Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Este fluxo, esta náusea, estas correias, é n’isto que começa o Fogo. O fogo
das línguas. O fogo tecido em espirais de línguas, no espelhamento da terra que se
abre como um vente em parte, de entranhas de mel e açúcar. De toda a sua ferida
obscena ele boceja este ventre mole, mas o fogo boceja sobre tudo em línguas
torcidas e ardentes que carregam em sua ponta suspiros como de sede. Este fogo
torcido como nuvens na água límpida, tendo ao lado a luz que taça uma régua e
cílios. ´a terra com todas as partes entreabertas e mostrando áridos segredos.
Segredos como superfícies. A terra de geologia primitiva, onde se descobrem os
sopés do mundo numa sombra negra como o carvão. - A terra é mãe sob o gelo do
fogo. Vejam o fogo dos Três Raios, com o coroamento de sua crina onde pululam
olhos. O centro ardente e convulso deste fogo é como a ponta esquartejada do
trovão no cimo do firmamento. O cento branco das convulsões. Um absoluto de
fulgor na balbúrdia da força. A ponta medonha da força que se quebra na
algazarra toda azul.
Os Três Raios fazem um leque cujos ramos caem a pique e convergem para
o mesmo cento. Este é um disco leitoso recoberto de uma espiral de eclipses.
Esta cidade de cavernas e muros que projeta sobre o abismo absoluto arcos
cheios e porões como pontes.
Pois um céu de Bíblia está em cima de onde correm nuvens brancas. Mas as
doces ameaças destas nuvens. Mas as tormentas. E este Sinai cujas faíscas elas
deixam varar. Mas a sombra trazida da terra, e a iluminação ensurdecida e
gredosa. Mas esta sombra em forma de cabra, enfim, e este bode! E o Sabá das
Constelações.
Um grito para reunir tudo isto e uma língua para me pendurar aí.
Cachorros, quando vão parar de rolar seus seixos sobre minha alma. Eu. Eu.
Virem a página das caliças. Eu também espero a areia celeste e a praia que não
tem mais limites. É preciso que este fogo comece em mim. Este fogo e estas
línguas, e as cavernas de minha gestação. Que os blocos de gelo voltem a
encalhar sob meus dentes. Eu tenho o crânio espesso, mas a alma lisa, um coração
de matéria encalhada. Tenho ausência de meteoros, ausência de sopros
inflamados. Eu procuro em minha garganta nomes, e como que o cílio vibrátil das
coisas. O odor do nada, um bafo de absurdo, o estume da morte inteira... O
humorismo ligeiro e rarefeito. Eu também não espero senão o vento. Que ele se
chama amor ou miséria, não poderá me encalhar a não ser numa praia de ossadas.
Antnin Artaud
Em: Artaud, Antnin. Linguagem e Vida. São Paulo: Ed. Perspectva, 2006. p.
193-195.