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10467-Texto Do Artigo-44478-1-10-20211105
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tica”, como “um impulso de motivação fónica inovadora que será a imagem
generalizado” para, no limite, ilumi- de marca de Lobo Antunes a partir de
nar o passado (frequentemente trau- Explicação dos Pássaros (1981).
mático), tratar as relações familiares Dentro da mesma visão terapêutica
e libertar a “criança desamparada” do e atendendo aos temas, à linguagem
peso da culpa, do medo e das restrições e à composição narrativa, A Ordem
incutidas pela socialização. As figuras Natural das Coisas (1992), Exortação
do detetive, do psicoterapeuta, do nar- aos Crocodilos (1999) e Eu Hei-de Amar
rador (e do leitor) fundem-se numa só. Uma Pedra (2004) “devem preferen-
É na segunda parte, “Histórias da cialmente ser lidos como a história de
Depressão” (capítulos 3, 4 e 5), que como indivíduos em perda existencial
André Corrêa de Sá mergulha mais são ajudados a compreender os seus
profundamente nas palavras do escri- conflitos psíquicos”. Esse processo
tor para as “redescrever”, dando-lhes dinâmico passa obrigatoriamente pelas
uma visão de conjunto que tem esca- personagens revisitarem a infância e
pado a muitos críticos e cuja semente é por esperarem que o vazio existencial se
plantada logo no início da carreira do transforme umas vezes em resignação,
escritor. Assim sendo, Memória de Ele- outras em desejo de futuro. E tudo isso
fante conta não a história falhada de acontece narrativamente num universo
um psiquiatra depressivo, mas “a his- ficcional que quase sempre parece um
tória bem-sucedida de um indivíduo “emaranhado de detalhes” e “reminis-
deprimido” que rompe com o círculo cências” infantis, criando ressonâncias
vicioso da depressão, solidão e perda múltiplas, e estando marcado por ele-
de identidade através da autocriação. mentos animistas, oníricos e simbólicos
Atento aos processos de diagnóstico que produzem intensidades estéticas
psicanalítico, o autor reinterpreta a reveladoras da patologia depressiva (o
cena final de Memória de Elefante, bestiário, a janela, o grito da criança frá-
mostrando como nela não se encon- gil e aprisionada, o segredo, o enigma,
tra um vazio niilista, mas um impulso a ação do voo, o ato de esperar, o reló-
de esperança de libertação anímica do gio, o espelho, o som, o silêncio, a luz,
protagonista, obrigado a experienciar a sombra, a morte como criação e não
a depressão para dela se poder afas- como fim, etc.). Embora privilegie os
tar, e responsabilizando-se pela sua seis títulos mencionados, André Corrêa
própria narração – é isso que justifica de Sá vai pontuando a sua argumenta-
o “sorriso feliz, em projeção lírica ção com exemplos de outros roman-
na varanda sobre o mar” com que o ces, demonstrando um conhecimento
romance finda. O esforço catártico que notável da obra de Lobo Antunes, ino-
André Corrêa de Sá identifica na trilo- vando e completando a fortuna crítica
gia repercute-se na composição poli- já existente.
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