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d e p r e s são e p s i c ot e r a p i a e m a n tó n i o lo b o a n t u n e s … | 5 15

continua a ser abre caminho nem mais DEPRESSÃO E PSICOTERAPIA EM


nem menos a um novo campo de lei- ANTÓNIO LOBO ANTUNES: QUALQUER
tura da epopeia camoniana, chamando COISA QUE ME AJUDE A EXISTIR.
a atenção para o papel central que nela ANDRÉ CORRÊA DE SÁ
ocupam treze estâncias do poema (I, Alfragide: Texto Editores, 2019
5-18). eBook. ISBN 9789896607418
Pode passar despercebido o facto
de a maior parte dos ensaios incluídos A simbiose entre a voz empática de
nesta coletânea ser dedicada a vários André Corrêa de Sá e as vozes deprimi-
dos colegas e discípulos com quem das de António Lobo Antunes oferece
se foi cruzando ao longo da sua vida um caminho interpretativo onde teoria
académica: em Coimbra, em Braga literária e semiologia médico-terapêu-
mas também noutras universidades tica se entrelaçam de forma original
do país. Não se trata, porém, de uma para garantir um olhar profundo sobre
mera casualidade. No critério com a obra de um escritor incontornável.
que surgem essas dedicatórias reve- Depressão e Psicoterapia alarga o mapa
lam um diálogo de apreço intelectual de perguntas em torno dos romances
e humano, que o Professor e investi- antunianos, impondo-se como uma
gador foi mantendo ao longo de todo chave de leitura certeira com um triplo
um percurso, em registo de fecundo objetivo: iluminar a angústia e a cruel-
magistério. dade típicas das personagens de Lobo
Por fim, se pensarmos que entre a Antunes, projetar a obra do escritor
coletânea publicada em 2010 e aquela para fora da realidade portuguesa e
que agora surge Vítor Aguiar e Silva comentar sobre uma das doenças mais
coordenou ainda o monumental Dicio- debilitantes do mundo contemporâneo.
nário de Luís de Camões (que inclui O valioso contributo deste estudo con-
dezena e meia de verbetes da sua auto- siste em ver na obra de Lobo Antunes
ria) não podemos deixar de render não apenas repetições de pensamentos e
homenagem a uma ética do trabalho comportamentos depressivos, mas tam-
universitário que nunca soçobrou, tra- bém ressonâncias redentoras, curativas
duzindo-se em relevantíssimos serviços e, mesmo, felizes. André Corrêa de Sá,
prestados à causa das Humanidades por docente na Universidade da Califórnia
este professor e investigador que, com Santa Barbara, convida a ler a perfor-
suma justiça, foi recentemente galar- mance do passado realizada nos roman-
doado com o Prémio Camões. ces, procurando nas virtuosidades
linguísticas do escritor a possibilidade
José Augusto Cardoso Bernardes de futuro. E, nesse teatro de transfor-
https://orcid.org/0000-0002-8019-2465 mação interior encenado à luz do que se
https://doi.org/10.14195/2183-847X_11_24 tem entendido como narrative medicine,
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o papel principal estará sempre reser- (lugares de experimentação de temas e


vado aos leitores, os únicos realmente técnicas) quanto nas entrevistas conce-
capazes de interromper o sofrimento didas pelo escritor ao longo dos anos,
psíquico do universo ficcional. A obra André Corrêa de Sá enceta um apurado
de Lobo Antunes convoca, desta feita, trabalho exegético, desvendando as téc-
“uma fenomenologia de resiliência à nicas narrativas do escritor.
adversidade” e, consequentemente, Depressão e Psicoterapia desdobra-
reivindica a colaboração de um leitor -se em três partes, antecedidas de uma
paciente e anímico, capaz de acompa- breve introdução e seguidas de algu-
nhar uma relação terapêutica. mas observações finais. Na primeira
Convocando o saber de especialistas parte, “Depressão e Criação Literária”
na área da psiquiatria e da psicoterapia, (capítulos 1 e 2), argumenta-se que os
obras clássicas e textos de filósofos e romances de Lobo Antunes comun-
intelectuais-chave do mundo contem- gam da natureza das narrativas policiais
porâneo e, ainda, crítica literária da em cujo centro se encontra sempre um
vasta obra de Lobo Antunes, André enigma. O modo de narrar próximo da
Corrêa de Sá tece com uma fluidez estrutura do policial não é, no caso de
ensaística ímpar vários argumentos Lobo Antunes, um meio para um fim,
que desvendam a natureza dialógica e já que o enigma e a investigação poli-
terapêutica da escrita de Lobo Antu- cial que o desvenda são do foro das
nes desde a publicação de Memória do contingências das relações humanas. O
Elefante (1979), o romance de estreia que aqui interessa é investigar a forma
do escritor e que, juntamente com Os como o escritor se serve dos “estrata-
Cus de Judas (1979) e Conhecimento gemas” do policial para tematizar as
do Inferno (1980), faz parte daquilo a “trevas da existência humana”. A natu-
que se convencionou chamar “trilogia reza policial surge tanto na imagética
autobiográfica” ou “ciclo de aprendiza- da suspeita, do segredo, da investiga-
gem”. Para André Corrêa de Sá é jus- ção, do detalhe e do controlo de danos
tamente nesta fase inicial que (além da quanto na estrutura polifónica: dra-
tematização da depressão num esforço matização e fragmentação discursiva,
de catarse pessoal relativamente à expe- dissolução da autoridade narrativa,
riência na Guerra Colonial e à prática focalização interna, reconfigurações
psiquiátrica no Hospital Miguel Bom- espácio-temporais em que passado,
barda) se ensaia já a possibilidade de a presente e futuro se emaranham numa
psicoterapia emergir como dispositivo atmosfera disfémica, refletindo em con-
narrativo, ao permitir capitalizar a poli- junto quer as circunstâncias da doença
fonia, a recombinação de memórias e depressiva, quer o questionamento
a transferência analítica. Encontrando terapêutico. Por conseguinte, a depres-
pistas de leitura tanto nas crónicas são sobressai como “essência enigmá-
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tica”, como “um impulso de motivação fónica inovadora que será a imagem
generalizado” para, no limite, ilumi- de marca de Lobo Antunes a partir de
nar o passado (frequentemente trau- Explicação dos Pássaros (1981).
mático), tratar as relações familiares Dentro da mesma visão terapêutica
e libertar a “criança desamparada” do e atendendo aos temas, à linguagem
peso da culpa, do medo e das restrições e à composição narrativa, A Ordem
incutidas pela socialização. As figuras Natural das Coisas (1992), Exortação
do detetive, do psicoterapeuta, do nar- aos Crocodilos (1999) e Eu Hei-de Amar
rador (e do leitor) fundem-se numa só. Uma Pedra (2004) “devem preferen-
É na segunda parte, “Histórias da cialmente ser lidos como a história de
Depressão” (capítulos 3, 4 e 5), que como indivíduos em perda existencial
André Corrêa de Sá mergulha mais são ajudados a compreender os seus
profundamente nas palavras do escri- conflitos psíquicos”. Esse processo
tor para as “redescrever”, dando-lhes dinâmico passa obrigatoriamente pelas
uma visão de conjunto que tem esca- personagens revisitarem a infância e
pado a muitos críticos e cuja semente é por esperarem que o vazio existencial se
plantada logo no início da carreira do transforme umas vezes em resignação,
escritor. Assim sendo, Memória de Ele- outras em desejo de futuro. E tudo isso
fante conta não a história falhada de acontece narrativamente num universo
um psiquiatra depressivo, mas “a his- ficcional que quase sempre parece um
tória bem-sucedida de um indivíduo “emaranhado de detalhes” e “reminis-
deprimido” que rompe com o círculo cências” infantis, criando ressonâncias
vicioso da depressão, solidão e perda múltiplas, e estando marcado por ele-
de identidade através da autocriação. mentos animistas, oníricos e simbólicos
Atento aos processos de diagnóstico que produzem intensidades estéticas
psicanalítico, o autor reinterpreta a reveladoras da patologia depressiva (o
cena final de Memória de Elefante, bestiário, a janela, o grito da criança frá-
mostrando como nela não se encon- gil e aprisionada, o segredo, o enigma,
tra um vazio niilista, mas um impulso a ação do voo, o ato de esperar, o reló-
de esperança de libertação anímica do gio, o espelho, o som, o silêncio, a luz,
protagonista, obrigado a experienciar a sombra, a morte como criação e não
a depressão para dela se poder afas- como fim, etc.). Embora privilegie os
tar, e responsabilizando-se pela sua seis títulos mencionados, André Corrêa
própria narração – é isso que justifica de Sá vai pontuando a sua argumenta-
o “sorriso feliz, em projeção lírica ção com exemplos de outros roman-
na varanda sobre o mar” com que o ces, demonstrando um conhecimento
romance finda. O esforço catártico que notável da obra de Lobo Antunes, ino-
André Corrêa de Sá identifica na trilo- vando e completando a fortuna crítica
gia repercute-se na composição poli- já existente.
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Tem-se reconhecido que a técnica comunicação entre as personagens


narrativa de Lobo Antunes é devedora faz-se segundo uma “matriz relacio-
dos escritores modernistas ocupados em nal interna” que inclui as experiências
traduzir a fragmentação das experiên- subjetivas e as respostas inconscientes,
cias subjetivas, mas também da estética sendo essa matriz conduzida pelo ana-
pós-modernista sobretudo pelo extenso lista que impõe as regras, mantendo-se
uso da metaficção. Também têm sido empático e intervindo quando necessá-
notadas as similitudes entre o romance rio. Para obter os efeitos de ressonância
antuniano e as composições musicais desejados, Lobo Antunes usa monólo-
minimalistas que privilegiam o silêncio, gos sobrepostos e discurso direto, frases
bem como a predominância do tema da minimalistas, translineações inusitadas,
depressão e de situações narrativas que elipses lexicais, reduções sintáticas, sus-
simulam consultas psiquiátricas. Toda- pensões semânticas e repetições que,
via, este estudo abre caminhos her- em conjunto, apontam para a asso-
menêuticos ainda não percorridos. E, ciação livre, materializando as emo-
nesse sentido, “Grupanálise e Compo- ções das personagens numa espécie de
sição Narrativa” (capítulos 6 a 9) cons- comunicação múltipla em rede, fazendo
titui a pedra de toque desta proposta de sobressair vivências emocionais e con-
análise. De acordo com André Corrêa teúdos inconscientes. Além disso, a
de Sá, a polifonia discursiva de Lobo oscilação entre a primeira e a terceira
Antunes, ao permitir a pluralidade de pessoas, a preferência pelo presente do
perspetivas, relaciona-se fundamental- indicativo e por enunciações estáticas
mente com as técnicas da psicoterapia (dando a impressão de se estar a revi-
analítica de grupo. A repetição neuró- ver o passado) completam o processo
tica das personagens possibilita o acesso terapêutico conducente à cura, num
ao seu inconsciente e, desse modo, elas ambiente de performance contínua em
iluminam-se umas às outras, como num que a narração se move numa corrente,
grupo terapêutico. Por outras pala- não havendo partes mais importantes
vras, a narração antuniana acontece do que outras e nem sempre se identi-
mediante os processos comunicativos ficando quem fala. O leitor torna-se,
de um setting grupanalítico, de que faz assim, interlocutor da memória das
parte a atmosfera de empatia com vista personagens.
à cura. André Corrêa de Sá defende que os
A partir de excertos do corpus selecio- romances de Lobo Antunes textualizam
nado (mas que poderiam ser retirados a doença depressiva e o seu tratamento,
de qualquer outro romance do escri- partindo da polifonia com vista a evitar o
tor), André Corrêa de Sá explica como hiato comunicacional entre as vozes. E,
a disposição narrativa das personagens neste aspeto, o autor rompe com as inter-
encena uma sessão de grupanálise: a pretações dos críticos que se limitam a
i b e r i a n i s m a n d c r i s i s : s pa i n a n d p o r t u g a l … | 5 19

identificar na ficção antuniana a solidão, combina magistralmente exposição


a incomunicabilidade, a litania e a força crítica e elaboração imagética, André
coerciva do passado que impedem qual- Corrêa de Sá oferece uma apreciável
quer solução para a depressão, assim análise não só aos críticos literários
como com as críticas dos leitores que conhecedores da obra de Lobo Antu-
reduzem a obra do escritor ao diálogo nes, mas também ao público leitor em
surdo de quem está enredado em rotinas geral, desmistificando, sem simplismos,
miseráveis. André Corrêa de Sá não tem a aura de obscuridade e derrotismo
dúvidas: ao trazer a sua formação psi- que envolve a obra de um dos escrito-
quiátrica para a literatura, Lobo Antu- res maiores das letras portuguesas dos
nes propõe uma profundíssima reflexão séculos XX e XXI.
sobre a natureza humana, inovando
sobremaneira o modo de fazer literatura. Patrícia Martinho Ferreira
O universo criado pelo escritor convida https://orcid.org/0000-0003-0311-2027
a visitar a intimidade das personagens, https://doi.org/10.14195/2183-847X_11_25
ensina a escutar atentamente para conhe-
cer o passado e desejar um futuro, num
trajeto que inverte o caminho do depres- IBERIANISM AND CRISIS: SPAIN AND
sivo, ao abandonar as relações patogéni- PORTUGAL AT THE TURN OF THE
cas e as dependências modernas (como TWENTIETH CENTURY
os fármacos ou a tecnologia), recriando ROBERT PATRICK NEWCOMB
núcleos afetivos e abraçando a vida atra- Toronto: Univ. Toronto Press, 2018
vés de uma prática terapêutica. 246 páginas. ISBN 9781487502966
Em Depressão e Psicoterapia não se
usa a depressão como “um libelo acu- Robert Newcomb é Professor em
satório, nem contra traumas infantis, Estudos Luso-Brasileiros e Literaturas
nem contra a guerra colonial, nem Hispano-Latino Americanas na Uni-
contra a psiquiatria hospitalar” nem versidade da Califórnia em Davis. É
muito menos como “metáfora para uma codiretor do Departamento de Espa-
melancolia romantizada”. O que André nhol e Português assim como fundador
Corrêa de Sá defende é a analogia entre e codiretor do Grupo de Investigação
a psicopatia e o artifício romanesco, em Estudos Ibéricos Comparados da
explicando como a montagem narra- Universidade da Califórnia. Para além
tiva de Lobo Antunes é extremamente sua extensa atividade pedagógica, é
cuidadosa e tem um objetivo muito igualmente um autor prolífico. Tem
concreto: reconstruir o ambiente tera- publicado regularmente em revis-
pêutico que dá a conhecer a atmosfera tas especializadas e redigido capítu-
depressiva e que permite a mudança. los em volumes coletivos. É co-editor
Detentor de um estilo ensaístico que dos volumes Beyond Tordesillas: new

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