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Aleister Crowley Magia para Todos

 Arquivado sob Abramelin, Biografia, Thelema


Por Paulo Coelho – Revista Planeta nº84

Expulso de diversas sociedades ocultistas, perseguido como pernicioso à moral


e costumes vigentes (foi proibido de entrar na Itália, França e Inglaterra, sua
própria pátria), inimigo daqueles que não traziam a público os mistérios
iniciáticos de suas seitas, o principal traço de A Aleister Crowley foi
democratizar o ocultismo. Para ele, o momento histórico contemporâneo exige
a transformação urgente do esotérico em exotérico. Dono de uma força de
vontade invejável, curtidor de todas as drogas e capaz de impressionar gente
como Fernando Pessoa e Williatn Seabrook (“Crowley irradia poder semelhante
ao de Gurdjieff”, dizia este), Aleister – seu nome mágico -, a Grande Besta do
Apocalipse. Ainda hoje, seus textos influenciam várias correntes de
pensamento da Terra.

Nasci em Stratford-on-A von. É uma estranha coincidência que um lugar tão


pequeno tenha dado ao mundo seus dois maiores poetas – já que não se pode
esquecer Shakespeare.” A forma de Aleister Crowley começar sua
autobiografia já é capaz de dar uma idéia daquele que mais tarde viria a ser
conhecido como “A Grande Besta do Apocalipse”, e responsável pelas grandes
inovações na prática mágica do século vinte. Nascido em 1875 corri o nome de
Edward Alexander, Crowley descendia de unia família de classe média inglesa,
com pai e mãe de formação presbiteriana, responsável em grande parte pela
revolta e indignação do filho desde os primórdios de sua vida. “Minha vida
sexual logo se mostrou muito intensa, mas eu tinha aprendido que o sexo era
um desafio à prática cristã era degradação e danação”, diz ele nas Confissões.
No começo de sua adolescência, Edward Crowley – que trocaria seu primeiro
nome para Aleister, por razões mágicas – foi enviado para uma escola
sustentada pela comunidade religiosa de seus pais. Ali, leu pela primeira vez o
livro Cabala Revelada, do escocês McGregor Mathers, que na época chefiava
uma sociedade secreta conhecida como Golden Dawn. Crowley apaixonou-se
logo pelo livro, principalmente pela incapacidade de compreender o que estava
escrito, e a partir desta época os gostos e tendências do jovem estudante
começaram a mudar: Edward Waite, Eliphas Levi e outros famosos ocultistas
do século 19 passaram a ser sua leitura preferida. Para fechar o circulo,
durante uma aula de química Crowley é apresentado a Sir Cecil Jones, um
alquimista, que termina apresentando formalmente o pedido de inscrição de
Crowley na Golden Dawn. Com a força de vontade que iria lhe acompanhar
pelo resto da vida, ele começa a dedicar-se exclusivamente ao estudo das
artes mágicas, fazendo o possível para galgar no menor espaço de tempo os
dez graus de iniciação da sociedade secreta. Tudo indica que Aleister Crowley
já nasceu um mago. Talvez tenha sido uma explosão de fogos de artifício que
quase o matou, quando tinha 14 anos, talvez fosse mesmo reação ao ambiente
familiar (como querem os estudiosos de sua vida), o fato é que Crowley
possuia faculdades extremamente despertas. Seu senso de direção era mais
desenvolvido do que o da maioria das pessoas, e sua capacidade de
persistência e concentração deixava a todos boquiabertos. Nas aplicações
mundanas de suas faculdades – montanhismo e xadrez – ele sempre era
considerado um adversário de respeito, mesmo pelos mestres destes dois
esportes. E foi com esta persistência e obstinação que Crowley começou a
subir hierarquicamente dentro da Golden Dawn.

Despertar o gênio criativo

Seu primeiro grande questionamento a respeito das artes mágicas foi o de


relacionar os fenômenos esotéricos com os desejos que movem o ser humano:
poder, liberdade, conhecimento. “Eu logo aprendi que as condições físicas de
um fenômeno mágico eram semelhantes ás de qualquer outro fenômeno.
Quando se chega a esta conclusão, o sucesso fica dependendo apenas da
habilidade de despertar em si mesmo o gênio criativo. O principal mal-
entendido da magia reside no fato de que os vários elementos da operação tais
como manifestações espirituais, nomes mágicos, segredos, armas e roupas –
acabam por esconder o verdadeiro objetivo da magia, e terminam iludindo o
próprio mágico”, diz ele, afirmando que a maioria dos magos acaba por
esquecer a razão que os levou à magia. Desta maneira, Crowley achava – com
toda razão – que os processos conscientes são sempre intencionais nos seres
humanos; o homem não é, de maneira nenhuma, uma criatura passiva num
universo ativo. Ele pode transformar a realidade em sua volta, desde que não
se iluda nem com seu poder, nem com a nova realidade que irá criar. Por
causa desta crença, a primeira atitude sua é questionar e reformular uma série
de rituais da Golden Dawn. Sob o nome de Conde Wladmir Svareff – um de
seus grandes sonhos era pertencer à aristocracia -, ele aluga um apartamento
em Londres e começa a sua guerra dentro da sociedade secreta. Para
aumentar mais ainda seu prestígio, vai até a Escócia e proclama a todos que
irá realizar a Magia de Abramelin (1). Crowley, entretanto, jamais realizaria esta
operação, já que a sua prática requer um certo isolamento e ele não era capaz
de permitir-se a isto. Conta-se que, durante sua permanência na Escócia, a
casa onde trabalhava conseguia ficar tão escura que Crowley tinha que
acender as luzes para ler, apesar de ser pleno dia e o sol brilhar intensamente
lá fora. Seu caseiro acabou ficando louco e foi acusado de tentar matar a
própria mulher (2), Diante de certas pressões do lugar, Crowley abandonou a
Escócia, brigou com o poeta inglês Yeats (que a esta altura também trilhava o
caminho das artes mágicas) e foi para o México, onde dedicou a maior parte do
seu tempo tentando fazer com que sua imagem desaparecesse do espelho.

O homem e seu planeta

A tarefa de dissipar a própria imagem pode parecer bastante infantil;


entretanto, os escritos de Crowley desta época deixam bastante clara sua
tentativa de descobrir novos horizontes para a aplicação da vontade. E como a
vontade não opera no vácuo, era necessário um roteiro, um ritual, um drama,
um propósito. “Para Aleister Crowley, a Grande Besta do Apocalipse, a magia é
muito mais uma arte que uma ciência”, afirma Chris Ottis. Baseado nisto,
Aleister Crowley resolve lançar mão de tudo que consiga enriquecer
criativamente a realidade que o cerca. Encontra uma prostituta nas ruas da
Cidade do México e faz dela imediatamente sua Grande Prostituta da
Babilônia. Credita a si mesmo o título de “A Grande Besta do Apocalipse e
publica vários livros. Encontra-se com Allan Bennet, que lhe ensina a prática da
ioga e o introduz no misticismo oriental. Mais tarde, Crowley afirmaria que viu
Bennet flutuando no ar, de pernas cruzadas, durante uma de suas meditações.
Mas o México parece ser pouco para as incríveis pretensões da Besta: de volta
a Paris, conta para Mathers suas experiências com ioga, sendo friamente
recebido pela comunidade mágica da Europa – que parece desinteressada em
qualquer novidade fora de suas bases ortodoxas, enquanto se preocupava com
a notoriedade que Crowley estava ganhando. A esta altura, ele já é uma
pessoa extreobjeto de um livro de Somerset Maugham, The Magicían.
Procurando aumentar ainda mais esta popularidade, escreve uma carta à
prefeitura da cidadezinha onde mora, reclamando a ausência de um prostíbulo
nas suas redondezas. A carta ganha espaço em numerosos jornais, e o
carisma de Crowley cresce. A partir desta época, o que a Grande Besta chama
de “magia sexual” começa a ganhar espaço na sua vida. Correm rumores de
amplas orgias nos vários endereços onde Crowley se instala. Ele mesmo casa-
se com Rose, cunhada de Sir George Kelly – um famoso pintor que tinha se
seduzido pelas artes mágicas – e propõe à sua nova esposa um casamento
aberto, com ela podendo ter relações com quaisquer admiradores. No livro A
History of Orgies (Hearst Corporation, 1960), Burgo Partridge fala de festas
patrocinadas pela Grande Besta, onde “as mulheres, normalmente aristocratas,
entravam no salão sob o disfarce de máscaras ou pinturas faciais. A partir daí,
orgias indescritíveis começavam a acontecer.” A realidade deve ter sido bem
diferente e bem mais simples; entretanto, o próprio Aleister Crowley alimentava
as fantasias em torno de sua pessoa, para conseguir – como conseguiu – uma
divulgação mais ampla de suas atividades e de seu trabalho.

O duelo dos grandes magos

Rose vem mudar por completo a vida da Grande Besta quando, no Museu do
Cairo, sente-se inspirada e aponta para a estátua de Ra-Hoor-Khuit, um dos
nomes do deus Hórus, e que tem no catálogo do museu o número 666. Rose
começa a instruí-lo sobre como invocar Hórus, através de um ritual que ele
próprio não acredita, mas que termina sendo coroado de sucesso. O resultado
é a conversa com seu Anjo Guardião, e a psicografia do Livro da Lei, ditado por
Aiwass. O Livro da Lei (3) é talvez o trabalho mais importante de Aleister
Crowley. Resumo de vários conceitos sociais, religiosos e até mesmo políticos,
em suas páginas se propõe a responder a uma série de perguntas para as
quais a humanidade não conseguiu encontrar uma solução. O próprio Crowley
afirma não entender grande parte do que lhe foi ditado, mas considera-o como
o mais importante momento de sua vida, e se propõe a estudá-lo. A principal
proposta da obra está na frase “Faça o que você quiser” (Do what Thy
will),sugerindo uma nova era de liberdade aos conceitos humanos. Nas
sociedades esotéricas derivadas ou associadas à filosofia crowleyana, o Livro
da Lei é considerado a obra máxima do conhecimento. De volta a Paris,
Crowlev procura afastar Mathers do seu caminho, proclamando-se o Grande
Mago da Golden Dawn. Mathers promete enviar fortes correntes magicas
contra o Grande Mago, e três cães de Crowley aparecem mortos. Este, por sua
vez, clama haver invocado 49 demônios que arrasarão com Mathers, mas o
duelo de magos termina apenas enfraquecendo politicamente a Golden Dawn.
Crowley então funda sua própria sociedade secreta, a Silver Star ou A:. A:.
passando a publicar o jornal Equinócio dos Deuses (que sai duas vezes por
ano, no equinócio e no solstício), e revela os livros secretos da Golden Dawn.
Desta forma, democratiza o conhecimento da magia. colocados seus segredos
ao alcance de todos. Mas a Grande Besta ainda não está satisfeita com sua
notoriedade, e procura ampliá-la ainda mais através de golpes de marketing
que fariam inveja aos comunicadores de hoje. Publica um trabalho sobre sua
obra, assinando como F. C. Füller, um general inglês; oferece, como se fosse
uma instituição, um prémio de 100 libras para o melhor ensaio a respeito
daquilo que escreveu. E com isto consegue despertar o interesse da
intelectualidade européia. Em 1910, Aleister Crowley é iniciado no uso da
mescalina e da heroína, criando uma série de sete ritos – Os Ritos de Elêusis –
para utilizar a droga como forma de se obter o êxtase religioso (4). As pessoas
que conheceram a Grande Besta nesta época são unânimes em afirmar que a
quantidade de heroína que ele consumia (11 gramas por dia) se ria capaz de
rnatar em pouquíssimo tempo qualquer ser vivo. Crowlev, entretanto, parece
dotado de superpoderes, já que, além da extraordinária tolerância à droga,
continua praticando o alpinismo. Ë desta época o relato de Showell Styles, no
livro On The Top ofthe World: “O desafio era o monte Kanchenjunga, que
deveria ser escalada pela primeira vez por cinco alpinistas – três suíços, um
italiano e um inglês chamado Aleister Crowley. Crowley, que tinha sido
escolhido para líder da expedição, era talvez o mais extraordinário praticante
do alpinismo mundial. Ele era ostensiva-mente descuidado em tudo que fazia,
como se não tivesse medo, e chamava a si mesmo de ‘A Grande Besta do
Apocalipse’. Quando atingimos os 20.400 pés, no campo VII, os suíços
convocaram uma conferência para destituir Crowley das funções de liderança,
já que este era exageradamente cruel com os guias locais. Crowley não
aceitou a idéia, e a expedição resolveu retornar, exceto pela Grande Besta, que
continuou a escalada.

“Faz o que queres é tudo da Lei”

Na descida, os suíços foram pegos por uma avalanche que matou quase toda
a expedição. Crowley, subindo, ouviu os gritos de socorro, mas recusou-se a
ajudar quem quer que fosse. Mais tarde escreveria para um amigo seu,
dizendo: “Acidentes em montanhas são muito desagradáveis: eu prefiro ficar
longe deles”. Os poderes de Aleister Crowley também pareciam trabalhar a seu
favor. Entre as muitas histórias narradas a seu respeito, conta-se que num
assalto, em Calcutá, ele conseguiu ficar invisível diante dos ladrões. Durante a
Primeira Guerra Mundial, a Grande Besta vai para Nova York, onde cria uma
pequena comunidade mágica em Greenwich Village. Sua força de vontade
continua imensa – era capaz de comer e beber durante dias, para depois jejuar
até que seu peso voltasse ao normal. Um escritor americano, William
Seahrook, conta que Crowley irradiava um poder semelhante ao de Gurdjieff,
com quem também tivera a oportunidade de estar. Certa vez, Seabrook pediu a
Crowley uma demonstração de poder. A Grande Besta pegou seu amigo e os
dois caminharam até uma parte relativamente deserta da Quinta Avenida, onde
Crowlev passou a seguir de longe um dos transeuntes, imitando todos os
gestos deste. A determinada altura, Crowley agachou-se e saltou para trás; o
sujeito a quem imitava fez a mesma coisa, levando um tombo e estatelando-se
no chão. Seabrook e Crowley foram ajudá-lo a levantar-se, enquanto o atônito
pedestre procurava inutilmente uma casca de banana para responsabilizar sua
queda. Apesar de todos estes poderes, a vida do Grande Mago da Golden
Dawn, da Grande Besta do Apocalipse, ou dos outros vários títulos que
Crowley atribuía a si mesmo, parecia estar entrando numa fase de declínio.
Algumas complicações de ordem física fazem com que ele escolha Cefalú na
Sicília, como sua próxima morada. Lá, resolve criar uma experiência social que
culminaria sua obra mágica: a Abadia de Thelema. Criada dentro dos padrões
do Livro da Lei, a abadia era o local onde qualquer expressão da vontade e do
desejo eram permitidas. Vários escritores, atrizes e pessoas ligadas à arte e à
cultura convergiram para os domínios de Crowley. Lá praticavam-se rituais que
iam desde as mais simples invocações até a morte de animais e os ritos de
fertilidade. Crowley escreve Diary of a Drug Friend, falando de seus
experimentos com heroína, e as pessoas começam a comentar a respeito de
orgias e drogas dentro da Abadia de Thelema. Uma mulher, Betty May, termina
abandonando Cefalù e escrevendo um artigo para o jornal inglês Sundav
Express, onde denuncia cópulas com animais e sacrifícios de sangue. As
autoridades sicilianas, desgostosas, pedem a Crowlev que abandone o local.
Daí por diante. o declínio da Grande Besta é inevitável. Expulso da Sicília,
proibido de entrar na França e na Inglaterra, a Grande Besta é abandonada
pelos amigos e aumenta seu consumo de heroína. Vem a morrer a 5 de
dezembro de 1947, com 72 anos, e parecendo “um velho coronel aposentado”,
segundo as palavras de Burt Welsh. À parte seu narcisismo exagerado e uma
certa tendência para acreditar em super-raças (que mais tarde Hitler
transformaria em ação), a obra de Crowley deixou uma marca indelével no
pensamento do início do século. Sua própria “perversidade” não passava de
um golpe publicitário, sedutor o suficiente para fazer dele uma figura notória – e
a maior parte das pessoas que o conheceram afirmam que ele poderia ser
chamado de um homem frio, mas nunca de um homem mau. Sua extensíssima
obra – tanto em literatura como em artes mágicas – tornou acessível o
conhecimento que antes era privilégio de uma elite, e ampliou a possibilidade
de se chegar ao conhecimento através de outros caminhos, além daqueles que
nos são permitidos em nossa formação ocidental. Não queremos dizer com isto
que seus passos mereçam ser seguidos – Crowley pertence a uma outra
época, e, hoje em dia, determinados exageros que ele cometeu seriam
considerados coisas sem sentido e ultrapassadas. Mas o princípio de sua
filosofia, “faça o que quiseres”, e um princípio bem antigo e bastante válido.
Cada um o utiliza dentro das suas próprias possibilidades, e Crowley o utilizou
para viver uma vida pelo menos diferente da maioria das pessoas de sua
época. Se ele conseguiu o que queria – e acreditamos que não tenha
conseguido – é irrelevante; seu nome ficará sempre ligado à quebra de tabus, e
isto, por si só, já é uma grande vantagem. William James diz que um homem
pode jogar um jogo durante vários anos, com um alto grau de técnica, sem que
consiga progredir além de determinado estágio. Até que um dia, sem qualquer
aviso, o jogo começa a jogar com o homem, e a partir dali ele não comete mais
erros. Acreditamos que Aleister Crowley não tenha visto este dia, porque se
perdeu nas próprias fantasias que criou; mas não tenham dúvidas de que
chegou muito perto.

___________

NOTAS:

(1) – A Sagrada Magia de Abramelin é um livro atribuído a Abraão, e


popularizado por Aleister Crowley. Trata-se de um ritual de seis meses que
deve ser realizado numa casa isolada, com portas dando para o norte e o sul, e
com um quarto e um terraço onde apenas o operador pode entrar. No final de
seis meses de rituais (bastante simples, em sua grande maioria consistindo de
preces), o operador invoca o seu Anjo Guardião e estabelece um diálogo com
ele. A seguir, invoca as legiões de demónios, estabelecendo domínio sobre os
Quatro Príncipes do inferno. (2) – A casa de Crowley na Escócia, conhecida
como Boleskin, foi comprada pelo líder do conjunto de rock Led Zeppelin,
Robert Plant. Plant se propõe a estudar a obra da Grande Besta, e há rumores
de que estaria realizando a Sagrada Magia de Abramelin. (3) – O Livro da Lei
tem uma tradução brasileira, que pode ser encontrada nas livrarias sob o titulo
de Equinócio dos Deuses, Equinócio no Brasil, vol. 1, nº 1. Ë um trabalho sério,
numa tradução perfeita, dando a dimensão exata da parte filosófica do trabalho
de Crowley, que não nos foi possível analisar neste artigo. (4) – Mais tarde,
Carlos Castañeda alcançaria renome internacional escrevendo uma série de
livros onde a droga e a religião estão intimamente entrelaçadas.

Bibliografia: Revista “Planeta”, Março Nº 84.


A Sagrada Magia de Abramelin
 Arquivado sob Abramelin, Golden Dawn, Thelema


Por Paulo Coelho – especial para a revista Planeta

Para quem deseja ver a magia se desenvolver na prática, bastam tempo (seis
meses e mais uma semana de invocações), paciência, persistência e muita
disciplina. É o que recomenda o incrível, misterioso, e ainda inédito no Brasil,
livro da Sagrada Magia de Abra-Melin, o Mago, Conforme Ditado por Abraão, o
Judeu, ao seu filho Lamech. Principal objetivo da sua prática. invocar e
conversar com seu Sagrado Anjo Guardião e só depois mandar virem as
legiões de demônios.

     No ano de 1898, era publicado na Inglaterra um misterioso trabalho que


logo se tornou a leitura favorita de todas as pessoas que participavam – ou se
interessavam – por ciências ocultas: A Sagrada Magia de Abra-Melin, que
descrevia uma operação mágica de seis meses de duração, findos os quais o
operador invocava, durante urna semana, o seu Sagrado Anjo Guardião. Para
isto, era requerida uma casa com certas características próprias, alguns
poucos materiais (bastante fáceis de encontrar) e muita disciplina. Nada mais.

      Desde então, várias pessoas se propuseram a realizar a operação descrita


por Abra-Melin, inclusive o mago inglês Aleister Crowley – a quem se deve a
popularização do livro junto às correntes esotéricas e filosóficas de hoje em dia.
Crowley nunca levou a termo o ritual, mas outras pessoas o fizeram. Este
artigo, além de dar as características gerais da operação descrita por Abra-
Melin, publica ainda – pela primeira vez em língua portuguesa – trechos do
diário cerimonial de uma das pessoas que se aventuraram na árdua – mas
simples – busca do desconhecido.

      O que é exatamente um ritual? Durante séculos a maior parte da raça


humana acreditou que residia no ritual a verdadeira forma de comunicação com
forças desconhecidas. O padre levanta a hóstia na missa e pronuncia palavras
mágicas; o espírita senta-se numa mesa e faz uma oração invocando alguma
entidade; o alquimista se debruça sobre vidros e retortas e decifra símbolos. No
Oriente e no Ocidente, todas as culturas sempre tiveram uma série de
movimentos e invocações para comunicarem-se com a divindade. Estes
movimentos e invocações, porém, eram privilégio de uma casta – os
sacerdotes – que podia fazer uso indiscriminado deles; quanto ao resto das
pessoas, cabia-lhes quase sempre o caráter passivo de respeitar e temer os
operadores do ritual. E daí nasce um fenômeno mais social que divino – a
religião – onde os fiéis sempre estão dependendo de uma terceira pessoa para
comunicarem-se com Deus e seus santos.

      A verdade, porém, é muito diferente. Se analisarmos com cuidado, veremos


que nossa vida está repleta de pequenos rituais: a forma de como se aproximar
do chefe no trabalho, o modo de convidar alguém para a cama, a maneira de
sentar-se à mesa para comer. O ritual ativa dentro de cada pessoa uma série
de forças para enfrentar determinada situação. Mas não consiste na situação a
ser enfrentada. Por isso, no caso do ritual religioso (que é o que nos interessa
neste artigo), a maior parte das cerimônias coletivas são normalmente inúteis.
Porque cada um tem uma forma de se comunicar com Deus e, na maior parte
das vezes, esta forma é esquecida em função de algo mais em voga na
estrutura social em que vivemos. “Cada um tem que criar sua própria religião”,
dizia Tim Leary (1), referindo-se à forma como o homem esqueceu a essência
dos rituais que ele conhece.

     A popularização da misteriosa obra


No ano de 1898 era traduzido, pela primeira vez em língua inglesa, um
misterioso livro onde o ritual de comunicação com a divindade era
extremamente flexível em suas invocações. A obra sugeria uma rígida
disciplina, algumas pequenas preces; mas, na maior parte do grosso
compêndio, as próprias palavras do operador é que eram incentivadas. O livro
era a versão impressa de um manuscrito encontrado na Biblioteca de Paris, e
foi dado a público por McGregor Mathers, a principal figura da sociedade
secreta Golden Dawn. Seu título era longo: O Livro da Sagrada Magia de Abra-
Melin, o Mago, Conforme Ditado por Abraão, o Judeu, ao seu Filho Lamech. (2)

      Alguns anos mais tarde, Aleister Crowley, já uma figura bastante conhecida
do ocultismo do começo do século, iria popularizar a obra em toda a cultura
esotérica do Ocidente. Crowley tentou realizar a operação descrita na Sagrada
Magia … alugando uma casa às margens do famoso Loch Ness, na Escócia, e
preparando-se para os seis longos meses de duração do ritual. Por uma série
de razões de ordem prática, ele foi obrigado a interromper o processo e
regressar a Londres, e nunca mais voltou a realizá-lo. Afirma, porém, que foi A
Sagrada Magia … que o fez entrar em contato com a voz que lhe ditou O Livro
da Lei, obra máxima da cosmogonia crowleyana.

      A Sagrada Magia de Abra-Melin consiste numa série de anotações e regras


que se estendem durante seis meses de recolhimento, culminando com uma
semana de invocações, onde o operador ira encontrar e manter uma
conversação com seu Sagrado Anjo Guardião. O livro está dividido em três
partes. A primeira parte narra a, história de Abraão (que não é o mesmo da
Bíblia), um homem que buscava o conhecimento. Depois de vagar por vários
lugares, terminou encontrando num deserto próximo ao rio Nilo um eremita,
Abra-Melin, que lhe ensinou as etapas do ritual. Abraão, realizou a operação
com sucesso, e a difundiu nas cortes de reis da época (final do século 16).

     Intuitos negativos, um perigoso risco


O livro começa chamando a atenção para o fato de que só deve dar início à
operação aquele que tiver condições de conduzi-la até o final. O trabalho só
pode ser interrompido em caso de doença séria de seu realizador, o que deve
ser interpretado como um presságio divino. Além disso, é importante que a
pessoa que irá realizar A Sagrada Magia … tenha sempre em mente que suas
intenções devem ser orientadas no sentido de trazer mais paz e harmonia entre
os homens – quaisquer intenções negativas, sérias conseqüências ao
operador. Diz o texto: “Pondere bastante antes de começar, e só dê inicio à
operação se você tiver a firme intenção de terminá-la. Porque ninguém faz
impunemente uma pilhéria com Deus.”

      Também fica estabelecido que só devem aventurar-se pela Sagrada Magia
… aqueles que tiverem entre 25 e 50 anos de idade; e lembra que os seis
meses de trabalho mágico devem ser realizados evitando-se ao máximo o
contato humano, apesar de não impedi-lo por completo – exceção feita à
semana final de invocações.

     Não dormir enquanto há sol


Dito isto, o próximo passo será encontrar uma casa que tenha um quarto com
janelas dando para o norte, o sul e o leste. A oeste deve ser construído um
pequeno terraço; que será mais tarde coberto com areia do rio “tirada de uma
profundidade de, no mínimo, dois dedos”. Em baixo da janela do leste deve
ficar um pequeno altar de madeira, onde o operador colocará roupas limpas,
incenso, óleo. (feito de materiais como canela e aloé também popularmente
conhecido por babosa), um bastão feito com um galho de amendoeira e uma
pequena lamparina de óleo de oliva.

     Os seis meses de ritual são divididos em três períodos de dois meses, e a
operação deve começar logo no dia seguinte à Páscoa. Durante os primeiros
sessenta dias, tudo que o operador tem que fazer é acordar quinze minutos
antes da aurora, banhar-se, vestir roupas limpas e entrar no oratório (que, a
partir daquele instante, fica vedado a qualquer outra pessoa).

     Durante estes dois meses, apenas as duas entradas no oratório são
repetidas. Não há qualquer restrição no que se refere a relações sexuais com a
esposa (ou marido), e a única coisa que o operador não pode fazer é dormir
enquanto o sol ainda está no céu.

      No segundo período de 60 dias a prece muda ligeiramente, e alguns


detalhes são acrescentados: o operador deve lavar o seu rosto e suas mãos
com água pura antes de entrar no oratório, e deve ir pouco a pouco se
desligando da vida cotidiana. O sexo no casamento ainda continua livre, apesar
de não ser encorajado.

     Nos dois últimos meses do ritual, há uma mudança drástica. Agora, o
operador deve rezar três vezes por dia: no alvorecer, ao meio-dia e no
entardecer. Cada vez que entra no oratório, usa um robe de linho branco, e
acende o incenso sagrado que ele mesmo fez. A prece muda, mas não
aumenta de tamanho. O operador deve restringir à sua esposa (ou marido) e
aos seus empregados os contatos com o mundo; ninguém mais é admitido na
casa. Ele está proibido de qualquer trabalho servil, e deve passar seu tempo
livre passeando na natureza e meditando sobre a Criação de Deus. Além disso,
são reservadas quatro horas diárias para leitura de livros sagrados.

     Terminados os seis meses preparatórios, a operação vai ser realizada. Na


Semana de Invocações, um espelho é colocado no oratório, e ali o Sagrado
Anjo Guardião deixa sua assinatura. O operador mantém a conversação com o
Anjo e só depois os príncipes e legiões do inferno são invocados e submetidos.
Todo o propósito da Sagrada Magia de Abra-Melin é fazer com que as forças
infernais trabalhem para o bem da humanidade.
     A experiência do Arraial do Cabo (RJ)
Na Páscoa de 1979, Cristina Maria iniciou, numa casa alugada em Arraial do
Cabo (RJ), os seis meses todo este tempo ela manteve um Sagrada Magia …
(3) Durante todo esse tempo ela manteve um diário, dos quais selecionamos
alguns trechos que complementam esta matéria. A autora permitiu a
publicação, considerando que um trabalho sério, honesto, e feito por alguém
absolutamente saudável e integrado ao seu meio ambiente, pode permitir que
as pessoas não apenas mudem seu ponto de vista sobre ritual e magia mas
também se sintam encorajadas a acreditar que a sabedoria, a força e o real
desejo de conhecimento – seja numa operação mágica ou num gesto da rotina
diária – sempre hão de ajudar os homens a se compreenderem melhor entre si.

     20 de março
A única coisa que me preocupa levemente é que todas as preces a serem
realizadas durante os seis meses são para minha salvação. Portanto eu vou
começar a terminar cada-prece com o Pai-Nosso. Hoje à noite choveu. E minha
primeira visão do dia será debaixo de uma capa plástica.

     1° de abril
Operação sendo mantida. Qualquer descrição das emoções e energias
envolvidas seria fútil – porque não existem termos de referência, exceto para
alguém que já fez o que estou fazendo.

     17 de abril
Operação sendo mantida. Estou lendo o Novo Testamento e agora acredito no
verdadeiro Ato de Jesus.

     “Fluxo de energia entre a pineal e a pituitária”


Antes de sua crucificação, o homem não era capaz de perceber, na sua
consciência diária, a divindade do, Espírito, que só pode ser sentida, solta e
integrada através da vida no corpo de Cristo. Será isto a significação heráldica
da Era de Peixes com Tiphareth? Será que a Era de Aquário contém a
promessa de elevar a humanidade Chesed e Geburah? Qualquer que seja a
resposta, INRI ainda contém a Divina Lei. Há um mistério sublime e divino na
morte de Cristo. Para o Homem Verdadeiro a comunhão deve ser um ato da
vida diária. Só por Ele (se você entende Sua Palavra) você chega a Deus,
mesmo que alguém nunca tenha ouvido Seu Nome.
     1° de maio
Estou exausta. Quero dormir e dormir. Minha cabeça precisava estar acima das
nuvens, e do céu, mas eu não posso fazer nada neste momento, exceto cuidar
de mim. Minha cabeça dói. Ontem à noite senti um fluxo de energia entre a
pineal e a pituitária, que deve me proporcionar total psiquismo e terceira visão.
Veremos. Senti também que a dor se movia alguns centímetros, mas logo
voltava ao lugar.

     7 de maio
Minha força está voltando. Ocasionalmente senti uma sensação de algo
queimando, junto com a dor de cabeça.

     15 de junho
Tenho me torturado e me amedrontado, e pouco compreendido de tudo isto.
Tenho tido visões incríveis e lutas insuportáveis. Mas hoje à tarde entendi o
mistério do Templo de Baixo e do Templo de Cima.

      21 de junho – Solstício


Sinto horríveis dores de estômago nestes dias. Estou profundamente
consciente da realidade das energias astrais-mentais, emanando de mim.
Tento colocá-las dentro de uma total disciplina, evitando, inclusive, que elas
emanem sem minha vontade.

      28 de junho


Hoje à noite, no oratório, senti que a minha faculdade mental ficou
temporariamente fora de controle e tive que fazer um monstruoso esforço para
dominá-la novamente. Mas isto fez com que eu entrasse em contato com a
mônada, a minha superalma, o meu Espírito – contato, apenas, e não unidade.

     16 de julho
Durante estes dias tenho pensado em mencionar algo alertando aqueles que
possam vir a ler este diário (??). No que se refere à operação, esta é a coisa
mais difícil e mais amedrontadora possível; além de coragem, requer uma
inteligência espiritual para prevenir uma inevitável autodestruição. Se alguém
está considerando realizá-la, aconselho veementemente a meditar sobre isto
no mínimo um ano antes de começá-la.
     3 de setembro
A energia está “fluindo contra” mim (o mundo?) e estou tendo grande
dificuldade em controlá-la, apesar do I Ching sugerir que graça é apropriada.
Várias alucinações têm me acompanhado durante todos estes meses.
Pesadelos, coisas assim. No começo, as pessoas se aproximavam da gente –
eu e meu marido – e ficavam tremendo. Agora elas já nem se aproximam.

     “Será que tudo. Não passa de fantasia?”


Invocação do Anjo Guardião (21 de setembro / 27 de setembro) (4)

      Acordei e fiz a consagração. O tempo tinha subitamente esfriado. Apesar


das instruções de Abraão não estarem claríssimas, eu as aceitei como se
estivessem, e coloquei minha intuição trabalhando. Depois de um dia tenso e
desagradável, a atmosfera melhorou. Passei o resto da noite rezando, pois
amanhã vou saber se os seis meses de trabalho foram aceitos por Deus.
Nesses seis meses eu aprendi muitas coisas: coisas que eu já sabia
conscientemente, mas que pela primeira vez vieram a fazer parte de mim.
Estou nervosa com a visão pela frente. Temo não consegui-la.

      Terceiro dia de invocações – Estou num limbo total. O que sou eu? Onde
preciso ir e o que fazer? Quão alto (ou baixo) eu consegui me iniciar? Será que
rezar o tempo todo é uma forma de arrogância? Será que tudo isto é apenas
fantasia?

      16h45: Que tola sou. Tudo ocorre da forma. que Abraão descreveu. Eu tive
uma completa conversação com meu Sagrado Anjo Guardião. Estou calma.
Tudo está claro no que se refere às conjurações. Meu Anjo Guardião é santo e
correto, me elevou e me compreendeu. Devo colocar minha mente em um
lugar alto, pra aproveitar esta conversação. Ele me explicou várias coisas que
eu queria saber, e me fez sentir embaralhada e tola diante de sua presença.

      Sétimo dia de invocações – Tudo ocorreu como descrito por Abraão. Esta
manhã eu completei as conjurações e fiz todos os juramentos exigidos. Com a
ajuda de meu Anjo, submeti os príncipes e seus servidores, apesar destes
serem mais rebeldes que seus lideres. Dois deles mostraram-se difíceis, mas
logo se comportaram. Abraão avisa que alguém sempre é aprendiz no começo,
e Mestre no fim. Portanto, daqui por diante gastarei meu tempo aprendendo a
Arte. Isto é (noto o estilo medieval!) um milagre. Durante todo este tempo, nada
aconteceu errado. E agora, com um pouco de sofisticação – apesar de ainda
estar aprendendo a verdade – eu gostaria de dizer que a Confiança é a coisa
mais maravilhosa que pode acontecer com o ser humano.

     NOTAS
(1) – In Politics of Ecstasy, de Timothy Leary, Granada Publishing Ltd., 1970.
(2) – The Book of The Sacred Magic oJ Abra-Melin, the Mage, as Delivered by
Abraham the Jew unto his Son Lamech, traduzido por S. L. McGregor Mathers
de um velho e raro manuscrito francês na Bibliothèque de L’Arsenal, em Paris.
Editado nos Estados Unidos por L. W. Laurence Company Inc., Chicago, 1948.
O livro não é tão difícil de se encontrar, e pode ser adquirido em várias livrarias
especializadas no assunto, em toda a América do Norte. Entretanto, é
desaconselhável tê-lo em casa desde que a pessoa não pretenda realizar o
ritual.
(3) – Para proteção da pessoa indicada, todas as informações contidas neste
início de parágrafo foram propositadamente trocadas. O diário completo da
operação, porém, será publicado brevemente.
(4) – Por motivos técnicos, tivemos que resumir esta semana de invocações,
da mesma maneira que pinçamos apenas alguns trechos do diário. Este tem
mais de duzentas páginas, datilografadas em espaço dois. Descreve
minuciosamente todas as reações físicas e psíquicas de sua autora, além de
aventurar-se por segredos relacionados com ocultismo. A linguagem, apesar
de fácil e cotidiana, sofistica-se bastante quando o diário aborda temas
místicos.

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