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ARTIGO
MARÍYARAPÁXJIS:
LÍNGUA, GÊNERO E HOMOSSEXUALIDADE
EM MOÇAMBIQUE
1
Universidade Estadual de Campinas, Campinas/SP, Brasil
Introdução
E uma coisa que me marcou – acho que foi em 2009, não 2008 ou 9, não me
lembro bem – nós fomos a um distrito no interior de Nampula falar sobre
orientação sexual, falar sobre homossexualidade, e apareceu uma velha – entre
aspas. E, quando eu falei do tópico, ela disse: “Epa, meu filho, agora estou a
entender. Eu tive um irmão que nunca se casou. Nós tentamos forçar, forçamos,
mas ele nunca aceitou. Disse que quando ficava próximo das mulheres se
sentia mal, havia um espírito que vinha, lhe tomava, e fazia-lhe mal. Mas eu
sempre vi ele com homens, até a morte dele. Nunca se juntou com mulheres,
nunca teve este afeto. Mas eu não sabia. Só agora que meu filho tá a falar isso,
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começo a entender”. Por que me marcou? Me marcou porque nós não estávamos
numa grande cidade. Estávamos lá no interior. E a pessoa que estava a falar
era uma idosa, creio que não sabia ler nem escrever, mas ela se lembrou deste
episódio... Depois eu acabei usando este depoimento em outras formações,
inclusive em grandes cidades, porque havia uma corrente que dizia assim “Ah,
é assunto das cidades. Isso é com os brancos, cá entre nós não existe”. Eu me
lembro desta história que aconteceu lá no interior, eu sempre usei isto em outras
formações (Entrevista com Luiz, Maputo, 27/06/2018).
Ars Erotica
Eu próprio não sei como me detalhar porque... não aprendi... ainda não tive
aquilo de aprender, saber que isto é isto, aquilo é aquilo. Eu só tenho desejo, às
vezes eu encontro alguém, ficamos. Só. Ainda não tenho aquela experiência de
“assim, que eu sinto assim, é porque eu sou assim”. Ainda não tenho (Entrevista
com Amarildo, Matola, 23/08/2018).
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– Sim. Tinha uns 34 anos. Mas falando sério, eu vinha, vinha até a... não sei como
explicar... aquela coisa de eu querer! Mas não saber como fazer. Como fazer.
Estás a ver? [...] porque eu... eu andava na rua. Eu via um outro, uma pessoa
assim, um outro homem. Sim, mas eu apreciar, mas sem ter como eu me... como
eu falar com ele ou tentar conversar. Eu tentar lhe... Estás a ver? Não ter como...
– Não sabia o que dizer pra ele?
– Não sabia o que dizer... Eu era só ver e eu querer... Epa, eu chegar em casa,
beber um copo de água e ficar...
– E desde quando você sente essa vontade de ter com homens, assim? É desde
a infância ou foi uma coisa que apareceu mais tarde?
– [...] Ah, comecei nos 17, 18 [anos]. Mas como eu sou de uma família, uma
família muito, assim, muito, muito de baixo, [...] uma família muito pobre, então
ali não tinha como eu saber que existia essas coisas.
– Você nunca tinha visto na rua?
– Não! Eu nunca tinha visto! Eu nunca nem tinha ouvido falar. Nem na rádio,
nem televisão, nunca! Porque eu quase cresci sem assistir nem a televisão. Então
aquilo foi coisa de eu ver, assim, se eu... de irmos com uns amigos, de irmos
tomar banho num lago, assim, eu olhar e... Meu corpo precisa... Ah, aquela
coisa de...! Mas sem, sem... não ter aquela iniciativa. “Como falar ou convidar
alguém para conversar?”
(Entrevista com Amarildo, Matola, 23/08/2018, grifo meu)
Assim, apesar de sentir o desejo pelos homens com os quais cruzava nas
ruas ou pelos amigos com os quais ia ao lago, a possibilidade de efetivação
desse desejo em ato sexual com esses mesmos homens parecia fora de
possibilidade. Não porque eles não quisessem – Amarildo nunca soube –
mas porque isto não estava no acervo de possibilidades dadas no mundo
para ele. Seria então, só aos 34 anos, que ele conheceria seu “iniciador”:
Então, ele pegou a minha mão. Quando pegou a minha mão assim, ele começou
a me... [Amarildo faz o gesto de coçar com um dedo, de forma secreta, a palma
da mão do outro].
(Entrevista com Amarildo, Matola, 23/08/2018)
[...] Então, eu não entendi nada. Ele, “Epa, não, mas... como te chamas?”. Eu,
“Amarildo”. “Tá bom, Amarildo. Então podemos ser amigos. Não implica nada.
Não estivemos juntos na festa e eu estou a te confundir. Mas assim quero ser
seu amigo”. Eu, “Opa, não tem problema...” Ele, então, “Peço teu número”. E
eu dei meu número do telefone. Aí ele “Tá bom, tá bom”. Chegou o chapa. Eu
entrei no chapa. O chapa saiu. De repente, ele me mandou uma mensagem
“Olha, Amarildo, eu gostei muito de ti. Eu gostei, eu quero estar contigo. Tem
quer ser muito rápido. Eu quero estar contigo”. Eu vi aquela mensagem, e “Ih!”
Meu coração bateu tão forte... “Será que já chegou a vez?” (gargalhadas) [...]
Na hora, eu até pensei que era uma pessoa bêbada, porque ele veio com aquela
alegria um pouco estranha. Sim, então eu pensava que ou ele bebeu... Só que,
quando ele já me mandou aquela mensagem, [...] dali já é que eu comecei já...
tudo ficar claro. Então, eu pensei a maneira como ele pegou a minha mão, já
começou tudo na mente (Entrevista com Amarildo, Matola, 23/08/2018).
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Francisco (F): Mas esses xingamentos são sempre em português ou tem algum
nome em changana?
Pablo (P1): Tem em changana! Até [seria] mais preferível [ser chamado em
português]...
Pedro (P2): Xintavana (risos)
Isaías (I): [?] porque sabe que isso machuca mais do que chamar de “gay”.
P1: Nghwendzá
F: O que significa nghwendzá?
P2: Tipo impotente, tipo uma coisinha assim...
I: Uma pessoa que não tem função. Uma função sexual.
[...]
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F: Que mais?
P2: “Maricas”, “maria-rapaz”, “princesa”, essas coisas...
F: Mas por que você falou que machuca mais? Alguém falou que machuca mais...
I: Machuca mais porque em português... Porque em changana é mais pesado
para quem recebe, na verdade.
F: Por quê?
I: Porque as palavras não vêm leves. Tudo machuca.
P1: E é uma palavra pra chamar a atenção. Aquelas senhoras já conhecem
aquele nome. Os novos têm alguns que não falam changana. Não conhecem
essa palavra. Quando ouvem, estão a rir. Não sabem o que estão a rir. E a pessoa
que sabe vai calar.
I: É assim. Uma coisa é: quando a pessoa, por exemplo, te chamar de “gay”,
às tantas...
P2: Até não dói muito. [...] Às tantas, você está com a sua avó que não fala a
língua portuguesa, mas quando já te chamam de xintavana, ela sempre vira:
“Olha, depois quero saber o que está a acontecer”. É só isso...
F: Ela percebe...
P2: Mas “gay”... Ah, “gay” eu gosto (gargalhadas gerais). (Entrevista com Pablo
e Pedro, Maputo, 07/05/2018).
os casais mais jovens do mesmo sexo muitas vezes se referem uns aos outros
como “dears” ou “sweethearts”, palavras inglesas associadas à modernidade e ao
amor romântico. Uma vez que esses termos são usados por casais heterossexuais
júniores, eles são muito menos evidentes do que o termo “supi” (Dankwa
2009:198).
“Aquele ali não queria ser um homem, mas sim queria ser mulher” (Entrevista
com Leandra, Matola, 13/04/2018, grifo meu).
– Tipo “Ege! Lechiya Xi yambala Ingui Wa nuna! Ege Xiti Elha Wa nuna. I
Marikas. Marikas Uá ne AngaDani”. E tem um moço ao lado, que é gay. Também
chamam assim. Só que ele tem mulher. Não sei se chamam de quê aqueles que
têm mulher também. [?] Chamam de nomes, sei lá. [...] “A Wa nuna Waku Xonga
Atitxintxa Aholhoka ahamba Wa sati Mina Aningue pfumeli. Mina nada”. “Um
homem assim, bonito, tá tentar a se mudar, ser uma mulher. Não tem vergonha”
(Entrevista com Céia, Matola, 15/08/2018, grifos meus).
que de sexualidade. Mas isto parece cada vez mais se transformar à medida
que há a adesão a uma episteme do “dispositivo da sexualidade”, apontado
por Michel Foucault (1988), da ressonância do trabalho de organizações
como a LAMBDA, de recentes pesquisas científicas locais sobre o tema
(Bagnol 2009; Timbana 2011; Mugabe 2015, 2019; Cambaco 2014; para
citar algumas) e de certas legislações nacionais, tal qual o novo código
penal moçambicano que retirou o crime de “vícios contra a natureza”, ou
a nova lei do trabalho, que proibiu a discriminação por “orientação sexual”
(Costa 2021).
Mas os vocativos não eram e não são atualmente inexistentes. De
um ponto de vista histórico, se a antiga palavra sokisi parece ter sumido,
no século passado, do léxico dos machangana – pelo menos no de meus
interlocutores – vi surgir no vocabulário local não apenas palavras
estrangeiras como homossexual e gay, mas também os neologismos marikas
e maríyarapáxji. Outras palavras do changana, como núna e nghwendzá, são
há mais de um século ressignificadas para dar conta do campo semântico
da homossexualidade. A primeira para nomear os maridos, entre outros, dos
homossexuais; a segunda para, eventualmente, interpelar acusatoriamente
um homossexual. Xintavana, por sua vez, surgiria como uma gíria
depreciativa de homossexual, que seria ao mesmo tempo estrangeira e
familiar para os falantes de changana. E o último modismo, dado o sucesso
das produções audiovisuais e cinematográficas brasileiras, é chamar os
homossexuais com os nomes de personalidades e personagens brasileiros,
tais como Félix, Pablo Vittar etc.
Considerações finais
Notas
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MARÍYARAPÁXJIS: 25
LÍNGUA, GÊNERO E HOMOSSEXUALIDADE EM MOÇAMBIQUE
Resumo Abstract
MARÍYARAPÁXJIS: LENGUA,
GÉNERO Y HOMOSEXUALIDAD EN
MOZAMBIQUE
Abstract