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MANIFESTAÇÕES DOS VIVOS NO TÚMULO DE BERNARDO CNUDDE,

PADRE E DIZEM, CURADOR...

Marcia Regina de Oliveira Lupion


(UEM/LERR)

RESUMO: Sendo o objeto de pesquisa a peculiar prática religiosa do padre conhecido como
Bernardo que em vida manifestou o desejo ser enterrado no cemitério municipal e não nos
locais santos instituídos pela Igreja católica em Maringá, tal desejo orientou esse ensaio no
qual parto da seguinte premissa: Bernardo, ao escolher ser enterrado em local em que
estivesse “junto ao seu bom e amado povo”, agiu de forma estratégica, ou seja, agiu de
maneira deliberada na busca em atingir um objetivo específico e com isso acabou por
transformar seu próprio túmulo num espaço topofílico, limiar e coberto de manifestações
materiais e imateriais por parte dos que por ele ainda conservam o afeto.

Palavras-chave: Padre Bernardo. Maringá-PR. Túmulo. Estratégia. Táticas. Manifestações.

1. O pedido

O tamanho padrão e os ornamentos pouco o distinguem de outros túmulos do cemitério


municipal de Maringá. Revestido em granito dourado carioca e decorado com uma grande
cruz com a imagem de Jesus crucificado em bronze e um porta-retratos também em bronze
medindo algo em torno de quinze centímetros de altura por dez centímetros de largura, o
túmulo é, como dito acima, padrão no cemitério municipal e, em sua constituição física, em
nada se destaca na paisagem da instituição nem dos demais túmulos ao seu redor. No entanto,
é o segundo túmulo mais visitado da cidade e recebe, em dias especiais como finados por
exemplo, aproximadamente duzentas pessoas nos horários de pico dessa data dedicada à
recordação e visita aos entes queridos.

Os restos mortais que jazem nesse túmulo ilustrado pela imagem de número um pertencem a
um padre cuja prática religiosa o distinguia dos seus pares. Bernardo Abel Alfonse Cnudde, o
falecido cujos restos mortais se encontram na sepultura citada, é lembrando após sua morte
por sua prática em vida. Conhecido internacionalmente, Bernardo é tido por aqueles que com
ele conviveram pessoalmente ou não, como um padre que curava. Curava doenças, curava
sentimentos e inclusive, realizava exorcismos mesmo não sendo especialmente designado pela
Cúria Metropolitana para exercer tal atividade.
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Figura 1: Túmulo do Mons. Bernardo Cnudde.


Fonte: Lupion, 2018.

Não são poucos os casos de pessoas que creditam ao Monsenhor - sim, ele recebeu esse título
– graças alcançadas quando ele ainda estava vivo, mas, também é possível encontrar pessoas
que dizem ter recebido graças após a morte do padre. Esses elementos da biografia do padre
têm levado alguns ex-paroquianos a cogitar a abertura de um processo de canonização do
monsenhor, porém, nada ainda posto em prática efetivamente.

Sabedor do carinho de seus fiéis para consigo, Bernardo ainda em vida teria pedido, segundo
as fontes jornalísticas e entrevistados, que quando morresse desejava ser enterrado no
cemitério municipal para permanecer “junto ao meu povo” como contam Neder e Palmira
Bittar (2018a, 2018b), dois paroquianos que conviveram cotidiana e intimamente com o padre
e que fazem coro a um número expressivo de vozes que ouviram pessoalmente ou por meio
de terceiros o desejo do padre em ser enterrado no cemitério municipal.

Até mesmo os jornais locais noticiaram o fato quando do falecimento de Bernardo como
podemos observar no detalhe da matéria de jornal veiculada dois dias após a morte do padre e
reproduzida a seguir pelo O Diário, o maior período da cidade na época e ainda nos dias
atuais:
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Figura 2: Cortejo Fúnebre de Bernardo Cnudde.


Fonte: ROCHA, 2000.

Durante a pesquisa, no entanto, outros motivos foram sendo atribuídos ao desejo do padre
como por exemplo, o expresso por Dom Jaime Luiz Coelho dias após a morte de Bernardo.
Segundo o primeiro bispo e arcebispo de Maringá, Bernardo havia lhe pedido em vida que
fosse enterrado na própria Igreja Divino Espírito Santo onde foi pároco praticamente toda sua
vida no que foi informado que isso não poderia acontecer devido aos cânones que não
permitiam tal prática. O pedido do padre foi assim descrito por Dom Jaime:

Ele dizia: “nós tínhamos aqui o costume de enterrar os sacerdotes nas igrejas
matrizes”, mas, há um cânone no direito canônico que diz que não se pode
enterrar a não ser os bispos. Então ele disse: “já que não posso ser enterrado
na minha igreja matriz, quero ser enterrado no cemitério municipal. Ficar no
meio do povo”. E todos pudemos ver a consagração do seu sepultamento.
Quantas milhares de pessoas passaram pela igreja Divino Espírito Santo.
Quantos derramando lágrimas. Quantos chorando verdadeiramente essa
partida. (HISTÓRIA, 2001 (?)).

Ou seja, o monsenhor sabia que no cemitério existente no Centro Rainha da Paz onde estão a
maioria dos túmulos de religiosos e religiosas que atuaram em Maringá ou na cripta da
catedral o acesso de conhecidos à sua sepultura seria inviável devido a particularidades
especialmente da segunda instituição e por isso buscou ter o domínio sobre o local onde seria
enterrado e onde, certamente, as visitas ao seu túmulo seriam mais acessíveis.

Assim, me utilizo do conceito proposto por Certeau (1998) para analisar a ação do padre ao
contrariar a prática comum dos enterramentos de religiosos em Maringá como uma estratégia
calculada por alguém que sabia ser possuidor de algum tipo de poder junto aos seus pares e
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também de um elevado nível de afetividade por parte de seus paroquianos, admiradores e


simpatizantes1. Segundo o senhor Neder Bittar que foi um dos responsáveis pela organização
do funeral, não houve qualquer tipo de resistência por parte da arquidiocese em negar o desejo
do monsenhor sendo apenas necessário formalizar seu desejo o que de fato foi feito.

O que se tem de efetivo é o fato de que a estratégia de Bernardo deu certo: o local escolhido
para seu sepultamento tornou possível que se mantivesse junto ao seu povo e, ao mesmo
tempo, que fosse gerado nesse local uma afetividade marcada por uma relação de amor, de
lembrança boa, de saudade e de troca que pode ser percebida pelo semblante daqueles que o
visitam levando ou não algo para decorar o túmulo. O trabalho de campo realizado nas
dependências do cemitério revela o carinho que os visitantes do túmulo demonstram quando
lá estão e, quando questionados, os visitantes contam suas histórias com e sobre Bernardo
sempre frisando que ele era “muito bom” e, baixando o tom de voz, dizem em segredo que
“ele curava as pessoas”.

2. Fontes para ouvir Bernardo

Mas, um fato significado é verificado. Para ouvir Bernardo e os laços afetivos que suscitou
enquanto viveu no Brasil, foi necessário criar e investigar em inúmeros documentos pois o
padre deixou pouca escrita de si. Alguns recados e cartões postais trocados com o Bispo
Jaime quando de suas inúmeras visitas à família na França e o discurso de posse quando
assumiu o cargo de Vigário Episcopal na diocese são alguns dos poucos documentos
encontrados até agora que foram escritos pelo monsenhor de seu próprio punho. Além desses
poucos de autoria, Bernardo se deixa ver através de reportagens jornalísticas e de documentos
presentes na Cúria metropolitana onde oitenta e três documentos nos permitem elaborar uma
biografia cronológica da trajetória do padre na diocese de Maringá. A ausência de
documentos produzidos durante o período em que Bernardo esteve como pároco da Igreja
Divino Espírito Santo e muitos de seus pertences pessoais se perderam logo após a morte do
padre quando Isabel, a religiosa responsável pela secretaria da igreja “teria juntado tudo o que
era do padre e tocado fogo” no pátio logo atrás da igreja conta o casal Neder e Palmira Bittar

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Faço aqui a distinção entre “ex-paroquianos” e “admiradores” ou “simpatizantes” porque nem todos que
frequentavam a Paróquia Divino Espírito Santo eram paroquianos. Muitos buscavam a Igreja devido dois fatores:
a Paróquia Divino Espírito Santo acolheu a Renovação Carismática em Maringá, ainda nos de 1980, quando o
movimento não era bem recebido na Diocese e; o “dom da cura”, atribuído ao padre lhe rendeu fama não só
entre católicos maringaenses mas também entre pessoas de outras religiões e crentes não praticantes a nível
nacional e internacional e que costumavam frequentar a Paróquia de forma esporádica.
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indignados com a atitude arbitrária da religiosa que teria feito essa limpeza sem ser ou pedir
autorização a ninguém.

Outros documentos, muitos deles cópias duplicadas da documentação da cúria, foram


encontrados na paróquia Divino Espírito Santo onde Bernardo trabalhou por trinta e um anos.
Mas, à exceção de um texto digitado e sem data ou autoria narrando sua história e, cujo
motivo de produção ainda não foi elucidado e no qual os vestígios apontam para uma data
posterior à sua morte, todos os demais documentos paroquiais são técnicos e denunciam mais
o processo de estabelecimento da paróquia, cuja trajetória se inicia exatamente com Bernardo,
do que traz informações pessoais sobre ele. Pesquisas nos Livros do Tombo da Paróquia São
José Operário e da Catedral revelaram detalhes breves, porém, pontuais sobre Bernardo e a
criação da Paróquia Divino Espírito Santo.

Até o presente momento o atual pároco da Divino não permitiu a pesquisa no Livro do
Tombo, embora tenha disponibilizado todo o restante da documentação existente assim como
também uma entrevista de aproximadamente 40 minutos nas dependências da secretaria da
Igreja Divino Espírito Santo cujo conteúdo está sendo analisado e se mostra bastante
promissor quanto a informações sobre a instituição das Comunidades Eclesiais de Base na
Diocese de Maringá nos anos 1980 assim como também sobre a prática da Renovação
Carismática no mesmo período, além é claro, da narrativa do padre atual sobre quem foi
Bernardo para ele uma vez que são contemporâneos em sua vivência na Arquidiocese de
Maringá.

É certo registrar contudo, que a pesquisa ainda se encontra em fase inicial sendo possível que
novos documentos surjam e sejam incorporados aos arquivos sobre o padre como aconteceu
em entrevista recente com o casal Neder e Palmira Bittar que, além da entrevista, cederam
fotografias do padre e com o padre, o rosário usado por ele e que se encontrava em suas mãos
durante o funeral e, afortunadamente, um DVD elaborado após a morte do monsenhor com
quatro vídeos temáticos a saber: um breve histórico da vida do padre; a missa de corpo
presente; uma homenagem a Bernardo e a missa de 7º dia. Esse material ainda não foi
analisado em profundidade, mas, é sabido que será essencial para a narrativa a qual me
propus. Bacana registrar que Neder e Palmira Bittar fazem parte de rol de entrevistas com
pessoas que conheceram o padre e que atualmente conta com quatorze entrevistas já
transcritas. A utilização de fontes construídas a partir da oralidade foi o recurso que melhor se
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adaptou ao processo de ouvir Bernardo e por isso formam o grupo mais delicado e ao mesmo
tempo robusto dentre as fontes utilizadas na pesquisa.

O grande desafio, portanto, é ouvir Bernardo. Conciliar as fontes paroquiais e da cúria com
depoimentos orais é a estratégia metodológica considerada como a mais adequada para essa
audição. Exumar Bernardo é uma tarefa arriscada. Bernardo possui muitos proprietários. Cada
pouco do monsenhor foi sendo apropriado por aqueles que o conheciam e Bernardo se diluiu.
É certo, no entanto, que há, no mínimo, duas formas de vê-lo. Uma dada por seus pares e
outra por seus ex-paroquianos e admiradores. Visões que ainda estão por ser escritas e com as
quais gostaria de contribuir.

3. Manifestações dos vivos no túmulo de Bernardo Cnudde

Local de afeto, o túmulo de Bernardo nos revela muito sobre esse padre peculiar, inclusive
que ele, ao solicitar ser enterrado num local público permitiu manter viva a ideia de que
“estou com vocês”. O túmulo é presença física de um Bernardo ausente, mas, que se faz
presente no momento em que a memória de seus visitantes é acionada ao visualizar seu
túmulo. Nesse sentido, podemos compreender o túmulo de Bernardo como um local
topofílico, ou seja, um lugar no qual existe um elo afetivo entre a pessoa e o lugar físico como
infere o geográfo Yiu Fu Tuan (1980, p. 05).

É fato já estabelecido que os seres humanos percebem o mundo à sua volta de acordo com seu
contexto. É importante para a discussão aqui apresentada que essa percepção seja
compreendida pois, depende dela que o túmulo seja visto como espaço topofílico para o qual
convergem os mecanismos de reconhecimento, pertencimento e comunicação originados
quando da visita ao local onde o ente querido, Bernardo, foi enterrado e através do qual torna-
se possível relembrar, a cada visita, as diversas situações vividas com ou sobre o padre. Ornar
a sepultura com objetos que são presentes-reverência ou simplesmente manter-se de pé em
oração ao lado túmulo são formas comuns de manifestações materiais ou imateriais que se
repetem à exaustão principalmente nas datas comemorativas de finados e aniversário de morte
do padre.

Michel de Certeau e o antropólogo David de Le Breton estudaram os gestos humanos


considerando seus efeitos comunicativos e seus trabalhos são referência para a proposição
presente nesse artigo. Certeau, homem que buscava de forma voraz como a presença do
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cristianismo se dava no mundo afirma de forma categórica que a “oração cria um espaço
sagrado” (CERTEAU, 2006, p. 33) e, sendo a oração um dos movimentos mais executados
por aqueles que visitam a cripta de Bernardo esse gestual simbólico foi compreendido
exatamente da forma posta por Certeau ou seja, como “um espaço sagrado”. Já em Le Breton
os gestos humanos em geral são considerados marcadores sociais de um pertencimento a uma
cultura (LE BRETON, 1999, p. 50) cuja execução permite delimitar identidades coletivas e
acionar a comunicação entre pares ou não.

Na soma dessas duas explicações acerca dos gestuais, a oração feita junto à sepultura de
Bernardo passa a ser compreendida como um símbolo corporal cuja compreensão está inscrita
num léxico de rituais compartilhadas entre o visitante, ex-paroquiano ou não, e o padre. O
gesto de contrição, a oração silenciosa, o respeito demonstrado são signos comuns ao corpo
simbólico da religiosidade cristã católica e, dessa forma, ao realizar tais gestos a comunicação
entre Bernardo e o fiel é estabelecida. A presença de Bernardo é evocada mais uma vez e, se
não responde oralmente às palavras que lhe são dirigidas, o padre ao menos as ouve e assim,
no espaço topofílico do túmulo-limiar a vontade do padre de permanecer entre os seus se
realiza.

As manifestações de afeto, porém não se esgotam na oração. Como citado, ascender velas,
levar flores, pendurar rosários, decorar o túmulo com imagens são ações e objetos que
demonstram o afeto dos visitantes ao padre fato registrado na decomposição abaixo na qual
destaca-se o túmulo ao centro circundado por recortes ampliados de partes do conjunto
tumular nas quais se encontram objetos ou manifestações de vivos.
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Figura 3: Manifestações dos vivos no túmulo de Bernardo Cnudde.


Fonte: Decomposição elaborada por Marcia Regina de Oliveira Lupion, 2018.

Como afirma Sandra Jatahy Pesavento:

(...) a imagem é portadora de significados que são constituídos e/ou


descobertos por aquele que pensa, enquanto olha... Da visão ao olhar – que
constitui o ver, mas estabelecendo significados e correlações -, uma
operação mental será complementada por uma imagem mental, que
classifica, qualifica e confere sentido àquilo que é visto. (PESAVENTO,
2008, p. 99)

E, nesse caso em especial a desmontagem da foto central teve por objetivo exatamente ilustrar
a premissa que induz a esse texto relativa às manifestações dos vivos no túmulo de Bernardo
Cnudde. No caso, a produção da desmontagem induz o leitor da imagem à verificação da
presença dos objetos que atestam a presença dos vivos no túmulo e, nesse sentido, é possível
pensar no quão importante é conhecer os motivos pelos quais uma imagem é criada.

Boris Kossoy em sua trilogia sobre a fotografia procura a todo momento chamar atenção para
o fato de que é importante conhecer os motivos pelos quais uma fotografia (produto) foi
criada pois, segundo ele, “toda fotografia tem sua origem a partir do desejo de um indivíduo
que se viu motivado a congelar a imagem de aspecto do real, em determinado lugar e época”
(KOSSOY, 2012, p. 38). No caso da fotografia central, a captação primeira da imagem teve
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por objetivo registrar o túmulo para posterior utilização ilustrativa no corpo da tese. No
entanto, outro uso se impôs quando um olhar objetivo sobre a foto revelou sua potencialidade
como instrumento de pesquisa uma vez que esta “presta-se à descoberta, a análise e à
interpretação da vida histórica” (KOSSOY, 2012, p. 59).

A potencialidade observada foi revelada quando se atentou para os objetos presentes sobre e
ao redor do túmulo e lápide e um deles em especial chamou a atenção por ser uma placa que
indicava uma forma específica sobre como lidar com os objetos colocados no túmulo, em
especial as velas. A placa contém os seguintes dizeres: “Favor não colocar velas sobre o
túmulo” e foi colocada certamente pelos responsáveis por cuidar do túmulo, ou seja, a
paróquia Divino Espírito Santo. A existência dessa placa e dos objetos deixados pelos
visitantes junto ao túmulo nos levaram a pensar nas diversas formas que os visitantes
encontraram para deixar suas marcas na sepultura de Bernardo e, dessa forma, ambos os atos
– a colocação da placa e o depósito de objetos - foram vistos como um pretexto para aplicar
na narrativa construída a partir da fotografia tumular o conceito de intriga expressa por Paul
Ricouer.

Para o filósofo francês, a intriga é uma forma literária de condensar o que ele chamou de
síntese do heterogêneo, ou seja, para que uma narrativa se torne inteligível é necessário que
haja coerência narrativa entre “a escolas narrativista e os trabalhos mais analíticos da
narratologia no plano da semiótica dos discursos” (RICOUER, 2012, p. 255). A intriga seria,
nesse sentido, a forma literária de coordenar essa síntese do heterogêneo uma vez que a
intriga “consiste em conduzir uma ação complexa de uma situação inicial para uma situação
terminal por meio de transformações regradas que se prestem a uma formulação apropriada no
quadro da narratologia” (RICOUER, 2012, p. 255) e com isso, dar ares de lógica para o fato
narrado de forma que o torne verossímil e passível de persuadir o leitor a acreditar na
coerência da narrativa da história que foi narrada. Com essa premissa, partimos para uma
análise bastante sucinta de alguns objetos deixados junto ao túmulo de Bernardo considerando
como intriga exatamente o fato de que a placa sobre o túmulo impede uma, mas não todas as
manifestações do vivos no túmulo do padre e ainda nos permite criar uma narrativa coerente
acerca dessas manifestações.

Por mais detalhes e informações codificadas que uma imagem fotográfica tenha, jamais são
alcançadas todas as dimensões possíveis de serem observadas dadas as características
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culturais sobre as quais uma imagem é construída e dada a ler. Iniciou-se então um processo
de desmontagem da imagem, ou seja,

É possível verificar na desmontagem que sobre o túmulo há, além de vasos com flores
artificiais e naturais, uma placa com a inscrição “Favor não queimar vela em cima do
túmulo”. Como se vê na imagem central, de fato não há sequer uma vela sobre a cripta sendo
que o mesmo não pode ser dito em relação a outras partes da sepultura e, como não há
menção sobre a colocação de objetos na lápide vemos que os rosários grassam em número
amarrados aos braços do Cristo crucificado em sua cruz de bronze juntamente com já citados
vasos, esses sim, sobre a própria sepultura e a própria imagem de Nossa Senhora Aparecida
entre a lápide e túmulo.

Pensar um local físico como um ambiente também provido de afetos é pensar a sensibilidade
das relações humanas em relação aos espaços que constrói, habita ou que se identifica. No
caso do túmulo de Bernardo, acredito que foram acionados mecanismos afetivos ligados ao
fato de que o padre induz, ao desejar ser enterrado num espaço público, a uma identificação
entre seus ex-paroquianos, simpatizantes e admiradores.

A evocação de lembranças leva a recordações recheadas de emoções de um passado não


muito distante que deixou saudades e boas lembranças. As emoções, enquanto espaços do
sensível e imaterial, são o elo entre os que o conheceram e o padre enquanto o túmulo, espaço
físico, seria o mecanismo que aciona o start das lembranças-emoções, ou ainda, o limiar entre
o passado e o presente no qual aqueles que o conheceram pessoalmente ou não reencontram
seu querido padre, companheiro das horas tristes e alegres, benzedor, curandeiro, exorcista,
cozinheiro, amante de cerveja, pescaria e abelhas.

4. À guisa de

Como dito anteriormente, de forma bastante sucinta e considerando apenas os objetos que
foram colocados na sepultura e lápide pelos visitantes do túmulo-limiar, vemos na concretude
desses objetos uma ação tática também conceituada por Michel de Certeau (1998, p. 47), ou
seja, uma ação que tem por objetivo se furtar ao que foi estabelecido por outrem, geralmente
grupos dominantes ou que detém o poder. Os responsáveis por burlar o estabelecido são
aqueles que desejam manifestar seu afeto por Bernardo e fazem utilizando objetos não
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especificados na placa alocando-os nos espaços não delimitados e lá depositando seus pedidos
e suas lembranças plasmadas em rosários, imagens, vasos e velas.

Dessa forma, o visitante, manifestante vivo, mantém contato com seu ente querido ora por
meio de orações que tanto podem ser de agradecimento, de saudades ou de pedidos de graças
ora por meio de objetos distribuídos ao redor do túmulo ou pendurados na decoração
institucionalizada, ou seja, no crucifixo de bronze.

O túmulo, enquanto um espaço topofílico e limiar, permite o acesso livre dos conhecidos ao
seu ente querido. Os gestos e objetos, num entrelaçamento entre o imaterial e o material,
denunciam a afetividade quando levam flores, velas, imagens, moedas, rosários, ou quando
oram tocando ou a fotografia do padre ou o crucifixo com o Cristo morto2. As mãos postas
sobre o coração, a cabeça baixa e genuflexões aos pés do túmulo demonstram contrição e
respeito. Neste momento o visitante acredita que o monsenhor está consigo e o desejo de
Bernardo se realiza a cada visita ao túmulo-limiar e, por meio de gestos específicos, a
comunicação está estabelecida.

REFERÊNCIAS

BITTAR, Neder Miguel Salles. Entrevista 1. [jul. 2018]. Entrevistadora: Marcia Regina de
Oliveira Lupion. Maringá-Pr, 2018a. 1 arquivo mp3 (71 min.).
BITTAR, Palmira. Entrevista 1. [jul. 2018]. Entrevistadora: Marcia Regina de Oliveira
Lupion. Maringá-Pr, 2018b. 1 arquivo mp3 (71 min.).
BONI, Paulo César. O discurso fotográfico: a intencionalidade da comunicação no
fotojornalismo. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação). ECA/Universidade São
Paulo, 2000.
CERTEAU, Michel de. El hombre em oracíon, “esse árbol de gestos”. In: _____. La
debilidade de creer. Buenos Aires: Katz, 2006. p. 33-44.
CERTEAU, Michel de. Introdução. In: CERTEAU, Michel de. A Invenção do cotidiano. 3.
ed. Petrópolis: Vozes, 1998. vol 1.
HISTÓRIA de Monsenhor Bernardo Abel Alfonse Cnudde. Maringá, Pr: Produção
Independente, 2001 (?). 1 DVD (121 min.). Port., color.
KOSSOY, Boris. Os tempos da fotografia: o efêmero e o perpétuo. Cotia, SP: Ateliê
Editorial, 2007.
_____. Fotografia e História. 4. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2012.

2
Dadas a brevidade do texto, optei por não discutir a questão do simbolismo impresso em cada um dos objetos
citados e para os quais há historiografia disponível.
12

LE BRETON, David. Cuerpo e comunicacíon. In: _____. Las paciones ordinárias:


antropologia de las emociones. Buenos Aires: Edicione Nueva vísion, s/d. p. 37-102.
LUPION, Marcia Regina de Oliveira. Túmulo do Mons. Bernardo Cnudde. Maringá, PR.
2017. 01 fot., digital, color.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. O mundo da imagem: território da história cultural. In:
PESAVENTO, Sandra Jatahy; SANTOS, N. M. W; ROSSINI, M. de S. (Orgs.). Narrativas,
imagens e práticas sociais: percursos em história cultural. Porto Alegre: Asterisco, 2008.
p. 99-123.
RICOUER, Paul. A representação historiadora e os prestígios da imagem. In: _____.
RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas-SP: Unicamp, 2012.
ROCHA, Elvio. Adeus: Fiéis despendem-se de Bernardo, O Diário, Maringá-Pr, 22 nov.
2000.
TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São
Paulo: Difel, 1980.

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