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ISSN 1519-1826

Revista Síntese de

DIREITO CIVIL
PRC5iCESSUAI, CIVIL

Ano VI - N° 35 - Maio-Jun 2005

Repositório Autorizado de Jurisprudência


• Superior Tribunal de Justiça — N° 45/2000
• Tribunal Regional Federal da 18 Região — N° 20/2001

Diretor
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Maria Liliana C. V. Polido

Editores
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José Rogério Cruz e Tucci — Ricardo Raboneze — Sérgio Gilberto Porto

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José Carlos Barbosa Moreira — Leonardo de Faria Beraldo — Luiz Antonio Soares Hent
Márcio Henrique Mendes da Silva — Rosemiro Pereira Leal — Vitor Frederico Kümpel
Wagner Inácio Freitas Dias
A

P-
»a IIMA1 o
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REVISTA SÍNTESE DE DIREITO CIVIL E PROCESSUAL OML — Porto Alegre : Síntese,


v.1, n. I, jul.1999

Publicação periódica
Bimestral

v.6, n. 35, maio/jun., 2005

ISSN 1519-1826

1. Direito civil — periódicos — Brasil


2. Direito processual civil
COU:347.910511811
CD& 347

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Segundo a esmagadora maioria dos publicistas, devem-se a CHARLES-


LOUIS DE SECONDAT, o Barão de Montesquieu, as principais contribuições
A Súmula Vinculante perante o para a elaboração da teoria do poder adotada desde o final da Idade Moderna
até os modelos estatais contemporâneos.
Principio Constitucional da Vale ressaltar que MONTESQUIEU não tirou sua teoria do nada: encon-
Tripartição dos Poderes trou em JOHN LOCKE um importante precursor. Este preconizava a existên-
cia de quatro poderes: o Legislativo, o Executivo, o Federativo e o Discricioná-
rio, mas estes resultavam, na verdade, em apenas dois poderes, já que os
poderes Discricionário e Federativo ligam-se intrinsecamente à função admi-
Alan Martins
nistrativa do Poder Executivo (CLÈVE, 2000: 25-26).
Mestre em Direito pela UNESR Professor do Curso de
Graduação em Direito do Centro Universitário Moura Lacerda Além disso, o autor do clássico De L'Espirit des Lois foi um dedicado
e da Pós-Graduação da Universidade de Franca, Agente Esc& estudioso da História, do Direito e da Política, tendo remontado à Antigiiida-
de Rendas/SP de Clássica, à História que a sucedeu e, principalmente, à experiência políti-
co-constitucional inglesa da época para fundamentar a teoria que assim for-
mulava:
SUMÁRIO: Introdução; 1 Ontogênese da teoria da tripartição "Há, em cada Estado, três espécies de poderes: o poder legislativo, o
dos poderes; 2 Evolução da teoria de Montesquieu e a CF/88; poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes e o
3 A Emenda Constitucional n° 45/04 e a súmula vinculante; 4
Efeitos da súmula vinculante; 5 A súmula vinculante e o prin- executivo das que dependem do direito civil.
cípio da divisão das funções de poder; Conclusão; Referên-
Pelo primeiro, o príncipe ou magistrado faz leis por certo tempo ou para
cias bibliográficas.
sempre e corrige ou ah-roga as que estão feitas. Pelo segundo, faz a paz
ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, estabelece a segurança, pre-
INTRODUÇÃO vine as invasões. Pelo terceiro, pune os crimes ou julga as querelas dos
Com o advento da EC 45, de 08.12.2004, teve inicio, no plano constitu- indivíduos. Chamaremos este último o poder de julgar e, o outro, sim-
cional brasileiro, a apregoada "Reforma do Judiciário", implementando na plesmente poder executivo do Estado." (MONTESQUIEU, 1982: 187)
ordem jurídica nacional um novo contigente de princípios e normas com o fito Sob esta formulação, o princípio da tripartição dos poderes ganhou
primeiro de incrementar a qualidade da prestação jurisdicional do Estado. relevo na Europa do final da Idade Moderna, quando surgiu em reação aos
Vieram à tona novos órgãos, medidas instrumentais e institutos, ver- desmandos permitidos pela concentração e usurpação de poderes do absolu-
sando o presente artigo sobre a constitucionalidade do novel instituto da tismo monárquico, que até então dominava tal período histórico.
súmula de jurisprudência com efeito vinculante, ou simplesmente súmula
vinculante (CF, art. 103-A). 2 EVOLUÇÃO DA TEORIA DE MONTESQUIEU E A CF/88
O tema será focado à luz do princípio insculpido no art. 2° da CF/88, Em que pese a importância da teoria de MONTESQUIEU na construção
partindo-se da análise do princípio da divisão das funções de poder do Estado dos Estados Democráticos de Direito dos tempos atuais, esta foi alvo de inú-
(executiva, legislativa e judiciária) e perpassando-se pela abordagem da meras críticas dos pensadores da Idade Contemporânea, dentre as quais duas
normalização constitucional do novo instituto em pauta, com vistas à investi- merecem destaque por terem seu conteúdo estreitamente ligado ao objeto do
gação acerca da procedência ou não dos argumentos esposados pelos que presente artigo.
defendem a inconstitucionalidade do instituto.
A primeira crítica advém do que já foi inicialmente mencionado, ou
seja, do fato de que o poder é uno; e mais, possui natureza indivisível, de modo
1 ONTOGÊNESE DA TEORIA DA TRIPARTIÇÃO DOS PODERES que não se pode falar em uma tripartição dos poderes, mas sim de uma divisão
Todo o poder do Estado é uno e indivisível, pois emana exclusivamente das funções oriundas do poder estatal, quais sejam: administrativa (Poder
do povo, isto é, de uma única fonte criadora e de legitimidade (CF, art. 1°, Executivo), de elaboração das leis (Poder Legislativo) e jurisdicional (Poder
Judiciário).
parágrafo único).

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Para JEAN-JACQUES ROUSSEAU fis.cli: 41-42), o Estado não é mais do Já a outra crítica de pertinência anunciada diz mais respeito à
que o resultado de um "contrato social", ou seja, constitui uma "pessoa moral dogmática interpretação dada a De L'Espirit de Lois pela doutrina constitu-
cuja vida consiste na união de seus membros", para cuja conservação, dirigi- cional clássica do que ao conteúdo propriamente dito da teoria, sendo impor-
do pela vontade geral dos indivíduos, apoia-se no denominado poder sobera- tante mencionar a irresignação de CHARLES EISEMANN (apud CLÈVE, 2000:
no, ou simplesmente, soberania, sendo ainda indivisível, justamente porque 33), segundo quem MONTESQUIEU não preconizava urna teoria de separação
oriundo da vontade geral. dos poderes, mas, sim, uma idéia de divisão e cooperação entre os poderes,
pois ocorrem interferências de poder para poder, não havendo urna única
Desde as primeiras constituições até as atuais, o poder constituinte função atribuída com exclusividade a um único órgão ou autoridade.
sempre procurou conciliar as teorias de MONTESQUIEU e de ROUSSEAU, o
que parece demonstrar a procedência da crítica ora relevada, tendo levado Esse posicionamento crítico recebeu o aval do sistema constitu-
CLÈMERSON MERLIN (2000: 30) a concluir que: cionalista norte-americano, do qual se extrai a doutrina dos freios e contrape-
sos, defendida por MADISON (1984: 417) em sua participação em "O
"O que a doutrina liberal clássica pretende chamar de separação dos Federalista", quando tece os seguintes comentários:
poderes, todavia, não poderia consistir numa estratégia de partição de
algo, por natureza, uno e indivisível. Tanto não poderia ser dividido "A que expediente, então, devemos recorrer, a fim de assegurar a ne-
que as primeiras Constituições procuraram conciliar o pensamento de cessária repartição de atribuições entre os diferentes poderes confor-
ROUSSEAU com aquele de MONTESQUIEU. A separação de poderes me prescreve a Constituição? A única resposta que pode ser dada é
corresponde a uma divisão de tarefas estatais, de atividades entre dis- que, se todas essas medidas externas resultarem inadequadas, o defei-
tintos órgãos, e ai sim, autônomos órgãos assim denominados poderes. to deve ser corrigido alterando-se a estrutura interna do governo, de
modo que as diferentes partes constituintes possam, através de suas
O poder político é indivisível, teoricamente, porque o seu titular é o mútuas relações, ser o meio de conservar cada uma em seu devido
povo que não o divide, senão que, em face da ação do Poder Constituin- lugar."
te, confere o exercício a diferentes órgãos encarregados de exercer
Pela doutrina dos freios e contrapesos, a separação das funções do po-
distintas tarefas ou atividades, ou ainda diferentes funções."
der estatal não constitui uma divisão estanque, tendente a isolar o exercício
A teoria constitucional de KAFtL LOEWESTEIN (1982: 55) não destoa de tais funções pelos órgãos respectivos, em uma independência fadada ao
desse pensamento, enfatizando-se na obra daquele publicista a seguinte pas- anacronismo pela absoluta ausência de harmonia entre os chamados três
sagem, cujo teor atinge com precisão a base da crítica ora abordada: poderes. Constitui sim uma separação das funções do poder entre órgãos
diversos, os quais mantêm relações mútuas, caracterizadas, inclusive, por
"Lo que en realidad significa ia asi Mamada iseparación de poderes', no interferências necessárias, que visam a garantir a independência harmônica
es, ni más ni menos, que el reconocimiento de que por una parte el Estado
entre os poderes. O objetivo é proporcionar, no plano concreto, a possibilida-
tiene que cumplir determinadas funciones... La separación de poderes
de de que, de um lado, Executivo, Legislativo e Judiciário não extravasem as
no es sino ia forma clásica de axpresar la necesidad de distribuir y contro- parcelas de poderes peculiares às suas respectivas funções, mas, por outro
lar respectivamente el ejercicio dei poder político. Lo que corrientem ente,
lado sejam capazes de, sem qualquer relação de hierarquia ou subordinação,
aun que erróneamente, se suale designar como ia separación de ias pode- que seria absolutamente danosa ao ideal de independência, manterem um
res esta tales, es en realidad ia distribución de determinadas funciones convívio de harmonia caracterizado por mecanismos de recíproca e organiza-
estatales a diferentes &ganas dei Estado." da colaboração.
Essa postura fica bastante nítida na CF brasileira, na medida que esta Sintonizada com a doutrina dos freios e contrapesos, a qual, como já
estabeleceu o preceito de que todo poder emana do povo e deve por ele ser afirmado, foi estruturada a partir do constitucionalismo norte-americano, a
exercido, diretamente, ou por meio de representantes eleitos por ele (art. 1°, CF brasileira, promulgada em 1988, já no título dedicado aos seus princípios
parágrafo único, da CF/88), encampando, assim, a teorização de ROUSSEAU, fundamentais preconiza que os poderes da União serão tripartidos em Execu-
ao mesmo tempo que previu a existência de três funções desse poder estatal: tivo, Legislativo e Judiciário, porém, independentes e harmônicos entre si
Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário (art. 2° da CF/88), (art. 2°).
açambarcando, pois, também, a teoria de MONTESQUIEU, sendo de se obser-
var, portanto, a conjugação das duas doutrinas na formação política do Esta- Paralelamente, no seu título IV, especificamente reservado à organiza-
do brasileiro. ção dos três poderes, a Carta Magna vigente estabelece diversos pontos de
42 RDCPC N° 35— Maio-Jun/2005 — DOUTRINA FtDCPC N° 35 — Maio-Jun/2005 — DOUTRINA 43

interseção entre os órgãos representativos das três funções de poder, deno- distorção se a lei estabelecer para a revisão ou cancelamento uma proporção
tando de maneira mais clara a adoção da doutrina dos freios e contrapesos, diversa dos dois terços para aprovação.
bem como estabelecendo as condições para a desejada independência e har-
monia entre os poderes, segundo os ditames traçados pelo art. 2° que abriga Pelo 6 2° do art. 103-A, o constituinte atribui legitimidade para reque-
o referido princípio. rer a aprovação, a revisão e o cancelamento de súmulas vinculantes aos mes-
mos sujeitos que podem propor ação direta de inconstitucionalidade, mas
Não é por outra razão que o Título IV da CF em vigor traz em seu bojo autoriza o legislador ordinário a também legitimar outras pessoas.
diversas formas de colaboração e inúmeras mútuas relações entre as funções
de poder, dentre as quais, a título exemplificativo, pode-se mencionar o con- Assim, sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação,
trole repressivo de constitucionalidade das normas jurídicas a cargo do Poder a revisão e o cancelamento de súmula com efeito vinculante poderão ser
Judiciário com relação às regras jurídicas elaboradas pelo Poder Legislativo requeridos pelos seguintes legitimados: 1- o Presidente da República; II- a
(Capítulo III), a fiscalização das contas do Poder Executivo e do Poder Judi- Mesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV- a Mesa de
ciário pelo Poder Legislativo por meio dos tribunais de contas (art. 70 e se- Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; V - o
guintes), o poder de veto do Chefe do Poder Executivo Federal e o de editar Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI - o Procurador-Geral da Re-
medidas provisórias com força de lei em casos de relevância e urgência (art. pública; VII - o Conselho Federal da OAB; VIII -partido político com represen-
62) ou a atribuição do Presidente da República de nomear ministros dos tribu- tação no Congresso Nacional; IX- confederação sindical ou entidade de clas-
nais superiores, no que tange às relações entre o Poder Executivo e o Poder se de âmbito nacional.
Judiciário (art. 84, XV e XVI). As mesmas regras, ou seja, aprovação, a pedido ou de oficio, e
legitimação para requerer aprovação, revisão ou cancelamento, é bom dizer,
3 A EMENDA CONSTITUCIONAL N° 45/04 E A SÚMULA aplicam-se igualmente às súmulas do STF vigentes na data da publicação da
VINCULANTE EC 45, que, conforme preceituado no art. 8° da referida emenda à constitui-
ção, produzirão efeito vinculante após sua confirmação por dois terços dos
Por meio do art. 103-A, acrescentado à CF pela EC 45/04, deferiu-se ao integrantes do STF e publicação na imprensa oficial.
STF a possibilidade de editar súmulas de jurisprudência de caráter vinculante,
as chamadas súmulas vinculantes, tendo por objetivo " ...a validade, a inter-
4 kr Lu OS DA SÚMULA VINCULANTE
pretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja contro-
vérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública Grande embate de posicionamentos, que sempre pairou em tomo das
que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de proces- discussões precedentes ao advento da súmula vinculante na ordem jurídico-
sos sobre questão idêntica". positiva, dizia respeito ao campo de incidência do efeito vinculante que à
São pressupostos materiais de edição de súmulas vinculantes: I) a exis- mesma atribuir-se-ia.
tência de controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a admi- Para não nos alongarmos em questões já passadas do período gestacional
nistração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multi- da apregoada Reforma do Judiciário, cumpre salientar que triunfaram aque-
plicação de processos sobre questão idêntica (6 1°); II) que a controvérsia les que, a nosso ver, alinhavam-se do lado mais sensato destes pólos de diver-
tenha natureza constitucional e seja precedida de reiteradas decisões ante- gência, quando defendiam que a nova qualificação vinculante das súmulas
riores sobre a matéria (caput). deveria submeter não apenas os particulares, como também a Administração
Sob o aspecto formal, para aprovação da súmula vinculante, será ne- Pública.
cessária uma decisão de pelo menos 2/3 dos membros do STF, que se pronun- Realmente, quando se falava em súmula vinculante sem que se incluís-
ciará de ofício ou mediante provocação (CE art. 103-A, caput), regra cuja apli- se sob sua incidência as ações envolvendo o Poder Público, propugnava-se
cação independe de qualquer regulamentação infraconstitucional. pela implementação de uma norma que viria à luz praticamente natimorta,
Também nos termos do caput do art. 103-A, o próprio STF também po- para pouco ou nada repercutir em relação ao seu grande objetivo que é a
celeridade das decisões judiciais e o alívio do contingente de processos que
derá proceder a revisão ou o cancelamento de súmulas vinculantes, mas o
Poder Constituinte optou por deixar afixação da forma desses atos à mercê da tramitam pelas diversas instâncias e esferas recursais do Poder Judiciário.
vontade do legislador infraconstitucional ("...proceder à sua revisão ou can- É notório que a Administração Pública, não apenas na sua estrutura
celamento, na forma estabelecida em lei"), o que pode gerar uma grave direta como também na indireta, tem sido historicamente a grande responsá-
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vel pelo maior número de recursos processuais que cada vez mais se prolife- VÁSQUES SOTELO empreende acerca do papel preponderante que a juris-
ram pelos juízos e instâncias judiciárias nacionais, podendo-se afirmar com prudência e os precedentes vinculantes dos sistemas jurídicos da common
segurança que a súmula vinculante, sem atingir o Poder Público, certamente law e da civil law exercem como instrumento de segurança jurídica, defen-
não produziria os efeitos que dela aguardam a sociedade e a comunidade dendo que, se esta jurisprudência constante e reiterada for seguida pelo tri-
jurídica. bunal de que emana e pelos juízes e tribunais hierarquicamente subordina-
dos, será possível alcançar a certeza do Direito em sua aplicação.
Dessa maneira, ao estabelecer que as súmulas aprovadas na forma do
art. 103-A, terão "...efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Não destoando desta opinião, mas visando a qualificá-la, é preciso tam-
Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, bém que se tenha em mente o dinamismo do Direito e a sua evolução em
estadual e municipal", logrou êxito o Poder Constituinte Reformador em sinergia com a realidade social, para se alertar que segurança e certeza jurídi-
implementar na ordem jurídica posta uma norma com perspectivas de alcan- cas não significam estagnação ou rigidez. Assim, a adoção da súmula
ce dos objetivos com que foi projetada. vinculante deve sempre se fazer acompanhar da possibilidade de revisão e
cancelamento desta modalidade de jurisprudência sumulada, como acerta-
Mais do que isso, além de não imunizar a Administração Pública como damente estabeleceu o Poder Constituinte Reformador no novo texto que
autora ou ré de relações processuais perante o Poder Judiciário, o que repre- imprimiu à CF (CF, art. 103-A, in fine, com redação da EC 45/04).
sentará, por certo, uma forte arma contra a proliferação inútil de recursos
perante a segunda e as superiores instâncias da Justiça, fez com que o efeito Mas a principal razão de se adotar a súmula com efeito vinculante em
vinculante incidisse sobre as decisões tomadas pela própria Administração nosso sistema jurídico parece ser mesmo a perseguição de uma solução mais
Pública Direta, formada pelos órgãos pertencentes à estrutura centralizada rápida dos litígios, por meio de um novo instituto que se revele capaz de
das pessoas políticas e igualmente pela Administração Pública indireta ou coibir a tramitação prolongada dos litígios em meio a uma infinidade de me-
descentralizada, composta pelas entidades autárquicas e fundacionais, além didas recursais, manejadas perante juízos e tribunais com respaldo em teses
das empresas estatais, seja sob a modalidade de empresa pública, seja as muitas vezes obsoletas e manifestamente opostas à reiterada jurisprudência
constituídas na forma de sociedades de economia mista. dos tribunais superiores, bem como em desatendimento ao princípio da
celeridade processual, agora expressamente consagrado na CF (art. 5°,
Finalmente, para que não se tomasse a súmula vinculante mais uma LXXVI11).
previsão constitucional inócua por desvinculada de qualquer meio de
coercibilidade, como já se apresenta, por exemplo, o fiasco do mandado de Já as opiniões contrárias, como já aqui adiantado, orbitam dicotomi-
injunção, nos termos do § 3° do novo art. 103-A, julgou-se por bem estabelecer camente em tomo de teses que propugnam pela inconstitucionalidade de se
que, da decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou indevidamente atribuir este efeito vinculante às decisões dos tribunais superiores.
a aplicar, será cabível reclamação ao STF que, " ...julgando-a procedente, anu- A principal delas envereda-se para o lado de suposta ofensa ao princi-
lará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determi- pio da separação dos poderes estampado no art. 2° da CF/88, afirmando que a
nará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o súmula vinculante constituiria a atribuição de poder de legislar ao STF, argu-
caso". mento que não tem qualquer substrato jurídico ou constitucional, a começar
pelo ledo equivoco em se afirmar que, ao editar uma súmula vinculante, o
5 A SÚMULA VINCULANTE E O PRINCÍPIO DA DIVISÃO DAS tribunal estaria legislando, já que, em sentido diametralmente oposto, a
FUNÇÕES DE PODER súmula vinculante não possui qualquer conteúdo legislativo, mas tem sua
natureza restrita à uniformização e sedimentação jurisprudencial, ou seja,
Desde que aventada a sua implementação, argumentos favoráveis e atine exclusivamente ao campo da hermenêutica e aplicação do direito, que
contrários vêm polarizando a discussão acerca da súmula vinculante. no sistema romano-germânico pátrio tem a ordem legislativa como principal
objeto.
A favor da jurisprudência sumulada com efeito vinculante, apregoa-se
a realização prática dos basilares princípios da segurança jurídica, celeridade Além disso, tratar-se o efeito vinculante das súmulas do STF como uma
e economia processual. Contra, invocam-se argumentos que identificam em afronta ao principio da divisão dos poderes constitui uma inadmissível abor-
tais súmulas manifestas antinomias com cláusulas pétreas constitucionais, dagem e interpretação do art. 2° da CF que, na integralidade evolutiva da
entre elas, o art. 2° da CF, que veicula o principio da divisão dos poderes. teoria de MONTESQUIEU, complementada pelos federalistas norte-america-
nos, manifesta-se não como uma tripartição de poderes, mas sim como uma
No sentido favorável, DIOMAR BEZERRA LIMA (Revista Síntese de Di-
divisão das funções de poder, independentes e harmônicos entre si.
reito Civil e Processual Civil, n° 5: 53) apóia-se na análise que JOSÉ LUIZ
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Como reconhecido na própria CF/88, todo poder emana do povo (CF, de que o povo investe o Estado. Para tanto, a ordem constitucional estabelece
art. 1°, parágrafo único), daí porque podemos dizer que o poder do Estado é um sistema de freios e contrapesos, segundo o qual cada função de poder
uno e que a separação dos poderes constitui, na verdade, uma divisão das recebe algumas atribuições limitativas das demais.
funções legislativa, executiva e judiciária que o povo atribuiu ao Estado por
meio da Constituição. Neste âmbito insere-se a jurisprudência sumulada do art. 103-A da CF,
no ponto em que vincula a administração pública direta e indireta, nas esfe-
Para que haja equilíbrio entre estas esferas funcionais do poder estatal, ras federal, estadual e municipal, sem constituir, no entanto, uma atuação de
dispôs também a CF que os "três poderes" devem ser harmônicos e indepen- cunho legislativo, mas apenas uma medida de uniformização de jurisprudên-
dentes entre si, instituindo, para que isto se realize na prática, um sistema de cia e de aceleração da prestação jurisdicional do Estado.
freios e contrapesos segundo o qual cada função de poder recebe algumas
atribuições limitativas das demais funções. Destarte, muito ao contrário do que se alega em oposição à súmula
vinculante, sua inclusão na ordem jurídica pátria não constitui ofensa ao
Exemplos nesse sentido já citamos inúmeros no início deste artigo, princípio da tripartição dos poderes. De forma diametralmente oposta, favo-
sendo oportuno acrescentar, com muito interesse para a análise ora engen- rece o equilíbrio e a harmonia entre os poderes, integrando o sistema de freios
drada, o sistema de controle de constitucionalidade das normas jurídicas e contrapesos, na medida que vincula a administração pública direta e indi-
estabelecido em dispositivos dos afta. 102 a 105 da CF/88 (forma de controle reta, sem constituir invasão da função legislativa do Estado.
exercida pelo Poder Judiciário sobre os poderes Legislativo e Executivo).
Portanto, mesmo que a súmula vinculante possa, de alguma forma, re- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
presentar uma certa interferência do Poder Judiciário sobre a função
legislativa, ainda assim ela coaduna-se perfeitamente com o princípio espo- CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do poder executivo. 2. ed. São Paulo:
RT, 2000.
sado no art. 2° da CF/88, até porque se negar a constitucionalidade do efeito
vinculante das súmulas de jurisprudência do STF não distaria de fulminar LIMA, Diomar Bezerra. Súmula vinculante: uma necessidade. In: Revista Síntese de
com a mesma mácula o efeito vinculante e erga omnes das decisões proferidas Direito Civil e Processual Civil, n. 5, maio/jun. 2000.
em sede de ações diretas de controle de constitucionalidade, proporcionan- LOEVVENSTEIN, Karl. ?borá dela constitucián. Barcelona: Afiei, 1982.
do-se com esta estreita interpretação constitucional uma absurda e temerá- MONTESQUIEU. O espírito das leis. Brasília: Universidade de Brasília, 1982.
ria afronta à segurança jurídica e ao equilíbrio e harmonia entre as três fun- ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social e discurso sobre a economia política.
ções de poder do Estado. São Paulo: Hemus, [s.d.l.

CONCLUSÃO

Analisado o princípio da divisão das funções de poder do Estado, com


posterior abordagem da recentíssima possibilidade de edição pelo STF de
súmulas de jurisprudência com efeito vinculante, merecem ser tecidas im-
portantes considerações conclusivas, todas formando um arcabouço jurídico
coeso que aponta para a validade do instituto da súmula vinculante perante
a ordem constitucional brasileira.
Não se trata o princípio da tripartição dos poderes consagrado por
MONTESQUIEU de uma compartimentalização do poder do Estado, o que
seria impossível, por emanar o mesmo de uma única fonte, qual seja, a sobera-
nia popular. O poder é uno, pois emana inteiramente do povo, representando
o art. 2° da CF uma divisão das funções pelas quais se manifesta este poder
estatal (executiva, legislativa e judiciária).
Cada função de poder é independente, mas deve harmonizar-se com as
demais, sob pena de abdicar-se do desejável equilíbrio no exercício do poder

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