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TÚMULOS, ESPAÇOS DE TOPOFILIA E TRANSCENDÊNCIA

Marcia Regina de Oliveira Lupion1

As manifestações de transcendência assim como a prática de significar locais como


sagrados remontam aos primórdios da vida humana como registrado em inscrições gráficas
presentes em cavernas ocupadas pelos Homo erectus. O que nos leva a compreender
essas manifestações como companheiras da história humana desde que se tem registro
dela como demonstrou Mircea Eliade (1978, p. 34), para quem a presença de pinturas em
locais de difícil acesso, como grutas inabitáveis, representam uma intencionalidade
indiscutível quanto a significação desses locais como santuários.
Mais do que um simples local de enterramentos, os cemitérios tem uma historicidade
própria cuja relação com os viventes é íntima e sagrada sendo os túmulos locais nos quais,
mesmo não sendo parte de um equipamento cemiterial, guardam esse mesmo sentido de
sacralidade quer estejam localizados em cavernas, florestas, contíguo a igrejas ou mesmo
em seu interior, ou ainda sob a administração pública.
Cemitérios e túmulos, portanto, rementem a emoções diversas e ensejam formas
distintas de rememorar o ente falecido assim como de estabelecer relações diversas com
a morte. Para Le Breton (1998, p. 137), existem lugares apropriados que autorizam
determinadas emoções, sendo cemitérios e tumbas locais com formas específicas de
manifestações que, consideradas em sua estética, permitem ser compreendidas como
espaços de transcendências e Topofilia.
Etimologicamente a palavra transcender remete a atravessar, ultrapassar, transpor
(HOUAISS, 2020), e, no caso que aqui interessa, algo que ultrapassa a realidade sensível.
Nessa perspectiva, é possível considerar que os seres humanos têm buscado ao longo de
suas experiências no mundo diferentes formas de manter relações ou experienciar o
sagrado seja por meio de imagens, locais naturais ou artificiais, gestos, danças,
meditações, audições ou promoções de determinados sons, orações, objetos, enfim, a
partir de suportes diversos inscritos ou não na materialidade e nas expressões corporais
físicas ou sensíveis.
O que se constata com essa permanência é que ao desenvolverem a capacidade de
dar sentido ao visível e ao não visível, os seres humanos deram origem a maneiras diversas

1
Marcia Regina de Oliveira Lupion. Doutoranda em História, Cultura e Política com ênfase em História, Cultura e
Narrativas. Trabalhos desenvolvidos nas áreas de História Oral, História das Sensibilidades e História das Religiões e
religiosidades. Tendo atuado na Rede púbica de ensino fundamental, médio e superior além de faculdades privadas.
de vivenciar sua relação com o natural e o sobrenatural sendo a transcendência uma
dessas manifestações e cujo significado reside em ser o elo entre o tangível e o intangível.
Considerando esse elo, nesse artigo discute-se o túmulo como um espaço de
transcendência no qual, em rituais particulares e ao mesmo tempo de identificação e
comunicação entre determinados grupos, os visitantes cemiteriais buscam entrar em
contato com o ente querido do qual foram separados pela morte do corpo, mas, não do
afeto vivido.
O túmulo, enquanto espaço de transcendência, assume ainda o sentido de ser um
local topofílico e que suscita gestuais específicos e de recepção de objetos cujo objetivo é
ultrapassar os limites do vivido e, ao menos por alguns instantes, retomar a ligação com o
ausente falecido por meio do acesso possibilitado exatamente por gestos, orações e objetos
de conhecimento mútuo. Objetos e ações de conhecimento mútuo são essenciais nesse
processo de reencontro no túmulo-limiar pois, para que a comunicação se efetive, é
necessário que ambas as partes reconheçam a simbologia presente tanto nos objetos
quanto nas orações ou gestuais.
Submetido à corrente historiográfica que tem na cultura seu campo de investigação,
discute-se os túmulos como espaços de Topofilia e transcendência presentes nas
manifestações ocorridas nesses locais. Ou seja, um local que se tornou objeto de afeto
entre a pessoa e lugar e, portanto, um espaço de transcendência onde se acredita possa
ocorrer a comunicação com os inumados.
A discussão parte da percepção acerca das sensibilidades apresentadas pelos
visitantes do túmulo Bernardo Cnudde, padre conhecido por promover curas e exorcismos
na cidade de Maringá no Paraná, e como estes operam sua relação no pós-morte com
aquele que foi seu conhecido e com o qual puderam contar em momentos de alegria e de
aflição. O trabalho de campo realizado nas dependências do cemitério municipal foi
essencial para observação das formas agir dos visitantes que, posteriormente, foram
analisadas segundo pressupostos antropológicos e históricos acerca dos gestuais
humanos e suas simbologias.
O elo representado pelo túmulo foi verificado quando em trabalho de campo
realizado junto ao jazigo do padre observou-se a forma como os vivos se manifestavam
diante da sepultura. Uma vez junto ao túmulo, o que se viu foram pessoas adultas, sós ou
em coletividade, na faixa etária dos cinquenta anos ou mais, em posturas gestuais de
contrição como as mãos sobre o peito, a cabeça baixa e mesmo ajoelhadas.

Figura 1: O toque.
Fonte: LUPION, 2018.

O toque das mãos ao mesmo na foto que orna a sepultura e no próprio coração
acompanhado de orações silenciosas é uma das manifestações que se repete à exaustão
entre os visitantes. Somam-se a esse gestual, orações e um número expressivo de objetos
que são colocados sobre o túmulo e na lápide configurando-se numa cultura material
religiosa investida de léxico cuja compreensão é comum entre visitantes e defunto.
Outra manifestação ocorrida frequentemente são orações realizadas pelo grupo
carismático adotado pelo padre quando este ainda era pároco de uma das igrejas católicas
de Maringá. Desde sua morte em 20 de novembro do ano 2000 o grupo costuma realizar,
nessa data, orações junto ao jazigo quando homenageiam o padre, dois outros casais e um
segundo padre que faziam parte da comunidade.
No dia de finados esse mesmo grupo é responsável pela liturgia da missa que
acontece nas dependências cemiteriais quando relíquias, ou seja, objetos pertencentes aos
falecidos, são trazidos para altar durante a apresentação dos dons, um dos momentos da
homília das celebrações católicas. Nessa ocasião, é trazido para o altar uma estola
pertencente ao monsenhor e, por vezes, pessoas que acreditam ter recebido milagres de
cura de suas mãos são as responsáveis pelo translado do objeto.
Além desses três momentos de intensa demonstração pública de afetos foi possível
observar em dias não comemorativos a presença de pessoas em oração junto ao túmulo.
Indagadas sobre os motivos da visita, a maioria admite estar em busca de algum tipo de
graça ou agradecendo por perdidos concedidos pelo padre. É comum se referirem a ele
como “um homem muito bom”, “alguém que sabia ouvir” e “que não fazia distinção entre as
pessoas” e, muitos gostam de lembrar sua escolha em ser enterrado no cemitério municipal
para poder “estar junto ao seu bom e amado povo”, frase que, segundo muitos, o padre
costumava repetir com frequência.
Não foram apenas as manifestações ocorridas junto ao túmulo do padre que
instigaram a pesquisa, e sim, sua própria biografia marcada pelo atendimento massivo e
pelos relatos de cura exaustivamente citados mesmo quando ele ainda era vivo. A partir
dessa pesquisa de maior vulto, é que seu túmulo passou a ser investigado considerando
as manifestações dispensadas e um possível caráter de transcendência. Condição esta
que, somada às emoções presentes nessas ocasiões, permitiu refletir acerca do sentido
Topofílico dos túmulos quando as afetividades se tornam visíveis quer seja pelos presentes
deixados no local, quer seja pelos olhares saudosos ou pelos relatos informais daqueles
que conviveram com o padre.

O Padre Bernardo

O padre Bernardo Abel Alphonse Cnudde (1939-2000) viveu na cidade de Maringá


por trinta e um anos e, ao longo de sua atuação na diocese, foi construindo sua biografia a
partir de sua particular prática religiosa voltada para o atendimento ao público de forma
particular ou coletiva.
Francês de nascimento e brasileiro por opção, monsenhor Bernardo chega ao Brasil
em 1966 e a diocese maringaense em 1967 onde permanece por alguns meses antes de
assumir uma paróquia numa das cidades da região. Nessa paróquia sua permanência é
curta, e, em 1969 assume a paróquia do Divino Espírito Santo em Maringá onde
permanecerá até o dia de sua morte em 20 de novembro do ano 2000.
Contrariando o lugar comum, em vida o padre pede aos conhecidos e ao seu
arcebispo, Dom Jaime Luiz Coelho (1919-2013), que quando morto sua inumação ocorra
no cemitério público municipal. Tal pedido contraria a prática corrente de que os religiosos
e religiosas católicos sejam sepultados no cemitério particular do Centro de Espiritualidade
Rainha da Paz, cuja responsabilidade cabe às irmãs missionárias da Congregação do
Santo Nome de Maria (CENTRO..., 2019).
Dom Jaime Luiz Coelho relembra em detalhes em vídeo gravado dias após o
falecimento do monsenhor o momento em que ele teria feito o pedido em relação ao local
em que gostaria de ser enterrado:

Ele [Pe. Bernardo] dizia: “nós tínhamos aqui [em França] o costume de enterrar os
sacerdotes nas igrejas matrizes”. Mas, [responde Dom Jaime], há um cânone no
direito canônico que diz que não se pode enterrar a não ser os bispos [nas criptas
das catedrais]. Então ele disse: “já que não posso ser enterrado na minha igreja
matriz, quero ser enterrado no cemitério municipal. Ficar no meio do povo”. E todos
pudemos ver a consagração do seu sepultamento (HISTÓRIA..., 2001(?)).

Esse pedido foi problematizado inferindo-se que o padre buscou uma forma de
escapar do controle da instituição a qual pertencia e ainda facilitar o acesso daqueles que
o conheciam ao túmulo, pois, ao longo da pesquisa observou-se que o padre sabia qual
seu papel junto à comunidade local e internacional e procurou uma forma de manter esse
contato. Ressalta-se, porém, que o cemitério do Centro de Espiritualidades é aberto ao
público em geral, mas, desconhecido da grande maioria da população maringaense, sendo
este outro elemento que pode ter contribuído para o pedido do monsenhor.
É fato, porém, que os relatos de cura e recepção de graças por meio de suas mãos
e orações parecem ser inesgotáveis. Em conversas informais ocorridas junto ao túmulo, a
maior parte dos visitantes afirma conhecer alguém ou ter recebido uma graça ou uma cura
pelas mãos do monsenhor. Artigos por vezes ocupando meia página de jornais locais
registram o fato que podia ocorrer tanto durante celebrações eucarísticas quanto em
horários agendados na secretaria da paróquia ou nas próprias residências daqueles que o
procuravam. Afinal, segundo os memorialistas, o monsenhor não fazia distinção quer seja
de pessoas, credos, horários ou locais para seus atendimentos.

Figura 2: Fieis dizem alcançar graças em missa.

Fonte: ACERVO DA CÚRIA..., 2017.

Contribui ainda para a lista de práticas do padre o fato de o mesmo executar


exorcismos quando solicitado. Das dezoito entrevistas realizadas, duas citam casos
verídicos de casos de exorcismo sendo que um dos entrevistados costumava participar das
sessões juntamente com o padre. Cinco entrevistados dizem ter conhecimento de que ele
realizava esse tipo de atendimento, mas, desconhecem casos específicos ou pessoas
submetidas ao ritual.
Traço também interessante desse personagem da história da Igreja Católica na
diocese, é que o padre se utilizava de todos os conhecimentos possíveis para atender aos
que o procuravam em meio a sofrimentos físicos, emocionais ou financeiros. Foi possível
mapear o alcance de suas buscas por conhecimentos em centros espíritas locais e também
junto a pessoas ligadas à Umbanda, tudo feito sempre de forma discreta e com o objetivo
de atender ao seu “bom e amado povo”.
Relatam alguns praticantes do espiritismo que o monsenhor era médium, e que, por
esse motivo sabia identificar pessoas que vivenciavam experiências consideradas
sobrenaturais e para as quais ele não sentia pudor em recomendar, ainda que
discretamente, que buscassem o centro espírita para ter um atendimento adequado.
Interessante ainda é que dentre seus pares ele era reconhecido por ter
conhecimentos em parapsicologia e que por isso se envolvia com atendimentos ligados a
questões de doença e mesmo com os citados exorcismos. Contudo, o máximo que
costumam informar acerca da peculiar prática do monsenhor é que a ele foram creditadas
curas sobretudo a crianças e que sua vida sacerdotal foi dedicada, até a exaustão, a
atender a uma imensa população cada vez mais desejosa de receber seu atendimento e
que não respeitava sua privacidade ou descanso.
Em homília durante a missa de corpo presente, o arcebispo na ocasião, Dom Murilo
Ramos Krieger lembrou que:

O que foram os 61 anos de vida desse nosso irmão e amigo? Todas as lembranças
sobre Bernardo formariam um mosaico... Alguns ressaltariam a capacidade
acolhedora. Outros, seu dom em dizer uma palavra de ânimo, esperança aos tristes
e prostrados; Mães trariam depoimentos do carinho e mil histórias de cura que
obtiveram através da benção e da oração de monsenhor Bernardo. Outros
recordariam, especialmente os padres, as refeições que Bernardo preparava. O
monsenhor foi uma expressão da benção do Pai citada por Paulo que nos escolheu
para sermos santos e irrepreensíveis diante de seus olhos. Fomos escolhidos para
santos, exemplo de vida. Santo é quem tem Deus como centro de sua vida; quem
orienta os seus passos pelos ensinamentos daquele que o enviou – Jesus Cristo,
seu filho amado. O pai nos adotou como filhos para fazer resplandecer sua
maravilhosa graça, graça que nos foi concedida por ele, o bem-amado. A vida de
Bernardo foi uma graça, um dom de Deus... ficam seu testemunho, seu sorrido de
menino grande, sua informalidade que a todos atraía... Bernardo revelou a graça de
Deus aos humildes (HISTÓRIA..., 2001 (?)).
Investigações documentais, entretanto, informam que o padre formou-se na
congregação francesa de Saint Jacques e que esta, desde fins do século XIX mantinha um
seminário no Haiti (SOCIETÈ..., 2020), país de referência para a religião Vodu. Com base
nessa informação, infere-se que os egressos do seminário de Saint Jacques, comumente
denominados de sacerdotes de São Tiago, fossem instruídos no conhecimento acerca da
religião Vodu que naquele momento era severamente combatida pelo catolicismo no Haiti.
Formado em 1966, o padre Bernardo tinha como sua primeira escolha atuar naquele país,
mas, por motivos não explicitados, resolveu vir para o Brasil, país que recebera um
seminário de sua congregação no ano de 1960.
Para Dom Jaime Luiz Coelho, a vinda do padre para o Brasil e sua desistência de
atuar no país da América Central deveu-se ao seu convite pessoal feito durante a segunda
reunião do Vaticano II em 25 de novembro de 1964 quando o cura esteve em Saint Jacques
e lá conheceu o então seminarista Bernardo (HISTÓRICO..., 2001(?)). Essa é uma hipótese
plausível, mas, existe ainda uma outra situação que pode ter contribuído para o
estabelecimento do jovem padre em terras brasileiras que foi a perseguição que Papa Doc,
ou François Duvalier (1907-1971), presidente do Haiti durante os anos 1960, empreendeu
aos bispos católicos no mesmo período.

Na década de 1960, sob o regime de F. Duvalier, muitos missionários haitianos


foram expulsos. Os padres de Saint-Jacques serão alvos privilegiados. O futuro do
grupo e seminaristas de São Tiago torna inevitável a busca de novos campos de
apostolado, de preferência na América Latina. A escolha será no Brasil. Em 30 de
novembro de 1961, os padres Y. Guéguen, J. Daniel, E. Callec e Y. Pouliquen se
encontraram no Rio de Janeiro. O grupo fundador se estabelecerá no estado do
Paraná em plena expansão e desprovido de padres (SOCIETÉ..., 2020).

Ou seja, condições políticas adversas ou um convite afetivo parecem ter contribuído


para que o jovem padre optasse por vir trabalhar no Brasil e aqui chegou, recém ordenado
no ano de 1966, com poucos conhecimentos sobre língua e a cultura. A primeira ele
aprendeu de forma bastante precária segundo seus conhecidos e, quanto à segunda, seus
contatos se iniciaram assim que pisou em terras brasileiras quando tomou a iniciativa de
conhecer terreiros de Umbanda, Quimbanda e Candomblé quando ainda se encontrava na
sede do seminário no Rio de Janeiro. Para alguns, os contatos do padre com outras
religiões somente se alargaram ao longo do tempo, sempre de forma discreta, mas
constante.
Informam ainda os que conheceram o padre na intimidade que o ele não era de falar
muito em seus atendimentos, embora fosse um ótimo ouvinte, conselheiro, benzedor e
orador eficiente. E foi assim, sendo disponível, solícito e preocupado, curador e benzedor,
além de exorcista, que ao morrer, seu túmulo passou a ser objeto de visitas constantes e
gestuais referentes, não somente no dia de finados, mas, em dias comuns como se
constatou durante o trabalho de campo em dias e horários diversos.

Túmulos, espaços de Topofilia e de transcendência

Para pensar os túmulos enquanto espaços de Topofilia e de transcendência foi


necessário dialogar com diversos autores, correntes historiográficas e pensadores de áreas
afins como a antropologia e geografia por exemplo. O geógrafo Yi-Fu Tuan cooperou com
o debate ao inserir o conceito de Topofilia ao elo que as pessoas estabelecem entre locais
ou ambientes físicos (TUAN, 1980, p. 05) para a compreensão da vivência dos indivíduos
com espaços de convívio sejam eles sagrados ou não.
Em sua análise, Tuan (1980, p. 168), considera que “em geral, os lugares sagrados
são locais de hierofania”. Santuários ou tumbas lembram locais onde nasceram ou
morreram líderes carismáticos dotados de atributos divinos que adquirem status de
santidade segundo o geógrafo. Na China, por exemplo, não só o túmulo do líder carismático
adquire a aura de santuário como também o espaço circundante e tudo nele contido.
Nesse sentido, os cemitérios resultam em ser não somente simples locais onde são
agrupadas sepulturas ou reservatórios de corpos (ARIÉS, 2000, p. 54), mas, monumentos,
espaços sagrados que guardam a memória e a história dos inumados. Os túmulos, como
monumentos, podem perpetuar recordações individuais, dos familiares ou coletivas dos
falecidos. Realizar a crítica de um túmulo, portanto, pressupõe a consideração de que tais
espaços são documentos cuja historicidade pode ser verificada visto que guardam em sua
história o fato de serem “produto da sociedade que os fabricou, segundo relações de forças
que aí detinham o poder” (LE GOFF, 1996, p. 545).
As manifestações de afetividade ocorridas nos cemitérios transformam o espaço
tumular, elemento material que guarda os restos mortais do ente falecido, num umbral ou
local de entrada, quase como um limiar que permite a comunicação entre vivos e mortos.
A relação gerada pelo elo decorrente do espaço-afeto é o elemento sensível que permitiu
pensar o túmulo de Bernardo como um espaço topofílico e capaz de suscitar momentos de
transcendência naqueles que o visitam.
O que permite pensar os túmulos também como objetos de estudo da história
sensível uma vez que são locais que ensejam emoções e sentimentos que marcam
memórias individuais e coletivas cujas significações particulares ou comunitárias
representam as experiências humanas como
(...) uma forma de apreensão e de conhecimento do mundo para além do
conhecimento científico, que não brota do racional ou das construções mentais mais
elaboradas. Na verdade, poderia se dizer que a esfera das sensibilidades se situa
em um espaço anterior à reflexão, na animalidade da experiência humana, brotada
do corpo, como uma resposta ou reação em face da realidade. Como forma de ser
e estar no mundo, a sensibilidade se traduz em sensações e emoções, na reação
quase imediata dos sentidos afetados por fenômenos físicos ou psíquicos, uma vez
em contato com a realidade (PESAVENTO; LANGUE, 2007, p. 10).

O estudo histórico das emoções acompanha os recentes estudos acerca do próprio


corpo. O corpo, por sua vez, teria se definido como objeto histórico já no final do século XIX
quando se inicia também um processo ligado ao desenvolvimento e expansão da alma
sensível e das sensações, cabendo ao século XX, teoricamente, a invenção do corpo
quando a dor passa a ser vista como uma perturbação do sistema sensitivo e como uma
construção social, psicocultural e uma experiência subjetiva (CORBIN, 2011, p. 7).
Dessa tríplice construção resultam as emoções geradas pela dor, quer seja do corpo
físico ou da alma vivente e que, no caso dos falecimentos, podem ser rememoradas quando
na presença dos túmulos e cuja representação pode ser vista por meio dos gestuais
realizados perante o túmulo do monsenhor. Esse conjunto de gestuais foi compreendido
considerando os conceitos de táticas e estratégias de Michel de Certeau (2014) e de
orientações culturais de David Le Breton (1999). Por meio desses conceitos é possível
realizar uma discussão na qual as ações dos visitantes são compreendidas como a forma
como os indivíduos se relacionam com o sagrado e com as instituições.
Se por um lado o conceito de tática denuncia que existe uma rede de vigilância que
objetiva disciplinar os grupos sociais por meio de estratégias, por outro há os consumidores
dessas estratégias disciplinares que nem sempre se adequam às imposições. Essa não
adequação foi denominada por Certeau como táticas e descrita como procedimentos
minúsculos, cotidianos, constantemente atualizados sempre em busca de possibilidades de
ganho por parte dos consumidores (Certeau, 2014, p. 40).
Os gestos praticados por aqueles que se dirigem ao túmulo do padre foram inseridos
na categoria de táticas pois representam momentos em que o público consumidor forja seu
querer frente às instituições como a própria Igreja Católica que nunca se pronunciou
publicamente acerca de Bernardo e do fato de ser a ele creditadas curas para além do
universo infantil.
Outro elemento que permite visualizar a resistência dos visitantes em atender às
limitações quanto às demonstrações de afeto junto ao jazido é o fato de haver uma placa
sobre o túmulo proibindo a queima de velas sobre a lápide. Diante da proibição os visitantes
costumam fazer suas reverências com velas queimando-as ao redor de todo o túmulo
inclusive entre a lápide e o próprio túmulo.

Figura 3: Manifestações dos vivos no túmulo do Padre Bernardo Cnudde.

Fonte: Montagem elaborada pela autora.

No entanto, não há nenhuma advertência por parte do poder público cemiterial


acerca da ornamentação dos túmulos com outros objetos de forma que grassam sobre a
lápide diversos tipos de vasos naturais, artificiais, moedas, rosários, bilhetes e até uma
imagem de Nossa Senhora Aparecida com aproximadamente vinte centímetros.
Esta imagem fez, durante alguns dias, parte da decoração tumular do padre e foi
vista pela primeira vez no dia 18 de outubro de 2018 e no dia 02 de novembro do mesmo
ano já não se encontrava mais no local. A equipe do cemitério não se manifestou acerca
da retirada do objeto, mas, como nesse período houve uma remodelagem geral no
equipamento cemiterial devido aos constantes surtos de dengue na cidade, não só o túmulo
do padre como outros jazigos foram despidos da maior parte dos objetos que os
ornamentavam.
Certeau ainda contribui para a narrativa quando aborda a questão do homem e suas
formas de crer pensando especificamente a oração enquanto produtora de um espaço
sagrado e de um gestual específico e comunicador. Segundo o autor, a “oración organiza
tales espacios com los gestos que dan sus dimensiones a un lugar y una ‘orientación’
religiosa al hombre” (CERTEAU, 2006, p. 33) e, dentro desses espaços os gestos que
acompanham as orações servem como linguagens ou como orientadores que comunicam
o sentimento de pertença ou de distinção a um determinado grupo.
Essa abordagem certoniana colaborou para a compreensão dos gestos realizados
pelos visitantes do túmulo, como orações da catequese católica, genuflexões, etc., como
ações que buscam retomar o elo com o padre uma vez que o conjunto de gestuais utilizados
era de conhecimento comum entre as partes.
Le Breton amplia esse olhar quando afirma que o rol de gestuais ou determinadas
posturas utilizados durante a fala cumprem a função de simbolizar e significar o que está
sendo dito:

Las mímicas, los gestos, las posturas, lá distancia con el outro, lá manera de tocarlo
o evitarlo al hablarle, las miradas, son las matérias de un linguage escrito en el
espacio y el tempo, y remiten a un ordem de significaciones. [...] Aunque la palavra
calle, los movimentos del rostro y el cuerpo se mantienen y testimonian
significaciones inherentes al cara a cara o a lá situación (LE BRETON, 1999, p. 39).

Além dos elementos significativos acerca da linguagem dos gestos a simbologia corporal é
também capaz de traduzir o parentesco singular existente entre pessoas de um mesmo
grupo e, nesse sentido, os gestos representam orientações culturais e sociais de
determinados indivíduos em determinados espaços e temporalidades.
Antropologicamente, os gestos são analisados como “una figura de lá acción, no um
simple acompañamiento decorativo del habla” (LE BRETON, 1999, p. 38). No caso das
manifestações tumulares, essas encontram-se autorizadas pelo próprio espaço que permite
que determinadas emoções e gestuais possam acontecer. A historicidade da morte tem
demonstrado que a cultura afetiva é mutável e que, na atualidade, os sentimentos perante
a perda de pessoas queridas demandam posturas sociais marcadas pela contrição e pelo
zelo perante as celebrações (LE BRETON, 1999, p. 120). De forma que, a morte está
submetida a significados culturais que orientam a tonalidade tantos dos funerais quanto da
dor e do sofrimento (LE BRETON, 1999, p. 123).
Além disso, a forma como os indivíduos se relacionam como o falecido também
interfere na dor e no sofrimento vivenciados quando pessoas próximas sentem mais
intensamente a perda do ente querido. Ou seja, o significado da morte, seu sentido e as
emoções geradas estão submetidas às relações interpessoais de forma que “su
repercusión individual y social es impuesta por la evaluación del sujeto y el grupo y la
investudura afetiva de que era objeto el falecido” (LE BRETON, 1999, p. 123).
O número de visitantes do túmulo, que chega ao número de 140 pessoas em horas
de pico no dia de finados, revela a intensidade da investidura afetiva que a comunidade
daqueles que o conheceram dispensam nessas ocasiões. Geralmente na casa dos
cinquenta anos, quando interpelados, os visitantes mencionam casos pessoais ou de
conhecidos que foram objetos da recepção de graças pelas mãos do padre. Alguns,
inclusive, creditam a ele a recepção de graças mesmo após sua morte.
Grassam nos relatos casos em que o padre, mesmo cansado após ter trabalhado o
dia todo, quer seja em atividades eclesiais, quer seja em atendimentos ao público, ainda
atendia na sacristia da igreja até altas horas da noite. Outros contam que o padre fora até
suas casas para realizar exorcismos. Mas, o relato mais constante é o de que ele era um
santo por se dedicar intensamente ao atendimento daqueles que o procuravam em suas
aflições.
Entre seus pares, o padre é lembrado de três formas. A primeira se refere à sua
habilidade em cozinhar. Tendo feito cursos de gastronomia na França, o padre trouxe para
o Brasil o seu gosto pela cozinha juntamente com um faqueiro especialmente produzido
para chefes de cozinha. Em sua casa constam, inclusive, duas áreas gourmet com
dimensões diferentes. Numa delas, a mais íntima, é possível receber até quinze pessoas,
foi equipada com churrasqueira e fogão elétricos, algo raro para os anos 1990 quando a
casa foi construída. Na área maior, localizada no térreo do sobrado, é possível receber até
meia centena de pessoas sentadas no amplo salão equipado também com uma
churrasqueira a lenha ou carvão, pia e armários.
A segunda forma como o padre costuma ser rememorado, é por sua paixão pela
pescaria, quando se retirava de suas atividades para descansar e se preparar para sua
jornada de trabalho e atendimento. Nessas ocasiões, costumava estar acompanhado por
paroquianos com os quais convivia na intimidade ou mesmo de padres que, como ele,
apreciavam a pesca. Não contente em apenas pescar, o padre ainda preparava os peixes
no melhor estilo francês contam enquanto riem das memórias.
Num terceiro momento, como citado anteriormente, os pares ainda relembram do
monsenhor da mesma forma como seus ex-paroquianos e simpatizantes, ou seja, quanto
à sua intensa atividade de atendimento. Mas, não mencionam que fizesse curas ou
milagres, apenas atestam que costuma-se atribuir ao mesmo essas capacidades.

Assim compreendido, o rol de gestuais são considerados como representativos dos


códigos culturais e das temporalidades em que estão inseridos e, nesse sentido, a
conclusão de Le Breton pode ser comparada a de Michel de Certeau quanto ao fato de que
as orações e gestos contritos como genuflexões por exemplo, passam a ser uma forma de
linguagem compreendida tanto pelos vivos quanto pelo falecido pois ambos vivenciaram os
mesmos códigos da religiosidade católica com os quais geralmente podem ser identificados
os gestuais.
Conclui-se, portanto, que a forma como os visitantes do túmulo se comportam
considerando o gestual e objetos-presentes por deixados sobre e ao redor do jazigo, são
consideradas tanto táticas de comunicação quanto demarcação de seus próprios domínios
perante a instituição católica ou das normas da administração pública responsável pelo
cemitério. Sabedores de que para a Igreja Católica local o padre é somente mais um dentre
tantos outros, seus admiradores encontraram formas de reverenciar aquele que teria sido
muito mais do que um padre submetido incondicionalmente às normas do catolicismo.
Diante do exposto é que as ações realizadas pelos visitantes do túmulo do
monsenhor Bernardo foram concebidas como espaços de comunicação nos quais os vivos
reencontram com o morto que já não é mais falecido e sim vivente de outra dimensão cujo
encontro torna-se possível por meio do conjunto composto por objetos, orações e
simbologia corporal realizados quando frente ao que agora pode ser chamado de túmulo
topofílico, ou seja, um portal no qual o acesso se dá por meio da linguagem compartilhada
entre as partes.
Local de afetos, as táticas criadas pelos vivos para manterem contato com seu ente
querido não somente no sentido de recordá-lo, mas, de evocar seus poderes de cura e
interseção por graças quando sentem a necessidade desse expediente é que permite
pensar túmulo como espaços de Topofilia e transcendência.

REFERÊNCIAS
ACERVOS

Acervo da Cúria Metropolitana de Maringá, 2017.

REFERÊNCIAS

ARIÉS, Philippe. O homem diante da morte. Portugal: Publicações Europa-América


Ltda, 2000.

CENTRO DE ESPIRITUALIDADE RAINHA DA PAZ. Disponível em:


http://pbmm.com.br/cerp. Acesso em: 25 mai. 2020.

CERTEAU, Michel de. El hombre em oracíon, “esse árbol de gestos”. In: _____. La
debilidade de creer. Buenos Aires: Katz, 2006. p. 33-44.

CERTEAU, Michel de. A Invenção do cotidiano: artes de fazer. 22. ed. Petrópolis, Rio
de Janeiro: Vozes, 2014. vol. 1.
CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do Corpo 2:
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