde 0 século XVII € da constru- g30 da ra740 instrumental moderna, posto que, nas palavras de Reinhart Koselleck, nosso conceito moderno de histéria é fruto da reflexdo das Luzes sobre a complexidade crescente da “histéria em si, na qual as condigdes da experiéncia parecem afastar-se, cada vez mais, da prépria experiéncia” (Koselleck, 1990, p. 12). Uniforme, rigidamente controtado, cada vez mais veloz ¢ pautado pela eficitncia, o tempo € visto como um continuum entre dois pélos que especi- ficam seu ponto de partida ¢ seu telos, situado no pélo que assinala a sempre renovada conquiista do progresso ¢ da civilizagao, marcado com um sinal de positividade c oposto ao plo do atraso € da barbérie, negativado. Nesse tem- po rstilineo e direcionado mover-se-iam todas as nagées, que se viam ¢ eram vistas como modernas na medida em que s¢ situassem no limiar das mais recentes conquistas da época, consideradas como manifestacdes inequivocas da primazia de seu engenho ¢ arte. Cabe lembrar que o evolucionismo social de Spencer precede 0 darwinismo, que parece aplicar em sua teoria da selecio natural das espécies os principios que norteiam a concep¢ao de hist6ria como uma incessante cortida pelos trilhos do progresso, ¢ que permitiria aos paises que se viam como 0s mais aptos arvorar-se uma missio civilizadora em relagao aqueles paises ou mesmo continentes vistos como mais atrasados, cujo destino seria emular os que se apresentavam como a vanguarda do Ocidente. O problema dessa concep¢ao evalucionista ¢ linear da histéria reside em tratar diferencas como se fossem desigualdades. Com efeito, ainda que os paises periféricos — entre eles o Brasil — incorporassem 0 discurso das na- des hegeménicas ¢ entendessem que bastaria imprimir uma maior velocida- de a suas conquistas para entrar no rol das nagées civilizadas e progressistas — para utilizar uma formulagao recorrente na época — ¢ mesmo para che- gara alcangar um lugar de proeminéncia na corrida pelo progresso, supe- 23 © BRASIL REPUBLICANO rando assim uma desigualdade facilmente sandvel pela aplicagao das inteli- géncias ¢ a mobilizacio das vontades, a diferenga essencial que os scparava de paises como a Franca ¢ a Inglaterra, a Alemanha ¢ os Estados Unidos, a Bélgica ou a Itélia nao cessava de aprofundar-se, uma vez que da manuten- go de seu lugar periférico, subordinado ¢ ainda colonial, dependia a repro- dugio exponencial da riqueza, da hegemonia e do lugar ocupado pelos chamados pafses civilizados ¢ progressistas no concerto das na¢ées. A idcologia do progresso, no entanto, impedia a percep¢ao dessa dife- renca fundamental e de algumas das decorréncias menos edificantes do espi- rito do tempo, fais como 0 etnocentrismo, © desrespeito aos valores das diversas culturas, a injusta distribuigo da riqueza entre os Estados e no inte- rior deles, a prepoténcia, a violéncia e a exploracio. Desde a metade do sé- culo XIX, essa ideologia, sintese dos ideais modernos em cujo caudal Euclides da Cunha via o Brasil arrebatado, tansformara-se em algo muito préximo a utna religiao leiga. Como toda religiao, para além de realizar seu sentido etimoldégico — re ligare —, a0 congregar os que partilhavam a mesma fé em torno a um credo comum, aquela que se consolida a partir da crenga inabalavel na marcha do progresso da humanidade como decorréncia légica ¢ necessaria das conquis- tas técnicas e cientfficas saber4 encontrar seus ritos, sua liturgia ¢ suas cele- bragdes: as Exposig6es Internacionais,’ realizadas periodicamente, cumprirao com ef.cdcia essa fungio. Nao sem razio, Walter Benjamin, arguto obscrva- dor de seu tempo, as considerard como lugares de peregrinagdo & mercado- ria-fetiche (Benjamin, 1982, p. 64). Desde 1851, quando a Inglaterra vitoriana inaugura a primeira das Exposigdes Universais, 0 caudal dos ideais modernos vird desaguar nessas festas do progresso ¢ da civilizagdo, vistas pelos organizadores como are- nas pacificas (Neves, 1988). Milhares de visitantes de todas as latitudes geograficas ¢ sociais aprenderao, 20 visita-las, ligdes indeléveis que resu- mirdoas convicgées daquele tempo, associarao indissoluvelmente os Con- ceitos de progresso ¢ civilizagao ¢ assimilarao uma detcrminada visio da hist6r.a. Cabe assinalar que muitos dos marcos que monumentalizam es- ses ideais modernos sao originariamente vinculados as Exposigées. Eo caso co Palacio de Cristal, projetado por John Paxton para a Exposigao 24

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