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‘E daí?

‘: Respostas à pandemia e

REFLEXÕES NA PANDEMIA
gestão da morte no Brasil
Mariana Thorstensen Possas
Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil
Andrija Oliveira Almeida
Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil
Karla Matias
Pesquisadora independente, Ottawa, ON, Canadá

N
a experiência política brasileira contemporânea a morte ocupa um lugar central nos
discursos e ações oficiais em escala federal. Observamos uma mudança importante
nos últimos anos nos sentidos atribuídos às mortes dos cidadãos, especialmente
aquelas diretamente relacionadas a decisões políticas. De evento a ser evitado e, uma vez
ocorrido, disfarçado, a morte passa a ser um desfecho moralmente neutro (“Mortes
acontecem”) ou positivo (“Se morreu é porque merecia”). Esse fenômeno, identificado por
alguns como “necropolítica”, já foi tratado de maneira diferentes, por vários autores (MBEMBE,
2016; AGAMBEM, 2011) inclusive no Brasil, onde assume características específicas (LEITE,
2020). A discussão centrada na necropolítica explicita e analisa a dimensão do poder em relação
à morte, ou seja, do poder de dizer quem pode viver e quem deve morrer.
Neste texto, propomos um olhar específico sobre o fenômeno atual da “política da
morte” e um destaque aos sentidos atribuídos nas comunicações políticas (LUHMANN,
1971) atuais. O que nos interessa aqui é pensar como as mortes são apresentadas e
justificadas oficialmente e, ao mesmo tempo, desconstruídas como um problema de ordem
pública. Esse olhar tem como ponto de partida o deslocamento da morte da posição de
categoria periférica do discurso político para o de categoria central, da de indicador negativo
na avaliação de decisões políticas para a de indicador neutro ou positivo. Observamos no
Brasil um processo semântico-decisional curioso, de valorização da morte como evento e de
desvalorização dos mecanismos de combate ou redução de resultados fatais.
A prestigiada revista inglesa de ciências médicas The Lancet (09/05/2020) afirmou em um
editorial publicado em 9 de maio: “Talvez a maior ameaça à resposta à Covid-19 para o Brasil seja
seu presidente, Jair Bolsonaro”. O título do texto, “Covid-19 in Brazil: ‘So what?’”, se refere à fala
de Bolsonaro ao ser questionado por jornalistas sobre o recorde de mortes pela pandemia em 28
de abril: “E daí? Lamento. Quer que faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre” (O
GLOBO, 30/04/2020). Nessa fala, as mortes são apresentadas como eventos naturais, ou seja,
eventos localizados exclusivamente na dimensão da natureza, externamente, portanto, ao âmbito
da decisão política. As mortes são transformadas em “realidade” (imutável), o que exclui a
possibilidade de interferência humana e de combate e, por consequência, também exclui a
possibilidade de responsabilização. Nessa resposta, entre outros efeitos, Bolsonaro descaracteriza
as mortes (por contaminação do vírus) como um problema que diga respeito ao governo.

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Com o objetivo de contribuir para uma sociologia da morte, este texto reflete sobre as
mortes oficiais, ou seja, as mortes que se apresentam como partes ou efeitos normais das
políticas públicas no Brasil contemporâneo. Apesar de aparentemente muito distantes, há
aspectos comuns importante no tratamento político das mortes por Covid-19 e as causadas
pela violência, especialmente a violência de Estado, no Brasil. Ambas são apresentadas nas
comunicações oficiais do governo como parte integrante do plano de enfrentamento ao
problema da segurança — pública ou sanitária. São as mortes justificadas em nome das
políticas públicas, ou como bem caracteriza Conrado Mendes, as mortes do “Programa
Deixa Morrer” (HÜBNER MENDES, 11/12/2019).
Podemos analisar as respostas do governo federal a partir de duas grandes formas: as decisões
institucionais em relação à pandemia e contenção de mortes e as falas pessoais (do presidente e
de ministros do governo) em entrevistas a jornalistas, reuniões oficiais ou posts nas redes sociais.
Entre as decisões, são muitos os exemplos de atos, portarias, leis e decretos editados para se
contraporem à construção de uma política de contenção da morte. Desde o anúncio oficial da
pandemia pela OMS, em 11 de março, dois ministros da Saúde pediram demissão do cargo devido
a discordâncias sobre as estratégias ao enfrentamento da pandemia. Luiz Henrique Mandetta
anunciou sua saída em 16 de abril de 2020 após semanas de conflitos com o presidente sobre a
gestão da pandemia e a necessidade de prevenção das mortes. E o substituto Nelson Teich pediu
demissão em 15 de maio, após apenas 28 dias de atuação, e desde então o cargo tem sido ocupado
por um ministro militar, e supostamente interino, o general Eduardo Pazuello.
Em suas manifestações públicas, o presidente expressa claramente sua discordância em
relação aos governadores e aos prefeitos quanto às ações locais de enfrentamento da Covid-19,
com destaque para aquelas de distanciamento, de isolamento e de quarentena. Os conflitos
entre os entes federativos acerca da competência para decidir e aplicar as regras de
distanciamento foram objeto de ação judicial no Supremo Tribunal Federal (STF), cuja decisão
foi pelo reconhecimento da competência concorrente de estados e municípios em matéria de
saúde pública. Dentre as decisões contrárias às ações locais de enfrentamento, o presidente
expandiu a definição de serviços públicos e de atividades essenciais descritos na lei no 13.979,
de 6 de fevereiro de 2020. Ele já havia incluído inicialmente igrejas e casas lotéricas no rol de
serviços e atividades essenciais, que portanto deveriam permanecer abertos e, em 11 de maio,
anunciou a inclusão de salões de beleza, barbearias e academias de ginástica.
As respostas do governo federal à pandemia de Covid-19, tanto em ações concretas
quanto em pronunciamentos oficiais ou em entrevistas, incorporam a morte como estratégia
política central e se aproximam, nesse sentido, da gestão das mortes violentas no Brasil. Em
ambas, a produção e (não o combate) da morte é organizadora de ações e de sentidos,
funcionando como referência para as decisões políticas. Em outras palavras, ambas as
políticas são construídas em torno das decisões sobre matar como e matar a quem.

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As crescentes taxas das ‘mortalidades’

No Brasil, desde o primeiro caso de Covid-19 identificado, em 26 de fevereiro, foram


registrados até o momento de encerramento deste texto — 25 de junho — 1.228.114 casos
confirmados, entre os quais 54.971 óbitos deles decorrentes. Em 19 de maio, o país ultrapassou a
marca de mil mortes em 24h — 1.179 óbitos entre os 17.408 casos confirmados.
Enquanto isso, poderíamos imaginar que, com a redução das interações sociais no
contexto da pandemia, os números dos homicídios teriam diminuído significativamente em
comparação a tempos normais. No entanto, esses permanecem estáveis e até chegaram a
aumentar em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo. No caso do Rio de Janeiro, as incursões
policiais nas favelas cariocas se apresentam como uma explicação preliminar desses números
(BERTONI, 14/04/2020). Somos há muitos anos os “campeões” de mortes por violência no
mundo ocidental (CHADE, 04/04/2019) e muito provavelmente disputadores das primeiras
posições em termos de mortes por Covid-19 (escala na qual em números absolutos já estamos
em segundo lugar, atrás apenas dos EUA). Ambos os “troféus” dependeram diretamente de
decisões em políticas públicas que incluíram as mortes como possibilidades políticas.
Para fins de análise, propomos nomear tanto as mortes por Covid-19 quanto aquelas por
violência como “mortes por causas políticas”. São, assim, mortes direta ou indiretamente
consequentes de ações políticas pontuais e/ou de ações (ou inações) contínuas das políticas
públicas implementadas nas áreas da saúde e da segurança pública. Esse termo é inspirado na
maneira como o Ministério da Saúde, por meio do Sistema de Informações sobre Mortalidade
(SIM), registra os homicídios como “mortes por causas externas”. Essa categoria inclui mortes
por acidentes em geral (quedas, envenenamento, afogamento, queimaduras e acidentes de
trânsito) e por violências, as quais compreendem eventos intencionais, como agressões físicas,
violência sexual, lesões autoprovocadas, homicídios, entre outros agravos descritos no
capítulo XX da Classificação Internacional de Doenças — CID-101.
Ainda que as mortes resultantes da Covid-19 e os homicídios tenham natureza e
causas distintas nas classificações oficiais, essas mortes guardam semelhanças em termos
das decisões e das ações que provocam no âmbito das políticas públicas no Brasil. Ambas
as formas “causadas politicamente” de morte em questão apresentam uma importante
característica em comum: a subnotificação. Por diversas razões, sabemos pouco da
realidade das mortes por Covid-19, assim como sempre soubemos pouco sobre as mortes
violentas. Somos todos os dias informados de que o Brasil já apresenta muito mais casos
da doença do que os registrados e publicados. Há estimativas de que os números reais
podem chegar a ser mais de 10 ou 15 vezes superiores aos números oficiais do Ministério
da Saúde. No que concerne às mortes violentas, temos duas categorias de fenômeno muito
anteriores à pandemia ocorrendo paralelamente e que obscurecem nossa capacidade de
“captar” a realidade da violência no Brasil.

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Em primeiro lugar, o número de desaparecidos, ou seja, o número de pessoas cujas


circunstâncias do desaparecimento se desconhecem. O número de desaparecidos no Brasil
em 2018 foi de 82.094 mil pessoas (FBSP, 2019), e esses números podem incluir pessoas
supostamente mortas por homicídio, mas cujo corpo não foi encontrado, não podendo, então,
ter a causa de morte registrada. Em segundo lugar, temos baixíssimos índices de elucidação
dos homicídios registrados, o que significa que não conhecemos, ao menos pública ou
oficialmente, as situações concretas em que as mortes ocorreram. Isso vale inclusive para
casos de mortes causadas por policiais, muitas delas classificadas como atos de legítima
defesa, mas cuja realidade dos fatos permanece obscura.
A subnotificação, fruto da não notificação ou da má notificação, é vista como um
problema muito importante no caso das mortes violentas (RIBEIRO e OLIVEIRA,
17/04/2020). E ela pode ser interpretada como um mecanismo de uma política mais ampla
de falta de transparência dos dados, evidenciada nas diferentes etapas do processo de
produção, acesso e comunicação das informações. No que diz respeito à disponibilidade
de dados oficiais oriundos do Sistema de Justiça Criminal, principalmente aqueles relativos
aos homicídios, observa-se um conjunto de obstáculos à publicização das informações.
Esses obstáculos incluem, entre outros fatores, a ausência de um sistema de informação, a
insuficiência de recursos humanos, as falhas na qualidade dos registros e o não
atendimento às demandas dos cidadãos ou de agências da sociedade civil por acesso a
dados via Lei de Acesso à Informação (lei no 12.527/2011).
No contexto da emergência sanitária, em 14 de maio o jornal Folha de S. Paulo
noticiou que “mais de 500 mil registros de óbitos, referentes a diferentes anos, foram
excluídos do Portal da Transparência do Registro Civil, base de dados alimentada pelos
cartórios” (DIEGUES, FARIA e TAKAHASHI, 14/05/2020). As informações constantes
no sistema de registros de óbito dos cartórios vinham sendo utilizadas por pesquisadores
para a observação da mortalidade por Covid-19 no Brasil e para a construção de
estimativas, considerando que o processamento e a consolidação de informações de
outros sistemas de mortalidade, a exemplo do SIM/DataSUS, são mais demorados e por
isso não fornecem dados necessários à análise do problema em tempo real.
Recentemente, observamos atos públicos de autoridades do Executivo federal apontando
para a mitigação do direito de acesso às informações de órgãos e entidades oficiais nas três
esferas administrativas. Um exemplo é a edição de medida provisória pelo presidente Jair
Bolsonaro com o indicativo de suspensão dos prazos para atendimento dos pedidos
decorrentes da Lei de Acesso à Informação durante a pandemia. Também foi ilustrativa a
resistência ou hesitação do agora ex-ministro da Saúde Nelson Teich em comunicar a
atualização dos números de mortes. O exercício de transparência proposto por seu antecessor,
Luiz Henrique Mandetta, por meio da realização de coletivas de imprensa diárias, foi das
ações que desagradaram a Jair Bolsonaro e que contribuíram para a sua demissão.

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Essa falta de transparência tanto reflete quanto estimula uma estabelecida desconfiança
em relação aos números oficiais, fruto de duas dúvidas anteriores: de um lado, sobre a
capacidade da ciência para fornecer “a verdade” e, de outro lado, sobre a capacidade da
política de transmitir a “verdade científica” de maneira fiel. Vivemos um momento histórico
em que as instituições tradicionais perdem a sua credibilidade aos olhos da sociedade
brasileira, e o problema específico da subnotificação que obriga as instituições que produzem
e publicam os dados a permanentemente lembrarem que os números levados a público não
são reais, ainda que representem uma “intenção de realidade”.
A precariedade na produção desses números não impede, no entanto, de identificar a
desigualdade social como a variável mais importante para determinar a taxa de mortalidade. A
afirmação de que “a Covid-19 é democrática” é constantemente repetida por chefes de Estado,
especialistas ou cidadãos comuns se referindo à transmissibilidade da doença, pois essa
supostamente afetaria pobres e ricos sem distinção. A capacidade de mitigar os mecanismos de
transmissibilidade, entretanto, está intimamente ligada à classe social.
Nesse sentido, é interessante observar que os homicídios são considerados “crimes
democráticos” nos livros de direito penal, pois toda pessoa (homens ou mulheres, ricos ou pobres,
negros ou brancos etc.) pode ser o autor ou a vítima de um homicídio. O crime seria, utilizando os
termos da saúde, “transmissível” para qualquer um. Na prática, os estudos sobre a violência no Brasil
mostram que aqueles que morrem por homicídio no Brasil apresentam um perfil bastante específico:
homens, jovens, pobres, negros ou pardos, moradores de periferia e com baixa escolaridade.
Assim como nas mortes por homicídio, o perfil das mortes por Covid-19 tende a se mostrar
profundamente atravessado pelas desigualdades sociais, econômicas e raciais. Como exemplo, embora
o número de casos da doença seja elevado em distritos de classe alta em capitais como São Paulo e
Salvador, há mais mortes nas áreas periféricas das cidades (PMSP, 2020a; UFBA, 2020). Além disso,
os dados apontam que na capital paulista o risco de morte pela doença é 62% maior entre a população
negra comparativamente à população branca (PMSP, 2020b). Isso evidencia as “interfaces” entre as
estruturas sociais e as condições de saúde e doença dos indivíduos, o viver e o morrer.
Há, então, paralelos importantes entre a gestão das mortes causadas pelo coronavírus e
a gestão das mortes por consequência da violência. E o que se mostra efetivo para observá-las
como unidade é o quanto são diretamente afetadas por uma política pública que, ainda que
soe paradoxal, opera no sentido do aumento (e não redução) das mortes. Ambas as categorias
de mortes revelam aspectos da vida social e são consequências diretas de ações políticas
pontuais, e sobretudo de práticas contínuas realizadas no contexto de políticas públicas. O
tratamento dos mortos retrata e explicita de maneira particular os valores diferenciais das
vidas. Os mortos por Covid-19, assim como ocorre há muito tempo com a maioria dos mortos
por violência, são apresentados como consequências “normais” das políticas e não como um
problema a ser combatido. Aparecem em muitos casos, como as mortes causadas nas ações
policiais, como uma consequência positiva da ação (SOARES, 2019). São, então, mortes
consideradas não apenas legítimas, mas imperativas (ADORNO, 17/06/2020).

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A fila dos vivos e a fila dos mortos

Nas últimas semanas, fomos expostos pelas várias mídias a imagens de duas grandes categorias
de filas se formando: uma de vivos e outra de mortos. As filas dos vivos se formaram na frente das
agências da Caixa Econômica Federal para receber o auxílio emergencial de R$ 600 do governo
federal. As filas dos mortos se formaram nos hospitais e nos cemitérios, com vítimas de Covid-19
em sobreposição a outras epidemias (gripe H1N1, dengue, febre chikungunya, febre zika).
Na fila dos vivos estão os mais pobres que buscam receber o pouco oferecido pelo governo
federal. O recebimento dos R$ 600 após vencer muitos obstáculos, a começar pela falta de acesso
à informação, passando-se pelo desafio no preenchimento dos formulários e pelo acesso restrito
à internet. Os instrumentos que deveriam facilitar a implementação da política se tornam nesse
caso seus principais obstáculos. Na fila dos mortos, os idosos e pessoas com saúde frágil foram
maioria em um primeiro momento, mas tem sido cada vez maior o número de pessoas pobres de
todas as idades que contraem o vírus e morrem por conta dele.
As epidemias se configuram como espaços privilegiados para a compreensão das estruturas da
sociedade (CORÔA, 2020), sendo capazes de evidenciar dimensões da sociabilidade, contradições
sociais, conflitos políticos, desigualdades socioeconômicas, desigualdades de gênero e de raça, bem
como de lançar luz sobre formas sociais de cuidado à saúde e de gestão da morte e do luto (PIMENTA
2019). A atual pandemia como experimentada no Brasil deixa à mostra, com especial dramaticidade,
as desigualdades sociais, a concentração de renda, a precarização das condições de trabalho dos mais
pobres, além de lançar luz sobre o processo de desestruturação e subfinanciamento do Sistema Único
de Saúde (SUS) e sobre as consequências concretas desse processo.
Fomos educados para compreender a escassez de recursos — a ideia de que não há recursos
disponíveis para todo mundo viver — como justificativa adequada e suficiente para reduzir determinados
investimentos. Os recursos e os mais variados critérios escolhidos para seus usos são determinantes em
algumas categorias de direitos, tais como o direito à saúde. Na pandemia, a impossibilidade de acessar um
hospital ou uma unidade de terapia intensiva (UTI) como fruto de uma decisão política racional — em
nome da falta de recursos ou outro argumento — transforma as possibilidades de compreensão do direito
à saúde como categoria normativa válida. Como exigir politicamente a proteção da saúde na pandemia
quando ela não é construída como um problema (de saúde) publicamente relevante?
A revista The Lancet, no mesmo editorial em que avaliou a atuação política de Jair Bolsonaro como
explicitamente ameaçadora à vida no Brasil, pergunta: “E como têm reagido a comunidade científica e a
sociedade civil, num país conhecido por seu ativismo e sua franca oposição à injustiça e às desigualdades,
e onde a saúde é um direito constitucional?” (THE LANCET, 09/05/2020, p. 1461). Essa pergunta nos
lembra como o campo da saúde coletiva brasileira se mobilizou politicamente no processo de
redemocratização do país, sobretudo em torno da reforma sanitária e da luta pela saúde como direito
universal (PAIM, 2008), tornando-se internacionalmente um campo científico sólido e respeitado. No
entanto, e apesar das lutas, nesse contexto de “desproblematização” da morte, o direito constitucional à
saúde (ou à vida) perde as condições de possibilidade de ser compreendido, executado ou garantido.

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Essa “desproblematização” da morte aparece em outros contextos além das falas e decisões de
Bolsonaro. Regina Duarte, ex-secretária nacional de Cultura, em entrevista recente à CNN, quando
perguntada sobre as mortes ocorridas durante a ditadura militar no Brasil, respondeu: “Cara, desculpa, eu
vou te falar uma coisa assim: a humanidade não para de morrer. Se você falar ‘vida’, do outro lado tem
‘morte’. Por que as pessoas ficam ‘Oh! Oh! Oh!’… Por quê?” (TOLEDO, 07/05/2020). Nessa fala, a
secretária manifesta sua incompreensão, e mesmo sua discordância, sobre a necessidade de se falar e se
discutir sobre mortes passadas. Assim como fez Bolsonaro em várias oportunidades, ela sugere que as
mortes são necessariamente fatos da natureza, que acontecem o tempo todo e que, portanto, não merecem
especial atenção. Desconhece, descarta e despreza o fato de o Estado ser diretamente responsável por elas
em inúmeras ocasiões, e que na grande maioria das vezes, seus agentes não são responsabilizados por isso.
Tal atitude diante da “fila dos mortos” ressoa para muito além do mundo político, sendo
compartilhada por atores sociais nas mais diversas arenas (FREIRE, 2014). Uma maneira de
observar essa postura está nas reações, institucionais e pessoais, à tentativa de proteção daqueles que
não se encaixam na categoria de “cidadãos de bem”. Os presos (sentenciados ou provisórios,
culpados ou inocentes) são um alvo antigo de desprezo moral e de políticas públicas não concebidas
e muito menos executadas para garantir a saúde ou a vida (GODOI, CAMPELLO e MALLART,
2020; SILVA, 2020). Diante da pandemia e do alto potencial de transmissão dos vírus nas prisões
brasileiras e suas prováveis consequências letais, defensores de direitos humanos e instituições
envolvidas reivindicaram que presos cumprissem pena domiciliar. Muitas reações, inclusive a do
então ainda ministro da Justiça Sérgio Moro, é de desconfiar e rejeitar essa medida, em nome da
“segurança”. A possibilidade real de os presos morrerem, por contaminação pelo coronavírus ou
por violência, não é apresentado como um problema (público), mas como uma fatalidade.
Ora, as reações às mortes que testemunhamos recentemente apresentam um traço em
comum, mencionado por Vladimir Safatle em entrevista à revista Carta Capital (BARROCAL,
21/05/2020): “Falta de empatia com a vulnerabilidade”. A vulnerabilidade, em certas situações, e
por mais surpreendente que possa parecer, gera repulsa e não empatia. Esse processo psíquico-
moral aparece em decisões, atitudes e declarações públicas recentes pessoais, mas sobretudo
políticas, que indicam uma enorme carga de “falta de sensibilidade” em relação a certas mortes.
Nessa perspectiva, os mortos espelham os quadros de mentalidade, moralidades e sensibilidade
sociais, assim como refletem os múltiplos espectros das desigualdades socioeconômicas e dos
dispositivos hierárquicos de classificação e distinção social. De fato, retratam modos de gestão
política e tratamento público da vida e da morte na sociedade brasileira.

Notas

1
No Atlas da Violência 2019, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública
(FBSP) agrupam no conceito de homicídio “as categorias agressões (110) e intervenções legais (112) do CID-BR-10, ou as
categorias do CID compreendidas entre Y85-Y09; Y35-36, segundo o SIM/SVS/MS” (IPEA e FBSP, 2019, p. 5).

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Referências

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Fontes da imprensa

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circulando nas ruas e confinamento em casa alteram números de roubos, furtos e casos de violência
doméstica em São Paulo e Rio de Janeiro”. Nexo, Expresso, 14 de abril de 2020. Disponível (on-line)
em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/04/14/Qual-o-impacto-da-pandemia-nos-
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DIEGUES, Leonardo; FARIA, Flávia; TAKAHASHI, Fábio. “Meio milhão de mortes somem de sistema
usado para monitorar Covid-19: Registros no Portal da Transparência, usado por pesquisadores para
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GUIMARÃES, Ligia. “Drauzio Varella prevê ‘tragédia nacional’ por coronavírus: ‘Brasil vai pagar o preço
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DILEMAS – Rio de Janeiro – Reflexões na Pandemia 2020 – pp. 1-10


Mariana Thorstensen Possas, Andrija Oliveira Almeida e Karla Matias
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HÜBNER MENDES, Conrado. “O PIBB que se exploda: Crescimento econômico de qualidade requer
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pela Covid-19”. O Globo, Brasil, 30 de abril de 2020. Disponível (on-line) em:
https://oglobo.globo.com/brasil/da-gripezinha-ao-dai-confira-as-reacoes-de-bolsonaro-enquanto-
aumentavam-as-mortes-pela-pandemia-no-brasil-24402593
TOLEDO, Giuliana de. “Regina Duarte minimiza ditadura, cita Stálin e Hitler, diz que Covid-19 ‘trouxe
muita morbidez’ e encerra entrevista com bate-boca: Ao vivo na TV nesta quinta (7), secretária
especial da Cultura diz que fica no cargo; nas redes, artistas e intelectuais criticaram a atriz”. O Globo,
Cultura, 7 de maio de 2020. Disponível (on-line) em: https://oglobo.globo.com/cultura/regina-
duarte-minimiza-ditadura-cita-stalin-hitler-diz-que-covid-19-trouxe-muita-morbidez-encerra-
entrevista-com-bate-boca-24415614

MARIANA THORSTENSEN POSSAS (mariana


possas@gmail.com) é professora do Departamento
de Sociologia, do Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais (PPGCS) e do Mestrado Profissional
em Segurança Pública, Justiça e Cidadania (MPSPJC)
da Universidade Federal da Bahia (UFBA, Salvador,
Brasil) e uma das coordenadoras do Laboratório de
Estudos sobre Crime e Sociedade (Lassos), da UFBA.
É doutora em Criminologia pela Universidade de
Ottawa (uOttawa, Ottawa, Canadá).

ANDRIJA OLIVEIRA ALMEIDA


(andrija.oliveiraalmeida@gmail.com ) é professora
do Mestrado Profissional em Segurança Pública,
Justiça e Cidadania (MPSPJC) da Universidade
Federal da Bahia (UFBA, Salvador, Brasil) e
pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Crime
e Sociedade (Lassos) da UFBA. Também é
doutoranda no PPGCS/UFBA.

KARLA MATIAS (karlamatias77@gmail.com)


pesquisadora independente em direitos humanos.
Tem mestrado em Políticas Públicas pela uOttawa.

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Mariana Thorstensen Possas, Andrija Oliveira Almeida e Karla Matias

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