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Hannah Arendt e a
contradição sobre a questão
negra
Hannah Arendt and the contradiction
on the black question
Adriely Oliveira
Resumo
Clarindo
O presente ensaio almeja caminhar face às contradições descritas por UFES
Hannah Arendt em seus escritos sobre a questão negra. Tomaremos, como Mestre em Psicologia
suporte, a obra crítica intitulada “Hannah Arendt and the Negro Question1” Institucional na Universidade
(2014), de Kathryn T. Gines, e o ensaio “Reflexões sobre Little Rock" (2004 Federal do Espírito Santo,
[1959]) de Hannah Arendt, presente na coletânea “Responsabilidade e Vitória/ES, Brasil.
Julgamento” (2004). Gines (2014) pontua, com base nos escritos drica-clarindo@hotmail.com
arendtianos, que Arendt analisou a questão negra como um problema negro,
em vez de apresentá-lo como um problema branco. Com efeito, a partir Jésio Zamboni
dessas considerações, iremos elucidar como a abordagem de Arendt, com UFES
foco na questão negra, vai ao encontro da contradição, que a impede de
Professor Adjunto no
reconhecer o racismo como um fenômeno político. Departamento de Psicologia e
Professor Permanente no
Palavras-chave Programa de Pós-graduação em
Educação, racismo, revolução. Psicologia Institucional da
Universidade Federal do
Espírito Santo.
zambonijesio@gmail.com
Considerações iniciais 1
Hannah Arendt e a Questão
Decepcionar é um prazer. Nem de longe queremos nos fingir de loucos, mas Negra (tradução nossa).
enlouqueceremos à nossa maneira e na nossa hora, não precisam nos
empurrar.
Gilles Deleuze
2
Nosso escrito trilhará sobre os textos de uma mulher judia, que viveu o Em português: “pensadores
profissionais” (tradução nossa).
holocausto nazista, tendo que recorrer ao exílio para salvar sua vida.
Refugiou-se na França, vindo a se apartar nos Estados Unidos da América.
Hannah Arendt foi uma mulher autêntica e disciplinada com sua obra. Seu
encontro com a filosofia é fortalecido por fundamentais pensadores da 3
época, dos quais vale ressaltarmos: Heidegger, Jaspes, Hans Jonas, Brecht e É professora associada de
Walter Benjamin dentre outros. Conviveu e esteve presente em rodas de Filosofia e Estudo Afro-
debates ministradas por grandes questionadores de referência da época. Americano na Universidade
Estadual da Pensilvânia,
Arendt se mostrou estoicamente em meio a esse círculo patriarcal da diretora e fundadora do
filosofia. Não se intitulou como filósofa. Em suas palavras: “[...] não pretendo Collegium of Black Women
ser nem ambiciono ser um ‘filósofo’, ou estar incluída entre aqueles que Philosophers. Também é editora
Kant, não sem ironia, chamou de Denker Von Gewerbeo”² (ARENDT, 2014 e fundadora da revista Critical
Philosophy of Race Beyond the
[1978], p. 17). Certamente, o que ela se intitulou ser foi uma teórica política. Black
Arendt é considerada uma mulher além de seu tempo. Vejamos seu
recuo ao padrão que era imposto para as mulheres da época, o qual ser
mulher, nas palavras de Arendt (2008 [1968], apud LAFER, 2008, p. 310),
“[...] também significava um grande talento culinário e o gosto de cozinhar”.
4
A pensadora foi a primeira mulher a ser professora titular em Princeton no “Reflections on Little Rock”,
escrito no ano de 1957 e
ano de 1959. Ela gozava e ocupava espaços da esfera pública, que eram recusado pela revista
destinados apenas para os homens. Sua obra, intitulada “Origens do Commentary , posteriormente é
Totalitarismo” (1959), a tornou conhecida e respeitada no campo filosófico. publicado na revista Dissent no
Em síntese, sua trajetória direciona o quanto essa mulher estava além de ano de (1959).
sua época, porque era natural as mulheres ocuparem apenas espaços da
esfera privada, rígida por ordens do arrimo da família.
Para tanto, nosso intuito é explanar a interpretação tecida por Kathryn
T. Gines³ (2014), em sua obra “Hannah Arendt and the Negro Question”,
cuja pauta diz respeito à contraposição de Arendt acerca da questão negra.
Esse tema é pouco discutido entre os leitores e estudiosos da pensadora.
Dessa maneira, pretendemos caminhar sobre essa lacuna, presente nos
estudos arendtianos, e pontuar a contradição de Arendt sobre o negro,
tendo como base a obra crítica de Gines (2014).
Em um primeiro momento, trilharemos sobre o erro de interpretação
de H. Arendt4 acerca da foto do caso da menina negra, vítima de racismo em
Little Rock. Pontuaremos a sucinta contraposição da autora perante a
imagem fotográfica. Em um segundo momento, percorreremos acerca da
Revolução Americana decretada em 1776, com a finalidade de descrever
que o sangue derramado na Revolução não eclodiu em parte da população,
conforme foi deliberado na Constituição. Por fim, o terceiro momento se
atém sobre a ideologia do racismo e o raciocínio do racismo, sobre o qual
Arendt faz uma síntese em relação à forma como o governo imperialista
utilizou-se da raça para se organizar politicamente. Diante disso, há uma
breve crítica colocada por Gines (2014), em que H. Arendt não salientou
sobre o modo como a pseudociência foi vista como um raciocínio racial.
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O ponto de partida das minhas reflexões foi uma fotografia nos jornais que
mostrava uma menina negra saindo de uma escola recém-integrada a
caminho de casa: perseguida por uma turba de crianças brancas, protegida 7
por um amigo branco de seu pai, a face dando um testemunho eloquente do “[...] Arendt does not situate and
fato óbvio de que ela não estava precisamente feliz. A fotografia revelava a analyze the color question in a
situação em poucas palavras, porque aqueles que nela apareciam foram ‘political and historical
diretamente afetados pela ordem do tribunal federal, as próprias crianças framework. She chooses instead
(ARENDT, 2004 [1959], p. 261). to characterize segregation,
especially in education, as a
social issue.’” (GINES, 2014, p.
Nessa perspectiva, Gines irá discordar de Arendt dizendo que “[...] 14).
Arendt não situa e analisa a questão da cor em um contexto político e
histórico. Em vez disso, ela escolhe caracterizar a segregação, especialmente
na educação, como uma questão social”7 (GINES, 2014, p. 14, tradução
nossa). Ao conceber a educação como pertencente a uma esfera pré-política
e social, Arendt entendia que a luta dos negros não deveria, portanto,
envolver as crianças na educação, uma vez que seria colocar um problema
do campo social no campo político e, até aqui, sabemos que essa é uma
divisão bastante cara à pensadora. A partir disso, Gines (2014) conclui que
Arendt apresenta a crise da segregação na educação pública como um
problema negro em vez de um problema branco.
Segundo Gines (2014), Arendt, em seu escrito do ano de 1959, estava
encoberta de contradição desde o início. A autora salienta que não publicou
seu texto na data referenciada pelo fato de ter entrado em discordância com
a posição da revista sobre o racismo e a segregação. De acordo com Norman
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ela também assume que os pais negros, prontamente, enviaram seus filhos 15
para escolas brancas, a fim de se socializarem com estudantes brancos, que “she is defending the choices of
não os queriam por perto. Outra questão posta, quando Arendt articula white parents for their children
explicitamente suas dúvidas sobre a igualdade de oportunidades without regard for the lack of
educacionais, sendo uma questão central para os pais negros, notamos que: choices aorded to Black parents
for their children” (GINES, 2014,
p. 44).
[...] Além do mais, se fosse negra, sentiria que a própria tentativa de
começar a dessegregação na educação e nas escolas não tinha apenas
deslocado, e muito injustamente, a carga da responsabilidade dos ombros
dos adultos para os das crianças. Estaria também convencida de que há, em
todo o empreendimento, uma implicação de tentar evitar a questão real. A
questão real é a igualdade perante as leis do país, e a igualdade é violada
pelas leis da segregação, isto é, por leis que impõem a segregação, e não por
costumes sociais e maneiras de se educar as crianças. Se fosse apenas uma
questão de educação igualmente boa para os meus filhos, um esforço para
lhes conceder igualdade de oportunidades, por que não me pediram que
lutasse pelo melhoramento das escolas para crianças negras e pelo
estabelecimento imediato de classes especiais para aquelas crianças cujo
histórico escolar as torna aceitáveis nas escolas de brancos?
(ARENDT, 2004 [1959], p. 262).
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322). Porém, não houve piedade da nação negra americana. Houve uma 18
contraposição de ideais. De fato, o sentenciado pela Revolução Americana, “Arendt claims that racism is
não foi o povo como um todo. Todavia, parte desse povo, os negros e os not so much a byproduct of race
povos indígenas, não o alcançaram. A exemplo disso, é o racismo difundido thinking as it is a byproduct of
no caso da menina de Little Rock conforme exposto anteriormente. imperialism. And since
imperialism needed justifcation,
racism would have been
O racismo e o raciocínio racial invented even in the absence of
race thinking. she correctly
identifes racism as a tool used
Na obra intitulada “Origens do Totalitarismo” (1951), Arendt lança uma by europeans to justify
exploitation and oppression in
distinção entre raciocínio racista e racismo. A autora distingue “raciocínio the form of imperialism.
racista” com os estudos da pseudociência colocando sobre hierarquia a However, her analysis is limited
origem do “racismo”. Posteriormente, descreve como a ideologia foi because it discounts the
utilizada para justificar as agendas políticas nacionais do imperialismo possibility that race thinking
utilizing science, anthropology,
(ARENDT, 1989 [1951], p. 160). or any other such tool to
Segundo Gines (2014), Arendt, na obra referenciada, segue sua ideia support claims about racial
hierarchies, which are in turn
sobre a raça, sendo descrita como formas de raciocínio racial, e não como used to justify or excuse racial
racismo. Arendt faz consideração sobre o modo como esses conceitos oppression based on those
operam em sua análise no imperialismo e endossa que o pensamento racial hierarchies, is already racist,
é tido como opinião que se apoia nas teorias da pseudociência para frisar a even if it has not yet been
developed into a fully accepted
hierarquia racial. Já o racismo é compreendido como ideológico. Nas ideology. and furthermore,
palavras de Gines: Arendt’s analysis of race
thinking and racism in relation
to imperialism does not take
Arendt afirma que o racismo não é tanto um subproduto do raciocínio into account the fact that this
racial quanto é um subproduto do imperialismo. Assim, o imperialismo very possibility was the reality
precisava de justificação. O racismo teria sido inventado mesmo na of racialized institutions of
ausência de raciocínio. Ela identifica corretamente o racismo como uma slavery and early colonialism
ferramenta usada pelos europeus para justificar a exploração e a opressão long before race became the
excuse for imperialism” (GINES,
na forma do imperialismo. No entanto, sua análise é limitada, porque
2014, p. 84).
descarta a possibilidade de raciocínio racial, utilizando ciência,
antropologia, ou qualquer outra ferramenta para apoiar reivindicações
sobre hierarquias raciais, que, por sua vez, são usadas para justificar ou
desculpar a opressão racial baseada nessas hierarquias. Já é racista mesmo
que ainda não tenha sido desenvolvido ideologia. E, além disso, a análise de
Arendt de racismo em relação ao imperialismo não leva em conta o fato de
que essa mesma possibilidade era a realidade das instituições raciais da
escravidão e do colonialismo primitivo muito antes que a raça se tornasse a
desculpa para o imperialismo18 (GINES, 2014, p. 84, tradução nossa).
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Considerações finais
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Sobre o artigo
Recebido: 10/08/2019
Aceito: 03/09/2019
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