Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1
Marcia Regina de Oliveira Lupion. Doutoranda em História, Cultura e Política com ênfase em História, Cultura e
Narrativas. Trabalhos desenvolvidos nas áreas de História Oral, História das Sensibilidades e História das Religiões e
religiosidades. Tendo atuado na Rede púbica de ensino fundamental, médio e superior além de faculdades privadas.
de vivenciar sua relação com o natural e o sobrenatural sendo a transcendência uma
dessas manifestações e cujo significado reside em ser o elo entre o tangível e o intangível.
Considerando esse elo, nesse artigo discute-se o túmulo como um espaço de
transcendência no qual, em rituais particulares e ao mesmo tempo de identificação e
comunicação entre determinados grupos, os visitantes cemiteriais buscam entrar em
contato com o ente querido do qual foram separados pela morte do corpo, mas, não do
afeto vivido.
O túmulo, enquanto espaço de transcendência, assume ainda o sentido de ser um
local topofílico e que suscita gestuais específicos e de recepção de objetos cujo objetivo é
ultrapassar os limites do vivido e, ao menos por alguns instantes, retomar a ligação com o
ausente falecido por meio do acesso possibilitado exatamente por gestos, orações e objetos
de conhecimento mútuo. Objetos e ações de conhecimento mútuo são essenciais nesse
processo de reencontro no túmulo-limiar pois, para que a comunicação se efetive, é
necessário que ambas as partes reconheçam a simbologia presente tanto nos objetos
quanto nas orações ou gestuais.
Submetido à corrente historiográfica que tem na cultura seu campo de investigação,
discute-se os túmulos como espaços de Topofilia e transcendência presentes nas
manifestações ocorridas nesses locais. Ou seja, um local que se tornou objeto de afeto
entre a pessoa e lugar e, portanto, um espaço de transcendência onde se acredita possa
ocorrer a comunicação com os inumados.
A discussão parte da percepção acerca das sensibilidades apresentadas pelos
visitantes do túmulo Bernardo Cnudde, padre conhecido por promover curas e exorcismos
na cidade de Maringá no Paraná, e como estes operam sua relação no pós-morte com
aquele que foi seu conhecido e com o qual puderam contar em momentos de alegria e de
aflição. O trabalho de campo realizado nas dependências do cemitério municipal foi
essencial para observação das formas agir dos visitantes que, posteriormente, foram
analisadas segundo pressupostos antropológicos e históricos acerca dos gestuais
humanos e suas simbologias.
O elo representado pelo túmulo foi verificado quando em trabalho de campo
realizado junto ao jazigo do padre observou-se a forma como os vivos se manifestavam
diante da sepultura. Uma vez junto ao túmulo, o que se viu foram pessoas adultas, sós ou
em coletividade, na faixa etária dos cinquenta anos ou mais, em posturas gestuais de
contrição como as mãos sobre o peito, a cabeça baixa e mesmo ajoelhadas.
Figura 1: O toque.
Fonte: LUPION, 2018.
O toque das mãos ao mesmo na foto que orna a sepultura e no próprio coração
acompanhado de orações silenciosas é uma das manifestações que se repete à exaustão
entre os visitantes. Somam-se a esse gestual, orações e um número expressivo de objetos
que são colocados sobre o túmulo e na lápide configurando-se numa cultura material
religiosa investida de léxico cuja compreensão é comum entre visitantes e defunto.
Outra manifestação ocorrida frequentemente são orações realizadas pelo grupo
carismático adotado pelo padre quando este ainda era pároco de uma das igrejas católicas
de Maringá. Desde sua morte em 20 de novembro do ano 2000 o grupo costuma realizar,
nessa data, orações junto ao jazigo quando homenageiam o padre, dois outros casais e um
segundo padre que faziam parte da comunidade.
No dia de finados esse mesmo grupo é responsável pela liturgia da missa que
acontece nas dependências cemiteriais quando relíquias, ou seja, objetos pertencentes aos
falecidos, são trazidos para altar durante a apresentação dos dons, um dos momentos da
homília das celebrações católicas. Nessa ocasião, é trazido para o altar uma estola
pertencente ao monsenhor e, por vezes, pessoas que acreditam ter recebido milagres de
cura de suas mãos são as responsáveis pelo translado do objeto.
Além desses três momentos de intensa demonstração pública de afetos foi possível
observar em dias não comemorativos a presença de pessoas em oração junto ao túmulo.
Indagadas sobre os motivos da visita, a maioria admite estar em busca de algum tipo de
graça ou agradecendo por perdidos concedidos pelo padre. É comum se referirem a ele
como “um homem muito bom”, “alguém que sabia ouvir” e “que não fazia distinção entre as
pessoas” e, muitos gostam de lembrar sua escolha em ser enterrado no cemitério municipal
para poder “estar junto ao seu bom e amado povo”, frase que, segundo muitos, o padre
costumava repetir com frequência.
Não foram apenas as manifestações ocorridas junto ao túmulo do padre que
instigaram a pesquisa, e sim, sua própria biografia marcada pelo atendimento massivo e
pelos relatos de cura exaustivamente citados mesmo quando ele ainda era vivo. A partir
dessa pesquisa de maior vulto, é que seu túmulo passou a ser investigado considerando
as manifestações dispensadas e um possível caráter de transcendência. Condição esta
que, somada às emoções presentes nessas ocasiões, permitiu refletir acerca do sentido
Topofílico dos túmulos quando as afetividades se tornam visíveis quer seja pelos presentes
deixados no local, quer seja pelos olhares saudosos ou pelos relatos informais daqueles
que conviveram com o padre.
O Padre Bernardo
Ele [Pe. Bernardo] dizia: “nós tínhamos aqui [em França] o costume de enterrar os
sacerdotes nas igrejas matrizes”. Mas, [responde Dom Jaime], há um cânone no
direito canônico que diz que não se pode enterrar a não ser os bispos [nas criptas
das catedrais]. Então ele disse: “já que não posso ser enterrado na minha igreja
matriz, quero ser enterrado no cemitério municipal. Ficar no meio do povo”. E todos
pudemos ver a consagração do seu sepultamento (HISTÓRIA..., 2001(?)).
Esse pedido foi problematizado inferindo-se que o padre buscou uma forma de
escapar do controle da instituição a qual pertencia e ainda facilitar o acesso daqueles que
o conheciam ao túmulo, pois, ao longo da pesquisa observou-se que o padre sabia qual
seu papel junto à comunidade local e internacional e procurou uma forma de manter esse
contato. Ressalta-se, porém, que o cemitério do Centro de Espiritualidades é aberto ao
público em geral, mas, desconhecido da grande maioria da população maringaense, sendo
este outro elemento que pode ter contribuído para o pedido do monsenhor.
É fato, porém, que os relatos de cura e recepção de graças por meio de suas mãos
e orações parecem ser inesgotáveis. Em conversas informais ocorridas junto ao túmulo, a
maior parte dos visitantes afirma conhecer alguém ou ter recebido uma graça ou uma cura
pelas mãos do monsenhor. Artigos por vezes ocupando meia página de jornais locais
registram o fato que podia ocorrer tanto durante celebrações eucarísticas quanto em
horários agendados na secretaria da paróquia ou nas próprias residências daqueles que o
procuravam. Afinal, segundo os memorialistas, o monsenhor não fazia distinção quer seja
de pessoas, credos, horários ou locais para seus atendimentos.
O que foram os 61 anos de vida desse nosso irmão e amigo? Todas as lembranças
sobre Bernardo formariam um mosaico... Alguns ressaltariam a capacidade
acolhedora. Outros, seu dom em dizer uma palavra de ânimo, esperança aos tristes
e prostrados; Mães trariam depoimentos do carinho e mil histórias de cura que
obtiveram através da benção e da oração de monsenhor Bernardo. Outros
recordariam, especialmente os padres, as refeições que Bernardo preparava. O
monsenhor foi uma expressão da benção do Pai citada por Paulo que nos escolheu
para sermos santos e irrepreensíveis diante de seus olhos. Fomos escolhidos para
santos, exemplo de vida. Santo é quem tem Deus como centro de sua vida; quem
orienta os seus passos pelos ensinamentos daquele que o enviou – Jesus Cristo,
seu filho amado. O pai nos adotou como filhos para fazer resplandecer sua
maravilhosa graça, graça que nos foi concedida por ele, o bem-amado. A vida de
Bernardo foi uma graça, um dom de Deus... ficam seu testemunho, seu sorrido de
menino grande, sua informalidade que a todos atraía... Bernardo revelou a graça de
Deus aos humildes (HISTÓRIA..., 2001 (?)).
Investigações documentais, entretanto, informam que o padre formou-se na
congregação francesa de Saint Jacques e que esta, desde fins do século XIX mantinha um
seminário no Haiti (SOCIETÈ..., 2020), país de referência para a religião Vodu. Com base
nessa informação, infere-se que os egressos do seminário de Saint Jacques, comumente
denominados de sacerdotes de São Tiago, fossem instruídos no conhecimento acerca da
religião Vodu que naquele momento era severamente combatida pelo catolicismo no Haiti.
Formado em 1966, o padre Bernardo tinha como sua primeira escolha atuar naquele país,
mas, por motivos não explicitados, resolveu vir para o Brasil, país que recebera um
seminário de sua congregação no ano de 1960.
Para Dom Jaime Luiz Coelho, a vinda do padre para o Brasil e sua desistência de
atuar no país da América Central deveu-se ao seu convite pessoal feito durante a segunda
reunião do Vaticano II em 25 de novembro de 1964 quando o cura esteve em Saint Jacques
e lá conheceu o então seminarista Bernardo (HISTÓRICO..., 2001(?)). Essa é uma hipótese
plausível, mas, existe ainda uma outra situação que pode ter contribuído para o
estabelecimento do jovem padre em terras brasileiras que foi a perseguição que Papa Doc,
ou François Duvalier (1907-1971), presidente do Haiti durante os anos 1960, empreendeu
aos bispos católicos no mesmo período.
Las mímicas, los gestos, las posturas, lá distancia con el outro, lá manera de tocarlo
o evitarlo al hablarle, las miradas, son las matérias de un linguage escrito en el
espacio y el tempo, y remiten a un ordem de significaciones. [...] Aunque la palavra
calle, los movimentos del rostro y el cuerpo se mantienen y testimonian
significaciones inherentes al cara a cara o a lá situación (LE BRETON, 1999, p. 39).
Além dos elementos significativos acerca da linguagem dos gestos a simbologia corporal é
também capaz de traduzir o parentesco singular existente entre pessoas de um mesmo
grupo e, nesse sentido, os gestos representam orientações culturais e sociais de
determinados indivíduos em determinados espaços e temporalidades.
Antropologicamente, os gestos são analisados como “una figura de lá acción, no um
simple acompañamiento decorativo del habla” (LE BRETON, 1999, p. 38). No caso das
manifestações tumulares, essas encontram-se autorizadas pelo próprio espaço que permite
que determinadas emoções e gestuais possam acontecer. A historicidade da morte tem
demonstrado que a cultura afetiva é mutável e que, na atualidade, os sentimentos perante
a perda de pessoas queridas demandam posturas sociais marcadas pela contrição e pelo
zelo perante as celebrações (LE BRETON, 1999, p. 120). De forma que, a morte está
submetida a significados culturais que orientam a tonalidade tantos dos funerais quanto da
dor e do sofrimento (LE BRETON, 1999, p. 123).
Além disso, a forma como os indivíduos se relacionam como o falecido também
interfere na dor e no sofrimento vivenciados quando pessoas próximas sentem mais
intensamente a perda do ente querido. Ou seja, o significado da morte, seu sentido e as
emoções geradas estão submetidas às relações interpessoais de forma que “su
repercusión individual y social es impuesta por la evaluación del sujeto y el grupo y la
investudura afetiva de que era objeto el falecido” (LE BRETON, 1999, p. 123).
O número de visitantes do túmulo, que chega ao número de 140 pessoas em horas
de pico no dia de finados, revela a intensidade da investidura afetiva que a comunidade
daqueles que o conheceram dispensam nessas ocasiões. Geralmente na casa dos
cinquenta anos, quando interpelados, os visitantes mencionam casos pessoais ou de
conhecidos que foram objetos da recepção de graças pelas mãos do padre. Alguns,
inclusive, creditam a ele a recepção de graças mesmo após sua morte.
Grassam nos relatos casos em que o padre, mesmo cansado após ter trabalhado o
dia todo, quer seja em atividades eclesiais, quer seja em atendimentos ao público, ainda
atendia na sacristia da igreja até altas horas da noite. Outros contam que o padre fora até
suas casas para realizar exorcismos. Mas, o relato mais constante é o de que ele era um
santo por se dedicar intensamente ao atendimento daqueles que o procuravam em suas
aflições.
Entre seus pares, o padre é lembrado de três formas. A primeira se refere à sua
habilidade em cozinhar. Tendo feito cursos de gastronomia na França, o padre trouxe para
o Brasil o seu gosto pela cozinha juntamente com um faqueiro especialmente produzido
para chefes de cozinha. Em sua casa constam, inclusive, duas áreas gourmet com
dimensões diferentes. Numa delas, a mais íntima, é possível receber até quinze pessoas,
foi equipada com churrasqueira e fogão elétricos, algo raro para os anos 1990 quando a
casa foi construída. Na área maior, localizada no térreo do sobrado, é possível receber até
meia centena de pessoas sentadas no amplo salão equipado também com uma
churrasqueira a lenha ou carvão, pia e armários.
A segunda forma como o padre costuma ser rememorado, é por sua paixão pela
pescaria, quando se retirava de suas atividades para descansar e se preparar para sua
jornada de trabalho e atendimento. Nessas ocasiões, costumava estar acompanhado por
paroquianos com os quais convivia na intimidade ou mesmo de padres que, como ele,
apreciavam a pesca. Não contente em apenas pescar, o padre ainda preparava os peixes
no melhor estilo francês contam enquanto riem das memórias.
Num terceiro momento, como citado anteriormente, os pares ainda relembram do
monsenhor da mesma forma como seus ex-paroquianos e simpatizantes, ou seja, quanto
à sua intensa atividade de atendimento. Mas, não mencionam que fizesse curas ou
milagres, apenas atestam que costuma-se atribuir ao mesmo essas capacidades.
REFERÊNCIAS
ACERVOS
REFERÊNCIAS
CERTEAU, Michel de. El hombre em oracíon, “esse árbol de gestos”. In: _____. La
debilidade de creer. Buenos Aires: Katz, 2006. p. 33-44.
CERTEAU, Michel de. A Invenção do cotidiano: artes de fazer. 22. ed. Petrópolis, Rio
de Janeiro: Vozes, 2014. vol. 1.
CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do Corpo 2:
da Revolução à Grande Guerra. 4. ed. Tradução: João Batista Kreuch, Jaime Clasen;
revisão da tradução: Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 2012. v. 2.
CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. (Org.). História do
corpo: as mutações do olhar: o século XX. 4. ed. Tradução: João Batista Kreuch, Jaime
Clasen; revisão da tradução: Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 2011. v. 3.
ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas: da idade da pedra aos
mistérios dos Elêusis. vol 1. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.