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YÁZIGI, EDU ARDO. O MUNDO DAS CALÇADAS. POR UMA POLÍTICA DEMOCRÁTICA
DUARDO
DE ESPAÇOS PÚBLICOS. SÃO PAUL
ESPAÇOS O: HUMANIT
ULO AS/IMPRENSA OFICIAL, 2000.
UMANITAS

FRAYA FREHSE*

Resultado da tese de livre-docência desse Eis que a ponte com a antropologia


estudioso do planejamento urbano e se faz. E o estudo se torna singular tanto
regional e, em particular, do turismo, acerca para planejadores quanto para
do qual possui inúmeras publicações, O antropólogos brasileiros, pela forma
Mundo das Calçadas é a primeira incursão pioneira como explora uma temática à
abrangente do professor de geografia da primeira vista inapreensível; afinal,
USP, Eduardo Yázigi, na temática das como cercar metodologicamente um
calçadas. Isso implica um compromisso objeto ao mesmo tempo tão ínfimo e tão
explícito com um planejamento voltado a gigante? Por um lado, precisamente por
“humanizar a cidade”. Para tanto, seria seu caráter intermediário (definem-se
necessário enfocar “os aspectos mais enquanto tais por sua localização física
envolventes do que acontece em meio a entre a casa e a rua), as calçadas podem
nossa circulação” pelas ruas. No foco estão suscitar a impressão de serem apenas
as vicissitudes do ser pedestre; valoriza-se detalhes menores em meio ao que
a “dimensão corpórea” porque, em termos verdadeiramente importaria: a casa, a
teóricos, a calçada não se restringiria ao rua. Por outro lado, há calçadas em todo
espaço físico (à àrea adjacente a estradas, lugar, o que faz delas analiticamente
vielas e ruas; a passagens, passarelas, pontes, espaços quase infinitos. Pois é
escadarias e outras extensões virtuais da exatamente essa dupla complexidade que
calçada; a áreas de pedestres em locais Yázigi se empenha em enfrentar.
semipúblicos como galerias, shopping- O autor explicita seus objetivos como
centers, passagens públicas sob edifícios, sendo: “a) contribuir para a formação da
etc.). Ela seria também – e sobretudo – as identidade da cidade; b) buscar um
relações sociais que nela se dão; carregaria trabalho de síntese que, articulando as
nela dimensões dos “pedaços” do melhores proposições e imaginando
antropólogo urbano José Guilherme outras, chegue a faire le point , a mostrar
Cantor Magnani (1984). como fica o balanço da questão das
calçadas; c) explorar teoricamente os
aspectos públicos da territorialidade
urbana da cidadania, muito mal
* Doutoranda, PPGAS - USP definidos que, finalmente, conduz a d)
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definir as linhas mestras de uma futuro”. Primeiramente, impor ta


reformulação da política de espaços “definir o processo de apropriação do
públicos no que diz respeito a calçadas”. espaço público de São Paulo” desde o
Subjaz à formulação uma concepção bem início da povoação, em 1554, até 1988,
precisa do que devam ser as calçadas quando foi promulgada a mais recente
destinadas à população, de quais devam Constituição. Para tanto, vale analisar
ser suas funções. Se a preocupação de sobretudo a legislação sobre a “vida
fundo é entender as calçadas paulistanas pública e, por conseqüência, suas
sem confundi-las em nenhum momento repercussões no espaço”, elaborada para
com as do “ flâneur baudelairiano” – o Brasil e São Paulo durante esse
argumento que abre o livro –, esses período. Num segundo momento, a
espaços pertencem a ruas que, “entorno, ênfase recai sobre os tipos de atividade e
amparado em sua inter-relação com as personagens das calçadas paulistanas
edificações lindeiras”, devem ser um hoje – contempladas geograficamente
“direito” de todos para que a segundo um “eixo expandido” entre o
“democracia” exista. Ora, nesse sentido centro da cidade e as zonas norte, sul,
retornamos sim a paradigmas políticos leste e oeste; e, temporalmente,
historicamente gestados para as ruas sobretudo na primeira metade dos anos
européias. A “cidadania” incluiria 90, aos quais se referem os dados
também, dentre as quatro “gerações de qualitativos, quantitativos e as
direitos” que a definiriam, o “direito ao observações de campo.
entorno e proteção do consumidor”. Um Esses dois blocos fornecem o lastro
pressuposto de fundo político bem empírico para que, na parte final, o autor
específico nor teia a apreensão da elabore uma proposta de planejamento
dinâmica física e social das calçadas. E para o “entorno” com base nas calçadas.
essa concepção é assumida como Isso implica retomar considerações
universalmente válida e almejada por teóricas sobre o planejamento do espaço
todos; o intuito do planejamento seria público formuladas nos contextos
precisamente traduzi-la em políticas americano e europeu, mas também
públicas para o espaço. No interior desse apontar alternativas de organização do
universo de referências, não surpreende cenário físico, da economia e da
que o autor se proponha a “articular” as sociologia das calçadas; em suma, um
“melhores” proposições em favor de uma “microplanejamento do espaço público”.
suposta “territorialidade urbana da E há mais: além de pautar-se em
cidadania”. obser vações de campo, fotografias
Ter em mente esse aspecto permite próprias e em fontes secundárias sobre
compreender melhor a estrutura da obra, as ruas da asiática Cingapura para
constituída por dezoito capítulos repensar “situações de impasse” como a
distribuídos em três partes: “I. o que das ruas paulistanas em relação à díade
eram as calçadas no passado; II. o que “civilidade-cidadania”, Yázigi apresenta
são hoje e III. o que poderiam ser no dados de uma enquete sobre a percepção

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do espaço público paulistano realizada o que é conflito para o autor o é


com 200 pessoas, nas ruas em 1995. também para os agentes respectivamente
Essa estrutura argumentativa deixa envolvidos nas situações de suposto
entrever um peso grande conferido à “conflito”...
história num primeiro momento; a Nas três partes Yázigi busca
dados etnográficos num segundo; ao caracterizar os “conflitos” com enorme
planejamento urbano por fim. E isso erudição. O leitor é por vezes defrontado
apesar de o autor não explicitar estar com instigantes rastreamentos
escrevendo, nos primeiros dois terços históricos: por exemplo, sobre os
do livro, uma história e uma etnografia primórdios históricos das palavras
– o que é, aliás, significativo. Yázigi “mascate” e “camelô”; sobre as origens
não reconhece abertamente algo tão do pavimento de mosaico, comum em
freqüente na historiografia e na São Paulo a partir dos anos 20, ou
antropologia desde as descobertas dos mesmo sobre a origem romana e cristã
pós-modernos, nos anos 70: que, em da ordenação jurídica do espaço público
termos epistemológicos, os argumentos ibérico e, conseqüentemente, brasileiro.
e avaliações do autor são leituras sobre Possivelmente, nesse último caso, seja
o objeto; não são o objeto “em si”. menos imediata do que formulada, a
As referências metodológicas da suposta “influência” de códigos bem
obra, “espinha dorsal” das três partes específicos, romanos e portugueses,
do livro, são “conflito e anomalia”, que sobre o que seria a realidade
deveriam ser melhor “conhecidos” para socioespacial historicamente vigente no
ambos serem “atenuados”: conflitos Brasil urbano.
históricos entre o espaço físico das Além da er udição, destaca-se a
calçadas e certos tipos de uso; entre as riqueza dos dados. Um dos momentos
leis a elas referidas e a “relação público- etnograficamente altos do livro ocorre
privado, comprometendo a construção quando o autor, baseando-se em
dos aspectos espaciais da cidadania”; memórias orais, escritas e na
entre a economia informal e o historiografia, trata dos tipos de
comércio formal e, freqüentemente, a comércio ambulante vigentes nas ruas
c i r c u l a ç ã o ; e n t re o “ l ú m p e n , paulistanas da virada do século XX; mas
consistente de prostituição, também, mais adiante e com base em
m e n d i c â n c i a , e t c . ” e o s “p a d r õ e s Florestan Fernandes (1961), quando
m o r a i s d e c a d a t e m p o” ; e n t re a descreve lazer e brincadeiras comuns nas
sociabilidade/lazer e o espaço para sua ruas da época. A profusão de detalhes
manifestação. Assim, deparamo-nos supera o problema metodológico
novamente com o paradigma de fundo subjacente às descrições: o não-
“democracia no espaço público”, só tratamento das fontes primárias
que, dessa vez, traduzido em definições respectivamente utilizadas, dificultando
bem peculiares do que seria “conflito” que o leitor avalie o teor das
na rua. E a dúvida que permanece é se representações em jogo.

resenhas
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Em outros momentos importantes, As elites se tornavam mais zelosas de suas


sobretudo na segunda parte do livro, são intimidades e tal espaço se prestaria
apresentados dados e fotos – do autor, muito a chacrinhas e fofocas entre
em anexo – atuais sobre as ruas de São empregados e motoristas”.
Paulo. Aprendemos, por exemplo, que o Com efeito, os dados apresentados
metro quadrado de uma banca de jornal com freqüência são apenas parcamente
pode chegar a custar, dependendo do contextualizados; seus fundamentos
local, 10 mil dólares. Por sua vez, a metodológicos, portanto, permanecem
enquete da terceira par te, sobre a ininteligíveis para o público não
percepção social do espaço público, familiarizado com as fontes. Ao serem
indica que “os problemas que menos fornecidos, por exemplo, resultados de
incomodam a população são: uma pesquisa sobre os guardadores de
publicidade em canteiro de plantas; carro, só ficamos sabendo que foi
remendo nos desenhos das calçadas; “dirigida pelo Professor André Portella
mesas de bares e restaurantes que de Souza, não publicada e realizada por
ocupam o passeio; guardadores de carros suas alunas Rosângela Cerano e Lúcia de
e fachadas feias”. Fátima Carneiro Leão, em 1993”. O
Os dados apresentados deixam intuir outro lado da moeda do problema da
a relativa falta de trabalhos acadêmicos contextualização aparece em relação a
sobre as atividades sociais em curso nas alguns dados históricos apresentados.
ruas paulistanas do presente. As Por vezes, classificações correntes
informações do autor advêm sobretudo atualmente são aplicadas à descrição de
de jornais, organizações não-governamentais, fatos do passado. O autor, por exemplo,
secretarias ou departamentos de governo, estranha que, na legislação municipal de
afora fontes originais, como o serviço 1886, “apesar da abolição iminente,
telefônico de ocorrências policiais “190”. insiste-se na repressão ao negro, a quem
Ressalte-se, além dos dados, a não se conferiam direitos como aos
originalidade das observações de campo. outros cidadãos”. Ora, se naquele
Yázigi detecta, em lugares como a Rua momento cada vez mais setores sociais
Sete de Abril, a presença de lixeiras a se engajavam na abolição da escravatura,
menos de três metros de distância uma ninguém sabia que a abolição oficial
da outra, enquanto outros lugares ocorreria dois anos mais tarde.
padecem da absoluta falta desses Alguns dados vão também na
equipamentos. É uma pena apenas que contramão de descobertas importantes
não raro os argumentos não sejam da historiografia paulistana. Refiro-me,
justificados. Sem qualquer comprovação por exemplo, à alusão de que o Código
suplementar, o autor comenta a certa de Posturas de 1886 seria o primeiro
altura que não vingaram, nos projetos conjunto de leis municipais – composto
paulistanos de “cidades-jardins”, das chamadas “posturas” – a se
originalmente inglesas, as áreas comuns “consolidar” e a “formar um código; a
nos fundos dos lotes, por não “estarem tentativa anterior não chegou a se
no espírito das elites daquele tempo (...). realizar mas é sintomática do mesmo
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período”. Hoje, há provas de que o Certamente, essas impressões, pequeno


código de 1886 era uma “mera fragmento das inúmeras que o extenso livro
recodificação ”, revisada e ampliada, do inspira, devem muito à antropologia. Para
código anterior vigente, de 1875 um leitor da área de planejamento urbano,
(Campos, 1997c :6). possivelmente os dados objetivos tenham
Ao lado dessa dificuldade de um peso mais contudente; “falem por si”,
contextualização, o leitor ressente-se às de forma a dispensar interpretações
vezes da falta de uma análise mais detida suplementares. Se tudo gira em torno da
dos dados. Aguarda em vão uma reflexão “democracia”, o que vai na contramão –
sobre, por exemplo, uma certa geografia da afinal, são tantos os “conflitos” – conclama
depredação de orelhões ou sobre o que o um planejamento que “reveja todas as
Comando Geral da Polícia Militar classifica instituições” em favor de “civilidade”,
como “ocorrência policial em logradouros “educação” e “capital social”. No ínterim,
públicos”. Reflexão teórica há, mas “o pedestre é continuamente humilhado e
submetida aos pressupostos de “cidadania”, violentado”.
“democracia”, “direito ao espaço público”. Assim, ficam claras as diferenças de
Na terceira parte do livro, essas noções são aporte entre a antropologia e o
relacionadas com o debate acadêmico planejamento urbano para a reflexão sobre
internacional. E se insinua o que a a metrópole. Os objetos podem até ser
antropóloga Mariza Peirano, obviamente almejados pelas duas áreas do
referindo-se a outro tipo de discussão, conhecimento. Mas as questões do
sintetiza como um risco, em trabalhos antropólogo serão outras, por se pautarem
antropológicos: “a ausência da interlocução epistemologicamente no reconhecimento
teórica que se inspira nos dados e registro da diversidade cultural, além da
etnográficos” (Peirano, 1995:52). De fato, busca do significado local de
a solidez dos pressupostos acaba, a meu ver, comportamentos e práticas culturais
cerceando as potencialidades interpretativas (Magnani, 1996:18). Logo, as cidades – e
contidas no texto – e, em parte, nos anexos, calçadas – daí resultantes também serão
sínteses informativas de alguns tópicos. outras. O planejador falará com grande
Uma interlocução mais intensa com as propriedade de um determinado mundo
ciências sociais teria sido profícua para das calçadas; o antropólogo, por sua vez,
evitar que temas importantes fossem dos infinitos mundos da calçada.
contaminados com juízos de valor
involuntários. Ao tratar dos “degredados de B IBLIOGR
IBLIOGRAAFIA
Eva” (título do capítulo VII), prostitutas,
michês e travestis, Yázigi lamenta, em CAMPOS , Eudes. A Arquitetura
relação às primeiras, que “a falta de Paulistana sob o Império. Aspectos da
perspectivas de trabalho impede uma real formação da cultura burguesa em São
política de reconquista para o trabalho Paulo . 4 vols. Tese de Doutoramento,
normal” (grifos meus). São Paulo, FAU-USP, 1997.

resenhas
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FERNANDES, Florestan. Folclore e


Mudança Social na Cidade de São
Paulo . São Paulo: Editora Anhembi
S.A., 1961.
MAGNANI, José Guilherme Cantor.
Festa no Pedaço. Cultura Popular e
Lazer na Cidade . São Paulo:
Brasiliense, 1984.
MAGNANI, José Guilherme Cantor.
“Quando o campo é a cidade.
Fazendo antropologia na metrópole”.
In: MAGNANI, José Guilherme C.
& TORRES, Lilian de Lucca (orgs.).
Na Metrópole. Textos de antropologia
urbana . São Paulo: EDUSP/Fapesp,
1996, pp. 13-53.
PEIRANO, Mariza. A Favor da
Etnografia . Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 1995.

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