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ECOS | Volume 10 | Número 1

Hannah Arendt e a
contradição sobre a questão
negra
Hannah Arendt and the contradiction
on the black question

Adriely Oliveira Clarindo, Jésio Zamboni, Jessica Tatiane


Felizardo, Rafaela Werneck Arenari Martins

Adriely Oliveira
Resumo
Clarindo
O presente ensaio almeja caminhar face às contradições descritas por UFES
Hannah Arendt em seus escritos sobre a questão negra. Tomaremos, como Mestre em Psicologia
suporte, a obra crítica intitulada “Hannah Arendt and the Negro Question1” Institucional na Universidade
(2014), de Kathryn T. Gines, e o ensaio “Reflexões sobre Little Rock" (2004 Federal do Espírito Santo,
[1959]) de Hannah Arendt, presente na coletânea “Responsabilidade e Vitória/ES, Brasil.
Julgamento” (2004). Gines (2014) pontua, com base nos escritos drica-clarindo@hotmail.com
arendtianos, que Arendt analisou a questão negra como um problema negro,
em vez de apresentá-lo como um problema branco. Com efeito, a partir Jésio Zamboni
dessas considerações, iremos elucidar como a abordagem de Arendt, com UFES
foco na questão negra, vai ao encontro da contradição, que a impede de
Professor Adjunto no
reconhecer o racismo como um fenômeno político. Departamento de Psicologia e
Professor Permanente no
Palavras-chave Programa de Pós-graduação em
Educação, racismo, revolução. Psicologia Institucional da
Universidade Federal do
Espírito Santo.
zambonijesio@gmail.com

Abstract Jessica Tatiane


This essay aims to walk in the face of the contradictions described by Hannah Felizardo
Arendt in her writings on the black question. We will take, as support, the UFES
critical work by Kathryn T. Gines entitled Hannah Arendt and the Negro
Mestranda no Programa de Pós-
Question (2014) and the essay Reflections on Little Rock (1956) by Hannah graduação em Psicologia
Arendt present in the collection Responsibility and Judgment (2004). Gines Institucional na Universidade
(2014) points out, based on Arendt ian writings, that Arendt analyzed the Federal do Espírito Santo,
Vitória/ES, Brasil.
black question as a black problem, instead of presenting it as a white problem.
In effect, based on these considerations, we will elucidate how Arendt's jessicafelizardo12@yahoo.co
m.br
approach, focusing on the black issue, find contradictions, which prevents her
from recognizing racism as a political phenomenon.
Rafaela Werneck
Keywords
Arenari Martins
Education, racism, revolution. UFES
Mestre em Psicologia
Institucional na Universidade
Federal do Espírito Santo,
Vitória/ES, Brasil.
rafaelaarenari@gmail.com
ECOS | Estudos Contemporâneos da Subjetividade | Volume 10 | Número 1

Considerações iniciais 1
Hannah Arendt e a Questão
Decepcionar é um prazer. Nem de longe queremos nos fingir de loucos, mas Negra (tradução nossa).
enlouqueceremos à nossa maneira e na nossa hora, não precisam nos
empurrar.
Gilles Deleuze
2
Nosso escrito trilhará sobre os textos de uma mulher judia, que viveu o Em português: “pensadores
profissionais” (tradução nossa).
holocausto nazista, tendo que recorrer ao exílio para salvar sua vida.
Refugiou-se na França, vindo a se apartar nos Estados Unidos da América.
Hannah Arendt foi uma mulher autêntica e disciplinada com sua obra. Seu
encontro com a filosofia é fortalecido por fundamentais pensadores da 3
época, dos quais vale ressaltarmos: Heidegger, Jaspes, Hans Jonas, Brecht e É professora associada de
Walter Benjamin dentre outros. Conviveu e esteve presente em rodas de Filosofia e Estudo Afro-
debates ministradas por grandes questionadores de referência da época. Americano na Universidade
Estadual da Pensilvânia,
Arendt se mostrou estoicamente em meio a esse círculo patriarcal da diretora e fundadora do
filosofia. Não se intitulou como filósofa. Em suas palavras: “[...] não pretendo Collegium of Black Women
ser nem ambiciono ser um ‘filósofo’, ou estar incluída entre aqueles que Philosophers. Também é editora
Kant, não sem ironia, chamou de Denker Von Gewerbeo”² (ARENDT, 2014 e fundadora da revista Critical
Philosophy of Race Beyond the
[1978], p. 17). Certamente, o que ela se intitulou ser foi uma teórica política. Black
Arendt é considerada uma mulher além de seu tempo. Vejamos seu
recuo ao padrão que era imposto para as mulheres da época, o qual ser
mulher, nas palavras de Arendt (2008 [1968], apud LAFER, 2008, p. 310),
“[...] também significava um grande talento culinário e o gosto de cozinhar”.
4
A pensadora foi a primeira mulher a ser professora titular em Princeton no “Reflections on Little Rock”,
escrito no ano de 1957 e
ano de 1959. Ela gozava e ocupava espaços da esfera pública, que eram recusado pela revista
destinados apenas para os homens. Sua obra, intitulada “Origens do Commentary , posteriormente é
Totalitarismo” (1959), a tornou conhecida e respeitada no campo filosófico. publicado na revista Dissent no
Em síntese, sua trajetória direciona o quanto essa mulher estava além de ano de (1959).
sua época, porque era natural as mulheres ocuparem apenas espaços da
esfera privada, rígida por ordens do arrimo da família.
Para tanto, nosso intuito é explanar a interpretação tecida por Kathryn
T. Gines³ (2014), em sua obra “Hannah Arendt and the Negro Question”,
cuja pauta diz respeito à contraposição de Arendt acerca da questão negra.
Esse tema é pouco discutido entre os leitores e estudiosos da pensadora.
Dessa maneira, pretendemos caminhar sobre essa lacuna, presente nos
estudos arendtianos, e pontuar a contradição de Arendt sobre o negro,
tendo como base a obra crítica de Gines (2014).
Em um primeiro momento, trilharemos sobre o erro de interpretação
de H. Arendt4 acerca da foto do caso da menina negra, vítima de racismo em
Little Rock. Pontuaremos a sucinta contraposição da autora perante a
imagem fotográfica. Em um segundo momento, percorreremos acerca da
Revolução Americana decretada em 1776, com a finalidade de descrever
que o sangue derramado na Revolução não eclodiu em parte da população,
conforme foi deliberado na Constituição. Por fim, o terceiro momento se
atém sobre a ideologia do racismo e o raciocínio do racismo, sobre o qual
Arendt faz uma síntese em relação à forma como o governo imperialista
utilizou-se da raça para se organizar politicamente. Diante disso, há uma
breve crítica colocada por Gines (2014), em que H. Arendt não salientou
sobre o modo como a pseudociência foi vista como um raciocínio racial.

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A interpretação de Hannah Arendt acerca da foto da menina 5


negra de Little Rock Hannah Arendt havia escrito
seu ensaio no ano de 1957, o
ensaio não foi publicado na
Figura 1: Fotografia que dispara Hannah Arendt a escrever o ensaio de 19575 época, pois a editora
Commentary havia averiguado
um ponto de vista controverso
da autora. Todavia, no ano de
1959, Arendt consegue publicar
o ensaio: "Reflections on Little
Rock" (1959), tecendo um
argumento que ás crianças não
deveriam ser inseridas na linha
de frente das batalhas políticas.
A vista disso, por mais que
Arendt seja simpatizante dos
grupos minoritários, ela tece
uma cobrança aos pais negros e
os ativistas da NAACP que
inseriram seus filhos e filhas na
batalha de desagregação. Ela
frisa por fim, uma
irresponsabilidade política e
abandono de crianças negras as
forças brutais do governador
Jim Crow South.

Fonte: Disponível na obra: “Responsabilidade e Julgamento” de Arendt (2004


[1959], p.260), organizada por Jerome Kohn, na tradução de Rosaura
Einchenber. 6
É relevante ressaltar que o
ensaio “Reflections on Little
Hannah Arendt (2004 [1959]), no ensaio sobre Little Rock6, inicia
Rock” é datado de 1959, o
contextualizando o peso das realidades históricas da escravidão, raça, escrito faz parte da obra
racismo e as consequências políticas dessas realidades nos Estados Unidos “Responsibility and Judgment
da América. Tal escrito a desperta devido ao seu contato com a foto da (2003). Os ensaios foram
organizadas por Jerome Koh. No
menina negra, vítima de racismo na escola de Little Rock, a qual foi
ano de 2004 a obra foi
estampada nos jornais americanos. O ocorrido aconteceu no ano de 1957. publicada no Brasil pela
Em suas palavras: tradução de Rosaura
Einchenberg.

O ponto de partida das minhas reflexões foi uma fotografia nos jornais que
mostrava uma menina negra saindo de uma escola recém-integrada a
caminho de casa: perseguida por uma turba de crianças brancas, protegida 7
por um amigo branco de seu pai, a face dando um testemunho eloquente do “[...] Arendt does not situate and
fato óbvio de que ela não estava precisamente feliz. A fotografia revelava a analyze the color question in a
situação em poucas palavras, porque aqueles que nela apareciam foram ‘political and historical
diretamente afetados pela ordem do tribunal federal, as próprias crianças framework. She chooses instead
(ARENDT, 2004 [1959], p. 261). to characterize segregation,
especially in education, as a
social issue.’” (GINES, 2014, p.
Nessa perspectiva, Gines irá discordar de Arendt dizendo que “[...] 14).
Arendt não situa e analisa a questão da cor em um contexto político e
histórico. Em vez disso, ela escolhe caracterizar a segregação, especialmente
na educação, como uma questão social”7 (GINES, 2014, p. 14, tradução
nossa). Ao conceber a educação como pertencente a uma esfera pré-política
e social, Arendt entendia que a luta dos negros não deveria, portanto,
envolver as crianças na educação, uma vez que seria colocar um problema
do campo social no campo político e, até aqui, sabemos que essa é uma
divisão bastante cara à pensadora. A partir disso, Gines (2014) conclui que
Arendt apresenta a crise da segregação na educação pública como um
problema negro em vez de um problema branco.
Segundo Gines (2014), Arendt, em seu escrito do ano de 1959, estava
encoberta de contradição desde o início. A autora salienta que não publicou
seu texto na data referenciada pelo fato de ter entrado em discordância com
a posição da revista sobre o racismo e a segregação. De acordo com Norman

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Podhoretz “[...] o ensaio de Arendt, foi considerado tão controverso que o 8


Commentary não quis publicá-lo”8 (PODHORETZ, 1999, p. 146-147 tradução “Arendt’s essay was deemed so
nossa). A partir dos rumores, Arendt retira seu texto da revista, controversial that Commentary
direcionando a publicação para a revista Dissent. Assim, a teórica responde did not want to publish it”
(PODHORETZ, 1999, pp. 146-
às criticas, sendo estas publicadas na mesma revista em que foi publicado
147).
seu escrito (GINES, 2014, p. 15).
A obra “Hannah Arendt and the Negro Question” (2014) aponta que, até
mesmo na fotografia analisada por Arendt, houve erro por parte de sua
interpretação, já que sua análise, perante esse tema, iniciou-se por causa da 9
fotografia, a qual foi exposta nos jornais americanos. Na imagem original, a The newspaper’s front page on
this date actually features two
menina Elizabeth Eckford aparece na fotografia após sair da escola sendo photographs pertaining to
perseguida por uma multidão de pessoas brancas, contrárias ao fim da school desegregation. Each
segregação racial nas escolas. Sobre esse assunto, Danielle S. Allen (2004), photograph includes a fifteen-
na obra: “Talking to Strangers Anxieties of Citizenship since Brown v. Board year-old Black female student,
and the young ladies are
of Education” comenta que Arendt Arendt estava se referindo a fotografia wearing similarly patterned
estampada na primeira página do jornal no New York Times no dia 5 de dresses. The top image depicts
setembro de 1957. Nesta data o jornal apresentou duas fotografias the National Guard creating a
referentes à desagregação escolar. Acerca desse acontecimento, Gines frisa: barrier preventing Elizabeth
Eckford from gaining access to
Central High School in Little
A primeira página do jornal nesta data realmente apresenta duas Rock, Arkansas, while a white
fotografias referentes à segregação da escola. Cada fotografia inclui uma female student is allowed to
aluna negra de um ano e as jovens estão usando vestidos com estampas bypass the barrier.5 The bottom
image shows Dorothy Counts
semelhantes. A primeira imagem mostra o guarda criando uma barreira
and Dr. Edwin Thompkins
impedindo Elizabeth Eckford de ter acesso à Central High School em Little surrounded by “jeering” white
Rock, Arkansas, enquanto uma aluna branca é autorizada a contornar a students while walking toward
barreira. A segunda imagem mostra Dorothy Counts e o Dr. Edwin (not away from) Harding High
Tompkins cercados por estudantes brancos ‘zombando’ enquanto School in Charlotte, North
caminhavam em direção à Harding High School, em Charlotte, Carolina do Carolina. Arendt mistakenly
Norte. Por acaso, Arendt descreve a segunda foto de Counts e o Dr. Edwin describes the photo of Counts in
Tompkins em Charlotte, em vez da Eckford em Little Rock. A sua Charlotte rather than the one of
interpretação da fotografia e a avaliação da cena estão erradas em ambos Eckford in Little Rock. And her
os casos9 (GINES, 2014, p. 16, tradução nossa). interpretation of the
photograph and assessment of
the scene are wrong in both
cases”. (GINES, 2014, p. 16).
No dia do ocorrido, conforme Gines (2014) referência, os alunos foram
avisados da possibilidade de um novo plano, o qual seria reunir-se em um
local designado com o intuito de irem juntos para a escola. Esse plano foi
comunicado aos pais, via telefone, por Bates. O fato é que Elizabeth e seus 10
pais não sabiam do plano combinado, pois estes não possuíam telefone em Associação Nacional para o
sua residência. Consequentemente, a falta de comunicação levou a menina a Progresso de Pessoas de Cor é
enfrentar sozinha a multidão branca e racista, a qual suplicava que ela fosse uma das mais antigas e mais
linchada. influentes instituições a favor
dos direitos civis de uma
Nas palavras de Eckford Bates (presidente da NAACP)10, minoria nos Estados Unidos.
[...] alguém começou a gritar: ‘Linche ela! Linche ela!’ [...] Chegaram mais
perto, gritando: ‘Nenhuma vadia negra vai entrar na nossa escola. Saia
daqui’. Voltei aos guardas, mas seus semblantes me disseram que eu não 11
conseguiria ajuda deles” (GINES, 2014, p. 17, tradução nossa). 11
“[...] somebody started yelling,
‘Lynch her! Lynch her!’ [...] Tey
came closer, shouting, ‘no
O episódio violento contra a criança é narrado a seguir: nigger bitch is going to get into
our school. Get out of here.’ I
turned backto the guards but
Elizabeth Eckford, chegando à Escola Central, inicialmente, pensou que o their faces told me i wouldn’t
guarda estava lá para protegê-la. A menina logo percebeu que os soldados get help from them” (GINES,
estavam lá (sob as ordens do governador de Arkansas Orval e Faubus) 2014, p. 17).
para mantê-la fora da escola em vez de protegê-la da multidão.
Infelizmente, Elizabeth teve que confrontar a máfia raivosa, branca e
racista, sozinha em Little Rock. Isso ocorreu devido a uma falta de
comunicação, não à negligência por parte de seus pais ou à NAACP, como
referenciado por Arendt 12 (GINES, 2014, p. 16, tradução nossa).

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A obra de “Danielle Elle” (2004), referenciado por Gines (2014) citada 12


anteriormente, esclarece que a instituição NAACP e os pais das crianças “Elizabeth Eckford, arriving at
estavam ausentes durante a cena, como afirma Arendt. Todavia, Gines Central High school, initially
thought that the national guard
(2014) ressalva que Arendt analisa a fotografia com suposições já formadas
was there to protect her.
ao endossar que os pais negros e a NAACP foram negligentes e oportunistas. Eckford soon realized the
Agiram dessa forma, a fim de buscar mobilidade social por meio da soldiers were there (under
obrigação do governo em integrar as crianças negras em escolas públicas orders from Arkansas governor
Orval e Faubus) to keep her out
destinadas aos brancos. Disso, aqui se percebe o quanto Hannah Arendt foi
of the school rather than to
marcada por seu histórico, pelo lugar de fala e pela casa em que ela cresceu protect her from the crowd.
e foi educada. Gines reitera: unfortunately, Eckford did
confront the angry, white, racist
mob on her own in Little rock.
Arendt revela que ela e todas as crianças judias experimentaram o But this was due to a
antissemitismo. Ela frequentou uma escola com alunos e professores que breakdown in communication,
faziam comentários antissemitas. Em vez de abrigo nesse ambiente not neglect on the part of her
parents or the NAACP, as
antissemita, sua mãe não a ensinou a humilhar-se ou ceder nesse ambiente
suggested by Arendt” (GINES,
hostil (GINES, 2014, p. 19, tradução nossa). 13 2014, p. 16).

Para tanto, por meio do histórico de Arendt, ao analisar o caso de


Elizabeth e ensaio Little Rock são perceptíveis as práticas do judaísmo que
ela vivenciou. E isso lhe custa uma análise que vai de encontro ao
13
“conservadorismo”. Nessa perspectiva, Elisabeth Young-Bruehl (2004) lê o “Arendt discloses that she and
all Jewish children experienced
ensaio de Little Rock como reflexo do corpo arendtiano ser tomado por antisemitism. she attended a
práticas do Judaísmo mais conservador. Em suma em suas palavras: “[...] school with students and
Essa criança não recebeu a proteção absoluta da dignidade”14 (BRUEHL, teachers who made antisemitic
2004, p. 311), tradução nossa). Diante dessa fala, pensar-se-á que a mãe de remarks. Rather than shelter
Arendt from this antisemitic
Arendt, Martha Arendt, educou a filha, para deixar situações sociais em que environment, her mother taught
não era desejada e retornar para casa em seguida. Percebe-se que a figura her not to humble herself or
materna marca Arendt sobre a análise do caso Elisabeth. Em outras yield to it” (GINES, 2014, p. 19).
palavras, Arendt certamente se indagou: onde está a mãe ou o pai dessa
criança?
Arendt piora ao referenciar sobre os pais estarem negando a dignidade 14
e proteção aos seus próprios filhos. Ao contrário disso, os pais negros “[...] This child was not given the
estimularam a dignidade e o autorrespeito de seus filhos, ajudando-os a ‘absolute protection of dignity”
enfrentar a situação racista e a supremacia branca sob a qual viviam. De tal (BRUEHL, 2004, p. 311).
modo, Arendt traz na memória as lições que recebeu de sua mãe, com o
intuito de interpelar as lições que lhe foram ensinadas pelos pais negros.
Isso é averiguado na resposta e na pergunta:

[...] o que eu faria se fosse uma mãe negra? Resposta: em nenhuma


circunstância, exporia meu filho a condições que dariam a impressão de
querer forçar a sua entrada num grupo em que não era desejado.
Psicologicamente, a situação de não ser desejado (uma situação
embaraçosa tipicamente social) é mais difícil de suportar do que a franca
perseguição (uma situação política embaraçosa), porque o orgulho pessoal
está envolvido. Por orgulho, não me refiro a nada como ‘orgulhar-se de ser
negro’, judeu ou branco protestante anglo-saxão etc., mas àquele
sentimento inato e natural de identidade com o que somos pelo acaso do
nascimento. O orgulho, que não compara e desconhece os complexos de
inferioridade ou de superioridade, é indispensável para a integridade
pessoal, um sentimento que se perde menos pela perseguição do que por
coagir, ou antes ser forçado a coagir, à saída de um grupo e à entrada em
outro. Se eu fosse uma mãe negra no Sul, sentiria que a decisão da Suprema
Corte, involuntária mas inevitavelmente, colocara o meu filho numa
posição mais humilhante do que aquela em que ele se encontrava antes
(ARENDT, 2004 [1959], p. 261-262).

Dessa maneira, há um equívoco, como já mencionado: Arendt assume


que os pais negros não protegeram a dignidade de seus filhos. Além disso,

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ela também assume que os pais negros, prontamente, enviaram seus filhos 15
para escolas brancas, a fim de se socializarem com estudantes brancos, que “she is defending the choices of
não os queriam por perto. Outra questão posta, quando Arendt articula white parents for their children
explicitamente suas dúvidas sobre a igualdade de oportunidades without regard for the lack of
educacionais, sendo uma questão central para os pais negros, notamos que: choices aorded to Black parents
for their children” (GINES, 2014,
p. 44).
[...] Além do mais, se fosse negra, sentiria que a própria tentativa de
começar a dessegregação na educação e nas escolas não tinha apenas
deslocado, e muito injustamente, a carga da responsabilidade dos ombros
dos adultos para os das crianças. Estaria também convencida de que há, em
todo o empreendimento, uma implicação de tentar evitar a questão real. A
questão real é a igualdade perante as leis do país, e a igualdade é violada
pelas leis da segregação, isto é, por leis que impõem a segregação, e não por
costumes sociais e maneiras de se educar as crianças. Se fosse apenas uma
questão de educação igualmente boa para os meus filhos, um esforço para
lhes conceder igualdade de oportunidades, por que não me pediram que
lutasse pelo melhoramento das escolas para crianças negras e pelo
estabelecimento imediato de classes especiais para aquelas crianças cujo
histórico escolar as torna aceitáveis nas escolas de brancos?
(ARENDT, 2004 [1959], p. 262).

Arendt coloca essas questões e sugere, em primeiro lugar, a) que os


pais negros não estavam lutando para melhorar as escolas de seus filhos e,
segundo, b) que registos podem tornar os alunos negros mais “aceitáveis”
para as escolas brancas, ainda em “classes especiais” separadas. Nessa
situação, a autora se entrelaça mais ainda, colocando-se em defesa das mães
brancas e dos direitos brancos no Sul a partir da pergunta: “[...] o que eu
faria se fosse uma mãe branca no Sul?” (ARENDT, 2004 [1959], p. 263).
A resposta da pensadora diz respeito a ser contra a interferência do
governo sobre a educação dos seus filhos, colocando, assim, a criança em
tutela dos pais até que estes sejam adultos. Nas palavras de Gines: “[...] ela
está defendendo as escolhas dos pais brancos para seus filhos sem levar em
conta a falta de escolhas aos pais para seus filhos”15 (GINES, 2014, p. 44,
tradução nossa). Percebemos que Arendt não faz tentativa alguma de
defender o direito das famílias negras para igualar as escolas públicas. O que
se analisa é que o direito dos pais brancos e os dos estados do Sul em prol
da manutenção das escolas públicas segregadas estão entre as principais
preocupações articuladas em suas reflexões.
Para concluirmos, os erros percorridos por Arendt sobre a fotografia
que ela descreveu em “Reflexões sobre Little Rock” (2004), junto com seus
erros de julgamento, especialmente em sua afirmação de que os pais negros
submetiam seus filhos a grupos racistas com o objetivo de se promoverem
não deve ser ignorados. Além de rejeitarmos seus erros de julgamento sobre
os pais negros e sua representação excessivamente simplificada da
comunidade negra, devemos prestar atenção às maneiras pelas quais se
prioriza o direito dos brancos de discriminar o direito dos negros a
oportunidades educacionais iguais.
Quando Arendt questiona a decisão do governo de “fazer valer os
direitos civis onde não há nenhum direito político básico em jogo”,
(ARENDT, 2004 [1959], p. 56), ela não consegue entender as formas que o
acesso a uma educação pública de qualidade (e ensino superior) impacta
outras áreas, que ela vê como propriamente política. Suas classificações
errôneas permitem que ela classifique as escolas públicas como instituições
sociais, e não como instituições públicas e políticas. Acontece que, mesmo
que Arendt não entenda, ela faz, em muitos de seus ensaios sobre a questão
negra, o compartilhamento comum dos preconceitos americanos (branco)
em relação aos negros (GINES, 2014).

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ECOS | Estudos Contemporâneos da Subjetividade | Volume 10 | Número 1

Figura 2: Elizabeth Eckford16 setembro 4, 1957 16


Fotografia que envergonhou a
América do sul dos EUA. No
outono de 1957, Elizabeth
estava entre os nove estudantes
negros que haviam se alistado e
selecionada para ingressar na
Little Rock Central High School.
A Central foi à primeira escola
secundária de uma grande
cidade do sul a ser desagregada.
Elizabeth queria se tornar
advogada e achou que a Central
a ajudaria a realizar esse sonho,
ela foi inspirada por Thurgood
Marshall, que foi advogado de
Oliver L Brown e Clarence
Darrow, dois indivíduos
afetados pelos casos de
desagregação. Ela tinha apenas
15 anos na época.
Fonte: Photo: Will Counts Collection, Indiana University Archives.

Sobre a Revolução Americana que não inclui os negros 17


“Sobre a Revolução é um dos
No presente item, almejamos discorrer em especial sobre a Revolução livros mais instigantes e
polêmicos de Arendt. Embora
Americana, apresentada na obra Da Revolução17, da teórica política Hannah seja excessivo classificá-lo como
Arendt. Chamamos atenção de que há um paradoxo em relação ao negro e à uma síntese de sua obra como
liberdade proclamada na Revolução Americana. Isto é, ao defender a fez Gottsegen, é inegável que ele
retomada da experiência da Revolução Americana como fruto de um toca em um ponto crucial de sua
démarche e nos ajuda a
consentimento igualitário, houve uma contraposição do que estava esclarecer um aspecto original
afirmado na Constituição da Declaração Americana a igualdade e a liberdade de sua filosofia. Muitos
não foram concedidas para todos os americanos, sendo que os negros foram intérpretes afirmaram, não sem
o alvo atingido dessa barbárie (ARENDT, 1988 [1965]). razão, que o capítulo final da
obra, que trata da tradição
O conceito de revolução é certificado, durante o século XVIII, afirmando revolucionária surgida depois
que um novo rumo para a história da humanidade estava por vir a do século XVIII, permite fazer a
ponte entre as reflexões sobre
acontecer. Aos espectadores e autores que se engajaram na Revolução, estes as revoluções históricas e o
não tinham o juízo sobre qual enredo estava por vir. Ocasionalmente, o pensamento da autora a
enredo era justamente o aparecimento da liberdade. Newton Bignotto, a respeito de nosso tempo’.
respeito disso, diz:

Sobre a Revolução, começa com a afirmação de que o objetivo das


revoluções sempre foi a liberdade. Embora essa afirmação possa soar
banal, ela terá uma importância capital na argumentação da autora. É
preciso lembrar que Arendt dizia que a liberdade confere sentido à política
e alertava para o fato de que considerar a política como um meio ‘de
assegurar as provisões vitais da sociedade e a produtividade do livre
desenvolvimento social’ pode se constituir na porta de entrada para
regimes extremos, que ameaçam a própria vida, ao destruir toda
possibilidade de convívio baseado na diferença e na pluralidade
(BIGNOTTO, 2011, p. 42).

Em 1973, quatro anos após eclodir a Revolução Francesa, os


americanos haviam concordado plenamente com Robespierre, sobre o
objetivo maior da revolução ser a constituição da liberdade, e a meta a
incumbir era a fundação da república para o governo. Porém, Arendt (1988
[1965], p. 113) questiona, “[...] ou, talvez, fosse o inverso, e Robespierre
tivesse sido influenciado pelo curso da Revolução Americana, quando
formulou seus famosos Princípios do Governo Revolucionário”.

17
ECOS | Estudos Contemporâneos da Subjetividade | Volume 10 | Número 1

Arendt cita os primeiros documentos dos tempos coloniais, em que


estes terão o poder e a liberdade de decidir. Aqui, de acordo com ela, havia
uma crítica, pois ambas as palavras (poder e liberdade) são sinônimas e que,
naquela época, era natural fazer tal divisão. Se para Montesquieu a
revolução se resumiria em “[...] a constituição da liberdade política”
(MONTESQUIEU, 1748, p. 12 apud ARENDT, 1988 [1965], p. 120), para
Arendt, a palavra constituição perderá o sentido plenamente. Nesse
contexto, a palavra significava o inverso que foi cunhado por Montesquieu.
Nas palavras da autora, o “[...] grande templo da liberdade federal deve estar
alicerçado na fundação correta de distribuição de poder” (ARENDT, 1988
[1965], p. 120).
À vista disso, proclama-se, nos EUA, a igualdade de todos e o direito de
cada um à vida, à liberdade e à procurada felicidade; e coloca-se a
legitimidade dos governos sob a condição de garantirem a realização dos
fins sociais para quem foram instituídos. Entretanto, tendo como base que a
Constituição, que declarou: a) Liberdade, b) Igualdade e c) Felicidade.
Basicamente, o que foi referenciado afirma que todos aqueles direitos, que
serviam apenas para os ingleses, seriam compartilhados, no futuro, por
todos os homens. Ou seja, os homens devem viver subalternos a um
governo constitucional “limitado” (ARENDT, 1988 [1965], p. 119). Assim,
sobre o tema da Declaração e Independência dos Estados Unidos da
América, Lucia Helena da Silva em sua obra “A questão da Liberdade em
Hannah Arendt no âmbito da Revolução Americana”, faz a seguinte
colocação:

Thomas Jefferson, como membro do Congresso Continental, foi escolhido,


em 1776, para redigir a Declaração de Independência, que tem sido
considerada, desde então, como uma carta de liberdade americana e
universal. O documento proclama que todos os homens são iguais em
direitos, independentes de nascimento, riqueza ou status, e que o governo é
seu servo, não o mestre do povo (SILVA, 2017, p. 27).

Por conseguinte, a meta da Constituição Americana consistia em


limitar o poder e incidir poder para o povo. Destarte, a Constituição
Americana tornou-se como meta a liberdade, fazendo da revolução o
fundamento da liberdade (ARENDT, 1988 [1965], p. 123). Segundo Arendt,
o que faltou no Velho Mundo foram as jurisdições municipais das colônias,
pois a Revolução Americana eclodia e a doutrina da soberania do povo
emergiu das municipalidades e tomou conta do Estado. Sobre isso,
Arendt observa:

Aqueles que receberam o poder de constituir, ou seja, o poder de moldar as


constituições, eram representantes devidamente eleitos de organismos
constituídos, sua autoridade vinha de baixo, e quando eles se aferraram ao
princípio romano de que a sede do poder estava no povo, não estavam
raciocinando em termos de uma ficção ou de um absoluto, a nação acima de
toda autoridade e isenta de todas as leis, mas em termos de uma realidade
atuante, a multidão organizada, cujo poder era exercido em consonância
americana com as leis e por elas limitado. A insistência revolucionária
americana na distinção entre uma república e uma democracia, ou governo
de maioria, se apoia na separação radical entre lei e poder, com diferentes
origens, diferentes legitimações e diferentes esferas de aplicação
nitidamente delimitadas (ARENDT, 1988 [1965], p. 133).

Assim, o que a Revolução Americana eclodiu foi levar o poder para o


domínio público. Nas palavras de Palmer, “[...] o poder da confiança
depositada uns nos outros e no povo em geral que permitiu aos Estados
Unidos superar, com sucesso, uma revolução, (PALMER, 2014 [1964], p.

18
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322). Porém, não houve piedade da nação negra americana. Houve uma 18
contraposição de ideais. De fato, o sentenciado pela Revolução Americana, “Arendt claims that racism is
não foi o povo como um todo. Todavia, parte desse povo, os negros e os not so much a byproduct of race
povos indígenas, não o alcançaram. A exemplo disso, é o racismo difundido thinking as it is a byproduct of
no caso da menina de Little Rock conforme exposto anteriormente. imperialism. And since
imperialism needed justifcation,
racism would have been
O racismo e o raciocínio racial invented even in the absence of
race thinking. she correctly
identifes racism as a tool used
Na obra intitulada “Origens do Totalitarismo” (1951), Arendt lança uma by europeans to justify
exploitation and oppression in
distinção entre raciocínio racista e racismo. A autora distingue “raciocínio the form of imperialism.
racista” com os estudos da pseudociência colocando sobre hierarquia a However, her analysis is limited
origem do “racismo”. Posteriormente, descreve como a ideologia foi because it discounts the
utilizada para justificar as agendas políticas nacionais do imperialismo possibility that race thinking
utilizing science, anthropology,
(ARENDT, 1989 [1951], p. 160). or any other such tool to
Segundo Gines (2014), Arendt, na obra referenciada, segue sua ideia support claims about racial
hierarchies, which are in turn
sobre a raça, sendo descrita como formas de raciocínio racial, e não como used to justify or excuse racial
racismo. Arendt faz consideração sobre o modo como esses conceitos oppression based on those
operam em sua análise no imperialismo e endossa que o pensamento racial hierarchies, is already racist,
é tido como opinião que se apoia nas teorias da pseudociência para frisar a even if it has not yet been
developed into a fully accepted
hierarquia racial. Já o racismo é compreendido como ideológico. Nas ideology. and furthermore,
palavras de Gines: Arendt’s analysis of race
thinking and racism in relation
to imperialism does not take
Arendt afirma que o racismo não é tanto um subproduto do raciocínio into account the fact that this
racial quanto é um subproduto do imperialismo. Assim, o imperialismo very possibility was the reality
precisava de justificação. O racismo teria sido inventado mesmo na of racialized institutions of
ausência de raciocínio. Ela identifica corretamente o racismo como uma slavery and early colonialism
ferramenta usada pelos europeus para justificar a exploração e a opressão long before race became the
excuse for imperialism” (GINES,
na forma do imperialismo. No entanto, sua análise é limitada, porque
2014, p. 84).
descarta a possibilidade de raciocínio racial, utilizando ciência,
antropologia, ou qualquer outra ferramenta para apoiar reivindicações
sobre hierarquias raciais, que, por sua vez, são usadas para justificar ou
desculpar a opressão racial baseada nessas hierarquias. Já é racista mesmo
que ainda não tenha sido desenvolvido ideologia. E, além disso, a análise de
Arendt de racismo em relação ao imperialismo não leva em conta o fato de
que essa mesma possibilidade era a realidade das instituições raciais da
escravidão e do colonialismo primitivo muito antes que a raça se tornasse a
desculpa para o imperialismo18 (GINES, 2014, p. 84, tradução nossa).

Sobre isso, Arendt chega a narrar que, durante o Imperialismo, dois


modos de se organizar politicamente e sobre o domínio dos povos
predominavam: o primeiro assinalava a raça como estrutura política e o
segundo modo, a burocracia como princípio do domínio do exterior. A
autora prossegue com a sua análise alegando que, na conjugação do racismo
e do sistema burocrático, na primeira fase do Imperialismo, territórios
imensos caíram sob o domínio completo não da lei, mas do decreto, quando
seus nativos eram classificados como cidadãos inferiores utilizando-se dos
meros critérios de raça ou de cor. Tais critérios estiveram na origem das
selvagens matanças de Carl Petters no Sudeste Africano Alemão. A esse
respeito, Arendt salienta:

A ideia da raça encontrou a resposta dos bôeres à ‘monstruosidade’


esmagadora descoberta na África – todo o continente povoado e
abarrotado de selvagens – e a justificação da loucura que os iluminou como
‘o clarão de um relâmpago num céu sereno’ no brado: ‘Exterminemos todos
os brutos!’ Dessa ideia resultaram os mais terríveis massacres da história:
o extermínio das tribos hotentotes pelos bôeres, as selvagens matanças de
Carl Petters no Sudeste Africano Alemão, a dizimação da pacata população
do Congo reduzida de uns 20 milhões para 8 milhões; e, o que é pior, a

19
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adoção desses métodos da ‘pacificação’ pela política externa europeia


comum e respeitável (ARENDT, 1989 [1951], p. 215-216).

Diante desse acontecimento trágico e racista, Arendt opina em reforçar


que, desde o início do século XX, a ideologia do racismo encorajou a política
imperialista. A ideologia racista se alastrou por todos os países ocidentais
durante o século XIX. Nessa perspectiva, o racismo era salientado como um
dos critérios a ser julgado na esfera política. Tocqueville escreveu para
Gobineau acerca do assunto: “[...] elas são provavelmente erradas e
certamente perniciosas” (Apud ARENDT, 1989 [1951], p. 188). Para tanto,
nada foi feito. Eles seguiram dando supra importância para o pensamento
racista.
Desse modo, na França no século XVIII, surgiu o interesse pelos povos
“diferentes”. Ocorreu a liberdade aos povos de todas as etnias na Revolução
Francesa. Todavia, é nesse país amante da humanidade que se dá o vestígio
do “[...] poderio racista destruidor das nações e aniquilador dessa
humanidade” (ARENDT, 1989 [1951], p. 192). A referência, tanto no modo
de pensar na classe e de diferentes povos, é estabelecida pelo nobre francês
conde de Boulainvilliers. Em referência a esse autor, considera-se que não
há ideia de raça, porém de conquista.
Em termos arendtianos, evidencia-se que foi, por meio da nobreza, que
o racismo nasceu e prevaleceu. Essa demanda não sucede, primeiramente,
na Alemanha, e sim na França, influenciada por um conde frustrado:
Gobineau. Em suma, suas teorias incitam que, qualquer que seja a mistura, é
a raça inferior que predomina. Já na Alemanha, Herder se recusou a impor
aos homens a palavra raça, sendo o primeiro historiador a utilizar a
classificação de espécies diferentes. Na América e na Inglaterra,
após a abolição da escravatura, por lá, os episódios permaneciam mais
abstrusos: “[...] com a exceção da África – nação que só influenciou o racismo,
foram os primeiros a lidar com o problema racial na política prática”
(ARENDT, 1989, p. 208).
É diante dessa genealogia que Hannah Arendt (1989 [1951]) caminha e
expõe, na obra “Origens do totalitarismo”, em especial no capítulo
“Imperialismo”, os pontos da teoria racial, caminhando por um raciocínio
racial, e não de cunho racista. O extermínio de 20 milhões para 8 milhões da
pacata população do Congo, ocasionado pelo ódio contra a população negra
e mestiça induzidos pelas teorias do Gobineau (fundador da corrente
poligenista), e outros episódios aqui citados, não é o suficiente para afirmar
as práticas racista? Desse modo, não se trata de um raciocínio racial, e sim
de cunho racista, disseminado nesses discursos e práticas que foram
responsáveis por aniquilar muita gente na história.

Considerações finais

Ao propormos a abordagem em torno da contradição da questão negra


em Hannah Arendt, ressaltamos as perguntas que moveram a pensadora, a
saber: a) A minha primeira pergunta foi: o que eu faria se fosse uma mãe
negra? b) O que eu faria se fosse uma mãe branca no Sul? e c) terceira
pergunta, perguntei a mim mesma: o que distingue exatamente o assim
chamado modo de vida sulista do modo de vida americano em relação à
questão da cor? Ver-se por meio das perguntas e respostas referenciadas
que Arendt obtém uma imagem dos negros, distorcida e parcial, há uma
cegueira branca por parte da autora. Ela representa os afro-americanos
como despreocupados com questões políticas e preocupados com as
questões sociais. Arendt, ao reforçar que os pais negros estão colocando
suas crianças em perigo, faz-se indagar que a pensadora se estruturou como
uma representante dos americanos brancos, tendo um resultado negativo

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da imagem da negritude, que persiste na imaginação branca, uma imagem


que está na fundação do problema branco.
É relevante expressarmos que Arendt ignora os casos de uma nação,
que aceita o princípio da igualdade entre determinados grupos ou raças. Ela
também rejeita as noções de igualdade e solidariedade de todos os povos.
Isso é afirmado no advento da Revolução Americana, em que os Direitos do
Homem foram fundados e a liberdade civil tornou-se uma realidade na
configuração da legalidade assegurada por meio da Constituição. Entretanto,
essa liberdade não se efetivou para o negro. O caso de Little Rock é exemplo
que comprova a não efetivação dos direitos civis da população negra dos
EUA. Assim, os direitos civis não constituem uma realidade para todos.
Arendt (2008 [1968], p. 302), ao afirmar a seguinte frase: “[...] quero
tornar claro que, como judia, a minha simpatia está não só com a causa dos
negros, mas também com a causa de todos os oprimidos e não
privilegiados”, concomitante a obra crítica de Gines (2014) ressalva que a
simpatia de Arendt era com pais brancos, filhos brancos e com o estado
político confrontado com a segregação forçada pelo governo, não com os
americanos enfrentando o racismo antinegro no sul e em todo o país.

Sobre o artigo
Recebido: 10/08/2019
Aceito: 03/09/2019

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