DEMOCRACIA NO BRASIL*
vos localizados na própria Carta. Tomar decisões avaliamos se as emendas constitucionais aprovadas
e implementar políticas governamentais são ativi- durante os governos de Fernando Henrique Cardoso
dades que, no Brasil pós-1988, não lograram (1995-1998; 1999-2002) incidiam mais sobre políticas
adquirir uma rotina apenas infraconstitucional. públicas ou sobre princípios propriamente constitu-
Pelo contrário, boa parte dessas atividades teve cionais. Verificamos naquele trabalho que 68,8%
lugar no nível superior da hierarquia legislativa, dos dispositivos integrantes das emendas constitu-
ou seja, na própria Constituição. cionais aprovadas durante o período FHC corres-
À parte o fato de nossa história constitucio- pondiam a políticas públicas. Diante de tal mon-
nal ser marcada pela instabilidade (estamos na tante e do fato de que a maior parte das emendas
oitava constituição desde a Independência do constitucionais fora de iniciativa do Executivo,
país, e a durabilidade média das Cartas, desconsi- poderíamos nos questionar: o que levaria um gover-
derados os diferentes tipos de regime que as ense- no a implementar sua agenda de políticas públicas
jaram, é pouco maior do que duas décadas), o modificando a Constituição, em vez de fazê-lo pela
texto de 1988 parecia refletir um novo estágio de via infraconstitucional?
maturidade política e de longevidade institucional, A pergunta é pertinente, considerando-se
coroando e habilitando ao pleno desenvolvimen- que os procedimentos necessários à aprovação de
to a democracia recém-conquistada, desta feita, emendas constitucionais são muito mais exigentes
em bases aparentemente mais sólidas do que em do que aqueles requeridos para leis ordinárias ou
períodos anteriores. No entanto, passada a euforia mesmo para a legislação complementar. Sendo
inicial, também a Carta de 1988 cedeu aos velhos assim, nenhum governo buscaria implementar sua
signos da instabilidade e da reforma, e aquele que agenda, lançando mão de tal expediente, se não
parecia um texto definitivo, capaz de encerrar uma fosse realmente obrigado a fazê-lo.1 Uma das pos-
fase da história política do país e dar início a outra síveis razões para tal escolha poderia ser a exi-
com chances de longa durabilidade, foi submetido gência, pelos parlamentares, de que determinadas
a freqüentes modificações. mudanças ocorressem pela via constitucional – tal-
No debate público, as alterações na Constitui- vez como forma de dar guarida a determinadas
ção de 1988 foram e têm sido defendidas e com- decisões ao constitucionalizá-las. Outro motivo, a
batidas ao sabor do jogo político e das forças em nosso ver mais plausível, é a existência de impedi-
disputa. Entre os analistas, entretanto, não se avan- mentos constitucionais à implementação de algumas
çou muito além da análise de tipo conjuntural; políticas pelo governo. Ou seja, se a Constituição
quando muito, tais alterações foram interpretadas à determina certas políticas públicas, implementar
luz dos processos mais amplos de reforma econô- alternativas a elas exigirá – necessariamente – a
mica ou do Estado que marcaram os anos de 1990, modificação da Carta. No caso da maior parte das
mas não logramos desenvolver uma explicação das emendas promovidas pelo governo FHC, foi isto
razões mais específicas das mudanças constitucio- de fato o que se verificou.
nais. O objetivo central desse texto é suprir esta É necessário, entretanto, além de analisar as
lacuna e oferecer um modelo de análise capaz de emendas, avaliar o próprio texto constitucional ori-
explicar por que a Constituição de 1988 não adqui- ginário, com vistas a identificar o peso de cada um
riu a estabilidade esperada e o país permaneceu dos tipos de dispositivos constitucionais existentes
numa espécie de agenda constituinte. e, considerando-se sua natureza, aferir se foram ou
Nosso modelo de análise da Constituição não emendados pelos governos subseqüentes.
buscará determinar em que medida ela contém dis- A maneira como distinguimos diferentes
positivos que podem ser classificados como princí- tipos de dispositivos no interior da Carta deve ser
pios fundamentais ou dispositivos que mais se explicada, a fim de que não pareça arbitrária.
assemelham a políticas públicas, e dessa distinção Para tanto, na seção que se segue, apresentamos
várias conseqüências de ordem política e institu- os fundamentos teóricos da Metodologia de
cional poderão ser derivadas. O modelo aqui Análise Constitucional (MAC), por nós desenvol-
desenvolvido já foi aplicado preliminarmente em vida. Essa discussão reproduz em parte a seção
estudo anterior (Couto e Arantes, 2003), no qual metodológica de nosso trabalho de 2003, supra-
CONSTITUIÇÃO, GOVERNO E DEMOCRACIA NO BRASIL 43
mencionado. Contudo, tendo em vista que reali- me constitucional logo foi atacado por seu ana-
zaremos neste texto uma nova aplicação da MAC, cronismo, mal tinha ele nascido. Com Fernando
julgamos por bem reapresentá-la, incorporando Henrique Cardoso (1995-2002), essa hipótese so-
também algumas modificações à versão original, bre uma incompatibilidade substancial entre a
advindas do desenvolvimento da própria pesqui- Carta e os novos desafios estruturais evidenciou-
sa desde então. se na formação de uma ampla coalizão de gover-
no que, diferentemente do pouco sucesso de seus
antecessores, conseguiu implementar um conjun-
O problema constitucional brasileiro: to importante de alterações na Constituição.
reformas (não necessariamente) Este texto não explora essa hipótese – que
constitucionais investe na incompatibilidade substantiva entre a
Carta de 1988 e a agenda de reformas dos anos de
A hipótese mais usual sobre a permanência 1990 –, pois desejamos mostrar uma outra dimensão
de uma agenda constituinte no Brasil pós-1988 do problema constitucional brasileiro. Para além de
(comprovada pela intensa atividade de reforma do eventuais anacronismos legados pela Constituição,
texto constitucional nesse período) afirma que a nosso objetivo é demonstrar que ela nos legou um
Constituição teria caducado logo após seu nasci- peculiar modus operandi de produção normativa,
mento, isto é, o texto teria sofrido de um envelhe- com conseqüências significativas para o funciona-
cimento súbito, como se tivesse mais a ver com o mento da democracia brasileira. Nesse sentido,
passado do país do que com o presente. Esse des- nossa hipótese é mais formal do que substantiva,
compasso seria especialmente perceptível diante pois se refere ao modo pelo qual o processo deci-
da agenda de reformas estruturais do Estado e do sório e governamental vem-se dando no Brasil.
sistema econômico que, gradualmente, foi-se Importa-nos pouco o conteúdo concreto das agen-
impondo ao país como necessária para a desejada das de governos específicos. Comprovando-se
estabilização da economia e a retomada do desen- nossa hipótese, a conclusão necessária será que,
volvimento em novas bases. Nesse sentido, o fato enquanto vigorar a Carta de 1988 em seus moldes
de a atividade governamental ter continuado a atuais, independentemente do conteúdo de políti-
ocorrer no plano constitucional seria conseqüên- cas governamentais específicas, levadas à esquer-
cia de uma incompatibilidade substancial entre o da ou à direita, por progressistas ou conservado-
conteúdo da Carta de 1988 e os desafios que a res (ou qualquer outra denominação ideológica
nova realidade econômica e política, nacional e que se queira dar), a atividade de governo no
internacional, passou a impor ao país. Brasil seguirá ocorrendo em grande medida no
Desde a promulgação do texto constitucional, plano constitucional, e estaremos fadados a uma
vozes dissonantes levantaram-se contra a Carta, dinâmica constituinte permanente, incapaz de pôr
acusando-a de constituir, no plano econômico, um um ponto final no processo iniciado em 1988.
obstáculo à modernização do país e, no plano polí- Nosso argumento principal é de que a Carta
tico, um desastre do ponto de vista da governabili- brasileira de 1988 se caracteriza por ter constitu-
dade. Assim, a Constituição escrita sob a égide da cionalizado formalmente diversos dispositivos que
“remoção do entulho autoritário” do regime militar apresentam, na verdade, características de políti-
pós-64 ter-se-ia tornado ela mesma – e muito rapi- cas governamentais com fortes implicações para o
damente – uma espécie de “entulho nacional-desen- modus operandi do sistema político brasileiro. Em
volvimentista”, que precisaria ser removido para primeiro lugar, a constitucionalização de políticas
permitir a implementação das chamadas reformas públicas faz com que os sucessivos governantes se
orientadas para o mercado. vejam diante da necessidade de modificar o orde-
Na perspectiva dessa hipótese substantiva, namento constitucional para poder implementar
desde José Sarney (1985-1990) e sobretudo com parte de suas plataformas de governo. Em segundo
Fernando Collor (1990-1992), questões funda- lugar, construir amplas maiorias legislativas passa a
mentais do Estado e do modelo econômico no ser condição básica para superar o engessamento
Brasil começaram a ser levantadas e o novo regi- prévio a que foi submetida a agenda governa-
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mental pelo constituinte, algo especialmente difícil Este processo descentralizado, o quorum de
no contexto institucional de um Estado federativo maioria simples e a ausência de um projeto-base
e de um regime presidencialista multipartidário e do qual se pudesse partir3 constituíram fatores
bicameral como o brasileiro (Tsebelis, 1997). Por favoráveis à introdução no texto dos mais variados
fim, mas não menos importante, esse tipo especial dispositivos, bastando para isso que estes contas-
de Constituição tende a causar impacto significati- sem com o apoio substancial de algum grupo de
vo sobre o funcionamento do sistema de justiça, pressão ou bancada parlamentar e não ferissem os
na medida em que o Judiciário, e especialmente interesses da maioria congressual.4 Nesse sentido,
seu órgão de cúpula – o Supremo Tribunal Federal pode-se dizer que as negociações travadas em
(STF) –, passa a ser mais acionado para controlar torno da elaboração da nova Carta ocorreram sob
a constitucionalidade das leis e demais atos nor- a égide de um amplo log rolling: ao apoio de um
mativos (Arantes, 1997; Arantes e Kerche, 1999), grupo X a medidas patrocinadas pelo grupo Y,
nem sempre relativos a princípios constitucionais retribuir-se-ia noutra ocasião com o apoio do
fundamentais, mas freqüentemente relativos a grupo Y a uma medida de interesse do grupo X.
políticas públicas. Coelho e Oliveira chamaram a atenção para
Quais seriam as razões da grande presença a dinâmica extremamente descentralizada que
de políticas públicas no interior do texto constitu- marcou os trabalhos constituintes, destacando a
cional? Acreditamos que uma das principais foi o falta de paralelo de processos semelhantes na his-
formato que presidiu os trabalhos da Assembléia
tória constitucional brasileira e mesmo no direito
Nacional Constituinte, favorecendo enormemente
comparado. Segundo esses autores,
a introdução no texto de dispositivos de cunho
particularista. Um bom resumo desse processo é
[...] a construção do futuro Projeto deu-se de fora
dado por Souza e Lamounier: para dentro, de partes para o todo. Vinte e qua-
tro subcomissões temáticas recolheram sugestões,
De acordo com as diretrizes legais estabelecidas
realizaram audiências públicas e formularam
pela chamada “Emenda Sarney”, os deputados e
estudos parciais. Estes foram reunidos em blocos
senadores a serem eleitos em novembro de 1986
de três a três, através de oito comissões temáticas.
reunir-se-iam unicameralmente, decidindo por
Só então a Comissão de Sistematização organizou
maioria simples, como uma verdadeira Assem-
o primeiro anteprojeto, em 15 de julho de 1987.
bléia Constituinte. Quando esse novo Congresso
A partir daí, ocorreu uma tramitação formal, com
iniciou os seus trabalhos, no princípio de 1987,
emendas, pareceres e votações. Muitos impasses,
houve tensos debates entre os constituintes a res-
negociações, confrontos. Ao todo foram apresen-
peito dos poderes de que se achavam investidos
tadas, durante as várias fases de comissões, siste-
e sobre a organização a ser adotada nos trabalhos.
Predominou, no final, uma organização fortemen- matização, primeiro e segundo turnos de plená-
te descentralizada: subcomissões e comissões rio, um total de 65.809 emendas. Existiram nove
temáticas fariam os estudos iniciais, ouvindo a projetos, desde o de 15 de julho de 1987 até a
sociedade e votando relatórios preliminares; encer- redação final, em setembro de 1988 (Coelho e
rada essa fase, uma Comissão de Sistematização de Oliveira, 1989, p. 20, grifo nosso).
97 membros (cuja presidência coube também ao
Senador Afonso Arinos), encarregar-se-ia de prepa- Embora uma análise mais detalhada dos
rar o projeto final a ser votado pelo plenário. O resultados desse método de funcionamento da
projeto constitucional foi finalmente levado a uma Constituinte seja recomendável, antes de conclu-
primeira votação em plenário no princípio de sões generalizantes, parece-nos defensável a hipó-
1988. Uma vez que não se formou nenhum bloco
tese de que esse formato foi o grande responsável
monolítico no Congresso, o voto majoritário, na
pela introdução no texto constitucional de uma
maior parte dos artigos, teve que ser negociado e
renegociado vezes sem conta. A segunda e última grande quantidade de dispositivos mais adequa-
rodada ocorreu em setembro de 1988, sendo a damente definidos como políticas públicas do
nova Constituição promulgada a 5 de outubro que como princípios constitucionais gerais e fun-
(Lamounier, 1990, p. 82).2 damentais. Nesse sentido, para além dos conteú-
CONSTITUIÇÃO, GOVERNO E DEMOCRACIA NO BRASIL 45
dos específicos consagrados pela Carta, esse tipo tiva, a inexistência de policy advocates para as
de normatização constitucional engessou formal- emendas e a simultaneidade de votações reduziam
mente a agenda governamental futura e era o potencial de mudança por parte do governo. A
análise sugere que esse potencial, que o arranjo
mesmo de se esperar, como de fato ocorreu, que
institucional propiciava, foi anulado pelo impacto
boa parte desses dispositivos se tornasse futura-
devastador de fatores contextuais, tais como os
mente alvo de tentativas de reforma por parte de constrangimentos eleitorais, a polarização da agen-
novas maiorias parlamentares ou de novas ges- da pública e a estrutura de incentivos com que se
tões à frente do Executivo. Assim, o baixo grau de deparavam o Executivo e o Legislativo na conjun-
universalismo atingido pela Constituição e a gran- tura da CPI do orçamento. O calendário eleitoral,
de quantidade de dispositivos particularistas e como variável isolada, se constituiu no fator deci-
controversos presentes no texto são fatores que sivo (Melo, 2002, p. 76).
ajudam a entender por que a promulgação da
nova Carta ocorreu sob o signo de certa indefini- A análise de Melo é em si reveladora de um
ção ou provisoriedade, tendo a própria Consti- aspecto fundamental disso que estamos chamando
tuinte programado uma Revisão Constitucional de o problema constitucional brasileiro. Afinal de
geral para daí a cinco anos (sob a influência da contas, por que o sucesso ou o fracasso de um pro-
Constituição portuguesa, que possuía a previsão cesso de revisão constitucional deveria estar condi-
de revisões a cada cinco anos), por meio do arti- cionado pelos interesses do “governo”, pela pre-
go 3º do Ato das Disposições Constitucionais sença ou ausência de policy advocates, pelo efeito
Transitórias: negativo (“devastador”) de fatores “contextuais”,
pela “conjuntura” política e pelo “calendário elei-
Art. 3.º A revisão constitucional será realizada toral”, se não pelo fato de que essa Constituição é
após cinco anos, contados da promulgação da ela mesma uma Carta que encerra muitos disposi-
Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos tivos tipicamente governamentais? Isto é, os fatores
membros do Congresso Nacional, em sessão uni- identificados por Melo para explicar o fracasso da
cameral. revisão constitucional de 1993/1994 são a própria
confirmação do nosso argumento de que a
Anos mais tarde, por mais que alguns intér- Constituição criou um modus operandi de produ-
pretes da Constituição tenham tentado vincular o ção normativa que vincula os interesses conjuntu-
artigo 3º do ADCT aos resultados do plebiscito rais, de governo e dos policy advocates, ao marco
sobre sistema de governo realizado em 1993, pre- constitucional. É por essa razão que nossa agenda
valeceu a opinião de que a revisão autoprogra- política seguiu sendo uma agenda constituinte no
mada da Carta deveria ser irrestrita, podendo ver- pós-1988.6
sar sobre todo o texto. O outro exemplo que confirma o argumen-
A Constituição, que nasceu sob o signo da to sobre a peculiaridade do nosso ordenamento
reforma em moto-contínuo, passou, entretanto, constitucional é justamente o processo de refor-
pela Revisão Constitucional de 1993/1994 sem mas constitucionais conduzido durante os dois
que muitas e prometidas alterações fossem feitas mandatos de Fernando Henrique Cardoso na pre-
no texto original.5 Segundo Melo, em um dos sidência da República. O maior sucesso do gover-
estudos mais completos sobre as principais refor- no FHC na implementação de mudanças constitu-
mas constitucionais no Brasil, o malogro da revi- cionais explica-se pela conjunção complexa,
são de 1993/1994 deu-se em virtude de uma con- porém favorável, de fatores como os menciona-
junção de fatores, a despeito do potencial e das dos acima por Melo, em grau suficiente para que
expectativas de mudança que antecederam o pro- a agenda governamental de um presidente em
cesso. Comparativamente aos aspectos que favo- particular pudesse vencer os obstáculos da cons-
reciam a mudança constitucional, titucionalização a que ela foi previamente subme-
tida pelo modelo de 1988.7
[...] outras características, no entanto, tais como o Ao longo de dezoito anos de vigência da
monopólio, pelo Legislativo, da iniciativa proposi- Constituição de 1988 transcorridos até 2006, um
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zões. Trata-se da dimensão dinâmica da realida- como este jogo se desenrola limitado pela estru-
de política, ao passo que as condições paramétri- tura constitucional, o alcance dos resultados tam-
cas estáveis constituem a sua dimensão estática. bém está limitado por essa estrutura – o que não
Noutras palavras, o jogo político diz respeito à significa dizer que seja predeterminado por ela.9
ação (e à interação), ao passo que as condições A esta dimensão denominamos policy.
paramétricas dizem respeito à estrutura, no âmbito Definimos em inglês as três dimensões da
da qual ocorrem as ações (e interações). É também política em decorrência da falta de termos apro-
no âmbito dessa competição que se definem, nos priados e claramente diferenciados na língua por-
limites das regras estabelecidas, os que ganham e tuguesa para cada uma delas. Sumarizando, a
os que perdem, os que ocuparão os cargos públi- polity corresponde à estrutura paramétrica estável
cos (eletivos ou não) e os que ficarão excluídos do da política e que, supõe-se, deve ser a mais con-
poder, os aliados e os adversários etc. A esta sensual possível entre os atores; a politics é o pró-
segunda dimensão da realidade política denomina- prio jogo político; a policy diz respeito às políticas
mos politics. públicas, ao resultado do jogo disputado de acor-
Entretanto, além do jogo político há também do com as regras vigentes.10 O Quadro 1 resume
a importante esfera das decisões de governo, que a natureza e as características principais destas
constitui a terceira dimensão do regime poliár- três dimensões do processo político democrático.
quico. Tais decisões são elas próprias um objeti- Como nosso intuito neste artigo é analisar
vo e uma decorrência – ao mesmo tempo – do o conteúdo da Constituição brasileira de 1988,
jogo político. Afinal, por que motivos competem não trataremos da dimensão dinâmica do pro-
os jogadores nas poliarquias? Como certa vez cesso democrático, a politics, para concentrar-
definiu Schumpeter (1980), para ocupar postos de mos nossas atenções na hierarquia normativa
poder e influência; mas também para definir polí- que distingue o pacto constitucional (polity) das
ticas públicas. Sobre estas últimas, ao contrário decisões governamentais (policy). A Figura 1
das condições paramétricas estáveis, espera-se ilustra esta hierarquia e diversos aspectos a ela
que sejam objetos de controvérsia, e não de con- relacionados.
sensos mínimos; por isso mesmo, decorrem das A lógica poliárquica supõe que normas
disputas políticas conjunturais. Enquanto a pri- constitucionais estruturem o sistema político, esta-
meira dimensão constitui a base para o jogo polí- belecendo condições gerais para seu funciona-
tico, essa última representa seus resultados con- mento. São por isso genéricas, tanto na definição
cretos e circunstanciais. E da mesma maneira dos pressupostos formais do jogo, como na esti-
Quadro 1
Natureza das Dimensões Ideais do Processo Político Democrático
CARACTERÍSTICA CARACTERÍSTICA
DIMENSÃO NATUREZA DENOMINAÇÃO
SUBSTANTIVA FORMAL
Consenso mínimo
Parâmetros Gerais Generalidade,
NORMATIVIDADE pactuado entre
do Jogo Político Polity relativa
CONSTITUCIONAL os diversos
(Estrutura) neutralidade
atores políticos
EMBATES E Relacionamento
Conflito e/ou
COALIZÕES Jogo Político Politics dinâmico entre os
Cooperação.
POLÍTICAS atores políticos
Resultados Vitória/Derrota
NORMATIVIDADE Especificidade,
do Jogo Político Policy de diferentes
GOVERNAMENTAL controvérsia
(Conjuntura) atores políticos
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pulação dos limiares e dos limites de seus resul- pios são relativamente neutros.11 Na medida em
tados conjunturais. Nessa dimensão, a constitui- que definem somente os parâmetros, os princí-
ção corresponde a um pacto entre os atores polí- pios e os limites do jogo político, as normas cons-
ticos, refletindo um consenso básico entre eles. titucionais poliárquicas têm caráter genérico, pois
Caso não seja assim e a Constituição estipule nor- medidas específicas para sua efetivação são toma-
mas de maior especificidade, que ultrapassem das conjunturalmente, tendo em vista as circuns-
esse consenso básico, ela refletirá a vitória de tâncias particulares com que lidam os governos
alguns setores da sociedade sobre outros. Dado do dia.
seu caráter de maior permanência, tal Constituição Dada a função estruturante da polity, as nor-
consagrará de modo perene interesses circuns- mas constitucionais têm caráter soberano, razão
tanciais, por colocá-los fora do alcance do jogo pela qual não estão em princípio sujeitas à discus-
poliárquico futuro. são democrática cotidiana, à qual balizam, resguar-
A pactuação consensual de princípios cons- dando direitos fundamentais e assegurando que a
titucionais implica na normatização apenas dos politics transcorra segundo parâmetros previsíveis
interesses comuns aos diversos setores da socie- e estáveis. Normativamente, correspondem a um
dade, ou, no máximo, daqueles interesses parti- momento inaugural, no qual se fundaria a polity e
culares inegociáveis, sem cuja garantia o convívio se iniciaria o jogo político (Ackerman, 1988). Em
pacífico e a competição política leal entre os virtude disso, são protegidas contra modificações
diversos setores sociais e políticos seriam inviabi- freqüentes, sendo as regras para sua alteração bem
lizados. Por isso pode-se afirmar que tais princí- mais exigentes do que as necessárias para alterar
Figura
Figura 11
Representação
Representação sintéticadadaHierarquia
Sintética Decisória
hierarqui decisória
Grau de C o n se n s o Dec i s ór i o Ex i g i d o
Pacto Soberania
Gra u d e Gen era l i d a d e d a s N orm a s
NORMAS PARACONSTITUCIONAIS
NORMAS GOVERNAMENTAIS(POLICY )
Conjuntura Eficácia
Decisão Majoritária Governo
MENOR MENOR
CONSTITUIÇÃO, GOVERNO E DEMOCRACIA NO BRASIL 49
Nesse sentido, os seguintes critérios poderiam ser confundir direitos individuais de proteção (contra
adotados para identificar os dispositivos típicos da o Estado e também contra outras pessoas) e de
polity e, por exclusão, revelar aqueles que pode- participação na esfera pública, com os direitos de
riam ser considerados veículos de policy. Dentre emulação mediante políticas governamentais que
os princípios de um regime liberal-democrático visem a atenuar desigualdades socioeconômicas.
clássico, formalizados constitucionalmente, ape- Nessa classificação inicial, o primeiro tipo de direi-
nas seriam típicos da polity: tos compõe a polity e, portanto, tem natureza cons-
titucional. O segundo aproxima-se da categoria de
1. As definições de Estado e nação, tais como o policy, apesar de sua inclusão na Carta conferir-lhe
regime republicano ou monárquico, a defini- formalmente status constitucional.
ção do território, a organização federativa ou A policy é quase tocada pela segunda vez
unitária, o exercício direto e/ou representativo quando, no critério 3 (regras do jogo), menciona-
do poder político pelos cidadãos, a noção de mos as funções dos entes governamentais. Note-
nacionalidade e a estrutura do aparato estatal. se que esse critério se destina a catalogar provi-
sões constitucionais que organizam processos –
2. Os direitos individuais fundamentais, carac-
como o da divisão de atribuições governamentais
terizados pelas condições básicas do exercí-
específicas entre órgãos estatais – e não devem
cio da cidadania individual (direitos civis).
ser confundidas com dispositivos que estabele-
Consideramos princípios da polity, nessa pri-
çam funções promocionais do Estado e são clas-
meira classificação geral, as garantias da liber-
sificados como policy. As funções de governo só
dade civil, que Berlin (1981, pp. 133-145) reu-
serão classificadas como polity quando disserem
niu sob a expressão “liberdade negativa”
respeito a questões de ordem procedimental, rela-
(proteção do cidadão contra a ação arbitrária
cionadas à distribuição horizontal de poder entre
do Estado), e os direitos políticos de partici-
os diversos entes estatais, ao funcionamento inter-
pação democrática. Note-se que esse critério
no desses mesmos entes, à participação democrá-
minimalista afasta da definição constitucional
tica dos cidadãos e à garantia de suas liberdades
da polity os direitos substantivos, individuais
negativas. Funções passíveis de serem classifica-
e sociais, que normalmente vêm acompanha-
das como polity não serão aquelas que se referem
dos de normas constitucionais programáticas.
a funções emuladoras do Estado, mas aquelas ins-
3. As regras do jogo, que organizam os proces- piradas nos princípios liberal (do governo limita-
sos de participação e competição políticas, do) e democrático (do governo participativo). Por
relacionamento entre e intrapoderes, intera- outro lado, serão classificadas como policy justa-
ção entre níveis de governo e entre atores mente quando impuserem obrigações positivas
coletivos reconhecidos como lidando com (“direito do cidadão, dever do Estado”) numa pers-
interesses de natureza pública. Tais regras pectiva vertical de relação entre o governo e a
estipulam: (a) a divisão de prerrogativas e sociedade, em torno de direitos substantivos cuja
funções entre os atores institucionais, (b) as efetivação depende da implementação de políticas
regras operacionais do processo decisório sociais.
governamental e (c) os tempos e os prazos Entretanto, desde que Marshall (1967) defi-
que balizam tais processos. niu a composição tripartite da cidadania moderna
em direitos civis, políticos e sociais e que os tex-
Esses três critérios partem da maior generali- tos constitucionais da segunda metade do século
dade possível da polity (critério 1) e ganham espe- XX estabeleceram um amplo leque de obrigações
cificidade até quase tocar o nível de policy por sociais do Estado, tornou-se bastante difícil defen-
duas vezes. Pela primeira vez, quando, no critério der um conceito de polity tão minimalista como o
2, a menção à cidadania poder-nos-ia levar a estabelecido acima.14 Em todos os países que recen-
incluir direitos constitucionais substantivos que temente adotaram o figurino liberal-democrático,
requerem policies para sua efetivação. Todavia, gamas importantes de direitos sociais foram men-
nessa definição minimalista de polity, evitamos cionadas nos capítulos constitucionais destinados
CONSTITUIÇÃO, GOVERNO E DEMOCRACIA NO BRASIL 51
aos direitos e às garantias fundamentais. Nossas vida democrática, os direitos materiais aqui
constituições atuais não se restringem a estabele- mencionados podem ser considerados direi-
cer os limites necessários à vigência da “liberdade tos condicionantes do jogo político nesses
negativa” e tratam de avançar na direção da igual- regimes, na medida em que mantêm a ade-
dade, impondo obrigações positivas ao Estado. É são social ao pacto político democrático.16
verdade que a realização dessa igualdade é obs-
tada pelo direito também constitucional da pro- Por fim, independentemente do maior peso
priedade privada, não sendo demais lembrar que liberal-democrático ou igualitário das Cartas, nor-
tal dispositivo é a pedra angular do Estado de mas propriamente constitucionais referem-se ape-
Direito liberal.15 De qualquer forma, considera-se nas a princípios fundamentais do ordenamento
um grande salto de cidadania a constitucionalização político, e não a detalhes que são o objeto da poli-
de direitos de igualdade material entre os homens, tics infraconstitucional cotidiana durante a confec-
mesmo que definições como “função social da pro- ção das policies. A constitucionalização de assuntos
priedade” e “Estado Democrático de Direito” com- que são a matéria-prima do jogo político ordinário
portem boa dose de contradição, refletida em ten- extrapolaria justamente o caráter constitucional,
sões no interior do texto constitucional. conformador do jogo, pois estipularia rigidamente
Por essas razões e apesar de os conceitos de e a priori o que será ou não passível de mudança
cidadania e polity não designarem a mesma coisa, pela maioria política. Limitando-se em demasia os
decidimos trabalhar com dois tipos de classifica- resultados possíveis do jogo, constrange-se a liber-
ção: a minimalista, baseada nos três critérios acima, dade dos atores na politics cotidiana, equiparando
e uma maximalista, que além dos três anteriores, a polity ao que é considerado policy, primeira-
incorporaria um quarto critério, mencionado a mente, pelos próprios contendores políticos. Tendo
seguir: isto em vista, incluímos dois critérios adicionais
para classificar textos constitucionais:
4. Os direitos materiais orientados para o bem-
estar e a igualdade, assim como as funções 5. Critério de Generalidade. Não serão classifi-
estatais a eles associadas. Tais direitos e fun- cados como polity os dispositivos constitu-
ções estatais não se confundem com os três cionais não genéricos (muito específicos).
critérios anteriores, dado que não têm impli- Embora de difícil definição em abstrato, a
cação direta sobre as definições de Estado e distinção entre generalidade e especificidade
nação, não constituem direitos civis de pro- poderia ser determinada da seguinte forma:
teção à liberdade individual, nem direitos são específicos os dispositivos derivados de
políticos de participação democrática, assim princípios constitucionais superiores, mas
como não configuram regras processuais da cujo conteúdo pode sofrer alterações sem que
competição pelo poder ou das relações isso ponha em risco as provisões mais amplas
entre e intra-órgãos governamentais. Toda- sob os quais esses dispositivos estão abriga-
via, não se trata aqui de fazer mera conces- dos. Essa é uma maneira eficaz de distinguir
são a uma visão da Constituição como pro- polity de policy, uma vez que os textos cons-
grama social de governo, mas de indicar que titucionais contemporâneos tendem, metafo-
determinados direitos materiais podem ser ricamente, a assemelhar-se a árvores de cujo
considerados condições básicas para o fun- tronco saem galhos que se ramificam até os
cionamento adequado do regime democráti- últimos detalhes. Nosso critério de generali-
co. Tais direitos têm a importante função de dade poderia funcionar à maneira da poda,
promover a adesão ao pacto político demo- cortando pontas de galhos sem ameaçar a
crático e suprimi-los poderia levar a demo- vida da árvore: igualmente, há dispositivos
cracia ao colapso. Enquanto os direitos civis constitucionais cuja retirada do texto não
de liberdade e políticos de participação men- poria em risco os princípios fundamentais a
cionados no critério 2 podem ser considera- que estão associados. Isto será particularmen-
dos direitos operacionais fundamentais à te útil na desclassificação da condição de poli-
52 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61
ty dos dispositivos que estabelecem regras do policies reduz em demasia a liberdade decisória
jogo, mas que por serem demasiadamente dos atores e, portanto, o faz em detrimento da
detalhistas, especificando processos que cabe- democracia. Afinal, restringe para além do neces-
riam à normatividade infraconstitucional, sário, numa democracia constitucional, a possibili-
poderiam ser “podados” da Constituição sem dade de que à alternância dos partidos e das lide-
que a essencialidade do princípio superior ranças no governo corresponda uma modificação
fosse afetada. das políticas públicas implementadas – tendo em
vista o leque ideológico e de interesses de uma
6. Critério de Controvérsia. Também deixarão
determinada sociedade num dado momento histó-
de ser classificados como polity dispositivos
rico. Com isso a competição democrática não é
cujo conteúdo for tipicamente objeto da
impedida no plano eleitoral, mas tem seus efeitos
controvérsia político-partidária cotidiana,
restringidos ou em certa medida anulados no
dizendo respeito às plataformas governa-
plano governamental. Pode-se supor que é justa-
mentais apresentadas pelos partidos em seu
mente para isto que servem as constituições – res-
embate pelos postos de governo e não se
tringir a ação dos governos. Mas a suposição é
enquadrando, portanto, nas condições que incorreta se não considera que tal restrição, caso
caracterizam dispositivos de tipo constitucio- ultrapasse certos limites, impede que a própria von-
nal, seja como normas paramétricas da politics, tade popular se realize periodicamente mediante as
seja como regras definidoras de limiares e limi- ações de representantes eleitos.
tes das policies. Em princípio não serão des- O critério da controvérsia aponta para o fato
classificados como polity dispositivos constitu- de que não é legítimo numa democracia constitu-
cionais que estabeleçam regras procedimentais, cionalizar questões que sejam controversas na
exceto quando tenham sido inseridos na Carta disputa partidária. A Constituição deve procurar
apensados a um outro dispositivo que é, ele definir (no limite do possível) apenas o que é
mesmo, policy. incontroverso: as condições básicas de funciona-
mento de um sistema político competitivo. Daí, o
As razões pelas quais adotamos estes dois que for objeto de disputa deve ser resolvido na
últimos critérios são as seguintes. Quanto à gene- disputa, ou seja, nos processo eleitoral e decisó-
ralidade, normas muito específicas não consti- rio, dentro dos marcos poliárquicos.
tuem parâmetros de funcionamento do sistema Por fim, a excessiva limitação constitucional
político, de desenrolar do jogo e de limitação do restringirá ainda mais o alcance das decisões majo-
escopo das decisões, pois equivalem – de ante- ritárias ao multiplicar os motivos para que mino-
mão – às próprias decisões que caberia aos atores rias derrotadas recorram à Justiça como forma de
políticos tomar; por conta disso, não têm caráter obliterar decisões legislativas ordinárias, alegando
constitucional. Ademais, é de se esperar que aca- sua inconstitucionalidade – claro, apenas onde se
bem por criar obstáculos na conjuntura à gestão adote o controle judicial da constitucionalidade
democrática, na medida em que engessam a ação das leis. Em suma, a constitucionalização de poli-
dos governantes e/ou dos atores sociais diante de cies impõe a vontade momentânea de uma maio-
situações imprevistas, mudanças de condições ria conjuntural às maiorias futuras, cerceando-lhes
sociais e econômicas, novas tecnologias etc. Com (Cf. Holmes, 1988). O Quadro 2 resume os crité-
isso, a Constituição pode se tornar um instrumen- rios de classificação do texto constitucional relati-
to que, em vez de conferir maior segurança jurí- vos aos dois modelos teorizados nesta seção.
dica à sociedade, impeça-a de dar cabo de seus
problemas em tempo hábil e com a precisão
necessária, devido ao congelamento constitucio- Análise dos resultados17
nal de temas e problemas próprios da conjuntura
e afeitos à ação governamental. A versão original da Constituição de 1988
O mesmo se aplica à questão da controvér- contém 245 artigos. Decompostos em parágrafos,
sia – com um agravante. A constitucionalização de incisos e alíneas, eles se desdobram em 1.627 dis-
CONSTITUIÇÃO, GOVERNO E DEMOCRACIA NO BRASIL 53
Quadro 2
Critérios de Distinção de Matérias Constitucionais e Não-constitucionais
MODELOS DE CLASSIFICAÇÃO
Gráfico 1
Polityou
Polity ou policy,
policy, nos
nos Nove
nove Títulos
títulos da
da Constituição
Constituição de
de 1988
1988
600
500
400
300
200
100
0
Princípios Direitos e Organização Organização Defesa do Tributação e Ordem Ordem Disposições
fundamentais garantias do Estado dos Poderes Estado e das do Orçamento econômica e social constitucionais
fundamentais Instituições financeira gerais
Democráticas
Polity Policy
Policy
CONSTITUIÇÃO, GOVERNO E DEMOCRACIA NO BRASIL 55
lização e da redemocratização do regime político. do Estado”, traz dispositivos que criam estrutura
Por outro lado, se Ulysses Guimarães alcunhou o estatal e simultaneamente introduzem regras do
texto como “Constituição Cidadã”, o adjetivo jogo para o seu funcionamento, especialmente no
perde força aos verificarmos que, quantitativa- que diz respeito à dimensão federativa.
mente, os componentes sociais, civis e políticos da Previsivelmente, no título “Da organização
cidadania são incomparavelmente inferiores à dos Poderes” predominam regras do jogo. O títu-
dimensão das regras do jogo: apenas 5,7% dos lo IV, que é o maior e talvez mais importante da
dispositivos constitucionais dizem respeito a direi- Carta (por definir o modus operandi das institui-
tos materiais de bem-estar e igualdade social, ao ções que compõem o regime democrático brasi-
passo que somente 8,1% concernem a direitos leiro), estrutura detalhadamente os três Poderes
individuais de liberdade e de participação políti- de Estado e alguns organismos paralelos e auxi-
ca. Somados, os dispositivos “cidadãos” perfazem liares (Conselho da República, Conselho de De-
pouco mais de 13% da Carta de 1988. fesa Nacional, Ministério Público, Advocacia Geral
O Tabela 3 apresenta o perfil dos dispositi- da União e Defensoria Pública). Além de definir a
vos de polity no interior de cada título da organização e as atribuições do Legislativo, do
Constituição, à luz dos quatro critérios da MAC. Executivo, do Judiciário e do Ministério Público,
Como era de se esperar, a Carta abre majoritaria- estabelece condições de elegibilidade e de investi-
mente com “Definições de Estado e de Nação” no dura nas respectivas carreiras públicas, bem como
seu primeiro título, embora este contenha tam- normas relativas ao exercício do cargo (mandatos,
bém um pouco de “direitos individuais funda- imunidades, responsabilidades etc.); estabelece
mentais” e outros dispositivos que combinam de regras para o processo Legislativo, a fiscalização
dois a três tipos de polity. O segundo título, como financeira e orçamentária do governo e outros pro-
o próprio nome indica, contém majoritariamente cedimentos para o controle recíproco entre os pode-
“direitos individuais fundamentais”, ladeados por res; chega a detalhes na organização do Judiciário
um pouco de “direitos materiais” e também de federal e impõe linhas gerais para a organização do
“regras do jogo”. O terceiro título, “Organização Judiciário nos estados.
Total 100,0% (22) 100,0% (134) 100,0% (193) 100,0% (482) 100,0% (54) 100,0% (116) 100,0% (32) 100,0% (86) 100,0% (11)
56 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61
O título V reúne dispositivos que ascende- títulos das “Disposições constitucionais gerais” e da
ram a tal ponto da topografia constitucional, pro- “Ordem econômica e financeira” foram os que
vavelmente por terem como elemento principal apresentaram maior freqüência de policy, com
as Forças Armadas. Refletindo o peso político re- aproximadamente 70% do total de dispositivos (ver
manescente dos militares à época da Constituinte, Gráfico 2). Na seqüência, figura o título da “Ordem
não só se manteve o status constitucional diferen- social”, no qual cerca de 60% dos dispositivos con-
ciado para as Forças Armadas, como também, templam policy e não polity. Nada menos que 1/3
preservando a tradição, disciplinaram-se a seu do título “Da tributação e do orçamento” e até
lado os mecanismos de “Defesa do Estado e das mesmo do título “Direitos e garantias fundamen-
instituições democráticas” (nome do título V), a tais” não contemplam matérias de natureza consti-
saber, a Segurança Pública e os Estados de Defesa tucional, pois se referem a policy e não a polity.
e de Sítio. Noutro contexto de transição democráti- Enfim, mesmo títulos referidos às linhas básicas do
ca possivelmente tais elementos dispersar-se-iam moderno constitucionalismo – “Da organização do
(submetidos normativamente) a outros títulos cons- Estado” e “Da organização dos poderes” – revela-
titucionais. Seja como for, por estabelecer condi- ram a existência de dispositivos policy em seu inte-
ções da decretação dos Estados de Defesa e de rior: o primeiro com taxa de 27% e o segundo com
Sítio, o título também reúne boa soma de dispositi- taxa de 10% do total de dispositivos.
vos classificados como regras do jogo. Como mostra a Tabela 4, dos 496 dispositi-
Ao estabelecer princípios de “Tributação e vos classificados como policy, 205 deles (41,3%)
orçamento” no título VI, os constituintes também sequer têm relação com os quatro princípios
instituíram um detalhado conjunto de regras do constitucionais definidos pela MAC e podem, por-
jogo sobre a conduta governamental em relação tanto, ser considerados políticas públicas em esta-
às finanças públicas. Mais do que isso, a maior do puro. Logo, poderiam tranqüilamente integrar
parte dos dispositivos foi assim classificada por se a agenda legislativa ordinária de qualquer gover-
referir ao pacto federativo em torno das possibili- no, sem afetar quaisquer dos princípios. Outros
dades de tributar e dos princípios de repartição 43,5% dos dispositivos de policy da Constituição
das receitas tributárias. A dimensão federativa tem ao menos tangenciam um dos quatro critérios,
um peso excepcional em todo o texto constitu- mas sua especificidade é tamanha que caberia à
cional e essa é uma das principais explicações lei complementar ou ordinária discipliná-los. Pelo
para o grande número de dispositivos de polity critério de controvérsia, 35 dispositivos que reme-
do tipo regras do jogo, dispersos por vários títu- tem a aspectos de polity foram desclassificados de
los e seções da Carta de 1988. tal condição, justamente por constitucionalizarem
Embora menor do que os demais na propor- aspectos que estão longe do consenso básico
ção de polity, o título VII contempla um pouco de característico de regras constitucionais. Ocorre
cada um dos quatro princípios definidos pela MAC. que, ao resguardá-los sob o manto protetor da
Já no título VIII predominam os “direitos materiais” Constituição, os constituintes retiraram de futuras
até porque ele trata “Da ordem social”. Por fim, os maiorias políticas ordinárias o direito de adotar
poucos dispositivos classificados como polity, pre- soluções alternativas, tão razoáveis – porém con-
sentes no último título da Carta e destinados a troversas – quanto as estabelecidas pela Carta.
aspectos gerais, dizem respeito, na sua totalidade, Outros quarenta dispositivos foram classificados
a regras do jogo. como policy por serem simultaneamente específi-
cos e controversos.
A Tabela 5 traz a exata medida da agenda
Dispositivos de policy legislativa futura (de tipo complementar ou ordi-
nário) criada pela Constituição: 379 dispositivos
Excetuado o título relativo aos “Princípios ou 23,3% da Carta fixaram a necessidade de lei
fundamentais” (por sinal o menor deles, com ape- federal para regulamentar ou garantir a efetivida-
nas 22 dispositivos), encontramos dispositivos de de de princípios constitucionais. Uma tarefa de
policy em todos os demais. Percentualmente, os pesquisa empírica é verificar em que medida as
CONSTITUIÇÃO, GOVERNO E DEMOCRACIA NO BRASIL 57
Gráfico
Gráfico 32
Polity ou Policy
Polity policy nos nove
Nove títulos
TítulosdadaConstituição
Constituição(em
(em%)
%)
100%
80%
60%
40%
20%
0%
Principios Defesa do Organização Organização Direitos e Tributação e Ordem Ordem Disposições
fundamentais Estado e das dos Poderes do Estado garantias do Orçamento social econômica constitucionais
Instituições fundamentais e financeira gerais
Democráticas
Polity Policy
Freq. %
Policy pura 205 41,3 Constituição e reforma constitucional
Policy por especificidade 216 43,5
Uma das principais motivações deste estudo
Policy por controvérsia 35 7,1 reside na tentativa de mensurar o impacto do per-
Policy por especificidade fil da Carta constitucional sobre o processo gover-
40 8,1 namental, a elaboração legislativa e a produção de
e controvérsia
TOTAL 496 100
Tabela 5
Dispositivos que Remetem à Legislação
legislaturas posteriores lograram cumprir essa
missão e quantos dos 379 dispositivos foram de Freq. %
fato complementados e/ou regulamentados por Remetem à lei federal 379 23,3
normatização infraconstitucional. Outros poucos Remetem à lei estadual 2 0,1
dispositivos remetem a leis federais e estaduais.
Remetem à lei municipal 1 0,1
Um último dado interessante, mostrado na
Tabela 6, é que a Constituição de 1988 contém Remetem a leis federal e estadual 9 0,5
auto-referências em 12,4% dos seus dispositivos, Remetem a leis federal e municipal 1 0,1
os quais remetem a outros pontos da própria
Não remetem à lei 1.235 75,9
Carta. Uma pequena quantidade faz remissão
inclusive a determinados aspectos das constitui- TOTAL 1.627 100
58 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61
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60 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61
MELO, Marcus A. (2002), Reformas constitucio- 3 O texto elaborado pela Comissão Especial de
nais no Brasil: instituições políticas e pro- Estudos Constitucionais (Comissão Afonso Arinos)
cesso decisório. Rio de Janeiro/Brasília, foi descartado pelo presidente José Sarney.
Revan/Ministério da Cultura. 4 Em sua obra clássica de teoria constitucional, Schmitt
MURPHY, Walter F. (1995), “Merlin’s memory: the (1982) aponta que a Constituição de Weimar conti-
nha diversos dispositivos que não mereceriam o
past and future imperfect of the once and
qualificativo de constitucionais, mas que ali foram
future polity”, in Sanford Levinson (ed.),
introduzidos pela oportunidade que alguns grupos
Responding to imperfection: the theory and tiveram de cristalizar constitucionalmente seus inte-
practice of constitutional amendment, resses particulares.
Princeton, Princeton University Press.
5 Segundo Melo (2002), “Instalada em 13 de outubro
SARTORI, G. A. (1994), Teoria da democracia de 93 e encerrada em 31 de maio de 94, a revisão, ao
revisitada. São Paulo, Ática, 2 vols. longo de 80 sessões, votou apenas 19 mudanças, das
quais 12 foram rejeitadas já no primeiro turno das
SCHMITT, Carl. (1982), Teoría de la constitución.
votações. Das 17 mil emendas relatadas – ou melhor,
Madrid, Alianza.
simplesmente ignoradas – pelo relator, deputado
SCHUMPETER, Joseph. (1980), Capitalismo, Nelson Jobim, apenas seis foram aprovadas. Destas
socialismo e democracia. Rio de Janeiro, últimas, a única emenda relevante é a que reduziu o
Zahar. mandato do Presidente da República, de cinco para
quatro anos” (2002, p. 60).
SUNSTEIN, Cass. (2001), Designing democracy:
6 Vale ressaltar um aspecto formal relevante, a saber,
what constitutions do. Oxford/Nova York,
uma revisão constitucional é, em princípio, um
Oxford University Press.
processo promotor de mudanças muito mais fun-
TSEBELIS, G. (1997), “Processo decisório em siste- damentais do texto constitucional originário do
mas políticos: veto players no presidencia- que o são emendas constitucionais. Nos termos de
lismo, parlamentarismo, multicameralismo Murphy: “A palavra emendar vem do latim emen-
e pluripartidarismo”. Revista Brasileira de dere, que significa corrigir ou aprimorar; emendar
Ciências Sociais, 12 (34): 89-117. não significa ‘desconstituir ou reconstituir’, substi-
tuindo um sistema por outro ou abandonando os
WALDRON, Jeremy. (1999), Law and disagree- seus princípios primários. Portanto, mudanças que
ment. Oxford, Clarendon Press. viessem a transformar uma polity numa outra espé-
cie de sistema político não seriam emendas, absolu-
tamente, mas revisões, ou transformações” (1995, p.
Notas 177). Desse ponto de vista, é curioso que no Brasil
a revisão constitucional fosse percebida como uma
1 Poder-se-ia alegar que a opção pela modificação oportunidade de fazer avançar uma agenda gover-
constitucional se dá por equívoco, e já houve críticos namental.
que afirmaram ser a opção pela emenda constitucio- 7 Ao referir-se a este período, afirma Marcus Melo: “Ao
nal um engano dos governos, sendo possível levar contrário da revisão constitucional, o Congresso, na
adiante iniciativas por meio de legislação ordinária. reforma em curso [1995-1996], tipicamente reagiu às
Todavia, parece pouco plausível que um governo iniciativas que partiram do Executivo. Os ministros
não disponha de informação e conhecimento sufi-
se tornaram policy advocates das propostas. O
cientes acerca dos procedimentos exigidos em cada
Executivo deteve, assim, o poder de agenda durante
caso, a ponto de optar pela via mais difícil para
a reforma” (2002, p. 73). Ou ainda, “embora o arran-
implementar sua agenda, mobilizando todos os re-
jo institucional que prevaleceu tenha sido – em seu
cursos necessários para percorrê-la. Para uma dis-
conjunto – menos favorável à mudança, os fatores
cussão sobre os diferentes instrumentos decisórios à
contextuais favoreceram amplamente o processo de
disposição dos governos, ver Couto (2001).
mudança. Na reforma constitucional [1995-1996],
2 Souza e Lamounier, “A feitura da nova Constitui- apesar de a rotina utilizada exigir quorum qualifica-
ção: um reexame da cultura política brasileira”, em do, tramitação longa e processo descentralizado, o
Lamounier (1990). poder de agenda do Executivo, num quadro de desi-
CONSTITUIÇÃO, GOVERNO E DEMOCRACIA NO BRASIL 61
Cláudio Gonçalves Couto e Rogério Cláudio Gonçalves Couto and Cláudio Gonçalves Couto et
Bastos Arantes Rogério Bastos Arantes Rogério Bastos Arantes