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1

Pe. Leão Dehon

DIRECTÓRIO
ESPIRITUAL
Dos
Sacerdotes do Coração de Jesus

Introdução histórica
pelo Pe. G. Manzoni, scj

Estudo sobre a Espiritualidade do Directório


pelo Pe. A. Bourgeois, scj

Edição da Província Portuguesa


dos Sacerdotes do Coração de Jesus
Lisboa, 1998

Esta impressão foi feita pelo Noviciado Coração de Jesus


Província BSP – Barretos 2011
2

Abreviaturas bibliográficas
AD = Arquivo Dehoniano (Cúria Geral, Roma)
B = Boite = Arca ou Contentor
C = Correspondência
CB = Congregationis Bibliotheca = Biblioteca da Congregação
(Cúria Geral, Roma)
CF = Cahiers Falleur (apontamentos do Pe. Falleur, sobre as
conferências do Pe. Dehon aos primeiros noviços)
Cst = Constituições
DE = Directório Espiritual (referências I §3 = parte I, paragr. 3. II,
cap. III, §3 = parte II, capítulo III, paragrafo 3)
EF = Edições e Fontes
LC = Lettere Circolari (Cartas Circulares) do Pe. Dehon
NHV = Notes sur L’Histoire de ma Vie (memórias do Pe. Dehon)
NQ = Notes Quotidiennes (Diário do Pe. Dehon)
St Deh. = Studia Dehoniana
Th. = Thesaurus (livro de orações)
VI – E = Vie Intérieure – Exercices
VI – P = Vie Intérieure – Principes
3

Sumário

HISTÓRIA DO DIRECTÓRIO ESPIRITUAL ....................................................... 8


A primeira redacção ...................................................................................... 8
Edições posteriores ...................................................................................... 9
Preparação da edição definitiva ................................................................... 9
O directório de 1919 .................................................................................... 11
O carisma do fundador ............................................................................... 12
Os apêndices: Avisos e conselhos............................................................ 14
Pacto de amor .............................................................................................. 14
Testamento Espiritual ................................................................................. 15
A linguagem do padre Dehon: a oblação de amor ................................... 15

O DIRECTÓRIO ESPIRITUAL DOS SACERDOTES DO CORAÇÃO DE


JESUS ............................................................................................................... 19

Introdução .................................................................................................... 19
A finalidade do nosso Instituto .................................................................. 19

Primeira parte: O ESPÍRITO DA NOSSA VOCAÇÃO .................................... 21

§ 1. Amor, imolação, sacrifício ................................................................... 21


§ 2. Amor puro e fiel .................................................................................... 22
§ 3. A oferta de si mesmo ........................................................................... 22
§ 4. O reino de Nosso Senhor em nós ....................................................... 23
§ 5. A recta intenção .................................................................................... 24
§ 6. A abnegação e o abandono ................................................................. 25
§ 7. A santidade sacerdotal ........................................................................ 26
§ 8. A reparação ........................................................................................... 28
§ 9. A reparação sacerdotal ........................................................................ 28
§ 10. A reparação mediante o amor .......................................................... 29
§ 11. Exame sobre o espírito da nossa vocação ...................................... 30
§ 12. Oração para pedir o espírito da nossa vocação ............................. 31

Segunda parte: OS MODELOS E OS PADROEIROS


DA NOSSA VOCAÇÃO .................................................................................... 32

CAPÍTULO I: Jesus e o seu divino Coração.............................................. 32


§ 1. Jesus é nosso modelo nos mistérios da sua vida
e na Eucaristia .......................................................................................................... 32
4

§ 2. O «Ecce venio» ........................................................................................... 32


§ 3. Nazaré ............................................................................................................ 33
§ 4. A Paixão ........................................................................................................ 35
§ 5. A Eucaristia .................................................................................................. 37

CAPÍTULO II: A Santíssima Virgem Maria ................................................. 39


§ 1. O «Ecce ancilla» ......................................................................................... 39
§ 2. O Sagrado Coração de Maria .................................................................. 40
§ 3. Maria no Calvário ....................................................................................... 41
§ 4. Nossa Senhora de La Salette .................................................................. 42

CAPÍTULO III: São José .............................................................................. 43


§ 1. S. José padroeiro e modelo da nossa vocação ................................. 43
§ 2. São José padroeiro e modelo da vida de vítima ................................ 44

CAPÍTULO IV: São João e os Apóstolos ................................................... 44


§ 1 . São João é para nós um padroeiro e um modelo ............................ 44
§ 2. S. João: a sua formação ........................................................................... 45
§ 3. S. João: a sua profissão ........................................................................... 47
§ 4. Os Apóstolos ............................................................................................... 50

CAPÍTULO V: Maria Madalena e as Piedosas Mulheres .......................... 51

CAPÍTULO VI: S. Inácio, S. Francisco Xavier, S. João Berchmans ........ 52

CAPÍTULO VII: Os Santos do Coração de Jesus ...................................... 53

Terceira parte: OS VOTOS E A VIDA RELIGIOSA ........................................ 54

CAPÍTULO I: Noções gerais ....................................................................... 54

CAPÍTULO II: O voto de pobreza ................................................................ 55


§ 1. Excelência da pobreza .............................................................................. 55
§ 2. Prática da pobreza ..................................................................................... 55
§ 3. Espírito e virtude de pobreza .................................................................. 56
§ 4. Observações Importantes ........................................................................ 57

CAPÍTULO III: O voto de castidade ............................................................ 57


§ 1. Excelência da castidade ........................................................................... 57
§ 2. Prática da castidade .................................................................................. 58

CAPÍTULO IV: Voto e virtude de obediência ............................................. 59


§ 1. Excelência da obediência ........................................................................ 59
§ 2. As obrigações da obediência.................................................................. 59
§ 3. O espírito e a virtude de obediência ..................................................... 60
5

CAPÍTULO V: A profissão de amor e de imolação ................................... 61


§ 1. É a nossa vocação especial .................................................................... 61
§ 2. As obrigações desta profissão ............................................................... 61
§ 3. Perfeição da vida de imolação ................................................................ 62

CAPÍTULO VI: A vida religiosa .................................................................. 63


§ 1. O hábito......................................................................................................... 63
§ 2. A profissão ................................................................................................... 63
§ 3. Os superiores .............................................................................................. 64

Quarta parte: AS REGRAS .............................................................................. 65

§ 1. Importância das Regras ....................................................................... 65


§ 2. A regularidade exterior ........................................................................ 65
§ 3. O silêncio .............................................................................................. 66
§ 4. O trabalho e a fidelidade nas tarefas .................................................. 66
§ 5. Caridade, união, relações recíprocas ................................................. 67
§ 6. Recreios e conversas ........................................................................... 67
§ 7. O bom espírito e as tentações ............................................................ 67
§ 8. A mortificação ....................................................................................... 68
§ 9. Asseio e cuidado com a saúde ........................................................... 69
§ 10. Relações exteriores........................................................................... 69
§ 11. A hospitalidade .................................................................................. 69
§ 12. Leitura das Regras e exortações a comunidade ............................ 70
§ 13. Prestação de contas acerca da regularidade ................................. 70
§ 14. A direcção espiritual ......................................................................... 71

Quinta parte: OS EXERCÍCIOS DE PIEDADE ................................................ 73

§ 1. A oração ................................................................................................ 73
§ 2. Oração mental ou meditação .............................................................. 73
§ 3. Ofício divino .......................................................................................... 74
§ 4. A Santa Missa ....................................................................................... 75
§ 5. A Eucaristia e a comunhão reparadora .............................................. 77
§ 6. A reparação eucarística ....................................................................... 78
§ 7. A Primeira sexta-feira do mês e as outras práticas de reparação .. 80
§ 8. A Sagrada Escritura e as leituras piedosas ....................................... 81
§ 9. O Sacramento da Penitência ............................................................... 82
§ 10. Os exames de consciência ............................................................... 83
§ 11. Os três santos Corações .................................................................. 83
§ 12. A união aos mistérios de Nosso Senhor: Nazaré - o Calvário - a
agonia ............................................................................................................... 83
§ 13. O rosário e a devoção a Maria .......................................................... 84
§ 14. Meses de devoção e novenas .......................................................... 84
6

§ 15. Os exercícios espirituais .................................................................. 85

Sexta Parte: AS VIRTUDES PRÓPRIAS DA NOSSA VOCAÇÃO ................. 87

§ 1. A fé viva ................................................................................................. 87
§ 2. A confiança ........................................................................................... 87
§ 3. O puro amor de Deus ........................................................................... 88
§ 4. A acção de graças ................................................................................ 89
§ 5. A caridade para com o próximo .......................................................... 90
§ 6. A humildade .......................................................................................... 91
§ 7. A simplicidade ...................................................................................... 92
§ 8. A fidelidade ........................................................................................... 93
§ 9. A vigilância ............................................................................................ 94
§ 10. A ordem nas pequenas coisas ......................................................... 94
§ 11. A regularidade, a exactidão .............................................................. 96
§ 12. A recta intenção ................................................................................. 99
§ 13. O bom exemplo................................................................................ 100
§ 14. A perseverança ................................................................................ 101
§ 15. Abnegação, desapego e renúncia ................................................. 101
§ 16. O recolhimento ................................................................................ 102
§ 17. Fidelidade à graça e zelo pela própria santificarão ..................... 103
§ 18. A mortificação .................................................................................. 104
§ 19. O abandono e a conformidade com a vontade de Deus .............. 104
§ 20. A alegria nas provações e o amor à cruz ...................................... 105
§ 21. A união a Nosso Senhor e a vida Interior...................................... 106
§ 22. A devoção à Eucaristia ................................................................... 106
§ 23. O Zelo ............................................................................................... 107
§ 24. Amor à Igreja .................................................................................... 107

REGRAS COMUNS ........................................................................................ 108

APÊNDICES: Avisos e conselhos do Pe. Dehon aos seus religiosos...... 115

I. A caridade, a cortesia, o bom espírito .................................................. 115


II. A ordem e a limpeza .............................................................................. 117
III. A oração, a vida interiora leitura espiritual e a direcção espiritual 120
IV. O espírito de vítima em união com o Coração de Jesus ................. 123
V. Tornar-se santo ..................................................................................... 125
VI. Defeitos de carácter ............................................................................ 128
VIl. A reparação, o espírito de vítima ...................................................... 130
VIII. A autoridade e a obediência ............................................................ 132

PACTO DE AMOR .......................................................................................... 135

TESTAMENTO ESPIRITUAL ......................................................................... 135


7

ESPIRITUALIDADE DO DIRECTÓRIO (observaçaões e notas) ................ 138

O livro, a sua história e a nossa vida um texto fundamental ................ 138


“Form und redaktionsgeschichte” .......................................................... 141
A recolha de 1919 ...................................................................................... 144
Ler e meditar o “directório”...................................................................... 148
Os modelos e os padroeiros .................................................................... 149
“Jesus e o seu divino Coração” .............................................................. 150
O espírito da nossa vocação .................................................................... 153
O “ecce venio” ........................................................................................... 155
Numa “vida de amor” ................................................................................ 158
Uma imolação ............................................................................................ 161
No espírito de amor e de reparação ........................................................ 168
As virtudes próprias da nossa vocação .................................................. 171
Os votos – as regras – os exercícios ..................................................... 173
Do directório espiritual às novas constituições... .................................. 177

EDIÇÕES E FONTES DO DIRECTÓRIO ESPIRITUAL ............................... 181

Nota preliminar .......................................................................................... 181


1. Constituições de 1885-86 — Thesaurus de 1886 ............................... 181
2. Thesaurus de 1891 ................................................................................ 182
3. O “Directório” de 1905 e de 1908 ......................................................... 183
4. O “Directório” de 1919 (3)..................................................................... 185

ESCRITOS EPIRITUAIS DO PADRE DEHON ............................................... 192


8

HISTÓRIA DO DIRECTÓRIO ESPIRITUAL


Pelo Pe. Giuseppe Manzoni, scj

A primeira redacção

O Directório Espiritual dos Sacerdotes do Coração de Jesus é a obra


mais característica do Pe. Dehon. Exprime, de forma completa, a
espiritualidade que ele quis deixar à congregação por ele fundada. Por isso,
dirige-se em particular aos seus religiosos.
A história deste livro é muito complexa. A obra não foi escrita de uma só
vez, mas foi crescendo, pouco a pouco, em torno de um núcleo inicial, através
de aumentos e reformulações. E uma obra de espiritualidade e, por
conseguinte, de vida vivida, ligada ao próprio caminho interior do Pe. Dehon.
Provavelmente o primeiro núcleo estava já contido nas Constituições de
1881, de que apenas possuímos o Primeiro capítulo. Todavia podemos afirmar
como certo que o primeiro Directório Espiritual dos Sacerdotes do Coração de
Jesus é constituído pelos Capítulos VIII e IX das Constituições de 1885 (cf. St.
Deh. 2, p. 45-77), aprovadas por Mons. Thibaudier, bispo de Soissons, a 2 de
Agosto de 1885 e reaprovadas, por um ano, a 15 de Setembro do ano seguinte
(ib. p. 89).
O capítulo VIII tem por título: «As virtudes próprias dos Sacerdotes da
Congregação do Coração de Jesus». Divide-se em 10 parágrafos: a vida
interior; a caridade; a humildade; a mortificação; a abnegação; a conformidade
com a vontade de Deus; a pureza de intenção; o zelo, o amor à cruz. O capítulo
IX trata dos exercícios de piedade e das práticas de perfeição.

Salta logo à vista como o amor a Cristo é a fonte e a orientação de toda a


espiritualidade do Sacerdote do Coração de Jesus. E a união aos mistérios de
Cristo leva-o a viver a sua vida.
O Capítulo Geral de 1886 propôs uma melhor sistematização do capítulo
VIII sob 6 títulos: a caridade; a humildade, a conformidade com a vontade de
Deus e a pureza de intenção; a vida interior; o zelo; a imolação.
A explicação desta nova ordem é dada na introdução e é interessante:
«Foi Nosso Senhor que nos indicou as principais virtudes do seu divino
Coração... Pôs em primeiro lugar a caridade e a humildade: Aprendei de Mim,
que sou manso e humilde de coração (Mt 11, 29). Sublinhou, em terceiro lugar,
a conformidade com a vontade divina: ... Eis que Eu venho, ó Deus, para fazer
a Tua vontade (Heb 10,7) (cf. M. Denis, Le project du P Dehon, St. Deh. 4, p.
264).
As outras virtudes resumem a vida terrena de Cristo: a vida interior (a
vida oculta de Nazaré); o zelo (a vida pública), a imolação (a paixão continuada
na Eucaristia).
9

Edições posteriores

No Diário, a 18 de Junho de 1890, o Pe. Dehon escreve: «Trabalho... na


cópia do Directório» (NQ V, 6 v.°). A 6 de Agosto de 1890, por altura de uma
visita a Fourdrain, volta a escrever no Diário: «Deixo-vos o novo Directório» (NQ
V, 9 v.°). De uma citação do Capítulo Geral de 1899, pode-se deduzir que o
Directório, a que alude o Pe. Dehon, seja o texto inserido no «Thesaurus
Precum» de 1891 (pág. 131-165). O novo texto é incontestavelmente o melhor
dos textos precedentes como inspiração doutrinal.
Em 1905 e em 1908 temos duas novas edições. Os textos de ambas são
muito semelhantes e voltam a propor o primitivo de 1885, com alguns
acrescentos.
O Directório de 1908 apresenta 3 apêndices: sobre a oração mental,
sobre a direcção espiritual e sobre a leitura espiritual, com uma bibliografia de
obras recomendadas. Explica-se que a «profissão de imolação», não sendo
permitida pela Santa Sé como voto, deve ser uma «disposição de espírito» para
viver o espírito de amor e de imolação. Esta «disposição para o amor e para a
imolação confere à Congregação o carácter que lhe é próprio». Verificamos que
todos os Capítulos Gerais sempre deram ao amor e à imolação grandíssimo
relevo, porque característicos do carisma do Instituto, interpretando-os
positivamente no espírito de oblação do «ecce venio» de Cristo.

Preparação da edição definitiva

Em Outubro de 1917, o Pe. Dehon escreve no seu Diário que está


levando a cabo «uma nova redacção do nosso Directório» (NQ XLI, 25).
Decorre a primeira guerra mundial e o Pe. Dehon permanece retido em
S. Quintino durante mais de três anos. Não pode viajar, não pode receber nem
expedir correspondência, senão excepcionalmente. Tem, por conseguinte todas
as condições para reviver os anos das origens da Congregação e para redigir a
edição definitiva do Directório.
No Arquivo Dehoniano, encontram-se dois cadernos (B 3, 1-2), intitulados
«Notas sobre o espírito da Obra», no princípio dos quais o Pe. Dehon inseriu
uma folha: «Estas notas foram utilizadas na redacção do novo Directório». Na
primeira página do primeiro caderno é repetido o título: «Notas sobre o espírito
da obra» e continua «como nós o concebemos desde o início com o contributo
das nossas irmãs (as Servas) e a graça do Coração de Jesus,1877.1881».
No começo da edição impressa em 1919, após o título, lemos: «Estas
páginas exprimem o espírito da nossa obra tal como nós o concebemos desde
o princípio (1877-1881) com o contributo de algumas almas privilegiadas e a
graça do Coração de Jesus» (pág. 2).
Entre estas almas privilegiadas podemos incluir a «Chère Mère», isto é
Madre Maria do Coração de Jesus, no mundo Madalena Uhlrich, fundadora das
Servas do Coração de Jesus, a irmã Maria de Jesus e, sobretudo a irmã Maria
de S. Inácio. «As suas luzes de oração deram-nos temas maravilhosos para o
nosso Directório e as nossas orações» (NQ XLIV, 109 Junho de 1924). Com
10

efeito, num caderno, transcrição quase total do primeiro caderno das «Notas
sobre o espírito da obra», o Pe. Dehon escreve de seu punho este
esclarecimento: «Estas directrizes estão de acordo com as luzes de oração da
Ir. Maria de S. Inácio. Sem as reproduzir à letra, oferecem a doutrina. (AD, B 3,
3). Neste caderno lemos as primeiras duas partes do actual Directório
Espiritual: «O espírito da nossa vocação» e «Os modelos (e padroeiros da
nossa vocação)» com insignificantes variações. Estas duas partes reflectem,
portanto, de modo particular as luzes de oração da Ir. Maria de S. Inácio. O
mesmo podemos afirmar, embora com menor intensidade, da quinta e sexta
partes: «Os exercícios de piedade» e «As virtudes próprias da nossa vocação».
Bem pouca é, ao contrário, a influência na terceira parte: «Os Votos e a vida
religiosa»; ao passo que parece faltar qualquer influência directa na quarta
parte: «As regras». Numa carta escrita pelo Pe. Dehon à Ir. Maria de S. Inácio a
9 de Dezembro de 1919, lemos: «Envio-lhe alguns volumes: no Directório
poderá reconhecer as luzes...» (C XXVII, 671).
Os cadernos completos, contendo as luzes ou iluminações de oração da
Ir. Maria de S. Inácio, encontram-se no Santo Ofício. O Pe. Dehon recuperou-os
em parte através duma cópia parcial do jesuíta Pe. A. Modeste, que, por sua
vez a recebera da «Chère Mère», Maria do Coração de Jesus, fundadora das
Servas, em Fevereiro de 1917: «Transcrevo-a – escreve o Pe. Dehon no seu
Diário – e vislumbro melhor todo o modo de proceder de Nosso Senhor a
respeito da nossa obra» (NQ XL, 100). O caderno transcrito pelo Pe. Dehon
conserva-se no Arquivo Dehoniano (B 34, 8).
Sabemos de outra recolha das «luzes de oração» da Ir. Maria de S.
Inácio (AD, B 34/7), transcrita pelo Pe. Dehon nas suas Memórias (cf NHV XIII,
74-99). Acrescentemos os três trechos das «luzes de oração» transmitidos pelo
Pe. Dehon ao P. Eschbach, superior do Seminário francês de Santa Clara, em
Roma (AD, 36/2).
O Pe. Dehon, a quarenta anos de distância dos factos sucedidos nos
primórdios da Congregação, reconhece que: «Fazia-nos falta um noviciado
para a vida de vítima. Nosso Senhor encarregou-se disso. Dispunha de um
instrumento bem preparado, a Ir. Maria de S. Inácio... A partir de 2 de Fevereiro
(1878) recebeu luzes de oração sobre a nossa obra e a nossa vocação. O ano
de 1878 foi para nós um verdadeiro noviciado. Os mistérios de Nosso Senhor, o
ecce venio, o ecce ancilla, a vida oculta, a paixão, a formação de S. João foram
os temas daquelas luzes de oração que nos forneciam um verdadeiro directório
sobre as virtudes da nossa vocação» (NQ XL, 97-99: Fevereiro de 1917).
Pode ser útil cotejar o texto do Directório com as «luzes de oração» da Ir.
Maria de S. Inácio, como em parte foi feito na biografia do Pe. Dehon do Pe.
Dorresteijn (Vita e Personalità di P. Dehon, Note e Studi, pág. 616-620).1 Trata-
se de um trabalho crítico meritório, que deveria ser aprofundado.
O valor do Directório Espiritual, como apresentação da espiritualidade
típica dos Sacerdotes do Coração de Jesus, permanece todavia intacto, visto
que é todo do Pe. Dehon, mesmo nas partes em que fez sua, de modo muito
convicto e pessoal, a doutrina contida nas «luzes de oração» da Ir. Maria de S.
Inácio.

1
Edição italiana, EDB, Bologna 1978.
11

O Directório de 1919

A última edição do Directório Espiritual (1919), impressa em Lovaina pelo


editor F. Ceuterick, consta de 216 páginas, ao passo que a edição anterior de
1908, de formato semelhante, tinha 108 páginas. O núcleo original é
conservado, mas o conteúdo é muito mais amplo, com aditamentos
completamente novos, como a primeira parte: «O espírito da nossa vocação»
(págs. 5-26) e a segunda parte: (Os modelos e os padroeiros da nossa
vocação) (págs. 27-76).
Toda a primeira parte, «O espírito da nossa vocação», exprime a
espiritualidade dehoniana como uma oblação de amor. A terminologia é do
século XIX. Cada século tem o seu modo de exprimir-se. Compete-nos
compreendê-lo, a fim de não rejeitar uma doutrina riquíssima e positiva, por
uma mera questão de linguagem.
Esta primeira parte propõe um vértice, uma totalidade de disponibilidade
através de «o amor puro e a fidelidade». Os temas principais são: Amor,
imolação, sacrifício; Amor puro e fiel; A oferta de si mesmo; A recta intenção; A
abnegação e o abandono; A santidade sacerdotal; A reparação; A reparação
sacerdotal; A reparação mediante o amor; O exame sobre o espírito da nossa
vocação; Oração para pedir o espírito da nossa vocação. Particularmente belo
e tocante é o parágrafo 7 sobre «A santidade sacerdotal».
A segunda parte do Directório apresenta os modelos e padroeiros dos
Sacerdotes do Coração de Jesus. Primeiro, entre todos, Jesus e o Seu divino
Coração, nos mistérios da Sua vida: no ecce venho, em Nazaré, na paixão, na
Eucaristia. Falando de Cristo, talvez pudéssemos esperar uma maior insistência
na experiência de Jesus-Vida (cf. DE, Parte VI, § 21; Année II, 175-176; VI-P,
175-176; VI-E, 30.110.202.205), ao passo que O apresenta muito
frequentemente apenas como modelo.
A Santíssima Virgem é considerada no ecce ancilla, no seu Coração, na
sua experiência dolorosa sobre o Calvário, na reparação por Ela pedida nas
aparições de La Salette e de Lourdes. Notável, pela inspiração teológica e real
beleza, é a relação estabelecida entre o ecce venio de Cristo e o ecce ancilla
de Maria.
S. José é apresentado como padroeiro e modelo dos Sacerdotes do
Coração de Jesus, particularmente da sua vida de vítima.
De modo muito especial, o Pe. Dehon detém-se na figura de S. João,
apresentado como o sacerdote do Coração de Jesus ideal. Considera S. João
na sua formação na escola de Cristo e na sua profissão sobre o Calvário. São
considerações belas e comovedoras, inspiradas pelas «luzes de oração» da Ir.
Maria de S. Inácio.
Detém-se depois nos Apóstolos e em alguns santos e santas em relação
especial com o Coração de Jesus.
A terceira e quarta partes do Directório tratam dos votos religiosos, da
vida religiosa, das regras. Reportam-se fundamentalmente aos Directórios
anteriores. São notáveis os aditamentos, especialmente na quarta parte no
tocante à limpeza, aos cuidados com a saúde, às relações externas, etc..
12

A quinta parte é dedicada aos exercícios de piedade, com um maior


desenvolvimento e com muitas aplicações práticas. Voltamos a encontrar a
inspiração das «luzes de oração» da Ir. Maria de S. Inácio relativamente à
reparação eucarística e às práticas reparadoras.
A sexta parte detém-se nas virtudes próprias da nossa vocação. São
nada menos que 24 parágrafos. São numerosos os títulos novos. Também a
forma de abordar os temas é retocada e completada, relativamente às edições
anteriores. Além disso, são retomados alguns temas já desenvolvidos na
primeira parte, como: o puro amor para com Deus (§3), a fidelidade (§8), a recta
intenção (§12), o abandono e a conformidade com a vontade de Deus (§19),
etc..
O Directório Espiritual tem uma importância única, uma vez que é a
expressão mais completa do carisma dehoniano. Abrange e exprime na sua
interioridade toda a vida religiosa do Pe. Dehon, desde as origens (1878) até ao
fim dos seus dias. Compendia as suas reflexões de dezenas de anos sobre a
espiritualidade oblativa, até uma clareza luminosa e uma compreensão vital do
seu carisma de religioso e de fundador.
A linguagem, como já dissemos, é típica do século XIX, mas os
conteúdos espirituais são de uma profunda actualidade, dado que nos
convidam a reviver os mistérios de Cristo e, de modo particular, a sua vida mais
íntima, como sacerdote e vítima, para glória do Pai e pela salvação do mundo.

O carisma do fundador

O Pe. Dehon foi particularmente iluminado sobre o mistério da oblação de


Cristo e do seu amor reparador. Recebeu do Espírito o carisma de fundar uma
congregação de sacerdotes que testemunhassem na Igreja e no mundo os
mistérios de Cristo, no seu amor para com o Pai e para com os homens.
A Igreja, por meio de várias intervenções, mesmo dolorosas, confirmou,
com a sua aprovação, a autenticidade do carisma do Pe. Dehon e da sua obra.
A consciência do carisma de fundador e a segurança da sua
autenticidade foram sempre firmes e inabaláveis no Pe. Dehon. Estava
profundamente convencido de que a congregação era de verdade obra de
Deus, tanto nos começos como no seu desenvolvimento: «A obra é de Deus.
Não pensamos suficientemente nisso. A obra é divina na sua origem. Tenho
todas as garantias» (NQ XLIV, 33-36: Dezembro de 1922). «Jesus fez tudo,
manteve a obra não obstante as minhas faltas. Ele queria-a e continua a querê-
la» (NQ XLIV, 99: Fevereiro de 1924).
O Pe. Dehon tem-se na conta de humilde «mediador» na fundação de um
Instituto querido pelo Espírito. Assim realizou a sua obra de fundador.
As iniciativas e os projectos da Madre Maria do Coração de Jesus,
fundadora das Servas do Coração de Jesus, como também as «luzes de
oração» da Ir. Maria de S. Inácio, exerceram uma influência notável sobre a
espiritualidade do Pe. Dehon, como já se disse. Todavia não foram eles a
determinar a fundação do Instituto. Para o Pe. Dehon, foram uma ajuda apenas,
e não a mais importante, para conhecer melhor e mais a fundo aquilo que Deus
esperava dele e da obra por ele fundada.
13

No que se refere a Madre Maria do Coração de Jesus, recordemos que o


seu desejo e projecto era de fundar uma associação de sacerdotes
reparadores, sob a direcção do jesuíta Pe. A. Jenner, aos quais (segundo
pensava ela) teria certamente aderido L. Dehon.
Quando o Pe. Dehon, depois de ter obtido o consentimento oral do seu
bispo, Mons. Thibaudier, para a fundação do Instituto (8 de Junho de 1877 e 25
de Junho de 1877), se confidenciou com Madre Maria do Coração de Jesus, a
26 de Junho de 1877, ela ficou «comovida» e sem palavras (cf. NHV XII, 164-
165). Nunca lhe tinha passado pela cabeça que L. Dehon viesse a tornar-se o
fundador de uma obra de sacerdotes reparadores, ultrapassando assim os seus
próprios desejos e projectos.
No que diz respeito às «luzes de oração» da Ir. Maria de S. Inácio, o Pe.
Dehon, não obstante a sua comprovada submissão às decisões de Roma,
escreve no seu Diário: «Refiro-me ao julgamento do Santo Ofício. Supõem que
estamos baseados em revelações (cf. Decreto de 29 de Março de 1884, em
NHV XIV, 184). Não é exacto. Já existíamos há um ano... Temos bases mais
sólidas...» (NQ III, 9: 1 de Maio de 1886). As «bases mais sólidas», em que
fundamentava a certeza do seu carisma de fundador são, em primeiro lugar, a
autorização explícita do seu bispo, Mons. Thibaudier, enviada por carta de 13
de Julho de 1877: «O projecto de sociedade tem todas as minhas simpatias...
Desejo que presida à sua realização» (NHV XII, 165). Outras «bases sólidas»
são as sucessivas aprovações do Instituto ou das suas Constituições, por parte
da Santa Sé (29 de Março de 1884, 25 de Fevereiro de 1888, 4 de Julho de
1906, 5 de Dezembro de 1923). Quem reconhece a autenticidade de um
carisma é sempre a Sé Apostólica. «Bases sólidas», para além dos conselhos
dos seus directores espirituais, são as inúmeras cruzes e dolorosas provações,
como resposta ao seu voto de vítima, emitido juntamente com os votos
religiosos a 28 de Junho de 1878, data da fundação do Instituto.
Só depois destas «bases sólidas» é que vêm as «luzes de oração» da Ir.
Maria de S. Inácio (NQ XLIV,132s.), que podem considerar-se como um apoio
externo ao carisma de fundação recebido pelo Pe. Dehon.2
2
A autorização explícita de Mons. Thibaudier foi sempre considerada pelo Pe. Dehon
como a aprovação hierárquica do seu carisma de fundador, o acto de fundação jurídica do
seu Instituto: «Que caminho mais seguro poderia eu seguir para começar a obra?... A
decisão tão clara do meu prelado era, para mim, a de Deus. Já não devia hesitar» (NHV
Xll,165).
O facto de a Providência ter preparado o Pe. Dehon para aprofundar o carisma
peculiar do seu Instituto em harmonia com o carisma das Servas do Coração de Jesus, de
quem foi confessor e director espiritual, desde que chegou a S. Quintino (2 de Julho de 1873)
(e foi-o especialmente para a Ir. Maria de S. Inácio) e que, depois da fundação se sentisse
animado e estimulado pelas «luzes de oração» da mesma Irmã, não deve, de modo algum,
causar estranheza: são auxílios que Deus concede segundo os Seus desígnios de amor. O
Espírito de Deus pode servir-se de quem quer que seja para ajudar e iluminar. As luzes
necessárias para conhecer a fundo o carisma de um Instituto são comunicadas, em primeira
mão, ao fundador; mas para isso, pode servir-se também de outras pessoas. Esta foi a
missão da Ir. Maria de S. Inácio. O Pe. Dehon acolheu as «luzes» da Irmã, considerou-as de
acordo com o seu carisma de fundador e da sua Congregação meditou-as, reelaborou-as fê-
las suas. Conhecemos a gratidão que o Pe. Dehon sempre demonstrou para com essa
religiosa. Assim deixou escrito, com grande humildade, no seu Diário: ‘Nosso Senhor não
podia dar-me aquelas luzes que precisávamos porque eu não era digno; encontrava-me
14

Os apêndices: Avisos e Conselhos

A princípio eram pequenos fascículos, de quatro páginas cada um (16,5 x


10,5) com a assinatura: L. D. Foram acrescentados à edição francesa e italiana
do Directório depois da morte do Pe. Dehon.
O estilo dos Avisos e Conselhos era muito usado no século passado.3 O
Pe. Dehon escreveu-os para os seus religiosos acerca de assuntos práticos,
tais como: «A caridade, as boas maneiras, o bom espírito» (I); «a ordem e a
limpeza» (II); «A oração, a vida interior, a leitura espiritual, a direcção» (III); etc.
São ao todo oito fascículos, o último dos quais data de 6 de Fevereiro de 1913,
como se pode ver por uma anotação manuscrita.

Pacto de amor

O Pacto de amor foi encontrado depois da morte do Pe. Dehon. Entre os


papéis que continham as suas últimas vontades, apareceu uma folha dobrada
com a indicação «Pacto com Nosso Senhor», dentro da qual um sobrescrito
continha a fórmula do pacto e da breve renovação diária. No sobrescrito que
continha o «Pacto» lia-se: Amicitiam tuam pretiosam, pauperculo tuo discipulo,
reddere non dedigneris, Domine. Fiat! Fiat!4 (cf. Mons. Philippe, Cartas
Circulares, ed. bilingue, pag. 27 e s.). Desconhecemos a data de redacção do
«Pacto».
O Pacto de amor tem afinidades com a «profissão de amor e de
imolação» que se renovava todos os dias e se encontra no livrinho: «As nossas
orações dos primeiros anos» (cf. M. Denis SCJ, Le Projet... em St. Deh. 4, pág.
78). O Pe. Dorresteijn, no seu estudo, remete para os apontamentos do grande
retiro de Braine (17 de Out.-15 de Nov. de 1893), que contêm um «pacto de
amor» muito semelhante ao «Pacto com Nosso Senhor» que o Pe. Dehon
levava sempre consigo: «Entrego-me inteiramente a Nosso Senhor, para servi-

demasiado envolvido na vida activa. Deu-no-las através da Ir. Maria de S. Inácio (NQ
XLIV,107: Maio de 1924).
Como S. João Eudes foi ajudado pela Ir. Maria des Vallées e o venerável Olier por
Maria Rousseau, assim eu fui ajudado pela Ir. S. Inácio (NQ XLIV, 138: Outubro de 1924).
Para um estudo mais completo deste assunto, cf. H. Dorresteijn, Vita e Personalità di
Pe. Dehon, págs. 603-632 da edição italiana; e também Espiritualidade do Directório neste
volume, pág. 269.
3
Bastará recordar as célebres Paillettes d’or, publicadas como anónimas pelo cónego
Mons. Adriano Sylvain (1826-1914), que conheceram enorme difusão, com uma tiragem de
500.000 exemplares por ano, após 58 anos de existência. Escritas em estilo simples e
popular, abordando um assunto que atingia o espírito, a imaginação ou o coração,
propunham um mote, uma reflexão, uma lembrança, uma cena, uma representação.

4
Dignai-Vos, Senhor, conceder ao Vosso mínimo discípulo a Vossa preciosa amizade.
Faça-se! Faça-se!
15

lo em tudo e em tudo fazer a sua vontade. Com o auxílio da sua graça, estou
pronto a fazer e a sofrer tudo aquilo que Ele quiser. Tenho a minha regra, o
meu director e os acontecimentos providenciais que me dirão o que devo fazer.
Renuncio à minha vontade e à minha liberdade. Peço a Nosso Senhor que
aceite esta oferta, este dom que Lhe faço, e que não permita que lhe seja infiel.
Rogo à Santíssima Virgem, ao meu Anjo da Guarda e aos meus santos
protectores que me ajudem a cumprir este pacto até ao último instante da
minha vida» (cf. Vita e Personalità di Pe. Dehon, pág. 174).

Testamento Espiritual

O Testamento Espiritual, também inserido neste volume, foi escrito


«durante os tristes dias da guerra em 1914». Considerando a oração final
«Ofereço e consagro a minha vida e a minha morte ao Sagrado Coração de
Jesus, por seu amor e segundo as suas intenções; tudo por Vosso amor, Ó
Coração de Jesus!», recordemos que o Pe. Dehon escrevia: «Recito
antecipadamente esta oração em vista do momento da minha morte. São as
disposições em que quero morrer. Muito gostaria que se lesse esta oração
perto de mim na hora da minha morte, para que eu me possa unir a ela» (30 de
Junho de 1916, festa do Coração de Jesus, 38.° aniversário dos meus votos).
No testamento, redigido a 8 de Dezembro de 1924 em Bruxelas, o Pe.
Dehon reporta-se nalguns passos ao seu Testamento Espiritual: «Peço perdão
a Deus e aos homens de todas as minhas culpas. Imploro a misericórdia do
Coração de Jesus... Recomendo-me às orações de todos aqueles que tiveram
para comigo algum afecto. Quero morrer como discípulo e apóstolo do Coração
de Jesus» (Documenta II, pág. 28).

A linguagem do padre dehon: a oblação de amor

Chegando ao fim desta introdução, parece-nos oportuno acrescentar um


esclarecimento acerca da linguagem utilizada pelo Pe. Dehon, tanto no
Directório como nos demais escritos espirituais. Serve-se espontaneamente e
com grande abundância da linguagem cultual-sacrifical (imolação, hóstia,
oferenda, sacrifício, expiação, etc.), para designar as várias componentes e o
dinamismo interior da sua espiritualidade.
Tal linguagem não foi criada por ele; provém-lhe da Bíblia e da Liturgia
pela mediação da assim chamada «escola francesa» de espiritualidade
sacerdotal do Card. de Bérulle, que cultivou predilecção especial por esta
linguagem. Também a devoção ao Coração de Jesus, particularmente na sua
expressão de Paray-le-Monial, a utilizou geralmente. Como entender este
fenómeno?
É sabido que na teologia ocidental este vocabulário bem cedo recebeu
uma interpretação exacta que dá pelo nome de «explicação jurídico-penalista»
da cruz. O sofrimento de Cristo foi necessário à redenção humana, em virtude
de uma irrevogável exigência da justiça punitiva de Deus. Por meio da paixão,
Deus puniu em Cristo a desordem do pecado humano, a fim de que assim
fosse feita justiça e restaurada ou reparada a ordem da lei. Foi assim que a
linguagem sacrificial, usada pela Bíblia para interpretar o acontecimento do
16

calvário, encontrou esta interpretação e com ela tomou corpo: expiar é pagar
com a dor; imolar-se é pôr-se à disposição da justiça punitiva de Deus; vítima é
aquele que é atingido...
A teologia ocidental inspirou-se, neste caso, na cultura latina e na sua
acentuada predilecção pelo direito. Nada a dizer sobre a legitimidade de tal
recurso. Aquilo que hoje nos deve preocupar saber é se é, de facto, este o
sentido da Escritura ao utilizar a linguagem do sacrifício. A exegese actual
responde claramente que não. Tal contexto legal não transparece no pano de
fundo do sacrifício hebraico e cristão. Para a Bíblia, «expiar» não significa
submeter-se à justa condenação, mas eliminar o obstáculo do pecado que
impede a comunhão com Deus e re-activar a capacidade do homem de
responder a Deus; a expiação é gratuita obra divina de salvação que atinge o
homem sobretudo no sacrifício. O mesmo podemos dizer relativamente a outros
termos sacrificais. Com isto, no entanto, não é de modo algum excluída a
componente da dor (imolação) do sacrifício espiritual da vida cristã, como
também não o foi do sacrifício de Cristo. Dizemos apenas que, segundo a Bíblia
e a Liturgia, a presença da imolação não se deve a motivos de justiça punitiva
sancionada por Deus. Provém, ao fim e ao cabo, do próprio homem que
encontra resistência por parte do seu egoísmo radical; ao passo que em Cristo
foi uma libérrima escolha do seu amor de solidariedade com a nossa condição.
No tocante a expressões de espiritualidade do século XIX que se
inspiravam no Coração de Jesus, a ideia «penalista-vitimista» teve um peso
muito grande. Mas no Pe. Dehon ela aparece mais raramente e em termos
muito discretos. Aquilo que o fascina, ao contrário, é a vida de oblação, a
oblação de amor. Por isso, não tardou em reduzir a este único aspecto
dominante da sua espiritualidade também as outras expressões: imolação,
vítima de expiação, sacerdote-vítima, que para ele nada acrescentam de
especificativo, mas quase só se reduzem a variantes linguísticas da oblação,
assumidas como obséquio à linguagem corrente do seu tempo e nada mais.
Esta inclusão das expressões sacrificais na oblação de amor aparece
claramente nalguns textos de comentário ao título oficial do Instituto que, como
sabemos, foi inicialmente o de «Oblatos do Coração de Jesus», título, aliás, a
que o Pe. Dehon permaneceu sempre muito ligado, a ponto de pedir
novamente à Santa Sé o seu uso em 1892, o que não lhe foi concedido.
No primeiro e único capítulo que ainda possuímos das mais antigas
Constituições (1881) lê-se: «O seu nome de Oblatos foi escolhido para exprimir
esta vida de imolação» (Testo A, cit. por M. Denis, Le Projet du P Dehon, St.
Deh. 4, pág. 10).
Numa carta dirigida ao Pe. Guillaume (18 de Fevereiro de 1913), o Pe.
Dehon aproveita a oportunidade para exprimir-se com maior desenvolvimento:
«Quis fazer uma obra de reparação e de vítimas. Nunca adoptei o nome de
Vítimas; adoptei o de Oblatos, que dizia a mesma coisa... Nós somos
Sacerdotes vítimas. O nosso espírito próprio é «spiritus amoris et
immolationis»... Viva bem o seu acto de oblação e será uma boa... vítima do
Coração de Jesus» (cit. por M. Denis, Le Projet... pág. 338-339). Na mesma
carta: «Não tomei o nome de Vítimas; adoptei o de Oblatos que me dizia a
mesma coisa. Poderíamos chamar-nos Vítimas em Marselha (sul de França);
17

em S. Quintino (norte de França) teria parecido rematada loucura» (ib. pág.


338).
Nos «Avisos e Conselhos» o Pe. Dehon assim se exprime: «Nós fazemos
cada manhã o nosso acto de oblação: A vida de amor e de imolação! com a
qual nos oferecemos a nós mesmos e consagramos todas as nossas
faculdades ao beneplácito divino é o que caracteriza o nosso Instituto» (cf. cap.
li Cst. 1906, pág. 5; DE, Apêndices, VII).
O Pe. M. Denís, profundo conhecedor do pensamento e das obras do Pe.
Dehon, afirma expressamente: «No Pe. Dehon pode-se constatar que a
imolação é só um modo de exprimir a oblação» (o. c. pág. 20, nota 1). Falando
aos primeiros noviços, o Pe. Dehon equipara a imolação à oblação de amor (cf.
CF III, 39 e nota 12, pág. 120; IV, 76, 79-80).
Os conteúdos da vida de oblação, que o Pe. Dehon exprimiu com a
linguagem do seu tempo, estão presentes na Regra de Vida de 1973 e nas
últimas Constituições aprovadas em 1982.
No n.° 6 destas, lê-se: «Ao fundar a Congregação dos Oblatos,
Sacerdotes do Coração de Jesus, o Pe. Dehon quis que os seus membros
unissem, de forma explícita, a sua vida religiosa e apostólica à oblação
reparadora de Cristo ao Pai pelos homens. Esta foi a sua intenção específica e
originária e a índole própria do Instituto... Conforme dizia o próprio Pe. Dehon:
«Nestas palavras: Ecce venho... Ecce ancilla... encerram-se toda a nossa
vocação, a nossa finalidade, o nosso dever, as nossas promessas» (DE 1, § 3).
«No entender do Pe. Dehon o Ecce venio (Heb 10, 7) define a atitude
fundamental da nossa vida. Transforma a nossa obediência em acto de
oblação; configura a nossa vida com a de Cristo, para a redenção do mundo e a
glória do Pai» (n.° 58; cf. n.° 514, 21, 53, 85).
A oblação de amor do carisma dehoniano empenha a viver o «ecce
venio» do Verbo Incarnado, realidade de todos os instantes da Sua vida,
cumprindo a vontade do pai, imolando-se pela salvação dos homens até à
morte de cruz. A vida de oblação compromete a estarmos unidos a Cristo
sacerdote que Se oferece continuamente a Si mesmo. Daqui, para o Pe.
Dehon, a importância do culto eucarístico e a sua insistência no apostolado da
adoração reparadora.
Reflectindo bem, do mistério de Cristo, de que todos os Institutos
participam, coube-nos em herança a parte mais exigente: a de Cristo sacerdote
e de Cristo vítima, que está no centro do mistério da Redenção, para glória do
Pai e salvação das almas. O Pe. Dehon estava consciente da grandeza de tal
compromisso requerido pela sua e nossa vocação; mas como exorta
frequentemente os primeiros noviços a que não sejam pusilânimes (cf. CF II,
12.66, etc.), também afirma que não se pode realizá-la sem uma profunda
união de amor a Cristo e sem ser santos.
Notemos, por fim, que o uso do vocabulário sacrifical foi sempre elástico
e flutuante. Por seu lado, o Pe. Dehon não se preocupa certamente com dar-lhe
uma sistematização unívoca e orgânica. Varia-o de quando em quando,
consoante os aspectos que lhe interessa evidenciar. Mas aquilo que unifica
invariavelmente a sua experiência interior, o que constitui o seu único projecto
espiritual é a oblação total de si mesmo, sob o impulso do amor puro e heróico;
18

quer, sempre e sem reservas, ter-se na conta de um «oblato» do Coração de


Jesus.
19

DIRECTÓRIO ESPIRITUAL
DOS SACERDOTES
DO CORAÇÃO DE JESUS

Introdução
Estas páginas exprimem o espírito da nossa obra,
tal como o concebemos desde o início (1877-1881),
com o contributo de algumas almas privilegiadas
e com a graça do Coração de Jesus.

A finalidade do nosso Instituto

O Directório destina-se a orientar-nos na prática da nossa vida religiosa. 1


Depois desta introdução, em que recordaremos a finalidade da
Congregação, o Directório constará de seis partes.
Tratará do espírito da obra, dos nossos modelos e padroeiros, dos votos e
da vida religiosa, das regras, dás práticas de piedade, das virtudes próprias da
nossa vocação.
É esta a finalidade da nossa vocação: o espírito de amor e de reparação ao 2
Coração de Jesus, que é a graça do tempo presente e do futuro.
A divina Providência chama os Institutos antigos a entrar neste espírito e
suscita outros novos que fazem dele o seu fim principal. Tal é também o
nosso. Respondemos aos apelos de Nosso Senhor em Paray-le-Monial, às
inspirações da graça e à acção da Providência.
A finalidade da Congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus é,
portanto, procurar a glória de Deus, a glória da Santíssima Trindade:
1. Mediante uma especial e ardente devoção ao Coração de Jesus, que os
nossos religiosos se esforçarão por consolar, reparando as injúrias que O
atingem, especialmente as que mais O ofendem, porque provêm das almas
que Ele mais amou. Os nossos religiosos oferecer-se-ão ao Coração de Jesus
como vítimas do seu beneplácito em espírito de reparação e de amor, que é a
sua característica peculiar em união com Maria, com os Anjos e com os
Santos.
2. Mediante a sua própria santificarão, na qual se hão-de empenhar pela
observância dos votos e das Regras, cumprindo as práticas de piedade que
lhes são próprias e imitando as virtudes e as perfeições do Coração de Jesus.
3. Mediante o zelo pela salvação das almas, esforçando-se por conquistá-las
para Nosso Senhor, inspirando-lhes um terno amor e uma profunda devoção
para com o seu divino Coração.
As obras do Instituto são muito variadas. Referem-se sobretudo à pregação 3
e ao ensino, com especial preferência pelas missões longínquas, que exigem
generosos sacrifícios. Devem, no entanto, os nossos religiosos, no seu zelo
20

pelas obras, reservar todos os dias o tempo prescrito para as suas práticas de
piedade e, particularmente, para a adoração reparadora.
21

Primeira parte

O ESPÍRITO
DA
NOSSA VOCAÇÃO

§ 1. Amor, imolação, sacrifício

Os três principais dons que Nosso Senhor pede aos sacerdotes-vítimas do 4


seu Coração estão simbolizados nos presentes dos Reis Magos. O ouro é o
amor puro; o incenso, a imolação; a mirra, o sacrifício.
Quando uma virtude se encontra de verdade no coração, todas as demais
também lá se encontram em algum grau. O puro amor, em especial, é
verdadeiramente o elo e, em certo sentido, a salvaguarda e o coroamento das
outras virtudes. Caritas est vinculum perfectionis: A caridade. é o vínculo da
perfeição (Coi 3, 14). O puro amor é a mais eminente das virtudes; é o sinal
distintivo, o vínculo da perfeição. Manent fides, spes, caritas, tria haec. major
autem horum caritas: Agora subsistem estas três: a fé, a esperança e a
caridade; mas a maior delas é a caridade (1 Cor 13, 13).
O amor puro, sincero, autêntico, assenta numa fé viva; é acompanhado de
uma confiança filial e inabalável. Provém de um coração puro, de um coração
onde reina a pureza de intenção. Fínis praecepti est caritas de corde puro: O
fim da Lei é a caridade nascida de um coração puro (1 Tim 1, 5). Quando o
ouro é fino e puro, nota-se-lhe o mínimo contacto. O mais leve sopro ofusca-
lhe o brilho. Pois é a esta perfeição que devemos tender, com o auxílio da
graça e por uma fiel cooperação com a mesma graça.
O incenso é a imolação. 5
O incenso dos sacerdotes-vítimas do Coração de Jesus é o sacrifício da
vontade, da própria opinião e do próprio raciocínio imolados pela obediência.
O sacrifício total e sem reservas da vontade é comparável ao perfume do
incenso que se eleva até ao trono do Cordeiro, onde é aceite com agrado.
A própria vontade deve deixar-se consumir como o grão de incenso e
desaparecer nas chamas do amor do Sagrado Coração de Jesus. Querer só o
que Deus quer; entregar-se totalmente a Ele sem hesitações, sem reservas, no
tempo e para a eternidade; estar pronto para tudo, deixar-se moldar, aceitar
tudo com amor, como querido ou desejado por Deus, eis um sacrifício que é
agradável ao Sagrado Coração de Jesus: Paratum cor meum, Deus, paratum
cor meum: O meu coração, o Deus, está pronto, pronto está o meu coração (Sl
108, 2). Domine, quid me vis facere?: Senhor, que queres que eu faça? (Act 9,
6).
A mirra é o sacrifício do corpo, da natureza que está condenada a morrer; 6
são os sofrimentos venham eles de onde vierem e seja qual for o seu nome,
suportados em espírito de puro amor, com amor e por amor, no espírito de
22

reparação e de expiação em união com Nosso Senhor. Eles têm um grande


valor e uma enorme eficácia, por mais pequenos que sejam em si mesmos.
Os presentes que Nosso Senhor espera de nós são um coração para amar,
um corpo para sofrer, uma vontade para ser sacrificada e renunciada, para, em
seu lugar, amar acima de tudo a vontade de Deus e procurar cumpri-la.

§ 2. Amor puro e fiel

Como são raras as almas que amam a Nosso Senhor com amor puro e 7
desinteressado! Quantas almas, mesmo consagradas, que Nosso Senhor
diariamente cumula de benefícios e que, apesar disso, são ingratas, pensam
pouco n'Ele, passam o tempo a ocupar-se de si próprias, das suas satisfações
corporais e espirituais; ou então ocupam-se das criaturas, procurando agradar-
lhes e satisfazê-las.
E quando se ocupam um pouco mais de Nosso Senhor, como o fazem, por
exemplo, ao domingo, o dia que Lhe é consagrado, acaso são capazes de
estar muito perto d'Ele com todos os seus pensamentos, com todo o seu
coração e com uma intenção pura e sobrenatural?
Poderá o Esposo das nossas almas ficar totalmente satisfeito e convencido
do amor e da fidelidade das suas esposas, quando estas, cumprindo embora
os seus deveres O tratam com indiferença, insensibilidade e frieza?
Haec est virgo sapiens quam Dominus vigilantem ínvenit. Esta é a Virgem
sábia que o Senhor encontrou vigilante (Comum das Virgens). Nosso Senhor
encontra-nos vigilantes e fiéis, quando temos o hábito de manter
continuamente a nossa intenção, as nossas inclinações, os nossos
pensamentos e as nossas aspirações orientados para o objecto do nosso
amor. É a disposição da esposa do Cântico dos Cânticos: Dormio sed cor
meum vigilat. Eu durmo, mas o meu coração vigia: (Cant. 5, 2).
Mas mesmo que o corpo esteja ocupado com outra coisa, legitimamente
entregue ao sono, ao repouso, nem por isso o coração, o espírito e a vontade
estão dispensados de dirigir-se para Nosso Senhor que é o nosso fim último, a
meta suprema, o centro de todas as coisas.
Nosso Senhor pede-nos precisamente este amor constante, que não se
move, não opera e não age senão n'Ele, por Ele e para Ele; e nós tantas vezes
Lho retiramos, depois de Lho termos dado por alguns instantes: Praebe, fili mi,
cor tuum mihi. Meu filho, dá-me o teu coração (Prov 23, 26), o teu amor, a tua
vontade, as tuas intenções, que dão valor, aos olhos de Deus, às grandes
acções como às mais pequenas. É o que S. Agostinho queria exprimir por
estas palavras: «Ama e faz o que quiseres».

§ 3. A oferta de si mesmo

Nestas palavras: Ecce venio, Deus ut faciam voluntatem tuam: Eís que 8
venho, ó Deus, para fazer a tua vontade (Heb 10, 7), e nestas outras: Ecce
ancília Domini, fiat mihi secundum verbum tuum: Eis a serva do Senhor. faça-
se em mim segundo a tua palavra (Lc 1, 38), encontram-se toda a nossa
23

vocação, a nossa finalidade, o nosso dever, as nossas promessas.


Em todas as circunstâncias e acontecimentos, tanto para o futuro como no
presente, o ecce venio é quanto basta, desde que esteja gravado na mente e
no coração ao mesmo tempo que nos lábios. Ecce venio: Eis que eu venho, ó
Deus, para fazer a vossa vontade. Eis-me pronto a fazer, a empreender, a
sofrer o que Vós quiserdes, a sacrificar o que me pedirdes.
Podemos viver sem inquietações, uma vez que a vontade de Deus se faz
conhecer a cada instante; e, se, devido à obscuridade, a incerteza invadir o
espírito e o coração, perseveremos com paciência e amor neste estado até
que praza à sabedoria e à bondade de Deus fazer brilhar de novo a sua luz.
Uma vítima sabe que nada tem a escolher ou a desejar para si. A sua
escolha está feita; o seu futuro está marcado, Quando e como se realizará o
seu sacrifício, em que circunstâncias, que duração terá, tudo isso é deixado à
livre escolha d'Aquele a quem ela pertence inteiramente.
Assim, a nossa atitude é o abandono total, o completo deixar fazer, de olhos 9
postos n'Aquele que nos precedeu neste caminho, que o tornou praticável e
que deixou atrás de Si, como sinais dos seus passos, pegadas sangrentas.
Tal é a nossa vocação.
Se alguém se entrega deste modo a Nosso Senhor, Nosso Senhor dá-Se-
lhe também e então nada lhe poderá faltar. Até os cabelos da vossa cabeça
estão contados (Mt 10, 30), dizia Nosso Senhor aos seus discípulos. Não se
vendem dois passarinhos por um asse? Todavia nem um deles cairá por terra
sem consentimento do vosso Pai (Mt 10, 29).
Nosso Senhor olha por todas as nossas necessidades, no tempo oportuno,
se nos abandonarmos a Ele.

§ 4. O reino de Nosso Senhor em nós

Domus mea, domus orationis vocabitur. A minha casa há-de chamar-se 10


casa de oração (Mt 21, 13). Nosso Senhor quer ser honrado e adorado em
espírito e verdade, não só em templos, igrejas e capelas, construídos pela mão
dos homens, mas sobretudo nos corações dos homens que veio resgatar. É aí
que Ele quer estabelecer a sua morada, obter a adoração e o amor, e neles
reinar pelo seu amor e pela sua graça, como um rei no seu reino e no seu
trono.
Jesus5 pede-nos o coração, para nele reinar, e nós recusar-lho-emos?
Petite et accipietis: Pedi e recebereis (Jo 16, 24). Quando pedimos,
recebemos sempre. Ele pede os nossos corações; fá-lo-á em vão? Pede
corações que O escutem, que O compreendam, que O amem deveras com um
amor puro e indiviso. Bate à porta dos nossos corações com paciência e
clemência infinitas, com um desejo ardente de ser atendido, de tomar posse
dos nossos corações e de ser amado. As almas que atendem o seu pedido,
que Lhe dão o que Ele procura, que Lhe permitem entrada tão desejada, acaso

5
O texto original tem Nosso Senhor. Aqui e ali substituímos tal expressão por Jesus ou
por Cristo, a fim de variar as expressões sem contudo prejudicar o sentido (N. do T.).
24

podem duvidar de que receberão tudo o que lhes é necessário do amor e da


bondade infinita do seu Deus, que tão ardentemente deseja distribuir os seus
tesouros, unir-se aos corações das suas criaturas, comunicar-Se-lhes para ser
amado e torná-las eternamente felizes neste amor?
Deus nunca procura os bens e os tesouros da terra. Um acto da sua 11
vontade bastou para os criar e bastaria para os multiplicar. Mas não é isso que
se passa com as almas. Para resgatá-las, o amor de Deus pagou o preço
infinito da vida e da morte de um Homem-Deus. E agora, como se comporta o
coração humano com a sua livre vontade? Quantas vezes resiste aos desejos
do Redentor, que, afinal, não pede senão o seu amor, um coração vazio e
desprendido de todas as criaturas! E este coração quer Jesus enchê-lo dos
tesouros do céu, da sua própria presença, Ele que é a riqueza infinita! Tal
como o Apóstolo S. Paulo escreveu aos cristãos do seu tempo: Sabei que
postes resgatados da vossa vã Maneira de viver.. não a preço de coisas
corruptíveis, prata ou ouro, mas pelo Sangue precioso de Cristo» (1 Ped 1, 18
s.)6, do mesmo modo também agora os corações são conquistados por Deus;
ao passo que o demónio e o mundo empregam os bens perecíveis para
conquistar os corações e corrompê-los.
Mas a que preço são os corações conquistados para o amor de Deus? Pelo
Sangue de Nosso Senhor. Como progridem neste amor? Seguindo o caminho
que Ele mostrou: o caminho do abandono, dos sofrimentos, da cruz, do
sacrifício e da morte, a morte da natureza corrompida e dó homem velho, do
qual o Apóstolo diz: Despojai-vos do homem velho e revesti-vos do homem
novo, que é Jesus Cristo (Ef 4, 22.24; Rom 13,14).

§ 5. A recta intenção

O espírito de sacrifício e de imolação não deve manifestar-se somente pela 12


entrega do coração, mas deve animar e acompanhar todas as acções. É por
ele que as obras se tornam fecundas, que as almas e os corações são
conquistados. Sem ele, as obras mais belas, as maiores na aparência, são de
pouca utilidade; em nada consolam o Coração de Nosso Senhor, não Lhe dão
a satisfação que Ele espera.
As obras exteriores são agradáveis a Nosso Senhor. São meios eficazes
para a conquista das almas, para a perseverança dos justos e, por
conseguinte, para a glória de Jesus e para a alegria do seu Coração divino.
Mas muitas vezes estes meios confundem-se com o fim. Concentra-se toda a
atenção nos meios, consagram-se-lhes todos os cuidados e todas as forças,
negligenciando e esquecendo o verdadeiro fim. Os corações que Nosso
Senhor deseja são corações não divididos, prontos a sacrificar tudo, seguindo
o seu exemplo, a empreender e a sofrer tudo, a renunciar a tudo e mesmo a
dar a vida pela glória de Deus, por amor do Coração de Jesus e pela salvação

6
No texto original a frase é atribuída a S. Paulo. Com frequência o Pe. Dehon cita de cor
a S. Escritura. O passo paralelo de S. Paulo é: “Fostes comprados por um grande preço” (1
Cor 6,20; 7,23). (N. do T.).
25

das almas.
Um coração assim consola o Coração de Jesus, satisfá-l'O e alivia a sua 13
sede de amor puro e verdadeiro. Embora desprezado e ignorado perante o
mundo, mas vivendo, sofrendo e imolando-se unicamente pelo seu Deus, pode
satisfazer o Coração do Senhor melhor do que uma obra exterior, por mais
grandiosa que seja, mas na qual as intenções, em vez de se orientarem
exclusivamente para a glória de Deus, estivessem misturadas com motivos
humanos. Uma coisa dividida não pode ser agradável a Nosso Senhor, que Se
deu sem divisões e ainda Se dá completamente a nós.
Não é evidente que, se alguém deseja de todo o coração algo a que tem
pleno direito, não pode ficar satisfeito se lhe dermos tudo excepto exactamente
aquilo que tão ardentemente deseja? Fica reconhecido por tudo o que lhe
damos e recompensa-o, mas o seu desejo não fica satisfeito. Não se pode
afirmar que amamos a Jesus acima de tudo, quando Lhe recusamos
precisamente aquilo que pede. Damos-Lhe, afinal, o que já possui em
abundância e que pouco aprecia.

§ 6. A abnegação e o abandono

Como o divino Coração de Jesus quis derramar o seu Sangue até à última 14
gota e conceder a todos os homens o fruto da sua paixão e da sua morte;
como a todos amou com amor infinito, do mesmo modo quer ser amado e
honrado por todos. Mas é precisamente àqueles que se chamam seus amigos,
seus discípulos, suas esposas, que compete esforçarem-se por proporcionar
ao Coração do seu Deus, do seu Redentor e Mestre, a consolação, o amor, as
homenagens, o direito e o domínio sobre as almas, que Lhe são devidos.
As nossas igrejas, as nossas capelas, estão todas dedicadAs à glória de
Deus e à sua adoração, todavia cada uma delas é erigida em honra de algum
mistério, atributo ou graça divina, ou em memória de algum santo. A finalidade
principal é sempre a glorificação de Deus, quer nos seus Santos, quer em
algum dos seus mistérios, como a Trindade, a lncarnação, a Redenção, a
Santa Cruz, o Precioso Sangue, o Coração de Jesus. Em cada um destes
edifícios consagrados a Deus, vê-se, consoante os ornamentos, as festas e
cerimonias, a que benefício, mistério divino ou santo é particularmente
dedicado. Do mesmo modo, entre nós, Nosso Senhor quer corações que
pertençam de preferência ao seu divino Coração; que se sacrifiquem
totalmente ao seu serviço, ao seu beneplácito; ao seu amor e aos seus
desígnios; que procurem afastar d'Ele toda a desonra, todo o ultraje e toda a
ofensa ou, pelo menos, reparar tudo isso e oferecer-Lhe compensação.
Eis o que Nosso Senhor nos pede: uma vida de abnegação, de sacrifício, de 15
renúncia à nossa vontade e inclinações naturais e de total abandono de todo o
nosso ser.
Não devemos procurar senão o amor e a vontade de Nosso Senhor,
consolar o seu Coração e oferecer-Lhe reparações mediante uma fé viva e
autêntica, um amor puro e desinteressado, sacrificando tudo e esquecendo-
nos de nós próprios com confiança filial. Abandonemo-nos à sua vontade e à
26

sua misericórdia, deixando que Ele é que faça tudo. Sejamos como o
instrumento nas mãos do artista, deixando-nos guiar segundo a sua vontade.
É assim que devemos trabalhar para a expansão do Reino de Deus e
salvação das almas, mediante o espírito de sacrifício e de imolação. Com o
nosso empenho na oração e pureza de intenção, devemos implorar a bênção
do Alto para aqueles que, através de obras exteriores, trabalham na
propagação do Reino de Deus, por aquilo que falta à pureza das suas
intenções, do seu amor e do seu zelo. Devemos fazer o possível por reparar o
Coração do nosso Deus que olha unicamente para a boa vontade, a
disposição, a intenção e amor do coração.

§ 7. A santidade sacerdotal

Quando vemos um sacerdote, devemos ver n'Ele a Jesus; Jesus escondido 16


atrás de um véu, sobretudo nas cerimonias sagradas e, em particular, no santo
altar, no mais sublime dos mistérios. Para desempenhar estas funções, é
preciso que o sacerdote tenha uma fé viva e uma grande pureza de
consciência; estas disposições geram nele o respeito, o fervor e o amor. Se as
funções sacerdotais, tão santas em si mesmas, são desempenhadas com
estas disposições, a influência divina de Nosso Senhor penetra no coração do
sacerdote e, bem depressa, enche toda a sua vida. No altar, no púlpito, no
confessionário, à cabeceira dos doentes, é Nosso Senhor que vive nele. Na
oração, no trabalho, em todas as suas acções, a doutrina e o exemplo de
Nosso Senhor dirigem-no. É a sua vida que se reproduz nele.
Que consolação seria para o Coração tão amante e tão dolorosamente
ferido de Nosso Senhor, se estas almas tão favorecidos e amadas
correspondessem à sua sublime vocação que os Anjos lhes invejam! O mundo
seria rapidamente transformado e convertido à fé e ao amor de seu Deus e
Salvador.
É preciso, portanto, rezar pelos sacerdotes e, na medida do possível ajudá- 17
los na sua santificação. A Igreja dirige muitas vezes a Deus esta oração: Enviai
o Vosso Espírito e tudo será criado e renovareis a face da terra (SI 104, 30). O
Espírito Santo foi enviado. Não é Ele que falta; infelizmente não é recebido.
Em Belém Nosso Senhor não encontra lugar na hospedaria. O Espírito Santo
nem sempre encontra lugar nas próprias almas consagradas. Elas estão todas
invadidas pelas coisas da terra e, para delas se desembaraçarem, seria
preciso coragem. O respeito humano, a indolência, o apego desordenado
àquilo que satisfaz a natureza e os sentidos, o medo dos esforços, o horror à
cruz sob todas as suas formas, tais são os principais obstáculos. Rezamos
frequentemente e de boa vontade o Pai-Nosso, a oração ensinada por Jesus,
mas permanece letra morta.
Diz-se: Santificado seja o vosso nome, mas santifica-se muito pouco o nome
do Senhor. Diz-se: Venha a nós o vosso Reino, e muitas vezes o reino do
mundo, o reino do próprio eu é preferido ao Reino de Deus. Diz-se: Seja feita
a vossa vontade, assim na terra como no céu, mas muitas vezes é a nossa
vontade que prevalece sobre a vontade divina, manifestada pela Igreja, pelos
27

superiores, pelas santas regras, pela consciência ou pelas inspirações da


graça.
Nosso Senhor tem sede de sacerdotes santos. Trabalhemos, pois, para que 18
esta santidade reine em nós e nos outros. O auxílio divino não nos faltará.
Nem sempre compreendemos os meios, de que Nosso Senhor Se serve para
nos ajudar; os seus desígnios são imperscrutáveis. Trabalhemos na obra do
Coração de Jesus com uma fé viva e autêntica, um amor verdadeiro e puro,
um abandono filial e completo.
Se Nosso Senhor não deixa sem recompensa um simples copo de água
dado em seu nome ao mais pequeno dos seus irmãos, como não será
generoso e reconhecido para com aqueles que se esforçam por saciar a sua
sede tão ardente e abrasadora de uma correspondência de amor, e para com
aqueles que se mostram dispostos a tudo sacrificar: a honra, a saúde, a
própria vida, morrendo para si mesmos, a fim de viverem só para Ele, com Ele
e n'Ele; sofrer para Ele, amá-l'O, servi-l'O, cumprir a sua santa vontade,
dizendo com o Apóstolo: Quisera eu mesmo ser separado de Cristo em favor
dos meus irmãos (Rom 9,3)!
Oh! se compreendêssemos quanto Nosso Senhor ama os seus sacerdotes e
quanto deseja ser amado por eles! Se o seu amor é infinito para com todas as
almas, a ponto de estar disposto a morrer novamente por cada uma delas,
quanto não o será para com os seus sacerdotes, aos quais confia os tesouros
dos seus méritos e das suas graças, Se entrega a Si mesmo na Eucaristia e
dos quais faz, de certo modo, seus Alter ego.
Grande deve ser a nossa preocupação com a santidade sacerdotal. Essas 19
mãos que cada manhã tocam o Corpo sagrado de Jesus deveriam ser usadas
somente no trabalho pela sua glória. O sacerdote deve renunciar
completamente a tudo o que é inútil e culpável. Só o olhar para as suas mãos
deveria lembrar-lhe a sua alta dignidade.
Esses olhos que se dirigem tantas vezes para o Cordeiro de Deus, o
Cordeiro que tira o pecado do mundo, não deveriam contemplar com
complacência as vaidades e as frivolidades deste mundo. Oculi tui, oculi
columbarum: Os teus olhos são olhos de pomba (Cant 4,1).
Aquela boca, aquela língua, aquela palavra por meio da qual o Filho de
Deus vivo desce do céu e Se põe à disposição do sacerdote; aquela boca que
pronuncia as palavras do próprio Verbo de Deus, as palavras da Igreja e dos
Santos, que se alimenta do maná celeste, Nosso Senhor, e que recebe como
bebida o seu precioso Sangue, o Sangue da nova Aliança, o sacerdote não
deveria ousar profaná-la com conversas egoístas, duras, ofensivas, vingativas,
impuras, culpáveis.
Ninguém melhor do que o sacerdote sabe que os vasos sagrados e todos os
objectos que são utilizados no sublime Sacramento do altar devem ser tratados
com respeito, segundo as prescrições da santa Igreja. O mesmo deve
acontecer com eles, que são vasos sagrados vivos e que devem ser
considerados como tal (Conc. de Trento, sessão 22).
28

§ 8. A reparação

Há certamente corações que compreendem o amor de Nosso Senhor e que 20


Lhe correspondem, mas o seu número é muito limitado, em comparação com
aqueles que não querem ouvi-l'O ou que se contentam com serem amigos e
discípulos apenas na aparência. Para esta injustiça, que Lhe é feita e
diariamente repetida, Nosso Senhor pede compensação, procura reparação:
Sustinui qui simul contristaretur et non fuit: Esperei alguém que Me consolasse,
mas não encontrei (Si 69, 21).
É a mesma queixa que Ele nos dirigia há duzentos anos. Ao mostrar o seu
Coração ferido, dizia: «Eis o Coração que tanto amou os homens e que da
maior parte deles, não recebe senão ingratidão, frieza, insensibilidade». Que
pretendia Ele obter com esta manifestação do seu Coração, senão corações,
senão o amor e a reparação? Terá terminado esse desejo do seu Coração?
Não. Ainda hoje, e mais do que nunca Ele procura corações que O amem de
verdade, corações que O consolem com uma vida cheia de fé, de
generosidade, fervor e amor, corações sensíveis à sua tristeza, à sua dor, e
procurem repará-l'O por todas as formas, mesmo à custa de sacrificar a própria
honra, saúde, e até mesmo a vida.
Jesus pediu também um templo, altares, imagens em honra do seu Coração.
Tudo isto já o obteve em grande parte, mas não há ainda um número suficiente
de corações junto dos quais encontre o que tanto deseja: o amor puro, o
abandono, a imolação.

§ 9. A reparação sacerdotal

Nosso Senhor escolheu, entre os seus irmãos adoptivos, resgatados pelo 21


seu Sangue, irmãos privilegiados para lhes confiar os seus tesouros. Revestiu-
os do seu próprio poder.,Deu-lhes provas sobre provas da sua benevolência,
do seu amor, da sua confiança. Pôs todo o povo sob a sua autoridade e, de
algum modo, também Se lhes submeteu. Esses irmãos privilegiados de Nosso
Senhor são os sacerdotes.
Uma parte destes privilegiados permanece certamente fiel à sua sublime
missão e com todas as suas forças conserva e defende, contra as garras do
inimigo os tesouros que lhes foram confiados. Alguns houve até que
pereceram como heróis na luta pela causa e direitos do seu Pai, Irmão,
Salvador e Benfeitor. Mas quantos outros passam para as fileiras do inimigo e
entregam, por traição e negra ingratidão, as riquezas do seu Pai e do seu Rei!7
Outros não vão tão longe, mas olham para tudo isso com indiferença,
ocupam-se dos seus próprios interesses, satisfazem as suas comodidades, à
custa dos bens de que são administradores; não se preocupam nem com a
desonra nem com o prejuízo que pode atingir o seu Pai e Irmão tão bom e
generoso; basta-lhes não serem incomodados nem atacados.
Outros, por fim, tomam parte na luta, mas com pensamentos de vangloria e
7
O Pe. Dehon refere o termo «Pai» a Jesus apenas em sentido metafórico, no sentido em
que Ele é o sacramento, a manifestação do amor do Pai (N. do T.).
29

ambição. Combatem, mas somente para conquistar a reputação de heróis.


Pretendem que a vitória seja atribuída ao seu valor, à sua coragem e
habilidade; pretendem recompensas para si mesmos. A sua intenção, o seu
móbil não são desinteressados. Nada fazem por puro amor e gratidão.
Tudo isto entristece o Coração de Nosso Senhor que nada poupou por estes
ingratos e que Se sacrificou para tornámos felizes e demonstrar-lhes o seu
amor.
Na sua dor, Ele procura alguém que O console e Lhe cure as feridas abertas
pela ingratidão e infidelidade.
Os sacerdotes devotados deveriam, com o seu amor, com a sua contínua 22
atenção a todos os desejos de Nosso Senhor e com a sua preocupação
incessante, agradar-Lhe, servi-l'O, glorificá-l'O, fazer com que esqueça de
certo modo a injustiça e os ultrajes que recebe não só dos seus inimigos, mas
também dos seus amigos, dos seus irmãos, dos seus filhos.
Estes sacerdotes devem formar um exército, cujo objectivo seja o de restituir
ao seu Rei e Salvador a honra que Lhe foi arrebatada, os bens que Lhe foram
extorquidos, curar as feridas que Lhe foram provocados pelos seus irmãos, por
aqueles que Ele fizera seus «alter ego», com os quais partilhara o seu poder e
os seus títulos. Devem consagrar-se completamente a esta missão e estar
prontos a sacrificar tudo: a liberdade, os bens, a própria vida, se tal o exigir o
cumprimento da sua missão.
Em tempo de paz, devem formar uma guarda de elite. Em tempo de guerra
e no perigo devem demonstrar a dedicação heróica que bem merece o seu
bom Mestre. Em todos os tempos devem ter unicamente em vista a sua honra,
a sua glória, os seus interesses, não procurando outra recompensa a não ser a
íntima convicção de terem cumprido a vontade do seu bom e amável Rei e de,
assim, O haverem consolado.

§ 10. A reparação mediante o amor

Nosso Senhor não nos pedirá muitas acções espectaculares. Alguns 23


sacerdotes, tendo querido realizá-las, perderam-se nelas, porque procuraram
apenas a sua própria glória e satisfação.
Nós somos pequenos e fracos, mas a nossa boa vontade, a nossa ternura, o
nosso apego ao Senhor devem consolá-l'O e assim compensar aquilo que nos
falta em forças e talentos. Devemos antes querer ficar desconhecidos e
passar por incapazes aos olhos do mundo e dos nossos irmãos de fora, do que
abandonar o nosso Pai muito amado e tantas vezes entristecido e ofendido.
Ainda que deixássemos de nos preocupar com o nosso futuro, para sermos
mais assíduos junto do Pai, Ele não permitirá que nada nos falte. Não nos
deixará cair na necessidade sem nos acudir.
Um verdadeiro coração de Pai nunca o faria. Com maior razão o Coração
tão amoroso de Deus! Aquele que coloca as suas esperanças no mundo, nas
criaturas mutáveis e inconstantes, fica sempre enganado. Os seus atractivos e
promessas desvanecem-se como fumo e conduzem à desgraça e à perdição.
Aquele que ama verdadeiramente a Nosso Senhor não se deixa impressionar,
30

nem pelas promessas, nem pelas ameaças, nem pelo louvor, nem pelo
aplauso, nem pelo insulto, o escárneo, e a perseguição. Não se deixa desviar
dos seus propósitos, nem da vontade divina, uma vez reconhecida, nem da
sua vocação. Não tem em vista senão o beneplácito e a satisfação de Nosso
Senhor. Procura conformar-se com a sua vontade e corresponder ao seu
amor. Pouco lhe importa ser considerado como insensato.
As vítimas do Coração de Jesus não deveriam deixar-se superar nesta 24
atitude. Deveriam, sim, alegrar-se e sentir-se felizes por serem tratadas como
o seu modelo, o seu Deus e Salvador. Nosso Senhor foi considerado
demente. O seu amor pelas almas reduziu-O a tal estado. Foi o desejo de
reparar a glória do Pai celeste, de salvar as almas, de torná-las felizes, de ser
correspondido por elas no amor que O levou a abraçar com ardor a loucura da
cruz. Também esta loucura da cruz é o distintivo dos seus verdadeiros
discípulos, das vítimas que Lhe são consagradas.
Aqueles, porém, que hoje não compreendem absolutamente esta vida e a
têm pela maior loucura clamarão também um dia: Este é aquele de quem nós
outrora fizemos escárnio, considerávamos a sua vida uma loucura e a sua
morte uma vergonha, mas agora é contado entre os filhos de Deus e tem a sua
sorte entre os santos (cf. Sab 5, 4-5).
Mais uma vez, o que Jesus pede, antes de tudo, são corações que tenham a
firme vontade de O amar acima de tudo e que estejam prontos a sacrificar tudo
por este amor, ainda aquilo que lhes seja mais querido. Corações que não
conheçam desejos próprios, interesses pessoais, mas que tenham uma só
coisa em vista: amar, consolar e desagravar o Coração de seu Deus, do seu
Mestre e do seu esposo, conquistar para Ele todos os corações e inflamámos
do seu amor.
São também indispensáveis meios naturais para atingir este objectivo.
Nosso Senhor saberá encontrámos e enviá-los no tempp oportuno: Procurai,
antes de mais, o Reino de Deus e a sua justiça e tudo o mais vos será dado
por acréscimo (Mt 6, 33).

§ 11. Exame sobre o espírito da nossa vocação

Tenho feito sérios esforços por agir em tudo por puro amor ao Coração de 25
Jesus?
O motivo de todos os meus pensamentos, palavras, acções e omissões não
terá porventura sido a minha satisfação pessoal ou outra consideração relativa
às criaturas?
Fiz tudo com a preocupação de agradar ao Coração de Jesus, de cumprir a
sua vontade e corresponder à finalidade da minha vocação?
Passei muito tempo, perdendo tudo isto de vista, sem pensar no Coração de
Jesus, sem O amar, sem trabalhar e sofrer por Ele?
Posso oferecer tudo ao Coração mais santo, mais puro, que tudo conhece,
ao Coração mais amante e digno de todo o amor, ao Coração do meu Deus e
do meu Jesus?
Tudo aquilo que faço pode ser-Lhe agradável, pode consolá-l'O, oferecer-
31

Lhe reparação?
Era isto que o Coração de Jesus esperava de mim, tendo em conta que me
dei e consagrei totalmente a Ele?8

§ 12. Oração para pedir o espírito da nossa vocação

Coração adorável de Jesus, concede-nos a graça de sermos hoje 26


verdadeiras vítimas como Tu, prontas a cumprir tudo aquilo que desejas, ou
seja, a fidelidade, o puro amor, o amor ao sofrimento, ao sacrifício, ao
completo abandono, como tuas verdadeiras vítimas que nada procuram, nada
desejam, nada pedem senão a glória de Deus e a sua santa vontade, consolar-
Te, oferecer-Te as nossas reparações.
Como tuas verdadeiras vítimas, queremos esquecer-nos por completo de
nós próprios e não procurar de modo algum a nossa satisfação ou o nosso
interesse pessoal. Desejamos, por conseguinte, que o nosso amor seja puro e
autêntico, como é próprio de vítimas que tudo deixaram e que tudo fazem, tudo
suportam e sacrificam, unicamente para agrado do teu divino Coração e para
oferecer-Te a consolação que tanto desejas. Amén.

8
A tradução dos parágrafos 1 1 e 12 foi feita a partir do texto do “Thesaurus Precum” de
1902 (ver pág. 63 e 27), para o qual remete a edição definitiva do “Directório Espiritual” de
1919.
32

Segunda parte

OS MODELOS
E OS PADROEIROS
DA NOSSA VOCAÇÃO

CAPÍTULO I

Jesus
e o seu divino Coração

§ 1. Jesus é nosso modelo nos mistérios da sua vida e na Eucaristia

Jesus dá-nos o exemplo mais perfeito da vida de amor, de imolação, de 27


abandono, de conformidade com a vontade divina.
Precedeu-nos no caminho do sacrifício; tornou-o praticável para todos os
seus verdadeiros discípulos, para os seus amigos e esposas. Onde encontrar,
na verdade, um coração que nos tenha amado tanto, mais pura, perfeita e
generosamente do que o do nosso Deus e Redentor, que o Coração de Jesus,
o Coração da Vítima de amor? Quem sofreu mais dolorosamente? Por quem
e por quê? A sua vontade era a do Pai do Céu. Desde a Incarnação, em toda
a sua vida, na Paixão e ainda na Eucaristia, o «Ecce venio», foi a sua regra de
vida.

§ 2. O «Ecce venio»

Jesus tinha vindo para realizar a grande obra da reconciliação. Mas por que 28
motivo passou uma longa vida de trinta anos, escondida, desconhecida,
aparentemente inactiva e inútil? Porque devia esperar em tudo a hora fixada
pelos decretos divinos. O Redentor fora prometido ao género humano,
anunciado pelos profetas. Os sinais que deviam revelá-l'O estavam marcados.
Era esperado pelos justos com um desejo ardente. Contudo poucas pessoas
conhecem a sua chegada e o mistério da Incarnação.
No seu nascimento, dão-se prodígios na natureza, a qual se alegra pela
vinda do Rei. Os Magos do Oriente reconhecem a estrela misteriosa que
anuncia a vinda do Rei-Salvador esperado por todos os povos. Mas bem cedo
tudo recai no silêncio. Tudo se encontra de novo sepultado na obscuridade.
Aqueles que de verdade acreditavam, que seguiam o impulso da graça, a
voz dos Anjos e a inspiração do Espírito Santo, conservavam estes mistérios
nos seus corações, e adoravam no silêncio, na esperança e na submissão os
33

decretos da sabedoria, do amor e da misericórdia de Deus. Muitas destas


almas privilegiadas já não viviam, no dia do sacrifício redentor e esperavam no
outro mundo a sua feliz redenção.
José, Maria e Jesus, o Salvador do mundo, viveram longos anos na maior
obscuridade, solidão, trabalho, pobreza e humildade.
Quem poderá penetrar na compreensão dos caminhos da sabedoria, do
amor e da bondade de Deus? Quem pode conceber e contar os actos de
virtude daqueles anos de obscuridade? Para quê tudo isso? Porque aquela
dolorosa e longa viagem, aquela fuga para um país pagão, idólatra? Porque
Jesus era vítima, libertador e redentor, porque tudo estava nos desígnios de
Deus, por motivos que ultrapassam a nossa compreensão.
O Anjo diz a José, durante o sono: Levanta-te, e toma o Menino e sua Mãe, 29
foge para o Egipto e fica lá até que eu te avise, porque Herodes procurará o
Menino para O matar (Mt 2, 13). Que fé, que obediência e que abandono da
parte destes dois santos personagens que se entregam totalmente nas mãos
da Providência e se abandonam à vontade de Deus, como instrumentos
dóceis!
A omnipotência de Deus parece retirar-se do Menino Salvador, mas é para
cumprir os decretos da sua sabedoria e amor infinitos. A semente do
cristianismo devia assim ser lançada no Egipto para os tempos futuros, pelos
méritos de Jesus, de Maria e de José.
Nosso Senhor havia dito: Eís que Eu venho, ó Deus, para cumprir a tua
vontade (Heb 10, 7). É, portanto, para cumprir a vontade divina que o próprio
Filho de Deus se submete a tudo e, apesar do seu desejo abrasador, do seu
zelo ardente e do seu amor, espera a hora destinada para as diversas fases da
Redenção e tudo cumpre no momento e no lugar estabelecidos.

§ 3. Nazaré

Nazaré é também o Ecce venio, o abandono à vontade divina. Que há de 30


grande e honroso aos olhos do mundo, no trabalho de um pobre operário que
ganha o pão com o suor do seu rosto? Mas a graça desta vida humilde e
escondida devia salvar o mundo, obcecado pelo pecado e pelas paixões. As
suas chagas mortais e contagiosas deviam ser curadas por meio de remédios
de todo opostos; a sua dívida devia ser paga por actos reparadores.
Jesus, tendo-Se tornado voluntariamente nossa vítima, devia pagar a nossa
dívida. As suas vítimas voluntárias devem seguir o seu exemplo com a sua
graça e imitar a sua vida.
Não podíamos ver os frutos que a sua vida de sacrifício preparava. Jesus
cumpria a vontade do Pai e cada acto realizado por Ele nesta obscuridade,
nesta humilhação, era de um valor e mérito infinitos, e podia resgatar não só
um mundo mas mil mundos. Tudo isso, porém, não bastava ao seu amor;
Jesus queria morrer de morte sangrenta, a mais dolorosa, a mais ignominiosa,
sobre a cruz. Queria ser um modelo para todos os estados de vida, para todas
as classes sociais, para todos os instantes da existência humana. Agora pede-
nos que nos abeiremos deste manancial de graças deste tesouro infinito, que
34

façamos nosso o espírito de amor e a conformidade com a sua vontade, que


deploremos o abuso tão frequente destas graças da nossa parte e da de tantas
almas.
Durante este período de Nazaré, Jesus manifestou uma vez a sua divina 31
missão e o dever que veio cumprir. Foi no Templo de Jerusalém. Depois de
ter sido inutilmente procurado pelas ruas agitadas da cidade e entre os
parentes e conhecidos, encontraram-n'O no Templo. Responde a Maria e a
José: Não sabíeis que devia ocupar-Me das coisas de meu Pai? (Lc 2, 49).
Mais adiante, no Evangelho, lemos as palavras seguintes que resumem
brevemente a vida de Nosso Senhor: Desceu com eles, voltou para Nazaré e
era-lhes submisso... Entretanto crescia em sabedoria, em estatura e em graça,
diante de Deus e dos homens (Lc 2, 51-52).
A quem estava submetido? A José e a Maria que Lhe tinham sido dados 32
pelo Pai celeste como pai adoptivo e como mãe, respectivamente, e, nas suas
pessoas, obedecia ao Pai. Cresceu até à hora fixada pelo Pai.
Crescer, progredir na virtude, na submissão e conformidade com a vontade
divina, esperar e não pretender apressar com uma actividade natural os
desígnios de Deus, não querer dar a Deus mais glória do que a que Ele
espera, por vias ou meios não pré-estabelecidos: eis o que fez Jesus. É o
mesmo que Ele espera de nós.
O mundo não pode e não o quer reconhecer. Considera as virtudes ocultas
como sinal de loucura, de ignorância ou de incapacidade. Vê nelas uma vida
inútil, quase prejudicial. Todavia é a própria sabedoria trazida do céu,
ensinada e praticada pelo Filho de Deus. A loucura da cruz tem mais valor que
toda a sabedoria do mundo junta.
Deixemos que o mundo faça as suas obras segundo o seu espírito, segundo
os seus princípios, porque aquilo que tem semelhança com ele não é obra de
Deus. O que o mundo aprecia e louva não pode vir do Espírito de Deus nem a
Ele conduzir. Uma obra que traz em si a marca e o selo do mundo e dos seus
princípios, de modo algum possui o Espírito de Deus, o do Evangelho. Não é a
linha de conduta dos eleitos.
Quem é amigo do mundo não o pode ser de Deus. Quem semeia na carne
recolherá também da carne. Quanto mais uma obra está em contradição, em
oposição com o mundo, tanto mais será uma obra de Deus e mais semelhante
à grande obra da reconciliação, à obra do Reino de Deus e da sua glória, à
obra da salvação e redenção das almas.
O pecado e a perfeição são dois extremos; a virtude e o vício opõem-se
reciprocamente. O que foi arruinado por um deve ser compensado e reparado
pelo outro. O que foi perdido por um deve ser reencontrado e reconquistado
pelo outro. A morte, a ruína, são a consequência do pecado; a salvação e a
vida são fruto da virtude.

Herodes procura o Menino para o matar (Mt 2, 13), diz o Anjo a José. 33
Herodes procurava afastar com a morte esta criança que vinha precisamente
para dar a vida a todos. Como príncipe ímpio e invejoso, queria reinar e
brilhar; o outro Príncipe, Jesus, fugiu para Se esconder, para obedecer, para
35

ser pobre, abandonado, desconhecido.


Ainda hoje, o mundo tenta dar a morte às crianças, às obras e aos desígnios
de Deus. É na obscuridade, não dando nas vistas, na pobreza, humildade e
abaixamento que a obra encontrará protecção. E assim deve permanecer até
que Nosso Senhor o queira, para cumprir a vontade e os desígnios de Deus,
sob o véu da inutilidade, da incapacidade e da loucura. Se Deus, se Jesus
estão satisfeitos, é quanto basta! O mundo, os inimigos de Deus, não têm
nada que estar satisfeitos, nem tão-pouco o servo e a serva. Aliás, a
satisfação do Mestre deve ser também a do discípulo.
Nazaré é, pois, um santuário silencioso e escondido, onde a Sagrada 34
Família, esses três corações tão unidos, correspondendo tão bem à vontade
divina, numa vida pobre e penosa, vida de oração, de trabalho e de sacrifício,
concorrem para a obra da Redenção, cada qual segundo a sua missão
especial. Unamo-nos a estes três santos corações, os mais perfeitos modelos
da vida religiosa e da vida de imolação.

§ 4. A Paixão

Todos os mistérios da Paixão estão repletos de ensinamentos para a nossa 35


vocação. No seu modesto triunfo, montando um jumentinho, no começo da
Semana Santa, Nosso Senhor ensina-nos a doçura e a humildade: Ecce venít
ad te Rex tuus mansuetus: Aí vem o teu rei manso.. (Mt 21, 5).
Em Betânia, durante a Semana Santa, Jesus dá-nos, junto dos seus amigos,
um exemplo de fidelidade nas provações. Durante a agonia, no Jardim das
Oliveiras, com os seus indizíveis sofrimentos, ensina-nos o que é o pecado,
quanto ele pesa na sua alma inocente.
Convida-nos a nos unirmos à sua agonia, a passar com Ele as tardes, o
começo da noite, para consolar o seu Coração com os nossos sentimentos de
amor e de compaixão.
Na presença dos juízes, Jesus mantém-Se em silêncio: Jesus autem
tacebat: Mas Jesus continuava calado (Mt 26, 63). Este silêncio revela-nos o
seu abandono, a sua submissão à vontade do Pai, o seu amor para connosco.
Enquanto os inimigos gritam: Tolle, crucífige: Tira-O, crucifíca-O (Jo 19, 15),
Ele também pede uma morte. Deseja, antes de mais nada, dar o seu sangue,
a sua vida, para nos salvar: Proposito sibi gaudio, sustinuit crucem: Apesar da
alegria que Lhe fora proposta, suportou a cruz (Heb 12, 2). Mas pede também
que morramos para os nossos pecados, para os nossos defeitos, para a nossa
natureza corrompida, a fim de vivermos uma vida nova, uma vida inteiramente
sobrenatural, a sua própria vida.
Jesus ama a sua cruz como instrumento da Redenção, como altar do 36
sacrifício redentor.
Na cruz e pela cruz, todos os cristãos e, particularmente, os sacerdotes, os
religiosos, as almas vítimas devem, a exemplo do seu divino Mestre, morrer,
sacrificar-se, deixar-se imolar. Nosso Senhor disse: Todo aquele que quiser
ser meu discípulo, renegue-se a si mesmo, tome a sua cruz e síga-Me (Mt 16,
24). A cruz resume toda a virtude, a cruz é a salvação.
36

No caminho do Calvário, santa Verónica dá-nos o exemplo da generosidade


e da coragem. Ela é um modelo para as almas reparadoras. Enxuga o rosto
de Jesus profanado pelos escarros, banhado pelas lágrimas e pelo sangue. O
Senhor recompensa-a, imprimindo no Sudário os traços do seu rosto. Possa
Ele gravar também os seus traços no nosso pensamento e no nosso coração,
para que jamais nos esqueçamos de O consolar.
Nosso Senhor derrama o sangue desde a sua agonia até ao golpe da lança, 37
que Lhe abre o Coração. E o testemunho do seu amor: não há amor sem dor.
É o preço da Redenção. Jesus não poupou uma única gota do seu Sangue.
Entreguemo-nos inteiramente a Ele; dêmos-Lhe todo o nosso coração, toda a
nossa vida, todo o nosso tempo. Dêmo-nos sem reservas.
No alto do Calvário foi erguido o altar da vítima, foi consumado o sacrifício.
Contemplemos Jesus, a sua cruz, o seu sangue, as suas chagas, o seu
Coração trespassado pela lança. Os três cravos lembram-nos os nossos votos
e o golpe de lança simboliza a nossa profissão de imolação, o dom do nosso
coração.
Consideremos a morte cruenta do Redentor, o Coração ferido de dor e de
amor do Cordeiro-Vítima agonizante.
Este Coração sagrado amou-nos para além de qualquer medida, podemos
dizer que até à loucura. Poderíamos acaso permanecer insensíveis a tanto
amor? Poderíamos recusar a este Coração que tanto nos amou aquilo que
com todo o direito nos pede: o amor recíproco, a gratidão, a completa doação
de nós mesmos, a consolação e a reparação para desagravá-l'O da indiferença
e ingratidão de um tão grande número de almas e até do povo eleito?
No Calvário também podemos contemplar Maria, a Mãe das dores, S. João,
o discípulo fiel e predilecto, Madalena, o modelo de um amor profundo nascido
do mais perfeito arrependimento, e algumas santas Mulheres.
Aprendamos destas almas generosas a compaixão por Jesus sofredor, o
amor fiel e corajoso e o espírito de reparação.
Escutemos as últimas palavras de Jesus. Reza pelos seus perseguidores: 38
Pater, dimítte íilís: Perdoa-lhes, ó Pai (Lc 23, 34). Perdoa ao bom ladrão. É a
misericórdia e o perdão das ofensas. Jesus tem sede do nosso amor e da
salvação das almas. Dá-nos a sua Mãe. É o seu último testamento, pelo qual
Se despoja de tudo por nosso amor.
Entrega a sua alma nas mãos do Pai, num acto de abandono supremo.
Consome a vida tal como a começou: no abandono e submissão à vontade do
Pai.
A inscrição posta sobre a cruz é também eloquente: Jesus de Nazaré, Rei
dos Judeus (Jo 19, 19).
A cruz é o trono de Jesus. De lá Ele reina. Com efeito, pela cruz, pela
reparação e expiação destruiu o império de Satanás e restabeleceu o Reino de
seu Pai.
Também nós faremos com que Jesus reine nas almas, por meio da cruz, da
abnegação, do sacrifício e do abandono.
Contemplemos também Maria, S. João e as santas Mulheres na efusão do
seu amor e da sua dor, no momento da descida da cruz, até à sepultura do
37

Senhor. Neste amor fiel, pronto e dedicado, encontramos o modelo de como


devem ser os nossos sentimentos.
Jesus recompensou-as ao imprimir os seus traços sobre o Sudário. Que Ele
os possa gravar também nos nossos corações, para neles suscitar e manter o
sentimento da compaixão e da piedade.
O véu roxo, com o qual a Igreja cobre os crucifixos, no tempo da Paixão*,
oferece-nos o mesmo ensinamento: exorta-nos à penitência, ao
arrependimento das nossas faltas, à humildade e à compaixão amorosa para
com Nosso Senhor.

§ 5. A Eucaristia

Na Eucaristia, Jesus oferece-nos o modelo da nossa vida interior. Aí, a sua 39


vida é principalmente escondida, silenciosa, amorosa e sacrificada. Assim
deve ser a nossa.
A Eucaristia é, ao mesmo tempo, sacrifício e sacramento; é também o meio
pelo qual Jesus habita conosco e reina entre nós. O sacrifício eucarístico é
oferecido quotidianamente sobre o altar e diante da cruz. Nele Jesus dá-nos o
exemplo do sacrifício e da imolação.
Gosta de Se dar a nós na comunhão. Torna-Se de bom grado alimento das
nossas almas; suspira pelo momento de vir até nós. Devemos também nós
ansiar por recebê-l'O.
Jesus encontra as suas delícias em habitar entre nós, mesmo à custa de
expor-Se a todos os esquecimentos e também a todos os ultrajes. Convida-
nos a visitá-l'O com confiança e amor. Amamos nós ardentemente os seus
altares e tabernáculos? Visitamo-l'O de boa vontade? Gostamos de
testemunhar-Lhe, aos pés do altar, o nosso amor, o nosso reconhecimento, a
nossa compaixão? Passer invenit sibi domum - altaría tua, Domine virtutum: O
pássaro encontrou para si uma casa - os vossos altares, Senhor dos exércitos
(Sl 84, 4).
Jesus deseja santuários, onde possa ficar exposto à veneração, visitado,
amado, consolado. Temos nós o mesmo desejo? Si dedero somnum oculis
meis, donec inventam locum Domino, tabemaculum Deo Jacob: Não darei sono
aos meus olhos, até que encontre um lugar para o Senhor, uma morada para o
Deus de Jacob (Sl 132, 4-5).
O salmista, recordando os benefícios com que Deus o havia cumulado, a ele 40
e ao seu povo, e prevendo os que Deus destinava ao povo eleito da nova Lei,
exclamava: Quid retribuam Domino pro omnibus quae retribuir mihi?: Que darei
eu ao Senhor por todos os seus benefícios? (Sl 116, 12). E responde a si
próprio: Calicem salutares accipiam et nomen Domini invocabo: Tomarei o
cálice da salvação e invocarei o nome do Senhor (Sl 116,13).
A Santa Igreja aplica estas palavras principalmente aos sacerdotes, aos
quais foi concedida a honra, a felicidade, a dignidade sublime de tomar em
suas mãos o cálice da nova Aliança, o cálice cheio do Sangue do Homem-
*
Antes da reforma litúrgica pós-conciliar o “Tempo da Paixão” começava após a quarta
semana da Quaresma, no Domingo anterior ao Domingo de Ramos. (N. do T.)
38

Deus, do Sangue do Cordeiro-Vítima que tira os pecados do mundo. Isto


acontece no preciso momento em que o sacrifício do Calvário se renova sobre
o altar de modo incruento, onde a vítima, o mediador entre Deus e os homens,
novamente Se oferece pelas mãos do sacerdote e Se imola ao Pai celeste.
O Sacerdote deve unir-se a este sacrifício, o mais sublime, o mais puro, o
mais santo de todos, e oferecer-se a si mesmo como vítima.
Todavia estas palavras do Salmista aplicam-se igualmente a todas as almas
que querem seguir a Cristo e tornar-se vítimas com Ele, a seu exemplo e por
seu amor. Foi neste sentido que Jesus disse, antes da Paixão: Não beberei Eu
o cálice que meu Pai Me deu? (Jo 18, 11). E, durante a agonia: Meu Pai, se é
possível, afasta de Mim este cálíce; contudo, que se faça não como Eu quero,
mas como Tu queres (Mt 26, 39). Assim, o cálice dos sofrimentos, das dores e
da morte, o cálice do sacrifício, do abandono e da imolação, que é ao mesmo
tempo o cálice da salvação, deve ser aceite e escolhido para reconhecer os
benefícios do Senhor, do nosso Deus e Redentor.
Tomarei o cálice da salvação e invocarei o nome do Senhor (Sl 116, 13);
implorarei a sua ajuda, a sua graça e a sua força, para beber este cálice, tão
amargo para a fraqueza humana e bebê-lo até à última gota. Devemos invocar
o nome e a assistência do Senhor, não só para nós, mas para todos os nossos
irmãos, a fim de que este cálice se torne para todos um cálice de salvação,
cuja eficácia seja aplicada a todos. Na agonia vemos Jesus, dirigir ao Pai uma
oração humilde e confiante, filial e submissa. E a sua oração é atendida: um
Anjo desceu do céu para confortá-l'O.
O Evangelho menciona ainda o cálice a propósito dos dois Apóstolos, João 41
e Tiago, quando a mãe pede a Jesus que os seus dois filhos se sentem um à
sua direita e outro à sua esquerda no seu Reino. Jesus respondeu-lhes: Não
sabeis o que pedis. Podeis beber o cálice que Eu estou para beber? Eles
responderam: Podemos. Jesus replicou-lhes Na verdade, bebereis o meu
cálice, mas o sentar-se à minha direita ou à minha esquerda não Me pertence
a Mim concedê-lo; é para aqueles para quem o meu Pai o tem reservado (Mt
20, 22-23).
Assim os lugares no Reino de Deus serão distribuídos, segundo a
participação no cálice dos sofrimentos de Nosso Senhor, no cálice do trabalho,
da ignomínia, do sacrifício, que Ele mistura e dá a beber a cada um.
Estes dois Apóstolos beberam e participaram no cálice do seu divino Mestre.
Como o bebeu o discípulo predilecto, sabemo-lo: bebeu à saciedade o cálice
das dores; mas bebeu também abundantemente do Coração do seu Deus o
cálice do amor divino. E seu irmão Tiago foi o primeiro, entre os Apóstolos, ao
qual coube a felicidade de dar a vida como vítima pela doutrina de Jesus, pelo
seu nome e por puro amor para com Ele.
39

CAPÍTULO II

A Santíssima Virgem Maria

§ 1. O «Ecce ancilla»

Maria é nosso modelo na sua vida oculta, na sua vida de silêncio e de 42


recolhimento, em Nazaré. Ela é, realmente, o jardim fechado, acessível só a
Jesus, a S. José e aos Anjos. A visita do Anjo deixa-a perturbada, até que
reconhece o mensageiro divino. É a fonte selada, cujas águas permanecem
puras e não são contaminadas por nenhum contacto. Maria dispensa um
cuidado sem igual à vida interior. É uma vida de amor, de união e de imolação.
O Ecce ancilla resume a vida de Maria, tal como o Ecce venio resume a de
Jesus. Estas palavras foram como que a fórmula da sua profissão, do seu voto
de vítima; e, somente depois delas, o Verbo Se fez carne: Et Verbum caro
factum est, et habitavit in nobis: E o Verbo Se fez carne e habitou entre nós (Jo
1, 14).
Pelo seu Ecce ancilla, pelo seu consentimento, Maria aceitou ser a Mãe do
Redentor. Aceitou a honra e a dignidade desta maternidade, mas também os
sofrimentos, os sacrifícios inerentes. Declarou-se pronta a cumprir em tudo a
vontade de Deus, a ser sua serva. Nisto encontramos o ser típico de uma
vítima, nisto consiste a perfeição de todas as virtudes. Aí está também a fonte
das graças e dos méritos.
O Evangelho refere-nos poucas palavras proferidas por Maria, além do Ecce 43
ancilla e do Magnificat, no qual encontramos estas palavras: Respexit
humilitatem ancillae suae: Olhou para a humildade da sua serva (Lc 1, 48).
Assim, porque estava pronta a responder à vontade de Deus, foi olhada com
complacência e escolhida por Deus. E eis que todas as gerações me
proclamarão bem-aventurada (Lc 1, 48). Poucas foram as pessoas que a
proclamaram bem-aventurada, durante a sua vida mortal, excepto Isabel e uma
mulher do povo que é referida no Evangelho. Mas, nesta última circunstância,
Jesus respondeu: Sim, felizes aqueles que ouvem a minha palavra e a põem
em prática (Lc 11, 28).
Quanto ao mais, Maria, a Mãe do Redentor, estava, como seu Filho, exposta
à humilhação e ao desprezo da parte dos inimigos de Deus; e, para as
pessoas bem dispostas, era objecto de compaixão e de piedade nos dias da
Paixão. Ela sentiu e partilhou todos os sofrimentos de Jesus e uniu o seu
sacrifício ao de seu Filho.
O Ecce ancilla estava-lhe nos lábios e no coração, em todos os sacrifícios
que teve de fazer: desde a Apresentação no Templo, quando ofereceu seu
Filho como vítima e ouviu a profecia do velho Simeão, à fuga para o Egipto, um
país estrangeiro e pagão. Assim foi sempre e em tudo, até à cruz de seu Filho
agonizante.
Do mesmo modo, no resto da sua vida ainda longa, após a Ascensão,
seguindo os desígnios de Deus, consentiu em tornar-se mãe da Igreja
nascente, fundada no Sangue de seu Filho, mãe de todos os fiéis resgatados
40

pelo Salvador.
Maria estava predestinada para ser Mãe do seu Deus. Foi dotada e
adornada de todas as graças e dons. Contudo, as suas graças e os seus
méritos aumentaram de dia para dia em consequência da sua fiel cooperação,
da sua pureza, do santo e puro amor com o qual cumpriu à sua missão.

§ 2. O Sagrado Coração de Maria

O primeiro templo e tabernáculo, no qual repousou o Verbo de Deus feito 44


homem, no qual reinou com delícia e alegria, foi o seio puríssimo, o Coração
virginal, o Coração imaculado de Maria. O templo de Salomão, dedicado ao
verdadeiro Deus, estava ornamentado da maneira mais magnífica e rica; mas
este templo vivo do Espírito Santo, que o Filho de Deus escolheu para morada,
estava ainda mais magnificamente adornado. Aquele estava interiormente
revestido de ouro puríssimo, mas no Coração de Maria encontrava-se o ouro
da caridade mais pura e mais perfeita. O Templo tinha as suas luzes e fogo
perene; no Coração de Maria ardiam, noite e dia, as lâmpadas ardentes do seu
amor.
As portas do Templo eram feitas de madeira incorruptível, símbolo da
pureza que nele era necessária; mas, em Maria, que é chamada a porta do
céu, nada de impuro, de corruptível jamais entrou, nem a sombra do pecado.
Desde o primeiro instante da sua lmaculada Conceição, ela irradiou o brilho
mais puro da santidade, da pureza e da perfeição. Tornou-se o encanto da
SS. Trindade e de todo o Céu. As suas virtudes eram precisamente as
pérolas e as pedras mais preciosas, o metal mais raro, o ouro mais fino e mais
puro, a esmeralda da esperança, o topázio da fé, o rubi do amor santo e puro,
a safira do olhar constante para Deus, seu sumo Bem.
Esta Mãe do amor formoso era só amor, santidade e perfeição. As suas
virtudes ornamentavam a casa do seu Deus e do seu Filho, quais ricos
ornamentos, pinturas, jóias, flores e perfumes.
Ela era a Arca da Aliança viva, na qual se encontravam depositadas não só
as tábuas da Lei antiga, mas o próprio Legislador da nova Lei, da Lei do amor.
O seu coração e o de S. José assemelhavam-se aos serafins que estavam
diante da Arca, em adoração, respeito e amor.
Alguns santos, tomados de admiração e de entusiasmo pela beleza, 45
santidade, amabilidade de Maria, chamavam-lhe conquistadora de corações.
A beleza, a graça, a suavidade das suas virtudes conquistaram primeiro o
Coração do seu Deus e atraíram-n'O para nela assumir a sua carne e a habitar
nela. Maria compreendeu que a posse dos corações, o amor recíproco era o
desejo do coração de seu Filho. Viu tudo o que Ele fez e sofreu para isso:
quantas humilhações e privações, quanta pobreza e trabalho, quantas dores
suportou, para conquistar o amor dos corações. Suportou, durante trinta e três
anos, todas as fadigas de uma vida pobre, árdua, desprezada e desconhecida.
E terminou esta vida com a morte mais ignominiosa, mais dolorosa, para
satisfazer o seu amor que abraçava todas as almas, para a todas convencer da
sua infinita e ilimitada caridade, para inflamar todos os corações do amor do
41

seu Deus e Redentor. Maria ouviu também os últimos desejos, os últimos


lamentos, o último suspiro do Coração de Jesus agonizante.
Saturado de opróbrios e de dores, mas ainda não satisfeito, Jesus
exclamou: Tenho sede! (Jo 19, 28); ela bem sabia que era a sede de amor, a
sede das almas e dos corações, mais do que a sede da sua boca seca e
desfalecido; que o seu amor exigia ainda mais sofrimentos, para atrair todos os
corações ao seu Coração. Quando Eu for elevado da terra, atrairei tudo a Mim
(Jo 12, 32). Mas quantos resistem ao atractivo da graça, ao atractivo do amor
do seu Redentor! E, no entanto, que mais teria Ele podido fazer, para merecer
todo o amor e todo o afecto?
Por isso, ela quereria comover todos os corações e levámos a amar a Nosso 46
Senhor com amor autêntico e indiviso. Quereria conquistar esses corações
que não se entregam. Quantos não mantêm as promessas do seu baptismo
nem as promessas mais especiais dos votos! Ou então, se se entregam, é a
meias, dividindo os seus corações entre as criaturas e o seu Deus, que
quereria possuir Ele só o seu coração, o seu amor, e que, por tantos títulos,
devia ser o único a possuí-lo. Com a suave violência do seu amor, o poder da
sua intercessão, a terna solicitude do seu Coração maternal, esta Mãe do
eterno amor procura conquistar, arrebatar corações para o seu Filho. Ela
cooperou na obra da reconciliação, mediante o sacrifício do seu divino Filho.
Com a sua vida de vítima, com os seus sacrifícios e as suas dores, Maria 47
tornou-se reparadora e medianeira entre Deus e os homens.
No meio de sofrimentos indizíveis, adoptou como filhos todas as almas
resgatadas pela morte de seu Filho; assim adquiriu um direito ao seu amor, ao
seu reconhecimento, à sua fidelidade, ao seu apego. Ela quereria encher a
todos do amor que abrasava o seu sagrado Coração. Quereria conduzir todos
ao Coração de seu Filho, Rei, Amor, Esposo dos corações puros. A
resistência, a ingratidão do povo escolhido entristece-a. Ela procura corações
compassivos, corações que consolem Jesus com o seu amor e fidelidade.

§ 3. Maria no Calvário

O Ecce ancilla de Maria fora a entrega completa de si mesma. Tal entrega 48


continuou até ao Calvário. Estas palavras exprimem todo o seu sacrifício e
vida de vítima.
Não abandonou ela assim ao amor divino o seu Coração puríssimo, santo e
sem mancha, com todo o seu ser e tudo o que possuía, pronta a sacrificar-se,
a agir, a sofrer segundo a vontade divina e o beneplácito de Deus? O meu
amado é para mim uma bolsa de mirra, que repousa sobre o meu coração
(Cant 1, 13). Maria, com estas palavras, quer dizer que o amor torna os
sofrimentos mais leves, doces e mesmo agradáveis, por mais amargos e
penosos que sejam para a natureza. O Esposo divino é um Deus, crucificado,
um Esposo de sangue, que oferece aos seus eleitos a cruz, que os convida a
carregá-la no seu seguimento, se bem que o amor a torne leve. Maria
compara-se a um ramalhete que se aperta contra o peito e que espalha um
suave perfume.
42

Sempre que se carrega a cruz dos sofrimentos e das contradições no


coração, isto é, com amor e por amor, e não apenas aos ombros, onde a
providência a colocou, ela torna-se leve, como que um ramalhete de flores. É o
que explica a força de Maria no Calvário. Tal como seu Filho, ela carrega a
cruz com alegria.
Também Nosso Senhor não nos mostrou, acaso, a cruz entre as chamas do 49
amor, que se desprendeu do seu Coração? Não foi no Calvário que Ele,
depois de ter derramado todo o seu Sangue, nos abriu o Coração, para aí
receber os nossos e os tornar semelhantes ao d'Ele, isto é, prontos a se
sacrificarem e imolarem por amor? Maria recebera no Calvário esta grande
lição que é, afinal, a confirmação da vida inteira de Nosso Senhor.
Não basta, portanto, carregar a cruz exterior e forçadamente; é preciso
abraçá-la com amor, carregá-la com coragem e com alegria, desejá-la com
ardor, como o maior e mais seguro tesouro.

§ 4. Nossa Senhora de La Salette

Foi como reparadora que Maria se manifestou em La Salette e pediu obras 50


reparadoras. As suas vestes eram simbólicas: trajes de trabalho e os
instrumentos da Paixão indicam o trabalho humilde e modesto aceite em
espírito de reparação, a abnegação da vontade, o sacrifício, a imolação, o
abandono, a aceitação da cruz.
Trazia ao pescoço a cruz, a coroa de espinhos, a lança, o martelo, as
tenazes. Apresentava-nos assim a vida de vítima pela salvação do mundo e,
particularmente, pelo povo eleito, porque, se Maria chorou pelos pecados do
povo, pelas blasfémias e pela profanação do domingo, chorou ainda mais
amargamente pelas infidelidades do povo eleito. São disso testemunhas as
crianças da aparição.
O objectivo desta manifestação era tocar os corações tíbios e frios, aquecê-
los, abrasá-los com o amor de Deus, solicitá-los, exortá-los ao cumprimento
dos seus compromissos, quer os do simples cristão assumidos no baptismo,
quer os das almas consagradas nos votos.
O que provocou lágrimas à Mãe do céu, tão ternamente amante e
compassiva, foi, sobretudo, a resistência, a insensibilidade, a ingratidão, a
infidelidade, a dureza, a falta de amor do povo eleito, das almas consagradas,
que foram cumuladas de graças e privilégios e que devem a Nosso Senhor o
máximo de amor, de gratidão e de fidelidade. Quanto maior for o direito de
esperar e reclamar uma coisa, mais solene e reiterada é a promessa, maior
será a injustiça e mais viva a dor, se a coisa prometida não é dada ou é
oferecida só de forma parcimoniosa e incompleta.
Perante os tribunais deste mundo, tais actos são puníveis. No fim, também
o Deus tão clemente, misericordioso e paciente, será forçado a fazer sentir sua
justiça. Por isso, Maria, a Mãe da misericórdia, intervém como medianeira,
para procurar almas e corações que acalmem a justa cólera de Deus e
retenham o seu braço pronto a castigar.
43

CAPÍTULO III

São José

§ 1. S. José padroeiro e modelo da nossa vocação

S. José é, para nós, um modelo, especialmente pela sua vida interior, 51


espírito de fé, abandono, pureza, amor para com Jesus e Maria.
S. José pertence totalmente a Jesus e a Maria. Dedicou-se-lhes
inteiramente e toda a sua vida lhes foi consagrada. Viveu exclusivamente para
eles. Os três formavam um só coração e uma só alma. Rezava com eles e a
sua oração, inflamava-se constantemente sob a influência do seu fervor.
É uma única oração que sobe até ao trono de Deus.
No trabalho, segue-o o pensamento de Jesus e de Maria. Trabalha para
eles e Jesus, depois de crescido, trabalha com ele.
O seu descanso é junto deles e com eles. As conversas preferidas são com
Jesus e Maria. E de que gosta ele de falar, a não ser das bondades de Deus e
das maravilhas da Sua misericórdia?
Na sua vida interior, reflecte sobre os actos e as palavras de Jesus e de
Maria acerca dos mistérios da lncarnação e da Redenção. Dele pode dizer-se
o mesmo que de Maria: Conservabat omnia verba haec in corde suo:
Conservava todas estas coisas no seu coração (Lc 2, 51).
Como é grande o seu espírito de fé! Ele aceita humilde e piedosamente 52
todas as mensagens do Anjo; cumpre heroicamente todas as ordens divinas.
Com que respeito trata Jesus e Maria! Ouviu o Anjo dizer-lhe: O que Ela
concebeu é obra do Espírito Santo... Chamar-Lhe-ão Emanuel, Deus conosco
(Mt 1, 20-23).
E como é fiel a esta missão de fé que recebeu! Nada lhe custa, para
corresponder. Nenhum sacrifício o faz desanimar: vai para o Egipto, regressa,
está pronto a tudo. É vítima com Jesus e por Jesus, sofre o exílio, a
perseguição, a pobreza, mas suporta tudo com alegria por Jesus e pela obra
da Redenção.
E a sua pureza! É preciso que um Anjo o venha tranquilizar, tão grande o
receio de a comprometer. O lírio é o seu símbolo. Maria e José estão junto de
Jesus, como os dois Serafins da Arca da Aliança. Foi a sua pureza que lhe
mereceu ter sido escolhido por Deus para pai adoptivo de Jesus e esposo de
Maria. Ele é o modelo da vida de reparação. É testemunha das humilhações do
Salvador na manjedoura, dos seus sofrimentos no Egipto, da sua pobreza em
Nazaré. Em toda a parte, com os seus cuidados, esforça-se por reparar os
sofrimentos impostos a Jesus pelos nossos pecados. As delicadas atenções
para com Jesus, em Belém, no Egipto e em Nazaré, são outros tantos actos
reparadores.
Devemos imitá-lo em tudo isso com a nossa união a Jesus e Maria, com a 53
nossa assiduidade em pensar no Senhor, com os nossos delicados cuidados
em tudo o que respeita ao serviço de Jesus e, particularmente, a santa Missa,
44

os Sacramentos, o Ofício Divino. Devemos também servir a Jesus, com


cuidado, no próximo e, particularmente, nos sacerdotes, nos pobres, nas
crianças.
Devemos fixar o nosso olhar em Jesus e saber vê-l'O sempre e em toda a
parte. Procuremos prestar a maior atenção a todos os nossos deveres,
mesmo nas pequenas coisas, fazendo tudo por amor a Jesus e em espírito de
reparação.

§ 2. São José padroeiro e modelo da vida de vítima

S. José foi uma vítima com Jesus e Maria. Foi-o especialmente no coração. 54
Que rudes provas lhe advieram do privilégio de ser o esposo de Maria e o pai
adoptivo de Jesus! Submeteu-se, da forma mais perfeita, à vontade e aos
desígnios de Deus, mesmo quando lhe eram incompreensíveis ou difíceis de
executar. Era um instrumento na mão de Deus, para dar cumprimento aos
seus desígnios, e, por conseguinte, um modelo perfeito da vida de vítima.
S. José é um modelo também para o sacerdote-vítima, embora não tenha
recebido a dignidade sacerdotal na verdadeira acepção da palavra. Ninguém,
aliás, segurou Nosso Senhor com mãos tão puras, nem apresentou de maneira
mais digna o Cordeiro sem mancha destinado ao sacrifício. Ninguém tratou a
Jesus com mais respeito, mais amor, com fé mais viva e com intenção mais
pura.
Na Apresentação no Templo, é pelas mãos de José e de Maria que Nosso
Senhor Se oferece ao Pai do céu como vítima de expiação pelos pecados do
mundo. Nesse grande dia, as disposições e os sentimentos de S. José eram
os de uma vítima, em união com o sacrifício de Jesus e de Maria.
A missão de S. José era uma espécie de sacerdócio e toda a sua vida foi
uma vida de vítima.

CAPÍTULO IV

São João e os Apóstolos

§ 1 . São João é para nós um padroeiro


e um modelo

A SS. Virgem, S. José e S. João são, depois do Sagrado Coração de Jesus, 55


os nossos principais padroeiros. S. João, sendo o Apóstolo do amor, o
Apóstolo do Coração de Jesus, é necessariamente um padroeiro e um modelo
dos Sacerdotes do Coração de Jesus.
Ele foi o discípulo privilegiado de Jesus, o discípulo privilegiado do seu
Sagrado Coração.
Desde que ouviu o sequere Me: Segue-Me! Afeiçoou-se a Nosso Senhor.
Durante três anos, ouviu as suas palavras e lições. Foi testemunha dos seus
milagres, do seu poder, da sua misericórdia. Recebeu de Jesus
45

demonstrações especiais de amor, de bondade, de benevolência.


Depois de ter saboreado, durante três anos, a felicidade da presença
pessoal do seu divino Mestre, depois de ter recebido d'Ele mil provas de
condescendência, de bondade, de solicitude, ouviu um segundo Sequere Me,
um convite a seguir Nosso Senhor no jardim da Agonia, no caminho do
Calvário e até aos pés da cruz, no Gólgota.
Sempre assim será também para nós, para a Obra em geral e para cada um
em particular. As luzes e consolações devem ceder lugar às cruzes, a fim de
darmos provas do nosso amor e para recebermos a graça da imolação.
Quando a mãe de João e de Tiago pede a Jesus privilégios para os filhos, 56
Este pergunta-lhes: podeis vós beber o cálice que Eu estou para beber? (Mt
20, 22).
Depois acrescenta: Bebereis o meu cálice (Mt 20, 23).
João bebeu do cálice do amor e do cálice do sofrimento. Durante a Ceia,
hauriu o amor do Coração de Jesus; no Calvário, com a sua compaixão,
participou nos sofrimentos de Jesus e, mais tarde, havia de sofrer a
perseguição, as torturas e o exílio.
A pureza do seu coração permitia-lhe uma união mais íntima com Jesus. À
beira do lago, onde os outros não reconheceram o Senhor, João reconheceu-O
e exclamou: Dominus est: É o Senhor! (Jo 21, 7).
Estudemos a sua vida e a sua doutrina, para melhor conhecermos a Nosso
Senhor, para nos tornarmos verdadeiros discípulos e apóstolos do seu
Coração, verdadeiros sacerdotes-vítimas do Coração de Jesus.
Sigamos a Jesus fielmente até ao Calvário, se a isso Ele nos convida.

§ 2. S. João: a sua formação

S. João foi formado como modelo dos Sacerdotes do Coração de Jesus 57


sobretudo no Cenáculo e no Calvário.
Sobre o Coração abrasado de amor do seu divino Mestre e aos pés da cruz,
tornou-se vítima do Coração de Jesus, vítima de amor e de reparação.
Torna-se postulante, quando pede a Nosso Senhor: Mestre, onde moras?
(Jo 1, 38); noviço, quando deixou o pai e as redes, para seguir a Cristo. A
tomada de hábito teve lugar na sala do Cenáculo, durante a última Ceia, onde
foi revestido com o manto da dignidade sacerdotal.
Aí foi ensinado e instruído sobre a oferta do santo sacrifício da Missa, que é
a comemoração da sagrada Ceia, da Paixão e da Morte de Nosso Senhor: Hoc
facite in meam commemorationem: Fazei isto em memória de Mim (Lc 22, 19).
Fez a profissão no Calvário, aos pés da cruz do Cordeiro-vítima, ao lado da
Mãe da mesma santíssima vítima, que por sua vez se tornava vítima, a vítima
mais santa e mais perfeita, a mais preciosa depois do seu divino Filho.
No Calvário, a alma virginal de João uniu-se para sempre ao Esposo das
almas puras. Tinha seguido no caminho da Paixão o Cordeiro que Se oferecia
voluntariamente e perseverou decididamente, suportando uma dor indizível.
Uniu o sacrifício de todo o seu ser ao sacrifício infinitamente santo e
precioso do seu Senhor e Mestre, que ao seu discípulo não pede uma morte
46

antecipada, mas sim uma longa vida, penosa, laboriosa, confiante, uma vida de
abandono por amor.
S. João era, assim, o primogénito da Igreja. Representava-a nesse 58
momento em que ela nascia. Com ele, os filhos da Igreja foram adaptados por
Maria como seus filhos, e por Deus Pai como os irmãos e os co-herdeiros do
seu Filho único e estremecido.
Saí, ó filhas de Sião e vede o rei... com o diadema com que o coroou sua
mãe (a ímpia sinagoga) no dia das suas núpcias (Cant. 3, 11). Os inimigos de
Nosso Senhor diziam também, no Calvário, escarnecendo: Vede, estas são as
núpcias do filho de rei.
Ignoravam que, na realidade, Nosso Senhor desposava, na cruz, a Igreja,
sua esposa, com um amor eterno.
Desposava-a no meio de sofrimentos e torturas. Adornava-a com o seu
Sangue precioso, enriquecia-a com o tesouro infinito dos seus méritos, a fim de
os atribuir aos seus filhos, dar-lhes a vida, a força e o crescimento, alimentá-los
com as suas chagas, sobretudo com a do seu Coração aberto, hospedá-los
naquela mansão divina, aquecê-los na fornalha ardente do seu amor, sagrado,
puro e celeste.
O Calvário foi o berço da Igreja. 59
O tempo entre a tomada de hábito e a profissão não foi longo. No entanto,
S. João passou por um noviciado, por um termo de provação, durante o qual
aumentou a sua instrução, avançou mais em virtude, pureza e perfeição e
sofreu no coração e na alma mais do que a razão humana possa imaginar.
Aprendeu a compreender até que ponto chega o verdadeiro, santo e puro
amor de Deus. Aprendeu que a medida deste amor é amar sem medida, como
ele próprio deixou escrito: Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a
vida pelos seus amigos (Jo 15, 13).
Na noite da instituição do sacramento do altar, viu como Nosso Senhor Se
deu inteiramente, duma forma maravilhosa e misteriosa. E, no dia seguinte, foi
testemunha da oferta dolorosa da vítima ensanguentada sobre a cruz.
Com a sua presença, fidelidade e constância, testemunhou abertamente que
conhecia a Cristo, que era e queria permanecer seu discípulo.
Naquela hora tão solene e sublime, fez, no seu coração a transbordar de
amor, de gratidão, de compaixão e de zelo, as mais santas promessas para o
futuro. Tomou a firme resolução de não abandonar nunca, em circunstância
alguma, Nosso Senhor e a sua doutrina, de viver e de morrer para Ele. Estas
promessas, esta profissão pública de que era discípulo de Cristo, fê-las
perante o Cordeiro-Vítima agonizante, que Se imolava por amor.
Teve parte na herança do Coração do seu Senhor e do seu Deus, esse 60
Coração que depois da morte quis ainda deixar-Se ferir e abrir, a fim de poder
derramar a última gota de Sangue pela sua Esposa, a Santa Igreja.
Sobre a cruz, com efeito, o Coração de Cristo ardia de amor como mais
tarde o manifestou à sua serva Margarida Maria. Lá foi ferido e aberto,
deixando jorrar sangue e água. Foi cingido de espinhos, devido aos vexames,
dores e tormentos com que foi saturado pela ingratidão e cegueira do seu
povo, pela infidelidade e cobardia dos amigos e dos discípulos, pela ingratidão
47

das almas que até ao fim do mundo não haveriam de querer reconhecer este
imenso amor, dele tirar proveito e a ele corresponder com gratidão e amor
recíproco.
No cimo do Calvário, S. João viu como Nosso Senhor era, ao mesmo tempo,
sacrificador e vítima como deve sê-lo todo o verdadeiro sacerdote, de acordo
com estas palavras: Fazei isto em memória de Mim (Lc 22, 19). S. Paulo
exprime a mesma ideia, ao dizer: «Cada vez que comerdes deste pão e
beberdes deste cálice, anunciarei a morte do Salvador, até que Ele venha» (1
Cor 11, 26), isto é, deveis anunciá-l'O não só com as palavras, mas também
em união com o Sacerdote eterno, o verdadeiro Mediador e Reconciliador
entre Deus e os homens.
Ecce sacerdos magnus: Eis o grande sacerdote. A igreja emprega estas 61
palavras, quando celebra a memória dos seus sacerdotes e pastores. No
Antigo Testamento, os sacerdotes eram apenas sacrificadores; no Novo, são
sacerdotes e vítimas, como o Sacerdote por excelência que é o seu modelo.
Devem unir-se ao Cordeiro sem mancha que quer ser imolado pelas suas
mãos. Como S. Tomé, podem, por assim dizer, meter os dedos nas chagas,
as mãos no lado aberto do Salvador. Não só podem penetrar no tesouro
infinito do amor e da misericórdia do Salvador, mas também, dele beber de
modo superabundante, para si mesmos e para os outros, para todos aqueles
que lhes estão confiados, para o bem da Igreja militante, da Igreja purgante e
para glória da Igreja triunfante.
S. João formava-se, pois, no Cenáculo e no Calvário, como o primeiro dos
sacerdotes-vítimas do Sagrado Coração de Jesus.

§ 3. S. João: a sua profissão

Na profissão, promete-se obediência aos superiores que, como 62


representantes de Nosso Senhor, mandam em seu nome, são os chefes
visíveis, ao passo que Ele é o chefe invisível. Quem vos ouve, a Mim ouve (Lc
10, 16), disse Jesus aos seus Apóstolos e aos discípulos, antes de subir para o
Pai. Mas a S. João disse: Ecce Mater tua: Eis aí a tua Mãe (Jo 19, 27). O
primeiro dever de um filho para com a sua mãe é a obediência, o respeito e o
amor filial. A Maria, Jesus disse: Ecce filius tuus: Eis aí o teu filho (Jo 19, 26).
Maria, a puríssima e santíssima Mãe de Deus, torna-se uma Mãe para S.
João, que devia ver nela, em lugar de Jesus, a sua conselheira e consoladora.
Para ele, Maria devia ocupar o lugar de Jesus. Deviam amparar-se
reciprocamente. João era para Maria o filho fiel; interessava-se por ela,
protegia-a e, como estava revestido da dignidade sacerdotal, ministrava-lhe os
sacramentos, a sagrada comunhão. Maria via Jesus naquele discípulo muito
amado, o discípulo do Sagrado Coração. Ele, por sua vez, via Jesus em
Maria, a Santíssima Mãe do seu divino Senhor e Mestre, que agora também se
tornara sua Mãe e que ele venerava e amava como tal.
As regras foram-lhe dadas pelo seu Senhor e Mestre, durante o noviciado de 63
três anos. Foram-lhe ensinadas pela palavra e pelo exemplo. Durante três
anos, teve diante dos olhos Jesus em pessoa, a regra viva mais santa e mais
48

perfeita, que ele devia estudar e reproduzir, para ser um verdadeiro discípulo
de Jesus, um autêntico sacerdote-vítima.
No dia da Reconciliação, no dia da Paixão e da Morte do Homem-Deus, do
Cordeiro Pascal que Se oferecia e sacrificava, este regulamento de vida, esta
doutrina, esta santa Regra brilhou com o maior esplendor. No Calvário
encontrou a sua plena realização, todo o seu valor e perfeição. Fora-lhe
aplicada a última chancela.
S. João compreendeu no Calvário, melhor do que no Cenáculo, até onde
chega o amor do seu Deus. Vendo pagar o resgate das almas, compreendeu-
lhes o valor aos olhos de Deus. Começou a compreender que reino viera o
Messias fundar: um reino de amor; e que regras, leis, constituições haviam de
ser observadas nesse reino, com tal rei. O Espírito Santo prometido havia de
completar o que ele não fora ainda capaz de compreender. Ou melhor: S.
João compreendeu estas regras formuladas nas últimas sete palavras do
Salvador sobre a cruz, como o testamento saído do Coração de Cristo e
pronunciado pelos seus lábios agonizantes.

- Meu Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem (Lc 23,34). Nestas 64
palavras de um Deus perseguido cruelmente pelas suas criaturas,
atormentado, martirizado, desprezado, ultrajado, condenado à morte, há uma
regra completa, uma lei, para os seus discípulos, para os seus imitadores, para
as suas vítimas: amor, perdão, doçura, amor para com os inimigos,
esquecimento de si mesmo. Jesus nunca injuriou os que O injuriavam, não
ameaçou os que O faziam sofrer, mas sim rezou pelos seus inimigos e fez bem
àqueles que O odiavam e O perseguiam.
- Hoje, estarás comigo no paraíso (Lc 23, 43). A segunda palavra foi dirigida
ao ladrão arrependido. Suspenso ao lado do Senhor, recebeu as primícias da
sua Paixão e da sua Morte. É novamente o amor, a misericórdia e a bondade
que não excluem ninguém, nem o maior pecador, se ele confessa a sua falta,
se é humilde e contrito, se reconhece que há lugar para a esperança enquanto
houver vida. Deus não quer a morte do pecador, mas antes que se converta e
viva. No entanto, um Apóstolo entregou-se ao desespero, ao passo que um
famigerado ladrão se convertia num santo.
- Mulher, eis aí o teu filho. Filho, eis aí a tua mãe (Jo 19, 26 s.). O alcance
destas palavras e o que queriam dizer já foi explicado. É, uma vez mais, o
testemunho de um amor generoso, que tudo sacrifica, que nada retém, nem
mesmo aquilo que lhe é mais querido, um amor que se desapega de tudo, de
tudo se despoja e só conserva os sofrimentos, a cruz e a morte. É um amor
que se faz pobre, a fim de enriquecer os outros. Jesus confiou como filho à
Virgem das virgens o discípulo virgem, e, ao discípulo casto, como mãe, o lírio
mais puro. Trata-se também de uma sublime lição de pureza.
- Tenho sede (Jo 19, 28). Mas sede de quê? Da glória do Pai que está nos 65
Céus, da reparação, do cumprimento da vontade divina, da salvação e da
redenção das almas.
Jesus desfalecia e suspirava pelo amor dos corações, desejava ser
conhecido e amado pelos homens; mas o seu coração tinha ainda mais sede
49

de ultrajes e de injúrias pela salvação das almas. Pode a sede das suas
vítimas ser diferente da do seu Coração? Não devem elas procurar aliviar,
matar esta sede do Coração de Jesus? Felizes os que têm fome e sede de
justiça, porque serão saciados (cf. Mt 5, 6).
- Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste? (Mc 15, 34). Quem é
vítima não o pode ser só parcialmente, mas em tudo.
Deve reparar, expiar, não só no corpo, mas em todas as faculdades do
coração e do espírito, deve aceitar tudo o que a justiça de Deus houver por
bem enviar-lhe. Também o abandono da parte de Deus, o maior de todos os
sofrimentos, deve aceitá-lo resignadamente das mãos ou, antes do Coração do
seu Deus, deve suportá-lo com puro amor e em espírito de reparação e de
expiação. Não é o servo maior do que o seu Senhor nem o discípulo maior que
seu Mestre (cf. Jo 13, 16).
Se é tão doloroso ser abandonado pelos homens, pelos amigos, pelos
irmãos, muito mais doloroso é ter a sensação de ser abandonado, esquecido
pelo próprio Deus. Permanecer fiel e constante em tal circunstância mostra o
verdadeiro e puro amor. Só este tem valor aos olhos de Deus. Só a este puro
amor é dado reconciliar a justiça divina ofendida e consolar o Coração do
nosso Mestre e nosso Esposo.
- Tudo está consumado (Jo 19, 30). O amor do Salvador tudo havia
realizado, cumprido, sofrido e dado.
Há também, para as almas e para as obras, um Consummatum est.
- Meu Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito (Lc 23, 46). As primeiras
palavras de Cristo foram o Ecce venio (Heb 10, 7). Mas que fez Ele, desde o
primeiro instante da lncarnação até à Morte? Cumpriu a vontade do Pai
celeste, sacrificou-Se, sofreu sempre por amor e com amor, um amor divino,
infinito, terno, incompreensível.
Vós, também, abandonai, entregai o vosso espírito com todas as suas
faculdades, o vosso corpo, o vosso ser, o vosso futuro e o vosso passado nas
mãos de Deus, no Coração do vosso Deus e do vosso Mestre, do vosso
Modelo, do vosso Redentor, do vosso Amigo, do vosso Pai, Irmão e Esposo.
Tal é o abandono completo das vítimas do Coração de Jesus, semelhante,
ao da primeira, mais santa, mais pura, mais agradável das vítimas: o Cordeiro
pascal da Nova Aliança, sacrificado e imolado por amor à glória do Pai dos
Céus e pelas salvação das almas, pela redenção do género humano.
Estas Regras foram dadas a S. João, quando se encontrava aos pés da 66
cruz. Ele prometeu segui-las com amor puro e por gratidão para com o seu
Mestre. Sacrificabo hostiam laudis et nomen Domini invocabo: Oferecerei um
sacrificio de louvor, Invocando o nome do Senhor (Sl 116,17).
S. João renovava muitas vezes o seu voto, a sua promessa, a sua profissão;
transmitia com um zelo infatigável à Igreja recém-nascida, a esposa do seu
Deus e seu Mestre, estes ensinamentos, a lei da verdade e do amor. De todas
as suas palavras, das suas Cartas, do seu Evangelho, emana este amor que
ardia no seu coração, aceso sobretudo no Cenáculo e aos pés da cruz, no
Gólgota. E este amor era nele tão ardente, que a sua sagrada e pura chama
ultrapassou e extinguiu o calor do azeite a ferver, no qual foi imerso, pelo nome
50

de Jesus. E até à sua avançada velhice anunciou incansavelmente o amor de


Deus, a lei da Nova Aliança, a caridade e a bondade de Deus.
A Eucaristia e a cruz são, ainda hoje, os dois mananciais, dos quais o divino 67
Coração se expande em ondas de amor, de graça, de misericórdia, em ondas
de méritos inesgotáveis do seu Sangue, da sua Paixão e Morte. Acerca do
Calvário, disse o Profeta: Sustenta-o com o mel dos rochedos, com o óleo da
rocha pedregosa (Dt 32, 13). E noutro lugar: Tirareis água com alegria das
fontes da salvação (Is 12, 3).

§ 4. Os Apóstolos

S. Pedro é nosso modelo, devido à sua grande fé e ao seu amor. 68


Manifestou a sua fé na confissão pública da divindade de Jesus. Tu és Cristo,
o filho do Deus (Mt 16, 16). Foi então que Nosso Senhor lhe prometeu o
primado: Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei minha Igreja (Mt 16, 18).
Desde então é sempre o primeiro a confessar a sua fé, excepto na noite da
Paixão, em que teve um momento de fraqueza. Manifestou o seu amor na
tríplice confissão que fez depois da ressurreição: Senhor, Tu sabes que eu Te
amo (Jo 21, 15). Então Cristo confiou-lhe o rebanho da sua Igreja: Apascenta
o meus Cordeiros, apascenta as minhas ovelhas (Jo 21,16).
Imitemos a fé e a caridade de S. Pedro, que lhe inspiraram o seu grande
zelo, toda a sua coragem, todo seu espírito de sacrifício e de imolação. Pedro
morreu na cruz para pagar ao seu Mestre amor com amor e sacrifício com
sacrifício.
A S. André coube a grande felicidade de morrer vítima sobre a cruz, pela 69
doutrina do seu Senhor e Mestre. Ao ver a cruz, o instrumento do seu martírio
e da sua morte, exclamou: ó cruz boa, eu te saúdo. Foi sobre a cruz que a
grande Vítima foi imolada; é também sobre a cruz e pela cruz que as vítimas
da Nova Aliança devem morrer, sacrificar-se e deixar-se imolar.
Se alguém quer vir após Mim, diz Nosso Senhor, tome a sua cruz e siga-Me
(Mt 16, 24).
Santo André compreendeu este convite de Jesus. Imitemos a sua
generosidade.
S. Tiago fora convidado por Jesus, tal como S. João seu irmão, a beber o 70
cálice do divino Mestre. Foi o primeiro entre os Apóstolos a quem coube a
sorte de dar a vida como vítima pela doutrina do Salvador, pelo seu nome e por
puro amor para com Ele.
Com S. Tomé, vamos ao encontro do Coração de Cristo. Não nos basta
introduzir n'Ele apenas a mão. Introduzamos todo o nosso coração no seu
Coração, toda a nossa alma, a fim de nos fortalecermos no espírito de amor e
de imolação.
Enfim, imitemos o zelo e a fidelidade de todos os Apóstolos e, sobretudo, do
grande apostolo S. Paulo que praticou e ensinou tão bem a imolação e o amor
a Cristo Senhor.
51

CAPÍTULO V

Maria Madalena
e as Piedosas Mulheres
S. Maria Madalena é o modelo de um amor sincero e autêntico, nascido do 71
mais perfeito arrependimento.
Desde o momento da conversão, ela é generosa. Lança-se aos pés de
Jesus, derrama abundantes lágrimas, enfrenta o respeito humano, unge o
Senhor com perfumes de grande preço. É uma alma que ama. Dá-se sem
reservas a Nosso Senhor e, para o futuro, há-de segui-l'O e servi-l'O fielmente.
Jesus é tudo para ela. Prostra-se a seus pés e não faz outra coisa. Em
Betânia, não se agita para servir o Mestre: contempla-O e escuta-O. Quem tem
Jesus tem tudo.
Quando Lázaro morreu, de que fé e confiança em Jesus ela dá provas!
Enquanto Marta se perturba, Maria diz somente: «Mestre, se Tu estivesses cá,
o meu irmão não teria morrido» (Jo 11, 32).
Marta e Maria são duas pessoas que amam, mas cada uma demonstra o
seu amor de maneira diferente. Marta é activa e Maria é contemplativa. Ambas
são modelo para nós. Todos nós devemos unir a contemplação à acção.
Marta e Maria têm atenções assíduas para com Jesus e os Apóstolos.
São fiéis a Jesus nas provações. São vítimas com Ele. Seguem-n'O até ao
Calvário, participam nas suas dores, são humilhadas e insultadas por causa de
Jesus.
Maria desconhece o medo e a hesitação. Está junto à cruz com a SS.
Virgem e S. João. Está salpicado do sangue de Jesus e recolhe esse sangue
precioso. Ajuda a sepultar o Mestre; traz o sudário e os perfumes. No sábado
solene mantém-se afastada do sepulcro, mas lá regressa logo às primeiras
horas do dia depois do sábado. Procura o seu Jesus crucificado.
Maria Madalena e as Santas Mulheres são nossos modelos na procura de 72
Jesus. Procuremo-l'O sempre; procuremo-l'O em toda a parte. Procuremo-l'O,
não para gozar já da sua presença, para receber graças não merecidas e
extraordinárias, mas para compreender o seu amor, para imitar os seus
exemplos, para nos imolarmos com Ele. O Anjo diz às Santas Mulheres: Não
tenhais medo, vós procurais Jesus crucificado (Mt 28, 5).
Também nós já não temos nada a temer. Se procurarmos a Jesus
crucificado, não nos podemos enganar.
Noli me tangere: Não Me toques - diz Jesus (Jo 20, 17). Ele pede o puro
amor, o amor desinteressado. Quer que aceitemos a aridez e que,
procurando-O, saibamos renunciar à suavidade proporcionada pela sua
presença.
Procuremos a Jesus com um amor solícito, como Maria Madalena. Não
podemos estar sempre em oração perto de Jesus. Saibamos também servi-l'O
na pessoa dos seus irmãos. Jesus diz a Maria: «Vá ter com meus irmãos para
52

lhes dar a notícia da minha ressurreição» (cf Jo. 20, 17).


Procuremos a Jesus fielmente e nunca O abandonemos, nem por medo,
nem por desânimo, nem por causa da nossa vida passada ou das tentações e
perseguições.
As outras santas Mulheres de que fala o Evangelho, especialmente Maria
Salomé e Maria de Cléofas, também foram modelos admiráveis de dedicação a
Jesus, de assiduidade em servi-l'O e de fidelidade até ao Calvário.

CAPÍTULO VI

Santo lnácio
S. Francisco Xavier
S. João Berchmans

S. lnácio é para nós um protector. A nossa Obra é filha da sua. A sua festa 73
não deve ser esquecida na Congregação. Nosso Senhor compraz-se em dar-
nos sempre alguma graça nesta festa.
S. lnácio é um modelo de zelo ardente pela glória de Deus. Tudo fazia para
reparar a glória subtraída a Deus e para conquistar-Lhe almas que O
honrassem e O amassem.
Também nós devemos inflamar-nos no desejo de desagravar o Coração de
nosso Salvador, servindo-O com fervor e conquistando-Lhe almas.
S. Francisco Xavier é um poderoso protector para os nossos missionários. 74
Não nos esqueçamos de rezar-lhe por eles.
S. João Berchmans é um modelo para os jovens religiosos, como S. Luís de 75
Gonzaga e S. Estanislau Kotska. Não calcou aos pés coroas principescas,
como S. Luís e S. Estanislau. Santificou-se, fazendo tudo, mesmo as coisas
mais comuns, de uma maneira não comum, por motivos sobrenaturais, com
espírito de fé viva, por puro amor a Deus, com a intenção mais pura, na
presença de Deus e em união íntima e ininterrupta com Nosso Senhor. Em
tudo isto tornou-se para nós um magnífico exemplo A sua vida tão breve e,
entretanto, tão rica de virtudes e méritos, subiu até ao trono de Deus como um
agradável holocausto no cumprimento fiei do seu dever e do seu puro e
generoso amor. É um modelo para todos os que se preparam para a sublime
dignidade do sacerdócio, como também para todos aqueles que receberam
como herança a grande felicidade de serem chamados à vida religiosa. Que
sentimentos de gratidão lhe inspirava a sua vocação! Como a apreciava e
amava! Com que amor e com que abandono filial se mostrava apegado à sua
santa Ordem! Compreendeu estas palavras que Nosso Senhor dirigiu um dia
aos seus discípulos: Não fostes vós que Me escolhestes, fui Eu que vos
escolhi a vós (Jo 15, 16).
S. João Berchmans deve ser honrado no noviciado e nas escolas 76
apostólicas. Os Irmãos também devem tomá-lo por modelo nos seus trabalhos
e ofícios. Lembrem-se como ele cumpria pontual e alegremente, com amor e
zelo, as acções mais ordinárias e se sentia feliz, considerando-se mesmo
53

indigno de prestar serviços durante toda a vida aos padres da Companhia.


Felizes todos os religiosos que, como ele, podem morrer de coração alegre
e confiante, com as santas Regras segundo as quais irão ser julgados, como
devotos filhos de Maria e amigos fiéis da cruz! Felizes aqueles que, como este
santo, encontraram durante a vida, na oração a Maria, na cruz do seu
Salvador, no cumprimento das santas Regras e dos seus deveres, a sua
alegria, as suas delícias, a sua segurança, o seu tudo! Felizes aqueles que, na
pureza do corpo, da alma e do coração, na humildade e desconfiança de si
mesmos, num amor puro e sobrenatural, procurando somente a glória de Deus
e a salvação das almas, serviram a Deus e seguiram a Jesus, seu Mestre, no
caminho da cruz, dos sofrimentos e do sacrifício!
Uma morte assim é verdadeiramente preciosa aos olhos de Deus. Eles
ouvirão este convite: Vem, servo fiel, recebe a tua recompensa (cf. Mt 25,
21.23).
A fidelidade à Regra e ao dever elevou S. João Berchmans e muitos outros
a uma grande glória no céu, sem que, aos olhos do mundo tenha realizado
obras espectaculares, visto que são o coração, a vontade e a intenção que têm
valor aos olhos de Deus e que merecem recompensa.

CAPÍTULO VII

Os santos
do Coração de Jesus

S. Miguel é o admirável porta-bandeira do Sagrado Coração de Jesus, que 77


prepara o seu Reino. lnvoquemo-lo neste sentido.
S. João Baptista chamava-se a si mesmo o amigo do Esposo. É um dos
santos mais caros ao Coração de Jesus.
S. Agostinho é o doutor do amor de Deus.
S. Francisco de Sales fundou a Visitação para consolar o Coração de Jesus.
S. Francisco de Assis recebeu os estigmas do Salvador a quem amava tão
ardentemente.
S. Gertrudes, S. Matilde e S. Margarida Maria foram as confidentes mais
íntimas do divino Coração.
Eis os nossos modelos, padroeiros e amigos, aos quais devemos unir-nos
todos os dias, para honrar, amar, consolar e invocar o Coração de Jesus.
54

Terceira parte

OS VOTOS E A VIDA
RELIGIOSA

CAPÍTULO I

Noções gerais
O voto é uma promessa deliberada que se faz a Deus, em ordem ao 78
cumprimento de um acto melhor, de um acto que não é exigido pela simples
vida cristã.
Os votos religiosos constituem um estado de vida. As famílias religiosas são
corpos de elite, grupos escolhidos no meio do povo cristão.
Nosso Senhor anunciou a sua fundação na resposta ao jovem rico que Lhe
perguntou o que devia fazer para ser perfeito: Se queres ser perfeito - disse-lhe
- vai, vende o que tens, dá-o aos pobres..., depois vem e segue-Me (Mt 19,
21). O estado religioso é um estado de perfeição ou, pelo menos, um estado
no qual se procura a perfeição. Nosso Senhor aponta as condições: deixar a
família e viver em castidade, despojar-se dos bens para viver na pobreza,
obedecer a Nosso Senhor ou a quem O representa.
Jesus chama, com uma vocação particular e pessoal, aqueles que destina a
este estado. A vocação religiosa é uma grande graça, é a manifestação de
uma escolha, de uma preferência de Nosso Senhor. É a sua guarda de honra.
É uma cavalaria na Igreja.
A profissão religiosa é, pois, uma honra, mas é também um acto grave que
deve ser preparado e reflectido, visto que impõe deveres e responsabilidades.
Professar é consagrar-se totalmente a Deus, sem divisões nem reservas, é
assumir a obrigação de seguir Jesus Cristo através da prática dos conselhos
evangélicos.
Estes conselhos opõem-se às três concupiscências que arrastam o homem
ao pecado. Eles são, ao mesmo tempo, uma defesa e uma reparação.
Os votos de pobreza, de castidade e de obediência, que constituem
formalmente o estado religioso, são comuns a todos os Institutos, mas
diversificam-se pela sua aplicação prática, consoante o fim específico que se
propõe cada Instituto religioso.
Os Sacerdotes do Coração de Jesus compreenderão que devem fazer
consistir a perfeição que lhes é própria na perfeita observância das prescrições
que determinam para eles o sentido, o alcance e a prática dos seus votos de
acordo com a finalidade da sua vocação. Os votos devem ser emitidos e
vividos no espírito de amor e de imolação que lhes é peculiar.
55

CAPÍTULO II

O voto de pobreza

§ 1. Excelência da pobreza

A pobreza, o desapego das criaturas, a renúncia são condições 79


indispensáveis para a união com o Sagrado Coração de Jesus e para a vida de
amor e de imolação.
Para elevar-se é necessário desprender-se da terra. A preocupação pelas
coisas terrenas é um impedimento para a oração e para a vida interior. Felizes
os que têm o espírito de pobreza, porque deles é o reino dos céus! (cf. Mt 5,
3).
A pobreza voluntária opõe-se radicalmente à concupiscência dos olhos. É
simultaneamente uma defesa e uma reparação.
Nosso Senhor ama os pobres voluntários. O amor de S. Francisco à pobreza
valeu-lhe um terno amor do Salvador. A pobreza era a sua rainha, a sua dama.
A arte cristã representou os seus esponsais (Assis, Chantilly) com a pobreza.
“São Francisco - diz Bossuet - foi o mais ardente, o mais apaixonado e, atrevo-
me a dizer, o mais desesperado amante da pobreza que porventura jamais
existiu na Igreja”.
A pobreza traz tesouros inesgotáveis. 80
Traz a grandeza. Converte aqueles que a abraçam em reis, dominadores do
mundo inteiro, superiores a tudo o que acontece, «infinitamente acima das
honras e dos opróbrios» (Bossuet).
Traz a liberdade. Não há obstáculos que detenham nem cadeias que
prendam. São eliminadas essas preocupações inferiores que afastam o
pensamento de Deus e ocultam os pensamentos eternos. Meliorem appetunt
patriam, id est, coelestem: desejam uma pátria melhor, isto é, celestial (Heb 11,
16).
A pobreza traz consigo a união com Deus. O coração pertence por inteiro ao
Mestre. Nada encontrando de amável sobre a terra, é inundado pelas
amabilidades divinas.
Proporciona a paz. Que há que possa perturbar estes pobres voluntários?
Nada se lhes pode roubar, porque nada possuem (Buathier).
Proporciona a alegria. Bem podemos dizer que estes deserdados da terra já
habitam no céu. Encontram-se como que na véspera da festa eterna (S.
Lourenço Justiniano).
A pobreza é a salvaguarda da vida religiosa. Sempre e em toda a parte a
tibieza e a decadência sobrevieram na medida em que esta virtude foi
desleixada.

§ 2. Prática da pobreza

Existe a pobreza efectiva (Franciscanos e todas as Ordens Mendicantes) e a 81


pobreza de dependência (Jesuítas, Beneditinos, etc.). É sobretudo esta que
56

nós praticamos e, muitas vezes, a outra, por vontade da Providência.


Lembremos, em primeiro lugar, os principais pontos que são obrigatórios:
- Não tomar para si nada, nada dar nem receber como oferta, nada comprar
nem emprestar, sem a devida licença.
- Evitar o luxo e o supérfluo.
- Contentar-se com uma alimentação sóbria e com um vestuário modesto.
- Procurar não perder nem estragar os objectos de que nos servimos.
- Evitar também perder tempo, porque a perda de tempo pode tornar-se um
pecado contra o voto de pobreza (Maynard). O tempo é um tesouro que não
nos pertence. Deve ser utilizado com uma grande fidelidade, consoante as
intenções dos superiores e o beneplácito de Deus, como uma parte do nosso
holocausto e um elemento precioso da reparação a oferecer ao Coração de
Jesus.
- Não esquecer que se falta ao voto de pobreza fumando sem autorização
do superior ou para além da autorização. É igualmente faltar à pobreza tomar
fruta ou outros alimentos fora das refeições, em casa ou no pomar.
- Quanto às disposições interiores: não apegar-se desordenadamente às
coisas deixadas a nosso uso; não desejar com inquietação nem procurar o que
pode ser cómodo; não lamentar-se amargamente por causa de uma coisa que
nos faça falta ou nos seja recusada ou retirada.

§ 3. Espírito e virtude de pobreza

Os Sacerdotes do Coração de Jesus não podem contentar-se com uma 82


observância meramente exterior da pobreza. É indispensável que tenham o
espírito de pobreza, o gosto e o amor da pobreza, se querem tornar-se
pessoas de vida interior autêntica e levar uma vida de amor e de imolação.
Será meditando nos mistérios de Belém e de Nazaré que ganharão o gosto
à pobreza. Ao verem que o nosso Mestre escolheu para nascer um estábulo e
uma manjedoura, e para toda a sua juventude uma pobre oficina,
compreenderão as vantagens da pobreza.
É tão bom pensar que cada acto de pobreza consola Nosso Senhor pelos
actos de sensualidade cometidos pelas almas que Lhe são queridas. A
pobreza suportada com amor e por amor será sempre fecunda para a
reparação e para o Reino de Nosso Senhor.
As obrigações resultantes do voto não deixarão, pois, satisfeitos os corações 83
generosos, ávidos de reparação e de conformidade com o divino Coração de
Jesus. Esforçar-se-ão por alcançar a perfeição da pobreza, praticando os
conselhos que seguem:
- aceitar com reconhecimento o que é menos valioso e mais incómodo;
escolhê-lo mesmo, caso a iniciativa dependa de nós;
- preferir as tarefas mais modestas;
- privar-se, por vezes, do necessário;
- alegrar-se quando a sua falta se faz sentir;
- estar disposto a mendigar, em caso de necessidade;
- considerar-se habitualmente como pobre e considerar como esmola da
57

comunidade as coisas de que nos servimos.

§ 4. Observações Importantes

- Convém que cada um faça o seu testamento antes dos primeiros votos, a 84
fim de dispor dos bens que possui ou que venha a adquirir.
- É somente por altura dos votos perpétuos que se pode dispor do domínio
radical dos bens mediante doação entre vivos*.
- Nenhum professo pode conservar a administração dos seus bens. Deve
cedê-la aos superiores ou à família. Pode dispor dos lucros, mas só com
licença dos superiores. Tudo isto vale também para os bens que lhe possam
advir por herança, legado ou mediante doação legal entre vivos.
- As ofertas que o religioso recebe à mão pertencem à sua comunidade.
- O mesmo se diga quanto ao fruto do ministério ou do trabalho pessoal.
- O religioso em viagem deve, no regresso, prestar contas das suas
despesas e entregar o restante.
- Os teólogos fixam ordinariamente em cinquenta francos a soma que
constituiria matéria grave, no caso de um religioso prejudicar a sua
comunidade.
- Os religiosos não devem conservar dinheiro consigo, a não ser que para tal
tenham sido autorizados.
- A pobreza deve reinar também no quarto de cada religioso, onde a mobília
deve ser muito simples. A cama terá apenas um colchão de zostera**.
Conservarão no quarto poucos livros, apenas os necessários para o uso
quotidiano, e terão com eles o máximo cuidado.

CAPÍTULO III

O voto de castidade

§ 1. Excelência da castidade

É a virtude angélica. Muitos homens não a compreendem. Jesus mesmo o 85


fez notar, chamando à castidade os seus discípulos escolhidos: É necessária -
diz Ele uma graça especial para cultivar esta virtude: Non omnes capiunt
verbum istud, sed quibus datum est. Nem todos compreendem esta linguagem,
mas somente aqueles a quem isso é dado (Mt 19, 1 1).
Os Padres da Igreja e, de modo particular, S. Ambrósio, exaltam a
virgindade como uma virtude de todo celestial.
A pureza é, particularmente, a virtude das vítimas. Os cordeiros e as

*
Esta disposição sofreu alterações posteriores a 1919. Actualmente tal renúncia só é
possível com o consentimento do Superior Geral e voto deliberativo do respectivo conselho,
após dez anos, pelo menos, de profissão (Cst. 45 d). (N. do T.).
**
Planta marinha, cujas folhas secas são usadas para embalar objectos frágeis e
também, nalgumas regiões, para encher colchões (N. cb T).
58

pombas destinados ao sacrifício deviam ser sem mancha.


O Cordeiro divino não quis na sua intimidade senão almas virgens. Maria,
Sua Mãe, é virgem; S. José, Seu pai adoptivo, é virgem, o Precursor é virgem;
S. João, o discípulo predilecto, é virgem, e é pela sua pureza virginal que
merece ser admitido a repousar sobre o Coração de Jesus e escolhido como
filho adoptivo da Virgem Mãe.
Esta sublime virtude deve caracterizar os sacerdotes que têm relações tão
íntimas com Nosso Senhor e os religiosos que são como que a sua família
espiritual.

§ 2. Prática da castidade

Visto que a castidade torna o homem semelhante aos anjos, um religioso 86


deve compreender com que delicadeza deve ser guardada. Esforçar-se-á por
imitar a pureza destes espíritos bem-aventurados com a sua pureza de alma e
corpo.
A virtude angélica não exige de nós apenas o horror do vício oposto; obriga-
nos a evitar com extrema cautela tudo o que poderia pô-la em perigo ou
ofuscar-lhe o brilho.
Todos devem aplicar-se com a maior diligência em guardar as portas dos
sentidos, principalmente dos olhos, dos ouvidos e da língua.
Na alimentação do corpo, terão o cuidado de observar em tudo a
temperança e a decência quer interior quer exterior. Evitarão tomar seja o que
for fora dos tempos estabelecidos sem verdadeira necessidade e sem licença.
A modéstia e a gravidade são a salvaguarda da castidade. Por isso, 87
ninguém toque nos outros, nem sequer por brincadeira. Esta regra aplica-se
em todo o relacionamento com os alunos. A permissividade neste ponto pode
levar a graves consequências.
Observem todos uma grande modéstia, mesmo no seu próprio quarto. Estão
na presença de Deus e dos anjos.
Os religiosos, cujo coração deve pertencer completamente ao Coração de
Jesus, devem privar-se de toda a amizade sensual, de todo o afecto
puramente natural para com os seus alunos ou qualquer outra pessoa.
No tocante a pessoas de outro sexo, devem tomar todas as precauções 88
convenientes, a fim de não se exporem nem mesmo ao perigo da tentação.
Mostrar-se-ão muito reservados, mesmo com pessoas piedosas: nada de
conversas inúteis ou prolongadas sem necessidade; nada de encontros a sós,
a não ser em casos de absoluta necessidade; nada de correspondências sem
a devida autorização; nada de presentes, mesmo piedosos.
Caso lhes sobrevenha uma tentação ou ocasião perigosa, abram-se com o
seu director espiritual e invoquem o Coração lmaculado de Maria, a fim de
obterem por sua intercessão a graça de permanecerem sempre vítimas puras
e sem mancha.
Que reparações, que consolações poderiam oferecer ao Coração de Jesus,
se não fossem perfeitamente puros? Devem pedir com frequência esta virtude
ao Sagrado Coração de Jesus e ao Coração lmaculado de Maria.
59

CAPÍTULO IV

Voto
e virtude de obediência

§ 1. Excelência da obediência

A obediência é também, para as verdadeiras vítimas, uma virtude muito 89


querida. Foi pela obediência que o Coração de Jesus consumou o grande
sacrifício da redenção. Jesus veio ao mundo para obedecer. Obedeceu a Maria
e a José. Fez-Se obediente até à morte.
Foi pela desobediência que nos afastamos de Deus; pela obediência Jesus
salvou-nos. Não podemos oferecer a Deus sacrifício mais eficaz do que a
obediência.
Foi a obediência, a abnegação, a conformidade com a vontade de Deus que
fizeram os santos. Percorreram caminhos diferentes, mas todos se
santificaram cumprindo a vontade de Deus, reconhecida principalmente
através da obediência.
Considerada em cada religioso, a obediência oferece a Deus aquilo que o
homem tem de mais precioso e apreciado - a sua vontade. E, como a
obediência abrange todos os aspectos da vida, é o verdadeiro holocausto, o
sacrifício perfeito.
Foi pela obediência que o Coração de Jesus consumou o grande sacrifício
da Redenção. Igualmente pela obediência deve ser consumado todo o
sacrifício reparador.
A obediência perfeita dos religiosos contribui também para o bem de toda a
Congregação. É o seu suporte fundamental e o princípio vital que a alimenta e
fecunda nas suas obras. Sem ela, tudo cai no mal-estar: tanto os superiores,
como a Congregação inteira.

§ 2. As obrigações da obediência

Se bem que as ordens dos superiores e as Regras que não se referem 90


directamente aos votos por si mesmas não obriguem sob pena de pecado, é,
no entanto, raro desobedecer-se aos superiores ou às Regras, sem que isso
constitua uma falta: falta de vaidade, de sensualidade, de respeito humano, de
preguiça, de mau exemplo, etc., consoante o motivo vicioso que leva a faltar à
obediência ou as consequências prejudiciais que tal falta possa ter.
A transgressão habitual das Regras tornar-se-á mais culpável, dado o
desprezo que tacitamente implica e a desordem que provoca na disciplina
religiosa.
Não esqueçamos que a desobediência constitui falta grave nos três casos
seguintes:
1. Se o religioso desobedece a uma ordem dada pelos superiores em virtude
da santa obediência, isto é, em força do voto. Mas tais ordens estão
60

reservadas aos superiores maiores.


2. Se despreza formalmente a autoridade. Por exemplo: responder «Não
quero!» é ordinariamente considerado como um desprezo (Maynard).
3. Se de uma desobediência qualquer resulta grande escândalo ou
considerável perigo para o religioso, para o próximo ou para a comunidade.
Os religiosos devem ser discretos e reservados ao pedirem isenções. 91
Todavia, se crêem ter razões legítimas de dispensa, devem expô-las aos
superiores, depois de terem reflectido diante de Deus e de se terem colocado
na disposição de acatar a decisão que vier a ser tomada. Lembrem-se de que
uma autorização obtida por meio de fraude é nula. Sempre que uma
autorização seja recusada por um superior e se recorre depois a um superior
maior, este deve ser informado da recusa anterior, sob pena de nulidade.

§ 3. O espírito e a virtude de obediência

Cada um terá o cuidado, em todas as circunstâncias, de dar aos superiores 92


provas sinceras de respeito e dependência.
Ao toque da campainha e nas horas marcadas, dirijam-se aonde são
chamados, contribuindo assim para a edificação que resulta de uma perfeita
regularidade.
Um dos principais méritos da obediência para os religiosos consiste em
deixar aos superiores plena liberdade de dispor deles nas mudanças de casa
ou na distribuição das tarefas, sem se importarem com as suas repugnâncias
ou apreensões, apoiando-se com uma firme confiança na bondade divina que
os dirige através daqueles a quem estabeleceu como seus representantes.
Em geral, os nossos religiosos, se querem que Deus recompense a sua
obediência, devem, no cumprimento exterior de quanto lhes é ordenado,
obedecer total, pronta e corajosamente e sem desculpas; e ter interiormente a
humildade necessária, a abnegação da vontade e do juízo, sempre e em tudo
o que não constitua pecado. Por esta obediência perfeita nos seus três graus -
obediência de execução, obediência de vontade, obediência de julgamento - os
nossos religiosos realizarão plenamente a sua profissão de vítima, e a sua
vida, como a de Jesus, tornar-se-á uma contínua reparação.
Em tudo isto devem ter sempre os olhos postos em Nosso Senhor, por
Quem prestam obediência ao homem. Habituem-se a não considerar aquele a
quem obedecem, mas antes Aquele por Quem obedecem, que é Nosso
Senhor Jesus Cristo. Daí resultará que obedecerão com espírito de amor e não
com a perturbação que resulta do medo, nem com as pequenas dissimulações
que provêm do amor próprio, nem com fingimentos impróprios da profissão
religiosa.
A obediência humilde, modesta e sobrenatural é a única digna dos religiosos
vítimas do Coração de Jesus.
61

CAPÍTULO V

A profissão de amor
e de imolação

§ 1. É a nossa vocação especial

Os votos, por si mesmos, colocam já o religioso em estado de vítima em 93


união com Nosso Senhor Jesus Cristo. São, segundo o sentir dos autores
místicos, os três cravos que pregam o religioso à cruz do Salvador.
A profissão especial de imolação que caracteriza os Sacerdotes do Coração
de Jesus pode comparar-se à lança do centurião, que abriu o lado do Salvador
e consumou o seu sacrifício. Determina quais as virtudes especiais de Nosso
Senhor e que aspectos da sua vida são propostos mais directamente à nossa
imitação: a imolação completa em espírito de amor e reparação.
A vida de amor e imolação com o Coração de Jesus é a graça do tempo
presente para as almas de vida interior. Nosso Senhor, após as revelações de
Paray conduz pouco a pouco as almas neste sentido. Suscita Institutos que se
esforçam por viver esse espírito. Quando esta graça estiver suficientemente
difundida, então há-de realizar-se o reino do Coração de Jesus nas almas.
Esta profissão de amor e de imolação, que confere à nossa obra o seu
carácter específico, deve ser-nos muito querida. Dá resposta ao duplo pedido
de Nosso Senhor a Santa Margarida Maria: “Dá-Me todas as tuas acções e os
teus méritos, para que Eu disponha deles segundo o agrado do meu Sagrado
Coração; sê uma vítima que se sacrifica ao meu Coração para a realização dos
meus desígnios”. Esta profissão faz-nos reviver a característica dominante da
vida de Jesus: a de vítima.
Recordemos aqui as noções teológicas relativas ao sacrifício e à vítima. A 94
vítima é um ser vivo oferecido em sacrifício. O sacrifício é a oblação de uma
coisa ou de uma pessoa, feita a Deus, que implica alguma destruição, a fim de
reconhecer o seu supremo domínio e para estes quatro fins: adorar, agradecer,
suplicar, expiar.
A nossa profissão de imolação pode reduzir-se praticamente a esta fórmula:
rezar, agir, sofrer e sacrificar-se pelo Coração de Jesus.
Pode dizer-se que consiste em oferecer em sacrifício as nossas orações,
acções e sofrimentos ao Coração de Jesus, por seu amor e em união com Ele,
pelas suas intenções, especialmente pela obra da Reparação, segundo os fins
do sacrifício: adoração, acção de graças, impetração e reparação.

§ 2. As obrigações desta profissão

A nossa profissão de imolação não é um voto. É, antes, um bom propósito. 95


Há, na sua observância, ao menos uma obrigação de conveniência e de
coerência. Descurando-a, perdemos grandes graças e tornamo-nos infiéis à
vocação especial que Nosso Senhor nos inspirou.
A profissão de amor e de imolação obriga-nos a:
62

1. oferecer, cada manhã e ao longo do dia, ao menos antes da Missa e do


Ofício divino, as nossas orações, acções e sofrimentos em espírito de amor e
de reparação ao Coração de Jesus e pelos seus interesses;
2. ceder-Lhe os méritos impetratórios e o valor satisfatório das nossas
acções, a fim de que Ele de tudo disponha conforme Lhe aprouver. Sabemos
que o mérito propriamente dito, que nos dá direito a um novo grau de graça e
de glória, é inalienável;
3. aceitar generosamente, para Lhos oferecer, todos os sacrifícios que a sua
vontade divina e a Regra nos impõem.
A obediência por amor será assim a nossa virtude mais querida. O nosso
lema, a nossa máxima preferida será a palavra da Vítima divina: Ecce venio:
Eis-me aqui, Senhor, para fazer a vossa vontade (cf. Heb 10,7). Será esta a
nossa disposição habitual.

§ 3. Perfeição da vida de imolação

Esta perfeição consiste em tornar perfeitas as nossas orações, acções e 96


sacrifícios e em oferecê-los de modo perfeito ao Coração de Jesus. Para
atingirmos este objectivo, esforçar-nos-emos por:
1. tornar as nossas orações de algum modo contínuas, mantendo-nos em
união habitual com Nosso Senhor, e torná-las perfeitas, animando-as de um
intenso espírito de religião, multiplicando os actos que correspondem aos
quatro fins do sacrifício;
2. tornar perfeitas as nossas acções, realizando-as com empenho, com
espírito de fé e sob a inspiração da graça;
3. aceitar de bom grado os sofrimentos, carregando alegremente a cruz,
para o advento do reino do Coração de Jesus, acrescentando-lhes algum
sacrifício voluntário.
A vítima do Coração de Jesus deve sacrificar-se por amor nas chamas do
mesmo divino Coração. Foi no amor do seu Coração que Jesus consumou o
seu sacrifício, principalmente na agonia e no alto da cruz.
A profissão de amor e de imolação constitui-nos vítimas do Coração de 97
Jesus. Pode acaso haver algo de mais glorioso para Deus, de mais
santificante para nós e de mais necessário para a Igreja no momento
presente? Avancemos por este caminho com a confiança do abandono e com
santa alegria.
Os Sacerdotes do Coração de Jesus devem viver e morrer como suas
verdadeiras vítimas.
A sua regra de vida será: o abandono completo de si mesmos e de tudo o
que possuem, quer no tocante ao espírito, quer no tocante ao corpo; a
confiança filial e a conformidade com a vontade e o beneplácito de Nosso
Senhor; e tudo por puro amor, em espírito de reparação e de expiação.
Eles têm um coração para amar, um corpo para sofrer, uma vontade para
sacrificar. Devem praticar o abandono absoluto e a aceitação amorosa de tudo
aquilo que a Providência lhes envia. Jesus deu-lhes o exemplo. Na verdade,
onde encontrar um coração que tenha amado mais generosamente e mais
63

dolorosamente sofrido?
A máxima preferida dos Sacerdotes do Coração de Jesus é o Ecce venio 98
(Heb 10,7), que deverá encontrar-se sempre nos seus lábios e, sobretudo, nos
seus corações.
Carregar a cruz exteriormente e por necessidade não basta. E preciso
abraçá-la com amor, carregá-la com alegria e coragem, desejá-la com ardor
como o maior e o mais seguro dos tesouros.
Ainda que nem todos sejam chamados ao estado de vítima mística, vocação
de algumas almas privilegiadas, todos podem e devem ser vítimas práticas,
mediante a docilidade à graça, a fidelidade no cumprimento do dever e a
generosidade na prática do sacrifício.

CAPÍTULO VI

A vida religiosa

§ 1. O hábito

Os Sacerdotes do Coração de Jesus envergam exteriormente o hábito dos 99


sacerdotes seculares e, por baixo, o escapulário dos religiosos. É que a sua
preferência é pela imolação, pelo sacrifício do coração, da vontade. No
entanto, a sua imolação deve manifestar-se também exteriormente, através da
acção, da pureza e perfeição da sua vida, do seu procedimento sacerdotal e
religioso penetrado de fé viva e orientado pelo puro amor, que tem a sua sede
e a sua fonte no Coração de Nosso Senhor.
Este hábito indica também que os Sacerdotes do Coração de Jesus hão-de
rezar, sacrificar-se e imolar-se por todos os seus irmãos, tanto pelos
sacerdotes seculares como pelos religiosos.
Se bem que sejam também fracos e muito indignos, devem compadecer-se
das dores do Coração de Jesus que encontra, por vezes, a infidelidade, a
ingratidão, a dureza de coração, a indiferença e até o sacrilégio em algumas
almas consagradas.
O coração sobre a cruz, que recebem na profissão, também significa a
imolação, o abandono, a abnegação, o sacrifício do coração e da vontade. A
imolação interior é-lhes igualmente pedida de modo especial.
O cordão com os seus três nós recorda Jesus atado durante a Paixão e
também os três votos.

§ 2. A profissão

A profissão é o sacrifício completo de si mesmo. «Aquele - afirma S. 100


Gregório - que consagra a Deus os seus bens, o corpo, a vontade, é uma
vítima do holocausto»,. E S. Bernardo diz: «A profissão é um martírio». O
homem velho - escreve S. Paulo - está crucificado em nós (Rom 6, 6).
Este sacrifício eminentemente meritório é como que um segundo baptismo:
64

perdoa todos os pecados.


A renovação que fazemos da profissão participa desta mesma vantagem.
Acrescentemos que o compromisso dos votos é grave e sério. Se fizeste um
voto a Deus - diz Coeleth - trata de o cumprir sem demora, porque aos
insensatos Deus não é favorável. Portanto, cumpre tudo o que tiveres
prometido. É melhor não fazer votos, do que prometer e não cumprir (Coel. 5,
3-4).

§ 3. Os superiores

Os religiosos devem aos seus superiores um grande respeito e uma 101


afectuosa confiança.
O bom pastor conhece as suas ovelhas. Os superiores devem conhecer os
seus religiosos, amá-los, interessar-se por eles, levá-los a abrirem-se com
simplicidade.
Esta confiança e esta união devem ser muito cordiais entre nós, Sacerdotes
do Coração de Jesus. O comportamento do bom pastor é proporcionado às
circunstâncias e às forças de cada um. Deve ser condescendente e
compreensivo com os fracos.
Os superiores tenham em grande apreço o silêncio. Abstenham-se de
demasiadas palavras, de conversas inúteis. Aliás, a gravidade e o espírito
sobrenatural poderiam sofrer prejuízo. As suas palavras sejam particularmente
sóbrias e santas.
No que se refere às instruções que devem dar, interroguem-se por vezes
sobre que assunto devem falar, pois nunca falarão demais sobre a finalidade
da nossa vocação, sobre o puro amor, o abandono, a imolação, a abnegação.
No exercício do seu cargo não devem assemelhar-se a quem exerce uma
profissão qualquer ou a directores de empresa. Devem, ao contrário, ser como
os pastores, que oferecem humilde e caridosamente os seus cuidados a todo o
rebanho, esforçando-se por formar cordeiros vítimas, dos quais sejam
modelos, como os jardineiros que dedicam a todas as plantas os cuidados
assíduos de que precisam, a fim de poderem produzir as flores das virtudes
agradáveis ao Senhor.
É justo também que todos os membros da Congregação rezem todos os
dias pelos seus superiores.
65

Quarta parte

AS REGRAS
Estas Regras são extraídas passim das nossas Constituições,
particularmente do capítulo 26º sobre a disciplina9, e as Regras Comuns que
temos adoptado nos nossos Capítulos Gerais e que se encontram insertas no
Thesaurus.

§ 1. Importância das Regras

As Regras indicam a aplicação das Constituições no pormenor das acções 103


de cada dia. Se as, negligenciamos, tudo se vai por água abaixo. Já não
haverá vida religiosa, a natureza vem ao de cima e daí advêm os maiores
perigos para a comunidade e para cada uma das almas que nela vivem. Uma
comunidade mal regulada desedifica até as pessoas do mundo.
Uma comunidade fervorosa e regular é um doce espectáculo aos olhos de
Deus a Quem honra, dos anjos a quem alegra e dos homens a quem edifica.
Mas este fervor e esta regularidade, que formam o mais belo ornamento de
uma comunidade, não podem reinar senão na medida em que as Regras forem
valorizadas e observadas pelos religiosos que a compõem. Cada um deve
aplicar-se com zelo à observância de todas as regras.
Lemos os amargos lamentos expressos por Nosso Senhor a S. Margarida
Maria a respeito das comunidades tíbias e dos longos sofrimentos impostos, no
purgatório, às almas religiosas que haviam negligenciado a regularidade.
No entanto lembremos aqui que as Regras, tal como as Constituições não
impõem por si mesmas qualquer obrigação sob pena de pecado. No entanto,
dificilmente acontece que a sua transgressão seja isenta de pecado, quer em
razão da matéria que muitas vezes se relaciona com os votos, quer devido ao
motivo da transgressão, como o orgulho, a vaidade, a preguiça, o respeito
humano, quer também devido às consequências, como o mau exemplo, a
perturbação e a desordem na comunidade.

§ 2. A regularidade exterior

Para começar pela regularidade exterior, que mais directamente promove a 105
edificação, todos terão na conta de um dever contribuir para ela com todos os
seus esforços, mediante a pontualidade às práticas comunitárias e a fidelidade
na observância do horário quotidiano estabelecido para cada casa, e que, na
medida do possível, será semelhante ao quadro indicado nas nossas Regras
comuns, no Thesaurus.
Este horário será afixado em cada casa, de modo que, os hóspedes o
possam conhecer. Um toque de campainha dá o sinal para os exercícios. A

9
Trata-se, aliás, do cap. 16 das Constituições de 1906 (cf. nota 14, pág. 319).
66

Igreja abençoa os sinos. As suas vibrações sonoras foram sempre


consideradas como um símbolo das vozes celestes que chamam ao serviço de
Deus.

§ 3. O silêncio

Não se encontra o Senhor no barulho e na agitação (cf. 1 Rs 19, 11-13). O 106


silêncio caracteriza uma casa religiosa bem regulada.
Se queremos viver uma vida interior e seguir as inspirações da graça, temos
necessidade de uma vida habitualmente calma e recolhida.
A palavra de Deus é como um sopro ligeiro que as almas não conseguem
discernir, se se encontram agitadas (cf. 1 Rs 19,12).
Fora dos tempos fixados para o recreio, todos farão o possível por observar
o silêncio, em todos os ambientes, mas sobretudo na capela, na sacristia, no
refeitório, no dormitório, nos corredores.
Observarão esta regra ainda mais fielmente durante o grande silêncio, isto é,
desde as orações da noite até depois da meditação da manhã.
Ordinariamente são dois os tempos de recreio: depois do almoço e depois
do jantar.
Fora deles, em caso de necessidade, fale-se em voz baixa e com poucas
palavras.
Há também um silêncio de acção que consiste em evitar todo o barulho
escusado, como bater as portas, caminhar arrastadamente em casa, etc.
Recomendamos também o silêncio interior: a paz da alma, o recolhimento, a
fuga aos pensamentos inúteis e às leituras perturbadoras.

§ 4. O trabalho e a fidelidade nas tarefas

De Jesus diz o Evangelho que fez tudo bem (cf. Mc 7, 37). É a condição da 107
santidade.
A vida de Nazaré foi uma vida de trabalho, em que cada um se ocupava com
zelo segundo os desígnios da Providência.
Dêem todos grande importância às tarefas e ofícios que lhes são confiados
e desempenhem-nos com constante fidelidade. Habituem-se a considerar os
deveres inerentes às suas funções como uma dívida sagrada e o zelo em
cumprimos como o mais seguro penhor da sua dedicação ao Instituto.
Apressar-se-ão em instruir-se em tudo quanto se refere ao seu ofício e à
maneira de o desempenhar com perfeição. No retiro mensal relerão as normas
relativas ao seu cargo.
Terão o cuidado de estar sempre em dia com as contas, apontamentos e
correspondência, a fim de poderem transmitir o seu cargo em qualquer altura,
sem delongas e sem causar transtornos.
A preguiça, a inércia, a negligência dão ao demónio pretexto para nos tentar
e preparam todas as quedas.
67

§ 5. Caridade, união, relações recíprocas

Esforçar-se-ão todos por manter a caridade e a união dos corações 108


mediante a afabilidade, a doçura e a deferência nas relações recíprocas e toda
a espécie de serviços que tiverem oportunidade de prestar uns aos outros.
Esta união e esta caridade caracterizavam a Igreja primitiva no seu fervor
inicial. Tal será sempre o sinal sensível do reino do Coração de Jesus nas
nossas comunidades.
Deve evitar-se tudo o que seja contrário à união e à delicadeza por causa
das diferenças de nacionalidade.
Ninguém, nas conversas, censure os sacerdotes seculares ou as outras
congregações. Evite-se, como causa de ruína, toda e qualquer palavra de
crítica contra os nossos.
Um religioso não deve entrar no quarto de outro, sem uma autorização geral
ou particular do superior. A porta ficará entreaberta, enquanto se entretiverem
brevemente com o motivo da visita.

§ 6. Recreios e conversas

Terminada a visita ao Santíssimo Sacramento, após o almoço e o jantar, 109


recomende-se cada qual muito especialmente ao Coração de Jesus, a fim de
passar bem o recreio que é um dos exercícios mais importantes do dia,
durante o qual é fácil cometer muitas faltas, mas é também possível, com a
graça de Deus, praticar muitas virtudes.
Às orações habituais pode-se acrescentar esta invocação: Coração divino
de Jesus, abençoai este recreio, para que seja ocasião de edificação pela
caridade e pela modéstia dos que nele tomam parte.
Ninguém pode ausentar-se dos recreios, a não ser com uma autorização
expressa do Superior que não a concederá senão por motivos razoáveis.
Todos se esforcem por tornar as conversas úteis e agradáveis, banindo toda
e qualquer notícia curiosa e puramente mundana, e entretendo-se
familiarmente com assuntos edificantes e convenientes. Esforcem-se também
por conter as pequenas paixões que surgem tão facilmente no coração
humano e por manter a doçura e a paciência para com todos, particularmente
para com aqueles cujas maneiras porventura possam chocar ou desagradar.
Que todos, mesmo durante os recreios, falem com tom de voz moderado,
como convém a religiosos. Evitem as discussões. Se alguém é de parecer
diferente dos outros e julga dever manifestá-lo, exponha as suas razões com
modéstia e caridade, com o único objectivo de tornar conhecida a verdade e
não para prevalecer sobre os outros.

§ 7. O bom espírito e as tentações

Parece que os primeiros assomos de mau espírito, na Igreja primitiva, se 110


manifestaram em Corinto, pelo que S. Paulo dá aos Coríntios um verdadeiro
código de bom espírito: A caridade - diz ele - tenha acima de tudo o primeiro
68

lugar. Sem ela, o talento e as obras nada são. A caridade é paciente e


benévola. Não inveja o próximo nem lhe quer mal. Não é vaidosa, ambiciosa,
egoísta. Evita a susceptibilidade e a crítica, suporta os defeitos alheios (cf.
1Cor 13,1-7).
Um religioso não deve comunicar aos outros os seus juízos desfavoráveis a
respeito dos superiores e dos confrades.
Se tem tentações quanto à vocação é ao seu director espiritual que deve
abrir-se. Se, no entanto, se confidência com um confrade, este deve prevenir o
superior, para bem desta pobre alma tentada.
Não se deve revelar aos outros as faltas ou as imperfeições de que se tenha
tido conhecimento. Se, porém, tais faltas constituem um perigo grave para o
culpado ou para a comunidade, dever-se-á informar o superior.

§ 8. A mortificação

A mortificação faz parte essencial da vida reparadora. É a salvaguarda da 111


castidade e condição de progresso na vida interior.
Em todos os Institutos religiosos existe o uso da disciplina e do cilício.
Ninguém coma nem beba fora das refeições, a não ser com uma
autorização muito especial por motivos de saúde.
Quanto aos jejuns e abstinências, além de observar tudo o que é prescrito
pela santa Igreja, o Instituto segue ainda as suas regras especiais,
nomeadamente o jejum das sextas feiras.
Os que são doentes ou têm saúde precária podem ser dispensados dos
jejuns e abstinências. Ser-lhes-á, nesse caso, imposta outra penitência.
Quanto à "culpa": nas residências só de sacerdotes, o superior, no dia do
retiro mensal, no fim do exame particular (ou depois da Via-Sacra), dirá a
seguinte oração para pedir a Deus perdão das nossas faltas à Regra ao longo
do mês:
Parce, Domine, parce populo tuo: ne ín aetemum irascaris nobis. (3 vezes)
V. Domine, non secundum peccata nostra facias nobis;
R. Neque secundum iniquitates nostras retribuas nobis.
Oremus: Deus, qui culpa ofenderas, poenitentia placaris, preces populi tui
supplicantis propitius respice et fiagelia iracundiae tuae, quae pro peccatis
nostris meremur, avente. Per Christum Dominum nostrum.
Perdoai, Senhor, perdoai ao vosso povo e não fiqueis para sempre irritado
contra nós. (3 vezes)
V. Senhor, não nos trateis segundo os nossos pecados.
R. Nem nos retribuais segundo as nossas iniquidades.
Oremos: ó Deus, a quem o pecado ofende e a penitência aplaca, atendei
benigno às preces do vosso povo suplicante, e afastai de nós os flagelos da
vossa ira que merecemos por causa dos nossos pecados. Por Cristo nosso
Senhor. Amén.
69

§ 9. Asseio e cuidado com a saúde

Sabemos quanta limpeza o Levítico exigia dos sacerdotes da Antiga Lei em 112
tudo o que se relacionava com o culto.
Todos os religiosos tenham cuidado com a limpeza tanto das suas pessoas,
como dos seus quartos. Façam a cama cuidadosamente e de manhã cedo.
Varra cada um o seu quarto, excepto aqueles que o superior julgue dever
dispensar por motivos de saúde ou de ocupações urgentes.
É de louvar uma casa que tenha entre os seus usos o do lava-pés semanal
e os banhos completos periódicos, de modo especial no Verão.
Quem se sentir doente deve avisar o enfermeiro e o superior, os quais têm
por dever proporcionar-lhe os cuidados e medicamentos necessários. Não
devem, por sua própria iniciativa, dirigir-se a um médico nem procurar
medicamentos. Aos doentes devem-se cuidados cheios de dedicação e
caridade.

§ 10. Relações exteriores

Que a vossa modéstia - diz S. Paulo - edifique todos aqueles que vos vêem 113
(Fil 4, 5).
Nas relações com as pessoas de fora, procure-se tratar com modéstia,
doçura e caridade dos assuntos que determinaram a visita ou o encontro.
Evite-se pedir conselho a pessoas de fora, como também tomar a cargo
alguma tarefa, mesmo piedosa, ou prometer ocupar-se dela sem licença do
superior.
No tocante a assuntos profanos de qualquer espécie, será necessário que
nos afastemos ainda mais, visto que nos distraem da nossa vocação e são
nocivos às coisas espirituais.
Não se pode sair de casa sem autorização. Não se vai sós a passeio.
As férias passam-se nas nossas casas. Um horário especial favorecerá o 114
repouso e os exercícios higiénicos.
Muitas vocações se perderam nas visitas prolongadas à família. Além disso,
tais visitas abrem sempre uma grande brecha na piedade, na regularidade, no
fervor.

§ 11. A hospitalidade

Cada casa praticará a hospitalidade, particularmente para com o clero, 115


desde que as casas sejam suficientemente grandes e as suas instalações
permitam acolher hóspedes sem prejuízo do recolhimento e da calma da
comunidade.
As pessoas seculares tomarão as refeições nos parlatórios. Os sacerdotes
podem ser admitidos à mesa comum, mas isso não justifica a supressão da
leitura, a não ser que se trate de um bispo ou de algum dignitário eclesiástico.
Com as pessoas de fora não se fale daquilo que se faz ou se deve fazer em
casa, a não ser que se saiba que os superiores o aprovam.
70

Sem o conhecimento dos superiores não se tragam cartas nem recados de


fora para alguém da casa e vice-versa.
Procuremos aproveitar as relações com as pessoas de fora, para as edificar
em Nosso Senhor e levá-las à piedade e às boas obras.

§ 12. Leitura das Regras


e exortações a comunidade

Nada é mais recomendado pelos santos fundadores de Ordens do que a 116


leitura assídua das Regras e das Constituições, às quais nós devemos
acrescentar o Directório. É por este estudo reflectido e frequentemente
repetido que os religiosos se instruem acerca das suas obrigações, as
recordam muitas vezes, se compenetram do espírito próprio da sua vocação e
se afeiçoam cada vez mais ao seu Instituto.
No começo de cada mês, no dia do retiro, deverão ser lidas algumas
páginas das Constituições e do Directório.
Todos professarão um grande respeito para com estes livros que lhes serão
dados em nome de Deus, a fim de regular o seu comportamento, indicar-lhes o
caminho da perfeição e confirmámos na sua bela vocação de amigos do
Coração de Jesus.
Hão-de lê-los com atenção, estudá-los-ão a fundo e seguirão com fidelidade
tudo quanto prescrevem, ou apenas aconselham.
Em cada casa, os superiores farão exortações ou conferências todas as 117
semanas ou, ao menos, todos os meses. Podem valer-se da leitura do
Directório ou de algum outro livro relacionado com a nossa santa vocação.
Tratarão frequentemente da abnegação de si mesmos, do puro amor de
Deus, do espírito de amor e de imolação e das demais virtudes próprias da
vocação dos Sacerdotes vítimas do Sagrado Coração de Jesus.
Cada qual deve ter também em seu poder o livro dos Regulamentos
adaptados pelos nossos Capítulos Gerais, a fim de poderem reler as normas
relativas ao seu cargo e às suas ocupações.
As Regras de modéstia de S. lnácio, apensas ao nosso Thesaurus, devem 118
ser tidas como um complemento deste Directório.

§ 13. Prestação de contas acerca da regularidade

O superior deve chamar de vez em quando os seus religiosos e manter com 119
eles relações de confiança e de fraternidade.
lnterrogá-los-á sobre a saúde, os seus trabalhos, as suas necessidades e
sobre os seus desejos tanto para si mesmos como para o bom andamento da
casa.
Pedir-lhes-á paternalmente e com caridade aquilo a que chamamos
prestação de contas acerca da regularidade. Não é a manifestação da
consciência, que se faz ao director espiritual. Esta prestação de contas acerca
da regularidade refere-se principalmente à vida exterior.
Eis um modelo que o Superior não é obrigado a utilizar todas as vezes. O
71

religioso simples e piedoso fará bem, se o tiver presente, para poder responder
ponto por ponto, mas o Superior limitar-se-á a alguns pontos que considere
mais úteis:
- fidelidade à Regra, aos exercícios de piedade;
- exactidão na observância dos Regulamentos e dos usos da comunidade,
no referente ao levantar, ao deitar, às refeições, etc.;
- comportamento com os Superiores, os confrades, o próximo, os alunos;
amizades particulares, confidências indiscretas, espírito de crítica;
modo como cumpre os deveres do seu ofício, perdas de tempo, silêncio;
- observância do regulamento escolar;
- correspondência epistolar com pessoas de fora, visitas;
- práticas de mortificação, licenças que um superior pode dar (cf. Pe. Cotel
e Pe. Meynard).

§ 14. A direcção espiritual

S. Paulo, no caminho para Damasco, perguntou a Nosso Senhor o que 120


devia fazer; mas Jesus respondeu-lhe: Entra na cidade e ser-te-á dito o que
deves fazer (Act 9, 6). E encarregou o sacerdote Ananias da direcção do novo
convertido.
O Senhor não nos dirige somente por meio das suas inspirações e menos
ainda por meio de visões e de revelações. Quer que recorramos aos seus
sacerdotes. Estes são o canal necessário pelo qual hão-de passar as luzes e
orientações que Deus nos destina.
Um religioso sem director espiritual será um pobre religioso e não chegará a
nada de bom. A direcção deve ser ordinariamente mensal.
Esta abertura de alma é particularmente necessária:
1.º a respeito das diversas tentações com as quais o demónio se esforça por
perder-nos e em que só a obediência pode garantir-nos a vitória;
2.º a respeito dos defeitos que temos a corrigir; a humildade necessária para
os descobrir e a docilidade em seguir os conselhos que nos são dados são
incomparavelmente mais úteis do que toda a nossa habilidade pessoal;
3.º e, por fim, para adquirir as virtudes. Só os conselhos dos representantes
de Deus nos podem conduzir com segurança.
Formulário que pode ser seguido na prestação de contas de consciência: 121
1. se vivemos contentes na nossa vocação;
2. como nos comportamos a respeito da obediência mesmo interior, da
pobreza, da castidade;
3. em que ponto nos encontramos no tocante ao espírito de imolação e às
demais virtudes próprias da nossa vocação;
4. se temos tentações graves, perturbações interiores e como as
superamos; a que apegos afectivos e a que pecados nos sentimos mais
inclinados;
5. se temos formulado juízos ou falado contra as Regras e contra as ordens
dos superiores;
6. se sentimos gosto pela oração mental e pela vida interior, e que método
72

de meditação seguimos;
7. se nos exercícios de piedade experimentamos consolações ou devoção
ou então aridez, divagação de espírito e como nos comportamos neste caso;
8. que fruto tiramos da Sagrada Comunhão, da Confissão, do exame
particular e de outros exercícios de piedade;
9. se, depois da última direcção, fizemos algum progresso e como tendemos
à perfeição;
10. como observamos as Regras comuns e as do nosso ofício;
11. como procedemos no que se refere a penitências e mortificações; se
estamos dispostos a suportar e até mesmo a desejar injúrias e cruzes;
12. como nos comportamos nas conversas; se delas tiramos algum proveito
espiritual;
13. se sentimos familiaridade ou aversão para com alguém e consideração
pelos superiores;
14. se nos abrimos com algum confrade a respeito das nossas tentações,
especialmente contra a vocação.
73

Quinta parte

OS EXERCÍCIOS
DE PIEDADE
§ 1. A oração

Como poderão as nossas orações ser actos de amor e de reparação, se não 122
forem recolhidas e fervorosas?
Nosso modelo na oração é, antes de qualquer outro, Jesus, particularmente
no Jardim das Oliveiras, onde reza na solidão e no recolhimento. Reza com
respeito: Exauditus est pro sua reverencia: foi atendido pela sua piedade (Heb
5, 7); reza com ardor: Cum clamore valido: com grande clamor (Heb 5, 7); reza
com emoção, com lágrimas, com compunção: Pater mi... non mea voluntas sed
tua fiat Meu pai... não como Eu quero, mas como Tu queres (Mt 26, 39). Reza
com perseverança. No Getsémani, repete por três vezes a mesma oração.
Depois de Jesus, temos em Maria outro modelo de oração. A sua vida é
uma vida de silêncio, de recolhimento, de oração. Ela é, pela sua união com
Deus, o jardim fechado e a fonte selada. Louva o Senhor, agradece,
abandona-se à sua vontade: Magnifícat anima mea Dominum: a minha alma
glorifica ao Senhor (Lc 1, 46). Ecce ancilla Domini: Eis aqui a serva do Senhor
(Lc 1, 38).
Também S. José, cuja conversação é com os anjos, é um modelo de
oração. Pelo seu recolhimento, pela sua docilidade e pelo seu abandono a
Deus, é modelo dos Sacerdotes-Vítimas do Coração de Jesus.
A oração é a nossa vida. A nossa alma deve rezar incessantemente; de 123
outro modo, como teríamos nós vida de união, de amor e de imolação que
constitui a finalidade do nosso Instituto?
Como a pomba, devemos elevar-nos acima da terra pela oração. Como ela,
a nossa alma deve amar a pureza, a simplicidade, a doçura. A alma que reza
esconde-se, suspira e geme como a pomba. Também ela descansa nas
fendas da rocha (cf. Cant 2,14). O nosso lugar de repouso na oração é o
Coração de Jesus, são os seus.mistérios de amor e de imolação.
O nosso Thesaurus tem um título muito certo: é um verdadeiro tesouro pela
beleza das orações que contém e pelas orientações que dá. Deve ser para
nós um autêntico Vade-mecum. Aquele que o leva sempre consigo e segue as
suas prescrições bem depressa se tornará santo.
As orações vocais feitas em comum devem ser recitadas pausadamente e
com devoção, como se faz no noviciado.

§ 2. Oração mental ou meditação

A meditação será considerada pelos membros da Congregação como o 124


melhor meio para avançar na perfeição.
74

Sem uma real necessidade, nunca faltarão a este exercício que terá a
duração mínima de uma meia hora, sem considerar o tempo das orações
vocais.
Se acontecer não poderem fazer a meditação na hora estabelecido, devem
fazê-la noutra hora do dia.
Devem também preparar-se para a oração mental desde a véspera e ater-se
ao método explicado no noviciado ou ao que eventualmente tiver sido
aconselhado pelo director espiritual.
O Thesaurus propõe uma oração preparatória e um método sucinto, que
será bom seguir de vez em quando, como por exemplo no retiro mensal.
A seguir à meditação, o Thesaurus propõe também uma bela oração pelos
superiores e pela comunidade, um acto de bom propósito segundo a nossa
vocação e uma consagração ao Coração de Jesus. Estes actos são vivamente
recomendados.
Recordemos agora, em poucas palavras, o método indicado no Thesaurus: 125
- colocar-se na presença de Deus; fazê-lo com calma e sem pressas: toda a
meditação depende disso;
- trazer à memória e representar-se o mistério ou assunto sobre que se quer
meditar;
- exercitar sobre cada ponto a memória para o recordar, a inteligência para
reflectir sobre ele, o coração e a vontade para formular afectos e tomar
resoluções;
- se recebemos alguma iluminação ou boa impressão, detenhamo-nos,
enquanto perduram;
- sirvamo-nos de uma boa recolha de meditações segundo o espírito da
nossa vocação;
- os mistérios de Nosso Senhor serão sempre o melhor alimento para a
nossa alma;
- é muito útil anotar brevemente aquilo que nos impressionou na meditação.
Assim procedia S. Luís Gonzaga: Notabo lumina et proposita - Anotarei as
luzes e os propósitos.

§ 3. Ofício divino

lmmola Deo sacrificium laudis: Oferece a Deus um sacrifício de louvor (Sl 126
50, 14).
O Ofício divino é correlativo à Santa Missa. É como que a sua preparação e
prolongamento. É simultaneamente um sacrifício de louvor, de amor, de
reparação, de súplica e de acção de graças. É uma das mais nobres
ocupações e um dos mais eficazes meios da nossa missão reparadora.
Mas não podemos esquecer que aquilo que se destina a ser oferecido e
consagrado à divina Majestade, ao Cordeiro-Vítima imaculado, ao Coração
divino mais puro e sagrado, como compensação e reparação, deve tanto
quanto possível ser puro e perfeito. Com que atenção, com que zelo deve ser
prestado este serviço ao Rei dos reis!
À hora estabelecido para este ofício de guarda-de-honra, para esta função
75

sagrada, tudo o mais deve cessar e tudo deve ser realizado, nesta acção
sagrada, com extrema solicitude. Todo o tempo destinado ao serviço do Rei
deve ser bem utilizado. Não devemos deixar-nos pertubar por nada e por
ninguém, de casa ou de fora. Ninguém que saiba o que é devido ao Rei a
quem honra, que consideração e que zelo no seu serviço Lhe são devidos se
admirará ou levará a mal esta fidelidade do servidor ao seu dever.
Isto, no entanto, não significa que não podem dar-se casos em que a
verdadeira caridade para com o próximo e a própria glória de Deus exijam uma
interrupção ou adiamento. Em tais casos, é preciso proceder com a liberdade
dos filhos de Deus. Deus não é um patrão cruel e injusto, mas sim um pai
cheio de amor e de misericórdia.
Todavia, com que tibieza, irreverência e fé imperfeita tantas vezes se serve
o Rei dos reis! Qualquer bagatela, qualquer acontecimento insignificante,
qualquer pretensa necessidade pessoal são considerados suficientes para
justificar o afastamento ou a dispensa de tão santo dever; ou então cumpre-se
esse dever com atitudes e com um comportamento que denunciam indiferença
condenável, desatenção, preguiça, ausência do espírito e do coração. A
principal causa das nossas ofensas à divina Majestade reside na falta de fé
viva e autêntica.
São estes ultrajes cometidos contra o divino Coração de Cristo que os 127
Sacerdotes do Coração de Jesus devem reparar. Esta intenção deve ser
renovada sempre com fé viva, zelo autêntico e puro amor.
Nas casas do Instituto, o Ofício divino deve ser recitado no coro, ao menos
em parte (Vésperas e Completas). Aqueles que, por motivo das suas
ocupações ou da sua missão, se encontrem impedidos de participar nessa
oração pública devem recitá-la particularmente com igual fervor e com a
mesma intenção.
A Congregação segue a liturgia romana, com alguns ofícios próprios
escolhidos de acordo com a sua finalidade e o seu espírito e com a aprovação
da Sagrada Congregação dos Ritos.
Convém que a reza do Breviário seja seccionada em três partes: as horas
menores de manhã, Vésperas e Completas na parte da tarde, Matinas do dia
seguinte depois das 16 horas.
É indispensável ler sempre o Ordo (calendário litúrgico), para não errar.
O Thesaurus tem uma bela oração de preparação para o Ofício que é
preciso ler ao menos de vez em quando. Essa oração exprime a intenção de
reparação que convém à nossa vocação. Há uma forma abreviada para a
oferta quotidiana de cada parte do Ofício.

§ 4. A Santa Missa

O adorável sacrifício dos nossos altares é o dom por excelência do Coração 128
de Jesus e do seu amor. É, no dizer de S. Francisco de Sales, o centro da
religião, o coração da devoção, a alma da piedade, o mistério inefável que
contém o abismo da caridade divina e pelo qual Deus nos comunica com
suprema liberalidade as suas graças e benefícios.
76

O Santo Sacrifício da Missa é, para todos os Sacerdotes do Coração de


Jesus, o grande acto do dia, o holocausto de perfeito amor e o sacrifício
reparador por excelência.
Os Sacerdotes do Coração de Jesus, ao celebrar a Eucaristia, e os que não
são padres, ao participar nela, compenetrar-se-ão com amor dos sentimentos e
das intenções do Coração de Jesus. Unirão a oferta do seu coração à do
Coração divino de Jesus para a maior glória de Deus e para a salvação das
almas.
Os Sacerdotes do Coração de Jesus terão gosto em celebrar Missas
reparadoras. Procurarão também que os benfeitores as mandem celebrar,
com fundações apropriadas. Celebrarão ao menos uma por mês em
reparação de todas as Missas sacrílegas que entristecem profundamente o
Coração do seu bom Mestre.
Renovemos fervorosamente, antes do santo sacrifício, a nossa oferta 129
reparadora ao Coração de Jesus.
Ofereçamo-nos inteiramente com este divino Coração. O Salvador desce
novamente do céu à terra para sacrificar-se como vítima, como reconciliador e
mediador. Oferecendo esta hóstia santa, ofereçamos ao mesmo tempo as
santas Missas celebradas cada dia por todos os sacerdotes da santa Igreja e,
de modo especial, pelos sacerdotes-vítimas. Ofereçamo-nos com o Salvador
e, como Ele, tornemo-nos simultaneamente vítimas e sacrificadores, além de
reparadores de todos os pecados do povo.
Ofereçamos também todos os sacerdotes e particularmente aqueles que
fazem profissão de imolação.
Peçamos a Nosso Senhor a graça de matar a sede dolorosa que o seu
Coração Sagrado sente de amor e de reparação, mostrando-nos dispostos a
sacrificar-Lhe tudo: a honra, a saúde, a própria vida, para não mais vivermos
senão para Ele, com Ele e n'Ele, a fim de O amarmos, servirmos, cumprirmos
a sua vontade e nos sacrificarmos por ele, dizendo com S. Paulo: Eu mesmo
quisera ser anátema em favor de meus irmãos (Rom 9,3) e também separado
de Cristo por causa de Cristo.
Unamos a nossa oblação à do próprio Coração de Jesus e apresentemo-la
pelas mãos puríssimas do Coração Imaculado de Maria e pela intercessão dos
nossos Santos padroeiros, dos Anjos e de todos os Santos, a fim de que Deus
Se digne aceitá-la como um sacrifício perfeito de louvor e de adoração, de
amor, de acção de graças, de reparação, de expiação, de confiança e de
abandono à sua santa vontade.
Os nossos sacerdotes porão muito cuidado na preparação para a
celebração da Missa e na acção de graças.
O Thesaurus propõe uma bela oração preparatória, que deveria ser rezada
ao menos de vez em quando.
A acção de graças deve durar cerca de um quarto de hora, ao menos. É o
mínimo.
Tal como há comunhões espirituais, também há Missas espirituais. Nós 130
podemos oferecer repetidas vezes ao dia o sacrifício do Calvário, o sacrifício
do Cordeiro que está no céu como imolado, o de mais de cem mil sacerdotes
77

que diariamente celebram a Missa. É um dos melhores exercícios espirituais


que podemos fazer.
Chamemos os Anjos e os Santos a fazer esta oferta connosco: será um
communicantes*, como na Missa. Formulemos as nossas intenções, pela
Igreja, pelas nações, pelos fiéis vivos e defuntos.
Escusado será recordar que a Missa dos Sacerdotes do Coração de Jesus
deve ser fervorosa como a oração dos Anjos. A liturgia deve ser observada
com exactidão e tudo deve passar-se com atenção e recolhimento.

§ 5. A Eucaristia e a comunhão reparadora

Pela divina Eucaristia Jesus habita em nós, e as nossas casas assemelham- 131
se a Belém, a Nazaré e a Betânia.
Na santa Eucaristia encontramos o Coração de Jesus vivo, amante, ferido.
Jesus-Eucaristia é, em cada uma das nossas casas, como que o Superior e
o Mestre, o pai de família e o Esposo das nossas almas. É preciso que Ele seja
de verdade a vida das nossas casas e como que o sol, o lar, o alimento e o
remédio das nossas almas.
Está presente como o Cordeiro imolado sobre o altar, para ser oferecido a
seu Pai e, ao mesmo tempo, para receber as nossas homenagens e o nosso
amor.
Os Sacerdotes do Coração de Jesus devem ser assíduos junto da divina
Eucaristia. Os actos de amor e de reparação, que constituem a sua vida,
poderão acaso cumprir-se em qualquer outra parte melhor do que junto da
santa Eucaristia?
Os Sacerdotes do Coração de Jesus devem experimentar perante a
Eucaristia uma dupla sede: a de visitá-la e a de recebê-la. Uma sede mais
ardente do que a do veado sequioso que procura uma nascente refrescante.
Visitá-la-ão em todas as oportunidades e com a frequência consentido pelas
suas ocupações quotidianas.
Todas as casas principais da Congregação procurarão obter autorização 132
para expor solenemente o Santíssimo Sacramento. Sempre que o número de
adoradores o justifique, terão lugar exposições nocturnas.
Convém que a divina Eucaristia se encontre no seu trono, para receber as
nossas adorações reparadoras.
Tais adorações serão consideradas como uma missão pública, ao mesmo
tempo honrosa e carregada de responsabilidade; missão que, para ser
cumprida, tanto exige zelo como pureza e fidelidade.
No Instituto, todas as comunhões devem ser oferecidas em reparação, o que
não impede que se reze por intenções especiais que se unem à intenção
reparadora. Nada se perderá com isso. Não é verdade que Nosso Senhor
retribui cem vezes mais aquilo que se Lhe dá?
Em todas as casas a adoração será regulada e organizada.
Meia hora de adoração é o mínimo, não considerando as cerimónias e a
*
Na comunhão (de toda a Igreja), expressão com que começa uma das orações da anáfora I,
que precedem a consagração (N. do T.).
78

bênção. Esta será quotidiana.


A adoração é como uma segunda meditação. Podemos, por isso, valer-nos
de alguma leitura apropriada, que poderemos encontrar no nosso Thesaurus,
nas orações de S. Gertrudes, etc..
Promoveremos a adoração em todas as nossas capelas públicas, exortando
os fiéis a tomarem parte.
As visitas frequentes consolarão Nosso Senhor do esquecimento a que é 133
votado, mesmo por parte daqueles que deveriam ser-Lhe mais fiéis.
Antes de sair de casa e ao regressar, uma breve visita à capela agradará
certamente a Nosso Senhor.
Desde que se possa, será sempre bom recitar o Ofício divino na capela,
perante o Santíssimo Sacramento.

§ 6. A reparação eucarística

A exposição do Santíssimo Sacramento, a adoração, a Hora Santa, o acto 134


de reparação, são para nós exercícios predilectos.
Em compensação das ofensas e das irreverências que Nosso Senhor sofre
no Santo Sacramento do Altar, no maravilhoso mistério do seu amor,
ofereçamos-Lhe frequentemente as adorações e o amor de Maria sua Mãe
Santíssima, e, de modo especial, as homenagens que Ela Lhe prestava nos
principais mistérios da sua vida: a lncarnação, o Nascimento do Salvador em
Belém, a Paixão, a Eucaristia.
Ofereçamos-Lhe, com a mesma intenção, as nossas homenagens e as do
povo eleito, com todas as comunhões tão fervorosas e puras de Maria, com as
do discípulo predilecto e com as de todas as almas santas que mais amaram o
Senhor.
Na nossa acção de graças, unamo-nos às homenagens que Maria prestava
ao Salvador, quando O trazia no seu seio, ou quando O possuía em Si nas
suas comunhões.
O nosso Salvador é tão frequentemente menosprezado e ultrajado no 135
Sacramento do seu amor!
O profeta dizia: Este povo honra-Me com os Lábios, mas o seu coração está
longe de Mim (Mt 15, 8, cf. Is. 29, 13).
Esta repreensão pode também hoje dirigir-se a tantas pessoas! É que este
mistério de amor, que não pode ser compreendido a não ser por almas
humildes e crentes, é alvo da troça e do ódio dos ímpios.
No entanto, isso, para o Coração amoroso de Jesus, para este Coração
aberto por amor, que suspira e desfalece de amor, é menos doloroso do que a
indiferença, a frieza, a tibieza de tantos corações que se dizem cristãos e que
até são consagrados a Nosso Senhor ou com Ele desposados de forma
pública e solene.
Aparentemente faz-se muita coisa, gasta-se muito em procissões e com os
altares, mas quanto, em tudo isso, é sacrificado ao ídolo da vaidade, da
vanglória!
Acima de tudo, aos olhos de Deus infinitamente santo, têm valor o coração,
79

a boa e recta intenção. Tantas vezes, porém, o coração não está presente e,
sem ele, todos os outros dons não têm valor; ou, então, o coração está
ocupado com os seus interesses naturais, com as suas inclinações, com os
seus prazeres ou com as criaturas.
Durante as procissões (por exemplo), preocupamo-nos com o calor e com o 136
cansaço, ou pensamos em restabelecer as forças ou no descanso. Até o
ostensório se afigura pesado demais. Entretanto, aqui e ali, entre a multidão,
não falta alguma alma amorosa, desconhecida e menosprezada; e é
precisamente essa que melhor consola o Coração de Jesus.
Deus é espírito e aqueles que O adoram devem adorá-l'O em espírito e
verdade.
O dia do Corpo de Deus assemelha-se muito à entrada triunfal de Jesus em
Jerusalém. O caminho está ornamentado e atapetado de flores; prestam-se
todas as homenagens exteriores. Clama-se: Bendito o que vem em nome do
Senhor (Mt 21, 9). Mas, poucos dias depois, se não no próprio dia, ouve-se o
Tolle, tolle, crucifige: Tira-O, tira-O, crucifica-O (Jo 19, 15).
Renovam-se todos os ultrajes da Paixão. 137
Há ainda os Judas que atraiçoam Nosso Senhor, dando-Lhe o beijo da
dissimulação e da hipocrisia. Há Pedros, suficientemente cobardes para
renegá-l'O, que se comportam como se nunca O tivessem conhecido e que,
por curiosidade, por conveniência humana ou para seu prazer, frequentam
ambientes ou grupos, onde não se reúnem senão os inimigos de Nosso
Senhor, os inimigos da Cruz.
Há ainda discípulos que, por respeito humano, por medo de serem
desprezados e perseguidos, abandonam o Senhor, escondem-se perante o
perigo, olhando com medo para o Jardim das Oliveiras e para o Calvário;
procuram em segredo e com angústia informações sobre o seu Mestre,
oprimido pelos ultrajes e insultos, mas não têm coragem de segui-l'O pelo
caminho da Cruz.
Todavia, não faltam também aqueles que, como S. João, seguem até à cruz
o seu Senhor e seu Deus, O reconhecem perante todo o universo e que estão
prontos a partilhar a sorte do seu querido e divino mestre. Há ainda mulheres
generosas que, como as piedosas mulheres atrás de Maria, seguem as
pegadas sangrentas do seu Redentor e sobem ao Calvário com o Cordeiro-
Vítima.
No Santíssimo Sacramento Nosso Senhor é ainda maltratado por um grande 138
número de pessoas. É preso e amarrado, no sentido em que Lhe atam as
mãos repletas de graças, impedindo-O de as distribuir. É coberto de escárnios,
considerado como sedutor e mentiroso por aqueles que, por falta de fé, se
comportam como se Ele não merecesse confiança.
É como que arrastado na lama pelas mãos e corações impuros e revestido
com o manto da irrisão por aqueles que profanam a dignidade do seu santo
estado. Recaem sobre ele a desonra e a vergonha dos escandalosos. É
encerrado nos corações entenebrecidos e contagiados pelo pecado e pelas
paixões. Aí é abandonado nas mãos de lodosos seus inimigos. É flagelado
pelos desejos e pecados da carne, coroado de espinhos pelo orgulho, pela
80

vaidade e por tantos pensamentos condenáveis, ultrajado como Rei pela


desobediência, a ambição e a revolta contra Deus e os superiores que O
representam.
Não é somente Barrabás, mas o próprio demónio que Lhe é preferido e 139
muitas vezes por uma bagatela, por uma satisfação da sensualidade, do amor
próprio ou do respeito humano. Jesus é falsamente acusado e condenado por
tantos juízos temerários e duros, contrários ao amor do próximo e à caridade
fraterna, e por uma secreta inveja e sentimentos de ódio e de vingança que se
manifestam a todo o momento. De novo é carregado com uma pesada cruz e
arrastado por caminhos duros e penosos por aqueles que levam uma vida
indolente e ociosa, pela impaciência e pela falta de submissão nas
contrariedades, pela falta de renúncia e de amor à cruz, por uma tristeza e um
abatimento exagerados, pelo cuidado e desejo violento que se tem de afastar
imediatamente e a qualquer preço tudo o que é custoso.
As quedas dolorosas do Senhor sob o peso da enorme cruz renovam-se
com as nossas recaídas tão inconsideradas e tão frequentes nos nossos
antigos pecados habituais e com o nosso endurecimento, mesmo depois de
termos recebido a graça de compreender a fealdade do pecado.
É dessedentado com fel e vinagre pela intemperança e pela sensualidade.
O despojamento doloroso e humilhante das suas vestes é renovado pela
imodéstia e pela impureza e também pelo apego desordenado às criaturas,
aos objectos e aos bens efémeros, mesmo quando tais bens são bons em si
mesmos. Para expiar tudo isso, Jesus deixou-Se despojar das suas vestes da
maneira mais cruel.
As suas mãos e os seus pés são pregados pela falsa liberdade, que não é
de modo algum a dos filhos de Deus mas a do pecado e da natureza rebelde
que não quer submeter-se ao jugo do Senhor e que ousa dizer: Non serviam:
Não servirei (Jer 2, 20).
Nosso Senhor é crucificado e levado à morte por todos os pecados graves,
pela recepção indigna da sagrada Comunhão, como nos diz S. Paulo: E,
assim, todo aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor indignamente
será réu do corpo e do sangue do Senhor (1Cor 11, 27).
Mas o seu Coração é particularmente ferido pela ingratidão, pela frieza, pela 140
indiferença e abuso do seu amor e das suas graças por parte do povo eleito,
tão favorecido e tão amado.
São os corações, o amor, a vontade que Jesus reclama. Eles têm um valor
infinitamente superior a toda a pompa ou decoração exteriores. Se faltam o
puro amor e a recta intenção, nada mais tem valor a seus olhos.
Devemos, no entanto, pôr também todo o nosso cuidado no culto externo do
Santíssimo Sacramento, mas de modo que se manifeste mais o nosso
empenho afectuoso e dedicado do que o luxo e a riqueza.

§ 7. A Primeira sexta-feira do mês


e outras práticas de reparação

A primeira sexta-feira do mês deve sempre ser solenizada entre nós. É, ao 141
81

mesmo tempo, um dia de festa e um dia de penitência e de reparação. Nosso


Senhor propôs estes dias aos amigos do Seu coração, para fazer deles outras
tantas comemorações da sua Paixão.
Será bom escolher este dia para o retiro mensal. O Santíssimo Sacramento
ficará sempre exposto.
É o dia propício para a meditação das revelações do Sagrado Coração de
Jesus, das suas promessas, dos seus desejos e sobretudo dos seus dolorosos
lamentos.
Celebraremos a missa votiva do Coração de Jesus, sempre que a Liturgia o
permita.
Depois da Santa Missa e na Bênção eucarística recitar-se-á o acto de 142
reparação, segundo o espírito da nossa vocação.
Durante a noite da primeira quinta-feira para a primeira sexta-feira de cada
mês, faremos a Hora Santa, como, aliás, todas as quintas-feiras. O nosso
Thesaurus oferece-nos as fórmulas.
Em algumas casas podemos fazê-la quinta-feira à tarde, mas de vez em
quando far-se-á das onze à meia noite, como é costume no noviciado.
Estas práticas têm por objectivo intensificar em nós o espírito de reparação
em união com Nosso Senhor, a fim de chegarmos a carregar generosamente
as cruzes de cada dia, neste espírito típico do nosso Instituto.

§ 8. A Sagrada Escritura e as leituras piedosas

A Sagrada Escritura constitui, juntamente com a divina Eucaristia, o alimento 143


da nossa vida espiritual. É uma parte do nosso pão supersubstancial: Nem só
de pão vive o homem, mas de toda a palavra que saí da boca de Deus (Mt 4,
4).
Os Sacerdotes do Coração de Jesus, desejosos de fazer crescer em si
mesmos a vida sobrenatural, farão da Sagrada Escritura o seu alimento
quotidiano. Será o seu estudo preferido.
Na Sagrada Escritura, com a ajuda da meditação, aprenderão a conhecer
melhor o Coração de Jesus, objecto exclusivo do seu amor.
O Apóstolo S. João é, de modo particular, o apóstolo do amor, o teólogo do
Coração de Jesus. Mas todos os livros sagrados falam do Salvador.
No Antigo Testamento, Jesus é anunciado, figurado, preparado. No
Evangelho, encontramo-l'O vivo na terra: lá se encontram as suas palavras e
os seus mistérios. Nas Epístolas, nos Actos dos Apóstolos e no Apocalipse,
encontramos ainda Jesus que continua presente na Igreja e está glorioso no
céu.
Todas as leituras da Sagrada Escritura e de autores ascéticos devem servir-
nos para melhor conhecermos a Jesus, a fim de aprendermos a amá-l'O
melhor.
A conclusão destas leituras, como também das nossas orações, deve ser
sempre um amor novo e mais ardente ao Coração de Jesus.
Cada um de nós leia todos os dias um trecho da Escritura Sagrada e faça a 144
leitura espiritual. Um bom sacerdote acrescenta-lhes um capítulo de Teologia.
82

Estas leituras não devem ser feitas nos momentos de cansaço, mas de
manhã cedo, quando ainda estamos frescos e bem dispostos.
Requer-se cerca de vinte minutos para fazer uma leitura útil.
A escolha dos livros deve ser aprovada pelo superior ou pelo confessor.
O Rodrigues é sempre um livro fundamental para a vida religiosa. As obras
de S. Francisco de Sales, de S. Afonso Maria de Ligório, de S. Gertrudes, do
Pe. Saint-Jure, do Pe. Grou, são tesouros riquíssimos.
Para a nossa vocação especial, recomendamos o Reíno do Sagrado
Coração, extraído dos escritos de S. Margarida Maria Alacoque pelo Pe.
Yenveux; a vida da Madre Verónica; os livros do Pe. André; os do Pe. Giraud
sobre a vida de vítima; do Pe. Buathier sobre o Sacrifício, etc., etc.
Muitos Institutos publicaram catálogos de livros espirituais para uso das suas
casas, como, por exemplo, os Irmãos das Escolas Cristãs e a Sociedade de
Maria. O dos Irmãos das Escolas Cristãs pode ser encontrado na Procuradoria
Geral, Rue Oudinot, 27, Paris.

§ 9. O Sacramento da Penitência

O Sacramento da Penitência é um dos maiores dons do Coração de Jesus. 145


O Sangue precioso do Redentor e os méritos infinitos da sua Paixão e da sua
morte são-nos aplicados como um remédio, como um bálsamo benéfico que
cura as nossas feridas.
Com que amor e reconhecimento deveríamos recorrer a este banho salutar!
Mas também com que sinceridade e rectidão deveríamos pôr a descoberto
todas as nossas chagas, para que sejam purificados e curadas pelos caudais
salutares do Sangue divino!
No entanto, muitas almas, talvez mesmo consagradas, aproximam-se deste
sacramento por hábito e sem um coração deveras sensível e reconhecido.
Muitas pessoas procuram-se a si mesmas, evitam com rodeios as
humilhações, até desejam secretamente ser estimadas e ferem assim, de
vários modos, a sinceridade e a rectidão.
Como são poucas as que se mostram verdadeiramente reconhecidas!
Muitas almas curadas pelo sacramento da penitência são como os leprosos do
Evangelho (cf. Lc 17, 11-19). Em vão espera o Senhor a sua gratidão. Por
tudo isto Nosso Senhor pede reparação.
Os Sacerdotes do Coração de Jesus hão-de cultivar, na sua preparação e
na acção de graças, estes sentimentos de amor e de reconhecimento que
Nosso Senhor deles espera.
Não descurem as indulgências que possam lucrar particularmente para as
almas do Purgatório. Serão gratos a Jesus por este dom que lhes é feito dos
seus méritos e dos méritos dos Santos.
Em prática, cada qual, quando entra no Instituto, deve fazer a confissão
geral de toda a sua vida. Os professos e os noviços farão todos, anualmente,
a confissão geral a partir da anterior.
Todas as semanas farão a confissão ordinária no dia marcado. A reparação
exige uma grande pureza.
83

§ 10. Os exames de consciência

Temos três exames de consciência por dia: 146


1. O exame preventivo, no fim da meditação; é muito importante, para que a
oração produza frutos práticos;
2. O exame particular antes do meio dia; o nosso Thesaurus oferece-nos
uma fórmula de exame particular muito completa e muito útil.
Depois de termos pensado nos deveres do nosso estado e no nosso defeito
predominante, insistamos sempre sobre o espírito da nossa vocação.
No exame do meio dia podem recitar-se tanto as Ladainhas do Coração de
Jesus como as invocações reparadoras inseridos no Thesaurus.
3. O exame da noite deve ser acompanhado por uma verdadeira contrição,
inspirada no amor do Sagrado Coração e seriamente reparadora.
Da direcção espiritual trata-se nas Regras.

§ 11. Os três santos Corações

Os três santos Corações de Jesus, Maria e José são modelos das vítimas
de amor e de imolação. O nosso pensamento deve dirigir-se habitualmente
para eles. Os sentimentos que os animavam em Nazaré devem ser também
os nossos. Devemos estudá-los sobretudo na oração. Devemos aprofundar
os seus sentimentos, os seus pensamentos, desejos, alegrias, tristezas e
vontades, e conformar continuamente com eles os nossos pensamentos,
palavras, acções e toda a nossa vida.
Peçamos a S. José a graça de participar na sua fé, na sua simplicidade, no
seu abandono.
A Maria peçamos a graça de tomar parte na sua humildade e pureza, para
nos podermos elevar até à vida de amor e de imolação do Coração de Jesus.
À sexta-feira o nosso pensamento dirigir-se-á de preferência para o Coração
de Jesus; ao sábado pensaremos no Coração de Maria e será Ela que nesse
dia nos assistirá em todas as necessidades.
À quarta-feira dirigir-nos-emos a S. José, invocá-lo-emos e ele nos assistirá.

§ 12. A união aos mistérios de Nosso Senhor: Nazaré - o Calvário - a


agonia

Os nossos actos de união começam com o despertar. Saudamos o Coração 148


de Jesus e oferecemos-Lhe o nosso coração, a fim de que nele derrame o seu
amor como Ele próprio aconselhou a S. Matilde.
Na oração da manhã, recitamos o belo acto de oblação de Pe. Cláudio Ia
Colombière.
Oferecemos cada uma das acções principais do dia ao Sagrado Coração de
Jesus. No noviciado aprendemos a oferecer as nossas acções, por meio de
um acto explícito de amor ao Coração de Jesus ao menos sete vezes ao dia,
com a intenção de ir aumentando este número até chegar ao ponto de oferecer
84

a totalidade das nossas acções.


Temos quatro encontros por dia no Coração de Jesus. Estas práticas estão 149
assinaladas no Thesaurus com algumas belas orações que não devemos
omitir.
1. Às nove horas unimo-nos ao mistério de Nazaré e colocamo-nos na
disposição de passar o dia, como fazia a Sagrada Família, numa vida de
oração, de trabalho e de sacrifício. Esta prática pode também ter lugar após o
pequeno almoço.
2. Ao meio dia vamos até ao Calvário, para nos unirmos aos queridos
Santos, cuja presença amorosa e compassiva tanto consolou Nosso Senhor:
Maria, S. João, S. Maria Madalena e as Santas mulheres.
3. Às três horas da tarde voltamos ao Calvário. Contemplamos a loucura de
amor de Jesus, que provoca o nosso amor, e os seus sofrimentos infinitos que
exigem nossa reparação.
4. Às oito horas unimo-nos à agonia do Salvador, aos seus grandes
sofrimentos reparadores. Rezamos pelos agonizantes. Cultivamos
sentimentos de arrependimento e de contrição.
A Coroa do Sagrado Coração de Jesus, que recitamos diariamente, une-nos 150
também, conforme os vários dias, aos mistérios da vida oculta, da Paixão e da
Eucaristia.

§ 13. O rosário e a devoção a Maria

O nosso Directório não pode omitir esta bela devoção, a que, aliás, nos é 151
mais querida a seguir à devoção ao Coração de Jesus.
A reza do terço é de regra para nós. Muitos gostam de rezar todos os dias o
rosário completo.
Honramos de modo particular a Santíssima Virgem sob alguns dos seus
mais belos títulos: a Virgem lmaculada, Nossa Senhora de Lourdes, a Virgem
Mãe, Nossa Senhora do Sagrado Coração.
Celebramos com alegria e devoção o mês de Maria e o mês do Santo
Rosário. Consagramos o mês de Agosto ao Coração de Maria.
A Santíssima Virgem está unida ao Salvador em todos os mistérios da vida
oculta em Belém e Nazaré, e no mistério da Paixão no Calvário.
A devoção a Maria, tal como a ensina o Beato Grignon de Monfort, é-nos
muito querida. Encontraremos a forma de a praticar no livro do Pe. André:
"L'Année avec Marie".

§ 14. Meses de devoção e novenas

Devemos celebrar com grande solenidade o mês do Sagrado Coração de 152


Jesus. Se temos uma capela pública, nela terão lugar adorações e pregações.
O mesmo acontecerá nos meses de Maria e do Rosário.
Será bom, nas nossas casas, promover alguma prática diária durante os
meses do Sagrado Coração de Maria, de S. Miguel e de S. João. São tão
amáveis e poderosos estes nossos padroeiros!
85

Há uma série de novenas que se tornaram habituais no nosso Instituto.


Estão indicados no Thesaurus. As novenas sempre foram usadas na Igreja.

§ 15. Os exercícios espirituais

Leva, Jerusalem, oculos tuos et vide potentiam Regis: ecce Salvator venit 153
solvere te a vinculo: Levanta, Jerusalém, os teus olhos e vê o poder do Rei. eis
que o Salvador vem libertar-te das cadeias (cf. ls 49, 18... ; 60, 4... ).
Estas palavras são utilizadas no santo tempo do Advento, mas aplicam-se
também muito especialmente aos dias dos exercícios espirituais, que são dias
de grandes graças.
Levanta os olhos, Jerusalém, e vê o poder do Rei.
Também nós devemos erguer os olhos do nosso espírito, orientá-los para
além de tudo o que é terrestre, ocupar-nos unicamente com o que se refere à
nossa alma, à nossa perfeição, e procurar aprofundar o espírito da nossa
vocação, o nosso fim, para conhecer e cumprir cada vez mais e melhor a
vontade de Deus e os seus desígnios.
Devemos contemplar o poder deste Rei dos corações, deste Rei do amor
que quer reinar sobre nós e em nós. Devemos entregar-nos ao seu poder, ao
poder do seu amor, ao qual resistimos tão frequentemente: Eis o vosso
Salvador que vem libertar-vos das cadeias. Ele concede-vos este tempo de
graça e ao mesmo tempo os meios para quebrar e despedaçar todos os laços
que impedem ainda os vossos corações no seu impulso para o Senhor vosso
Deus, a fim de que vivais doravante para Ele, livres e desapegados de tudo
aquilo que é terreno, natural e efémero.
Para o futuro conservam somente os laços do amor de Deus, laços que
prendem e unem a alma da forma mais íntima ao seu Deus, a ponto de poder
afirmar com o Apóstolo S. Paulo: Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que
vive em mim (Gal 2, 20) e eu n'Ele.
Ele entregou-Se totalmente por mim e eu entrego-me completamente e sem
reservas ao seu beneplácito, à sua vontade. Sou sua vítima, o seu servidor, a
sua serva que não procura nem conhece senão o cumprimento da vontade do
Senhor, a sua satisfação, os seus interesses, pronto a obter-Lhe tudo isso à
custa da minha vida, da minha honra, das minhas forças e da minha saúde.
Dirupisti vincula mea, tibi sacrificado hostiam laudis et nomen Domini 154
invocabo: quebrastes as minhas cadeias. Oferecer-Vos-ei um sacrifício de
acção de graças e invocarei o nome do Senhor (Sl 116, 16-17).
Despedaçastes as cadeias que me retinham afastado de Vós, por isso
oferecer-Vos-ei um sacrifício de acção de graças; quero exaltar a Vossa
bondade e misericórdia para comigo, das quais era tão pouco merecedor.
Quero agradecer-Vos e unir-me unicamente a Vós, Deus e Senhor do meu
coração. Quero prestar-Vos homenagem somente a Vós, servir-Vos e amar-
Vos acima de tudo, sacrificar por Vosso amor tudo o que não sois Vós mesmo.
E quando esses laços desregrados, esses laços que me escravizam às
criaturas e à natureza corrompida tentarem enredar-me novamente, invocarei o
Vosso santo nome, no qual somente é possível encontrar socorro e
86

assistência.
Sim, invocarei o nome do meu Redentor, que Se deixou manietar e conduzir
pelas suas criaturas de maneira tão cruel, para dar-me a liberdade,. para atrair
todos os corações com os doces vínculos do seu amor, para libertá-los de
todas as pesadas cadeias da escravidão do pecado.
Invocarei com fé, com confiança e com amor o nome d'Aquele que Se
deixou amarrar e arrastar como um cordeiro que é levado ao matadouro sem
soltar o mínimo lamento.
Este Cordeiro, quero segui-l'O pelo caminho que Ele mesmo percorreu.
Esforçar-me-ei por imitar as disposições do seu Coração. Quero viver, sofrer e
morrer com Ele e por seu amor.
Buscai o Senhor, enquanto se pode encontrar, invocai-O, enquanto está
perto (Is 55, 6).
No tempo do retiro Nosso Senhor deixa-Se encontrar de modo particular por 155
aqueles que O procuram sinceramente e que O invocam com humildade e
confiança, implorando as suas luzes, as suas graças, o seu perdão.
Mas é também o tempo em que Nosso Senhor procura. E que pretende
encontrar? Corações que O conheçam, que O amem, que O sirvam e se Lhe
queiram entregar totalmente.
Também chama, para ser escutado, recebido, acolhido nos corações que
ama tão profundamente, que salvou e resgatou, que escolheu como sua
morada, sua propriedade especial, como é o caso dos corações das suas
esposas, a quem pede que O amem.
Estou à porta, bato e chamo. Abre-me, minha irmã, minha amiga, pomba
minha, imaculada minha, porque a minha cabeça está coberta de orvalho, e os
caracóis dos meus cabelos cheios de gotas da noite (Cant 5, 2).
Mais: eles estão embebidos do meu Sangue que derramei por ti. Foi a
ingratidão, a infidelidade, a insensibilidade dos meus amigos, do meu povo
eleito que Me provocaram este suor de sangue; é para Me consolar e
desagravar desta dor e desta falta de amor que procuro corações dispostos a
proporcionar-Me esta consolação, que queiram, com a ajuda da minha graça,
fazer todos os sacrifícios que lhes peço.
87

Sexta Parte

AS VIRTUDES PRÓPRIAS
DA NOSSA VOCAÇÃO
§ 1. A fé viva

Beati qui crediderunt et non viderunt : Bem-aventurados os que, sem terem 156
visto, acreditam (Jo 20, 29). São as palavras de Nosso Senhor ao Apóstolo S.
Tomé. Nosso Senhor gosta da fé viva, da fé pura e sem ambiguidades, que
não procura consolações e que sabe agir tanto na aridez como na alegria
espiritual. A fé pura é uma verdadeira imolação do coração.
Exemplo de fé viva e autêntica é Abraão, disposto a imolar o filho da
promessa. Fé viva, foi a dos Magos que acreditaram no presságio da estrela e
persistiram no seu objectivo, mesmo depois do desaparecimento da estrela.
Exemplo de fé viva e verdadeiramente admirável, a S.José, que acreditou nos
mistérios da redenção, apesar de todas as contradições e dificuldades.
Aceitou todas a mensagens angélicas. Foi testemunha de todas as
humilhações de Nosso Senhor em Belém, no Egipto, e Nazaré.
José permanece sempre fiei à sua fé. Morre antes dos grandes milagres de
Jesus, antes da sua ressurreição; contudo morre na fé mais viva e meritória.
É sobretudo no momento das provações que a fé deve ser firme e
perseverante. É nestas crises que alcança a fé as suas mais belas vitórias e
prepara o sucesso das obras. Deus castiga as dúvidas contra a fé. Temos
disso numerosos exemplos na Sagrada Escritura.
Nada devemos temer, mesmo quando não compreendemos os desígnios de
Deus.
Ele pedir-nos-á o sacrifício de Moriah, um sacrifício que parecerá destruir as
suas promessas. A nossa humilde submissão será recompensada por uma
superabundância de favores divinos.

§ 2. A confiança

Amice, commoda mihi tres panes: Amigo, empresta-me três pães (Lc 11, 5). 157
Peçamos a Maria e a José estes três pães: a fé, a confiança e o amor. Eles
não no-los recusarão. Nada se recusa a um amigo que pede com insistência.
Temos necessidade de confiança. É a fonte do abandono tão necessário à
nossa vocação. Precisamos de uma confiança filial, que não se desmente nem
se perde nas provações. Que tememos? Jesus, Maria e José são a nossa
salvaguarda, os nossos padroeiros. São como um baluarte, um muro de
protecção para as nossas almas, para as nossas casas, para a nossa Obra.
Podemos duvidar da bondade de Nosso Senhor, da sua solicitude, da sua
misericórdia? Ele, que Se fez homem e que por nós morreu, poderá acaso
descuidar-se de alguma coisa que nos possa ser vantajosa? É para nós como
88

uma mãe.
Quomodo si mater blandiatur, ita ego consolabor vos: Como uma mãe
consola o filho, assim Eu vos consolarei (Is 66, 13).
Maria, que nos adoptou na pessoa de S. João ao pé da cruz, poderá acaso
abandonar-nos?
Também S. José é para nós um pai, um pai amoroso, vigilante e dedicado.
Temos Jesus, Maria e José: que podemos temer?
Confiemos-lhes as nossas almas, as nossas casas, as nossas obras.
As suas imagens estão expostas nas nossas casas, os seus nomes estão
nos nossos lábios e nos nossos corações; nada podemos temer; estamos bem
guardados.
Sejamos confiantes também nas provações. Por vezes Jesus parece que
dorme; deixa que a tempestade se levante; mas vigia e intervém no momento
oportuno. Permite as provações porque são úteis, necessárias para a nossa
purificação, santificação e progresso das nossas obras.
Nosso Senhor saberá fazer com que as provações redundem em nosso
benefício. Coloquemos n'Ele toda a nossa confiança. ln Te, Cor Jesu, speravi,
non confundar in aeternum: Eu esperei em Vós, Coração de Jesus: não serei
eternamente confundido.

§ 3. O puro amor de Deus

O amor de Nosso Senhor deve animar toda a vida dos Sacerdotes do 158
Coração de Jesus. A sua vida deve ser uma vida de amor. O amor de Nosso
Senhor deve ser o motivo de todas as suas acções. Devem fazer tudo por
puro amor para com o Coração de Jesus.
Jesus mesmo quis revelar a devoção ao seu Sagrado Coração para
conquistar o amor dos homens. Porque este Coração divino, que nos amou a
todos e a todos nos ama sempre com amor infinito, quer a correspondência do
nosso amor. Ora não é àqueles que são de modo particular consagrados ao
Sagrado Coração de Jesus que compete oferecer ao Coração do seu Deus, do
seu Redentor e Mestre, esta consolação, este direito de reinar por amor nos
seus corações?
Esforçar-se-ão, portanto, quanto lhes seja possível, com o auxílio da graça
por corresponder ao amor de Jesus com um amor puro, desinteressado,
ardente e generoso até à imolação, visto que foi assim que o Coração de
Jesus os amou. Quanto Lhe custou este amor! Que humilhação, que pobreza,
que fadiga e quantas dores suportou, para obter este amor! Durante trinta
anos suportou todas as canseiras de uma vida pobre, penosa, desprezada e
desconhecida! E quis terminar essa vida com a morte mais dolorosa e
ignominiosa, para satisfazer o seu amor, para demonstrá-lo a todos nós da
maneira mais constante e assim conquistar os nossos corações! E todos estes
prodígios de caridade, quis aumentá-los e perpetuámos na Eucaristia.
Mas onde irão os nossos sacerdotes haurir este amor que, em troca, Lhe 159
devem dar? Ao próprio Coração de Jesus. É uma fonte inesgotável: Haurietis
aquas in gaudio de fontibus Salvatoris: Tirareis água com alegria das fontes da
89

salvação (is 12, 3). Fixarão continuamente o olhar em Jesus, vê- l'O-ão em
tudo e em toda a parte: nos seus mistérios que meditarão incessantemente, na
sua Eucaristia em que Ele está presente, na sua providência que governa
todas as coisas. Reconhecerão em toda a parte a sua bondade. Deste modo
manterão aceso o fogo do amor no seu coração e alimentá-lo-ão sem cessar.
Manterão a todo o momento a atenção, as inclinações, os pensamentos, as
aspirações orientadas para o objecto do seu amor. Mesmo quando estiverem
ocupados com outros deveres ou se entregarem a um legítimo descanso,
devem igualmente orientar o coração, o espírito, a vontade para Nosso Senhor.
Ele pede este amor, um amor puro e fiel, que tudo faz exclusivamente para
Aquele a Quem se ama.
Infelizmente, quantas almas, mesmo consagradas, recusam este amor!
Como são pouco reconhecidas e pouco pensam em Jesus! Passam o seu
tempo a ocupar-se de si mesmas, das suas satisfações pessoais, físicas e
espirituais, ou então ocupam-se com as criaturas, procuram agradar-lhes e
satisfazê-las. Quantas, mesmo entre as melhores, deixam muitas vezes
passar bastante tempo sem pensar no Coração de Jesus, sem O amar,
trabalhar e sofrer por Ele! Como podem assim oferecer essas acções, esses
dias totalmente contaminados de vida natural ao Coração de Jesus que é tão
santo e tão puro, ao Coração de Jesus que tanto as amou e merece todo o seu
amor? Nada disso pode agradar-Lhe, nem pode consolá-l'O, nem compensá-
l'O da indiferença, da ingratidão de tantas almas.
O que Nosso Senhor nos pede é um amor puro e desinteressado. E nós 160
devemos, tanto quanto possível, fazer tudo para agradar-Lhe e cumprir a sua
santa vontade. É o nosso coração que Ele pretende, o nosso amor, a nossa
vontade, a nossa recta intenção de agradar-Lhe.
Não devemos apegar-nos nem à alegria nem ao sofrimento, mas somente à
vontade de Deus e àquilo que nos pede.
Para ser vítima não precisamos nem de saúde nem de forças. Temos
sempre um coração para amar, um corpo para agir e sofrer. É quanto basta!
O nosso amor a Jesus deve ser tanto mais fiel e puro, quanto é certo que
tomámos o compromisso de oferecer-Lhe reparação pelas faltas de amor, pela
ingratidão e pela indiferença de tantas almas. O puro amor é a nossa vida e o
nosso objectivo.
Jesus conduzir-nos-á à Santíssima Trindade. Com Ele, com o seu divino
Coração, ofereceremos à Santíssima Trindade os nossos sacrifícios habituais
de adoração, de amor, de reparação e de oração.

§ 4. A acção de graças

Ubi sunt novem alii?: Onde estão os outros nove? (Lc 17, 17). Onde estão 161
aqueles que deveriam agradecer?
Esquecemo-nos demasiado de agradecer a Deus, de louvá-l'O e glorificá-l'O
por todos os seus benefícios, particularmente de ordem espiritual. E, no
entanto, as ocasiões são constantes. Deus como que nos persegue com os
seus dons, mediante a acção incessante da sua graça, com os frutos da
90

oração e dos sacramentos. Somos testemunhas dos dons de Deus às almas


que nos rodeiam e deveríamos louvá-l'O continuamente pela sua bondade.
Deparamo-nos com as maravilhas da bondade de Deus sobretudo na
história dos Santos, que se apresenta diariamente aos nossos olhos nas
nossas leituras e orações. Laudate Dominum in sanctis ejus: Louvai o senhor
nos seus santos (Sl 150, 1). Agradeçamos ao Senhor, louvemo-l'O,
glorifiquemo-l'O por todas as graças que concedeu aos seus Santos, aos seus
sacerdotes, aos seus religiosos e, por meio deles, a tantas almas que eles
edificaram.
Regozijemo-nos, louvemos e glorifiquemos o Senhor por toda a glória e
amor que Lhe são dados por tantos Santos e, em particular, pelo zelo e
trabalhos apostólicos de santos religiosos.
Louvemo-l'O, demos-Lhe graças por toda a misericórdia com que nos tratou
desde o início da nossa Obra e por todas as graças de que não cessa de
cumular-nos.

§ 5. A caridade para com o próximo

Diligamus invicem sicut Christus dilexit nos: Amemo-nos como Jesus nos 162
amou (Cf. Jo 13, 34), isto é, com generosidade, com fidelidade e
desinteressadamente, se necessário, até ao sacrifício da vida.
Hoc est praeceptum meum: Este é o meu mandamento (Jo 15, 12): é o
mandamento predilecto do Sagrado Coração de Jesus.
A caridade é paciente, é amável, não pensa o mal e não o faz; detesta a
ambição, a inveja e o egoísmo; é confiante e compassiva (cf. lcor 13, 4-7).
Felizes os que são mansos, porque conquistarão todos os corações.
Felizes os que amam a paz: são os verdadeiros filhos de Deus.
A caridade não conhece diferenças de línguas: Non est judaeus neque
graecus: já não há judeu nem grego (Gal 3, 28). Entre nós, as diferenças de
nacionalidade não devem prejudicar a união.
A caridade perdoa as injúrias: Pater, dimitte illis: Pai, perdoa-lhos... (Lc 23,
34).
A caridade imola-se na paciência. Encontra uma ocasião de imolação nas
dificuldades e nos aborrecimentos da vida comum, nas contrariedades, nos
desgostos causados pelo próximo, na suportarão dos feitios maçadores e
desagradáveis: Cum patientia, supportantes invicem in caritate: Com paciência,
suportando-vos uns aos outros com caridade (Ef 4, 2).
Se a caridade fraterna é sempre indispensável na vida religiosa, não o será 163
sobretudo entre os amigos e discípulos do Coração de Jesus? Se alguém
pretende amar a Deus e não ama os seus irmãos, mente, diz o Apóstolo S.
João (cf. lJo 4, 20).
Esta virtude deve ser-nos particularmente querida. Ela manifestar-se-á por
toda a espécie de deferências, pela harmonia e paz nas nossas relações, pela
suportação e pela rápida solução das divergências que possam surgir. Com a
ajuda de Nosso Senhor, devemos formar um só coração e uma só alma no
Coração de Jesus.
91

Na prática, para conservar esta perfeita caridade através da união dos 164
corações e do espírito de família, os nossos sacerdotes evitarão qualquer
amizade particular e amar-se-ão todos em Deus, como irmãos em Jesus
Cristo, unidos ao seu divino Coração; e, porque o orgulho é muitas vezes o
escolho contra o qual a caridade se desfaz, cada um deles terá os olhos
abertos para os seus próprios defeitos e fechados para os dos outros.
Terão como lei não tecer considerações sobre os defeitos, que crêem
vislumbrar nos outros, mas procurarão desculpá-los e só falar deles nos casos
em que a caridade e o dever o exijam. Estimar-se-ão uns aos outros,
respeitar-se-ão sinceramente e evitarão contristar-se mutuamente com atitudes
ou com palavras.
Estarão atentos para aproveitar todas as oportunidades para se anteciparem
na ajuda recíproca, para prestarem uns aos outros todos os gestos de uma
caridade terna e afectuosa, a fim de cultivarem a união dos corações e o
espírito de família. Em suma, evitarão com cuidado as divisões que podem
nascer da diversidade de opiniões políticas ou até mesmo teológicas.
A grande lição de caridade que brotou do Coração de Jesus - o discurso
depois da Ceia, referido por S. João - deverá ser relido de vez em quando por
cada um, para alimentar nos corações o fogo da caridade.
Caso aconteça, por efeito da fragilidade humana, que a caridade seja
afectada por algum incidente desagradável entre dois ou mais confrades, os
culpados nada têm de mais urgente do que restabelecer, externamente, a boa
harmonia e edificação, mediante a apresentação de humildes desculpas e de
uma sincera reparação; além disso, procurarão sufocar interiormente todo o
gérmen de azedume e ressentimento. Em caso de necessidade os superiores
deverão interpor a sua autoridade para obter o cumprimento perfeito do
conselho do Apóstolo: Não se ponha o Sol sobre a vossa ira (Ef 04, 26).

§ 6. A humildade

Improperium expectavit cor meum et miseriam: O insulto despedaçou-me o 165


coração e tornou-o incurável (Sl 69, 21). Nosso Senhor amou, desejou as
humilhações para expiar o nosso orgulho. Pode dizer-se d'Ele que é a
adorável personificação da humildade. Considerai-O em todos os seus
mistérios e em cada um deles estudai o seu Coração; não encontrareis senão
abaixamento e humildade. Pode dizer-nos também: Aprendei de Mim que sou
manso e humilde de coração (Mt 11, 29).
Os Santos sentiam fome de demonstrar-Lhe o seu amor, suportando as
humilhações por Ele e como Ele: "Sofrer e ser desprezado por Vós, Senhor".
Era o desejo de S. João da Cruz. A contemplação de um Deus humilhado,
aniquilado, deve fazer-nos desejar ou, ao menos, suportar com paciência as
humilhações.
Todos os nossos religiosos considerarão vantajoso que os superiores
conheçam os seus defeitos e as suas faltas. Escutarão com respeito e sem
justificações os avisos e as repreensões dos superiores.
Farão, de quando em quando, segundo as normas da prudência, actos de
92

humildade.
Longe de ambicionar cargos honrosos, aceitarão de bom grado os encargos
mais humildes.
Os nossos religiosos renunciarão às dignidades eclesiásticas e só as
aceitarão por ordem dos superiores ou do Papa.
Estarão dispostos a aceitar com doçura e calma as afrontas, as injúrias e, se
lhes acontecer serem rejeitados, vexados, desprezados, sem que a tal tenham
dado azo com acções que os tornem culpados perante Deus, devem alegrar-se
e agradecer ao Coração de Jesus, como se de um precioso favor se tratasse.
Contudo, estando em jogo a glória de Deus e as suas obras, não devem
deixar de agir por falsa humildade, mas sim agir sem procurar a sua própria
glória.
Também não é faltar à humildade querer tornar-se santo. Deus quer ser
louvado nos seus Santos e por eles. Tornamo-nos santos, amando a Deus e
glorificando-O cada vez mais. Toda a santidade procede d'Ele e da sua graça.
D'Ele será toda a honra.

§ 7. A simplicidade

Sede simples como as pombas (Mt 10, 16). 166


A pomba servia para o sacrifício na antiga Lei. Era oferecida para resgatar
as crianças apresentadas no Templo. A pomba é um símbolo gracioso, um
distintivo de simplicidade, de pureza, de doçura. O olhar da pomba é puro,
direito e firme. Como o da alma simples. E fixo e não se detém sobre
múltiplos objectos. O esposo diz à esposa do Cântico: Os teus olhos são olhos
de pomba (Cant 1, 15). Assim a alma simples vai direita a Deus em tudo, sem
mistura de olhares humanos, de raciocínios interesseiros. Também o nosso
olhar deve fixar-se unicamente no Coração de Jesus, a fim de fazermos tudo
por seu amor, para agradar-Lhe, consolá-l'O e oferecer-lhe as nossas
reparações.
Quem me dera ter asas como a pomba para poder voar e encontrar
repouso! (SI 55, 7). Mal a pomba começa o seu voo, logo descansa. Para
onde a conduz o seu voo? Ela eleva-se acima da terra e não pára como o
corvo para satisfazer os seus apetites carnais. A pomba vai direita à oliveira
simbólica. Muitas vezes também vai esconder-se nas fendas do rochedo, e lá
suspira e geme. Columba mea ín foraminibus petrae; Ó pomba minha que
estás nas fendas da rocha (Cant 2, 14). Gememos como pombas, diz lsaías
(Is 59,1 1).
Assim deve ser o voo da nossa alma. Deve elevar-se acima da terra pela
renúncia, pela oração e pela união com Deus. Deve dirigir-se para a oliveira
da paz que é Nosso Senhor, vê- l'O em tudo e unir-se a Ele em toda a parte e
sempre. Deve ir muitas vezes esconder-se na fenda do rochedo, isto é, no
Coração de Jesus, onde encontrará refúgio. Aí poderá meditar nas
amabilidades do Salvador, nas suas tristezas, nos seus lamentos, nos seus
sofrimentos. Aí suspirará e gemerá, exprimindo sem cessar os seus
sentimentos de amor e de reparação. Volabo et requiescam: Voarei e
93

repousarei (Sl 55, 7). A pomba voa e repousa. A pomba do dilúvio repousou
na arca. Onde repousará a nossa alma? Não encontrará repouso, a não ser
junto de Jesus e no seu Sagrado Coração. Unicamente aí encontrará a luz, a
paz, a confiança e a força.
O nosso repouso encontra-se em Jesus, junto do nosso Salvador, do nosso 167
Pai, Irmão, Amigo. Mas Jesus quereria encontrar também o seu repouso em
nós. E não o pode encontrar senão em corações amorosos, fiéis,
compassivos, dedicados.
Quais são os lugares de repouso para Jesus na terra? O seio de Maria, a
manjedoura, Nazaré, Betânia, o Calvário, a Eucaristia, os corações. É aí que é
preciso segui- l'O e repousar com Ele.
No seio de Maria, Jesus humilha-Se, aniquila-Se e pronuncia o seu ecce
venio (Heb 10, 7). Maria adora e agradece. Na manjedoura Jesus humilha-Se
e suporta a recusa de Belém. Demonstra o seu desprezo pelas riquezas e
comodidades da terra, Maria e José, com os pastores e os Magos, contemplam
as humilhações voluntárias de Jesus e oferecem-Lhe as suas adorações e o
seu amor.
Em Nazaré, Jesus vive no silêncio, na oração, no trabalho. Encontra
repouso ocupando-Se com o Pai celeste, com Maria e José.
Em Betânia Jesus consola e instrui os seus amigos. Estes partilham as
alegrias e os sofrimentos de Jesus; oferecem-Lhe as suas consolações e
rodeiam-n'O de atenções.
No Calvário, Jesus consuma o seu sacrifício. Repousa sobre a cruz. É um
leito de dor e de sangue, onde Jesus Se imola inteiramente, por amor ao Pai e
para nossa salvação.
E que faz Ele na Eucaristia? Aniquila-Se ainda, humilha-Se, esconde-Se
sob as mais humildes aparências, adora, reza, ama e dá graças. Este é o Seu
repouso.
Por fim, nos corações, espera as homenagens do nosso amor e oferece-nos
as suas graças. Expõe-Se generosamente à nossa ingratidão e ao nosso
esquecimento.
Tais são os diversos repousos de Jesus. Meditando-os continuamente e
unindo-se-lhes, a alma simples encontrará, como a pomba, um repouso
reparador.
Vamos incessantemente e com simplicidade ao Coração de Jesus, vivo em
todos os seus mistérios. Retiremo-nos para as fendas da rocha. Aí
encontraremos o nosso repouso, aí beberemos na fonte de todas as graças e
de todas as virtudes.

§ 8. A fidelidade

A fidelidade e a confiança são a nossa segurança. Se permanecemos 168


fielmente apegados a Nosso Senhor, Ele nos segurará e abençoará.
O símbolo da fidelidade é o cão. O cãozinho afeiçoa-se ao seu dono, gosta
dele, é-lhe reconhecido, mantém-se de bom grado a seus pés, aborrece-se
com a sua ausência, espera-o, alegra-se com o seu regresso.
94

Sejamos fiéis a Nosso Senhor, como cachorrinhos. Quedemo-nos a seus


pés. Gostemos de pensar n'Ele, de contemplá-l'O. Orientemos sempre a
nossa atenção, os nossos pensamentos, afectos e aspirações para o Salvador,
objecto único do nosso amor.
O cão verdadeiramente fiel não desanima, mesmo quando é batido. A sua
fidelidade é a toda a prova. O seu instinto diz-lhe com certeza que a
severidade do dono lhe é devida e que as carícias virão depois. A nossa
fidelidade deve ir até esse ponto.
Aceitemos de Nosso Senhor as provações e os mimos. Jesus ama-nos.
Temos provas. Podemos acaso duvidar, um único instante que seja, da sua
bondade? Sejamos-Lhe fiéis até à morte.
Jesus aprecia sobretudo a fidelidade nas pequenas coisas, o cuidado em
oferecer-Lhe tudo, em cumprir tudo segundo a sua vontade e por seu amor.
Dêmos-Lhe esta fidelidade que Ele espera, à qual tem direito e que
recompensará generosamente.

§ 9. A vigilância

O Senhor encontra vigilante a virgem prudente. Se estivermos distraídos, 169


dissipados, disperses, privamo-nos das graças que Nosso Senhor quer dar-
nos, perdemos as que havíamos recebido.
Tudo isto é importante, especialmente, depois dos exercícios espirituais,
depois das festas e dos dias de graças especiais. Nosso Senhor semeou mais
abundantemente as suas graças na nossa alma; o demónio e o mundo vêm
semear a cizânia, a dissipação que devasta todas as plantações do Mestre.
Como somos ingratos, quando nos prestamos a esta manobra dos inimigos
de Jesus! Também no mundo eclesiástico é admitida a ideia preconcebida de
que é preciso distrair-se depois dos dias de recolhimento e de oração, como
nas segundas-feiras após as festas, por exemplo. Resulta que as graças
recebidas se perdem ou são consideravelmente diminuídas, e assim as almas
permanecem sempre estacionárias.
Vigilate et orare: Vigiai-e orai (Mt 26, 41). Exerçamos vigilância sobre os 170
nossos sentidos, as nossas imaginações, sobre os nossos pensamentos;
rezemos e desconfiemos de nós próprios. Almas santas caíram: a queda de
Adão, a de David, a de Salomão, a de S. Pedro são lições para nós. Caíram
anacoretas, que, no deserto, haviam resistido perante as perseguições. A
nossa natureza é frágil e inclinada para o mal.
Vigiemos, se não queremos contristar Nosso Senhor. Vigiemos, no
cumprimento de todos os nossos propósitos. Velemos pela conservação da
vida interior, que é essencial para a nossa vocação.
Sem vigilância não chegaremos ao fervor da vida de amor, de reparação e
de imolação que Nosso Senhor exige de nós.

§ 10. A ordem nas pequenas coisas

Como é grande a importância da ordem! 171


95

Onde não há ordem não há virtude. Uma coisa realizada no devido tempo e
lugar é boa e meritória, mas se sai fora dos limites da ordem, é fruto dos
sentidos, da natureza corrompida, que procura as suas comodidades, a sua
satisfação e prefere a sua própria vontade à dos outros.
É a ordem estabelecido pelo Criador às leis da natureza que conserva o
universo. Não tem cada criatura, mesmo inanimada, o seu lugar e destino
determinados por Deus? E como esta ordem é regularmente observada! Com
que tranquilidade as estrelas seguem o seu percurso no firmamento! Não nos
dá a Lua regularmente a sua luz? E o Sol, atrasa-se acaso na sua função de
iluminar e aquecer a terra? Se ficasse ausente um só dia que confusão e que
desordem daí resultariam!
O que é que constitui o bem, a felicidade de um reino, de um estado, senão
também a ordem? O mesmo acontece numa paróquia, numa família: a
felicidade, a paz, a prosperidade dependem da ordem. Isto não é menos
verdadeiro para uma família espiritual. Não é a obediência ao chefe visível e,
através dele, ao chefe invisível da Igreja; não são a unidade e a ordem
mantidas através da obediência que imprimem à Igreja católica, apostólica,
romana, de maneira irrecusável, o selo da verdade, da infalibilidade, da
santidade e da divindade?
Do mesmo modo a ordem é indispensável a toda a casa espiritual, a toda a
obra, a todo o coração humano, a toda a alma que pretende alcançar a
finalidade da sua existência e cumprir os deveres do seu estado. Para chegar
a este ponto é indispensável uma grande fidelidade, mesmo nas coisas mais
pequenas e mais insignificantes, sobretudo quando constituem uma ordem
formal, uma manifestação da vontade dos superiores, do próprio Deus que fala
pela boca dos seus representantes. Coisa alguma, em tal caso, pode ser
considerada pequena. O que é que na realidade é pequeno ou grande aos
olhos dum Deus omnipotente, infinitamente sábio, bom, misericordioso e justo,
que não tem necessidade de nada e a quem nada falta? Todas as coisas em
si nada são diante d'Ele.
Todavia este Deus tão grande pede alguma coisa aos homens, suas
criaturas: pede-lhes o coração, o amor, a vontade, com os quais podem servi-
l'O, a fim de obterem a recompensa e a felicidade que quer oferecer-lhes.
Qualquer resistência voluntária a Deus retém a torrente de graça que
deveria, segundo a sua vontade e os seus decretos, derramar-se sobre toda a
criatura. Por tal motivo, não devem evitar-se somente as grandes infracções,
as culpas graves que acontecem raramente de improviso, mas às quais nos
expomos acumulando muitas pequenas culpas, que consideramos coisas de
nada e que cometemos sem qualquer receio, sem darmos atenção.
Uma grande pedra lançada numa nascente límpida que irriga uma pradaria é 172
facilmente notada, porque impede a água de correr, e então preocupamo-nos
imediatamente com remediar o mal. Se se trata apenas de uma pequena
pedra, ela impede pouco o curso da água. Todavia, se diariamente e a toda a
hora se vão juntando outras pequenas pedras e logo depois se agarram a um
pedaço de madeira, a uma raiz ou a um pouco de terra, bem cedo a água já
não poderá correr, e teremos dificuldade até em remover tal obstáculo, tão
96

perigoso e prejudicial, de tal forma aumentou e se emaranhou. Assim


acontece com a graça que, devido a qualquer infracção voluntária, a qualquer
satisfação desordenada das paixões e das inclinações é enfraquecido e
finalmente forçada a falhar por completo. Segue-se inevitavelmente a morte da
alma, a perda da graça, da participação na natureza divina e da união com
Deus.
Nunca um homem caiu de improviso em pecados graves, nunca uma
vocação se perde de forma inopinada. Começa-se por pequenas infidelidades
e acaba-se em quedas graves.
Assim fez Judas, o traidor, do qual o Evangelho conta que se escandalizou
por causa do nardo derramado aos pés de Jesus, cujo preço teria preferido ver
dado aos pobres. Não disse isso porque se importasse com os pobres, mas
porque era ladrão: tinha a bolsa e roubava tudo o que nela metiam. Assim a
inclinação desordenada e culpável que cultivava no seu coração levou-o pouco
a pouco a cometer o crime mais infame, o sacrilégio mais odioso e, em
seguida, a cair no desespero.
Acontece também na vida religiosa que algumas almas continuam a
procurar as satisfações dos sentidos, cultivam o desejo de tudo ver, de tudo
ouvir, de gozar as suas comodidades. De tudo isso resulta, a breve trecho, a
fraqueza na luta e, por fim, a derrota de tais almas e a vitória do inimigo.
Não se diz acaso no Evangelho que ao servo que foi fiei nas pequenas
coisas se confiam as grandes e ele toma parte na alegria do seu senhor (cf. Mt
25, 21)?

§ 11. A regularidade, a exactidão

Se se reflectisse sempre na importância e nas consequências da 173


regularidade e da exactidão, como evitaríamos palavras e passos inúteis que
são ocasiões de culpas e de pecados!
Que acontece muitas vezes? Não se coloca no seu lugar um objecto de que
nos servimos; pede-se emprestado um objecto e não se o restitui; promete-se
uma coisa para um tempo determinado e não se a faz... Porquê? Porque custa
um pequeno sacrifício à natureza e às comodidades de que gostamos. Mas
era precisamente este sacrifício que iria obter uma graça de força para maiores
esforços.
A primeira graça concedida para uma renúncia ou para o exercício de uma
virtude, uma vez recusada, deixa muito a temer para uma outra ocasião,
porventura mais difícil.
Não é raro que o bom ou mau resultado, o progresso ou o retrocesso no 174
bem de um dia inteiro e mesmo de toda a vida estejam dependentes de certas
graças que pareciam insignificantes.
Assim, por exemplo: o levantar-se ao primeiro toque da campainha.
Começa-se por condescender com a natureza e está perdida a primeira graça
do dia. Pouco depois, apresenta-se alguma outra oportunidade de vitória
sobre si mesmo e já custa muito mais fazer o esforço, preferir a vontade alheia
à própria. Sucedem-se assim uma segunda, uma terceira, e inúmeras outras
97

infidelidades.
Encontramo-nos, então, frios e sem fervor na oração e na meditação; fracos
e relaxados em toda a boa acção que exija esforço e sacrifício. Admiramo-nos
e entristecemo-nos, por vezes, sem querermos reconhecer que a causa está
em nós. Daí provêm, então, a tibieza, na qual se cai, a distracção, a
dissipação, da qual já não conseguimos libertar-nos ao longo do dia. Mesmo
quando os sentidos externos são obrigados a conter-se nem por isso o
coração, o espírito e a imaginação estão mais recolhidos.
A morte subiu pelas nossas janelas, diz o profeta (Jer 9, 21). Sim, pelas
janelas escancaradas dos sentidos entra a morte na alma. A princípio
permitimo-nos talvez apenas uma palavra, um olhar, mas raramente nos
ficamos por aí, se não nos apressamos a reconhecer humildemente a nossa
falta, a confessá-la, a repará-la. Neste caso, então, o bem resultante é
superior ao mal. Se o mal é imediatamente descoberto, e se recorremos aos
meios para combatê-lo, o perigo é afastado.
Há também uma exactidão que não é pura, que não provém de uma boa 175
intenção e que não tem senão a aparência exterior da ordem e da fidelidade.
Se alguém, por exemplo, cede à tentação de ficar mais tempo na cama e de
satisfazer a sua sensualidade e, apesar disso, sabe arranjar maneira de chegar
pontualmente, com os outros, à oração comunitária, para não parecer irregular,
claro que obedece apenas exteriormente aos seus superiores e às Regras.
Não quer passar por humilhações nem perder a estima geral; quer passar por
virtuoso e mostrar-se recolhido, edificante, amigo da ordem; mas uma
semelhante regularidade não tem mérito nem duração. Não estando baseada
em motivos sobrenaturais, não pode proporcionar a paz e a alegria do coração
nem aumentar os méritos e a graça.
A esses dirá Nosso Senhor: lde embora, já recebesses a vossa recompensa.
Não vos conheço! (cf. Mt 6, 2; 25, 12).
Oh! como estas virtudes tão pequenas na aparência contribuem para o 176
aumento da caridade, do respeito, da estima, da confiança e da edificação; e
para a conservação da paz do coração e da paz para com o próximo!
É uma grande virtude comportar-se sempre de modo a não constituir um
peso para o próximo. Tem-se então oportunidade de praticar a caridade, a
humildade, a obediência. Deus permite que se cometa alguma omissão,
alguma falta de atenção, mas é preciso que não sejam a leviandade, a
preguiça, a inveja ou outro defeito a sua causa. A confiança e a estima
recíproca dependem muito de tudo isto.
A exactidão, a observância conscienciosa, mesmo das mais pequenas 177
regras, é que lhes confere pureza e eficácia. E também um apoio e um alívio
na responsabilidade tão pesada dos superiores. Quando os superiores,
solicitados pelo dever de orientar e de corrigir, prevêem que as suas
prescrições e exortações não serão observadas ou serão observadas
imperfeitamente, a sua situação torna-se penosa. Sentem o dever de manter a
ordem, e encontram pela frente a resistência dos seus religiosos.
Têm a temer, por um lado, o castigo e a justa indignação de Deus e, por
outro, o descontentamento, as murmurações, as queixas daqueles que lhes
98

estão confiados e dos quais deverão também um dia dar contas a Deus. De
tais religiosos não se podem esperar no futuro grandes sacrifícios e uma séria
ajuda nas obras, se não demonstram saber aplicar-se conscienciosamente às
pequenas coisas e aceitar os pequenos sacrifícios. Com efeito, só aquele que
é fiei e constante nas pequenas coisas saberá sê-lo também nas grandes.
Quem não aprendeu a submeter-se e a dominar-se nas coisas de menor
importância, como pode enganar-se a si e aos outros, julgando ser capaz de o
fazer nas grandes e difíceis?
Quantas vezes não se ouve dizer com mágoa que o fervor e a coragem dos 178
primeiros anos, dos anos de noviciado se desvaneceram; que a alegria e o
gosto pelas coisas espirituais e pelo serviço divino, as luzes, as graças e as
consolações se perderam!
No que respeita às consolações sensíveis é preciso saber que às crianças
mais crescidas se retiram as guloseimas, os alimentos delicados e ligeiros,
para dar-lhes alimentos mais fortificantes e nutritivos. No que respeita ao
fervor, à coragem, ao amor e ao cumprimento dos deveres do próprio estado,
se vêm a esmorecer, é porque muitas vezes se deixou de meter lenha no fogo
do fervor. Haverá então razão para admirar-se se brilha com menos
intensidade ou se chega mesmo a extinguir-se de todo? Só a lenha da
renúncia a si próprio, da mortificação, do sacrifício, a lenha da cruz podem
alimentar e manter o fogo do amor divino, a chama da graça para o exercício
das virtudes e para o cumprimento dos deveres.
Quando somos um pouco mais idosos, cremos estar autorizados a nos 179
permitirmos excepções e a nos afastarmos da exactidão nas pequenas coisas,
que deixamos para os principiantes e noviços. Esquecemos que a ninguém,
grande ou pequeno, mestre ou discípulo, superior ou inferior, é permitido furtar-
se às prescrições, aos usos, às regras do Instituto, sem nos privarmos das
graças que lhes estão inerentes. Esquecemo-nos de que todos devem praticar
a fidelidade, o zelo, o fervor, a observância conscienciosa das Regras, cada
qual segundo a sua situação, as suas faculdades, as suas graças e os talentos
que recebeu, e que frequentemente um só religioso é capaz de impedir as
graças do céu ou de afastá-las da casa e da comunidade.
A exactidão e a ordem favorecem não só o bem espiritual de cada um dos
membros da comunidade e da própria comunidade, mas também o bem
temporal e físico. E, ainda que este seja secundário, contribui todavia para o
bem geral e cresce também a sua influência sobre as forças e faculdades
espirituais.
Tanto para o bem material, como para o bem espiritual, é preciso observar a
regularidade, obedecer à chamada da campainha, à voz dos superiores, a
todas as prescrições das Regras. Quer se trate da oração ou do recreio, da
mesa ou da capela, do trabalho ou do descanso, Deus quer, Deus chama; e
isso deve bastar para levar a renunciar à própria vontade, ao capricho e às
inclinações pessoais e seguir a voz de Deus com alegria, fervor e amor.
99

§ 12. A recta intenção

O motivo da regularidade e da exactidão deve ser o amor a Cristo e o desejo 180


de progresso na virtude e não a paixão ou o hábito. Quando esta fidelidade e
esta delicadeza de consciência têm por móbil uma intenção pura e nobre,
constituem uma fonte de abundantes favores divinos e de grandes graças.
É um acto contínuo de virtude. Mantém-se assim a alma na união constante
com Deus e na conformidade com o seu beneplácito. A graça actual aumenta
constantemente e a graça santificante consolida-se e fortifica-se.
É a condição essencial para que as nossas acções, por mais pequenas que
sejam, se tornem boas e meritórias. Esta pureza de intenção é para a acção o
que a raiz é para a árvore, o que a alma é para o corpo. Cortai a raiz: a árvore
morre; sem a alma o corpo não passa de um cadáver. O mesmo acontece
com as nossas acções; sem a pureza de intenção são vãos os nossos
esforços; as nossas acções não são mais do que ramos secos em que já não
circula a seiva que lhes dá a vida; são obras mortas, dado que lhes falta a
intenção que é a sua alma e vida.
A intenção mais nobre e mais santa é o amor de Deus e de Jesus. É preciso 181
fazer tudo por Ele, com Ele e n'Ele: Per ipsum, cum ipso et in ipso.
Por Ele: para glorificá- l'O, dar-Lhe graças por todos os benefícios, para
reparar os nossos pecados, para ajudá- l'O a salvar as almas com as nossas
orações e sacrifícios.
Com Ele: em união com Ele e na sua dependência, no seu pensamento,
lembrança e amor, abandonando-nos nas mãos do artífice, como os membros
que não têm vida nem movimento, a não ser através da cabeça, deixando-nos
conduzir pelas suas inspirações e pela sua graça e não pela nossa vontade.
N'Ele: à sua imitação, meditando nos seus mistérios, a fim de reproduzir as
suas disposições e as suas virtudes, considerando como Jesus agia e falava,
como tratava o Pai com honra, o próximo com caridade, o mundo com
indiferença; nas suas disposições de humildade, de mortificação, de
recolhimento, de amor e de sacrifício.
Esta virtude é mais preciosa e meritória, precisamente porque não faz 182
alarde. Pratica-se com silêncio e modéstia. Por isso mesmo é menos perigosa,
está menos exposta ao perigo da complacência, da estima pessoal que leva ao
orgulho e às quedas graves por causa das fraquezas naturais das quais não
nos precavemos.
Esta virtude é ainda uma fonte de paz interior e exterior. Com efeito que é
que melhor proporciona a tranquilidade do coração, a paz com Deus, com o
próximo e conosco mesmos do que o sentimento íntimo do dever cumprido
consoante as próprias forças? Deus é um Deus de paz, o Princípe da paz, que
Se compraz num coração que ama a paz, a justiça e a ordem.
Foram esta fidelidade e este amor à ordem e à regularidade que elevaram S.
João Berchmans e tantos outros santos a uma grande glória no céu, sem que
tenham praticado feitos vistosos ou realizado grandes obras segundo o mundo.
O coração com o seu amor, a intenção e a vontade é que têm valor aos olhos
de Deus. E é deles que depende a recompensa.
100

O esposo diz à esposa no Cântico dos Cânticos: Feriste o meu coração com 183
um olhar, com um simples cabelo, minha irmã, minha amiga, minha esposa (cf.
Cant. 4, 9). O olho é um órgão importante, o cabelo não tem valor; mas o
esposo coloca-os no mesmo plano. Quer com isto dizer que uma obra
pequena ou grande, feita por seu amor fere-O no coração com o amor de
correspondência. De igual modo, as omissões, a negligência tanto nas
pequenas como nas grandes coisas, ofendem o esposo e ferem o seu coração
com a seta dolorosa da ingratidão, da infidelidade e do desamor.
Aquele que ama deveras não deixa passar uma única oportunidade de
mostrar o seu apego ao objecto do seu amor. E quanto mais frequentes forem
tais ocasiões, mais feliz se sentirá. Onde estiver o vosso tesouro aí estará
também o vosso coração (cf. Mt 6, 21), a vossa atenção, a vossa inclinação, o
vosso amor.
E aquilo que se faz com amor e por amor faz-se sempre bem e tem grande
valor, ainda que seja insignificante.
Ao coração que ama de verdade não lhe basta aproveitar com alegria todas
as ocasiões que se lhe deparam para agradar ao objecto do seu amor e ser-lhe
útil, mas mostra-se também engenhoso no modo como sabe procurar tais
ocasiões. E por mais pequena que seja a ocasião, ela serve-lhe sempre para
demonstrar quanto, com que atenção e com que ternura o ama.
Com efeito, sentimo-nos mais comovidos e compensados pela
correspondência de amor, por muitas provas de dedicação, pequenas mas
contínuas, dadas a cada instante e em toda a parte, do que por grandes
manifestações que se repetem apenas de longe a longe. Quem dá sempre e
em todo o tempo demonstra mais abundantemente a sua benevolência e a sua
bondade, do que aquele que dá de tempos a tempos uma soma importante.

§ 13. O bom exemplo

Cabe sobretudo aos superiores e aos mais idosos o dever de dar o exemplo 184
da regularidade e da pontualidade. Quanto mais uma pessoa for elevada em
dignidade ou amadurecido pela idade, mais atrai os olhares e a atenção dos
demais. Se bem que não seja da competência dos subordinados julgar ou
discutir a ordem recebida, não há dúvida de que, se o exemplo estiver unido à
ordem que se dá, os frutos serão maiores.
É precisamente a esta falta de edificação que se devem atribuir as faltas de
respeito e de obediência dos inferiores. Claro que há casos frequentes em que
os Superiores e outros religiosos, por motivos dos seus cargos, da idade ou
das circunstâncias, não podem ser os primeiros na pontualidade, como tanto
desejariam; mas em tais casos todos o sabem. O que não se deve é cair na
negligência habitual.
Há muitos casos em que os Superiores, apesar dos seus esforços, de todo 185
o zelo e canseiras que têm, são criticados, pouco estimados e tratados sem o
devido respeito, e isso muitas vezes precisamente devido ao seu zelo em
manterem a disciplina e a ordem, porque o seu exemplo constitui uma
repreensão, uma tácita lição contra a tibieza e leviandade no serviço de Deus.
101

Todavia, nem por isso devem calar-se ou deixar de cumprir o seu dever. Terão
de suportar os seus sofrimentos em espírito de reparação e de expiação, e
entregar-se a Deus que perscruta o coração e os rins (cf. SI 7, 10) e que
ajudará no momento oportuno.
Tal como se deve aceitar e escutar com respeito toda a palavra saída da
boca dos Superiores, também estes devem ter o cuidado e preocupação de
serem sempre considerados como pessoas que falam em nome de Deus e
estimados como tais. Não façam promessas, por mais pequenas que sejam,
se não têm intenção de as manter, caso contrário os religiosos perderão a
estima e a confiança necessárias para serem verdadeiramente obedientes.
Acontece, por vezes, que, mudando as circunstâncias, se deve mudar aquilo
que se prometeu. Em tal caso, os religiosos farão exercício de renúncia e de
abnegação.

§ 14. A perseverança

Àqueles a quem Nosso Senhor dá muito, também, pede muito. Uma 186
vocação privilegiada exige naturalmente uma grande fidelidade.
A indiferença e a ingratidão das almas privilegiadas ofendem mais ao
Senhor do que os pecados das almas vulgares. Nosso Senhor é paciente e
misericordioso. Suporta por algum tempo as almas infiéis à sua vocação, as
almas que abusam das graças, mas depois acaba por rejeitá-las.
Uma alma caminha para a perdição, quando falta à união e franqueza para
com os seus superiores. Em geral, o pior sinal de uma consciência que está a
corromper-se é precisamente a falta de abertura para com aqueles que nela
deveriam poder ler como num livro aberto. Isto é particularmente verdadeiro
nesta nossa obra, em que a união e a confiança são muito especialmente
exigidas pelo autêntico espírito do Sagrado Coração de Jesus.
A dissimulação, a tibieza, a desobediência põem em perigo a vocação.
Numa obra totalmente dedicada ao Coração de Jesus e à reparação, as almas
que vivem no pecado ou mesmo numa vida meramente natural e tíbia não têm
lugar. Ainda que os Superiores as suportem, Nosso Senhor permitirá
circunstâncias que as levarão a desistir ou que exigirão o seu afastamento.
Nosso Senhor quer purificar a sua eira e eliminar a cizânia.

§ 15. Abnegação, desapego e renúncia

Para pertencer a Jesus Cristo, não basta morrer para a vida dos sentidos 187
pela prática de uma generosa e contínua mortificação; é preciso também
morrer para si mesmo pela abnegação interior. É esta a maior e a mais
comum ocupação da vida religiosa: Se alguém quiser vir após Mim - diz Jesus
Cristo - renegue-se a si mesmo (Mt 16, 24).
A mortificação propriamente dita exerce-se mais precisamente sobre o
corpo; a abnegação sobre o espírito, a vontade e o coração.
O desapego e a renúncia são condições indispensáveis para a união com
Nosso Senhor. Se o coração é dominado por algum apego a si próprio ou às
102

criaturas, Nosso Senhor não encontra nele lugar. Estes apegos são inúmeros:
é a estima de nós próprios, é a nossa própria vontade, são as nossas
comodidades, é a sensualidade, são as amizades naturais, é a família.
O primeiro e melhor remédio é procurar apegar-se a Nosso Senhor, tendo
sempre em consideração a sua amabilidade e bondade. O desprendimento de
nós e das coisas é então uma consequência espontânea.
Basta sondarmos o nosso coração, para nos convencermos de que há dois
princípios diferentes que actuam em nós: a graça e a natureza.
As inspirações da graça vêm de Deus, as da natureza procedem do nosso
íntimo viciado e corrompido. Temos que combater a natureza com as suas
inclinações perversas, a fim de fazermos triunfar em nós a graça. Temos que
despojar-nos do homem velho e revestirmos do novo, de modo a podermos
dizer como S. Paulo: Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim (Gal 2,
20).
Mas em quê e de que maneira o religioso do Coração de Jesus praticará 188
esta renúncia, esta morte para si mesmo? Se ama sinceramente a Nosso
Senhor, o Espírito Santo sugerir-lho-á, a graça far-lho-á sentir com seus toques
secretos.
1º Morrer para o próprio espírito: pensamentos, pontos de vista, mudanças
de opinião, reflexões inúteis.
2º Morrer para o próprio coração: desejos, afectos, apegos demasiado
naturais.
3º Morrer para a própria vontade: vivacidade, indocilidade, resistências,
repugnâncias, gostos, descontentamentos, delicadezas espirituais, satisfações,
procura de si próprio.
4º Morrer também, na medida do possível, para as consolações da virtude,
para a felicidade que se sente no serviço de Deus, e que é o último objecto de
que nos desprendemos.
Ao religioso o desprendimento é facilitado pela Regra e pela vida
comunitária. Todavia, a natureza procura sempre retomar o seu domínio.
Importa sobretudo que o religioso evite as relações demasiado naturais com a
família. Reze, sim, pelos pais, mas não procure férias, visitas ou estadias
prolongadas junto da família, a não ser por extrema necessidade. Nosso
Senhor como que tem ciúmes dos nossos corações, do nosso tempo, da nossa
solicitude.
É para esta perfeição de renúncia que devem tender os nossos sacerdotes,
para serem dignas vítimas do Sagrado Coração de Jesus. Porventura não
renunciou livremente este Coração adorável, aqui na terra, às supremas
consolações que Lhe advinham por direito da sua união hipostática com a
divindade? Eis o triunfo do puro amor.

§ 16. O recolhimento

O recolhimento é uma condição necessária para a fé viva, a confiança e o 189


amor. Devemos fixar o olhar interior da nossa alma em Jesus. Devemos vê-l'0
em toda a parte e sempre. Ele espera de nós amor, consolação, reparação.
103

Nada disto era esquecido um só instante em Nazaré e em Betânia. Jesus quer


de nós principalmente uma vida escondida, silenciosa, amorosa.
Devemos ir o menos possível para o meio dos homens, a não ser que o
exijam os deveres do nosso estado ou o zelo. Evitemos as leituras e as
conversas inúteis.
Por ocasião das festas litúrgicas, temamos perder, por causa da distracção,
as graças recebidas. Por vezes, o espírito do mundo conquistou, neste
aspecto, o clero.
Julgamos poder permitir-nos, durante as festas religiosas ou no dia seguinte,
satisfações exageradas, e assim perdemos todo o fruto espiritual das mesmas.
Nosso Senhor quer um lugar de consolação e de repouso nos nossos
santuários, nas nossas casas, nos nossos corações. Para isso é indispensável
que a paz e o recolhimento reinem entre nós com a vida interior.

§ 17. Fidelidade à graça e zelo pela própria santificarão

Foi a correspondência à graça divina que fez os Santos. A correspondência 190


à graça e a conformidade com a vontade divina elevaram-nos à glória e à
alegria no reino dos céus. Embora o seu modo de viver, as suas obras e
sofrimentos, as suas lutas e vitórias tenham sido muito diferentes, tudo nas
suas vidas, se passou de acordo com a vontade divina e em correspondência
às graças recebidas. Tornaram-se mais santos e mais perfeitos precisamente
na medida da sua correspondência e da sua fidelidade.
Cada um deles compreendia no seu interior e pela voz dos seus superiores
o que Deus lhes pedia. Se a sua vocação e missão eram extraordinárias, as
graças e os meios também o eram.
A quem muito foi dado, muito será exigido (Lc 12, 48).
A inspiração dos seus actos de virtude, das suas acções heróicas, não vem
da natureza, nem do mundo, nem do demónio, mas do Espírito de Deus. Foi a
este impulso, a estas inspirações, ao sopro do Espírito Santo que deram
ouvidos. Foi nessa fonte que adquiriram as luzes necessárias, tanto para as
obras como para a sua santificarão. Voluntas Dei, sanctificatio vestra: Esta é a
vontade de Deus, a vossa santificação (1Tes 4, 3). Os superiores, em
particular, devem velar de modo a não recorrer senão a esta fonte para as
suas decisões e medidas a tomar.
A missão de reparadores supõe nos membros do Instituto a obrigação de 191
tender a uma santidade pouco comum. Devem, tanto quanto puderem, com o
auxílio da graça, reproduzir no seu coração a santidade do Coração de Jesus.
Esforçar-se-ão, portanto, acima de tudo, por se manterem numa grande pureza
de coração, evitando não somente as culpas graves, mas também toda a culpa
voluntária, sobretudo as que resultam do hábito.
Esta é a primeira condição para que sejam vítimas do Coração de Jesus,
Hóstia pura, santa e sem mancha (cf. Rom 12, 1; Ex 12, 5).
Aplicar-se-ão a todos os exercícios de piedade e às práticas que lhes são
próprias, no espírito de amor e de imolação.
Nada descurarão daquilo que os possa conduzir à perfeição religiosa,
104

especialmente pela observância das nossas Regras.


Propor-se-ão, com sinceridade, agradar a Deus em todas as suas acções, e
fá-lo-ão por amor de Deus e em acção de graças pelos seus benefícios, mais
do que por temor dos castigos ou pela esperança de recompensa, se bem que
tais motivos possam também servir de ajuda.

§ 18. A mortificação

Per crucem redemisti mundum: pela cruz redimiste o mundo. A cruz é o 192
instrumento da salvação. Foi o meio de reparação escolhido por Jesus.
Mediante os sofrimentos da sua infância, Jesus foi, por assim dizer, instruído à
sombra da cruz.
Quais são os materiais do edifício da reparação? A cruz, os cravos, a lança,
os espinhos, os flagelos, tudo cimentado pelo Sangue de Jesus, pelas suas
lágrimas, pelos escarros dos algozes.
Para a Obra e para cada um de nós, a cruz, a mortificação, o sacrifício são
imprescindíveis. Neles se encontram a vida e a fonte de toda a graça e
progresso.
A cruz é um dom de Jesus. Se não houvesse habitualmente na Obra
alguma alma sofredora e crucificada, como seria ela purificada, como poderia
progredir?
S. Paulo dizia: Sofro com Jesus pela sua Igreja (cf. Col 1, 24).
Carreguemos generosamente a cruz da paciência, do abandono, da
mortificação em prol da Obra do Coração de Jesus.
Mas não só o abandono; também faz falta a mortificação voluntária. O
nosso Corpo é, por natureza, desregrado e tende obstinadamente para a
satisfação dos seus cegos instintos, procura o bem sensível, o seu bem. É um
animal que se domina só com pancadas: Castigo corpus meum: Trato
duramente o meu corpo (1 Cor 9, 27). É preciso mantê-lo à força sob o
domínio do dever, da vontade e da graça de Deus: Et in servitutem redigo: e
mantenho-o em servidão (lbid.).
Os Sacerdotes do Coração de Jesus devem ser animados pelo espírito de
mortificação. Não têm muitas penitências impostas pela Regra, mas
acrescentam-lhes, sob a direcção da obediência, as que sejam proveitosas
para o seu progresso espiritual. Observam fielmente as Constituições, o
"Directório" e as regras de modéstia, em espírito de mortificação e sempre
segundo o espírito de amor, de reparação e de imolação.

§ 19. O abandono
e a conformidade com a vontade de Deus

Existe uma arte para ser vítima do divino Coração. É esta arte que devemos 193
aprender e nela progredir sem cessar. O seu segredo é a conformidade com a
vontade de Deus, o abandono e a resignação com esta. santa vontade.
Para ser vítima não se requer nem saúde nem força; o que importa é a
renúncia, o abandono, a aceitação da vontade divina, quer proporcione alegria,
105

quer peça sofrimento. Muitas vezes pode o Senhor comprazer-Se em pedir-


nos apenas o sacrifício do Moriah: apresentar-nos-á alguma cruz pesada, que
tornará leve mal a tenhamos aceitado.
Nosso Senhor ensina-nos o abandono na sua Paixão, quando Se cala e
aceita todos os insultos. Consuma o seu abandono, quando entrega o espírito
nas mãos do Pai.
É próprio de uma vítima entregar-se inteiramente, sem reservas, sem
resistência nem ansiedade à vontade d'Aquele a Quem se ofereceu.
O abandono é como que a síntese das virtudes da fé, obediência, confiança 194
e amor. Aquele que crê na Providência de Deus, que se entrega à sua
bondade, que O ama e obedece a todas as manifestações da sua vontade,
esse pratica a virtude do abandono.
É este o centro da vida de Nosso Senhor, como Ele próprio diz de Si
mesmo, desde as primeiras palavras:
Eis que Eu venho, ó Deus, para fazer a tua vontade (Heb 10, 7), até o
derradeiro brado: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito (Lc 23, 46).
Era esta a disposição do Sagrado Coração de Maria, sempre pronta a
exclamar: Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra (Lc 1,
38).
Praticamos assim o verdadeiro espírito cristão, tal como o exprimimos no
"Pai-Nosso"; mas esta é, sobretudo, a disposição essencial de uma vítima.
A mortificação sacrifica a Deus o nosso corpo; a abnegação sacrifica-Lhe o
nosso espírito e a nossa vontade; a conformidade com a vontade divina, que
gera o abandono, sacrifica a Deus toda a nossa pessoa em todos os instantes
da vida e faz da nossa morte a consumação do sacrifício.

§ 20. A alegria nas provações e o amor à cruz

Alegrai-vos no Senhor (Fil 4, 4). Estas palavras podem aplicar-se a nós 195
mesmos nos tempos de provação. As provações e os sofrimentos não são
acaso motivo de santa alegria? São como passos que nos conduzem à meta.
Aproximam-nos cada vez mais do Coração do nosso Deus e tornam-nos mais
semelhantes a Ele. São inevitáveis, indispensáveis: é preciso que aconteçam.
Não deveríamos nós regozijar-nos ao ver chegar o momento que nos traz
tantas graças e favores?
S. Paulo diz: Que a vossa mansidão seja notória a todos os homens (Fil 4,
5). Mas, para nós, é preciso acrescentar: a vossa paciência, a vossa
generosidade, o vosso amor ao sofrimento e ao sacrifício, todas as virtudes
que deveriam caracterizar as vítimas do Coração de Jesus. Perseveremos na
oração, no louvor, na acção de graças, na paz de Deus, essa paz que
ultrapassa todo o sentimento e que é um fruto da abnegação e do sacrifício,
paz que o mundo não conhece, porque não ama a cruz.
A cruz é boa para nós, porque nos prepara o céu, cêntuplo de alegria na
terra e a realização dos nossos melhores desejos.
A cruz é boa para os nossos irmãos. É pela cruz que melhor podemos
cooperar na obra da redenção.
106

A cruz é boa para Deus, porque carregando-a damos-Lhe prova do nosso


amor, e, porque, dando-no-la, Ele oferece-nos também a nós o que ofereceu
ao Salvador à sua Mãe.
Façamos actos de fé sobre os benefícios da cruz, exercitando-nos em amá-
la, não com amor sensível, mas por um acto de vontade que afirma: "Senhor,
eu amo a cruz, porque Vós a amastes e porque me ajuda a contribuir para o
advento do vosso Reino".

§ 21. A união a Nosso Senhor e a vida Interior

A vocação dos Sacerdotes do Coração de Jesus é inconcebível sem a vida 196


interior. Os actos frequentes de amor, de desagravo, de reparação, de fé viva
e de abandono, que são a vida de uma vítima do Coração de Jesus, só podem
encontrar-se numa vida realmente interior, na união habitual com Nosso
Senhor e na permanência na sua santa presença.
A característica própria da vida interior dos Sacerdotes do Coração de Jesus
é a união habitual ao divino Coração. Com Ele e n'Ele devem amar, agir,
sofrer, sacrificar-se. Devem esforçar-se por viver a vida deste divino Coração.
Ele é o guia, o centro, o lar e o repouso da sua vida. Com Ele e n'Ele devem
levar aquela vida de amor, de reparação e de imolação que é o objectivo da
sua vocação.
Diversas práticas mantêm durante o dia e reavivam essa união nos seus 197
corações.
Esta vida interior, através da união dos seus corações com o Coração de
Jesus, é condição essencial para que cada uma das suas acções seja
verdadeiramente reparadora. Será por meio dela que farão das suas acções
outros tantos actos de amor, de desagravo, de reparação, de contrição, de
humildade, de morte para si mesmos.
A vida interior cultiva-se por meio do silêncio, do recolhimento e do espírito
de oração. É protegida pelas Regras, que submetem a um vigilante controlo as
relações externas, a correspondência epistolar e as visitas.
Os Sacerdotes do Coração de Jesus terão grande apreço por estas
prescrições salutares.

§ 22. A devoção à Eucaristia

A Eucaristia diz-nos todo o amor de Nosso Senhor para conosco. Jesus 198
encontra-se presente como vítima, como amigo, como benfeitor, como
consolador. Está também como nosso Rei e convida-nos a irmos até Ele:
venite ad me omnes: Vinde a Mim, todos vós (Mt 11, 28).
Deseja entregar-Se a nós: Desejei ardentemente comer esta Páscoa
convosco (Lc 22, 15). Na Eucaristia, Jesus está presente com todas as graças
e pede que Lhe permitamos reparti-Ias. Está no seu trono de misericórdia,
espera as nossas homenagens, mas também as nossas orações e súplicas.
A Eucaristia é o mistério do amor.
Se David amava tanto os altares da Antiga Lei, nos quais se imolavam só
107

vítimas carnais, como não devemos nós amar os altares eucarísticos! Passer
invenit sibi domum, altaria tua, Domine virtutum: Até os pássaros encontram
morada... junto dos vossos altares, Senhor dos exércitos (SI 84, 4).
Vamos à Eucaristia com fé, confiança, abandono, amor. Jesus no
tabernáculo é o nosso Deus: adoremo- l'O. É o nosso Pai, nosso amigo:
amemo- l'O, visitemo- l'O, consultemo- l'O. Vamos a Ele nas nossas dúvidas,
nos nossos temores, nas nossas necessidades. Abandonemo-nos à sua
Providência paternal. Nada nos faltará, se n'Ele depositamos a nossa
confiança.

§ 23. O Zelo

O zelo não é mais do que o florescer da caridade. Amando ardentemente a 199


Nosso Senhor, cultivamos o zelo pela sua casa, pelo seu culto e serviço, o zelo
pelas almas.
O zelo assume formas diversas consoante o espírito e a finalidade de cada
Instituto. O objecto do nosso zelo é o reino do Coração de Jesus. Este reino é
muito vasto; é universal. Mas tem naturalmente exigências especiais e mais
urgentes. Nosso Senhor quer santuários dedicados à reparação, Betânias
onde possa repousar e encontrar amor e consolação, no meio da indiferença
geral e da tibieza até de uma parte do povo eleito.
Devemos desejar tais santuários, como David desejava o templo do Senhor:
Si dedero somnum oculis meis..., donec inveniam locum domino, tabernaculum
Deo Jacob: Não deixarei dormir os meus olhos..., enquanto não encontrar um
lugar para o Senhor, um santuário para o Deus de Jacob (Sl 132, 4-5). A
mínima esperança de ter estes santuários deve encher-nos de alegria: Ecce
audivimus eam in Ephrata: ouvimos dizer que (a arca) estava em Éfrata (Sl
132, 6).
Nas obras de apostolado, devemos preferir as que podem ser mais queridas
ao Coração de Jesus: o serviço dos sacerdotes, a sua formação e santificarão,
a educação das crianças e a dedicação aos operários e aos pobres.
Servimos mais directamente o Senhor, sempre que nos dedicamos àqueles
a respeito dos quais Jesus afirmou: Em verdade vos digo: todas as vezes que
fizestes estas coisas a um só destes meus irmãos mais pequeninos, foi a Mim
que o fizestes (Mt 25, 40).

§ 24. Amor à Igreja

Devemos amar a Igreja e ser-lhe submissos, como filhos. Ela é tão amada 200
pelo Coração de Jesus! Ela é a sua esposa! A sua união é celebrada no
Cântico dos Cânticos. S. João exalta a Igreja no Apocalipse. Foi por ela que o
Senhor deu a vida. Para ela instituiu a Eucaristia.
Jesus vive na Igreja. Deixou-lhe toda a sua autoridade e todas as suas
graças.
Amemo-la em si mesma, no seu chefe visível, nos seus ministros, nos seus
ensinamentos, na sua liturgia, nas suas leis. Veneremo-la como nossa mãe.
108

REGRAS COMUNS
1. As Regras comuns indicam a aplicação das Constituições, nos casos 201
concretos das acções de cada dia.
Tal como as Constituições, as Regras não impõem, por si mesmas, qualquer
obrigação sob pena de pecado. Dizemos por si mesmas, visto que a sua
transgressão raramente é isenta de pecado, quer no que respeita à matéria,
como quando se trata dos votos, quer no que respeita ao motivo da
transgressão, como, por exemplo, o orgulho, a vaidade, a preguiça, o respeito
humano, quer ainda no que respeita às consequências, como o mau exemplo.

2. Uma comunidade fervorosa e regular é um doce espectáculo aos olhos de 202


Deus a Quem honra, dos anjos a quem alegra e dos homens a quem edifica.
Mas este fervor e esta regularidade, que formam o mais belo ornamento de
uma comunidade,.não poderão reinar senão na medida em que as Regras
forem valorizadas e observadas pelos religiosos que a compõem. Eles
deverão, por conseguinte, aplicar-se com zelo à observância fiei e constante
das Regras aqui apresentadas..
E, para começar pela regularidade exterior, que mais directamente promove
a edificação, todos terão na conta de um dever contribuir para ela com os seus
esforços, mediante a pontualidade às práticas comunitárias e a fidelidade na
observância do horário quotidiano estabelecido para cada casa, e que, na
medida do possível, será semelhante ao que aqui apresentamos.

3. HORÁRIO QUOTIDIANO

4.50 h. - Levantar 203


5.00 h. - Angelus - Oração da manhã - Meditação
6.00 h. - Ofício divino: horas menores
6.30 h. - Santa Missa
7.30 h. - Pequeno almoço
11.00 h. - Leitura espiritual para os Professos - Conferência sobre as Regras
para os Noviços e Postulantes
11.45 h. - Exame de consciência particular - Angelus
12.00 h. - Almoço - Visita ao SS. Sacramento - Recreio
13.30 h. - Terço - Vésperas e Completas
15.00 h. - Visita ao SS. Sacramento - Exercícios de devoção - À sexta-feira
Via Sacra
16.00 h. - Matinas e Laudes
19.00 h. - Bênção eucarística
19.30 h. - Jantar - Visita ao SS. Sacramento, Angelus
20.00 h. - Recreio
20.30 h. - Oração da noite - Exame de consciência - Coroa do Sagrado
Coração
21.00 h. - Deitar. Não se pode continuar a pé sem autorização
109

4. EXAME DE CONSCIÊNCIA - MEDITAÇÃO

Utilizem todos, com o maior cuidado, diante de Deus, o tempo que lhes é 204
destinado para fazer o exame de consciência duas vezes ao dia, para a
oração, a meditação e a leitura espiritual.

5. SANTA MISSA

Os nossos religiosos terão como acto principal do dia o Santo Sacrifício da 205
Missa. Os Sacerdotes preparar-se-ão cuidadosamente e, na celebração,
empregarão cerca de meia. hora. É sobretudo na Missa que podem e devem
entrar no espírito de sacrifício e de reparação que é próprio da sua vocação.

6. OFÍCIO DIVINO

Recordem sempre que, depois da Santa Missa, nada têm de mais sagrado 206
do que o Ofício divino. No Noviciado e nas casas onde tal seja possível, recitá-
lo-ão comunitariamente no coro, todo ou em parte.
Recitando-o individualmente, façam-no, tanto quanto possível, perante o SS.
Sacramento, dedicando-lhe todo o tempo necessário, com toda a atenção e
fervor exigidos por este grande acto de oração pública.

7. ADORAÇÃO

Durante o dia, cada qual faça uma meia hora de adoração do Sagrado 207
Coração de Jesus no SS. Sacramento do altar, além da bênção e de outros
eventuais exercícios de piedade.

8. HORA SANTA

Todas as quintas-feiras à noite far-se-á a Hora Santa, recomendada por 208


Nosso Senhor a Santa Margarida Maria. Uma vez por outra, faça-se das onze.
à meia noite.
Todos se esforçarão, durante esta hora, por compenetrar-se dos
sentimentos que Nosso Senhor manifestou à sua serva.

9. RETIRO MENSAL

A primeira sexta-feira de cada mês, consagrada de modo especial ao Coração 209


de Jesus, nesse dia exposto solenemente no SS. Sacramento, será um dia de
recolecção ou de retiro particular, que todos procurarão aproveitar para o seu
progresso espiritual. Far-se-á o acto de preparação para a morte. Nos
Escolasticados, o retiro mensal pode ser transferido para o domingo.
110

10. RETIRO ANUAL

Todos farão anualmente um retiro de oito dias. 210

11. SILÊNCIO

Fora dos tempos fixados para o recreio, todos farão o possível por observar 211
o silêncio em todos os ambientes, mas sobretudo na capela, na sacristia, no
refeitório, no dormitório, nos corredores.
Observarão esta regra ainda mais fielmente durante o grande silêncio, isto é,
desde as orações da noite até depois da meditação da manhã.
Nos casos em que haja necessidade fale-se em voz baixa e com poucas
palavras.

12. CONVERSAS

Todos, mesmo durante os recreios, falem com tom de voz moderado como 212
convém a religiosos. Evitem as discussões. Se alguém é de parecer diferente
dos outros e julga dever manifestá-lo, exponha as suas razões com modéstia e
caridade, no único intuito de tornar conhecida a verdade e não para prevalecer
sobre os demais.
A caridade seja absolutamente observada nas palavras. De modo particular,
nunca se censurem os sacerdotes seculares e as outras Congregações.
Evitem, como causa de ruína, toda e qualquer palavra de crítica contra os
nossos.

13. CONFISSÃO

A confissão semanal aos confessores estabelecidos é de regra. Não é 213


permitido procurar um confessor estranho sem autorização.

14. HOSPITALIDADE

Cada casa praticará a hospitalidade, particularmente para com o clero. 214


Todavia, ter-se-á o cuidado de não convidar.com demasiada facilidade
estranhos, sobretudo leigos, para a mesa comum.

15. Com as pessoas de fora não se fale daquilo que se faz ou deve fazer em 215
casa, a não ser que se saiba que os superiores o aprovam.
Sem o conhecimento dos superiores não se tragam cartas nem recados de
fora para alguém de casa, nem vice-versa.
Procurem-se aproveitar as relações com as pessoas de fora para as edificar
em Nosso Senhor e levá-las à piedade e às boas obras.
111

16. LIMPEZA

Todos tenham cuidado com a limpeza tanto das suas pessoas como dos 216
seus quartos. Faça cada um a sua cama e arrume o resto no tempo
estabelecido. Varram os seus quartos, excepto aqueles que o Superior julgar
oportuno dispensar, por motivo das suas enfermidades, ou das suas
ocupações mais importantes.

17. POBREZA

Todos se aplicarão à perfeita observância do voto de pobreza, recordando 217


que, por este voto, se privaram do direito de agir como proprietários. Constitui
violação grave contra o voto de pobreza a quantidade suficiente para que se
considere grave um pecado contra o sétimo mandamento.

18. QUARTO

A pobreza deve reinar também nos quartos, cujo mobiliário será simples. A 218
cama terá um único colchão de zostera.
Conservarão no quarto apenas os livros necessários para o uso diário.

19. DINHEIRO

Os religiosos não devem ter dinheiro em seu poder, a não ser que a tal 219
sejam obrigados em razão do seu ofício.

20. CASTIDADE - MODÉSTIA

É necessário guardar com cuidado a modéstia e a gravidade, que são a 220


defesa da castidade. Assim, ninguém toque nos outros, nem mesmo por
brincadeira.
Esta regra aplica-se a todas as relações com os alunos e deve ser
observada com maior atenção pelos professores e assistentes, dado que estão
mais expostos a violá-la e porque as faltas seriam mais graves em si mesmas
e nas suas consequências.

21. Que todos observem uma grande modéstia, mesmo nos seus quartos. 221
Esforcem-se por fazer reviver na sua pessoa o belo modelo que é proposto nas
regras de modéstia de S. lnácio anexas a esta Regra.

22. MORTIFICAÇÃO

Ninguém coma nem beba fora das refeições. Quanto aos jejuns e
abstinências, além de observar tudo o que é prescrito pela Santa Igreja, o
Instituto segue ainda as suas regras especiais.
Quem adoecer deve avisar o enfermeiro e o Superior, os quais, por sua vez,
112

têm o dever de procurar-lhe os cuidados necessários. Mas não deve, por sua
iniciativa, dirigir-se a um médico nem procurar medicamentos.

23. OBEDIÊNCIA

Ao som da campainha e às horas marcadas, dirijam-se todos imediatamente 223


aonde são chamados e esforcem-se por contribuir para a edificação que
resulta desta perfeita regularidade.

24. Ninguém se informe com curiosidade acerca daquilo que os Superiores 224
deverão fazer na administração; mas cada um, ocupando-se de si mesmo e do
seu cargo, espere das mãos de Deus tudo o que for estabelecido a seu
respeito pelos Superiores.

25. RESPEITO PARA COM OS SUPERIORES

Cada qual terá o cuidado de dar aos Superiores, em todas as circunstâncias, 225
provas sinceras do seu respeito e da sua dependência, cumprimentando-os
quando os encontra, falando-lhes com grande respeito, escutando-os com
humildade e sem interrompê-los, sobretudo quando for repreendido.

26. RELAÇÕES RECÍPROCAS

Um religioso não deve entrar no quarto de outro sem uma autorização geral 226
ou particular do Superior; a porta ficará entre-aberta enquanto estiverem
juntos.

27. FIDELIDADE NAS TAREFAS

Todos atribuam grande importância às tarefas e ofícios que lhes são 227
confiados e desempenhem-nos com constante fidelidade. Habituem-se a
considerar os deveres inerentes às suas funções como uma dívida sagrada e o
zelo em cumprí-los como o mais seguro penhor da sua dedicação ao Instituto.
Apressar-se-ão em instruir-se em tudo quanto se refere ao seu ofício e à
maneira de o desempenhar com perfeição. Terão o cuidado de estar sempre
em dia com as contas, apontamentos ou correspondência, a fim de poderem,
em qualquer altura, transmitir o seu cargo, sem provocar embaraços.

28. RELAÇÕES EXTERIORES

Evite-se pedir conselho a pessoas de fora, como também encarregar-se de 228


alguma tarefa, mesmo piedosa, ou prometer ocupar-se dela, sem licença do
Superior. No tocante a assuntos profanos, será necessário que nos afastemos
ainda mais, pois são estranhos à nossa vocação e muito nocivos às coisas
espirituais.
113

29. Nas relações com as pessoas do mundo, procure-se tratar, com 229
modéstia, doçura e afabilidade, dos assuntos que determinaram a visita.
Não se pode sair de casa sem autorização.

30. CARIDADE - UNIÃO

Esforçar-se-ão todos por manter a caridade e a união dos corações, 230


mediante a afabilidade, a doçura e antecipando-se nas relações recíprocas e
por toda a espécie de serviços que tiverem oportunidade de prestar uns aos
outros.
Deve evitar-se tudo o que seja contrário à união e à caridade, devido às
diferenças de nacionalidade.

31. TENTAÇÕES

Se alguém souber que outro passa por qualquer tentação perigosa, deve 231
prevenir o Superior, a fim de que este possa procurar o remédio conveniente.
Mas é proibido comunicar a outros os defeitos ou as imperfeições de que se
tenha sido testemunha.

32. RECREIOS

Terminada a visita ao SS. Sacramento após o almoço e o jantar, 232


recomende-se cada qual muito especialmente ao Coração de Jesus, a fim de
passar bem o recreio, que é um dos exercícios mais importantes do dia,
durante o qual é fácil cometer muitas faltas, mas é também possível, com a
graça de Deus, praticar muitas virtudes.
Ninguém pode ausentar-se dos recreios a não ser com uma autorização
expressa do Superior que não a concederá senão por motivos razoáveis.
Todos se esforcem por tornar as conversas úteis e agradáveis, banindo toda e
qualquer notícia curiosa e puramente mundana e entretendo-se familiarmente
com assuntos edificantes e convenientes. Esforcem-se também por conter as
pequenas paixões que surgem tão facilmente no coração humano e por manter
a doçura e a paciência para com todos, particularmente para com aqueles
cujas maneiras porventura possam chocar ou desagradar.

33. LEITURA DAS REGRAS

Cada religioso tenha em seu poder estas Regras bem como as do seu ofício 233
e familiarize-se com elas recordando-as, lendo-as ou ouvindo-as ler todos os
meses.

REGRAS DE MODÉSTIA (de S. Inácio)

A modéstia e a humildade, unidas à maturidade religiosa, devem manifestar- 234


se em todas as nossas acções.
114

Não se volte a cabeça com leviandade para todos os lados, mas faça-se-o
com gravidade, quando for necessário. Não sendo necessário, mantenha-se a
direita e um pouco inclinada para a frente, sem incliná-la nem para um lado
nem para outro.
Mantenham-se os olhos ordinariamente baixos, evitando levantá-los
demasiado ou voltá-los para aqui e para ali.
A serenidade exterior do rosto seja um sinal da serenidade interior.
Todo o rosto exprima antes alegria do que tristeza ou qualquer outro
sentimento menos ordenado.
As roupas tragam-se limpas, como convém a religiosos.
As mãos estejam decentemente paradas, a menos que sirvam para segurar
o hábito talar.
Caminhe-se pausadamente, com passo regular e evite-se a precipitação, a
não ser que se verifique uma necessidade urgente. Neste caso, porém, tenha-
se em conta, na medida do possível, a conveniência religiosa.
Enfim, todos os gestos e movimentos sejam bastante ordenados, a fim de a
todos poderem edificar.
Se muitos se encontrarem juntos, caminhem dois a dois ou três a três,
segundo a ordem estabelecido pelo Superior.
Sendo necessário falar, lembrem-se da modéstia e da edificação que devem
dar, quer no que respeita ao assunto das conversas, quer no que respeita ao
modo de exprimir-se e ao tom da voz.
115

APÊNDICES

Avisos e conselhos
do Pe. Dehon
aos seus religiosos
I. A caridade, a cortesia, o bom espírito

1. Pouco tempo antes de morrer, Nosso Senhor quis recomendar com 235
renovada insistência a caridade recíproca aos seus discípulos: Filhinhos, ainda
estou um pouco convosco... Um novo mandamento vos dou: Que vos ameis
uns aos outros, assim como Eu vos amei, vós também vos deveis amar uns
aos outros (Jo 13, 33-35).
Palavras solenes e eficazes, que impregnaram toda a Igreja do espírito de
caridade.
Os Apóstolos estão possuídos deste espírito. S. João exorta-nos à caridade
do modo mais impressionante e comovedor: Caríssimos, amemo-nos uns aos
outros, porque o amor vem de Deus... Nisto consiste o amor: não fomos nós
que amamos a Deus, mas foi Ele que nos amou e enviou o seu Filho como
vítima de expiação pelos nossos pecados. Caríssimos, se Deus nos amou,
também nós devemos amar-nos uns aos outros... Se nos amarmos uns aos
outros, Deus está em nós... Nisto conhecemos que estamos n'Ele e Ele em
nós, porquanto nos deu o seu Espírito (1 Jo 4, 7-13).
S. Pedro dá os mesmos conselhos: mas acima de tudo - diz ele - "ante
omnia" mantende entre vos uma mútua e constante caridade, não só de
passagem, mas sempre: charitatem continuam habentes (1 Ped 4,8).
S. Paulo nunca se cansa de falar do mesmo assunto.
Aos Coríntios escreve: O caminho mais perfeito é o da caridade:
excellentiorem viam (1 Cor 12, 31): a caridade é paciente, afável, benigna (cf. 1
Cor 13, 4). Aos Efésios: Recomendo-vos... que andeis de uma maneira digna
do chamamento que recebestes, com toda a humildade e mansidão, com
paciência, suportando-vos uns aos outros com caridade; solícitos em conservar
a unidade de espírito mediante o vínculo da paz (4, 1-3).
Aos Filipenses: Tomai completa a minha alegria com a união dos vossos
espíritos, com a mesma caridade, com uma só alma e um mesmo sentir (2,2).
Aos Colossenses: Não há mais grego nem judeu... mas Cristo que é tudo
em todos. Revestí-vos, portanto... de sentimentos de misericórdia, de
benignidade, de humildade, de mansidão, de paciência... Mas, acima de tudo,
revesti-vos da caridade que é o vínculo da perfeição (3, 11-12.14).
Tudo o que se encontra no Antigo Testamento - ensina S. Paulo - foi escrito 236
para nossa instrução (cf. 2Tim 3, 16). E que lições tão sábias lá encontramos
sobre a caridade fraterna!
No princípio, há Caim e Abel. Escolhei! Aquele que falta à caridade é
tremendamente amaldiçoado. José é objecto de inveja, criticado e vendido
116

pelos irmãos. Há dois que lhe são um pouco favoráveis: Rúben e Judá.
Rúben, contudo, perderá o direito de primogénito devido a outra falta. Não
soube guardar respeito ao pai. Judá tornar-se-á o chefe da tribo real que nos
virá a dar o Messias.
Sede caridosos entre vós e sereis abençoados!
Da minha parte, posso dizer como Nosso Senhor: o meu tempo está
contado: adhuc modicum vobiscum sum: Ainda estou por pouco tempo
convosco (Jo 7,33). Como Ele, recomendo-vos a caridade, a doçura, a
paciência.

2. Da cortesia cristã fazem parte o respeito e a caridade para com os outros. 237
Exclui toda e qualquer familiaridade vulgar. Devemos considerar todos os
nossos irmãos como se fossem nossos superiores - diz S. Paulo aos Filipenses
(2, 3). É indispensável, portanto, proceder para com eles com toda a
humildade, sem contendas nem pretensões, superiores sibi invicem
arbitrantes: considerando os outros superiores a vós mesmos (Fil 2, 3). Se
devemos considerar os nossos confrades como superiores, é evidente que as
nossas conversas com eles não podem descer à trivialidade das discussões de
colégio ou de caserna. Note-se que em França o tratamento por tu é
intolerável.
S. Pedro dá-nos as regras positivas: Se alguém fala, fale palavras de Deus:
Si quis loquitur, quasi sermones Dei (1 Ped 4, 1 1).
S. Paulo, por sua vez, dá-nos as regras negativas ou proibitivas. Aos
Efésios escreve: A imoralidade e qualquer impureza ou ganância, nem sequer
sejam mencionadas entre vós... ; nem ainda palavras torpes, nem loucas, nem
chocarrices: stultiloquium aut scurrilitas (5, 3-4).
Aos Gálatas: Toda a lei se encerra num só preceito: ‘Amarás ao teu próximo
como a ti mesmo'. Mas, se mutuamente vos mordeis e devorais, vede que não
acabeis por vos destruirdes uns aos outros! Quod si invicem morde et
comeditis, videte ne ab invicem consummamini (5, 14-15).
Que mau hábito têm certos membros das comunidades, procurando sempre
mostrar-se espirituosos à custa dos outros! Frequentemente há um membro
da comunidade que é o objecto comum das brincadeiras e dos gracejos. É
uma verdadeira barbaridade!

3. O bom espírito compreende o respeito para com os que nos são iguais, 238
mas sobretudo para com os Superiores.
Vós formais um único corpo moral - diz S. Paulo aos Efésios: Sois
chamados a viver juntos na caridade, tanto aqui na terra, como no céu (cf. Ef
4, 11-16).
Que horrível figura fazem, na História Sagrada, aqueles que troçam dos
superiores ou que murmuram contra eles! Cam troçou de seu pai: foi
amaldiçoado. Os Israelitas murmuraram contra Moisés: não entraram na Terra
Prometida.
Coré, Dathan e Abiram, sacerdotes, murmuraram contra Aarão: a terra
engoliu-os.
Este pecado atinge directamente Nosso Senhor, porque é como se Lhe
117

fizéssemos a Ele o que fazemos aos superiores.


Sede submissos e obedecei aos que vos guiam diz S. Paulo aos Hebreus -,
pois eles velam pelas vossas almas, das quais terão de dar contas; assim
farão isto com alegria e sem gemidos, o que vos seria pernicioso: Hoc enim
non expedit vobis (Heb 13,17).
Jesus, abrindo o seu Coração a S. Margarida Maria, manifestou-lhe várias 239
vezes a sua indignação contra os que têm mau espírito. Disse-lhe um dia:
"Ouve bem estas palavras da boca da verdade. (É, sem dúvida, um exórdio
solene). Todos os religiosos desunidos e separados dos seus superiores
devem considerar-se como vasos de reprovação, em que todos os bons licores
se corrompem. O divino sol da Justiça, lançando os seus raios sobre tais
almas, opera o mesmo efeito que o Sol ao resplandecer sobre a lama. Elas
são de tal modo rejeitadas pelo meu Coração, que, quanto mais procuram
aproximar-se d'Ele pelos Sacramentos e pela Oração, mais Eu Me afasto delas
pelo horror que por elas sinto. Irão dum inferno para outro, porque foi esta
desunião que já perdeu tantos, dado que o superior está em meu lugar, quer
seja bom, quer seja mau...".
Trata-se aqui, evidentemente, de resistências graves à obediência e de
desunião habitual em relação aos Superiores.
O bom espírito compreende o espírito de corpo, o espírito de família, a
dedicação à Obra em que se entrou. Não somos chamados a uma mortificação
egoísta. Cada Congregação corresponde a uma finalidade providencial, tem a
sua missão a cumprir na Igreja. E é para trabalhar nessa missão que cada um
de nós é chamado.
Santa Margarida Maria nunca deixava de explicar tudo isto às suas noviças: 240
"É preciso, minhas filhas, - dizia-lhes ela - sermos por toda a vida muito
agradecidas pela nossa vocação; é uma graça especial que o Sagrado
Coração do nosso Bom Mestre não concede a todos, e da qual teremos de
prestar contas na hora da morte. Para dardes provas de que amais a vossa
vocação, tendes que ser muito fiéis à prática de todas as nossas santas
regras. Para nós, a voz de Deus encontra-se nas nossas santas Regras.
Alimentai bem com elas os vossos corações. Far-vos-ão entrar na vida
interior, a vida escondida em Deus, onde a cruz é um alimento de perfeição.
Percorrei, portanto, o vosso caminho, que é o da exacta observância dos
vossos deveres religiosos, se desejais que o Sagrado Coração de Jesus vos
reconheça por suas filhas...".
E a querida Santa acrescentava. "Aqui está aquilo que desejo que façais no
presente, se quiserdes que eu, vossa indigna mestra, reconheça que me
tendes amizade. Da minha parte, não duvideis de que vos amo ternamente".
Repito estas mesmas palavras aos meus filhos espirituais, não obstante a
minha indignidade.

II. A ordem e a limpeza

Deus compraz-Se em fazer reinar o simbolismo e a harmonia entre as 241


coisas materiais e as espirituais. A ordem e a beleza da natureza criada são,
para nós, uma revelação da sabedoria e da perfeição do Criador. Também a
118

ordem e o asseio, na vida humana, deixam transparecer as disposições da


alma.
Se algum santo teve a vocação especial de desprezar estas regras da vida
social, foi por excepção e não certamente para ser imitado
Respeitemos a ordem e o asseio nos objectos de culto, nas nossas casas e
nas nossas pessoas.

1. Nos objectos de culto. - A Sagrada Escritura está cheia de ensinamentos 242


a este respeito.
Em que consiste a diferença entre o sacrifício de Caim e o de Abel? Não é,
acaso, nas intenções do coração, no cuidado e na ordem e na escolha das
oferendas?
No Sinai, Deus ordena a Moisés que tire as sandálias, para não levar o pó
do caminho para o lugar da divina aparição.
O Levítico surpreende particularmente nos pormenores e exigências que
determina em ordem à escolha dos sacerdotes, das vítimas, dos instrumentos
do sacrifício. Os preceitos divinos excluem toda a mancha, impureza ou
defeito.
Quantas normas minuciosas devem observar os sacerdotes na preparação
para os sacrifícios! Tudo está previsto: os banhos, as abluções, o uso de
vestes brancas e escolhidas, vestes interiores e exteriores, a abstinência de
toda a contaminação que poderia ser contraída como consequência de
relações mundanas.
E para os altares e objectos de culto, são inúmeros os pormenores
relativamente à matéria de cada objecto, à sua forma, à minuciosidade do
trabalho, à pureza requintada!
Terá porventura Nosso Senhor querido que a Eucaristia fosse tratada com
menos cuidados do que os sacrifícios figurativos? Evidentemente que não.
Algumas horas antes de morrer, preocupado com os mais graves
pensamentos, Jesus não negligencia nenhum pormenor relacionado com a
Ceia Eucarística: a escolha de uma sala ampla e ornamentada, o lava-pés dos
Apóstolos com a sua interpretação simbólica, a própria escolha dos vasos
muito preciosos conforme a tradição.
Maria Madalena e José de Arimateia utilizam tecidos finos e perfumes
preciosos para a sepultura do Salvador. Tudo isto é significativo.
Nas nossas casas, tudo o que se relaciona com o culto deve caracterizar-se
muito especialmente pelo espírito de reparação.
São indispensáveis a ordem, o asseio e até alguma riqueza, caso os nossos
meios o permitam. Mas é sobretudo necessária a exactidão litúrgica. Privemo-
nos de outras coisas, para que nada falte nos nossos altares e sacristias.
Se temos toalhas de altar, roupas sujas e alfaias litúrgicas deterioradas,
como poderemos realizar um culto reparador?

2. Nas nossas casas. - A casa de Nazaré não era rica, mas nela havia com 243
certeza o mais delicado asseio. Todas as regras religiosas recordam o dever
dos superiores e dos ecónomos de velar pelo asseio. Mas o seu zelo não é
suficiente. Todos os membros da comunidade devem ter esse cuidado. É
119

preciso que, desde a soleira da porta até aos recantos mais escusos da casa,
tudo esteja limpo e asseado. É preciso que cada coisa esteja no seu lugar.
Os ambientes destinados aos exercícios comuns devem ser mantidos com
grande asseio, assim como os quartos e as celas.
Há regras de higiene a observar. Todos os ambientes da casa precisam de
estar bem arejados.
As nossas casas foram benzidas. Deixam-se, acaso, objectos benzidos na
sujidade? Elas são morada dos Anjos: poderão estes encontrar nelas apenas
pó e negligência?
O próprio Nosso Senhor habita nelas com seu Espírito, com a sua acção
divina, com o trabalho da sua graça. Preparemos-Lhe uma "Nazaré" agradável
e bem cuidada.
É preciso que, em cada casa, tudo se organize para manter o asseio das
salas comuns e também o das celas.

3. Nas nossas pessoas. - O vestuário cuidado e convenientemente asseado 244


não é contrário ao espírito de pobreza. Nada pode servir de desculpa para as
nódoas e para os rasgões; é preciso saber fazer ou mandar fazer os arranjos
necessários ao nosso vestuário, assim como a todo o nosso enxoval.
Nosso Senhor prometeu aos seus discípulos que não lhes faltariam o
alimento e o vestuário, tal como não faltam às avezinhas do céu.
Prometeu a todos aqueles que procuram o seu Reino e a sua Justiça que
haviam de receber por acréscimo as coisas necessárias à vida.
A caridade exige que nos apresentemos sempre, diante dos nossos
confrades e na presença dos fiéis em condições que nada tenham de
desprezível e desagradável.

4. Os banhos. - Entre os cristãos dos primeiros séculos e da Idade Média, 245


fazia-se distinção entre os banhos meramente higiénicos e os banhos
litúrgicos.

a) Os Santos Padres, por vezes, insurgiram-se contra o uso excessivo e


voluptuoso dos banhos. Mas isso não permite concluir que tenham condenado
o banho como tal.
Os factos provam precisamente o contrário.
S. João Evangelista frequentava os banhos públicos em Éfeso, visto que,
um dia, saiu a toda a pressa por lá ter encontrado o herege Cerinto (cf. S.
lreneu, Adv. Haeres., I.III: PG 7, 853).
Na sua famosa carta aos cristãos da Ásia, os piedosos fiéis de Lião e de
Viena colocam no número dos seus sofrimentos e sacrifícios, impostos pela
perseguição, a privação dos banhos (cf. Eusébio, Híst. Ecc.l, I, V, c. I: PG 20,
409).
Tertuliano usava o banho, mesmo condenando os abusos que dele se
podiam fazer: "Não vou fazer os banhos de noite, durante os Saturnais, para
não estragar a noite e o dia; mas faço-o na hora mais conveniente e benéfica
para a saúde, a fim de conservar o calor e facilitar o fluxo do sangue"
(Apologeticus adv. gentes, c. XLII: PL 1, 556).
120

S. Agostinho, após a morte da mãe, toma um banho para acalmar a sua dor
(cf. Confiss., I. IX, c. XII, nº. 32).

b) Os primeiros cristãos servem-se dos banhos como de uma purificação 246


simbólica, que ajuda a penitência.
Os Padres da Igreja também recordam este hábito, que se prolonga durante
a Idade Média. Os fiéis tomam um banho como preparação para a celebração
dos santos mistérios, especialmente das grandes solenidades.
Mas o banho era prescrito de modo particular aos ministros do Altar, nas
vésperas das festas principais.
As igrejas importantes tinham banhos para uso dos clérigos, junto das
sacristias (cf. Eusébio, De Vita Constantini, I. IV, c. LIX: PG 20, 1209, etc.).
Igualmente as Constituições das primitivas Ordens Religiosas fazem
referência ao uso dos banhos. A importante e recente obra de Micheletti sobre
os superiores e a vida religiosa, recorda que a limpeza do corpo é uma
condição essencial para a higiene. É, por conseguinte, necessário recorrer, por
vezes, aos banhos completos, tomando evidentemente as precauções
indispensáveis para que não seja ofendida a modéstia. Os nossos religiosos
farão com frequência e regularidade banhos parciais e por vezes, banhos
completos, sobretudo na proximidade das festas, segundo as tradições da
Igreja. Mas em tudo cultivemos intenções puras e sobrenaturais. Todos os
cuidados que temos com as nossas casas e com as nossas pessoas tenham
por objectivo honrar Nosso Senhor que Se digna habitar em nós.

III. A oração, a vida interior


a leitura espiritual e a direcção espiritual

1. A oração e a vida interior - Os religiosos e, especialmente, os religiosos 247


consagrados ao Coração de Jesus, devem cultivar o espírito de oração e a
vida interior.
Todos vós vos aplicastes a isso desde o noviciado, mas a dissipação é tão
natural ao homem, que é preciso recomeçar sempre, prosseguir sempre,
recolher-se e fazer novos esforços, a fim de chegar, através da oração e da
vida interior, à união com Nosso Senhor.
O ponto de partida para a vida interior é a oração, a oração bem feita. Trata-
se de uma constatação muito simples, muito evidente que é preciso falar com
Deus com respeito; e, no entanto, tudo isto é tão pouco compreendido!
A Sagrada Escritura não descreve de outra forma a oração do próprio Filho
de Deus: Exauditus est pro sua reverencia: Foi atendido pelo Pai, porque
rezava com respeito filial (Heb 5, 7).
O importante é que se comece bem. E preciso recolher-se e colocar-se na
presença de Deus, para se fazer a mais pequena oração, ainda que seja o
simples sinal da cruz. A Sabedoria divina exorta-nos: Antes da oração,
prepara a tua alma: Ante orationem praepara animam tuam (Ecli. 18, 23:
Vulgata).
A oração vocal bem feita, com alma, com atenção, com respeito, é
acompanhada de luzes, de impressões, de graças divinas. Conduz-nos à
121

meditação ou à oração mental.


O Senhor quis pessoalmente instruir muito bem a sua serva S. Catarina de 248
Sena a respeito da prece e da oração: "Oh como a prece humilde e
perseverante é doce para a alma e para Mim agradável - dizia-lhe Ele -,
quando é feita com o conhecimento da sua indignidade e a recordação da
minha bondade, à luz da fé e com o ardor da caridade!... Deve (a alma), para
não cair no ócio, quando é ainda imperfeita, aplicar-se à oração vocal; mas não
deve fazer oração vocal sem a mental: isto é, enquanto profere as palavras
esforce-se por elevar ou orientar a sua mente para o meu amor, considerando
normalmente os seus defeitos e o sangue do meu Filho unigénito, onde
encontrará a abundância da minha caridade e a remissão dos seus
pecados...".
"Não quero que sejam considerados os defeitos em particular, mas no seu
conjunto, a fim de que a mente não seja contaminada pela recordação de cada
um dos seus vergonhosos... pecados. Dizia que não quero; não deve sequer
considerar só os pecados no seu conjunto nem em particular, sem considerar a
lembrança do meu sangue e a largueza da minha misericórdia, não aconteça
que caia em confusão... E da oração vocal imperfeita chegará... à oração
mental perfeita... Algumas vezes será a alma tão ignorante, que, propondo-se
fazer determinadas orações com a língua (e Eu, por vezes, visitarei a sua
mente, ora de um modo, ora de outro: umas vezes com uma luz de
conhecimento de si mesma acompanhada da contrição do seu defeito; outras
vezes com a largueza da minha misericórdia; outras, colocando-lhe perante a
mente de modos diversos, consoante Me apraz, a presença da minha verdade
... )... (a alma) mal sinta a mente atraída pela minha visita.... logo deve
abandonar a oração vocal (para entregar-se à mental)... (isto), desde que não
se trate do Ofício divino, a que são obrigados os clérigos e os religiosos. E,
além da oração propriamente dita, tudo aquilo que se faz por bem e por amor
do próximo... é orar. E tal ardor de caridade é a oração contínua" (Dialogo
della divina Provvidenza: Trattato dell'orazione, capítulo LXVI).
Aí estão algumas noções sobre a oração, fornecidos por Nosso Senhor.
Deveis começar pela oração vocal, na meditação da manhã e nas vossas
diversas orações e visitas ao SS. Sacramento.
E, quando Nosso Senhor vos visita com a sua graça, dando-vos alguma luz
ou impressão, convém que vos alimenteis com esse maná, enquanto nele
encontrardes gosto e proveito. Depois retomai suavemente a oração vocal e a
reflexão, e Nosso Senhor visitar-vos-á de novo.
Em que medida Nosso Senhor vos comunicará as suas graças? Tudo
dependerá das vossas disposições, da vossa pureza de alma, do vosso
recolhimento, dos vossos hábitos de vida segundo a fé e de espírito
sobrenatural.
Eu quereria introduzir-vos pelo menos nestes primeiros graus de união com
o divino Coração de Jesus, pois o mais virá por si, e a ascensão progressiva
na vida interior acontecerá na medida da vossa generosidade e dos desígnios
da Providência.
Como insistia Nosso Senhor, o cumprimento constante dos deveres de
estado, em espírito de fé, com o pensamento frequente em Deus e com a recta
122

intenção de procurar a sua glória e a salvação das almas, é também oração. É


uma oração activa, contínua; consequência das luzes e das impressões
recebidas na oração. E dispõe-nos a receber novas graças.

2. A leitura espiritual - Um alimento indispensável ao espírito de fé e à vida 249


de oração é a leitura espiritual bem feita e quotidiana. Aquele que a não
fizesse seria comparável a um lsraelita que não tivesse recolhido a sua porção
quotidiana de maná. Teria passado fome e, persistindo na sua negligência,
chegaria à morte. Attende lectioni et Scripturae: Dedica-te à leitura da
Escritura: sê fiel às tuas leituras, escreve S. Paulo a Timóteo. (1 Tim 4,13).
O nosso Directório pede que dêmos à leitura espiritual pelo menos vinte
minutos por dia (cf. Parte V, § 8). Eu lamento aqueles que não a fazem.
Cairão na vida natural e sensual. Tornar-se-ão uns pobres religiosos,
incorrendo no risco de se perderem completamente.
É bom que se alterne, ao longo do ano, um livro de ascética com uma vida
de Santo. Os mais novos e inexperientes, assim como os mais velhos, farão
bem em consultarem o seu director espiritual na escolha dos livros a utilizar.

3. A direcção espiritual - Ah! como somos faltosos neste ponto! A direcção 250
espiritual fazemo-la bem feita no noviciado. No escolasticado ainda a vamos
fazendo. Mas depois muitos a descuram. É um erro grosseiro, um autêntico
contra-senso.
Todos têm necessidade de um conselheiro, de um director. Não nos adverte
o próprio Senhor que não nos apoiemos na nossa prudência, mas que
tenhamos uma pessoa sábia com quem nos aconselhemos em todos os
assuntos importantes? (cf. Prov. cap. III e IV).
Todos os Santos, por mais iluminados que fossem nos caminhos de Deus,
julgaram necessário serem ajudados por um director espiritual. Se todos os
Santos assim procederam, se os mais eminentes Padres da Igreja afirmaram a
sua necessidade, teremos nós a insensatez de lhe ignorar a importância?
"Escolhei - diz S. Basílio - um conselheiro que vos oriente em todos os
vossos caminhos" (Ser. de abb. rerum, cf. PG 32, 1363-1366).
Por mais sábios que sejais ensina S. João Crisóstomo - necessitais de um
conselheiro, de um director: só Deus não precisa de conselhos (Hom. De
ferendis reprehens. et de mutat. nominum, III, PG 51,133).
"Aquele que a si mesmo se toma por guia - diz S. Bernardo - faz-se discípulo
dum insensato" (Ep. 87 ad Ogerium, PL 182, 215).
Seremos acaso mais sábios que os doutores e os santos?
Relede aquilo que no nosso Directório Espiritual se diz acerca da Direcção
Espiritual. Não vos admireis com a abundância de pormenores que vos dá.
Isso não quer dizer que a direcção deva ter sempre a mesma amplitude.
Ordinariamente é mais sintética, mais simples. Sobre isso, entender-vos-eis
com o vosso director. Mas não demoreis mais de uma semana a colocar-vos
nas suas mãos: Vade ad Ananiam!: Vai ter com Ananias (cf. Act 9, 10-18; 22,
12-16).
O director pode ser o próprio confessor. Mas também pode ser outra
pessoa. Pode pertencer à nossa Congregação ou a outro Instituto Religioso.
123

A direcção pode fazer-se a viva voz ou também por correspondência.


Quanto à sua frequência, entenda-se cada um com o director.
Mas, por favor, não a omitais.
Os Superiores Provinciais na sua visita anual farão bem em perguntar a
cada um se põe em prática quanto nos pede o Directório Espiritual a tal
respeito.
Espero que uma boa prática da direcção espiritual faça de cada um de vós
santos religiosos e verdadeiros consoladores do Coração de Jesus.

IV. O espírito de vítima em união


com o Coração de Jesus

É a graça do tempo presente para as almas chamadas ao fervor e à vida 251


interior.

1. Todo o cristão é chamado à paciência, à penitência, ao espírito de


mortificação e de sacrifício: Se alguém - diz o Salvador - quer vir após Mim,
renegue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me (Mt 16, 24).
A alma devota do Coração de Jesus compreende tudo isto melhor do que a
maioria dos fiéis. Santamente contristada pela consideração dos seus
pecados, pela contemplação dos pecados do mundo e das provações da
Igreja, une-se às lágrimas do Salvador, chora os pecados do povo, sente-se
levada às práticas de penitência; une as suas pobres satisfações às
reparações infinitas da Vítima divina.
Os Sacerdotes, em virtude da sua vocação, e os religiosos, em virtude dos
seus santos votos são de modo especial vítimas com o Sagrado Coração de
Jesus. Devem dar exemplo de vida de reparação. Deus espera deles uma
compensação pelos pecados do mundo.
A sua fidelidade pode ser decisiva para a salvação das nações.
Há vítimas especiais, chamadas mediante uma vocação extraordinária,
como S. Margarida Maria e tantas santas almas nossas contemporâneas.
Há também Institutos Religiosos, nos quais o espírito de vítima do Coração
de Jesus foi escolhido como finalidade especial e como característica própria.

2. Que é uma vítima? - Em sentido geral, é uma criatura viva oferecida a 252
Deus em sacrifício, com os seguintes fins: adorar, agradecer, implorar, expiar.
Há uma única Vítima que em Si mesma é digna de Deus Jesus Cristo. Mas
Ele digna-Se associar-nos às suas reparações: quere-o; faz disso uma
condição de salvação.
Uma vítima do Coração de Jesus é uma pessoa unida ao sacrifício de Nosso
Senhor, para os fins ordinários (do sacrifício) e especialmente para contribuir
para a expiação dos pecados do povo e para ajudar a compensar, com um
amor ardente, a indiferença e a ingratidão dos homens. Que bela vocação!
Para expiar o pecado é preciso carregar com a cruz; é preciso aceitar o
fardo quotidiano que nos é imposto pela Providência, pelas circunstâncias da
vida, pelas Regras e pelos deveres de estado.
Para compensar a ingratidão dos homens é indispensável amar ternamente
124

a Nosso Senhor, rezar-Lhe, visitá-l'O, recebê-l'O, pensar nos Seus mistérios e


agradecer-Lhe muitas vezes ao longo do dia os benefícios gerais que concede
à Igreja bem como as graças especiais, que d'Ele temos recebido.

3. Disposições da alma vítima: - A alma vítima deve esquecer-se, tanto 253


quanto possível, de si mesma e viver para Aquele que aceitou a sua oblação, e
cuja glória pretende reparar e cujas divinas tristezas deseja consolar.
Desejosa de reparar os pecados do povo, aceita as cruzes de cada dia e
quereria até ser capaz de amá-las. Nós não chegaremos de um momento para
outro a tal grau de generosidade.
Tenhamos, pois, paciência com a nossa pobre alma, sabendo que há
diversos graus na vida de vítima. Avançaremos pouco a pouco com a graça do
Coração de Jesus.
Reparai no Calvário: Simão de Cirene leva a cruz com Jesus, mas não sem
franzir o sobrolho nem sem praguejar um pouco. Encontram-se lá duas outras
vítimas: a Virgem Maria e S. João, que carregam moralmente a cruz e que têm
o coração trespassado com o do Senhor.
Mas estas duas almas são generosas, ardentes, cheias de amor. Pode-se
seguramente aplicar-lhes o que está escrito acerca de Jesus: Carregou a cruz
com alegria (cf. Heb 12, 2). São as verdadeiras vítimas do Coração de Jesus,
são os nossos modelos.

4. Dignidade da missão de vítima. - Ser vítimas de amor, vítimas de 254


reparação, é a mais bela das vocações. A ela são chamados os amigos
íntimos, os consoladores de Jesus, os salvadores e expiadores do povo.
"Aqueles que estão unidos a Nosso Senhor e que se abandonam à sua acção -
diz o Venerável Luís de Blois - são mais úteis à Igreja numa hora, do que os
outros, quem quer que sejam, em muitos anos".
A Igreja tem tanta necessidade de almas que se imolam, como da própria
Missa. Ela vive do sacrifício de Jesus Cristo, continuado destas duas formas.
S. Paulo dizia: Eu completo na minha carne o que falta a Paixão de Cristo
pelo Seu corpo que é a Igreja (Col 1, 24).
A paciência e a imolação são mais fecundas do que a oração e a acção.
"Sim, queridas almas que sofreis, vós sustentais e resgatais o mundo. A dor
transforma-vos no Sacrifício de Jesus Cristo, como a palavra do sacerdote
transforma o pão e o vinho. Uma de entre vós, uma só, obrigaria Deus a
procurar ainda salvar a terra!" (Mons. Gay).
Como Nosso Senhor deseja estas almas! Sobre a Cruz, tinha sede destas
almas, a fim de sofrer ainda nelas para multiplicar e para aplicar os méritos da
sua Paixão.
Todo o ensinamento de Jesus em Paray-le-Monial, ao revelar a S. Margarida
Maria o seu Coração ferido e coroado de espinhos, resume-se no espírito de
imolação por amor.
Ele diz-nos, a nós como à Santa: "Procuro uma vítima que se queira
sacrificar pelo cumprimento dos meus desígnios. Não quererias tu dar-Me o
teu coração para refúgio do meu amor sofredor que todos desprezam?"
S. Paulo, fazendo-se eco do Sagrado Coração de Jesus, escrevia aos
125

Romanos: Rogo-vos, meus irmãos bem amados, pela misericórdia de Deus


(que espera isto para salvar o mundo) que ofereçais os vossos corpos como
uma vítima viva e santa (Rom 12, 1).
Os Soberanos Pontífices Leão XIII e Pio X exprimiram o desejo de que as
almas generosas se oferecessem a Deus, nestes tempos conturbados, como
vítimas de expiação.

5. A prática da nossa oblação e da vida de vítima. - Fazemos cada manhã o 255


nosso acto de oblação: "A vida de amor e de imolação à vontade divina, pela
qual nos oferecemos e nos consagramos a nós próprios com toda as nossas
faculdades, é aquilo que caracteriza o nosso Instituto. Para que esta vida de
vítima reine eficazmente em nós, devemos oferecer cada dia a Deus as nossas
orações, os nossos trabalhos, os nossos sofrimentos, em união com o Coração
de Jesus, e espírito de sacrifício, de reparação e de amor. Tal deve ser a
nossa disposição habitual. Devemos aceitar as cruzes e os sofrimentos da
nossa vida com este espírito" (cf. Cap. II das Constituições de 1906, pág. 5-6).
O Sumo Pontífice convidava-nos ultimamente a sermos o mais possível fiéis
a esta vocação.
Quer isto dizer que seremos conduzidos providencialmente por um caminho
eriçado de cruzes? Não necessariamente. As almas fracas e tímidas não
devem impressionar-se. Há categorias e graus na vida de vítima, desde a
paciência um pouco forçada de Simão de Cirene até à oblação generosa de
Maria SS.ma e de S. João.
Mesmo num Instituto de vítimas ou oblatos, Nosso Senhor não conduzirá
todos os membros pelo mesmo caminho.
Intervirá, talvez, providencialmente, para tornar a alguns participantes da sua
Cruz: algum superior, por motivo de seu cargo, e algumas almas que encontrar
mais dispostas.
Quanto aos demais, contenta-Se com convidá-los a elevarem-se pouco a
pouco à generosidade na paciência, no trabalho, na obediência; e o mais
suave estímulo que lhes oferece é o desejo da sua glória, a compaixão pelas
suas tristezas, o amor para com o seu amável Coração e o zelo pela salvação
do próximo.
Sim, fazem falta vítimas! Sem dúvida que as há muito generosas e,
presentemente, a graça impele nesse sentido as almas mais dóceis; mas não
são ainda suficientes. Os nossos males bem o demonstram.
Repetimos com lágrimas! Levantai-Vos, Senhor, tende piedade de Sião,
porque é tempo de compadecer-Vos dela, visto que chegou a hora (SI 102,
14); piedade da Vossa Igreja e das nações cristãs; infundi em nós o espírito de
vítima, já que Vos dignais ter necessidade de vítimas para nos salvar.

V. Tornar-se santo

1. "Eu não tenho a pretensão de tornar-me santo!", dizem alguns religiosos. 256
Funesta resolução! Expressão de uma falsa humildade, atrás da qual se
esconde a preguiça e a tibieza.
É forçoso que nos façamos santos. É o nosso dever. Deus quere-o.
126

Recebemos o Espírito Santo no Baptismo e na Confirmação, para vivermos


sob a sua acção e nos tornarmos santos.
É a todos os cristãos e, com maior razão, aos seus discípulos mais íntimos
que Jesus diz: Sede portanto, perfeitos, como o vosso Pai do Céu é perfeito
(Mat 5, 48).
Deus pedia a santidade já ao seu povo do Antigo Testamento: Vós sereis
um povo santo (Ex 19, 6). E aos Levitas; Vós sereis santos, porque Eu sou
santo (Lev 11, 45).
Mas pede aos cristãos uma santidade mais acentuada: Vós, porém, sois
raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo resgatado, a fim de anunciardes
as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua luz (1 Ped 2, 9).
E, entre os cristãos, há ainda uma elite: aqueles que são chamados à
perfeição da santidade e, por conseguinte, da sua vocação sacerdotal ou
religiosa.
É preciso, portanto, acabar com esse preconceito inspirado pelo demónio ou
pela natureza pusilânime: "Não pretendo tornar-me santo".
Mas, se queremos fazer-nos santos, como é nossa obrigação, precisamos
de pensar nisso constantemente e não ter em mente outro objectivo: "É preciso
que nos façamos santos".
O nosso preconceito deve-se, porventura, ao facto de não distinguirmos a
santidade de algumas graças extraordinárias que podem ser a sua
manifestação.
Ah! Pois sem dúvida que não é preciso desejar ser santos de milagres e de
revelações. Tal desejo, aliás, é dos mais perigosos. O demónio acrescenta-
lhe satisfações ilusórias e nós podemos cair num orgulho irremediável.
O que é preciso é desejar ser santos escondidos, santos conhecidos só por
Deus e sem manifestações extraordinárias, mas, apesar disso, santos e santos
verdadeiros.
Tal deve ser a nossa vontade bem firme, o nosso pensamento dominante, a
nossa constante e inalterável resolução. Não estamos neste mundo senão
para isso mesmo. "Devemos tornar-nos santos".
Sem uma decisão muito firme e muito clara, nada conseguiremos. Nada de
respeito humano! Nada de cobardia! Deus o quer: "É preciso que nos
tornemos santos!".

2. Mas que devemos fazer para sermos santos? Será muito difícil? Não. 257
Basta-nos servir a Deus com ardor, conforme a nossa vocação.
Todos, religiosos, sacerdotes ou fiéis, devem ter um regulamento de vida.
Observai-o com fervor e sereis santos.
Para um religioso, é ainda mais fácil. Tem as Regras e o Directório. Todo o
operário trabalha de acordo com um projecto ou modelo. Um religioso tem o
seu projecto, que é a santidade de Nosso Senhor adaptada a ele pelo seu
Directório.
As ocupações de cada dia estão todas estabelecidas, desde o levantar até
ao deitar: Orações, exercícios diversos, trabalhos, refeições, recreios. Tudo se
deve fazer na sua hora, no seu minuto, conforme as disposições do Directório.
Mas há uma condição que tudo domina e que é o cerne da santidade: A união
127

com Jesus.
É preciso fazer tudo nesta união: união de presença, união de vontade,
união de coração. É preciso fazer tudo na presença do Senhor, de acordo com
a sua vontade, que é a nossa regra, e em união com o seu divino Coração que
nos pede que vivamos em espírito de amor e de reparação.
É a esta união que S. Paulo chama caridade e que ele considera o vínculo
da perfeição (Col 3, 14).
Ser santo é, por conseguinte, viver pacífica e corajosamente sob o olhar de
Deus, observando bem todos os nossos regulamentos, oferecendo cada uma
das nossas acções em espírito de amor e de reparação.
Oh! como é preciso, para o conseguir, que se evite a agitação! É preciso 258
saber controlar o nosso modo de viver e manter um profundo recolhimento.
O começo e o fim de cada actividade têm, por isso, uma importância capital.
Por isso mesmo os usos cristãos nos aconselham, para tais momentos, uma
breve oração, e é indispensável que essa oração seja acompanhada por uns
momentos de calma e de reflexão: há uma acção para oferecer a Deus
segundo a nossa vocação ou, então, uma acção que termina com um rápido
exame acompanhado de sentimentos de acção de graças ou, se for caso
disso, de um acto de reparação.
A intensidade da união trar-nos-á a recordação mais frequente de Nosso
Senhor e o uso crescente de actos de amor e de orações jaculatórias.
É no nosso coração que esta união deve dar-se. Nosso Senhor habita nele
pela sua graça, e nele quer encontrar o seu repouso a sua alegria, a sua
satisfação.
Segundo os conselhos do nosso Directório, faremos do nosso coração uma
Nazaré, de manhã; um Calvário à tarde; um Cenáculo, à noite. Trabalhamos
com o Menino Jesus, de manhã, tal como faziam Maria e José em Nazaré. De
tarde conservamo-nos no Calvário, com Maria, com S. João, com a Madalena.
Aí compreenderemos o preço da cruz, o valor da mortificação e das provações.
À noite, com S. João, repousaremos sobre o Coração de Jesus, no Cenáculo,
e rezaremos com Jesus no Getsémani.
Jesus comprazia-se no coração de S. Gertrudes, porque nele encontrava os
mesmos sentimentos de amor, de fidelidade, de compaixão, de dedicação que
tinha encontrado nos seus amigos de Belém e de Nazaré, de Betânia e do
Cenáculo, do Getsémani e do Calvário.
Se quisermos, Jesus encontrará complacência também no nosso coração.
É preciso que nos façamos santos.
Já estamos atrasados. Mãos à obra! Vamos restabelecer a união com
Nosso Senhor e viver unicamente com Ele e para Ele.
Purifiquemos, pelo sacramento da Penitência e por meio de generosas
resoluções, o nosso coração. Queremos oferecê-lo sem reservas a Nosso
Senhor. Tendamos, pois, para a união com Deus, com a lembrança da sua
presença, com o cumprimento da sua vontade e com a oferta de todas as
nossas acções ao Sagrado Coração de Jesus em espírito de amor e de
reparação.
128

VI. Defeitos de carácter

1. Aprendei de Mim, que Eu sou manso e humilde de coração (Mt 11, 29). 259
Com estas poucas palavras, Jesus dava-nos por modelo o seu maravilhoso
carácter, todo resplandecente de doçura, de humildade, de paciência, de
caridade.
S. Paulo desenvolvia este conselho, ao escrever a Timóteo: Tu, ó homem de
Deus, foge de todas estas coisas (as invejas, as discórdias, as maledicências,
as suspeitas injustas... o apego ao dinheiro); segue a piedade, a justiça, a fé, a
caridade, a paciência e a mansidão (1 Tim 6,11).
Em Jesus não havia lugar para defeitos de carácter. Os Santos, por sua
vez, não estão isentos deles, mas corrigem-nos à medida que avançam na
santidade.
Os religiosos deveriam corrigir os seus defeitos de carácter no noviciado.
Mas, em muitos a natureza retoma a preponderância e estraga muitos
aspectos da sua vida.
Os defeitos de carácter provêm, a maior parte das vezes, dos vícios capitais,
cujo germe todos trazemos em nós. Outros provêm do nosso próprio
temperamento.
S. João reduz a três as más tendências da natureza: o orgulho, a
concupiscência da carne e o apego aos bens exteriores.

2. O orgulho gera muitos defeitos. O orgulhoso está demasiado cheio de si 260


mesmo, para poder deixar um lugar justo para Deus e para o próximo.
Adora-se estupidamente. É pretensioso, enfatuado, desejoso de ser ouvido,
louvado, admirado, adulado.
Impacienta-se com facilidade; encoleriza-se, quando nem tudo corre a seu
gosto.
É susceptível, gosta de julgar os outros, de troçar deles, mas quer
permanecer um ídolo intocável. Amua facilmente, quando não se sente
admirado e quando não se lhe satisfazem os caprichos.
Tem inveja dos sucessos dos outros e até dos seus progressos na virtude.
Perturba muito a vida em comum e faz sofrer a todos.

3. O homem sensual é negligente nos seus deveres de estado, e muito 261


exigente em tudo o que lhe é útil e agradável.
Tagarela nos tempos de silêncio; mostra-se taciturno e enfadado durante
uma conversa edificante.
Tem preferências particulares e precisa de um amigo que o aprecie e adule.
Não sabe suportar absolutamente nada, e muitas vezes anda descontente
com os seus confrades e com a Providência.

4. Outros defeitos provêm do temperamento. Há os agitados que fazem 262


lembrar os zângãos barulhentos e os linfáticos que nunca chegam a tempo e
não realizam coisa nenhuma.
Há espíritos superficiais e levianos, cujos pensamentos e conversas correm
dum assunto para outro, mais semelhantes às borboletas efémeras, do que às
129

laboriosas abelhas.
Lendo isto, meus caros confrades, não vades procurar-lhe aplicação prática
nos outros. Examinai antes se não sereis vós mesmos vítimas de um ou outro
destes defeitos, o que é muitíssimo provável.
Estes conselhos são úteis para os professores, que devem observar e
corrigir os defeitos dos alunos, e para os orientadores de almas, que podem
prestar os mais preciosos serviços, indicando-lhes caridosamente os seus
defeitos.

5. A união com Nosso Senhor é o remédio mais eficaz para todos os 263
defeitos.
Sejamos sempre homens de Deus (cf. 1 Tim 6, 1 1), como diz S. Paulo,
discípulos e imitadores de Jesus.
Membros de uma comunidade, sejamos religiosos sempre e em toda a
parte.
Nas conversas, conservemos um sábio equilíbrio entre uma taciturnidade
macambúzia e uma inconsiderada tagarelice.
Evitemos toda a palavra de crítica, de maledicência, de troça, sobretudo em
relação aos Superiores, o que acabaria por introduzir o mau espírito.
Lestes, em S. Margarida Maria, como ela viu religiosas sofrerem um longo
Purgatório, precisamente por causa das suas palavras de crítica e de
maledicência.
Lendo os escritos do Venerável Huchans, encontrei esta sábia reflexão: "Se
o Padre P. fosse mais político, edificaria como um santo". Mas será preciso
ser-se político? Sim, no bom sentido da palavra. Esta máxima pagã: "Quem
não sabe dissimular não sabe reinar", tomada em sentido cristão, é muito
sábia. Quando levantais descontroladamente a voz, ou então, tentais
demonstrar aos outros que não têm razão e que se enganam, indispondes
contra vós os vossos confrades, a não ser que tenham uma eminente
santidade. Sentir-se-ão magoados e vexados. É preciso sermos sempre
homens de Deus e mostrar-nos doces, humildes, agradáveis, serviçais sem
alarde, silenciosos, complacentes, modestos, afáveis, alegres, obedientes...
Então serão também para convosco bons e afáveis, segundo esta bela
sentença do Pe. Saint-Jure: "Quereis encontrar satisfação numa comunidade?
Proporcionai-a aos outros".

6. O carácter é justamente a fisionomia da alma. 264


Todos os defeitos de carácter provêm da má natureza. As boas qualidades
do carácter provêm da natureza ou da graça.
Uma planta tem o seu crescimento natural. Mas pode ser melhorada e
embelezada pela cultura, pela poda e por cuidados diversos. As suas flores e
os seus frutos podem ser mudados e transformados pelo enxerto.
Numa alma, a educação ou a cultura moral corrigem muitos defeitos. A
acção da graça é como o enxerto, que nos transforma em Nosso Senhor,
Jesus Cristo e nos faz ter parte nas suas virtudes e no seu carácter.
É o que ensina S. Paulo, quando diz: Revesti-vos de Jesus Cristo, das suas
virtudes, do seu carácter, do seu Espírito. E o fruto do Espírito é: caridade,
130

alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão,


temperança, modéstia... (Gal 5, 22).
Façamo-nos santos, unamo-nos fortemente a Nosso Senhor: deixemo-l'O
viver em nós, e os encantos do seu carácter serão para nós uma veste de
honra e de edificação.

VIl. A reparação, o espírito de vítima

1. Certo dia do ano de 1560, durante a oração, S. Teresa sentiu-se 265


transportada ao Inferno. Foi acometida por torturas inauditas e a sua alma
sentiu-se oprimida pela tristeza e pela agonia. Depois desta visão ficou
vivamente tomada de compaixão pelas inúmeras almas que se perdem.
Tornou-se então uma alma reparadora, mediante a oração e a penitência
pela salvação dos pecadores e para ajudar os missionários a salvar almas.
Um século mais tarde, em 1675, outra alma privilegiada tem também visões
que a tornam reparadora: é Margarida Maria. Nosso Senhor não lhe mostra o
Inferno nem o tormento dos condenados. Mostra-Se a Si mesmo na atitude de
Ecce Homo (Eis o Homem). Apresenta-Se coberto de chagas. Queixa-Se da
ingratidão dos homens e da tibieza das almas consagradas.
Margarida Maria torna-se uma alma reparadora, como S. Teresa, mas com
uma cambiante. Não terá em vista o Inferno, cuja entrada é forçoso impedir
aos pecadores, mas antes os sofrimentos místicos do Salvador, que é preciso
aliviar com actos de amor e de reparação. É a reparação de amor para com o
Sagrado Coração de Jesus. É uma nova corrente de graça e de devoção que
começa.
Pouco a pouco, almas fervorosas e diversos Institutos darão resposta aos 266
desejos de Nosso Senhor. Era como uma lenta aurora a espargir os seus raios.
Mas a meados do século XIX, de 1840 a 1880, atinge-se o auge das obras
reparadoras.
Começa Marselha, que foi objecto de grande parte das graças do Coração
de Jesus. A Irmã Madalena de Rémusat não fica atrás de Margarida Maria.
Seria isto uma confirmação indirecta da nossa crença tradicional relativamente
à evangelização de Marselha por parte dos amigos do Coração de Jesus? O
Instituto das Vítimas do Sagrado Coração foi fundado em Marselha, em 1841,
por Mademoiselle de Guérin.
As Filhas do Coração de Jesus imitam-nas em Anversa.
Em 1847, o grande acontecimento de La Salette veio acelerar este
movimento de reparação. A Santíssima Virgem havia chorado. Era preciso
consolá-la1.
Entretanto, em Tours, a Irmã S. Pedro e o senhor Dupont recebiam luzes
especiais em ordem à reparação à Sagrada Face.
As Irmãs da Purificação, de Tours, tomam o nome de Vítimas do Sagrado
Coração.
Em 1850, um santo sacerdote, o Pe. Luís d'Abaumont (Pe. João do
Sagrado Coração), tentava criar, ainda em Marselha, a obra dos Sacerdotes-

1
A aparição de La Salette teve lugar a 19 de Setembro de 1846 (N. do T).
131

Vítimas.
Em 1858, a Santíssima Virgem, em Lourdes, como antes em La Salette,
pedia ainda penitência.
Em 1856, a Madre Verónica fundava, em Lião, outro Instituto de Irmãs
Vítimas do Coração de Jesus.
No mesmo ano, o Papa Pio IX estendia a toda a Igreja a festa do Sagrado
Coração de Jesus com um ofício todo impregnado do espírito de reparação.
As Servas do Coração de Jesus foram fundadas em 1867, em Estrasburgo,
com a característica do espírito de vítimas.
Em 1877, os Sacerdotes do Coração de Jesus, com a mesma
espiritualidade, começam a sua Obra em Saint-Quentin.
A Santa Sé abençoou e encorajou todos estes Institutos. As almas piedosas
devem unir-se-lhes por qualquer forma de filiação, a fim de viverem esta
mesma espiritualidade.

2. Disposições. - Como entrar neste espírito de vítima e manter-se nele? O 267


melhor modo é a meditação profunda das manifestações de Nosso Senhor em
Paray-le-Monial. Ele mostra-Se todo coberto de chagas.
Queixa-Se da ingratidão dos homens e até do seu povo escolhido. Pede
reparação. Quereria distribuir com largueza as graças do seu Coração:
"Procuro - diz Ele - uma vítima para o meu Coração, que queira sacrificar-se
como hóstia de imolação, para o cumprimento dos meus desígnios".
Jesus mostra um sofrimento intenso em Paray-le-Monial; Maria chora em La
Salette. É mais do que suficiente para sensibilizar os corações amantes e
generosos. Jesus procura vítimas e nós dar-lhas-emos.
Consideremos também os perigos presentes da Sociedade cristã: a
apostasia das nações, o poder das seitas, a progressiva degradação dos
costumes, a própria defecção de algumas almas consagradas. Jesus procura
vítimas para aplacar a sua Justiça e para alargar mais o caudal das suas
graças.

3. Práticas. - A prática da vida de imolação foi determinada pelos 268


ensinamentos de Nosso Senhor a S. Margarida Maria. Nosso Senhor pede
sobretudo a homenagem de um coração amoroso, agradecido e animado por
uma santa participação na sua dor e pela compaixão. Jesus sofre
misticamente, está triste, desolado e queixa-Se de não ser amado, de não
receber gratidão pelos seus benefícios, de ser servido com indiferença e
tibieza até por parte daqueles que cumula das suas graças.
Não será isto suficiente para tocar os nossos pobres corações, por mais
duros que sejam?
Nosso Senhor pede-nos o acto público diário de reparação, a Missa e a
Comunhão fervorosas e reparadoras, a Hora Santa em união com a sua
agonia, as adorações reparadoras ao SS. Sacramento solenemente exposto.
Pede-nos ainda a união habitual com Ele, a união aos seus mistérios de
Nazaré e de Belém de manhã; aos do Calvário, da Agonia e da Paixão de
tarde. Em todos estes mistérios devemos considerar n'Ele o Cordeiro imolado
desde o princípio (cf. Ap 5, 6).
132

A reparação e a imolação não existem sem a penitência. 269


Devemos amar a penitência do coração, a penitência afectiva, e também a
dos sentidos, a penitência efectiva. Imponhamo-nos algumas práticas sérias
de penitência.
Mas nós pensamos que Nosso Senhor nos pede sobretudo o abandono
confiante à sua amável e misericordiosa Providência. Prefere escolher Ele
próprio, as nossas penitências. Assim, enviar-nos-á, segundo o seu
beneplácito, uma indisposição, uma humilhação, uma decepção, uma
dificuldade ou qualquer outra coisa. Mas não temamos. Ele é para nós como
uma mãe. Nada nos pedirá acima das nossas forças e muitas vezes suavizará
a sua cruz, depois de no-la ter mostrado na sua austeridade.
Quer também que nas nossas obras sejamos generosos, dedicados, prontos
a suportar as canseiras de um apostolado difícil.
Quer, enfim, o puro amor, a disponibilidade para se rezar, mais pelo Reino
de Deus e para consolação do Salvador, do que pelos nossos interesses
pessoais. No Pai-Nosso, Jesus dá-nos uma lição de puro amor, rezando
primeiramente pela glória de seu Pai. Compreendemos esta lição? Ecce
Agnus Dei: Eis o Cordeiro de Deus (Jo 1, 29), o Cordeiro vítima! Sigamo-l'O,
se O amamos.

VIII. A autoridade e a obediência

1. Toda a paternidade vem de Deus, nos Céus como na terra (Ef 3, 15). A 270
autoridade, qualquer que ela seja, é uma derivação da paternidade.
S. Paulo não faz senão repetir aqui o que Nosso Senhor nos disse muitas
vezes: Aquele que vos ouve, ouve-Me a Mim; aquele que vos despreza,
despreza Aquele que Me enviou (Lc 10, 16).
O apóstolo e o sacerdote representam a autoridade divina: Dai a Deus o que
é de Deus e a César o que é de César (Mt 22, 21). Honra teu pai e tua mãe
(Mt 19,19).
Os Apóstolos repetem e ampliam os ensinamentos do Mestre. Repetem-nos
que, obedecendo aos nossos Superiores, obedecemos a Deus e ao Salvador
Jesus que faz as vezes de seu Pai junto de nós, e que é representado pelos
nossos Superiores. Obedecei - diz S. Paulo - àqueles que têm autoridade e
sede-lhes submissos, pois eles velam pelas vossas almas, das quais terão de
dar conta; assim, farão isto com alegria e sem gemidos, o que vos seria
pernicioso (Heb 13, 17).
Com efeito, o quarto Mandamento do decálogo, o preceito da obediência
aos pais e aos superiores, é garantia de Bênçãos. É isso que indica a própria
palavra de Deus a Moisés: Honrai o vosso pai e a vossa mãe, e tereis uma
vida longa (e abençoada por Deus) (Deut 5, 16).
S. Paulo confirma que este mandamento é o que mais bênçãos nos traz:
Filhos, obedecer aos vossos pais no Senhor.. Honra teu pai e tua mãe... para
que sejas feliz e gozes de longa vida na terra (Ef 6, 1-3). Servos, obedecei aos
vossos patrões... como a Cristo (Ef 6, 5).
S. Pedro desenvolve mais longamente o mesmo pensamento: Obedecei ao
133

príncipe, aos vossos chefes, aos vossos patrões, sem vos desculpardes com
os seus defeitos de carácter (cf. 1Ped 2, 13 ss.).
Torna-se, portanto, bem claro que a autoridade vem de Deus através de
Cristo. Todo o tratado sobre a obediência deriva desta verdade.
Nenhum preceito tem um fundamento mais sólido: é forçoso obedecer a
todos os nossos superiores, porque Deus neles delegou uma parte da sua
autoridade.

2. A obediência é, portanto, um dever da ordem natural: Toda a paternidade 271


vem de Deus (cf. Ef 3, 15).
Mas a fé eleva esta virtude a um grau muito mais sublime.
O cristão vê nosso Senhor Jesus Cristo em todos os seus chefes e
superiores: Obedecei aos vossos superiores como a Cristo (cf. Ef 6, 5).
E quando há um voto, a missão divina dos superiores torna-se ainda mais
manifesta. "A obediência - diz Santa Teresa - vê Deus no superior e submete-
se sem reserva àquilo que ele ordena. Uma alma, ligada por voto à obediência,
que negligenciasse o cumprimento perfeito do seu voto, permaneceria em vão
num convento. Nunca adiantará na vida interior e nem sequer cumprirá bem
os deveres da vida activa" (A sua Vida, ed, Bray, pág. 358).

3. Os graus da obediência. - Todos conhecem a admirável carta de Santo 272


Inácio sobre a obediência. Quereria fazê-la minha e confio-a à meditação de
todos os nossos religiosos. O santo fundador enumera os graus da
obediência:
O primeiro grau, o mais baixo, é a obediência de execução. Executa-se
aquilo que é ordenado, de má vontade, talvez murmurando e criticando; mas
acaba-se por fazer aquilo que é ordenado. O modo não é muito meritório e os
superiores não ficam com isso muito consolados. Tal obediência não atrai as
bênçãos divinas.
É o que afirma S. Paulo aos hebreus: Fazei com que os vossos superiores
não tenham pena e tristeza em conduzir-vos, porque isso não é bom para vós
(cf. Heb 13, 17)
O segundo grau é a obediência de vontade. Deus ama quem dá com alegria
(2Cor 9, 7).
A vontade é o que temos de mais íntimo e de mais pessoal. Deus gosta do
sacrifício da vontade.
Praticar obras mesmo de piedade e de penitência contra a vontade dos
superiores não serve de nada. Fazer com que a vontade dos superiores
coincida com a nossa é uma fraude no sacrifício.
Por fim há a obediência de juízo. É preciso fazer de tal modo que pensemos
que aquilo que é ordenado pelos superiores é sempre o melhor.
E difícil? Oh! não. Pensaremos primeiramente que os superiores têm a
graça de estado. E, depois, eles estão informados de tantas coisas que nós
desconhecemos! Pensemos que têm boas razões por nós desconhecidas para
nos ordenarem isto ou aquilo e ordinariamente não nos enganaremos.

273
134

4. As qualidades da obediência. - Encontramo-las enumeradas num


excelente livrinho sobre a obediência extraído dos escritos de S. Vicente de
Paulo.
É preciso obedecer com simplicidade, por amor de Deus, sem examinar
porque é que os nossos superiores nos ordenaram esta ou aquela coisa.
É preciso obedecer com prontidão e sem delongas, a exemplo da
Santíssima Virgem, quando foi para Belém e para o Egipto.
E preciso obedecer com humildade e com submissão do nosso juízo,
fazendo tudo o que nos é ordenado, com a ideia de que é o melhor.
É preciso obedecer com coragem, sem recuar perante as dificuldades. Que
valor teria um exército, cujos soldados não obedecessem a não ser às ordens
fáceis?
É preciso obedecer com alegria, como o fizeram Jesus, Maria e José, em
todas as mudanças de residência que a Providência lhes impôs.
É preciso obedecer com perseverança, a exemplo do Bom Mestre, que Se
fez obediente até à morte.

5. As suas vantagens. - Obedecer é ter o espírito de Jesus Cristo. O 274


Salvador nunca fez a sua vontade, mas sempre a de seu Pai, a de Maria, a de
S. José, a do soberano, dos príncipes e dos juízes.
A obediência é indispensável à prática da renúncia, que é a condição de
toda a graça: Se alguém quer vir após Mim, renegue-se a si mesmo (Mt 16,
24).
A obediência torna meritórias as acções mais indiferentes, duplica o mérito
do bem que fazemos.
A obediência cordial faz reinar a harmonia, a paz, a boa ordem numa
comunidade. Atrai as bênçãos divinas (S. Vicente de Paulo).
Quem diz Jesus, diz obediência; quem diz Nazaré, diz obediência; quem diz
Calvário, diz obediência.
Ó divino Modelo, possa eu seguir-Vos tão de perto quanto possível na
perfeição da obediência! Vós não recebereis no céu senão os obedientes.
O homem obediente cantará vitória (Prov 21, 28: Vulgata).
135

PACTO DE AMOR
(do Servo de Deus Pe. João Leão Dehon)
Meu Jesus, perante Vós e perante o vosso Pai Celeste, na presença da
Imaculada Virgem Maria, minha Mãe, e de S. José, meu protector, faço voto de
consagrar-me por puro amor ao vosso Sagrado Coração, de dedicar a minha
vida e as minhas forças à obra dos Sacerdotes do vosso Coração, aceitando
de antemão todas as provações e todos os sacrifícios que Vos aprouver
enviar-me.
Faço voto de dar a todas as minhas acções a intenção do puro amor a Jesus
e ao seu Sagrado Coração. Suplico-Vos que movais o meu coração e o
infiameis no vosso amor, a fim de que eu não somente tenha a intenção e o
desejo de Vos amar, mas também a alegria de sentir, por acção da vossa
santa graça, todos os afectos do meu coração concentrados exclusivamente
em Vós.

Renovação diária

Ó meu Jesus, inflamado de amor renovo o pacto que fiz convosco.


Concedei-me a graça de lhe ser fiel.

TESTAMENTO ESPIRITUAL
Meus caríssimos filhos! 276
Deixo-vos o mais maravilhoso de todos os tesouros: o Coração de Jesus.
Ele pertence a todos, mas tem ternuras particulares para com os Sacerdotes
que Lhe são consagrados, que são inteiramente dedicados ao seu culto, ao
seu amor, à reparação que Ele pediu, desde que sejam fiéis a esta bela
vocação.
Nosso Senhor amava todos os seus Apóstolos, mas não amou porventura
com especial ternura o Apóstolo S. João, ao qual confiou a sua Mãe e o seu
divino Coração?
O belo decreto de Leão XIII, de 25 de Fevereiro de 1888, dizia: “Este
Instituto será como um ramalhete de flores para o Coração de Jesus, se os
seus membros viverem unidos em tudo e dedicados ao Sagrado Coração e se
fizerem reinar o seu ardente amor em si mesmos e entre os povos que hão-de
evangelizar”.
Parafraseando uma palavra de David, podemos dizer: O Coração de Jesus é
a parte da minha herança. Oh! Como é bela a parte que me coube na herança
comum! (cf. Sl 16, 5).
Deveis compreender que uma vocação assim tão bela exige um grande 277
fervor e uma generosidade ilimitada.
136

Não devemos nunca perder de vista a nossa finalidade e a nossa missão na


Igreja, tais como estão traçadas nos dois primeiros capítulos das nossas
Constituições:
- um terno amor ao Coração de Jesus, obtido por meio do desapego das
criaturas e da vitória sobre as nossas paixões;
- a reparação com todas as suas práticas: as Missas e Comunhões
reparadoras, o acto de desagravo, a Adoração reparadora quotidiana, a Hora
Santa e as mortificações compatíveis com a nossa saúde e reguladas pela
obediência;
- o abandono de nós mesmos em espírito de vítima ao Coração de Jesus,
para suportar com paciência e até mesmo com alegria as cruzes que a divina
Providência nos enviar.
Esta vocação exige o hábito da vida interior e a união com Deus. Por isso 278
devemos recorrer a todos os meios para alcançarmos este estado e nele nos
mantermos bem solidamente.
A vida interior não se conserva sem uma grande regularidade e sem a
prática do silêncio religioso.
Para vos fixardes nesta vida interior, deveis dedicar todos os dias uma boa
meia hora à meditação da manhã, além do tempo destinado às orações vocais,
e outra meia hora à Adoração reparadora. Deveis fazer todos os dias a leitura
espiritual, alternando a Sagrada Escritura com um livro de ascética ou a vida
de um Santo. Escolhereis a vida dos Santos que podem chamar-se "Santos
do Coração de Jesus" isto é, aqueles que melhor conheceram e praticaram
esta adorável devoção.
Tanto quanto me é possível, confio-vos todos ao Coração de Jesus. 279
Recomendo-vos à sua misericórdia, dirigindo-Lhe a oração que Ele mesmo
dirigiu ao Pai pelos seus discípulos: Pai Santo, guarda aqueles que Me deste
(Jo 17, 11).
Confio-vos igualmente à nossa Mãe do Céu. Nosso Senhor de bom grado
lhe dirá a vosso respeito o mesmo que lhe disse de S. João, no Calvário: Eis
os teus filhos (cf. Jo 19, 26).
Amemos particularmente os predilectos de Jesus: Maria e José, os três
Arcanjos, S. João Baptista, S. Pedro, S. João, S. Maria Madalena e todos os
Santos do Coração de Jesus.
Para vos dizer algo de mim mesmo, peço-vos perdão por vos ter edificado 280
tão pouco. Não tenho ilusões. Coloco-me abaixo de todos os homens, devido
ao abuso que fiz das grandes graças que recebi. Foi para fazer sobressair a
imensidão da sua misericórdia que Nosso Senhor me conservou a minha
missão, não obstante a minha indignidade.
Espero, contudo, salvar-me, porque Nosso Senhor não quererá desmentir a
sua misericórdia, mas terei que fazer uma grande expiação. Peço
ardentemente as vossas orações pelo descanso da minha alma.
Será necessário que vos diga? Se Nosso Senhor houver por bem acolher-
me na sua presença, pedirei por todos vós e pela Obra que é tão querida ao
Coração de Jesus.
Perdoai-me as mágoas que vos possa ter causado e os maus exemplos de
137

tibieza que vos dei.


Como S. João, meu mestre e modelo, digo-vos a todos: Amai-vos uns aos 281
outros, como Cristo vos amou (cf. 1Jo 3, 23).
Com todo o meu coração e em nome do afecto que me dedicastes, peço-vos
que façais com que a santa caridade reine sempre entre vós. Não pronuncieis
jamais uma palavra de crítica ou de azedume um para com outro. Tende
sempre um grande respeito por aqueles que junto de vós fazem as vezes de
Deus.
A obediência, a regularidade, a pobreza são a salvaguarda de uma
Congregação.
Sabeis que as famílias religiosas sacerdotais foram geralmente ajudadas, 282
nos seus começos, por virgens consagradas que rezaram pelas suas
intenções, como a Santíssima Virgem Maria fazia por S. João. Esta ajuda não
nos faltou também a nós.
Houve sobretudo duas comunidades que nos ajudaram com as suas
orações e os seus sacrifícios.
Devemos perene gratidão às Irmãs Servas do Coração de Jesus de S.
Quintino. Eu não saberia exprimir por palavras tudo o que elas fizeram por
nós, a ponto de oferecerem as suas próprias vidas pelo sucesso da nossa
Obra.
É verdade que não temos qualquer espécie de vínculo jurídico com elas. A
Santa Sé já não autoriza as comunidades unidas como acontecia com as
Ordens antigas. Mas isso não impede a união de orações e de sacrifícios.
Não o esqueçais nunca!
Enquanto eu fundava a Obra em S. Quintino, com o auxílio destas Irmãs, a 283
Irmãs Vítimas de Namur preparavam alguns santos sacerdotes que vieram
depois juntar-se a nós, como o Rev. Pe. André, de santa memória, e o Pe.
Charcosset, meu fiel assistente. Recordar-vos-eis também destas Irmãs.
A minha última palavra será para recomendar-vos ainda a Adoração diária, a 284
Adoração reparadora oficial, que fazemos em nome da Igreja, para consolar
Nosso Senhor e para apressar o Reino do Sagrado Coração de Jesus nas
almas e nas nações.
Ofereço uma vez mais e consagro a minha vida e a minha morte ao Sagrado
Coração de Jesus, por seu amor e segundo todas as suas intenções.
Tudo por vosso amor, ó Coração de Jesus!

Escrito em S. Quintino, durante os tristes dias da guerra, em 1914.

João do Coração de Jesus


138

ESPIRITUALIDADE
DO DIRECTÓRIO

OBSERVAÇÕES E NOTAS
Pelo Pe. A. Bourgeois, SCJ

O LIVRO, A SUA HISTÓRIA E A NOSSA VIDA

O postulante, ao chegar à casa do Noviciado, encontrava, em tempos, no


seu quarto ou sobre a sua mesinha, na sala de estudo ou de conferências, três
pequenos livros: “As Constituições”, o “Directório Espiritual” e as “Regulae ac
Praescriptiones”. O primeiro e o terceiro livrinhos eram geralmente em latim; o
segundo, ao contrário, era em língua vernácula e era imediatamente folheado,
talvez não pela primeira vez, mas com incontestável curiosidade. Obviamente
um “Directório” destina-se a “dirigir”, a dar “direcção” ou “directrizes”, em suma,
a “orientar”. Ao postulante era apresentado precisamente naquele opúsculo o
perfil da sua nova vida.
Na realidade, os três volumes deviam tornar-se, no curso do noviciado,
objecto dos comentários do Mestre dos noviços, comentários mais ou menos
técnicos, quanto às Constituições e às “Regulae ac Praescriptiones” e,
obviamente, mais espirituais no tocante ao “Directório”. Deste último não se
faria provavelmente um comentário sistemático, mas devia servir
constantemente como referência para aprender a meditar, a rezar, para
aprender a viver como religiosos e, de modo especial, como Sacerdotes do
Coração de Jesus. A verdadeira “Regra de vida” era, afinal, aquele “Directório”.
Todos os meses, não só no noviciado, mas em todas as comunidades,
durante o retiro mensal, liam-se no refeitório, alguns parágrafos, juntamente
com as famosas,, “Regras Comuns”, de acordo com recomendações escritas
no próprio “Directório”: “No começo de cada mês, no dia de retiro, deverão ser
lidas algumas páginas das Constituições e do Directório”. E o texto prosseguia:
“Todos professarão um grande respeito para com estes livros que lhes serão
dados em nome de Deus, para regular o seu comportamento, indicar-lhes o
caminho da perfeição e confirmá-los na sua bela vocação de amigos do
Coração de Jesus. Hão de lê-los com atenção, estudá-los-ão a fundo e
seguirão com fidelidade tudo quanto prescrevem ou apenas aconselham” (DE
IV §12, pág. 138).
Com o tempo, ouvindo ler continuamente o “Directório”, acabava-se por
conhecê-lo quase de cor. Citava-se, por vezes, ora uma frase ora outra, com
humorismo, mas um humorismo especial, um humorismo SCJ, imbuído do
afecto filial que se tem em família para com as velhas coisas de casa ou para
com os conselhos e considerações dos mais velhos. Sorria-se um pouco, mas
com amor. E que, afinal de contas, se tratava do “Directório”, daquilo que pôde
139

realmente motivar, inspirar e sustentar a vida de tantos homens e isso merecia


muito mais do que um sorriso condescendente ou provocador.
Este pequeno livro devíamos levá-lo com os objectos de uso pessoal, ao
sair do noviciado. Aqui e ali, encontravam-se exemplares mais ou menos
sebentos e gastos, muitas vezes recheados de anotações manuscritas, com
algumas palavras sublinhadas, com parágrafos assinalados e remetendo para
outros. O “Directório” era um livro “pessoal” e cada exemplar era, a seu modo,
como que um pequeno diário da alma, que até custava emprestar. “Manual de
santidade e de perfeição”, escrevia à laia de subtítulo no seu exemplar um
jovem religioso num momento de fervor, ou por ocasião dos retiros anuais.
Tudo isto é, sem dúvida edificante e comovedor, mas não seria motivo
suficiente para justificar um comentário a uma nova edição deste venerando
texto.

Um texto fundamental

Com efeito, objecto de veneração, entre os demais textos, o “Directório


Espiritual” é, talvez, entre todas as obras do Pe. Dehon, a mais discutida e
também a mais contestada nestes últimos anos.
Das “obras sociais” do Pe. Dehon tem-se orgulho: é um património que
se gosta de apresentar e recomendar.
As obras espirituais, reconhece-se e admite-se que passaram de moda.
E, afinal, o destino de quase todas as produções deste género. Os
“manuscritos” (Memórias, Diário, Correspondência) são objecto ao menos de
uma filial curiosidade. Mas o “Directório”, também ele a seu modo passado de
moda, não pode de modo algum ser pura e simplesmente relegado para os
arquivos, como se fosse um documento histórico; que mais não seja, deve ser
tomado em consideração para um elementar conhecimento de verdade e de
autenticidade, uma fidelidade que, para ser “dinâmica”, não pode fazer “tábua
rasa” nem da história nem da inspiração original. Nesta “inspiração” devemos,
na fé, reconhecer a acção do Espírito, Como razão última e justificação da
própria origem do Instituto e do seu desenvolvimento. “Este Instituto encontra a
sua origem na experiência de fé do Pe. Dehon”, afirmam também as novas
Constituições (nº2). E desta experiência o “Directório” fornece-nos uma
determinada imagem, seguramente autêntica, uma vez que nos vem do próprio
Pe. Dehon e, seja como for, formalmente autenticada por ele: “Estas páginas
exprimem o espírito da nossa obra, tal como a tínhamos concebido desde o
princípio (1877-1881) com o contributo de algumas almas privilegiadas e com a
graça do Coração de Jesus”.
Conhece-se, por outro lado, a preocupação do Pe. Dehon, durante toda a
vida e até às vésperas da sua morte, para que a Congregação conservasse
uma real e profunda fidelidade ao espírito das origens, o “espírito da nossa
vocação”: “Restam-me poucos anos de vida — escreve em 1909 —; quero fixar
cada vez melhor a finalidade da nossa querida obra, a fim de que, depois de
mim, não se desvie” (NQ XXV, 5; Nov. de 1909).
140

E nas suas “Memórias”: “Faço hoje setenta anos... É para mim uma
ocasião para vos recordar aquilo que quis fazer sob a inspiração da graça
divina e para repetir-vos aquilo que espero de vós, ou antes, aquilo que o
Coração de Jesus vos pede... E como que o meu testamento espiritual” (LC n.°
331: 14 de Março de 1912). Por fim, em 1917, em Bruxelas, antes de se dirigir a
Roma, chamado por Bento XV, o Pe. Dehon estava a trabalhar na última edição
(a 5ª em trinta anos) do nosso “Directório Espiritual” definitivo: “Antes de partir,
— anota no Diário — completo dois manuscritos: um “Manual de Oração para
os nossos Associados” e uma nova edição do nosso “Directório”. Serão
publicados depois da guerra. Possa deles derivar um grande bem!” (NQ XLI,
25: Out. de 1917).
O “Directório” foi, de facto, publicado em 1919, em Lovaina. A edição de
1936 (última edição oficial em francês) é a reprodução fiel do texto de 1919.
Apenas se acrescentaram, a seguir às “Regras comuns”, os “Avisos e
conselhos”, os votos do Pe. Dehon aos seus religiosos para o Natal de 1919, o
seu “Testamento espiritual” (de 1914) e um excerto da carta circular dirigida
pelo Pe. Dehon aos seus religiosos, após o oitavo Capítulo Geral, realizado em
Maastricht, de 29 a 31 de Julho de 1919.
Nesse Capítulo, particularmente importante depois da guerra (1914-
1918), fez-se a revisão completa do espírito e da vida da Congregação: “a vida
espiritual, a administração e as obras”. Da carta circular ressalta que o “novo
Directório”, ainda manuscrito, foi o livro inspirador da reflexão. Mas não foi
votado o texto do “Directório”, como aconteceu naturalmente com o texto das
Constituições.
A edição de 1919 apresenta-se, tal como as anteriores de 1905 e de
1908, baseada na missão e na autoridade do Fundador10.
E o facto merece ser relevado, uma vez que se respeita o carácter
autêntico do texto. Texto que o Capítulo acolheu, na medida em que teve
conhecimento dele, confiando plenamente na “graça” e na “missão” do
Fundador: “a graça e a missão de enriquecer a Igreja com um Instituto religioso
apostólico, que vivesse da sua inspiração evangélica”, como afirmam logo no
1.° número as Constituições elaboradas pelo Capítulo Geral de 1979 e
aprovadas pela Santa Sé em 1982.
O “Directório” não é, portanto, um texto capitular; mas sim um texto, de
algum modo, ainda “fundador”, após quarenta anos de existência e de
maturação do Instituto. E é precisamente a uma espécie de maturação que se
assiste, durante os quarenta anos da elaboração do “Directório Espiritual”,
através das várias edições (de 1885/86, 1891, 1905, 1908 e 1919). Mais ainda
do que nas diversas edições das Constituições, é nas do “Directório” que
10
As edições de 1905 e 1908 foram publicadas com o título: “Directório espiritual —
para uso dos Sacerdotes do Coração de Jesus — do Rev.mo Pe. Dehon — Superior Geral
dos Sacerdotes do Coração
de Jesus”.
A partir de 1919, desaparece o nome do autor e o título é Simplificado, como para um
livro oficial: ‘Directório espiritual — dos Sacerdotes do Coração de Jesus. Nova edição revista
e aumentada”.
141

podemos ver o nosso carisma “frutificar segundo as exigências da Igreja e do


mundo”, como se lê nas novas Constituições (n.° 1): um frutificar a que nos
compete dar continuidade, na fidelidade dinâmica a este texto “fundador”.

“Form und Redaktionsgeschichte”

Este subtítulo em alemão poderá parecer, sem dúvida, muito pretencioso


e não propriamente capaz de explicar a composição e o estado actual do nosso
“Directório”. Reporta-se, como se sabe, aos métodos exegéticos elaborados e
utilizados em ordem aos evangelhos e ao problema sinóptico, ou seja, a
determinação das “formas” ou géneros literários e a história (Geschichte) da
própria redacção dos Evangelhos. Pode definir-se como: a história do constituir-
se de uma “tradição” evangélica e, depois, da “redacção” dos textos
evangélicos.
Claro que não pretendemos ser necessário, no caso do nosso
“Directório”, realizar o mesmo trabalho científico, histórico e crítico semelhante
ao que foi feito para o Evangelho.
Em todo o caso, o carácter e o género literário particular do texto do
“Directório” requerem uma abordagem igualmente particular, ainda que não se
pretenda a riqueza de documentação e os requintes de análise da exegese
crítica. Com efeito, quarenta anos de maturação e cinco edições sucessivas
constituem também uma “história” a analisar, a fim de compreender e avaliar o
resultado final. Respeitando as devidas proporções, podemos, no nosso
trabalho, ir buscar luz e inspiração às intuições e métodos do célebre método
evangélico.
Um primeiro dado evidente ressalta de uma simples comparação entre as
cinco edições: o nosso “Directório” não é propriamente uma “obra” e uma
composição original e escrita de um jacto. Vê-se-o desabrochar e crescer,
desenvolvendo-se por fases ou consoante estações, tal como uma planta, um
canteiro, uma espécie de jardim. Há certamente um jardineiro atento em todas
as fases de crescimento, que assume a responsabilidade da progressiva
maturação dos frutos.
O Pe. Dehon presidiu à redacção e deu a forma definitiva às várias
edições. Há manuscritos redigidos por ele e, examinando-os, consegue-se
discernir com bastante facilidade as suas intenções na concepção, na
adaptação, na redacção dos diversos parágrafos. Tudo isto é suficiente para
poder afirmar que ele é o “autor” responsável e, a nosso ver, teve para tal, a
missão da parte do Espírito Santo.
Encontramos o Pe. Dehon ocupado, em 1917, na preparação de uma
nova edição do nosso Directório” (NQ XLI, 25: Out. de 1917). Possuímos o seu
trabalho dessa época em dois cadernos manuscritos intitulados “Notas sobre o
espírito da Obra” (AD, B 3, 1-2). Uma folha colada na parte interior da capa
informa-nos de que “estas notas foram utilizadas na redacção do novo
Directório”. Com efeito, tais notas encontram-se já, ao menos em parte, no texto
que veio a ser publicado em 1919.
142

No entanto, o plano geral sofre alterações e, nos detalhes da composição


e da redacção, vê-se claramente o Pe. Dehon ainda empenhado em
acrescentar, suprimir, corrigir, completar. Nesta última edição que contém
partes novas importantes, nota-se a grande preocupação do Pe. Dehon em
nada esquecer daquilo que se lhe afigurava válido nas edições e elaborações
anteriores. As suas “Notas” de 1917 retomam parágrafos interessantes que
encontramos na edição de 1891 e haviam sido omitidas na de 1905 e de 1908,
por exemplo sobre o Breviário, a Eucaristia, a Sagrada Escritura, o Sacramento
da Penitência.
A edição de 1919 completa estas mesmas “Notas” com números
tomados das edições de 1885/86 e de 1908, por exemplo, sobre as virtudes
próprias da nossa vocação: o puro amor de Deus — a caridade para com: o
próximo — a humildade — a regularidade e exactidão — a abnegação, o
desapego e a renúncia — a fidelidade à graça — a mortificação — a união com
Nosso Senhor e a vida interior.
À primeira vista parece tratar-se de um simples trabalho redaccional de
“embutidura”, coleccionando e sistematizando elementos já prontos. Todavia a
“embutidura” pode ser, como sabemos, uma arte e demonstrar não só a
habilidade, mas também um modo de ver, uma experiência, uma vontade.
Parece-nos ser este precisamente o caso do Pe. Dehon, autor do “Directório”.
Por isso mesmo, a história da redacção da obra nos interessa e merece a
nossa atenção.
Uma edição verdadeiramente crítica do texto deveria empenhar-se a
fundo na descoberta das fontes, na origem de cada peça “embutida”, no
reconhecimento da intervenção do redactor no trabalho de sistematização das
“peças” e na composição.
Procedendo à base de exclusão de partes, reconheceremos o que é
inteiramente do Pe. Dehon, ou pelo menos detectaremos as partes cujas fontes
até agora não nos foi possível descobrir. Tornar-se-ia então possível proceder a
análises, cotejos, e, deste trabalho analítico, árduo e certamente também um
tanto ou quanto árido, poder-se-iam talvez extrair algumas conclusões sobre as
intenções não só do Pe. Dehon como redactor, mas também do Pe. Dehon
como fundador e mestre espiritual dos Sacerdotes do Coração de Jesus. Este
trabalho é particularmente instrutivo no tocante à primeira parte: “O espírito da
nossa vocação” e também no tocante à segunda: “Os modelos e os Padroeiros
da nossa vocação”, bem como a sexta parte: “As virtudes próprias da nossa
vocação”. Esta sexta parte corresponde, com efeito, àquilo que podemos
considerar o núcleo original do “Directório” e que se encontra nas Constituições
de 1885/86, no capítulo oitavo: “Virtudes próprias dos Sacerdotes da Sociedade
do Sagrado Coração de Jesus” (cf St. Deh 2, Pág. 45-70). Este texto encontra-
se em parte na edição do “Directório” de 1891 e, quase à letra, nas de 1905 e
1908.
A primeira e segunda partes da edição de 1919 são completamente
novas em relação às edições de 1905 e 1908 e contêm largos trechos devidos
“ao contributo de algumas almas privilegiadas”, das quais fala discretamente a
folha colada na parte interior da capa do primeiro caderno: “Notas sobre o
143

espírito da obra” (cf. AD, B 3, 1). Na primeira página diz-se mais explicitamente
estas Notas...” (de 1917), expõem o espírito da obra, tal como tinha sido
concebido desde o início com o contributo das nossas Irmãs”.
Acerca deste “contributo das nossas Irmãs” na fundação e inspiração do
Instituto, o próprio Pe. Dehon e, depois dele, os seus biógrafos disseram o que
de facto aconteceu e aquilo que não deve ser afirmado a tal respeito (cf. M.
Denis, SCJ, Le Projet du Père Dehon, St. Deh. 4, pág. 97 e ss.; ou também H.
Dorresteijn, SCJ, Vita e Personalitá di P. Dehon, edição italiana, pág. 603-646).
Aquilo que é seguro, para o nosso objectivo e para a história do
“Directório”, é que o Pe. Dehon em 1917, para a preparação do novo e último
“Directório” retoma quase textualmente algumas notas sobre as “luzes de
oração” da Ir. Maria de S. lnácio.
Efectivamente, o Pe. Dehon nota no seu Diário de Fevereiro de 1917:
“Algumas cópias (das “luzes”), que estavam em poder do Pe. Modeste, chegam
até nós. A Providência permite que a “chère Mère” (Madre Maria do Coração de
Jesus, fundadora das Servas) mas empreste nestes dias. Copio-as e vejo
melhor todo o projecto de Nosso Senhor para com a nossa obra” (NQ XL, 100).
Temos em nosso poder esta cópia: trata-se de um simples caderno
escolar de setenta páginas (cf. AD, B, 34, 8) que o Pe. Dehon intitula “Luzes de
oração da Irmã Maria de S. Inácio sobre a obra das vítimas do Coração de
Jesus: 1878 e seguintes — As virtudes próprias da nossa vocação”.
Reconhece-se o mesmo título da sexta parte do nosso “Directório”. A quase
totalidade do texto deste documento encontra-se quase à letra nas “Notas” de
1917 e na edição do “Directório” de 1919. Na realidade, como explicaremos na
nota crítico-histórica unida a este estudo, não é só um, mas três os documentos
da mesma fonte original (as “luzes de oração” da Ir. Maria de S. Inácio), que
são total ou parcialmente utilizados pelo Pe. Dehon na última edição do nosso
“Directório”: uma achega que representa, na recolha de 1919, 48 páginas num
total de 195 do texto impresso (excluindo as Regras Comuns) e, em especial,
12 das 24 páginas da primeira parte e 21 das 50 da segunda parte; as restantes
15 páginas encontram-se na terceira, quinta e sexta partes do “Directório” de
1919.
Não é aqui o lugar para estudar e exprimir juízos, no plano histórico e
teológico, sobre a legitimidade de tais contributos tomados de empréstimo,
segundo o modo de ver do Pe. Dehon e para a validade do “Directório”.
O Pe. Dehon explicou-se muitas vezes e demoradamente; e, no tocante à
doutrina, observou — não sem humorismo, sabendo como sabemos que estas
“luzes de oração” lhe custaram tantas dores de cabeça e dissabores — que
tudo estava aprovado pela Igreja. “As Constituições, as orações, o Directório
estão todos imbuídos das luzes de oração da Ir. Maria de S. Inácio e, apesar de
tudo, têm a aprovação de Roma. As Constituições estão aprovadas, as orações
e o Directório têm o “imprimatur” (NO XXXIV, 182). Esta anotação do Diário é
de Dezembro de 1912. O “Directório” de 1908, edição então em vigor, era, sem
dúvida, muito mais discreto na utilização dos textos da Ir. Maria de S. Inácio.
Todavia, poderia dizer-nos o Pe. Dehon, também a edição de 1919 tem o
“imprimatur”.
144

Como se pode verificar nas notas dos últimos anos, o Pe. Dehon, sem
qualquer escrúpulo, não só doutrinal mas também jurídico, refere-se às “luzes
de oração” da Ir. Maria de S. Inácio; cita-as e transcreve-as. E pressente-se
nisso a sua alegria e como que a sensação de reencontrar a graça das origens,
o carisma e a sua missão de fundador, toda a frescura e o entusiasmo dos
primeiros tempos. Renova-se, para ele, a constatação vital de uma Presença e
de uma assistência. Tudo isto explica a sua Sinceridade e segurança. Através
desta segurança de fundador, podemos estar certos de que não falta a estes
textos um certo valor e uma autoridade carismática
Seja como for, o texto de 1919 é-nos dado como sendo o nosso
“Directório” — “Directório Espiritual dos Sacerdotes do Coração de Jesus”.
Recebendo-o como tal, não devemos silenciar o nosso sentido crítico literário
ou doutrinal; todavia, recebemo-lo como um dom, uma palavra de Deus. Neste
“Directório Espiritual” perpassou certamente algo do Espírito; não só, mas deve
continuar a passar em cada um de nós. Depois de ter seccionado e analisado
os Evangelhos, a fim de conhecer historicamente a sua “formação” e a
“redacção”, acolhemos o livro dos Evangelhos como nos é dado pelo Espírito e
pela Igreja, para nele encontrarmos o Senhor na fé e no amor. O mesmo,
salvas as devidas proporções, vale para o nosso “Directório”. 11

A RECOLHA DE 1919

O “Directório”, como dissemos, não é uma “obra”. Nem sequer é um


“tratado”. Não se deve, por isso, procurar nele um desenvolvimento
rigorosamente congeminado, mesmo se não lhe falta uma certa lógica, tanto no
conjunto como na ordem das partes, dos capítulos e dos parágrafos.
O Pe. Dehon é exactamente o autor dessa ordem. Das “luzes de oração”
da Ir. Maria de S. Inácio e sobretudo das “Notas sobre o espírito da obra” (de
1917) ao texto de 1919, surpreende-se ao vivo o Pe. Dehon que escolhe,
ordena, organiza. Escolhe e ordena as “luzes”, modifica a ordem das partes,
dos capítulos e dos parágrafos. E isto é particularmente visível na terceira parte
sobre os “Votos e a vida religiosa”; na quarta parte das “Notas...” que veio a
11
Os arquivos da Congregação conservam vestígios dos planos e dos projectos de
refundição do Directório Espiritual, propostos depois da morte do Pe. Dehon. Recordamos um
plano muito belo do Pe. Bertrand de 1932 e algumas reflexões do Pe. Gengler, do ano
seguinte, em vista de uma eventual refundição do “Directório”. São projectos bem ordenados,
cheios de observações sensatas, são trabalhos de religiosos experientes e de mestres
abalizados. No entanto, não deixa de ser justificado o receio de que uma semelhante
refundição teria levado a preciosos trabalhos de professores; mas teria saído prejudicado o
calor, o sopro “profético” e “carismático” que caracterizavam o “Directório” deixado pelo Pe.
Dehon e que constituem o seu verdadeiro valor e sabor. A origem dos textos do “Directório”
pode ser múltipla, é certo; nós lemo-los com os olhos de hoje e poderíamos completá-los de
forma mais conveniente; mas para quê privar-nos de textos dos quais se alimentava o próprio
Fundador, que ele nos deixou como expressão do seu pensamento, da sua fé e do seu
amor? Neles pressentimos ainda a sua alma e o seu fervor, e isto é quanto basta para
conservarem aos nossos olhos um sabor e um cunho de autenticidade, além da sua força
sugestiva e da sua eficácia espiritual.
Ainda bem que o texto de 1919 foi mantido também na última edição oficial de 1936.
145

constituir a sexta do “Directório” sobre “As virtudes próprias da nossa vocação”


e ainda na quinta parte das “Notas...”, que encontramos sensivelmente
aumentada na quinta parte do “Directório” relativa aos “exercícios de piedade”.
O resultado final é um conjunto constituído por seis partes, que podem
reagrupar-se em três “movimentos” bastante equilibrados:

— primeira e segunda partes: “O espírito da nossa Vocação”; “Os


modelos e padroeiros da nossa vocação”;
— terceira, quarta e quinta partes: “Os votos e a vida religiosa”; “As
regras”; “Os exercícios de piedade”;
— sexta parte: “As virtudes próprias da nossa vocação”.

O segundo movimento (terceira, quarta e quinta Partes), de conteúdo


mais directamente prático, é também estilisticamente muito diferente dos outros
dois movimentos. Nele predominam as frases curtas e os pequenos parágrafos
de poucas linhas. O estilo é “normativo” e, por vezes, jurídico. Apenas dois
parágrafos se destacam pelo seu estilo e conteúdo: o parágrafo sexto da quinta
parte sobre a “Reparação eucarística” e o décimo quinto da mesma parte sobre
os “Exercícios espirituais”. Quem leu as duas primeiras partes reconhece,
nestes dois parágrafos, o mesmo estilo e, porventura, à custa de alguma
repetição, o mesmo sopro e a mesma inspiração. Com efeito, provêm das
“luzes de oração” da Ir. Maria de S. Inácio.
Quanto à sexta parte, é bem evidente que se reporte às primeiras duas,
tanto no estilo como na própria formulação do título.

***

O essencial do “Directório”, aquilo que aos olhos do Pe. Dehon constituía


certamente, consoante a sua própria expressão, “o tesouro da obra”, são,
incontestavelmente, as primeiras duas partes, juntamente com a sexta, ou seja:
“O espírito da nossa vocação” (I parte); “Os modelos e os padroeiros da nossa
vocação” (II parte); “As virtudes próprias da nossa vocação” (VI parte).
O retomar de certeza intencional da fórmula “nossa vocação” é
significativo. Nas “Notas...” preparatórias encontra-se, como título da segunda
parte, apenas “Os modelos”; e da quarta (que se tornou a sexta): “As virtudes
religiosas”.
Aqui é obviamente sublinhado que o “espírito” e as “virtudes”, mais do
que uma “resolução” de que tomamos a iniciativa e fazemos a escolha, são
fruto de uma reflexão e de uma descoberta humana, em que tanto a
imaginação como a generosidade podem ter a sua parte. Ao mesmo tempo o
“Directório convida-nos a que nos situemos no plano do apelo e da vontade de
Deus, para começar e prosseguir a leitura. Assim, já na introdução, para
descrever “A finalidade do nosso Instituto”, o Pe. Dehon retoma, como na
edição de 1908, quase textualmente o primeiro número das Constituições de
1885-86. Mas não deixa de ser significativo que o faça preceder, em 1919, do
parágrafo seguinte: “O espírito de amor e de reparação ao Coração de Jesus é
146

a graça do tempo presente e do futuro. A divina Providência chama os Institutos


antigos a entrar neste espírito e suscita outros novos que fazem dele o seu fim
principal. Tal é também o nosso. “Respondemos aos apelos de Nosso Senhor
em Paray-Ie Monial, às inspirações da graça e à acção da Providência”. E o Pe.
Dehon, muito espontaneamente liga este passo, prosseguindo: “A finalidade da
Congregação... é, portanto...”.
Chamamento (vocação) e resposta constituem propriamente a dialética
da experiência espiritual cristã que aí se supõe. A “finalidade” e o “espírito” não
dependem de uma conclusão lógica nem teológica: são a resposta a um
“chamamento”.
Historicamente sabemos que o mesmo sucedeu com a própria fundação
da Congregação. O Pe. Dehon explica-o desenvolvidamente num documento
especial, posteriormente retomado nas suas “Memórias” (cf. NHV XII, 151-172).
Recordando-o, de forma discreta, no princípio do “Directório”, o Pe. Dehon
remete-nos para o nosso Sentido íntimo pessoal e para a nossa experiência,
para entrar na leitura, na meditação e na “aceitação” deste texto por ele
considerado como um texto “fundador”. 12
Relevemos que as novas Constituições convidam a nos colocarmos no
mesmo plano dialético da experiência espiritual, quando trata do “espírito da
Congregação”: “Chamados a servir a Igreja na Congregação dos Sacerdotes do
Coração de Jesus, a nossa resposta supõe uma vida espiritual: uma
abordagem comum do mistério de Cristo, sob a guia do Espírito, e uma especial
atenção ao que, na inesgotável riqueza desse mistério, corresponde à
experiência do Pe. Dehon e dos primeiros membros da Congregação” (Const.
n.° 16). E é esta “experiência do Pe. Dehon” e, com ele e depois dele, dos
nossos primeiros religiosos, que o “Directório Espiritual”, na sua longa e
progressiva elaboração, nos descreve não propriamente para que a
“reproduzamos”, mas para que a ela “correspondamos”. Este “directório”,
devemos aprender a lê-lo “hoje”, para dar uma resposta actual ao chamamento
de Deus e realizar “na oração, a conversão permanente ao Evangelho e a
disponibilidade de coração e de atitudes, para acolher o Hoje de Deus” (Const.
n.° 144).

***

Devemos em primeiro lugar, responder a uma objecção e superar uma


dificuldade.
A objecção consiste no pejo que possamos sentir em aceitar como
expressão autêntica do pensamento e das intenções do Pe. Dehon, da sua
inspiração evangélica e do seu carisma, que representam para nós um “apelo”
do Espírito, os textos extraídos das “luzes de oração” da Ir. Maria de S. Inácio.

12
O projecto de Constituições de 1891 (cf. Edições e Fontes”, nota 1, pág. 333)
apresenta um longo Prefácio” de cinco páginas, das quais esta nota introdutória do
“Directório” e como que um brevíssimo resumo.
147

Podem ter-se preconceitos, fundamentados ou não, contra este tipo de


experiência ou expressão de experiência espiritual, sobretudo feminina. E, na
verdade, das “luzes de oração” da Ir. Maria de S. Inácio pode-se usar e abusar.
O próprio Pe. Dehon o reconheceu. Pois, contra o uso e abuso que possam
acontecer é indispensável precaver-se. Neste sentido, a intervenção da Igreja
em 1883 foi seguramente, (para o Pe. Dehon e para a sua Congregação) uma
graça, como, aliás, o reconheceu o mesmo Padre Fundador. Com efeito, ele
afirma que tais textos, a doutrina que exprimem e a experiência que descrevem,
devem ser examinados em si mesmos; e sabemos que precisamente no
momento mais crucial (o do exame por parte da comissão de Reims e do Santo
Ofício), o seu valor nunca foi objecto de críticas negativas no tocante à doutrina
e à inspiração espiritual. Podemos não gostar e declarar-nos insatisfeitos; mas
a honestidade exige, que mais não seja para dar crédito ao Pe. Dehon, que não
se recuse a estes escritos um mínimo de favorável atenção, com a
disponibilidade do coração e sobretudo com a oração. Caso contrário, corre-se
o risco de ficar, porventura, um pouso surpreendidos.13

***

Uma outra dificuldade é, sem dúvida, constituída pelo estilo do


“Directório”. Já tudo foi dito sobre o estilo devoto, afectivo e imaginativo,
oratório e deprecatório da literatura espiritual do século passado e dos diversos
ambientes religiosos.
O estilo do nosso “Directório” não escapa a estas características, apesar
das correcções feitas pelo Pe. Dehon, aqui e ali, nos textos de que se servia.
Ele mesmo, aliás, sentia-se muito à vontade na utilização de tal estilo; e, para
textos que o próprio Pe. Dehon redigiu ou cujas fontes ignoramos, é muito difícil
discernir uma diferença de estilo. Pode-se fazer a experiência disso,
comparando os diversos parágrafos da primeira parte: a unidade de estilo é

13
Acerca deste assunto, ou seja, do documento B 34/8, cf. “Ediç. e Fontes”, pág. 338,
com a advertência de Mons. Sallua, comissário do Santo Oficio, reproduzida pelo Pe. Dehon.
Quanto ao assunto das revelações ou luzes de oração” da Ir, Maria de S. Inácio, o Pe. M.
Denis, SCJ, em Le Projet du Pe. Dehon., St. Deh. 4, pag. 98-120, recolheu documentação
que completa utilmente a que se encontra nas Memórias do Pe. Dehon (NHV) e
especialmente diversos depoimentos relativos a tais “luzes de oração”. O Pe. Dehon,
pessoalmente, sempre as considerou, independentemente do nome que se lhes dê, como um
dom do Coração de Jesus à sua obra, e sobre elas fundamenta também, de certa maneira, a
própria autoridade do “Directório” que as reproduz Jesus mesmo ditou, “mediante luzes de
oração, o espírito que devia animar-nos e que se encontra formulado no nosso Directório”
(NQ XLIV, 68: Dezembro de 1922). “Nosso Senhor havia-nos dado o Directório, mediante as
luzes de oração da Irmã Inácio. Tudo isto devia ser suficiente, se eu tivesse sido bastante
fieI.. (NQ XLIV, 93-94: Outubro de 1923). E, nas “Cartas Circulares”, escreveu “Lede e tornai
a ler com frequência o Directório. Não é um livro meramente humano; inspira-se em luzes de
oração de almas favorecidas por diversas graças” (29 de Junho de 1922; LC, nº 289). “Peço-
vos que redobreis o zelo e o fervor, a fim de viverdes como bons religiosos, observando
escrupulosamente os nossos piedosos usos e o nosso “Directório”, que nos foram inspirados
pelo Sagrado Coração de Jesus” (Dezembro de 1923; LC, n.° 296).
148

real, e, se se aceita o género literário e se entra no seu movimento típico, deve-


se reconhecer que a tal estilo não lhe falta vida.
Por outro lado, é necessário evitar qualquer exagero. Com efeito, no que
se prende com o estilo do “Directório”, diga-se em abono da verdade que não
faltam os preconceitos, sobretudo quando não se leu e meditou pessoalmente,
mas se formam opiniões na base de ecos ou recordações por vezes muito
vagos e superficiais.
Na realidade, uma vez admitidos o carácter geral, o género literário e um
determinado vocabulário, o texto do “Directório” suporta o confronto com outras
produções muito válidas de um passado não muito distante. No que se refere à
composição e à expressão, uma análise bastante precisa da maior parte dos
parágrafos, fornecer-nos-á prova suficiente.

LER E MEDITAR O “DIRECTÓRIO”

Aceitar o “Directório” é, antes de mais, lê-lo.


Serão, evidentemente a primeira, a segunda e a sexta partes a merecer-
nos especial atenção: “O espírito da nossa vocação” — Os modelos e
padroeiros da nossa vocação — “As virtudes próprias da nossa vocação”. Estas
três partes constituem um conjunto coerente, cuja conexão lógica é manifesta.
Tudo isso corresponde também aos três primeiros capítulos das antigas
Constituições de 1902 a 1956: “De fine Congregationis” — “De spiritu amoris et
immolationis” — De patronis...”. O “Directório” aparece claramente como uma
espécie de comentário e aplicação prática das mesmas Constituições e
especialmente dos dois primeiros capítulos.
“Não devemos nunca perder de vista — diz-nos o Pe. Dehon no
Testamento Espiritual — a nossa finalidade e a nossa missão na Igreja, tais
como estão traçados nos dois primeiros capítulos das nossas Constituições”.
Cada qual tem, com certeza, o seu método de leitura do “Directório”. A
disposição lógica (finalidade — espírito — modelos — virtudes) é didáctico-
dedutiva e, como tal, perfeitamente legítima. Todavia, no plano psicológico e
pedagógico, não será talvez a melhor e a mais adequada.
Pedagogicamente, com efeito, a primeira parte surpreende, logo desde o
princípio, pela sua grande elevação e pelo seu acentuado fervor. Descreve a
nossa “resposta” ideal ao chamamento, brevemente apresentada na introdução.
Supõe também uma maturidade espiritual já notável e profunda, como veremos.
Finalmente e sobretudo, a nossa vocação, como de resto qualquer vocação
cristã e religiosa, é, antes de mais, vocação para “seguir a Cristo”, ‘mais
livremente e mais de perto”, no caso dos religiosos, como afirma o Concílio (cf.
LG 43-44 e PC 1). A “nossa vocação” é o próprio Cristo, o seu exemplo, o seu
Coração. O terceiro parágrafo da primeira parte reconhece-o de passagem: “A
nossa atitude é o abandono total, o completo deixar fazer, de olhos postos
n’Aquele que nos precedeu neste caminho, que o tornou praticável e que
deixou atrás de Si, como sinais dos seus passos, pegadas sangrentas. Tal é a
nossa vocação.”
149

Exceptuando esta referência preliminar, todos os desenvolvimentos da


primeira parte dificilmente se explicam e, talvez se tornem até pouco
suportáveis, como se se tratasse de um ideal de pureza e de generosidade que
para nós tivéssemos forjado. Os modelos e os padroeiros correm o risco de
aparecer como um complemento e uma confirmação, exemplos estimulantes,
como os “Homens Ilustres” de Plutarco para os sábios da Antiguidade e do
Renascimento.
Ao contrário, Jesus para nós e, em Jesus, Maria e todos os santos são
mais do que simples modelos e exemplos. De modo muito especial, a vida de
Jesus não é apenas história e acontecimento; é para nós um mistério: mistério
da nossa comunhão com a vida divina; não só referência, mas forma e força e,
por isso mesmo, chamamento e vocação.
Da nossa parte avançaríamos a seguinte sugestão: começar a leitura e
meditação do “Directório” precisamente pela segunda parte — “Os modelos e
os padroeiros da nossa vocação”.
Olhando, escutando e contemplando “Jesus e o Seu divino Coração”,
melhor poderemos dispor-nos a ler, meditar, compreender e aceitar aquilo que
a primeira parte nos diz acerca do espírito da nossa vocação com os títulos
muito exigentes: “Amor, imolação, sacrifício” — “Amor puro e fiel” — “O dom de
si mesmo” — “O Reino de Nosso Senhor em nós” — “A recta intenção” — “A
abnegação e o abandono”, etc... O conteúdo expresso por tais títulos pode
parecer muito “moralizante”, ascético ou, ao menos, marcado pela preocupação
da “perfeição”; tudo isso é muito legítimo e, certamente, necessário; todavia não
constitui incontestavelmente o essencial do “espírito da nossa vocação”. Na
realidade, o próprio estilo destes parágrafos é todo ele de fervor e de impulso
místico a tal grau de incandescência, que não manifesta uma preocupação
meramente ascética, mas sim contemplativa. São, em grande parte, bem o
sabemos, “luzes de oração”. Só na contemplação e na meditação é possível
captar-lhes a dinâmica, que não é a da “perfeição”, mas a do próprio “amor”.
Começando pelos “modelos e padroeiros”, acontece como nos Exercícios
Espirituais de S. Inácio: na meditação dos mistérios de Cristo, descobrimos a
“nossa vocação”, o espírito da nossa vocação, a forma e a força da nossa
“eleição” e dos nossos compromissos concretos.

OS MODELOS E OS PADROEIROS

Não podemos nem queremos apresentar aqui, em pormenor, e analisar


cada parágrafo da segunda parte. O principal desenvolvimento diz respeito a:
“Jesus e o Seu divino Coração” (capítulo primeiro), “A Santíssima Virgem
Maria” (capítulo segundo) e “São João (capítulo quarto, parágrafos 1-3). Nestes
textos captamos a “dinâmica” da contemplação, o ângulo de perspectiva e a
meta que nos são propostos. Quanto a Jesus: “Desde a Incarnação, em toda a
sua vida, na Paixão e ainda na Eucaristia, o ecce venio foi a sua regra de vida”
(Parte, lI, I, §1).
Quanto a Maria, “O ecce ancilla resume a vida de Maria, tal como o ecce
venio resume a de Jesus” (Parte II, II, § 1). E relativamente a S. João: “Depois
150

de ter saboreado, durante três anos, a felicidade da presença pessoal o seu


divino Mestre, depois de ter recebido d’Ele mil provas de condescendência, de
bondade, de solicitude, ouviu um segundo sequere me, um convite a seguir
Jesus no Jardim da Agonia, no caminho do Calvário e até aos pés da cruz, no
Gólgota” (Parte II, IV, § 1).
O ecce venio de Jesus, o ecce ancilla de Maria, o sequere me de S.
João: os três capítulos dedicados a estes três “modelos e padroeiros da nossa
vocação” são o desenvolvimento e a ilustração daqueles três “motes”, que são
também princípios e uma autêntica regra de vida.
Qualquer que seja a forma e o estilo destes parágrafos, o seu intuito é
evidentemente o de orientar e de exortar. “mistérios” são evocados com
brevidade e sem qualquer pretensão literária e científica e sem profundidade
mística. Quedam-se ao nível de uma boa meditação e igualmente de uma
piedosa e fervorosa exortação.

“JESUS E O SEU DIVINO CORAÇÃO”

Podemos ficar surpreendidos ao encontrar o próprio “Jesus e o seu divino


Coração” entre os “modelos e padroeiros da nossa vocação”. É certo que figura
em primeiro lugar, mas pelo menos aparentemente posto em pé de igualdade
com os santos propriamente ditos, desde Maria até S. João Berchmans e aos
demais “santos do Coração de Jesus”. Jesus é, de algum modo, o próprio
“objecto” da “nossa vocação” e da nossa “devoção” e, há-de ver-se a seu
tempo, a respeito do “espírito da nossa vocação”, que Ele é, para nós, mais do
que um modelo e um padroeiro: é a própria razão e a “forma”, no sentido
próprio do termo, da nossa vocação.
A nossa oblação não é apenas imitação, mas comunhão e participação
na de Cristo. No entanto, não deixa de ser verdade que Jesus, precisamente
porque é a causa exemplar, é também modelo. Através dos seus, “mistérios”
entramos em comunhão e participamos nos seus “estados” de espírito, como
diria o Card. de Bérulle. Neste sentido, o “Directório” apresenta-nos “Jesus e o
seu divino Coração” como “modelo e padroeiro da nossa vocação”: “Jesus dá-
nos o exemplo mais perfeito da vida de amor, de imolação, de abandono, de
conformidade com a vontade divina.., depois da sua Incarnação, em toda a sua
vida, na sua Paixão e também na Eucaristia, o ecce venio foi a sua regra de
vida” (Parte II, I, §1). Quatro grandes desenvolvimentos são assim dedicados
ao ecce venio, no mistério da Incarnação, na vida escondida de Nazaré, na
Paixão e na Eucaristia.
Nos primeiros dois desenvolvimentos (§2 e 3) o ecce venio é apresentado
e vivido como expectativa e silêncio: “esperar em tudo a hora estabelecida
pelos decretos divinos” — uma longa vida de trinta anos, oculta,
“aparentemente inactiva e inútil” — uma espera silenciosa e obscura que, para
além das aparências, é um apelo a entrar no silêncio e no próprio mistério de
Deus, na intimidade do Coração de Cristo, Verbo incarnado.
Estes dois parágrafos acerca do ecce venio e de Nazaré têm, naquilo que
pusemos em realce, a sua força sugestiva. Seria necessário lê-los lentamente e
151

meditá-los no silêncio: somos convidados a reviver o próprio movimento da


Incarnação: “Tudo recai no silêncio...; sepultado na obscuridade... A
omnipotência de Deus parece retirar-se do Menino Salvador... Tudo cumpre no
momento e no lugar estabelecidos... A loucura da cruz tem mais valor do que
toda a sabedoria do mundo junta...”.
Através desta expressão (ecce venio) e destes membros de frase,
atirados aqui e acolá, experimentamos algo mais do que uma piedosa reflexão
que se formula. Cria-se, ao contrário, uma atmosfera, um clima, onde se
reconhecem, discretas mas bem perceptíveis, uma inspiração e acentuações
escriturísticas que são próprias da grande tradição espiritual mística, para
“aprofundar os caminhos da sabedoria, do amor e da bondade de Deus”. Tudo
isto constitui, para nós, um primeiro apelo: “Crescer, progredir na virtude, na
submissão e conformidade com a vontade divina, esperar e não pretender
apressar com uma actividade natural os desígnios de Deus...: eis o que fez
Jesus. É o mesmo que Ele espera de nós” (Parte II, I, § 3).
Esta meditação sobre Nazaré não é por nada banal. Exprime, de certa
forma, o conteúdo do ecce venio. É verdadeira e contém boas verdades, que o
são não apenas para fervorosos contemplativos. Os religiosos de vida activa e
apostólica têm indubitavelmente ainda hoje necessidade de meditá-las, de
escutar o seu apelo, de purificar-se continuamente na meditação do mistério de
Nazaré, do ecce venio, da vida oculta: espera, silêncio e pureza.

***

Aos outros dois mistérios — a Paixão e a Eucaristia — são dedicados


parágrafos originais, ao que parece ou, pelo menos, não se lhes conhecem
determinadas fontes. 14
Relativamente à Paixão, o Pe. Dehon reevoca vários episódios: a agonia,
o silêncio de Jesus, o Tolle crucífige (Jo 19, 15), a Verónica, a crucificação, as
últimas palavras... Nada de extraordinário até aqui: de cada vez, um olhar, uma
reflexão, um apelo.
Também no que se refere à Paixão, é indispensável entrar no movimento
da contemplação, encontrar o tempo necessário para escutar o murmúrio das
palavras e a sua ressonância. É esta a única forma de entrar no movimento da
resposta: Não há amor sem dor... Nosso Senhor não poupou uma única gota do
seu Sangue. Entreguemo-nos inteiramente a Ele, dêmos-Lhe todo o nosso
coração, todo o nosso tempo. Dêmo-nos sem reservas” (Parte II, cap. I § 4).
Certamente que desejaríamos completar esta contemplação e ir além das
meras evocações e dos afectos. A cruz, o Crucificado de peito trespassado, são
acima de tudo um “mistério” e pressentimos bem que o apelo a “morrer,
sacrificar-se e deixar-se imolar” é dirigido, em cada um de nós, mais à fé do que
à sensibilidade. A nossa contemplação da cruz, “instrumento da redenção”,
deveríamos nós nutri-la com a palavra de Paulo, iluminá-la com o olhar de
João, unir-nos a S. Tomás de Aquino aos pés da cruz e mais ainda unir-nos a
14
No entanto, convém confrontar “Ediç. e Fontes”, nota 6, pag 341 na parte II, cap. II,
§ 4 e 5. Para o que diz respeito às referências ao documento B 34/7, cf. Pag. 339 s.
152

Jesus no completo abandono expresso por aquele brado final: “Meu Deus, Meu
Deus, porque Me abandonaste?” (Mt 27, 46).
“Faremos com que Jesus reine nas almas por meio da cruz, da
abnegação, do sacrifício e do abandono” (Parte II, cap. I, § 4). Tudo isto vai
muito mais longe do que à primeira vista possa parecer. A nossa “profissão de
imolação, o dom do nosso coração” interessa ao “reino de Jesus nas almas”.
Nada disto é desenvolvido; mas a perspectiva fica aberta. Depende de nós
avançar.

***

Aparentemente a contemplação sobre a Eucaristia (§5) reporta-se à de


Nazaré: Nosso Senhor como modelo de vida interior. “Aí a sua vida é
principalmente escondida, silenciosa, amorosa, sacrificada. Assim deve ser a
nossa”.
Mais exactamente, a Eucaristia, “sacrifício e sacramento”, liga os
mistérios de Nazaré e do Calvário.
Como sacrifício, a Eucaristia é um apelo à imolação: “O sacerdote deve
unir-se a este sacrifício, o mais sublime, o mais puro, o mais santo de todos, e
oferecer-se a si mesmo como vítima”.
“Unir-se a este sacrifício” é uma expressão importante, que marca todo o
desenvolvimento do parágrafo como comentário ao versículo do salmo: calicem
salutaris accipiam: tomarei o cálice da salvação (SI 116,13).
Esta união sacrificial é, para nós “seguir a Cristo”: “tornar-se vítima com
Ele, a seu exemplo e por seu amor”. Estas duas páginas não pretendem propor
uma teologia completa do sacrifício eucarístico, mas definem uma perspectiva,
uma determinada proposta e sobretudo uma determinada maneira de “celebrar”
e de viver a Eucaristia.
O ecce venio aparece aqui com todo o seu alcance: o abandono vive-se-
o na imolação sacrificial com e como Cristo. Por fim, estas duas páginas
inserem-se numa grande tradição e perspectiva teológica, espiritual e mística,
ilustrada de modo especial pela famosa Escola francesa do Cardeal de Bérulle,
de Condren e de Olier.
A acentuação é colocada sobre o sofrimento e sobre o martírio, com os
quais Cristo consumou o seu sacrifício. Mas é também pelo seu título de
“apóstolos” e pelo seu apostolado, que as figuras de João e de Tiago são
evocadas: o cálice que lhes é oferecido é o “cálice do sofrimento”, mas é
também o “cálice do trabalho, da ignomínia, do sacrifício.., o cálice do amor
divino... “.
Como sacramento, finalmente, a Eucaristia é também “presença”,
presença sacrificial contínua e, por conseguinte expectativa e apelo. Tudo isto é
recordado em poucas linhas (dois breves parágrafos), sem desenvolvimento;
mas o tema será retomado largamente na quarta parte, onde se trata da
“reparação eucarística” (§6). Nesse passo, extraído das “luzes de oração” da Ir.
Maria de S. Inácio, o Pe. Dehon quis descrever o que pode e deve ser para nós
este mistério da presença: uma presença que reclama a nossa presença.
153

***

Nos parágrafos 1-5 (Parte II, cap.l), é proposto um determinado olhar


sobre o mistério de Cristo, sobre a sua pessoa, sobre o mistério do seu
Coração. Notemos que nada aí se diz acerca de uma devoção especial ao
Sagrado Coração de Jesus, ainda que evidentemente tudo se Lhe refira e O
procure.
Somos convidados a descobri-lo e a contemplá-lo na vida de Jesus, de
forma muito concreta, se bem que talvez não seja completamente a nosso
gosto. Somos convidados a uma devoção muito sólida, e a procurar a sua base
e o seu alimento na Escritura e na teologia. A perspectiva fica assim aberta a
todos os desenvolvimentos e aprofundamentos, para além das apresentações
subjectivas e das formulações devocionais.
A visão do “Directório” não é certamente nem completa nem exaustiva. É,
antes, uma apresentação selectiva, é como que um caminho aberto para a
contemplação, para o estudo e para a própria vida. De certeza que não ficamos
satisfeitos. O “Directório” não exprime todo o pensamento do Pe. Dehon sobre
o mistério e sobre os mistérios de Cristo. Pode desagradar-nos que o nosso
“Directório” não nos fale nada acerca de Cristo, Palavra de Deus, poderoso em
obras e palavras (Lc 24, 19) e também de Jesus manso e humilde de coração
(Mt 11, 29), que vive o seu ecce venio (oblação e imolação) sob o impulso do
Espírito, na pregação do Reino, em suma, na sua vida apostólica. Sobre este
ponto, desejaríamos completar o “Directório” com a nossa contemplação e
meditação, certos de estar assim de harmonia com o próprio movimento de
pensamento e de vida do Pe. Dehon. Porque é precisamente disso que se trata:
entrar num movimento não apenas de imitação externa, mas de uma união
perfeita e vital. De certeza que não vamos colocar no mesmo plano, como
“modelos e padroeiros da nossa vocação”, Jesus e o seu divino Coração e a
Santíssima Virgem, S. João... Jesus para nós é o modelo único, a verdadeira
causa e exemplar, Aquele que dá à nossa vida a sua própria “forma”. Maria e
João são para nós modelos e exemplos a imitar, arquétipos de uma imitação,
de uma experiência espiritual e de uma vocação. Nesta perspectiva e com esta
intenção leremos os parágrafos que lhes são dedicados como uma nova,
estimulante ilustração da união com a oblação e com a imolação do próprio
Cristo. E o espírito da nossa vocação no quadro, na harmonia e na
familiaridade da comunhão dos santos.

O ESPÍRITO DA NOSSA VOCAÇÃO

Preparada e iluminada pela meditação da segunda parte, a leitura da


primeira parte do “Directório” fica ambientada no carácter que lhe é próprio.
Aquilo que nos é dito acerca do “espírito da nossa vocação” é para nós uma
explicação, para nosso uso, de tudo o que reconhecemos em Jesus e no seu
divino Coração, em Maria, em S. João e nos Santos do Coração de Jesus. Não
é tanto um belo programa de vida, concebido à priori e de forma abstracta,
154

ainda que em resposta aos apelos de Nosso Senhor em Paray-le-Monial; mas é


fruto da nossa contemplação. Para além de uma pura e simples comunhão de
espírito e de coração, experimentada na oração, trata-se, sim, de uma
comunhão vital: a que realiza a entrega e o abandono, comunhão com o
impulso vital e com o movimento de amor, de entrega e de abandono do ecce
venio que, para Jesus era muito mais do que uma “regra de vida”; era sim, o
próprio movimento da sua vida e a expressão vivida e incarnada do seu ser
Filho. Os dez parágrafos da primeira parte do “Directório” dividem-se com muita
facilidade em dois grupos sensivelmente iguais.
O primeiro grupo (§1-6) explicita de algum modo as linhas gerais do
“espírito da nossa vocação” com títulos característicos: 1. Amor, imolação,
sacrifício; 2. Amor puro e fiel; 3. A oferta de si mesmo; 4. O reino de Nosso
Senhor em nós; 5. A recta intenção; 6. A abnegação e o abandono.
O segundo grupo (§7-10) é mais especificamente dedicado a um aspecto
particular mas essencial da nossa vocação e missão, ou seja, a “reparação”, e,
mais concretamente: “a reparação sacerdotal”, consoante a “finalidade”
recordada na “introdução” ao “Directório” e com referência às primitivas
Constituições.
Não cabe, neste estudo sobre o “Directório”, tratar dos diversos
problemas (históricos, teológicos, pastorais...) relacionados com a reparação
em geral, nem daquilo a que o Pe. Dehon chamava “a finalidade íntima da
obra”. Realçamos, no entanto, o lugar que tais temas conservam no “Directório”
com os quatro subtítulos também eles expressivos e característicos: 7. A
santidade sacerdotal; 8. A reparação (em geral); 9. A reparação sacerdotal; 10.
A reparação mediante o amor.
Estamos certos de que, no espírito do Pe. Dehon, estas páginas definem
a figura do Sacerdote do Coração de Jesus, tal como ele a concebeu, como
nele foi gradualmente amadurecendo, como ele a quis viver e propor-nos que a
vivêssemos com ele. Por estes motivos, as páginas da primeira parte do
“Directório” merecem toda a nossa atenção.

***

Do primeiro grupo dos nossos textos, exactamente metade (os primeiros


três parágrafos) derivam das “luzes de oração” da Ir. Maria de S. Inácio (cf. AD,
B 34, 7; 34, 8, e também NHV, XIII 91-92 e 97-98).15
O Pe. Dehon, como redactor, adapta e corrige; mas se a forma é, o mais
das vezes, melhorada, o conteúdo, as imagens e o espírito são
cuidadosamente conservados.
Os três parágrafos seguintes (4.°, 5.° e 6.°) são com muita probabilidade
do próprio Pe. Dehon. São desenvolvimentos análogos aos da sexta parte —
“As virtudes próprias da nossa vocação”, onde, aliás, se encontram parágrafos
consagrados à “recta intenção” (VI, § 12), à “abnegação, desapego e renúncia”
(VI, § 15) e também à “união com Nosso Senhor e a vida interior” (VI, § 21).
Este último texto recorda muito de perto o parágrafo: “O reino de Nosso Senhor
15
Ct. “Ediç. e Fontes” pág. 338-339.
155

em nós” (I, § 4), do qual algumas ideias são depois retomadas no parágrafo
terceiro da sexta parte — “O puro amor de Deus”.
Poderão confrontar-se com utilidade a primeira parte, §2, sobre o “amor
puro e fiel” e a sexta parte, §3, sobre o “puro amor de Deus”; a primeira parte,
§3, acerca da oferta de si mesmo” e a sexta parte, § 19, acerca do “abandono e
a conformidade com a vontade de Deus”. Este último parágrafo (VI, § 19) é
retirado das “luzes de oração” da Ir. Maria de S. Inácio.
No entanto, é preciso dizer que não se trata de meros duplicados. As
“virtudes” consistem em pôr em prática e no exercício do “espírito”. Com efeito,
os parágrafos da sexta parte são de carácter mais completo. Retomam as
primeiras elaborações das edições de 1885-86; 1891; 1905; 1908. Os
parágrafos sobre o “espírito” apresentam se mais inspirados e, em geral, têm
um movimento e um estilo mais oratório. Na verdade, não lhes falta vivacidade.
O primeiro parágrafo — “Amor, imolação, sacrifício” (Parte I, § 1) —
apresenta-se particularmente bem composto, equilibrado e com um ritmo
próprio.
Dá a impressão de que o Pe. Dehon o elaborou bastante, levado, sem
dúvida, pela força sugestiva dos símbolos e, ao mesmo tempo, dos temas
tratados. Esta página é uma bela “ouverture”, eloquente e sintética, e faz-nos
compreender como um cântico da alma este início do “Directório”. Na verdade,
esta “ouverture” atinge toda a sua força e o seu significado em virtude da
continuação que lhe é dada; poder-se-á compreendê-lo melhor, retomando-a
como conclusão, depois de ter meditado tudo o resto.

O “ECCE VENIO”

Como ponto de partida para a nossa análise, tomaremos esta frase do


parágrafo terceiro: “Nas palavras: “Ecce venio, Deus, ut faciam voluntatem
tuam” (Heb 10, 7) e nestas outras: “Ecce ancilla Domini, fiat mihi secundum
verbum tuum (Lc 1, 38), encontram-se toda a nossa vocação, a nossa
finalidade, o nosso dever, as nossas promessas”.
Esta frase, com efeito, serve-nos de ligação para a nossa meditação
sobre o prosseguimento da primeira parte. A que era “a regra de vida” de Jesus
(e de Maria) constitui para nós o essencial daquele chamamento que é a
vocação; ao apelo do ecce venio respondemos com o ecce venio, num
movimento que não é apenas de admiração e de imitação, mas de união e de
comunhão.
O parágrafo que a frase citada introduz é completamente dedicado ao
desenvolvimento daquilo que em concreto significa o ecce venio e, segundo o
próprio título “A oferta de si mesmo”, como definição e síntese da “nossa
vocação, da nossa finalidade, do nosso dever, das nossas promessas”.
A descrição nada tem de conceptual ou de teórico. É descrito um
movimento, como o sugere a própria expressão ecce venio, repetida e
desenvolvida: “Eis que Eu venho.., eis-me pronto a fazer, a empreender, a
sofrer... a sacrificar”.
156

A nossa vocação é “observar” e “caminhar”: “A nossa atitude é o


abandono total, o completo deixar fazer, de olhos postos n’Aquele que nos
precedeu neste caminho, que o tornou praticável e que deixou atrás de Si,
como sinais dos seus passos, pegadas sangrentas. Tal é a nossa vocação”
(parte 1, § 3).
Em vão se procurará no “Directório” uma doutrina teológica sobre a
“oblação”. Aliás, a própria palavra, salvo erro, apenas aparece duas vezes: na
terceira parte, no capítulo quinto, parágrafo primeiro referente à “nossa
profissão de amor e de imolação”, em breves linhas que recordam algumas
noções teológicas acerca do “sacrifício” e da “vítima”: “O sacrifício é a oblação
de uma coisa ou de uma pessoa, feita a Deus, que implica alguma destruição, a
fim de reconhecer o seu supremo domínio...”; e depois na quinta parte,
parágrafo quarto sobre a “Santa Missa”: “Unamos a nossa oblação a do próprio
Coração de Jesus...”.
Principalmente no primeiro caso, o termo “oblação” é usado em sentido
especificamente teológico, ritual e sacramental, com clara referência à teologia
do sacrifício desenvolvida pela Escola francesa e, em particular, pelo Pe. de
Condren, para o qual o sacrifício se realiza e se cumpre essencialmente com
alguma “destruição da vítima, ou seja, com uma destruição efectiva”.
Não é aqui o lugar para discutir essa teoria, mas não é ocioso recordá-la,
para compreender bem aquilo que, para o Pe. Dehon, significa o ecce venio do
parágrafo dedicado “à oferta de si mesmo” (Parte 1, § 3).
Ainda que pouco apareça a palavra “oblação”, o vocabulário do
“Directório” é tipicamente “oblativo”: “doar-se, oferecer-se, abandonar-se, dar-
se, dedicar-se...”. Seria interessante poder verificar tudo isto, mediante uma
investigação especialmente sobre a primeira parte.
Trata-se evidentemente de uma realidade não apenas literária. É, sim, o
vir ao de cima de uma atitude espiritual profunda e, neste sentido, pode-se falar
de uma “espiritualidade oblativa”, não como de uma teoria elaborada, mas
como de uma experiência específica de relação com Deus, O ecce venio é uma
resposta não verbal, mas vital, O próprio texto o manifesta: “O ecce venio é
quanto basta, desde que esteja gravado na mente e no coração, ao mesmo
tempo que nos lábios” (Parte 1, § 3).
“A mente e o coração”, aqui, são as faculdades que constituem o próprio
homem que vive no mundo e na sua relação com Deus: “Em todas as
circunstâncias e acontecimentos tanto para o futuro como no presente...”— diz
o texto (Parte 1, § 3); e, no contexto, o ecce venio significa: “Eis que venho, ó
meu Deus, para fazer a vossa vontade.., o que Vós quiserdes, o que me
pedirdes” (Parte 1, § 3).

Em suma, este ecce venio não é uma simples fórmula genérica, não é
um mero “afecto”; é um compromisso do nosso profundo, que nos agarra pela
raiz do ser; e, claro, para avaliá-lo no seu justo valor, é indispensável confrontar
este nosso parágrafo com aquilo que S. Inácio propõe no começo dos seus
Exercícios como “princípio e fundamento”: “O homem foi criado para louvar,
reverenciar e servir a Deus Nosso Senhor e assim salvar a sua alma; e as
157

demais coisas sobre a face da terra foram criadas para o homem e para ajudá-
lo a alcançar o fim para que foi criado. De onde se segue que o homem deve
usá-las quando o ajudam a conseguir esse fim e prescindir delas quando o
impedem; razão pela qual é necessário tornar-se indiferentes a todas as coisas
criadas, em tudo o que é concedido à liberdade do nosso livre arbítrio e não lhe
é proibido, de modo a não querer, da nossa parte, saúde mais do que doença,
riqueza mais do que pobreza, honra mais do que ignomínia, vida longa mais do
que breve, e assim por diante em tudo o resto, somente desejando e
escolhendo aquilo que melhor nos conduz ao fim para que fomos criados”
(Primeira Semana, lI, 2).
O texto de S. Inácio é rigoroso, austero, aparentemente quase só racional
e como que filosófico. Sabemos que o Pe. Dehon, apreciando embora o vigor e
o valor dos “Exercícios” de S. Inácio, não se dava por completamente satisfeito,
dadas as exigências da sua alma: Há neles “algo que não condiz com o meu
temperamento nem com a minha graça”, escreve nas Memórias (NHV IV, 125).
Citámos, no entanto, este passo de S. Inácio, dado que nos ajuda a
iluminar o parágrafo que estamos a examinar, ou seja, o terceiro da primeira
parte, acerca da “oferta de si mesmo”.
No trecho dos “Exercícios” que transcrevemos, dizem os comentadores, o
objectivo não é propriamente uma meditação sobre as coisas criadas, mas sim
ajudar quem faz os exercícios a colocar-se na atitude da indiferença espiritual,
que é uma forma de total disponibilidade para Deus. “Tal atitude é fundamental
para progredir na vida espiritual (cf. Exercices, CoII. Christus, n.° 5, Pág. 28,
nota).
A mesma “indiferença” é também “fundamental” para a vida de
“abandono total”, do “absoluto deixar fazer”, que o ecce venio exige juntamente
com a “oferta de si mesmo” no nosso “Directório”.
Todavia, a perspectiva e a inspiração mudaram profundamente. A
“indiferença” já não é a conclusão de um raciocínio ainda que teológico, mas é
explicitamente uma exigência de fé e de amor. O nosso abandono é exigido
pelo nosso olhar para “Aquele que nos precedeu por este caminho”. O motivo
não é só “o fim para o qual fomos criados”. Além deste objectivo, há a relação
especial, expressa por aquele termo “vítima” que sempre nos surpreende, e
que, no nosso texto, substitui a palavra “criatura” dos “Exercícios” de S. Inácio:
“O homem foi criado...”. Trata-se de um plano bem diferente, de um novo título
para a “indiferença”, requerido pelo abandono total do ecce venio: “uma vítima
sabe que nada tem a escolher ou a desejar para si. A sua escolha está feita, o
seu futuro está marcado. Quando e como se realizará o seu sacrifício, em que
circunstâncias, que duração terá, tudo isso é deixado à livre escolha d’Aquele a
quem ela pertence inteiramente” (Parte I, § 3).
O leitor terá notado a repetição (que sublinhámos) da palavra “escolha”:
“De modo a não querer, da nossa parte, saúde mais do que doença..., mas a
desejarmos e a escolhermos unicamente aquilo que melhor nos conduz ao fim
para que fomos criados” (Primeira semana, 11, 2). Escolhe-se não escolher,
mas é sempre uma “escolha”. A acentuação é posta, portanto, sobre a escolha
do homem; e uma autêntica e excelente pedagogia será descrita em seguida
158

acerca deste assunto, quando nos prepararmos para a “eleição”, que é o


objectivo dos exercícios espirituais, no fim da segunda semana (III, 84 ss.).
O texto do nosso “Directório” que estamos a considerar exclui qualquer
“escolha”; nada mais há a escolher: “A sua escolha está feita, o seu futuro está
marcado”. A escolha de um estado, ou de um estilo de vida, a organização de
um modo de viver: “Tudo isso é deixado à livre escolha d’Aquele a quem (a
vítima) pertence inteiramente” (Parte 1, § 3).
Evidentemente que se trata de uma relação e de uma atitude
características e a própria palavra “vítima” deve ser explicada com exactidão,
sob pena de ser mal compreendida.
A “oferta de si mesmo”, o “abandono total” e o “completo deixar fazer”
não significam a abjecção do escravo. Todo o parágrafo é, ao contrário, como
já notámos, orientado para o alto, caracterizado por um movimento: o ecce
venio, entendido como uma marcha para a frente, atrás d’Ele, Cristo... A
palavra-chave, que tudo explicaria, é “amor-caridade”. Muito curiosamente
aparece uma só vez, de forma muito discreta: “Perseveremos com paciência e
amor neste estado”, mas o movimento do texto ultrapassa de forma muito clara
e forte esta breve alusão, aparentemente demasiado estática.
Com efeito, a verdadeira justificação para a “oferta de si mesmo”, o
“abandono total”, o “completo deixar fazer” de uma vítima está expressa no
parágrafo anterior: “O amor puro e fiel”. É o amor que dá a razão, para além de
toda a razão, e dá ao próprio ecce venio o verdadeiro fundamento, O amor
justifica a conclusão do parágrafo terceiro: “A nossa atitude é o abandono total,
o completo deixar fazer...”

NUMA “VIDA DE AMOR”

O primeiro Directório (nas Constituições francesas de 1885, ao cap. VIII:


As virtudes próprias da nossa vocação) dedica a este tema da “Vida de amor”
todo o primeiro parágrafo: “O amor de Jesus Cristo é a primeira e mais
essencial virtude que os membros da Sociedade devem praticar, para
corresponder à finalidade da sua vocação”.
A parte essencial do texto de 1885 encontra-se no Directório de 1908 e
no texto de 1919 (VI, § 3: O puro amor de Deus): “O amor de Nosso Senhor
deve animar toda a vida dos Sacerdotes do Coração de Jesus. A sua vida deve
ser uma vida de amor. O amor de Nosso Senhor deve ser o motivo de todas as
suas acções. Devem fazer tudo por puro amor para com o Coração de Jesus”.
A própria redundância do texto põe em destaque a importância atribuída
a este tema e à realidade da “vida de amor” e do “puro amor”. De 1885 a 1919
o parágrafo desenvolveu-se e tornou-se mais substancioso. Num estilo simples
e sem pretensões propriamente doutrinais, encontramos aí, sem dúvida, a
expressão do pensamento do Pe. Dehon sobre este assunto:
— as fontes da vida de amor, reconhecidas no Coração de Jesus... e a
retribuição de amor “puro, desinteressado, ardente e generoso até á imolação...
que devem prestar-lhe os nossos sacerdotes...”;
159

— a prática desta vida de amor... com um amor tanto mais fiel e puro,
quanto é certo que tomámos o compromisso de corresponder-lhe com a
reparação... em cada instante mediante a atenção e a pureza de intenção, com
a oferta de todas as nossas acções..., sendo o puro amor a nossa vida e a
nossa finalidade...;
— a dimensão trinitária desta vida de amor, dado que Jesus nos conduz
à Santíssima Trindade”.
Esta brevíssima referência à Trindade — que raramente é mencionada
no Directório — constitui toda a perspectiva propriamente doutrinal do
parágrafo. Podemos lamentar que não seja mais amplamente desenvolvida,
visto que convida a ultrapassar o plano meramente devocional e ascético da
vida de amor, do amor (ou da caridade) como virtude (“a primeira e mais
essencial virtude”). A alusão à Trindade introduz-nos no próprio mistério de
Deus-amor. Antes de ser uma “virtude”, o amor é o mistério de Deus em Si
mesmo e na sua relação com o mundo. Deste mistério depende a natureza e a
dinâmica da “nossa vida de amor” e de uma boa teologia da caridade depende
a própria autenticidade da nossa devoção e da nossa ascese. As novas
Constituições (de 1979) remetem-nos, por isso, à primeira Carta de S. João,
para “reconhecer o amor do nosso Deus”... uma vez que “o amor vem de
Deus.., sendo Deus amor” (cf. Cst. n. 9 e 1Jo 4, 7.16).
Reconhecemos neste texto um ponto de ligação doutrinal em ordem ao
aprofundamento de uma autêntica fidelidade dinâmica. As observações e os
conselhos do Directório sobre a vida de amor, aliás, conservam todo o seu valor
para a devoção e para a ascese, e o vínculo entre a vida de amor e a vida de
oblação é notavelmente sublinhado. O parágrafo 3.° da Parte VI sobre “O puro
amor de Deus”; como “virtude própria da nossa vocação”, pode parecer, até na
expressão, como um duplicado, retirado de diversos parágrafos da primeira
parte sobre “o espírito da nossa vocação”. Seja como for, ele confirma aquilo
que resultava da sequência de tais parágrafos: a vida de oblação, o dom de nós
mesmos, que é “toda a nossa vocação, a nossa finalidade, o nosso dever, as
nossas promessas” (DE 1, 3), ou seja a expressão daquela vida de amor que
deve ser “toda a vida dos Sacerdotes do Coração de Jesus”, mas uma vida de
“puro amor”. Conhecemos a importância que o Pe. Dehon atribuía a esta última
expressão (cf. Denis, Le projet.. St. Deh. 4, pág. 262, nota 1).

***

Compreende-se assim a importância do § 2 da primeira parte sobre o


“amor puro e fiel”, para introduzir e fundamentar a vida de oblação, a oferta de
si mesmo, o “ecce venio” e o “ecce ancilla” (1, 3).
O estilo e as imagens deste parágrafo podem parecer-nos um tanto
obsoletos; a doutrina, ao contrário, é muito elevada e de um grande e rico
conteúdo. As últimas linhas poderiam com toda a oportunidade encontrar lugar
nos grandes comentários espirituais ao Cântico dos Cânticos. Trata-se, com
efeito, do “amor puro e fiel”, “puro e desinteressado” do esposo e da esposa,
um amor a respeito do qual S. Agostinho pode aconselhar: “Ama e faz o que
160

quiseres”. O parágrafo terceiro “A oferta de si mesmo” não faz mais do que


precisar esta frase de S. Agostinho, uma vez que tu quererás aquilo que Ele
quiser: “Tudo é deixado à livre escolha d’Aquele a quem (a vítima) pertence
inteiramente” (Parte 1, § 3).
Assim se pode compreender a que nível, logo desde o princípio do
“Directório”, é colocado e entendido aquele “ecce venio”, que é a “nossa
vocação”: precisamente ao nível do “puro amor”.
Também o vocabulário é característico. Parece ouvir o todo y nada de S.
João da Cruz: “Em todas as circunstâncias, em todos os acontecimentos,...
Tudo é deixado à livre escolha d’Aquele a quem (a vítima) pertence
inteiramente... Abandono total... completo deixar fazer...” (1, § 3), e no
parágrafo segundo: “um amor puro e desinteressado... Com todos os seus
pensamentos, com todo o seu coração, com uma intenção pura e
sobrenatural... em todo o tempo... O fim último, a meta suprema, o centro de
todas as coisas... Este amor constante, que não opera, que não age senão
n’Ele e para Ele...”.
E ainda nos parágrafos seguintes: “O reino de Nosso Senhor em nós”
(§4); “A recta intenção” (§5); “A abnegação e o abandono” (§6), volta a ser
utilizado este vocabulário de totalidade. Releiam-se, notando bem as
expressões, e, ficar-se-á surpreendidos pelo movimento do texto e também
pela exigência daquele amor que é, segundo o título da primeira parte, “O
espírito da nossa vocação”. Totalidade e pureza exprimem a radicalidade da
vida de amor, que nos é proposta como ideal. Ideal impossível e quimérico,
poderá pensar-se. No entanto, é o caminho traçado por Jesus; e trata-se de
amar como Ele nos amou. Ele mesmo nos amou como o Pai O amou a Ele:
“Assim também a nossa atitude é o abandono total, o completo deixar fazer,
fixando o olhar n’Aquele que nos precedeu por este caminho e o tornou
praticável...” (1, §3).
A solução é, antes de mais, o mesmo abandono, que é apelo e
acolhimento da solicitude de Deus: “Se alguém, se entrega deste modo a
Nosso Senhor, Nosso Senhor dá-Se-Lhe também, e então nada lhe poderá
faltar” (1, §3).
Em primeiro lugar, portanto, o movimento da fé, da esperança e do amor,
em que radica o nosso ecce venio.
O amor que nos chama e que “foi derramado nos nossos corações pelo
Espírito Santo que nos foi dado” (Rom 5, 5) não pode deixar-nos sem recursos.
Basta-nos apenas apoiarmo-nos n’Ele e permanecermos abertos a Ele, “e se
devido à obscuridade, a incerteza invadir o espírito e o coração, perseveremos
com paciência e com amor neste estado, até que praza à sabedoria e à
bondade de Deus fazer brilhar de novo a sua luz” (1, §3). É uma reflexão muito
realista no plano espiritual e poderia ser comentada com os escritos de S. João
da Cruz e de todos os grandes mestres do espírito. Esta expectativa, na noite, é
também uma forma de realizar o ecce venio.
Mas há também a ascese e a doutrina do nosso “Directório”, que é
também uma mística, e nada tem a ver com o quietismo.
161

Os três parágrafos: “O reino de Nosso Senhor em nós” (1, § 4); “A recta


intenção” (1, § 5); “A abnegação e o abandono” (1, § 6) continuamente o fazem
lembrar. Os parágrafos paralelos e complementares sobre “As virtudes próprias
da nossa vocação” (sexta parte) inserem se na mesma linha ascética, mas
também na mesma perspectiva mística dos três primeiros parágrafos da
primeira parte.
A ascese, longamente descrita no “Directório”, só tem sentido em função
do “amor puro e fiel” (1, § 2), e da “oferta de si mesmo (1, § 3) no ecce venio
com e como Cristo. A radicalidade do amor — “totalidade” e “pureza” — dá a
medida da exigência das virtudes. São também a sua luz e justificação.
Seria atraiçoar a intenção e o espírito do Pe. Dehon e do “Directório”,
como é, separar os parágrafos sobre os “exercícios” e sobre as “virtudes”, para
avaliá-los e fazer-lhes a crítica, menosprezando a relação estreita, se não nos
pormenores ao menos no alcance geral, com o ideal do “puro amor” e do
“abandono total”: o ecce venio que tão explicitamente é definido como “a nossa
vocação, a nossa finalidade, o nosso dever, as nossas promessas” (1, § 3). O
mesmo parágrafo terceiro acerca da “oferta de si mesmo” e do “ecce venio”
pede-nos antes de tudo, que olhemos para “Aquele que nos precedeu por este
caminho...” e tudo isto é, sem dúvida, a primeira, a melhor e a mais necessária
“ascese”, a que condiciona todas as demais.
A contemplação do mistério e dos mistérios de Cristo é o terreno em que
radica, antes de tudo e da forma mais sólida, o nosso ecce venio.

UMA IMOLAÇÃO

Se o termo “oblação”, como se viu, quase não aparece no “Directório”, a


palavra “imolação”, ao contrário, aparece a cada passo, quase até à saciedade,
desde o primeiro parágrafo, no título e no desenvolvimento, e, portanto, em
todo o “Directório”, a propósito de todos os temas, dos mistérios de Cristo, de
Maria, ou da vocação de S. João, no tocante às virtudes, às regras, aos
exercícios de piedade.
Um capítulo especial (o quinto da terceira parte) trata da “profissão de
amor e de imolação”, cuja parte essencial provém das Constituições de 1885-
86, já completadas e transcritas nas edições do “Directório” de 1905 e 1908. O
método de composição e a própria redacção demonstram à evidência, da parte
do Pe. Dehon, uma vontade de fidelidade original, até no texto. Quem quiser
compreender o “espírito da nossa vocação” tem de ler, antes de mais nada, e
meditar este capítulo quinto da terceira parte.
Efectivamente trata-se do próprio coração do “espírito da nossa vocação”:
“Esta profissão de amor e de imolação — diz o texto — confere à nossa obra o
seu carácter específico” (III cap. V, § 1). Tudo se determina, a partir desta
“profissão” e, sobretudo, a nossa contemplação do mistério de Cristo: “Ela
determina quais as virtudes especiais de Nosso Senhor e que aspectos da sua
vida são propostos mais directamente à nossa imitação: a imolação completa
em espírito de amor e de reparação” (III, cap. V, §1).
162

Com esta profissão e com a vida de amor e de imolação — afirma-se-o


de passagem — segundo o título da Introdução “finalidade do nosso Instituto”,
nós “respondemos aos apelos de Nosso Senhor em Paray-le-Monial, às
inspirações da graça e à acção da Providência” (Introdução).
É, portanto, muito importante meditar e aprofundar este capítulo quinto da
terceira parte.
Desenvolve-se em três parágrafos: §1: “É a nossa vocação especial”,
título que evoca brevemente alguns motivos e elementos de definição e de
descrição a respeito da vida de vítima; o § 2: “As obrigações desta profissão” de
amor e de imolação que tem um andamento expositivo; o § 3: “A perfeição da
vida de imolação” em tom exortativo.
Sabemos que nos sucessivos projectos de Constituições, submetidos à
aprovação eclesiástica, diocesana ou romana esta “profissão”, apresentada
inicialmente como um “quarto voto” sempre foi apreciada e admirada pelas suas
intenções e pelo seu espírito; mas discutida e contestada por causa da sua
natureza e do seu conteúdo.
Encontramos vestígios destas dificuldades também no “Directório”, o qual
esclarece: “A
nossa profissão de imolação não é um voto. É antes um bom propósito. Há, na
sua observância, ao menos uma obrigação de conveniência e de coerência.
Descurando-a, perdemos grandes graças e tornamo-nos infiéis à vocação
especial que Nosso Senhor nos inspirou” (§2).
Por conseguinte, não há qualquer obrigação jurídica, mas o compromisso
de corresponder ao chamamento e à acção do Espírito Santo, à força do
amor.16
Encontra-se aí a tentativa de concretizar tal obrigação com a oferta
explícita das orações, acções, sofrimentos, méritos e com a aceitação de
sacrifícios. O esforço, no entanto, não parece, nem a nós nem ao Pe. Dehon,
muito convincente. É claro que as tentativas para determinar a “matéria” do
“voto” de imolação (ou de vítima) contam muito menos do que a vida de
imolação em si mesma, da qual trata todo o terceiro parágrafo.

***

16
Poderá notar-se, por exemplo, a substituição na edição de 1905 relativamente a de
1908 (no demais praticamente idênticas) da palavra “disposição” pela palavra “profissão”, a
respeito da imolação (cf. 1905, pág. 34 e 1908, pág. 12). Mas a palavra “profissão” será
retomada na edição de 1919. Sobre as mudanças da expressão nas diversas edições das
Constituições e do Directório, cf. H. Dorresteijn SCJ: “De spiritualitat P L. Dehon, pág. 113-
115, com amplos desenvolvimentos doutrinais sobre a excelência, as obrigações e a
perfeição da vida de imolação e sobre as suas aplicações relativamente aos “méritos” e ao
“acto heróico” (Pag. 116-133); ou ainda todo o capítulo II (Pág. 25-43) sobre “o espírito de
amor e de imolação”. Este opúsculo do Pe. H. Dorresteijn é excelente para consulta e estudo.
Sobre a “profissão de imolação” e o voto de vítima, o Pe. M. Denis fornece muitas
informações históricas (cf. Le Projet du P Dehon, índice: “profissão de imolação”).
163

No princípio, logo no primeiro parágrafo, aparece a tentativa de dar uma


definição teológica da vida de vítima: “Recordemos aqui as noções teológicas
relativas ao sacrifício e à vítima. A vítima é um ser vivo oferecido em sacrifício.
O sacrifício é a oblação de uma coisa ou de uma pessoa, feita a Deus, que
implica alguma destruição, a fim de reconhecer o seu supremo domínio e para
estes quatro fins: adorar, agradecer, suplicar, expiar” (§1).
A formulação, na sua brevidade, é, como se vê, de uma grande
densidade e rigor teológicos. Lá está todo o vocabulário tradicional acerca do
sacrifício: sacrifício, vítima, oblação, destruição (= imolação) e os quatro fins do
sacrifício. Já fizemos referência à origem desta forma de apresentar o sacrifício,
na qual “alguma destruição da vítima” é essencial ou, ao menos, é aquilo, que
ritualmente, realiza o sacrifício; ao passo que a oblação é apenas uma espécie
de prelúdio, de preparação.17
A teoria da Escola francesa e, particularmente, do Pe. Condren não
carece de grandeza e de profundidade, não obstante algumas expressões por
vezes surpreendentes para a nossa mentalidade e sensibilidade teológicas.
Qualquer que seja o juízo a formular sobre esta teologia do sacrifício, notemos
que o Pe. Dehon a acolheu por aquilo que nela há de interessante para a sua
concepção da vida de imolação em si mesma e para o espírito de amor e de
imolação.
Antes de mais nada, não se trata de oferecer (e de destruir) “coisas”.
Aquilo que é oferecido (e imolado) é um “ser vivo”, uma pessoa. A sua imolação
consiste em “rezar, agir, sofrer e sacrificar-se pelo Coração de Jesus..., por seu
amor e em união com Ele” (§1). É evidente que não se trata de uma
“destruição”, mas de uma realização (=de algo que se faz). A que união poderia
levar a destruição? O Pe. Dehon limitou-se a adoptar uma definição, mas
descurou a lógica implacável e as conclusões de uma teoria.
O Pe. Dehon substitui o “domínio soberano” a reconhecer, pelo “amor” a
viver e pela “união” a realizar. Entre a imolação-destruição sacrificial da Escola
francesa e a imolação “dehoniana”, há, sim, algumas analogias, mas só
analogias. Na realidade, é outra atmosfera, outro ar que se respira: aquele que
a “devoção ao Coração de Jesus” inspira. “A vítima do Coração de Jesus deve
sacrificar-se — escreve o Pe. Dehon — por amor, nas chamas do mesmo
divino Coração. Foi no amor do seu Coração que Jesus consumou o seu
sacrifício, principalmente na agonia e no alto da cruz” (§3). Da ideia de
“destruição”, a imolação dehoniana conserva o conceito de uma “oblação” que

17
Esta “referência” às noções teológicas relativas ao sacrifício e à vitima” aparece no
“Directório Espiritual” de 1905, cuja sistematização tinha sido confiada ao Pe. André Prévot
(ct. “As fontes”, nota 2). Através do Pe. Prévot, esta definição foi introduzida em nota, nas
edições de 1905 e 1908 e, depois, no próprio texto, em 1919. O texto encontra-se no começo
da 14ª meditação das “Fleurs nouvelles” do Pe. Prévot (1904) sobre o “espírito de vítima em
união com o Sagrado Coração”. Notemos apenas a correcção significativa introduzida no
“Directório”. “A vitima é um ser vivo...; o sacrifício e a oblação de uma coisa ou de uma
pessoa..:’. As palavras em itálico são acrescentadas pelo “Directório” de 1905 e de forma
seguramente intencional, tanto da parte do Pe. Prévot, como da parte do Pe. Dehon que reviu
a edição publicada em seu nome.
164

se exprime em todas as suas consequências, uma “oblação” que não é só


formulada, mas realizada, não apenas como oferta, mas também como tomada
de posse perfeita e total. É precisamente aquilo que desenvolve a segunda
parte do terceiro parágrafo, onde se encontram acentuados os termos “radicais”
já referidos a propósito do ecce venio e da oblação: “abandono total..., tudo por
amor..., completo deixar fazer”; fórmulas já encontradas nos primeiros três
parágrafos da primeira parte.
Em conclusão, “a perfeição da vida de imolação” não é senão a perfeição
da vida de oblação. “O nosso lema, a nossa máxima preferida” é o ecce venio,
“a palavra da vítima divina”, na qual “se encontram toda a nossa vocação, a
nossa finalidade, o nosso dever, as nossas promessas” (1, § 3). Por isso, a
“profissão de amor e de imolação confere à nossa obra o seu carácter
específico” (III, cap. V, § 1).
A “regra de vida de Jesus” (II, cap. I, § 1) é também “a nossa regra de
vida” (III, cap. V, § 3).

***

É preciso reconhecer que as palavras “imolação”, “vítima” e talvez


também “sacrifício” conservam uma ressonância, um certo sabor “dolorista” e
negativo.18
Já todo o primeiro parágrafo do “Directório” parece impregnado de tal
sabor: “um coração para amar, um corpo para sofrer, uma vontade para ser
sacrificada” (I, §1). E pouco antes o Pe. Dehon fala do “sacrifício do corpo, da
natureza que está condenada a morrer” e dos “sofrimentos venham donde
vierem e seja qual for o seu nome” (I, § 1). No parágrafo terceiro as “pegadas”
de Jesus são “pegadas sangrentas”; “seguindo o caminho que Cristo mostrou, o
caminho do abandono, dos sofrimentos, da cruz, do sacrifício e da morte” (I, §
4) podemos progredir no amor para com Ele. “A loucura da cruz é o distintivo
dos seus verdadeiros discípulos, das vítimas que Lhe são consagradas” (I, §
10).
Mistérios de Jesus, mistérios de Maria, vocação e profissão de S. João:
são sempre os mistérios de dor que são privilegiados; não apenas eles, com
certeza, mas eles, em particular, estão “repletos de ensinamentos para a nossa
vocação” (II, cap. I, § 4).
No Calvário, Maria chega à experiência suprema do seu ecce ancilla, “a
entrega completa de si mesma”. O esposo divino é “um Deus crucificado, um
Esposo de sangue que oferece aos seus eleitos a cruz, que os convida a
carregá-la no seu seguimento” (II, Cap. II, § 3).
Também S. João ouviu com o seu “segundo sequere me um convite a
seguir Nosso Senhor no jardim da agonia, no caminho do Calvário e até aos

18
A fim de não compreender mal estas reflexões em sentido “dolorista”, convém ter
presente que, na espiritualidade do Pe. Dehon, segundo o ensinamento e o exemplo de
Cristo, a dor, a cruz, a imolação não são fim em si mesmas, mas sim provas de amor e têm
por alma o amor. Tenham-se também presentes, mais adiante, as considerações sobre a
afirmação do “Directório”: “Não há amor sem dor” (11, cap. 1, § 4) (N. do T.).
165

pés da cruz, no Gólgota. Sempre assim será também para nós, para a Obra em
geral e para cada um em particular”: é “a graça da imolação” (II, cap. IV, § 1).
Os dois grandes desenvolvimentos (II, cap, IV, § 2 e 3), acerca da “formação” e
da “profissão” do Apóstolo, que é “necessariamente o padroeiro e o modelo dos
Sacerdotes do Coração de Jesus”, mostram-no-lo “no Cenáculo e no Calvário”:
“Sobre o Coração abrasado de amor do seu divino Mestre e aos pés da cruz,
tornou-se vítima do Coração de Jesus, vítima de amor e de reparação” (II, cap.
IV, § 2).
Para o Pe. Dehon, bem o sabemos, não se tratava apenas de piedosas e
fervorosas considerações, mas correspondia à realidade da sua vida profunda.
Poderíamos prolongar a análise dos textos e confirmar-nos-íamos nesta
orientação de fundo relativamente ao sentido que o Pe. Dehon atribui à palavra
“imolação”: uma vida de união “sem reservas” à oblação de Cristo, que se
realiza plenamente no Calvário, na união à imolação de Jesus na cruz: “Não
basta carregar a cruz exterior e forçadamente; é preciso abraçá-la com amor,
levá-la com coragem e alegria; desejá-la com ardor, como o maior e mais
seguro tesouro” (cap. III § 3).
Tudo isto nos confunde um pouco nas nossas certezas e convicções.
Não gostamos nada destes vocábulos “vítima” e “imolação”, e reivindicamos
com razão o direito de contemplar a Cristo, também e sobretudo na sua vida
pública, no ímpeto da sua actividade e, acima de tudo, de nos unirmos a Cristo
ressuscitado que nos convida a continuar a sua missão, e vive no coração dos
homens e do mundo.
O Pe. Dehon bem o sabia. Renunciou de bom grado à denominação de
“sacerdotes-vítimas” para a sua Congregação: “Poderíamos chamar-nos
vítimas em Marselha, em S. Quintino teria parecido rematada loucura”, escreve
ele ao Pe. A. Guillaume (18 de Fevereiro de 1913, cf. M. Denis, Le Projet du P
Dehon, St. Deh. 4, pág. 338). Mas, da sua parte, nunca renunciou a utilizar a
palavra “vítima” sobretudo para exprimir a realidade espiritual e de vida que
esta palavra evoca para ele e para a Congregação.
“Eu não pretendi criar uma obra de consoladores sem reparação. Quis
fazer uma obra de reparação e de vítimas. Não tomei o nome de vítimas;
escolhi o de oblatos que, para mim, exprimia a mesma coisa...”.
“As nossas Constituições são hoje, substancialmente, as mesmas de
1877. Nós somos Sacerdotes-vítimas. A nossa espiritualidade é “spiritus amoris
et immolationis” (ou ‘Victimae”, se se quiser)” (Carta ao Pe. Guillaume, cf. M.
Denis, o.c., pág. 338).
Não estamos certamente obrigados a usar o termo “vítima”, mas não
podemos ignorar de ânimo leve a realidade da imolação, como se se tratasse
de um aspecto marginal ou secundário. Na verdade, é um elemento integrante
do ecce venio, que gostamos de considerar “o nosso lema e a nossa máxima
preferida” (III, cap. V, § 2). Quereríamos até ir mais além da expressão do
“Directório”; o espírito de imolação aparece-nos como algo mais do que “uma
piedosa resolução” e do que “uma obrigação de conveniência”; literalmente o
texto insinua isso mesmo: “ao menos uma obrigação de conveniência” (III, cap.
V, § 2), quer dizer, no fundo e na realidade, “muito mais”.
166

Uma tal insistência e uma tal importância não se fundamentam com


certeza em meras considerações de piedade sensível. Nem se pode negar que
o “Directório”, sobretudo nestas páginas, manifeste a marca do seu tempo e do
seu ambiente. Com toda a certeza que hoje o Pe. Dehon usaria outro estilo e
outra forma de exprimir-se. É indispensável ter em linha de conta estas
contingências, para apreciar à mesma a doutrina que, com demasiada
facilidade se pode caricaturar ou então forçar ou ainda esvaziar dos seus
autênticos conteúdos.
Na origem desta espécie de polarização espiritual, antes e muito para
além das “luzes de oração” da Ir. Maria de S. Inácio, há sobretudo a dinâmica
própria da devoção ao Coração de Jesus: aquelas “imagens” e aquelas
palavras de Nosso Senhor em Paray-le-Monial, das quais o Pe. Dehon
confessa que o “impressionavam profundamente” e que foram o “primeiro
motivo” da própria fundação do Instituto (cf. NHV XII, 167-168).
Tudo isso o encontramos no “Directório”: “Nosso Senhor não nos
mostrou, acaso, a cruz entre as chamas de amor que se desprendem do seu
Coração? Não foi no Calvário que Ele, depois de ter derramado todo o seu
Sangue, nos abriu o seu Coração, para aí receber os nossos e os tornar
semelhantes ao d’Ele, isto é, prontos a se sacrificarem e imolarem por amor?”
(II, cap. II, § 8).19
Mais profundamente, podemos acrescentar nós, é a partir daquela
“imagem” (do Coração de Jesus) e daquelas “palavras” que o Pe. Dehon
fundamenta a sua doutrina da imolação na própria teologia e na dinâmica da
vida de amor e do puro amor.
Afirmamos que é mais do que uma “obrigação de conveniência” (III, cap.
V, § 2). E, com efeito, o Pe. Dehon descobre na própria experiência do amor,
por um lado, e, por outro, numa contemplação profundamente teológica da
paixão, a exigência da imolação por meio de uma vida de oblação.
O facto de “não haver amor sem dor” (II, cap. 1, § 4) deriva da
experiência da vida de amor.20 A fórmula talvez não surpreenda à primeira vista
e corre-se mesmo o risco de a tomar por uma daquelas piedosas expressões,
de sabor mais ou menos “místico”, que abundam na literatura espiritual, não
sem uma certa inflação de palavras.
Todavia, assim como está formulada, em absoluto, esta pequena frase
poderia ser um bom assunto para uma dissertação ou para uma tese, não só de
psicologia ou de filosofia, mas também de teologia. Com efeito, “Deus é amor”
(1 Jo 4, 8); e se o amor incarnado do Verbo feito carne, que é para nós a

19
Cf. a respeito deste assunto a resposta dada pelo Pe. Gennaro Bucceroni SJ,
professor de moral na Gregoriana, às objecções levantadas em 1906 por alguns consultores
do Santo Ofício, contra a “vida de amor e de imolação”, resposta resumida por Mons.
Philippe; ‘Se quereis dar aos Sacerdotes do Coração de Jesus o direito de cidadania na
Igreja, é indispensável permitir-lhes que vivam e actuem de acordo com o espírito da devoção
ao Coração de Jesus” (cf. M. Denis, o.c. pág. 205).
20
Esta expressão é retomada da “Table des vues d’oraison de Sr. Marie de S. lgnace”
(AD, B 34/7, pág. 1 v. 15 de Março).
167

revelação de “Deus amor”, não é possível “sem dor”, não apenas


acidentalmente, mas essencialmente como uma revelação analógica daquilo
que é o amor de Deus, do “Deus amor”, então as afirmações de S. João no
princípio da narrativa da Paixão assumem um relevo espantoso: “Sabendo
Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai, Ele que
amara os seus que estavam no mundo, levou até ao extremo o seu amor por
eles... Sabendo que o Pai depositara nas suas mãos todas as coisas e que
havia saído de Deus e ia para Deus, levantou-Se da mesa...” (Jo 13,1. 3-4).
A ligação entre o amor e a imolação (entre o sacrifício e a dor) encontra-
se aqui nitidamente sublinhada: o amor de Jesus para com os seus, mas
também o amor do Filho na sua relação para com o Pai; a lei deste amor é a
imolação. Paixão não pode ser um mero incidente de percurso na vida e na
missão do Verbo feito carne, um incidente, devido somente à cegueira e à
maldade dos homens. Ela não é, sem dúvida, apenas o “preço do pecado”, “o
preço da Redenção” (II, cap.I, § 4), segundo nos diz o “Directório”. Relendo e
meditando as páginas sobre a Paixão (II, cap. I, § 4) ou sobre as sete palavras
do Salvador na cruz (II, cap. IV, § 3), não podemos furtar-nos à impressão de
entrar numa espécie de mistério, descerrado exactamente por esta pobre e
simples expressão “não há amor sem dor”. Gostaríamos de deixar aos filósofos
e aos teólogos a tarefa de explicar a fórmula; mas temos a impressão de que,
em definitiva, ela é, da Paixão de Jesus, a última e mais profunda explicação;
como também oferece o verdadeiro fundamento teológico de toda a
espiritualidade de imolação, para além de todas as considerações psicológicas,
ascéticas e pastorais.
Quanto à prática, não se pode dizer que o Pe. Dehon e o “Directório”
favoreçam a inflação do dolorismo ou qualquer masoquismo. A imolação é
oblação, o ecce venio, vividos quotidianamente da maneira mais perfeita
possível. Reencontramos aqui as fórmulas do “completo abandono”, da “pureza
de intenção” e do “tudo por puro amor” (1, § 2 e 3).
Sabe-se que o Pe, Dehon não era grande promotor de mortificações
extraordinárias; preferia “deixar o cabo da vergasta a Nosso Senhor” (cf. carta
citada ao Pe. A. Guillaume); e continuava: “Insisto menos nas mortificações
pessoais, embora as considere necessárias, mas recomendo mais o abandono
paciente às provações que Nosso Senhor nos envia. Nosso Senhor não Se
crucificou; deixou-Se crucificar...” (cf. M. Denis, o.c., pág. 338).
O Pe. Dehon precisa e desenvolve o seu pensamento especialmente em
“Avisos e Conselhos”, no n.° IV: “O espírito de vítima em união com o Coração
de Jesus” (texto anterior a 1931). Aí se encontram todas as distinções úteis
acerca daquilo que pode e deve ser o espírito de vítima “para todo o cristão”,
“para a alma devota do Coração de Jesus”, para “os sacerdotes e os
religiosos”, para “as vítimas especiais chamadas mediante uma vocação
extraordinária” e, por fim, para “os Institutos religiosos nos quais o espírito de
vítima do Coração de Jesus foi escolhido como finalidade especial e como
característica própria”. O Pe. Dehon distingue também aquilo que é uma vítima
“em sentido geral” e “uma vítima do Coração de Jesus”; descreve as
“disposições” e as “práticas” do espírito e da vida de vítima ou de imolação.
168

O “Directório” é certamente mais sucinto e mais discreto; mas encontra-


se nele o essencial, tanto no que diz respeito às distinções, como no que se
refere às orientações. O Pe. Dehon bem sabia que também num Instituto “no
qual o espírito de vítima do Coração de Jesus foi escolhido como finalidade
especial e como característica própria”, “nem todos são chamados ao estado de
vítima mística, vocação de algumas almas privilegiadas”.
Mas “todos — continua o Pe. Dehon — podem e devem ser vítimas
práticas, mediante a docilidade à graça, a fidelidade no cumprimento do dever,
a generosidade na prática do sacrifício” (III, cap. V, § 3).
A perfeição da vida de imolação consiste, sim, na oração e na união
habitual com Nosso Senhor, mas também em “tornar perfeitas as nossas
acções, realizando-as com empenho, com espírito de fé e sob a inspiração da
graça”; e, no tocante aos nossos sofrimentos, em aceitá-los “de bom grado,
carregando alegremente a cruz, para o advento do reino do Coração de Jesus,
acrescentando-lhes algum sacrifício voluntário” (III, cap. V, § 3).
O Pe. Dehon mostra-se assim muito aderente à realidade e também
muito exigente. Dentro da palavra “acções” cada qual colocará tudo aquilo que
lhe diz respeito. É evidente que fazer “tudo por amor” requer uma imolação real
e efectiva. Quanto aos “sofrimentos”, aceitando-os de boa vontade e
carregando alegremente a cruz, tanto quanto de nós depende, a imolação
torna-se talvez mais evidente para a experiência do verdadeiro amor, que não
existe “sem dor’. “É preciso abraçar a cruz com amor, carregá-la com coragem
e com alegria, desejá-la com ardor, como o maior e mais seguro tesouro” (II,
cap. II, § 3; cf. III, cap. V, § 3). Tudo isto se situa no horizonte das “vítimas
práticas” e da perfeição da vida de imolação. “Avancemos por este caminho
com a confiança do abandono e com santa alegria” (III. cap. V, § 3); tudo o
resto nos será dado por acréscimo.
Esta profissão de amor e de imolação caracteriza-nos como Sacerdotes
do Coração de Jesus, é a “nossa vocação”, é o nosso carisma e a nossa
missão; e a graça para vivê-la não nos poderá, com certeza, faltar.

NO ESPÍRITO DE AMOR E DE REPARAÇÃO

Os últimos quatro parágrafos da primeira parte (§7-10) são dedicados,


como já referimos, àquilo que na Introdução do “Directório” é indicado como “a
finalidade principal” e “o carácter distintivo do Instituto”: “... uma especial e
ardente devoção ao Coração de Jesus, que os nossos religiosos se esforçarão
por consolar, reparando as injúrias que O atingem, especialmente as que mais
O ofendem, porque provêm das almas que Ele mais amou” (Introdução).
A vida de amor e de imolação, de que o ecce venio exprime a “máxima
preferida” e “a regra”, é o meio adequado para alcançar tal objectivo: “Oferecer-
se-ão ao Coração de Jesus como vítimas do seu beneplácito”. A reparação é o
objectivo e a finalidade própria do Instituto, como resposta aos apelos de Nosso
Senhor em Paray le-Monial, às inspirações da graça e à acção da Providência”
(Introdução).
169

A sequência dos parágrafos pode causar surpresa, pela aparente


alternância entre o particular e o geral: § 7 A santidade sacerdotal; § 8 A
reparação (em geral); § 9 A reparação sacerdotal; § 10 A reparação mediante o
amor. Mas não passa de aparência. Com efeito, também o parágrafo mais geral
intitulado “A reparação” (§8) não é, de modo algum, uma exposição doutrinal.
Entre o parágrafo sobre “a santidade sacerdotal” (§7) e o que trata de “A
reparação sacerdotal (§9), o parágrafo sobre “A reparação” (§8) aparece como
uma simples passagem ou também como introdução ao tema único e particular
do conjunto. No tocante ao parágrafo sobre “A reparação mediante o amor”
(§10), também ele parece genérico e pode, na verdade, ser lido neste sentido.
No entanto o começo mostra bem que é ainda o sacerdote como sacerdote a
ser considerado, na continuação da segunda parte do parágrafo anterior (§9):
“Sacerdotes devotados deveriam com o seu amor...”. Os dois parágrafos que
formam a ossatura do conjunto — o §7 sobre “A santidade sacerdotal” e o §9
sobre “A reparação sacerdotal” — reproduzem algumas “luzes de oração” da Ir.
Maria de S. Inácio. O Pe. Dehon adapta-os e enriquece-os literariamente.
Tudo isto põe em realce a importância que o Pe. Dehon atribuía a estas
considerações acerca da finalidade particular, sobre a “finalidade íntima” —
como ele dizia — da sua obra, e também os limites destes parágrafos relativos
à reparação em si mesma e ao espírito de reparação. Será necessário procurar
noutro lado a doutrina e o pensamento do Pe. Dehon sobre este assunto
importante e fundamental para situar o Instituto na Igreja e definir-lhe aquilo a
que hoje se dá o nome de “carisma”.
Os apontamentos das conferências dos “Cahiers Falleur” (St. Deh. 10)
poderiam constituir uma ajuda nesse sentido e bem assim as páginas dos
“Avisos e Conselhos” (n.° 7) sobre “A reparação, o espírito de vítima”, como
também as “Cartas circulares” ou alguma carta pessoal particularmente
importante a este respeito (Por ex. as cartas dirigidas ao Pe. Guillaume, em
1913). Por fim, as “obras espirituais” do Pe. Dehon e também os seus “escritos
sociais” oferecem boas pistas de investigação e de reflexão. Aliás, o tema da
reparação foi objecto de estudo e tratado em diversas publicações por alguns
religiosos da Congregação. As Constituições compostas em 1979, por fim, com
algumas breves transcrições, retomam e abrem perspectivas que poderão dar
uma boa ajuda em ordem à elaboração de uma doutrina renovada.
Tudo isto, porém, ultrapassa evidentemente as intenções deste estudo
centrado no “Directório”; mas é preciso não esquecer os limites das suas
páginas, para apreciar-lhes o conteúdo em si mesmo.

***

Antes de mais nada, tratando da “santidade sacerdotal” ou da “reparação


sacerdotal”, a perspectiva é, com clareza e evidência, subjectiva e largamente
ascética. Não é tanto o ministério ou o apostolado sacerdotal que estão em
causa, mas antes de tudo a sua santificação: uma fé viva, uma grande pureza
de consciência, a vida de Nosso Senhor em nós, o puro amor, o abandono, a
imolação; tudo o que antes foi dito sobre a vida de amor, de oblação e de
170

imolação é pura e simplesmente aplicado à “santidade sacerdotal”, como uma


exigência especial devida ao ligame pessoal e particular que o sacerdócio
estabelece e fundamenta entre o coração do sacerdote e o Coração de Jesus.
Este ligame diz respeito certamente ao ministério sacerdotal em si
mesmo e, a propósito da “santidade sacerdotal” e da “reparação sacerdotal”
são recordados precisamente os ministérios sacerdotais, as obras, a
administração, as lutas e também as acções extraordinárias. Tudo isso é dito
de passagem: não propriamente como assuntos a tratar, mas como ocasião da
própria reparação. Esta depende do coração. Aquilo que o sacerdote faz ou
pode fazer conta menos (parece) do que a intenção e o modo como o faz.
A verdadeira “reparação”, tal como nós a consideramos, objectiva,
eclesial ou social, aparece segundo a citação conclusiva, tomada de S. Mateus
(6, 33), como dada “por acréscimo” (§10). Esta é a linha geral e o pensamento
insistente dos parágrafos sobre “A reparação” (§8) e “A reparação sacerdotal”
(§9).
Nada disto exclui, claro, uma concepção mais ampla e mais aberta. O Pe.
Dehon, no último parágrafo (§10), quase instintivamente atenua e inflecte
discretamente a perspectiva, reintegrando na reparação de Cristo (e dos seus
verdadeiros discípulos) o “desejo de reparar a glória do Pai celeste, de salvar
as almas, de torná-las felizes, de ser correspondido por elas no amor”.
Além da sua santificação pessoal, a finalidade da Congregação dos
Sacerdotes do Coração de Jesus postula também o “zelo pela salvação das
almas” (cf. Introdução), e também este “zelo” deve ser reparação. Todavia a
linha de conjunto permanece a de uma “ascese” e de uma “mística” da
santidade pessoal do sacerdote como “resposta de amor” ao “amor de Nosso
Senhor”; uma reparação que é, não exclusivamente, mas de modo eminente
“consolação, indemnização, compensação”. Este modo de conceber a
reparação merece o seu apreço, não obstante todas as objecções, até porque
não existe ainda uma verdadeira demonstração da impossibilidade e da
inverosimilhança de semelhante “reparação”. Com certeza que tal reparação
remete o sacerdote para a consciência da sua relação pessoal e privilegiada
com Cristo e, porque não dizê-lo, da sua situação no coração da Igreja, esposa
e corpo de Cristo.
Era aqui precisamente que o Pe. Dehon via e situava a sua própria
Congregação: “As almas votadas ao amor do Coração de Jesus — escreve ele
em “A Vida Interior” — são o coração da esposa, o instrumento da Igreja para
amar e consolar a Jesus. As almas reparadoras são como que o corpo místico
de Jesus Cristo, instrumento da Igreja para imolar-se pela glória de Deus e pela
salvação das almas” (La Vie interieure — Les principes, pág. 264-265).
Esta citação extraída de uma obra do Pe. Dehon, contemporânea da
última edição do “Directório” (1919), evitar-nos-á, porventura, a incompreensão,
pelo menos em parte, do autêntico conteúdo dehoniano destas páginas do
“Directório” sobre “A reparação” e “A reparação sacerdotal”.
É talvez uma boa chave de leitura e de reflexão para abrir e descobrir
uma verdadeira perspectiva, sem o risco de cair na ilusão ou de encontrar
“alibis” no que se refere à nossa “participação na missão da Igreja”, que somos
171

chamados a assumir em virtude precisamente da “nossa vocação reparadora”


(cf. Cst. de 1979, n. 23 e 26-27).
Acerca de “O espírito da nossa vocação” e de “Os modelos e os
padroeiros da nossa vocação” o “Directório” apresenta-nos páginas fervorosas
e, por vezes, ardentes. De modo geral, talvez nos agradasse mais uma forma
mais discreta de expressão, e tememos sempre, com uma espécie de violência
Íntima, aqueles apelos ao nosso coração em matéria de fé, de oração e de vida.
Na realidade tudo isto nos toca o coração, na medida em que se trata do
“espírito da nossa obra, tal como foi concebido desde as origens” e se foi
desenvolvendo e clarificando ao longo de quarenta anos de vida da
Congregação (1878-1919). Representa, para nós a “seiva original”, de que fala
Paulo VI, não certamente toda a árvore nem todos os frutos, mas aquilo que
confere à árvore a sua fecundidade e aos frutos a sua qualidade específica.
Houve e haverá ainda enxertos, mais ou menos transformadores, mas
será pelos frutos que se reconhecerá a sua própria vitalidade. É certo, no
entanto, que será sempre necessário ter em conta a seiva original e a ela voltar.
Não se enxertam macieiras numa cerejeira; cada árvore, com efeito,
reconhece-se pelo seu fruto (Lc 6, 44). A leitura e a meditação do “Directório”,
sobretudo nestas páginas que podem parecer-nos tão distantes de nós e tão
alheias ao nosso gosto, podem preservar-nos de muitas confusões e de algum
erro de percurso. Tudo isto constitui certamente o seu valor duradoiro, para
além das próprias consequências e aplicações práticas que nos são propostas
nas regras e exercícios ou pela própria prática das “virtudes próprias da nossa
vocação.”

AS VIRTUDES PRÓPRIAS DA NOSSA VOCAÇÃO

A sexta parte do “Directório”, sobre “As virtudes próprias da nossa


vocação”, é quantitativamente uma das mais importantes da edição de 1919 (48
páginas), a seguir à segunda parte sobre “Os modelos e os padroeiros da
nossa vocação” (50 pág.). É também a parte, cuja evolução, desde a primeira
redacção das Constituições de 1885-86, se pode seguir com mais continuidade.
No essencial e quase textualmente é retomada nas edições de 1905 e de 1908.
Deste texto primitivo encontramos largos trechos na edição de 1919. É o
núcleo originário do “Directório” e, sem dúvida, a parte mais original como obra
do Pe. Dehon.
Apenas três breves fragmentos são retirados e adaptados das “luzes de
oração” da Ir. Maria de S. Inácio: o § 7 sobre “A simplicidade”; o § 19 sobre “O
abandono e a conformidade com a vontade de Deus” e o § 20 sobre “A alegria
nas provações e o amor à cruz”.
O texto primitivo, desde a edição de 1885-86 até à de 1908, é apreciável,
escrito num estilo relativamente sóbrio: e a organização geral do conjunto, bem
como de cada parte, revela um notável sentido da composição.
Sente-se que, pelo facto de ter sido integrado nas Constituições, o
“Directório”, mesmo sem cingir-se ao rigor, forçosamente um tanto seco das
172

fórmulas jurídicas, de algum modo tira proveito desta proximidade, para


exprimir uma doutrina reflectida, fruto de um fervor raciocinado.21
O texto de 1919 é muito mais abundante, com uma organização menos
exacta no conjunto e com um estilo aparentemente menos unitário.
O texto das edições desde 1885-86 até 1908 apresenta 10 virtudes: O
amor de Jesus Cristo; A vida interior; A caridade; A humildade; A mortificação;
A abnegação; A conformidade com a vontade de Deus; A rectidão de intenção;
O zelo; O amor à cruz. Desde “O amor de Jesus Cristo” ao “Amor pela cruz”,
passando pela “Vida interior” até a “O Zelo”, encontramos dois grupos de
virtudes: passivas ou negativas (humildade, mortificação, abnegação) e activas
ou positivas (caridade, conformidade, rectidão de intenção).22
Torna-se bem mais difícil reagrupar as vinte e quatro virtudes
apresentadas pelo “Directório” de 1919. O núcleo original foi partido. Os
elementos encontram-se aqui e acolá, mais ou menos modificados. Os novos
parágrafos tratam de “virtudes” que não estão talvez ao mesmo nível de
importância das grandes virtudes fundamentais, ainda que o seu valor prático
seja justamente sublinhado (cf. § 10: “A ordem nas pequenas coisas”; § 11: “A
regularidade — a exactidão”). Verifica-se que a parte reservada a “O zelo” é um

21
A propósito deste texto de 1885, o Pe. M. Denís observa; “Este Directório possui
uma boa vivacidade, se bem que a linguagem já não seja a nossa. O seu interesse consiste
no facto de constituir uma reflexão pessoal de Pe. Fundador, numa altura em que as
provações amadureceram o seu projecto inicial e o libertaram da influência que pesava em
demasia sobre a sua delicadeza respeitadora das ajudas que considerava providenciais; de
acordo com o parecer do seu director espiritual” (o. c. Pág. 262). Mas fica por fazer um
estudo sobre a composição dos próprios textos (Constituições de 1885 e Thesaurus de
1886); como também sobre os textos de 1891. Por fim, é preciso constatar que a edição de
1919, redigida pelo Pe. Dehon em pessoa (cf. “As fontes”: documento 6 3/1-2) voltou de
forma abundante àqueles “contributos providenciais”.
22
No Capítulo Geral de 1886 havia sido proposto “rever na regra a parte respeitante
às dez virtudes (do cap. VIII das Constituições de 1885-86), as quais podiam ser reduzidas a
seis”.
As seis virtudes são as seguintes: 1. A caridade, “esta virtude abrange o amor a Jesus
Cristo e a caridade fraterna”; 2. A humildade; 3. A conformidade com a vontade divina e a
pureza de intenção; 4. A vida interior; 5. O zelo; 6. A imolação que “encerra a abnegação e o
amor à cruz” (manuscritos 6 e C das Const. de 1885-86).
O texto é o mesmo, mas com diferente distribuição, mais lógica e mais sintética e uma
nova introdução também ela muito interessante; “Nosso Senhor indicou-nos, Ele mesmo, as
principais virtudes do seu divino Coração. No seu ensinamento assinalou-nos três e outras
três resumem a sua vida mortal. Pôs em primeiro lugar a caridade e a humildade: Aprendei
de Mim que sou manso e humilde de coração (Mt 11, 29). Revelou em terceiro lugar a
conformidade com a vontade divina, quando em diversas situações repetiu o pensamento do
profeta: Eis que Eu venho.., para fazer, ó Deus, a tua vontade (Heb 10, 7; cf. SI 40, 8-9)”. O
Pe. M. Denis observa: “A vida interior, o zelo, a imolação resumem toda a vida mortal de
Nosso Senhor: a sua vida oculta (vida interior), a sua vida pública (zelo), o sacrifício do
calvário continuado na Eucaristia (imolação)” (o. c., pag. 264).
Encontramos o texto sobre as “dez virtudes” no Thesaurus de 1886 (pág. 110-153) e
no texto A das Constituições de 1885-86, aprovado por Mons. Thibaudier (cf. St. Deh. 2, pág.
45-70).
173

tanto reduzida (uma página em vez das três de 1885-86). O último parágrafo,
felizmente acrescentado, “Amar a Igreja”, ocupa apenas uma dúzia de linhas.
Ao contrário é necessário reconhecer o interesse do método, que
consiste em multiplicar as aproximações de uma mesma virtude fundamental,
sob aspectos diferentes mas complementares. Tudo isso favorece a meditação
e a penetração progressiva e, além do mais, não se pode esquecer que o
“Directório” não é um tratado de teologia, mas apenas o esboço de uma
pedagogia da oração e da própria vida.
A partir de uma breve citação da Escritura, desenvolve-se uma reflexão
que é uma pequena meditação sobre cada virtude (§1, 2, 4, 5, 6, 7, 18, 20). Nos
restantes parágrafos descobrimos uma exortação bem estruturada (cf. § 3, 10,
11, 12, 13, 15, 16, 17). Dá a impressão de que o Pe. Dehon retoma os seus
apontamentos de conferências, os completa, ordena e estrutura.
Convidará os superiores de comunidade, nas suas exortações e
conferências, a “valerem-se da leitura do Directório” (§12). Põe nisso toda a sua
experiência espiritual, toda a sua experiência prática de fundador e de superior.
E esta composição, por vezes um pouco recheada de pormenores, é, para o
leitor atento, de uma grande riqueza. Não se cairá no erro de pedir a estas
páginas aquilo que não podem dar; mas não se poderá deixar de reconhecer
que, em geral, não têm falsas ressonâncias e que muitas vezes sabem falar ao
coração, para uma boa revisão de vida e, por vezes, até para mais do que isso.
Compete a cada um saber descobrir aquilo que lhe convém, procurando e
retendo com humildade, simplicidade, fidelidade, vigilância, perseverança, etc.,
todas aquelas “virtudes” — e sente-se-o bem — que têm mais a ver com a
disposição do coração do que com a rectidão das acções.
Em suma, esta sexta parte sobre as “virtudes próprias” é um bom
complemento do primeiro parágrafo da primeira parte sobre o “espírito da nossa
vocação”. Apresenta-nos “a vida de amor e de imolação” sob diversas facetas e
torna-a acessível com orientações e recomendações mais concretas e práticas,
a fim de que o “espírito” se transforme em “vida”.

OS VOTOS – AS REGRAS – OS EXERCÍCIOS

As outras três partes do “Directório” — a terceira acerca dos “Votos”, a


quarta acerca das “Regras” e a quinta acerca dos “Exercícios de piedade” —
podem ser examinadas em conjunto. Os votos, as regras, os exercícios de
piedade têm certamente importância diferente, pelo que será indispensável
estabelecer uma hierarquia de valores. No entanto, tanto os votos como as
regras e os exercícios de piedade, no seu todo, dizem respeito à forma e ao
estilo de vida.
Encontramos, nestas três partes, muitos números das Constituições de
1885-86. São completamente iguais, ou na sua transcrição ou na adaptação de
1885 e de 1908.
174

A quarta parte sobre “As regras”, é extraída das nossas Constituições


(particularmente do capítulo 26) sobre a disciplina e as regras comuns
adoptadas nos Capítulos Gerais.23
Numerosas são as chamadas de atenção e as observações, feitas com
muito critério e impregnadas por uma grande experiência pessoal e
comunitária. Nisto devemos reconhecer ao “Directório” a característica de ser
fruto da vida de comunidade, como se desenvolveu ao longo dos anos. É uma
forma, um estilo de vida que lá se descreve. O candidato a quem se entrega o
“Directório” sabe, logo desde o princípio, como comportar-se nesse aspecto.
Tudo isto parece evidentemente também “datado” e é bem certo que em
muitos pontos estas três partes do “Directório” contêm muitas coisas que o
Concílio Vaticano II convida a suprimir ou a modificar, porque “ultrapassadas
(P. C. 3).
A própria vida, a evolução social e os últimos Capítulos Gerais fizeram já
uma certa selecção entre tais prescrições e recomendações. Aquilo que a
Congregação, por meio dos Capítulos Gerais, adoptou como correspondente a
uma necessidade ou a uma utilidade, pode também suprimi-lo ou modificá-lo —
com razão ou sem ela, o futuro o dirá — mas na nossa análise, não são em
primeiro lugar os pormenores que interessam, mas sim o próprio espírito da sua
organização.
Quanto a isto, a leitura e a meditação das páginas que estamos a
considerar conservam a sua utilidade e não são apenas um documento
histórico.
Encontramos nelas princípios de inspiração e de discernimento, dos
quais é possível tirar proveito para a realização do nosso estilo de vida nos
noviciados e quando se fazem revisões de vida pessoal e comunitária.
Por outro lado, o Pe. Dehon preocupou-se, praticamente em cada
assunto, com a orientação da reflexão justamente neste sentido, mediante
algumas linhas de carácter acentuadamente espiritual e inspirador.

***

Primeiramente, a respeito de “Os votos”, após algumas linhas sobre


“noções gerais” surge esta reflexão que se encontra nas Constituições de 1885-
86: “Os votos de pobreza, castidade e obediência, que constituem formalmente
o estado religioso, são comuns a todos os Institutos; mas diversificam-se pela
sua aplicação prática, consoante o fim específico que se propõe cada instituto
religioso”.
“Os Sacerdotes do Coração de Jesus compreenderão que devem fazer
consistir a perfeição que lhes é própria na perfeita observância das prescrições
que determinam para eles o sentido, o alcance e a prática dos votos de acordo
com a finalidade da sua vocação. Os votos devem ser emitidos e vividos no

23
Em boa verdade, trata-se do capitulo 16º das Constituições de 1906 então em vigor,
as quais não têm o capítulo 26º. Este pequeno lapso foi escrupulosamente conservado nas
edições de 1928 e de 1936. Não deixa de ser uma prova da sua fidelidade!
175

espírito de amor e de imolação que lhes é peculiar” (III, cap I; cf. Cst. 1885-86,
n. 111-112).
De modo mais pormenorizado, no que se prende com o espírito e a
virtude da pobreza, o Pe. Dehon esclarece: “Os sacerdotes do Coração de
Jesus não podem contentar-se com uma observância meramente exterior da
pobreza. É indispensável que tenham o espírito de pobreza, o gosto e o amor
da pobreza, se querem tornar-se pessoas de vida interior autêntica e levar uma
vida de amor e de imolação... A pobreza suportada com amor e por amor será
sempre fecunda para a reparação” (III, cap. II, § 3).
O mesmo deve dizer-se da castidade que é “particularmente a virtude das
vítimas..., daqueles que têm relações tão íntimas com Nosso Senhor... e são
como que a sua família espiritual” (cap. III, § 1); o mesmo se pode afirmar
relativamente à obediência “também para as verdadeiras vítimas uma virtude
muito querida” (III, cap. IV, §1).
Por outro lado, toda esta doutrina é retomada depois, no capítulo sobre
“A profissão de amor e de imolação” (cf. III, p. V), como já vimos. Encontramos
aí uma profunda unidade, tanto de inspiração como de movimento. Poder-se-ão
renovar, enriquecer e aprofundar as “noções gerais” e as “aplições
particulares”, o conceito dos votos e a prática dos conselhos; mas tudo isto
deverá ser sempre para nós uma forma da nossa “vida de amor e de imolação,
em espírito de reparação”. Esta torna-se mais rica e aprofunda-se, renovando
as “noções gerais” e mediante uma autêntica actualização teológica e prática
da nossa vida religiosa apostólica.

***

O capítulo das “Regras” (quarta parte) dá a impressão de uma multidão


de recomendações e de prescrições mais ou menos importantes e minuciosas:
uma espécie de regulamento interno das comunidades e da vida quotidiana, por
vezes de uma precisão tão realista que quase não se pode reter o riso ou o
espanto. Depois dos voos das outras partes do “Directório” (1, 11, VI), esta
parece-nos justamente “terra a terra”. Pensamos que tudo isto é tranquilizador
para o equilíbrio do “Directório” e para a vida espiritual que ele pretende inspirar
e orientar.
Com tal espírito de realismo e de equilíbrio espiritual se deverão acolher
estas minuciosas observações, tal como se aceita a “sapiência prática e
fragmentada” nos conselhos do Livro dos Provérbios e no de Ben-Sirá, depois
dos estupendos voos da “Sabedoria”.
Por outro lado, a regularidade exterior, o silêncio, o trabalho e a fidelidade
aos próprios deveres, os recreios e as conversações, a limpeza e o cuidado da
saúde, as relações exteriores, a hospitalidade..., como também as
recomendações sobre o “bom espírito”, sobre as tentações, sobre a
mortificação, sobre a direcção espiritual, etc., não nos parecem assim tão
ridículas e inúteis. Mesmo que não se diga, a vida de amor e de imolação
encontra aí o modo de ser praticada, mediante o exercício das virtudes próprias
da nossa vocação segundo o espírito do nosso carisma particular.
176

***

Falemos, por fim, dos “Exercícios”.


Sob o título de “Exercícios de piedade”, o “Directório” engloba tudo aquilo
que se refere às estruturas da oração pessoal e comunitária: desde a
meditação diária aos exercícios espirituais anuais, incluindo o ofício divino, a
Missa e o culto eucarístico, a Sagrada Escritura e as leituras piedosas, o
sacramento da penitência, os exames de consciência e, por fim, os exercícios
próprios da primeira sexta-feira do mês, dos meses de devoção e as novenas, a
união habitual aos mistérios de Nosso Senhor durante o dia, a devoção ao
rosário e a dos três santos Corações.
Resulta uma amálgama que, hoje em dia, desejaríamos mais ordenada e
hierarquizada.
Mas isto não quer, de modo algum, dizer que haja assim tantas coisas,
cuja utilidade se possa menosprezar.
É certo que o Pe. Dehon nunca pretendeu que as páginas do “Directório”
devessem ou pudessem ser suficientes. Por exemplo, acerca da vida de
oração, sobre a oração mental e a meditação, são propostas apenas algumas
orientações com uma ou outra breve indicação daquilo que deve inspirar a
nossa oração, sobre a prática e o método de oração mental, sem retomar o
amplo desenvolvimento proposto, em apêndice pelo “Directório” de 1908 sobre
o método (sulpiciano) de oração.
Notar-se-á também que acerca do “Ofício divino” (§3) e de “A Sagrada
Escritura” (§8), como ainda de “O sacramento da penitência” (§9), o Pe. Dehon
retoma um texto de 1891, omitido em 1908. Não há que lamentar, uma vez que
o recurso ao texto de 1891 contribui para reequilibrar o conjunto, relativamente
à inspiração e ao conteúdo da oração.
O espaço reservado ao culto eucarístico é sensivelmente importante: 11
de 30 páginas dedicadas, na edição de 1919, aos exercícios de piedade tratam
da Eucaristia. As páginas dedicadas ao culto eucarístico precisariam de ser
analisadas e meditadas. Não se deverá exigir uma teologia aprofundada e
actualizada da Eucaristia, do sacrifício e do sacramento. Examina-se e
descreve-se apenas o nosso comportamento de Sacerdotes do Coração de
Jesus em relação com “o espirito da nossa vocação” exposto na primeira parte
do “Directório”.
O sacrifício da Missa é o lugar e o momento privilegiado da nossa “oferta
reparadora” e a citação de S. Paulo — “quisera eu mesmo ser separado de
Cristo em favor dos meus irmãos” (Rom 9, 3) — confere a esta oferta
reparadora uma dimensão que nada tem de medíocre.
O Pe. Dehon insiste particularmente no sacramento da presença real e
na adoração, entendida como “uma missão pública, ao mesmo tempo honrosa
e carregada de responsabilidade” (V, § 5). Algumas indicações práticas
bastante detalhadas, novas em relação ao “Directório” de 1908, reflectem os
usos em vigor e reproduzem algumas prescrições ou recomendações dos
Capítulos Gerais.
177

Estamos na presença da vida prática da Congregação, tal como


progressivamente se foi instaurando nos primeiros quarenta anos da sua
história e que permaneceu em vigor, quase inalterada, até ao XV Capítulo Geral
(1966-67).
Sobre este tema da adoração e sob o título de “A reparação eucarística”
(§6), o Pe. Dehon reproduz, em 1919, um longo trecho das “luzes de oração” da
Ir. Maria de S. Inácio (cf. AD B 34/8). Encontra-se aí algo da inspiração e do
estilo dos trechos insertos na segunda parte.
Sem negar ou menosprezar o fervor e o interesse por um certo estilo de
adoração, pode-se afirmar, no entanto, que a meditação da Paixão, tornada
presente na Eucaristia, restringe singularmente o sentido “reparador” da
adoração eucarística e a actual teologia da Eucaristia não se encontra lá muito
à vontade. Será desejável, da nossa parte, sobretudo uma maior discreção a
esse respeito. Todavia deve manter-se a intenção geral e a recomendação no
sentido de uma adoração “em espírito e verdade”, isto é, marcada pelo “puro
amor” e pela “intenção boa e recta” (V, § 6).
Mais feliz é a derivação da mesma fonte (cf. AD, B 34, 7) do parágrafo 15
sobre os “Exercícios espirituais”. É muito genérico, mas também muito belo,
sugestivo e equilibrado, como os melhores parágrafos da primeira parte. E,
diga-se, em abono da verdade, para uma parte que trata dos “exercícios de
piedade”, não é uma má conclusão.

DO DIRECTÓRIO ESPIRITUAL...
ÀS NOVAS CONSTITUIÇÕES

O “Directório espiritual”, tal como o examinámos e apresentámos, é de


algum modo, a última mensagem desenvolvida e oficial que o Pe. Dehon nos
deixou para alimentar a nossa vida de Sacerdotes do Coração de Jesus. As
Constituições definitivamente aprovadas em 1923, na verdade, não passam de
uma refundição e adaptação jurídica das Constituições de 1906 à luz do Direito
Canónico promulgado em 1917.
No “Directório” o Pe. Dehon fala em seu nome, em nome da sua missão,
do seu papel, do seu carisma de fundador, como lhe foi conferido numa
experiência de fé e de amor nas “origens” e como frutificou durante quarenta
anos de vida religiosa (1878-1919).
Procurámos, por nossa parte, analisar o conteúdo desta mensagem,
reconhecer-lhe as fontes, pôr em evidência as grandes orientações, tanto na
inspiração geral como nas aplicações práticas e particulares. E certamente que
o não fizemos por um interesse meramente analítico, documentativo, histórico
ou estético, como se analisa um documento de arquivo, uma obra literária ou
científica; mas com o sentimento de tratar daquilo que nos foi transmitido e
confiado como “um livro de vida”. E é isso precisamente que pretende sugerir o
subtítulo dado a esta conclusão.

***
178

Para dizer a verdade, do “Directório espiritual” de 1919 às novas


Constituições saídas do Capítulo Geral de 1979, há muito mais do que uma
diferença de forma e de estilo. A primeira vista como que se descortina um
abismo.
As novas Constituições são coisa bem diferente daquilo a que, no
passado, se dava esse nome. Elas pretendem não apenas organizar a vida,
mas inspirá-la doutrinal e espiritualmente, tal como um “Directório espiritual”.
Foi tentada, de acordo com as orientações do Concílio e da Santa Sé, uma
integração profunda e estreita entre a inspiração e a organização. A coisa mais
surpreendente é o carácter propriamente “constitutivo” que foi conferido a todo
o texto das Constituições e não apenas a alguns números dos dois primeiros
capítulos.
O “Directório espiritual” do Pe. Dehon não tem certamente um carácter
“constitutivo”, mesmo se transcreve, aqui e acolá, alguns artigos das
Constituições. A análise das fontes põe a claro o seu carácter compósito. O
gênero literário da maior parte do texto é o da meditação e da exortação
espiritual. Através da descrição de uma experiência e de um estilo de vida, de
oração e de acção, fazem-se vir ao de cima as orientações e as linhas de uma
vida espiritual. Neste sentido o ‘Directório” aparece como um “livro de vida”,
mais do que como uma “regra de vida”; e é um dos seus méritos e vantagens
que nos ajudam a reconhecer e a viver de algum modo a experiência de fé do
Pe. Dehon e dos nossos primeiros religiosos (cf. Cst. 16).
Justamente para esta experiência nos remetem as novas Constituições,
tanto para conduzir-nos à origem do Instituto (nº2), como para imprimir um
“carácter” à “vida espiritual” (nº16) de cada um de nós. Por meio desta
experiência estabelece-se a continuidade e supera-se o abismo aparente entre
os dois textos.
E isto permite ao “Directório espiritual” do Pe. Dehon conservar a sua
actualidade.

***

É indispensável recebermos, com respeito e piedade filiais, o “Directório”


tal como é. Se o lemos e meditamos como uma palavra de Deus que nos é
dirigida e que deve produzir seu fruto de luz e de graça, fazemo-lo “sob a guia
do Espírito” (Cst. 16).
A nossa leitura, reflexão, oração, serão uma leitura, reflexão, oração que,
“a partir da graça das origens, se desenvolvem, nutrindo-se daquilo que a
Igreja, iluminada pelo Espírito, escolhe constantemente no tesouro da sua fé”
(Cst. 15). A Congregação é chamada “a fazer frutificar esse carisma (das
origens) segundo as exigências da Igreja e do mundo” (Cst. 1).
As novas Constituições representam o esforço da Congregação para
favorecer este desenvolvimento e levar o fruto, ou seja, o carisma, até à
maturação.
Podemos lamentar que o “Directório espiritual” seja quase
exclusivamente “devocional”, com uma certa falta de perspectiva doutrinal e de
179

orientações acentuadamente apostólicas, pastorais e missionárias (não se trata


de uma repreensão).
Tudo isto tem consequências para a contemplação da pessoa de Cristo,
dos seus mistérios, e para o próprio significado da vida de oblação e do espírito
de reparação, como também para o significado da “reparação eucarística”. Para
a inspiração espiritual de um Instituto que desde as origens foi concebido e
fundado como Instituto “apostólico”, ainda que com uma dimensão
contemplativa acentuada, o “Directório” parece relativamente pobre.24
A linha geral das nossas Constituições vem completar, de modo feliz,
rectificando-a fundamentalmente, a linha do “Directório”. E isto sucedeu depois
do Concílio Vaticano II, tendo em consideração a evolução social e eclesial,
“segundo as exigências da Igreja e do mundo” (Cst. 1). Tudo isto significa, em
nosso entender, sermos profundamente fiéis à declaração inicial do “Directório”:
“Respondemos aos apelos de Nosso Senhor em Paray-le-Monial, às
inspirações da graça e à acção da Providência” (lntrod.).
O Pe. Dehon referia tudo isto, sem dúvida, não apenas à fundação da
Congregação, mas também aos seus primeiros quarenta anos de vida. A
verdadeira fidelidade eclesial e dehoniana mede-se, também para nós, por
estas “inspirações da graça e pela acção da Providência”... “segundo as
exigências da Igreja e do mundo” (Cst. 1), sendo estas para nós as condições
em que devemos reconhecer, acolher e viver “O hoje de Deus” (Cst. 144).
Na mesma linha de renovação, de complemento e de correcção, as
novas Constituições dão amplo espaço ao Espírito Santo e ao mistério da
Igreja, um e outro muito raramente evocados no “Directório espiritual”.
Confere-se assim um novo equilíbrio ao próprio espírito da nossa
vocação e ninguém ousaria afirmar que este reequilíbrio atraiçoa o pensamento
profundo do Pe. Dehon ou falsifica a sua experiência de fé. Temos, antes, a
coragem de reconhecer que nas novas Constituições está exposto, em

24
Por exemplo, a propósito da expressão e da ideia de “reino de Nosso Senhor”,
tratado no “Directório” (I, § 4), é evidente que a palavra “reino” não tem aqui toda a
ressonância nem todo o conteúdo que tem no pensamento e na vida do Pe. Dehon.
Havia no termo “reino” a fórmula não só de uma atitude interior, mas de uma autêntica
espiritualidade apostólica, conforme o título da “revista” fundada em 1889. Numerosos artigos
mostram claramente as convicções e a prática do Pe. Dehon acerca do “reino”. O ano com o
Coração de Jesus também dirá alguma coisa com uma série de meditações de 8, 12, 13, 14,
16, 17 de Janeiro no clima do mistério da Epifania. A “realeza de Jesus” ou a “realeza do
Coração de Jesus” é um reino interior mediante o amor e a imitação, e também um reino
social, que não se manifesta só com a consagração das nações ou a construção de um
templo nacional, mas com a realização do reino de Deus, na justiça e na caridade contra os
erros do liberalismo e do laicismo.
“Nesta recolha de meditações de “O ano com o Coração de Jesus” (terminada em
1909 e publicada só em 1919) — observa o Pe. M. Denis — como em todas as suas obras
espirituais, o Pe. Dehon tinha em vista sobretudo os seus religiosos, uma vez que pretendia
exprimir a sua doutrina espiritual nos seus escritos” (cf. o. c., pag. 347-348).
E em “O Ano com o Coração de Jesus”, destinado ao grande público, onde aqui e ali
encontramos trechos do Directório mais ou menos adaptados, encontramos também, de
modo genérico, a mesma perspectiva e orientação.
180

definitivo, o seu verdadeiro pensamento e que elas são a melhor explicação da


sua experiência e da sua vida.
Por fim, também a propósito do “Coração de Jesus” da sua devoção, do
seu culto, o “Directório” é incontestavelmente abundante no uso destas
expressões e na referência às respectivas práticas.
As meditações sobre os “mistérios” de Jesus e de Maria são as de um
“devoto” do Coração de Jesus, e é justamente isso que constitui para nós o seu
valor. É mais difícil, porventura, ao menos no “Directório” apreender o “mistério
do Coração de Jesus”, o qual, para além das considerações espirituais,
ascéticas ou místicas sobre a oblação e sobre a reparação, serve de base ao
mesmo culto.
As Constituições concentram, a atenção no mistério do “Lado aberto” e
do “Coração trespassado”, segundo as grandes tradições patrística e histórica
da devoção ao Coração de Jesus, como se descobre e foi tornada oficial pela
encíclica “Haurietis Acquas” e como a aprofunda e renova incessantemente a
teologia contemporânea.
Nada disto, com certeza retira seja o que for às meditações do
“Directório”, mas, ao contrário, permite enriquecer e aprofundar o seu conteúdo.
Assim também se atinge o pensamento do Pe. Dehon que nos seus “Études sur
le sacré-Coeur” propunha, como primeira e última expressão do culto ao
Coração de Cristo, a contemplação do “Lado aberto” e do “Coração
trespassado”, o “mistério dos mistérios” (cf. Études I, pág. 11 4-1 26).

***

Muitas outras observações poderiam ser feitas sobre este “abismo


aparente” entre o “Directório espiritual” e as novas Constituições, como também
sobre o carácter complementar das Constituições em relação ao “Directório”.
Com um pouco de espírito crítico e também com verdadeiro sentido
espiritual (aquele que vem do Espírito Santo), um Sacerdote do Coração de
Jesus deve poder passar, sem demasiada dificuldade, do “Directório” às
Constituições e vice-versa; mais ou menos como se passa (salvas as devidas
proporções) do Antigo ao Novo Testamento e vice-versa: ao Novo como
complemento do Antigo; ao Antigo como fundamento histórico e providencial do
Novo: Não é que a palavra de Deus tenha caducado...; o desígnio de Deus
perpetua-se...; os dons de Deus são irrevogáveis (Rom 9, 6.11; 11, 29).
Há, em tudo isto, mais do que uma afirmação teórica; há certamente um
testemunho da nossa fé na “indefectível fidelidade de Deus” (Cst. 144).
181

EDIÇÕES E FONTES
DO
DIRECTÓRIO ESPIRITUAL

Nota preliminar

Neste “apêndice” descrevem-se brevemente os documentos e fontes que


interessam à história do “Directório”. Esta descrição não pretende ser exaustiva
nem apresentar um quadro de pormenor de todos os aspectos. A investigação
permanece aberta e assinalam-se, aqui a ali, alguns problemas respeitantes às
fontes ainda não ilustradas. No estudo histórico sobre a “Espiritualidade do
Directório”, referimo-nos com frequência a estes documentos. É relativamente a
esse estudo e para ajudar a conhecer e compreender melhor o próprio
“Directório” que se apresenta esta descrição.

1. Constituições de 1885-86 — Thesaurus de 1886

Constitutions de la Societé des Prêtres du Sacre Coeur de Jesus


établi à Saint-Quetin diocèse de Soissons, 1885.
Thesaurus Sacerdotum Societatis Cordis Jesu, Sanquintini, Excudit
Piquet-Barré, Typographus, 1886.
O manuscrito das Constituições de 1885-86 foi publicado em “Studia
Dehoniana” n.2, C.G.S., Roma, 1972.
Este primeiro texto das “Constituições” foi oficialmente aprovado por
Mons. Thibaudier, bispo de Soissons, a 2 de Agosto de 1885 e, de novo, a 15
de Setembro de 1886. Este mesmo texto foi apresentado à Santa Sé, para
obter o “Decreto de Louvor”, concedido a 25 de Fevereiro de 1888.
Deste texto o “Thesaurus” de 1886 retoma alguns trechos (Excerpta e
constitutionibus societatis Cordis Jesu), como uma espécie de “Directório” de 90
páginas (pág. 79-170, 9X13) assim composto:
Capítulo I (I das Cst.): Espírito e finalidade da Congregação; capítulo II (V
das Cst.): Os votos; capítulo III (VIII das Cst.): Virtudes próprias dos Sacerdotes
da congregação do Sagrado Coração de Jesus; capítulo IV (IX das Cst.):
Exercícios de piedade e práticas de perfeição; capítulo V (X das Cst.): Os
doentes e os defuntos.
Para esta apresentação no “Thesaurus” de 1886, a numeração por
parágrafo (mudança de linha) seguida nas “Constituições” é posta de parte. Já
o havia sido nas Constituições de 1885-86, em que os capítulos Vlll-XlII são
simplesmente subdivididos em parágrafos, com uma numeração particular das
mudanças de linha em cada parágrafo; mas o texto do “Thesaurus” é
exactamente O mesmo das “Constituições”.
182

O Pe. M. Denis faz a análise deste texto em Le Projet du P. Dehon (St.


Deh. 4), primeiramente como parte das “Constituições” (pág. 139-153) e depois
como primeira formulação do “Directório” (pág. 262-264); mas seria
interessante investigar mais exactamente em que medida esta parte das
“Constituições” de 1885 (cap. VIII) é uma composição original do próprio Pe.
Dehon, ou, ao menos, quais são as suas fontes. Uma grande parte de tais
textos encontra-se nas edições do “Directório” de 1905, de 1908 e de 1919 (cf.
Índice de 1919).

2. Thesaurus de 1891

“Thesaurus Sacerdotum Oblatorum Cordis Jesu” (Saint-Quentin,


Imprimerie A. Terillon, Grand’Place 8, 1891).
Como no “Thesaurus” de 1886, são aí transcritos textos cujo conjunto
constitui uma espécie de “Directório”.
Capítulo XV: “Extractos das Constituições dos Sacerdotes Oblatos do
Coração de Jesus” (pág. 131-148):
I: Finalidade e espírito da Congregação.
II: Os votos.
III: Os exercícios de piedade e as práticas de perfeição.
IV: Os doentes e os defuntos.
Capítulo XVI: “Leituras espirituais sobre as virtudes e os exercícios
próprios dos Sacerdotes Oblatos do Coração de Jesus” (Pág. 149-165), em 11
parágrafos:
§ I: O amor de Nosso Senhor.
§ II: A vida interior.
§ III: A caridade fraterna.
§ IV: A mortificação e a humildade.
§ V: O zelo pela própria santificação, as reuniões familiares, a direcção
(espiritual).
§ VI: A oração.
§ VII: O Santo Sacrifício da Missa e a divina Eucaristia.
§ VIII: O sacramento da penitência.
§ IX: A Sagrada Escritura.
§ X: O ofício divino.
§ Xl: A casa de Deus e a santa liturgia.
O texto deste “Directório (1891) segue muito de perto o do ‘Thesaurus”
(1886), no que se refere ao capítulo XV. Há alguns acrescentos ou
modificações, consoante as emendas feitas pelo Capítulo Geral de 1888 nas
Constituições de 1885-86.
As Constituições de 1891, ou mais exactamente “o projecto após as
observações”, conservado nos arquivos da Congregação, já não transcrevem
qualquer “Directório”, mas apenas, na terceira parte em conformidade com o
183

desejo do Capítulo de 1886, uma síntese da regra sob o título de “Regras


comuns” “Regras de modéstia” e “Regras dos colégios”.(25)
O Capítulo XVI do “Thesaurus 1891” é uma reelaboração bastante
profunda do texto de 1886 sobre as “virtudes próprias” com novos parágrafos
(V-Xl), dos quais alguma coisa aparecerá no texto de 1919. Contrariamente,
alguns parágrafos ou algumas linhas de 1886 são omitidas e voltam a
encontrar-se nas edições do “Directório” de 1905 e de 1908.
Sobre este ‘Directório” contido no “Thesaurus” de 1891, cf. M. Denis, o.
c., pág. 264-269.

3. O “Directório” de 1905 e de 1908

Trata-se de duas edições sucessivas (antes e depois da aprovação


definitiva da Congregação e das Constituições por dez anos, a 4 de Julho de
1906):
1905: Directório espiritual para uso dos Sacerdotes do Sagrado Coração
de Jesus, do Rev.mo Pe. Dehon, superior geral dos Sacerdotes do Sagrado
Coração de Jesus (Casterman-Tournai; lmprimatur 23.1.1905), 52 páginas: 8, 5
x 12,5.
1908: Directório espiritual para uso dos Sacerdotes do Sagrado Coração
de Jesus do Rev.mo Pe. Dehon, superior geral dos Sacerdotes do Sagrado
Coração de Jesus (Casterman-Tournai; Imprimatur: 31 .1 .1908),108 páginas:
8,5 X 12,5.

25
Este “projecto” de 1891, manuscrito, que se encontra nos arquivos da Congregação,
são as Constituições de 1885-86 revistas e corrigidas consoante as observações feitas pela
“Santa Sé”, por ocasião do Decreto de Louvor de 1888.
Foi-lhe acrescentado um prefácio de cinco páginas, que explica os motivos da
fundação e a missão do Instituto na Igreja. É uma espécie de introdução ao primeiro capítulo
sobre “a finalidade e o espírito da Congregação”. Alguma coisa será retomada em breve
resumo de poucas linhas na “Introdução” ao “Directório” de 1919.
Entre as Constituições (francesas) de 1885-86 e as (latinas) de 1902, o “projecto” de
1891 representa uma etapa intermédia de elaboração. E modificada a ordem dos capítulos,
que se distribuem por três partes:
Primeira parte (sem título): I. Finalidade e espírito da Congregação; lI. Os votos; III. Os
exercícios de piedade e as práticas de perfeição.
Segunda parte: A organização e administração do Instituto.
Terceira parte: Regras particulares: I. Regras comuns; II. Regras de modéstia; IIl.
Regras dos colégios.
O Pe. Dehon acrescentou de seu punho no “índice”: “Regras para o relatório de
consciência — Ritual — Directório — Regras administrativas”.
São, sem dúvida, os textos reproduzidos no “Thesaurus” de 1891 (cap. XVI), que
correspondem ao título “Directório” do projecto de 1891. Aliás, é a única versão que
possuímos.
Será o Pe. Dehon em pessoa o autor das modificações introduzidas e relativamente
importantes para este XVI capítulo? No estado actual das investigações é difícil pronunciar-
se.
O que é certo é que, em 1919, o Pe. Dehon transcreveu alguns textos omitidos nas
edições de 1905 e de 1908 (cf. Índice de 1919).
184

A edição de 1908 reproduz textualmente a de 1905, com poucas linhas


apenas acrescentadas no começo do parágrafo acerca da “profissão”, que em
1908 é designada “disposição de amor, de reparação e de imolação” (Cap. I, §
IV).
Essas linhas dedicadas à “obrigação” de tal “disposição” de imolação
encontram-se emendadas e apresentadas com maior exactidão na edição de
1919 (III, cap. V, § 2). O texto de 1908 propõe também “um acto de oblação” a
pronunciar depois da profissão dos votos (pág.15).
Após uma breve introdução sobre “a finalidade e o espírito da nossa
Congregação” (pág. 3-4), que reproduz os números 1-2 das Constituições de
1885-86, são propostos três capítulos:

I: Directório para os votos: pág. 6-16 (ed. de 1905); 4-15 (ed. de 1908).
II: Directório para as virtudes próprias dos Sacerdotes do Sagrado
Coração de Jesus: pág. 17-45 (ed. de 1905); 15-43 (ed. de 1908).
III: Directório para os exercícios de piedade p. 45-50 (ed. 1905); 44-49
(ed. 1908).

A edição de 1908 traz ainda em “apêndice” três textos ou documentos:


I: A oração mental (pág. 50-78).
II: A direcção (pág. 78-99).
III: Obras de espiritualidade recomendadas para a biblioteca das nossas
casas (pág. 100-106).

O texto do “Directório” das edições de 1905 e de 1908 segue muito de


perto o das Constituições de 1885-86, cujo texto não propriamente jurídico,
relativo aos votos, às virtudes e aos exercícios, passa para o “Directório”, com
ligeiras correcções e acrescentos, cujos pormenores poderão encontrar-se na
análise feita pelo Pe. M. Denis (o. c., pág. 269-273).26

26
Os acabamentos deste ‘Directório” (de 1905) foram confiados pelo Pe. Dehon ao Pe.
André Prévot. Este, com efeito, refere-se a isso numa carta (sem data) citada pelo Pe. Jorge
Bertrand na sua “Vie du P. A. Prévot” (pág. 235):
«Ainda mais um encargo: pôr em ordem o Directório (Regras práticas), depois o livro
das Constituições.
O rev.mo Padre Geral (Pe. Dehon), confia-me esse encargo e eu sou tão indolente!
Quem me dera poder fazer o “Directório” e “O Ano com Maria”!».
“O Ano com Maria” foi publicado em 1902: é, portanto, do “Directório” de 1905 que se
trata. O parêntese “Regras práticas” parece restringir esta colaboração do Pe. Prevot,
limitando-a às aplicações práticas: no capítulo primeiro sobre os votos ou também no capitulo
segundo, § Xl O zelo pela própria santificação”, que é, afinal, o embrião, da que virá a ser,
em 1919, a quarta parte sobre “As regras” (cf. particularmente os parágrafos acerca da
“Avaliação de regularidade” (§13) e da “Direcção (espiritual)” (§14) introduzidos no
“Directório” em 1905 (§Xl).
Mas a marca do Pe. André Prévot encontra-se, aqui e ali, nos textos mais gerais,
como por exemplo, nas “Noções teológicas sobre o sacrifício e a vítima” no “Directório” de
1905 (cap. 1, § IV, nota 1, pág. 14) e no “Directório” de 1919 (III, cap. V § 1); cf. nota 8 da
presente edição (cf. pág. 303) e bem assim o texto de 1885-86 acerca do “Amor da cruz”
185

4. O “Directório” de 191927

Tem por título:


Directório espiritual dos Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus, Nova
edição, revista e aumentada. Lovaina — Tipografia François Ceuterick, 1919,
212 páginas:,8,5 x 12,5.
É, na verdade, uma edição consideravelmente “aumentada” relativamente
à de 1908: mais ou menos o dobro, excluindo os “apêndices” de 1908 (que não
aparecem na edição de 1919); mais do quádruplo, sem os apêndices (ou seja:
212 páginas em 1919 em vez das 49 de 1908, com igual formato).
Este aumento fica a dever-se essencialmente à junção de duas partes
sobre “O espírito da nossa vocação” (I parte, 12 páginas) e “Os modelos e
padroeiros da nossa vocação” (lI parte, 50 páginas), além de diversos
desenvolvimentos acerca dos votos (terceira parte), das regras (quarta parte) e
as virtudes próprias (sexta parte).
Uma parte destes acrescentos e desenvolvimentos são,
indubitavelmente, composições originais do próprio Pe. Dehon. Encontram-se
muitas passagens das Constituições de 1886 ou das edições anteriores do
“Thesaurus” e do “Directório” (1891, 1905, 1908) ou ainda, como se notou no
princípio da quarta parte, dos “extractos das Constituições (de 1906) ou das
regras comuns adoptadas nos Capítulos Gerais”.
(cap. VIII, § 10), que é substituído, na edição de 1905, por um texto do Pe. Prévot (cf. cap. V,
§ X).
É a reprodução adaptada da 22ª meditação de “Fleurs nouvelles” (do Pe. Prévot,
1904). Encontrar-se-á este mesmo texto, consideravelmente resumido, mas susceptível de
ser reconhecido, no “Directório” de 1919 (Parte VI, § 20), como complemento de uma “luz de
oração” da Ir. Maria de S. Inácio, e formando o parágrafo XX: “A alegria nas provações e o
amor à cruz”.
Trata-se de um texto compósito, ao qual se pode preferir o de 1885-86, muito mais
bem estruturado e também mais rico do ponto de vista doutrinal. Uma investigação mais
aprofundada levaria, porventura, à descoberta de outras influências ou passos paralelos. Seja
como for, é uma pista segura e talvez frutuosa.
27
Esta edição de 1919, a última cuidada pelo Pe. Dehon. encontra-se reproduzida em
duas outras edições: a de 1928 (Domois — Auges, Cõte dOr, France) e a de 1936 (Turnhout,
Belgique).
A edição de 1928, também ela apresentada como “revista e aumentada”, apresenta
na realidade apenas algumas mudanças muito pequenas ou algumas omissões, na parte III,
cap. II, § 2 e na parte IV, § 8 e 12 (e talvez também nalgum outro ponto).
Nesta edição é omitida também a nota inicial sobre o carácter “original” das páginas
do “Directório” como expressão do “espírito da nossa obra”. A edição de 1936 retoma tal e
qual (salvo erro) o texto de 1919 inclusivamente a expressão “revista e aumentada” e
transcreve a nota inicial.
As três edições de 1919, 1928 e 1936 trazem as “regras comuns” e as “regras de
modéstia” introduzidas nas Constituições (projecto) de 1891. À edição de 1936 foram
acrescentados como “suplemento”: I-VIlI “Avisos e conselhos”, IX: A mensagem do Pe.
Dehon “Aos meus filhos e aos meus amigos” (Natal de 1919); X: “O meu testamento
espiritual”: XI: um excerto da carta circular “Depois do Capítulo Geral de Maastricht, de 29 à
31 de Julho de 1919”...
186

Não é possível indicar fontes determinadas para uma centena de páginas


(cerca de metade do texto). Parece que o Pe. Dehon as terá redigido
pessoalmente, quer de forma directa para o “Directório”, quer recorrendo a
apontamentos pessoais.
Notamos, apenas de passagem, que, a partir da edição de 1919, o
“Directório” não mais foi publicado com o nome do Pe. Dehon, mas sem nome
de autor, como um livro oficial.
Para umas cinquenta páginas (ou seja, um quarto da obra) a fonte a que
o Pe. Dehon recorre em geral com muita fidelidade é constituída pelas “luzes de
oração” da Ir. Maria de S. Inácio, como podemos ver e confrontar com os três
documentos conservados no arquivo dehoniano:

1) AD, B 34/8:

Um pequeno caderno de 64 páginas manuscritas (18 x 22); a caligrafia é


do Pe. Dehon.
O título é o seguinte: “Luzes de oração da Ir. Maria S. Inácio sobre a obra
das vítimas do Sagrado Coração”: 1878 e seguintes — As virtudes próprias da
nossa vocação.
É este o documento a que o Pe. Dehon faz alusão no Diário (NQ XL, 100:
Fevereiro de 1917): “Chegaram-me às mãos alguns apontamentos; tinha-os o
Pe. Modeste. A Providência permite que a “Chère Mère” (Madre Maria do
Coração de Jesus, fundadora das Servas) mos empreste nestes dias. Copio-os
e descubro melhor todo o modo de proceder de Nosso Senhor para com a
nossa obra”. Numa nota introdutória (pág. 1-2) o Pe. Dehon recorda
brevemente as circunstâncias destas “luzes de oração”, as dificuldades que
suscitaram para ele e para a Congregação e também os motivos que
justificaram a sua cópia e o interesse que tem por estes textos: “Penso que
neles podemos encontrar ainda uma grande edificação, tendo-me o comissário
do Santo Ofício (Mons. Sallua) dito naquela altura que se tivéssemos
apresentado os escritos da Ir. Maria de S. Inácio como simples luzes de oração,
não teríamos tido complicações” (pág. 2).
Este caderno é a fonte mais importante dos novos textos do “Directório”,
especialmente da segunda parte sobre “Os modelos e padroeiros...” (1, §1-2-3;
II, §1 e 3; IV, § 2-3). O Pe. Dehon observa a este respeito: “Os mistérios de
Nosso Senhor, o ecce venio, o ecce ancilla, a vida oculta, a paixão, a formação
de S. João foram o assunto das “luzes de oração” da Ir. Maria de S. Inácio, que
nos deram um verdadeiro directório sobre as virtudes da nossa vocação” (Na
XL 98-99: Janeiro de 1917).
Mas as “luzes de oração” encontramo-las também na primeira parte (§1 e
3), na quinta (§6) e na sexta (§20) (4).28

28
Um texto do caderno B 34/8 (Pág. 50-57) é largamente utilizado e adaptado em O
ano com o Sagrado Coração, a 9 de Janeiro, sobre a “vida oculta”.
O prefácio de “O Ano...” tem a data de 3 de Outubro de 1909 e o editor Casterman, a
5 de Outubro, aceita publicar a obra (cf. carta in B 21/1). A impressão parece só ter
187

2) AD, 8 34/7:

É um pequeno caderno com capa de cartolina preta (formato 14x18). É


também escrito à mão pelo Pe. Dehon e tem por título: “Índice das luzes de
oração da Ir. Inácio”.29
Este “índice”, datado de 1 de Fevereiro de 1878 a 14 de Outubro de
1880, encontra-se distribuído por 18 páginas (9 folhas numeradas de 1 a 9 nas
duas laudas). Para cada dia indicado, encontramos um título ou algumas
palavras acerca do conteúdo das “luzes de oração”. Oito frases estão
sublinhadas a vermelho e o Pe. Dehon escreveu na parte interior da capa: “As
palavras sublinhadas a vermelho parecem ser locuções directas” (isto é, que
provêm directamente de Nosso Senhor, ou “palavras formais” segundo S. João
da Cruz). Estas frases referem-se especialmente à Congregação e às
provações por que haveria de passar (as provações “necessárias”: o
“consumatum est”).
A segunda parte do caderno (pág. 11-16 escritas em ambas as laudas,
ou seja, 11 páginas manuscritas) tem por título “Notas” e subdivide-se em
quatro partes:

I: A reparação sacerdotal (Pág. 11-12 de ambos os lados).


II: S. José padroeiro e modelo da nossa vida de vítima (Pág. 13, ambas
as laudas).
III: O amor puro e desinteressado (Pág. 14-15 de ambos os lados).
IV: O santo abandono (desde o verso da pág. 15 até ao reverso da pág.
16).

começado em Janeiro de 1913; depois foi interrompida por causa da guerra e só veio a lume
em 1919.
O texto do caderno B 34/8 que inspira a meditação de 9 de Janeiro encontrava-se,
portanto, à disposição do Pe. Dehon muito antes da cópia das “luzes de oração” da Ir. Maria
S. Inácio de que fala no Diário (cf. NQ XL, 100: Fevereiro de 1917) (cf. “Espiritualidade do
Directório”, pág. 272).
Além de algumas páginas reproduzidas no caderno B 34/7 (e nas “Memórias” (NHV),
cf. nota 5) que haviam chegado ao Pe. Dehon antes ou depois da morte do Pe. Modeste em
1891, o Pe. Dehon pôde com certeza utilizar também antes de 1909, alguns textos das “luzes
de oração” da Ir. Maria S. Inácio, que haviam sido entregues a “Chère Mère”. O ano de 1917
é, por outro lado, apontado apenas como a data da cópia do caderno B 34/8, em vista do
“Directório”. Por aqui se vê como é ainda bastante difícil seguir o itinerário destes
documentos.
29
Este caderno B 34/7 está muito usado e foi com certeza muito manejado. Os
“índices” iniciais e finais estão escritos com letra menos cuidada do que as “Notas” e o
“Sumário”, os quais se apresentam como a passagem a limpo de um texto previamente
redigido. É a estes textos, reproduzidos em grande parte nas “Memórias” (cf. NHV XIII), que o
Pe. Dehon faz alusão: “Remeti para o Santo Ofício o texto de todas estas comunicações (as
“luzes de oração” da Ir. Maria de S. Inácio). Pessoalmente já não os tenho. No entanto,
chegaram-me às mãos algumas páginas, porque o Pe. Modeste, S.J., que tinha em seu
poder uma cópia ma enviou” (NHV XIII, 73).
188

Uma terceira parte (desde a 1ª lauda da pág. 17 até à 2ª lauda da pág.


22) intitula-se “Sumário da vida religiosa segundo os ensinamentos dados por
Nosso Senhor a uma humilde Serva do Coração de Jesus”:

I: Espírito e finalidade da vida religiosa (da segunda lauda da pág. 17 à


segunda lauda da pág. 20).
II: Felicidade da vida religiosa (ambas as laudas da pág. 20).
III: Votos de religião (pág. 21-22 de ambos os lados). Depois, no fim do
caderno, em cinco páginas, encontramos um novo índice: “Sumário segundo o
caderno da Ir. Maria de Jesus”, com 89 títulos, mas sem qualquer data. Todos
estes textos: o “índice”, as “Notas” e o “Sumário” da Ir. Maria de Jesus,
encontramo-los, textualmente ou ligeiramente modificados, nas Memórias do
Pe. Dehon (NH\ XIII, 74-99).

— O “Índice” (em parte) encontra-se nas Memórias do Pe. Dehon (cf.


NHV XIII, 74-80).30
— As “Notas” encontram-se nas Memórias do Pe. Dehon, a saber: “A
reparação sacerdotal” (cf. NHV XIII, 93-95; DE 1919: Parte I, § 9); “S. José” (cf.
NHV XIII, 96-97 DE 1919: II, cap. III, § 2); “O amor puro e desinteressado” (cf.
NHV XIII, 97-98) DE 1919: 1, § 2); “O santo abandono” (cf. NHV XIII, 98-99; DE
1919: VI, § 19).
— O “Sumário” encontra-se nas Memórias do Pe. Dehon, a saber:
“Espírito e finalidade da vida religiosa” (cf. NHV XIII, 85-89; DE 1919: V, § 15).
No mesmo trecho das Memórias do Pe. Dehon encontramos outras
citações tomadas de outra fonte; o caderno de B 34/8, isto é, “Felicidade da
vida religiosa” de B 34/8, pág. 44-45 (cf. NHV XIII, 89-90; DE 1919: VI, § 20);
“Votos de religião” de B 34/8, pág. 6244 (cf. NHV XIII, 91-92; DE 1919: 1, § 1).
30
O Pe. Dehon refere-se a este “Índice” inicial para a redacção do “Directório”. A
coincidência de ideias e de expressões não deixa dúvidas a esse respeito. Poder-se-á
verificá-lo confrontando o “Indice” reproduzido nas “Memórias” do Pe. Dehon (cf. NHV XIII,
pag. 74-80) “As luzes de oração de 1878” com os seguintes passos correspondentes do
“Directório”:
— parte II, cap. I, § 4: cf 15 de Abril, 9 de Abril, 1 de Abril, 8 de Abril, 15 de Março, 15
de Abril, 5 de Abril, 7 de Abril.
— parte II, cap. I, § 5: cf. 18 de Abril.
— parte II, cap. II, § 1: cf. 1 de Maio.
— parte II, cap. II, § 4: cf. 25 e 28 de Março.
— parte II, cap. III, § 1: cf. 6 de Março e 12 de Maio.
— parte II, cap. V: cf. 6 e 7 de Abril, 25 e 30 de Abril.
— parte III, cap. VI, § 3: cf. 8 de Maio.
— parte VI, § 1: cf. 30 de Abril.
— parte VI, § 8: cf. 18 de Março.
— par VI, § 19: cf. 29 de Abril.
Aparentemente para a redacção do “Directório” o Pe. Dehon não tinha à disposição os
textos desenvolvidos, dos quais, o “Índice” das “Notas” não fornece senão o título e uma
breve síntese. O Pe. Dehon retoma as expressões dessa síntese e desenvolve, a seu modo,
a ideia expressa.
189

As Memórias reproduzem ainda um breve texto do caderno B 34/8 (pág.


65) que se encontra no Directório de 1919 (II, cap. I, § 1).

3) AD, B 36/2:

Trata-se de três trechos das “luzes de oração” da Ir. Maria de S. Inácio


transmitidos pelo Pe. Dehon ao Pe. Eschbach, superior do Seminário francês
de S. Clara, em Roma, onde havia sucedido ao Pe. Freyd, que fora diretor
espiritual do Pe. Dehon até 1875, ano da sua morte.
Leão Dehon escreveu ao Pe. Eschbach a 23 de Novembro de 1878,
enviando-lhe estes textos, a respeito dos quais queria obter o seu conselho. Os
três trechos são datados: do 1.° domingo de Março de 1878; das Quarenta-
horas (3 de Março); de 10 e 16 de Maio de 1878.
São Manuscritos (a caligrafia não é do Pe. Dehon) e foram encontrados
nos arquivos de S. Clara. O Pe. Dehon alude à existência de tais “luzes de
oração”, no “Índice” do caderno B 34/7, na respectiva data, resumindo-os desta
maneira:
3 de Março: “Lamentos sobre os sacerdotes. Suas infidelidades.
Reparação sacerdotal, especialmente no tempo de carnaval”.
10 de Maio: “A pomba. O seu voo e o seu repouso. Pureza, simplicidade,
doçura. Ela eleva-se acima da terra. Esconde-se, suspira, geme. O seu repouso
(Eu para ti e tu para Mim). Os repousos de Jesus: o seio de Maria, a
manjedoira, Nazaré, o Calvário, a Eucaristia, os Corações. Os sacerdotes-
vítimas. Infidelidade — reparação — promessas”.
16 de Maio: “O sacerdote — Sua grandeza — O santo sacrifício”. Este
último texto é a fonte seguida muito de perto pelo parágrafo acerca de “A
santidade sacerdotal” no “Directório” de 1919 (I, § 7). Uma adaptação,
abreviada, mas bastante fiel, de texto de 10 de Maio deu origem ao parágrafo
sobre “A simplicidade” (VI, § 7).
O primeiro trecho (de 3 de Março) não foi reproduzido no “Directório” de
1919. Mas verifica-se que para a data de 3 de Março de 1878, as Memórias do
Pe. Dehon reproduzem outra redacção: a do caderno B 34/7, pág.1 1 e a 1ª
lauda da pág. 12 (cf. NHV XIII, 93-95), que é transcrita textualmente no
“Directório” a respeito de “A reparação sacerdotal”.
Tenhamos em conta, a propósito destas múltiplas redacções, a sensata
observação do Pe. M. Denis: “Podemos perguntar-nos, ao constatar as diversas
fontes manuscritas que referem as “luzes de oração” da Ir. Maria de S. Inácio,
se não terão sido objecto de arranjos, mais ou menos como aconteceu com os
manuscritos das “revelações” de S. Margarida Maria” (cf. o. c., pág. 279, nota
2).
Estes diversos documentos o Pe. Dehon utiliza-os com maior ou menor
liberdade literária para as adaptações que lhe interessam, mas respeita-lhes a
inspiração até nas imagens e no estilo. Tudo isto pode ser facilmente verificado
nos dois cadernos das “Notas sobre o espírito da obra”, que redigiu de 1917 em
diante, como ele mesmo nos diz, e que utilizou na redacção do novo Directório.
Tais notas conservam-se no Arquivo dehoniano (B 3/1-2).
190

AD, B 3/1-2:

Dois cadernos de capa castanho-avermelhada, provenientes dos


cadernos de uso escolar no Colégio de S. João, de S. Quintino. Têm o título de:
“Notas sobre o espírito da Obra”.

B 3/1:

64 folhas manuscritas (de um e outro lado), isto é, 128 páginas e 2 de


“índices”.
Contém duas partes: I. O espírito da nossa vocação; II. Os modelos da
nossa vocação.
A totalidade do texto passou textualmente, com a mesma ordem, para o
“Directório” de 1919, que apenas une, dispondo-os em ordem contrária, os
capítulos VI-VII das “Notas” no capítulo VI do Directório (II parte), e dedica um
breve capítulo, o sétimo, aos “Santos do Coração de Jesus”!

B 3/2:

64 folhas numeradas dum lado e doutro; exatamente 127 páginas, mais


três de “índices”.
Contém três partes:

III: Os votos e a vida religiosa:


§ 1, A imolação mediante os votos;
§ 2, A castidade;
§ 3, A obediência;
§ 4, A pobreza;
§ 5, A imolação;
§ 6, O santo hábito;
§ 7, Avisos aos superiores.
IV: As virtudes religiosas.
V: Os exercícios de piedade.

Notamos que do primeiro caderno o Arquivo dehoniano conserva uma


outra cópia manuscrita, com caligrafias diversas (B 3/3).
O Pe. Dehon acrescenta no princípio este esclarecimento: “Estas
directrizes estão de acordo com as “luzes de oração” da Ir. Maria de S. Inácio.
Sem as reproduzir à letra, oferecem a doutrina”.
De seu punho completou também o capítulo quinto da segunda parte
(sobre Santa Maria Madalena e as piedosas Mulheres) que ficará sem
conclusão e acrescentou o “índice”.
Através destas diversas cópias ou redacções seguimos quase passo a
passo a elaboração do próprio “Directório”. Torna-se possível verificar, desde
as “Notas” ao “Directório”, uma recomposição bastante importante, não só no
191

que toca ao plano geral (a sequência das partes ou dos parágrafos); mas
também no que concerne aos conteúdos.
A terceira parte, sobre os votos, aparece profundamente renovada e
completada. Além disso, surge uma nova parte, a quinta, sobre “As regras”.
Mas, em geral, o texto do “Directório respeita o texto das “Notas” (por exemplo
a respeito das virtudes e dos exercícios). Por vezes só o título do parágrafo é
que é o mesmo enquanto o texto é quase completamente novo (cf. IV, § 7 das
“Notas” e IV, § 10 do “Directório”, ou IV, § 11 das “Notas” e V, § 12 do
“Directório”).
O texto sobre “As virtudes” foi transcrito tal e qual, quase por inteiro, no
“Directório”, salvo o § 21 sobre “A união com Nosso Senhor”, que é
completamente diferente e tomado das Constituições de 1885-86 (VIII, § 2) e do
“Directório” de 1908.
Em geral, aliás, é voltando aos textos primitivos de 1885-86 ou de 1891
ou de 1905 e 1908 que o Pe. Dehon corrige e completa o texto das “Notas”
destinado ao “Directório”.
192

ESCRITOS EPIRITUAIS DO PADRE DEHON

Damos de seguida o elenco completo de todas as obras de carácter espiritual


do Pe. Dehon.

1. La retraite du Sacré-Coeur, 416 pág. Casterrnan, Tournai, 1896.

2. Mois du Sacré-Coerr de Jésus, sur les litanies du S.-C 276 pág., Haton,
Paris, 1900.

3. Mois de Marie, sur les litanies de la Ste Vierge, 266 pág., Haton, Paris,1900.

4. De la vie d’amour envers le Sacré-Coeur, pág. 344, Casterman, Tournai,


1901.

5. Couronnes d’amour au Sacré-Coeur, 3 vol., 634 pág., Casterman,


Tournai,1905.

6. Le coeur sacerdotal de Jésus, 214 pág., Casterman, Tournai,1907.

7. L’Année avec le Sacré-Coeur, 2 vol., 698 + 592 pág., Casterman, Tournai,


1919.

8. Directoire sprituel à l’usage des Prêtres du S.-C., 216 pág., F. Ceuterick,


Louvain, 1919,

9. La dévotion au Sacré-Coeur de Jésus, don de notre temps et grâce spéciale


de la France (discurso proferido a 12.6.1885), 43 pág., Reteaux-Bray, Paris,
1885.

10. Une victime d’amour au Sacré-Coeur de Jésus SOEUR MARIE DE JESUS


née Madeleine Uhlrich de I’Institut des Servantes du Coeur de Jésus de Saint-
Quentin, 1856-1879; D’aprés ses notes et ses Iettres, 212 pág., Desclée De
Brouwer et C.ie, Lille-Paris-Bruges, 1914.

11. La vie intérieure: vol. 1, Ses principes, ses voies diverses et ses pratiques,
274 pág., Téqui, Paris, 1919; vol. II, Facilitée par des exercises spirituels, 210
pág. Desclée, Bruges, 1919.

12. Un Prête du Sacré-Coeur. Vie édifiante du R. P Alphonse M. Rasset,


Assistant général des Prêtres du S. -C., d’Aprés ses Iettres et notes, (1843-
1905), 380 pág., Bruges, 1920.

13. Études sur le Sacré-Coeur de Jésus ou contribution à Ia préparation d’une


somme doctrinale du Sacré-Coeur, vol. 1, 254 pág., Desclée, Bruges, 1922, vol.
II, 242 pag., Desclée, Bruges, 1923.

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