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A Bigorna das Forças

Este fluxo, esta náusea, estas correias, é n’isto que começa o Fogo. O fogo
das línguas. O fogo tecido em espirais de línguas, no espelhamento da terra que se
abre como um vente em parte, de entranhas de mel e açúcar. De toda a sua ferida
obscena ele boceja este ventre mole, mas o fogo boceja sobre tudo em línguas
torcidas e ardentes que carregam em sua ponta suspiros como de sede. Este fogo
torcido como nuvens na água límpida, tendo ao lado a luz que taça uma régua e
cílios. ´a terra com todas as partes entreabertas e mostrando áridos segredos.
Segredos como superfícies. A terra de geologia primitiva, onde se descobrem os
sopés do mundo numa sombra negra como o carvão. - A terra é mãe sob o gelo do
fogo. Vejam o fogo dos Três Raios, com o coroamento de sua crina onde pululam
olhos. O centro ardente e convulso deste fogo é como a ponta esquartejada do
trovão no cimo do firmamento. O cento branco das convulsões. Um absoluto de
fulgor na balbúrdia da força. A ponta medonha da força que se quebra na
algazarra toda azul.

Os Três Raios fazem um leque cujos ramos caem a pique e convergem para
o mesmo cento. Este é um disco leitoso recoberto de uma espiral de eclipses.

A sombra do eclipse faz um muro sobre os ziguezagues da alta alvenaria


celeste.

Mas acima do céu está o Duplo-Cavalo. A evocação do Cavalo banha-se na


luz da força, sobre um fundo de parede puído e premido até o limite. O limite de
seu duplo peitoral. E nele o primeiro dos dois é muito mais estanho que o outro. é
ele quem reúne o fulgor do qual o segundo não é senão a sombra pesada.

Mais baixo ainda que a sombra da parede, a cabeça e o peitoral do cavalo


fazem uma sombra, como se toda a água do mundo elevasse o ofício de um poço.
O leque aberto domina uma pirâmide de cimos, um imenso concerto de
cumes. Uma ideia de deserto plana sobre estes cumes, acima dos quais um astro
descabelado flutua, horrivelmente, inexplicavelmente suspenso. Suspenso como o
bem no homem, ou o mal no comércio do homem com o homem, ou a morte na
vida. Força giratória dos astros.

Mais atrás desta visão de absoluto, deste sistema de plantas, de estelas, de


terrenos talhados até o osso, atrás desta ardente floculação de germes, desta
geometria de pesquisas, deste sistema giratório de cumes, atrás desta relha
plantada no espírito e deste espírito que desprende suas fibras, descobre seus
sedimentos, atrás desta mão de homem, enfim, que imprime seu polegar duro e
desenha suas apalpadelas, atrás desta mescla de manipulações e cérebro, e destes
poços em todos os sentidos da alma, e destas cavernas da realidade.

ergue-se a Cidade de muralhas barbadas, a Cidade imensamente alta, e que


não tem de modo algum em demasia o céu para lhe dar um teto onde plantas
crescem em sentido inverso e com uma velocidade de astros lançados.

Esta cidade de cavernas e muros que projeta sobre o abismo absoluto arcos
cheios e porões como pontes.

Quando se desejaria, no vão destes arcos, na arcada destas pontes, inserir a


cava de um ombro desmesuradamente grande, de um ombro onde se espalha o
sangue. E colocar o corpo em repouso, e a cabeça onde formigam os sonhos,
sobre o rebordo destas cornijas gigantes onde se dispõe o firmamento.

Pois um céu de Bíblia está em cima de onde correm nuvens brancas. Mas as
doces ameaças destas nuvens. Mas as tormentas. E este Sinai cujas faíscas elas
deixam varar. Mas a sombra trazida da terra, e a iluminação ensurdecida e
gredosa. Mas esta sombra em forma de cabra, enfim, e este bode! E o Sabá das
Constelações.
Um grito para reunir tudo isto e uma língua para me pendurar aí.

Todos estes refluxos começam em mim.

Mostrem-me a inserção da terra, a dobradiça de meu espírito, o começo


terrível de minhas unhas. Um bloco, um imenso bloco falso me separa de minha
mentira. E este bloco é da cor que se quiser.

O mundo baba nele como o mar rochoso, e eu com os refluxos do amor.

Cachorros, quando vão parar de rolar seus seixos sobre minha alma. Eu. Eu.
Virem a página das caliças. Eu também espero a areia celeste e a praia que não
tem mais limites. É preciso que este fogo comece em mim. Este fogo e estas
línguas, e as cavernas de minha gestação. Que os blocos de gelo voltem a
encalhar sob meus dentes. Eu tenho o crânio espesso, mas a alma lisa, um coração
de matéria encalhada. Tenho ausência de meteoros, ausência de sopros
inflamados. Eu procuro em minha garganta nomes, e como que o cílio vibrátil das
coisas. O odor do nada, um bafo de absurdo, o estume da morte inteira... O
humorismo ligeiro e rarefeito. Eu também não espero senão o vento. Que ele se
chama amor ou miséria, não poderá me encalhar a não ser numa praia de ossadas.

Antnin Artaud

Em: Artaud, Antnin. Linguagem e Vida. São Paulo: Ed. Perspectva, 2006. p.
193-195.

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