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ação

Pensando bem

Estudos de sociologia
e antropologia da moral

Organização
Alexandre Werneck
Luís Roberto Cardoso de Oliveira
Pensando bem
Pensando bem

Estudos de sociologia
e antropologia da moral

Organização
Alexandre Werneck
Luís Roberto Cardoso de Oliveira
Copyright © 2014 Alexandre Werneck e Luís Roberto Cardoso de Oliveira
Copyright © 2014 Casa da Palavra
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19.2.1998.
É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora.

Este livro foi revisado segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Copidesque
Clarissa Peixoto

Revisão
tiago ramos

Capa
D29/leanDro Dittz e sílvia Dantas

Projeto gráfico de miolo e diagramação


abreu’s system

Apoio:

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
P467
Pensando bem: estudos de sociologia e antropologia da moral /
Alexandre Werneck... [et al.]; organização Alexandre Werneck,
Luís Roberto Cardoso de Oliveira. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Casa da
Palavra, 2014.
544p. ; 23 cm.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7734-271-6
1. Ciência sociais. 2. Antropologia. 3. Sociologia. I. Werneck,
Alexandre. II. Werneck, Alexandre. III. Oliveira, Luís Roberto
Cardoso de. IV. Título.
14-16540 CDD: 320
CDU: 32

CASA DA PALAVRA PRODUÇÃO EDITORIAL


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Sumário

Apresentação: Pensar (o) bem


alexanDre werneCk e luís roberto CarDoso De oliveira ........ 

Debates
Sociologia da moral, agência social e criatividade
alexanDre werneCk ........................................................................... 
Concretude simbólica e descrição etnográfica
(sobre a relação entre antropologia e filosofia)
luís roberto CarDoso De oliveira .................................................. 
Sociologia da moral, ação coletiva e espaço público
Jussara Freire ..................................................................................... 
A moral em questão: a conformação de um debate em antropologia
PatriCe sChuCh .................................................................................... 
Moralidades possíveis e o sujeito como multiplicidade de práticas:
um campo aberto de questões
leonarDo sá ......................................................................................... 
Dos códigos aos repertórios: alguns atavismos persistentes
acerca da cultura e uma proposta de reformulação
gabriel D. noel.................................................................................... 

Gramáticas, sentidos e dispositivos morais


O drama moral de certa pedagogia feminista
heloisa buarque De almeiDa ............................................................ 
Produzindo moralidades: dilemas, polêmicas e narrativas em terras
do “agronegócio”
John ComerForD.................................................................................. 
Magia e moralidade: o caso dos “trabalhos de amor” nos terreiros de umbanda
kelson gérison oliveira Chaves e marCos alexanDre De souza
queiroz ................................................................................................. 
Sob a ótica do feminino: raça e nação, ressentimentos e (re)negociações
na África do Sul pós-apartheid
laura moutinho.................................................................................. 
Um valor de múltiplas faces: a construção da “pequena” e da “grande”
honras entre trabalhadores em minas de carvão no Brasil e na França
marta CioCCari .................................................................................... 
Aspectos sociológicos da fofoca
PeDro Paulo De oliveira .................................................................... 
“Cumpri a minha missão”: dádiva, sacrifício e reconhecimento
PrisCila gomes De azeveDo ............................................................... 

Violência, identidades e moralidades criminais


Globalização no crime: cultura ou etos?
alba zaluar .......................................................................................... 
Pelo certo: o direito informal do tráfico em favelas cariocas
Carolina ChristoPh grillo............................................................... 
O “problema” do bandido: subjetividade e “violência urbana” no Rio de Janeiro
Cesar Pinheiro teixeira .................................................................... 
O círculo da acusação: o linchamento como processo de indiscutibilidade da
negatividade moral do ato e cena de punição sem limites
Danielle roDrigues ............................................................................ 
Sobre o significado do policiamento comunitário: uma análise dos accounts
empregados pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (1980-2000)
luDmila menDonça loPes ribeiro ................................................... 

Direitos, política e vida pública


“Ajuda”, “compra de voto” e reconhecimento: as fronteiras agonísticas da moral
na política
irlys alenCar F. barreira e César barreira................................... 
Os limites da “identidade”: uma etnografia das demandas de
reconhecimento na França e no Brasil
Fabio reis mota .................................................................................... 
Funcionalismo público e política local: contextualizando e discutindo
“mérito” e “competência”
gabriela De lima Cuervo ................................................................... 
Hipossuficiência: mapeamento dos sentidos da categoria no campo jurídico
brasileiro
luiz eDuarDo Figueira e regina lúCia teixeira menDes ............. 

ORGANIZADORES ..................................................................................... 

AUTORES .................................................................................................. 


Apresentação

Pensar (o) bem


A W 
L R C  O

E ste livro é produto de três anos de debates no grupo Sociologia e


Antropologia da Moral, primeiramente na forma de Seminário Temático,
posteriormente como Grupo de Trabalho, no âmbito dos encontros anuais
da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
(Anpocs). Tínhamos como objetivo nesses encontros estimular pesquisas
e discussões sobre as possibilidades de tomar a moral e a moralidade como
focos privilegiados de estudo pelas ciências sociais. Ao longo desse perío-
do, consolidou-se toda uma nova agenda de debates sobre como diferentes
dimensões da vida social podem ser lidas sob a ótica da questão da moral
ou de questões de ordem moral, no sentido amplo do termo, e de maneira
dissociada de perspectivas moralistas ou normativistas, orientadas por
parâmetros predefinidos sobre o dever ser.
Embora a moral sempre tenha sido um tema importante para a socio-
logia e para a antropologia ao longo da história dessas disciplinas, não tem
havido, no passado recente brasileiro, muitos esforços para a realização de
pesquisas empíricas nesta área, especialmente aquelas de caráter etnográfico
e/ou qualitativo, centradas na compreensão do fato moral como tal, no plano
fenomenológico, tendo como referência situações em que os atores se defron-
tam com os desafios propostos por uma vida cotidiana, ela própria moral.
Assim, se olhamos para a sociologia, seja nos clássicos consagrados
seja em autores mais contemporâneos, observamos movimentos como
aquele que entende a moral como aparato de formatação dos indivíduos e
a serviço das estruturas sociais, do poder, da dominação, seja essa leitura
morfológica, como em Émile Durkheim, Norbert Elias ou no estruturalis-
mo, seja crítica, como na perspectiva marxista, ou no pós-estruturalismo
de um Michel Foucault ou um Pierre Bourdieu. Ou outro movimento, que
compreende a moral como aparato relacional, imiscuído nas práticas e
constitutivo de uma leitura de cada indivíduo sobre o outro, como em
George Simmel ou Gabriel Tarde. Ou, ainda, em um movimento mais pró-
ximo daquele buscado por nosso grupo, uma perspectiva que compreende
a moral como elemento de preenchimento lógico das próprias ações ou
situações sociais, como na Verstehenden (sociologia compreensiva) de Weber
ou no interacionismo ou situacionismo pragmáticos de George Herbert
Mead e seus seguidores, notadamente na chamada Escola de Chicago, ou
nas perspectivas fenomenológicas posteriores ao turning point linguístico,
como em Alfred Schütz, na etnometodologia ou na obra de C. Wright
Mills. Além disso, e de forma bastante independente de abordagens li-
gadas ao interesse e à decisão racional e de um renovado movimento (em
especial nos EUA) em associar a moral à biologia, em especial à genética,
perspectivas contemporâneas têm mostrado grande interesse na moral
como elemento central da vida social na construção de grandes teorias da
modernidade, com privilégio para, de um lado, a Teoria (mais filosófica do
que propriamente sociológica, mas amplamente aceita como tal) da Ação
Comunicativa, de Habermas, e seus desdobramentos na discussão sobre
o reconhecimento em Axel Honneth, e, de outro lado, a chamada Socio-
logia Pragmatista (da crítica), de Luc Boltanski e Laurent Thévenot, com
sua discussão sobre as competências, em especial as críticas, dos atores
sociais e na construção das justificações como elemento privilegiado da
sociedade moderna.
Do lado da antropologia social, que em alguma medida não deixa de
inspirar-se nos mesmos clássicos, os estudos sobre organização social
sempre privilegiaram a apreensão das regras ou das normas vigentes em
cada sociedade e, a partir de Malinowski, o fizeram com base em material
colhido no campo, em pesquisas de caráter etnográfico, nas quais o pes-
quisador convive com a sociedade ou grupo estudado durante períodos
significativos de tempo. Entretanto, a perspectiva dominante sempre

 · Pensar (o) bem


enfatizou uma atitude descritiva, pouco afeita à análise (crítica ou não) das
justificativas apresentadas pelos sujeitos da pesquisa. Uma exceção signifi-
cativa no universo dos clássicos seria a contribuição de Marcel Mauss, que
soube cultivar o olhar etnográfico, mesmo sem fazer trabalho de campo, e
nunca deixou de manter uma orientação crítica na compreensão do ponto
de vista dos nativos – para usar uma expressão corrente na disciplina –,
assim como na análise das instituições de sua própria sociedade. E ainda
que Mauss seja um autor influente na antropologia brasileira, cuja tradição
sempre cultivou orientações críticas de diferentes matizes, aqui também
são raros, como na sociologia, os estudos sobre moral preocupados com
a análise das justificativas ou dos esforços de fundamentação dos atores
ao acionar normas e valores que orientam a ação.
Desse modo, os trabalhos apresentados nas sessões que coordenamos
nesses últimos anos de encontros da Anpocs, em sintonia com nossa
proposta por uma antropologia ou sociologia da moral e das moralidades,
mantiveram a ênfase na compreensão de material empírico e na discus-
são de suas implicações, conservando ao mesmo tempo uma distância
saudável de movimentos em direção a uma disciplina moral. Da mesma
forma, também procuramos evitar abordagens meramente descritivas,
conformadas por um relativismo acrítico, que privilegiem a perspectiva
do observador externo, e que não se engajem no esforço de compreensão
das justificativas dos atores, prestações de conta essas que operam para
conferir sentido a suas práticas e sustentação a suas pretensões de legi-
timidade e efetividade.
No que concerne à temática mais ampla do seminário, procurou-se
contemplar tanto pesquisas voltadas para a compreensão das ideias de
correção normativa e noções de justiça – que caracterizam o liberalismo
político ou o republicanismo – como aquelas que privilegiam o estudo dos
ideais do bem viver ou da “vida boa”, cultivadas na contemporaneidade
por abordagens identificadas como comunitaristas, e preocupadas com
questões de solidariedade ou com o caráter local dos valores. Interroga-
ções analíticas em torno de como atores individuais e coletivos diversos
concreta e diariamente configuram princípios avaliativos e a compreensão
de seus sentidos e efeitos na produção da vida social foram sistematica-
mente discutidos.
Assim, procuramos dar conta de uma série ampla de pesquisas, privi-
legiando formas de ultrapassar a dicotomia entre abordagens preocupadas

Alexandre Werneck e Luís Roberto Cardoso de Oliveira · 


com o correto ou justo, de um lado, e aquelas preocupadas com o bom, de
outro. Na mesma direção, os trabalhos apresentados puderam explorar
e refletir sobre situações nas quais os atores confrontaram moralidades
distintas, ou nas quais se engajaram em conflitos que ressaltaram visões
diversas sobre as dimensões normativa e valorativa da eticidade. Além
disso, foram igualmente bem-vindos trabalhos que analisaram modos e
práticas de engajamento moral e seus fundamentos e repercussões, bem
como os dilemas e possíveis tensões implicadas na sua constituição nos
diversos âmbitos em que atuam, como políticas, movimentos sociais,
atuações profissionais, vida cotidiana, dimensão religiosa, esferas cria-
tivas etc.
E também nos empenhamos em colidir e colocar em diálogo perspec-
tivas preocupadas em “desnaturalizar” a moral ou o universo das morali-
dades, com ênfase no ponto de vista dos atores ou em sua orientação, mas
com abordagens igualmente críticas ao etnocentrismo e ao niilismo moral.
Tal preocupação teve repercussão tanto no plano teórico-conceitual de
nossas discussões, como em termos das agendas de pesquisa empírica e
de debates públicos, que permearam as apresentações abordando o en-
frentamento de dilemas morais. Esse foi o caso das contribuições sobre
temas polêmicos e de grande repercussão social, como aqueles voltados
para a discussão de políticas públicas que têm mobilizado o cidadão: se-
gurança pública, tratamento igualitário, universalização de direitos etc.
Os resultados obtidos demonstram que o universo de questões e a
diversidade de situações empíricas nas quais uma abordagem qualitativa,
etnográfica ou fenomenológica da moral iluminam nossa compreensão
da vida social são aparentemente inesgotáveis.

Os textos efetivamente aqui reunidos representam apenas uma par-


cela dos trabalhos apresentados nos encontros da Anpocs de 2010 a 2013
e foram selecionados com o objetivo de oferecer uma ideia da amplitude
de temas e situações abordados em nossas discussões. Os autores não
apenas aceitaram nosso desafio de empreender pesquisas individuais
sobre moral, nos termos indicados anteriormente, mas se engajaram no
esforço coletivo de contribuir para o desenvolvimento de abordagens ou
para a construção de modelos que permitam pensar a moral como objeto
das ciências sociais. A nosso ver, o resultado não poderia ter sido mais
produtivo: o experimento de dar ênfase à dimensão moral em campos

 · Pensar (o) bem


tão distintos quanto os que aqui aparecem permitiu enxergar pontos de
contato e possibilidades de saltos de abstração de riqueza inestimável.
Pois quatro são as principais frentes dessa abstração aqui represen-
tadas, em um vasto manancial de possibilidades sugerido por esta área
ainda tão recentemente renovada e por isso mesmo tão fértil.
A primeira delas, a seção “Debates”, constitui um corpo de reflexões
mais gerais e abstratas sobre a moral como objeto de pesquisa em ciências
sociais, promovidas por pesquisadores que ocuparam o lugar de debatedor
nas sessões do grupo. Dessa maneira, embora estejam sempre assentados
nas pesquisas empíricas de seus autores, esses textos também são produto
da observação dos trabalhos dos colegas e das tentativas de traçar sínteses
e pontos de contato – em diálogo justamente com aqueles seus trabalhos.
Assim, enquanto Luís Roberto Cardoso de Oliveira demonstra, por meio
de uma discussão sobre a relação entre a filosofia e a antropologia, o papel
central da necessidade de compreensão das condições de inteligibilidade
das práticas dos atores, promovendo uma discussão sobre como observar
o outro – seja do ponto de vista analítico, seja do ponto de vista nativo
–, sempre remete para uma filosofização do olhar. Alexandre Werneck
propõe uma leitura sociológica da moral centrada em sua compreensão
não como sistema de limitações e sim como substância mesma das po-
tencializações da agência social, mostrando como, no final das contas,
a sociologia da moral é uma sociologia da agência. No primeiro caso,
Cardoso de Oliveira chama atenção ainda para a centralidade da noção
de dignidade na compreensão das pretensões de correção normativa dos
atores envolvidos em conflitos nos quais a qualidade da relação entre as
partes ganha o primeiro plano. No outro, Werneck aponta para a criati-
vidade como elemento chave de uma vida social na qual os atores sociais
se observam, julgam e valoram mutuamente o tempo todo.
Da mesma maneira, vemos, no plano da antropologia, Patrice Schuch
explorar ao mesmo tempo as possibilidades de feitura de uma análise da
moral/das moralidades pela antropologia – isto é, em seus moldes espe-
cíficos, sobretudo a partir da etnografia e da comparação – e as possibi-
lidades abertas por essa análise para a própria antropologia, e Gabriel D.
Noel mergulha em formas como inventariar possibilidades de desenho de
quadros de referência morais no plano da disciplina. A primeira, subli-
nhando o caráter analítico e não moralista de uma disciplina como essa,
tudo isso animado por seu valioso trabalho a respeito das tecnologias

Alexandre Werneck e Luís Roberto Cardoso de Oliveira · 


morais de governo dos atores, em especial a partir da observação de si-
tuações envolvendo adolescentes em conflito com a lei. O segundo, por
meio de uma crítica a imagens tradicionais como “cultura” e “código” e
propondo se aproximar mais de termos como “repertório”.
E, no plano da sociologia, de uma forma mais próxima da constru-
ção de memoriais, cada um a sua maneira, Leonardo Sá e Jussara Freire
constroem leituras particulares de como se aproximar da moral sociolo-
gicamente. Ele, reconstituindo a maneira como o tema da moral tomou
forma em seu percurso de pesquisa, centrado incialmente nas questões
da violência e da segurança pública, e como o recurso a ferramentas como
competência, dispositivo ou regimes morais abriu novas portas de interpre-
tação de pesquisa, ao mesmo tempo que o contato com formas de reflexão
próprias da sociologia da moral – notadamente o recurso à compreensão
de como os atores constroem suas gramáticas de moralidade – ilumina
os estudos sobre conflitos sociais. E ela descrevendo como seu percurso,
centrado na descrição dos processos de construção dos problemas públicos
nas cidades do estado do Rio de Janeiro, permitiu uma bricolagem, um
mix de abordagens sociológicas – notadamente de inclinação pragmática
– que pretendem dar conta do acesso ao espaço público por meio de re-
cortes analíticos não universalizáveis, mas processuais e compreensivos.
A saber, a sociologia dos problemas públicos de Gusfield, o “situacionismo
metodológico” e o modelo pragmatista de Bolstanski e Thévenot.
A segunda parte do livro, “Gramáticas, sentidos e dispositivos mo-
rais”, diz respeito a estudos que dão conta dos processos de construção
de moralidades, isto é, da lógica particular segundo a qual se constroem
línguas morais e gramáticas de moralidade associadas a variadas formas
de recorte do mundo, explorando justamente a sistematização dessa gra-
maticalidade e sua torção sobre as faculdades e capacidades cognitivas
dos atores. Assim, vemos Heloisa Buarque de Almeida promover, por
meio da observação de episódios do seriado de TV brasileiro Malu mulher,
popular na virada da década de 1970 para a de 1980, uma reflexão sobre
as construções de gênero nessa produção televisiva, como manifestação
cultural e artística de grande repercussão em nossa sociedade. A autora
mostra como, em suas próprias palavras, “Malu faz parte de um movi-
mento de mudança de construções simbólicas sobre o feminino na TV
brasileira, descolando-se de ‘heroínas’ melodramáticas mais tradicio-
nais, e buscando constituir imagens de uma mulher relativamente mais

 · Pensar (o) bem


‘moderna’ e menos submissa”. Ao mesmo tempo, observamos como
John Comerford analisa os diversos repertórios morais que desenham
o cotidiano dos residentes e trabalhadores do Alto Parnaíba, em Minas
Gerais, para mostrar como a transformação da região, iniciada na década
de 1970 com o projeto de incentivo do governo à agricultura moderna, e,
por conseguinte, a chegada de novos atores sociais levaram a um rear-
ranjo na sociabilidade local. Ao se debruçar sobre as moralidades que
atravessam as interações e relações sociais na região, ele constrói pares
contrastantes de categorias nativas utilizadas nas apresentações morais
de si, das famílias e nos julgamentos morais, especialmente entre pes-
soas de classes, ocupações e origens geográficas diferentes – como os
“mineiros” e os “paranaenses” –, gramáticas que refletem relações de
trabalho e de poder.
Por outro lado, a outra dimensão dessa discussão se encontra na ma-
neira como as gramáticas morais dialogam, emulam e até assumem o
papel de subculturas e/ou de procedimentos ritualizados e/ou imiscuí-
dos na rotina. Nessa chave, o trabalho dos pesquisadores Kelson Gérison
Oliveira Chaves e Marcos Alexandre de Souza Queiroz é revelador. Eles
tratam de uma prática religiosa ou mágica enormemente recorrente, os
chamados trabalhos de amor, praticados nos terreiros de umbanda vi-
sando à conquista da pessoa amada e objetivos relacionados. A partir de
uma longa etnografia em terreiros de Limoeiro do Norte, no interior do
Ceará, os autores descrevem como variadas concepções de moralidade,
seus conflitos e polêmicas permeiam essa experiência, considerando uma
complexa rede de significados da ideia de bem e de seu direcionamento –
como, por exemplo, na avaliação sobre o que é o bem do outro, o “amado”,
que é objeto do trabalho. Práticas deste tipo defrontam-se sempre com
dilemas de ordem moral, entre a capacidade de encantar para persuadir
e iluminar o interlocutor, de um lado, e o esforço de encantar para inibir
a crítica e/ou a avaliação de alternativas, impedindo a autorreflexão e a
autonomia do interlocutor, de outro.
Igualmente, Priscila Gomes de Azevedo faz uma alentada etnografia
das formas morais e costumeiras por meio das quais as pessoas da Zona da
Mata Mineira reconhecem filhos de criação – que se inserem nas famílias
como filhos de tratamento distinto dos “de sangue” e desempenham um
papel como trabalhadores domésticos para os pais, atividade identificada
por eles como “missão” – e estabelecem o imaginário dos princípios e

Alexandre Werneck e Luís Roberto Cardoso de Oliveira · 


regras de um código que lhes desenha o perfil da própria identidade e a
gramática dos relacionamentos com a família e com a comunidade. Sua
contribuição sugere reflexões interessantes sobre em que medida essa
duplicidade de formas de tratamento não implicaria uma desvaloriza-
ção da identidade dos filhos de criação e, portanto, uma negação de sua
dignidade. Como essa diferença é vivida pelos atores? Até que ponto as
justificativas apresentadas encontram respaldo nas normas vigentes e
permitem uma afirmação positiva ou o resgate da identidade dos filhos
de criação?
E, talvez na contramão desse estabelecimento da rotina, práticas
de uma rotina em transição também se prestam à mesma compreensão.
Laura Moutinho, por exemplo, coloca em perspectiva os novos regimes
de verdade autorizadores de sujeitos e identidades na África do Sul pós-
-apartheid, a partir de um acompanhamento das narrativas de três jovens
mulheres de diferentes raças e origens sociais do país, no contexto em que
ideias como forgiveness e national solidarity tornaram-se palavras-chave.
Em sua narrativa, o feminino se articula com novos marcadores sociais
da diferença em novas hierarquias de poder, gênero, raça e religião, e com
as várias dimensões do reconhecimento – tema também explorado, aliás,
por Cardoso de Oliveira em seu texto.
E por fim, ainda no plano de uma lógica dos sentidos, os estudos sobre
dispositivos morais, isto é, aparatos mobilizáveis pelos atores justamente
para a construção, operacionalização e efetivo uso de suas morais, surgem
com contribuições como a de Marta Cioccari, que analisa a honra, ou
Pedro Paulo de Oliveira, que se dedica ao estudo da fofoca.
Cioccari aborda a maneira como a ideia de honra é construída pelos
atores sociais a partir da distinção entre duas dimensões, assim como
operada por trabalhadores de minas de carvão: a partir de etnografia
realizada em Minas do Leão, no Rio Grande do Sul, e em Creutzwald,
na Lorena Francesa, entre 2005 e 2010, ela trata da mobilização de uma
“grande” e de uma “pequena” honras. A primeira, voltada para as imagens
que figuram nas representações idealizadas do heroísmo mineiro; a outra,
correspondente aos diversos pertencimentos locais e a suas insurgên-
cias nas interações cotidianas, com suas tensões e conflitos internos. Tal
configuração sugere indagações do tipo: como a linguagem da honra, nas
duas dimensões apresentadas, contribui para a articulação de uma vida
digna e confere conteúdo moral às relações estabelecidas?

 · Pensar (o) bem


Já Oliveira, partindo da sociologia de Norbert Elias e de alguns pres-
supostos sociológicos de autores que trabalham com as noções de ludi-
cidade, tramas e narrativas sociais, promove uma análise extensa desse
dispositivo que opera como veículo moralizador, produtor e reprodutor de
valores hegemônicos, fundamental para a constituição de preconceitos,
estigmas e práticas de discriminação. A fofoca é apresentada como con-
dutora de narrativas da vida cotidiana, dotadas da peculiaridade de atuar
como “fala falada”, isto é, como profecia que se autorrealiza: ela participa
da constituição das ações, interações e relações sociais, assim como da
criação e desenvolvimento de sentido da vida humana.
O terceiro movimento – e, em consequência, a terceira parte do li-
vro – constitui uma dupla articulação de inversões lógicas: diz respeito
à necessidade de reconhecer o caráter da peculiaridade (nativa) de uma
determinada fenomenologia a fim de poder ser capaz de neutralizar (ana-
liticamente) essa mesma peculiaridade e dar conta de um estudo da moral
como objeto. Ora, é preciso reconhecer o peso adquirido no senso comum
e na moral consagrada socialmente pela negativização das ideias de cri-
me e violência, que do ponto de vista analítico seriam apenas atributos
e adjetivos atrelados a ações e a atores por outros atores. Portanto, seria
algo inegavelmente significativo na formação da lógica da vida cotidiana
das sociedades modernas. A análise do peso dessa negativização seria
importante para uma melhor compreensão da fenomenologia que por trás
dele se oculta. Assim, “Violência, crime, moralidades relativas”, mais do
que um conjunto de reflexões sobre a moralidade particular de recortes
como “mundo do crime” ou da “violência urbana”, coloca sobre a mesa
estudos em que essa dupla articulação é feita sem que nenhum polo de
conteúdo moral seja adotado na análise, a fim de compreender justamente
como aquela negativização é construída.
A começar pelo texto de Alba Zaluar, resultado de reflexões sobre
diversas etnografias e diálogos com pensadores da antropologia e da so-
ciologia do crime, da violência e de outras áreas feitos ao longo de sua
carreira. Buscando compreender a criminalidade violenta entre homens
jovens brasileiros sem reduzir a análise à teoria da estrutura de classes, a
pesquisadora nos leva até a década de 1970 para apresentar os contextos e
as formas assumidas pelo crime e pelo envolvimento desses jovens no que
ela chama de “crime-negócio” no Brasil até hoje. O trabalho atenta para a
importância de se considerar os significados múltiplos da criminalidade

Alexandre Werneck e Luís Roberto Cardoso de Oliveira · 


e lança luz sobre a globalização como um fator transformador de cultu-
ras e modos de sociabilidade. Partindo desse fenômeno, ela aposta que
a chave para viabilizar a aquisição por parte desses jovens vulneráveis
de “capital de personalidade” estaria no processo de “informalização”.
Assim, poderiam enfrentar os desafios da heterogeneidade cultural e os
conflitos intergeracionais.
Carolina Christoph Grillo faz uma análise das negociações de conflitos
mediadas por traficantes das favelas do Rio de Janeiro. Por meio de extensa
pesquisa etnográfica, realizada em áreas controladas pela facção do tráfico
de drogas intitulada Comando Vermelho, ela demonstra que a criminali-
dade e os arranjos locais de poder organizam-se antes por dispositivos de
moderação do uso da força do que por formas de sua deflagração. Assim,
como ilustrado por inúmeros exemplos retirados das experiências em
campo, relações de parentesco e amizade, avaliações sobre a trajetória
pessoal dos envolvidos nos conflitos e o conhecimento dos contextos são
fatores levados em conta na produção de verdade e juízo por esses atores,
assim como na aplicação ou não de punições.
Cesar Pinheiro Teixeira, por sua vez, parte da hipótese de que a
“violência urbana” é a representação de uma determinada ordem social,
proposta ao longo das últimas duas décadas por Luiz Antônio Machado
da Silva, para tentar compreender como são construídas as práticas e
moralidades que a constituem. Para tanto, ele analisa as representações
que se produzem e se reproduzem em torno da figura do “bandido”. Tei-
xeira mostra como três coletividades – Polícia (Civil e Militar), ONGs e
igrejas pentecostais – compreendem moralmente e desenvolvem soluções
para o “problema do bandido” operando com base em uma compreensão
nativa do que tem sido descrito analiticamente por Michel Misse como
“sujeição criminal”. Seu trabalho chama atenção para o fato de que es-
sas coletividades constituem “regiões morais” – noção emprestada de
Robert Park – formadoras de uma complexa rede de relações sociais e de
expectativas morais que dão forma à experiência da “violência urbana”
e ao ordenamento social no Rio de Janeiro.
O linchamento nos é apresentado por Danielle Rodrigues de Oliveira
como “cena” composta por personagens cujas ações ela se propõe a inter-
pretar. Essa prática dotada de visualidade e dramaturgia próprias, bem
como as técnicas operadas contra os linchados e o comportamento dos

 · Pensar (o) bem


envolvidos – chamadas por Danielle de “práticas ritualísticas do lincha-
mento” – são minuciosamente analisadas pela pesquisadora, que faz uma
etnografia de vídeos amadores desses episódios difundidos pela internet
para pensar a moralidade das massas, a reificação de morais – neste caso,
as dos grupos que participam de linchamentos –, “acusação”, “incrimi-
nação” e “punição” no “processo de construção da indiscutibilidade da
negatividade moral do ato” de linchar.
Por fim, Ludmila Ribeiro promove uma densa investigação da forma
como é construída ao longo do tempo a categoria “policiamento comu-
nitário” pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, ao analisar como essa ex-
pressão e seu campo semântico são mobilizados como justificativas para
ações da PM nos boletins internos da corporação, documentação que,
circulando entre os agentes da mesma, serve como forma de difusão de
seu repertório.
Já na quarta parte do livro, “Direitos, política e vida pública”, é ata-
cada a questão de como as capacidades morais individuais alcançam a
generalidade de uma ordem social moderna atravessada pela formação de
arenas de discussão de direitos e deveres – isto é, formando uma política
da moral (a alimentar as morais da política). Fenômenos como a venda de
votos (no trabalho de César Barreira e Irlys Barreira), o aproveitamento de
cargos públicos para fins privados (com Gabriela de Lima Cuervo) se jun-
tam à maneira como direitos são reivindicados e negociados, seja no plano
da luta por reconhecimento de direitos por vias especiais (como mostra
Fábio Reis Mota), seja no plano da busca de direitos na Justiça (como no
trabalho de Luiz Eduardo Figueira e Regina Lúcia Teixera Mendes), ou,
ainda, na própria construção de uma esfera de discussão na vida pública
(como analisa Jussara Freire).
Barreira e Barreira se debruçam sobre a rede de significados que a
ideia de “ajuda” pode adquirir em um processo social intrincado como
o eleitoral. Para tanto, eles analisam os sentidos de pertencimento, re-
conhecimento e avaliações morais que emergem em uma situação de
concorrência de candidatos à Câmara Municipal de Aquiraz, municí-
pio praiano na Costa Leste do Ceará, durante o pleito eleitoral de 2008.
Trata-se de registrar a existência de uma economia simbólica formada de
práticas e percepções que influenciam a adesão a candidatos, construída
mais no campo das dádivas que no âmbito do direito.

Alexandre Werneck e Luís Roberto Cardoso de Oliveira · 


Mota discute o modo como os agentes sociais se apropriam de deter-
minadas categorias identitárias e promovem operações críticas para terem
acesso à aquisição de bens simbólicos na Justiça. Compara as gramáticas
políticas da França e do Brasil a partir, respectivamente, dos antilhanos
e das populações tradicionais e quilombolas, para compreender de que
modo esses atores fazem uso de dispositivos morais e políticos, e dos
diversos “regimes de engajamento” – para usar os termos de Laurent
Thévenot – à sua disposição para orientar suas condutas e modos de agir
na luta contra a discriminação, assim como pela garantia de direitos.
O autor mostra que se, por um lado, o paradoxo francês está assentado
numa concepção igualitária (“republicana”), de outro, o paradoxo bra-
sileiro ressalta a desigualdade e afirmação das diferenças na obtenção de
reconhecimento.
Gabriela Cuervo enriquece o debate sobre direitos, política e vida pú-
blica ao apresentar o quadro do funcionalismo público de Magé, cidade da
Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Sua experiência como servidora
pública municipal por cinco meses confere a seu trabalho um olhar “de
dentro” que privilegia a análise da práxis e do discurso dos diversos atores
envolvidos nessa teia política. O interesse da pesquisadora recai sobre a
construção das diversas moralidades e da operacionalização de conceitos
modernos no cotidiano da ocupação e exercício de cargos no funciona-
lismo municipal, conceitos como igualdade e desigualdade, cidadania,
justiça e, sobretudo, mérito. Dessa forma, ela busca compreender como
dispositivos jurídicos e simbólicos são mobilizados nas relações políticas.
E, em outro contexto, Figueira e Mendes levam a discussão acerca dos
direitos, da política e da vida pública para o campo do Direito do Trabalho.
Apresentam resultados de pesquisa própria e de autores expoentes do
campo na América Latina e analisam os discursos de atores judiciários,
de manuais do Direito do Trabalho e da legislação trabalhista brasileira
vigente para pensar sobre a categoria “hipossuficiência”, adotada pelo
texto como norteadora do debate sobre a forma peculiar de atualização
do princípio de igualdade formal pelo mundo jurídico brasileiro: a “hi-
possuficiência” aparece para os autores como um discurso justificador
da necessidade de proteção ao trabalhador de modo a compensar as de-
sigualdades econômica e social.

 · Pensar (o) bem


Debates
Sociologia da moral,
agência social e criatividade1

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O objetivo deste texto é explorar uma perspectiva sobre a moral


segundo a qual ela seja percebida como conjunto de formas de tornar
possíveis as ações e situações da/na vida social. O ponto de partida aqui é
a recusa de uma leitura mais ou menos “tradicional” – e de senso comum
– da moral como aparato limitador das ações indesejadas (consideradas
“imorais”) e a aceitação de sua descrição como gramática, isto é, como
quadro de referência generativo para as competências/efetividades dos
atores. Por esse ponto de vista, a vida social passa a ser entendida como
algo que não pode não ser atravessado por mútuas valoração, avaliação
e prestação de contas, o que confere à moral o status não de instância
ditatorial e sim de recurso basal.2 Para tanto, discuto a relação entre

1 Uma versão anterior deste texto foi publicada como WERNECK, Alexandre. “Socio-
logia da moral como sociologia da agência.” Revista Brasileira de Sociologia da Emoção,
vol.12, n.36, 2013, pp.704-718. Agradeço às amigas Jussara Freire e Patrice Schuch pe-
los comentários àquela versão que contribuíram para a geração desta.
2 Uma boa analogia para dar conta desse enquadramento está em pensar inversamente
o motto de Roman Jákobson – reiterado por BARTHES, Roland. Aula: Aula inaugural da
cadeira de semiologia literária do Colégio de França. São Paulo: Cultrix, 1980 – de que a
língua é fascista, não porque impeça de dizer coisas, mas porque obriga a dizer coi-
sas. Ora, uma outra forma de encarar essa mesma lógica é pensar que, se não é possí-
vel dizer nada fora da linguagem, esta não precisa ser vista como fascista, mas como
libertadora: é apenas ela que permite dizer; ela é nosso único recurso. Bem, pois se
entendemos a vida social como uma instância na qual inevitavelmente observamos
as construções morais dos atores sociais, sua generatividade – isto é,
sua potencialidade criativa/produtiva – e a ideia de agência (descrita
pragmaticamente como actância), uma capacidade de qualquer ser para
determinar as situações em que esteja inserido. Pretendo demonstrar,
então, que uma sociologia da moral é inevitavelmente uma sociologia da
agência e da criatividade sociais.
É praticamente desnecessário apontar a importância da agência para
a sociologia: é simplesmente a mais clássica das questões sociológicas. De
fato, aparece como ponto central em todos os clássicos – mesmo quan-
do surge como questão recusada – e serviu de ponto de apoio para vá-
rios movimentos pendulares (entre o polo do agente e o da estrutura) de
construção de diversos modelos posteriores, definidos justamente pela
posição nesse debate. Além disso, não deixa de ser a base de uma série
de enquadramentos que, desde o final do século XIX e ao longo do sé-
culo XX, se propuseram especialmente a ultrapassar essa dicotomia.3 Da
mesma maneira, apontar a importância e os desdobramentos da questão
da moral na sociologia é tão desnecessário quanto por demais extenso
para os objetivos deste texto.4 Nem mesmo seria preciso lembrar que ela
também alimentou a observação e a imaginação de cada um dos grandes
clássicos e que serviu de elemento-chave para quase todo modelo que a
eles se seguiu. Mas gostaria de retomar aqui rapidamente a validade dessas
duas temáticas para, associando-as respectivamente a duas tradições,
também interligadas, apontar a forma peculiar como elas estão articuladas

e julgamos (valoramos) uns aos outros, ou seja, uma instância o tempo todo moral,
a moral se torna também não nosso limitador, mas a arte mesma de viver essa vida,
nosso ferramental basal de interação/relação.
3 Entre os quais podemos destacar os interacionismos europeu (Simmel) e america-
no (de linhagem pós-Mead), como os mais clássicos, além do (pós-)estruturalismo
construtivista de Bourdieu; o figuracionismo de Norbert Elias; a Teoria da Estruturação
de Anthony Giddens; e, mais recentemente, a morfogenética de Margareth Archer.
Evidentemente, os modelos situacionistas metodológicos também ultrapassam essa
dicotomia. Mas, como demonstrarei aqui, o modelo pragmatista oferece um elemento
a mais para a equação, a possibilidade de considerar que, embora a dicotomia possa
não ser a coisa mais relevante analiticamente, ela pode sê-lo para os atores e pode ser
considerada em termos de sua actância, isto é, dispositivamente.
4 Para um resumo bastante completo, ver ABEND, Gabriel. “What’s New and What’s
Old about the New Sociology of Morality.” In: Hitlin, Steven; Vaisey, Stephen (orgs.).
Handbook of the Sociology of Morality. Nova York: Springer, pp.561-582.

 · Sociologia da moral, agência social e criatividade


e demonstrar como essa articulação é extremamente reveladora para a
análise do papel da moral na vida social.
A primeira tradição, pelo lado da agência, é o “situacionismo me-
todológico”,5 iniciado pelo pragmatismo filosófico de Charles S. Peirce,
William James e, na análise do social, em George Herbert Mead e Wil-
liam I. Thomas – este, autor da máxima de que “se os homens definem
as situações como reais, elas são reais em suas consequências”6 –, conti-
nuando com seus seguidores – em especial na Escola de Chicago – e que
ultrapassa a dicotomia agente-estrutura com a eleição de uma unidade
analítica diferente da origem decisória das ações; a saber, a situação. Para
essa linhagem, a sociologia é sociologia da agência dos atores.
A outra tradição, pelo lado da moral, é fundada por Max Weber, com
sua abordagem compreensiva, centrada no deslocamento dos valores para
a posição de unidade analítica. Como se sabe, Weber,7 ao considerar que
todo ser humano possui valores e que os usar para se aproximar do mundo
é inevitável, mesmo para um cientista, questiona-se como tornar possível
a objetividade (a possibilidade de analisar os fenômenos sociais de forma
científica isenta de julgamentos morais) e sugere como solução a criação
de um novo valor e sua promoção à posição de valor superior, de modo a
tirar proveito da faculdade valorativa dos homens em favor da própria ob-
jetividade. Esse valor é a compreensão, segundo a qual a análise considerará
exatamente os valores como objeto, tornando a análise o mapeamento

5 CICOUREL, Aaron V. Method and Measurement in Sociology. Nova York: The Free Press,
1964; KNORR-CETINA, Karin. “The Micro-Sociological Change of the Macro-Socio-
logy: Towards a Reconstruction of Social Theory and Methodology.” In: Knorr-Cetina,
Karin; Cicourel, Aaron V. (orgs.). Toward an Integration of Micro- and Macro- Sociologies.
Boston e Londres: Routledge/Keegan Paul, 1981; COLLINS, Randall. “Micro-transla-
tion as a Theory-building Strategy.” In: Knorr-Cetina, Karin; Cicourel, Aaron (orgs.).
Advances in Social Theory and Methodology: Towards an Integration of Micro- and Macro-
-Sociologies. Londres: Routledge/Kegan Paul, 1981, pp.81-108; JOSEPH, Isaac. Erving
Goffman e a microssociologia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.
6 THOMAS, William I.; Thomas, Dorothy Swaine. The Child In America: Behavior Pro-
blems And Programs. Nova York: A. A. Knopf, 1938 [1928].
7 WEBER, Max. “A ‘objetividade’ do conhecimento na ciência social e na ciência polí-
tica.” In: Metodologia das ciências sociais. São Paulo: Cortez, 2001 [1904]; WEBER, Max.
Economia e sociedade, vol.1. Brasília: Editora UnB, 1994 [1910].

Alexandre Werneck · 
de conteúdos que conferem sentido às ações sociais.8 Podemos dizer que,
para Weber, a sociologia é sociologia da moral.
Essas duas vertentes, entrecruzadas em vários pontos, alimentam
uma outra, situacionista e compreensiva, e merecedora do título de arca-
bouço da sociologia da moral, passando pelo trabalho de C. Wright Mills
(especialmente dedicado à associação entre Weber e o pragmatismo),9
pela sociologia fenomenológica de Alfred Schütz, a etnometodologia de
Harold Garfinkel e o novo pragmatismo francês de Michel Callon e Bruno
Latour e Luc Boltanski e Laurent Thévenot, além de seus colegas e se-
guidores.10 E, embora cada um tivesse uma visão particular, todos esses
modelos tomam como pressuposto a afirmação dos atores sociais como – a
expressão de Garfinkel11 é a síntese mais feliz – “agentes competentes”. O
ponto central a unir todos esses enquadramentos é que a agência, neles, é
construída, antes de mais nada, como agência moral: o livre-arbítrio que
os atores possuem é para julgar.
E, já que falamos em agência competente, podemos dizer que essa agên-
cia moral adquire a forma de um operador lógico, a competência – que
ganhará variados nomes em diferentes modelos. Esse operador se distende
entre dois sentidos, como dado cognitivo e como forma operativa. O pri-
meiro significado é aquele que pode ser sintetizado pela etnometodologia:
a partir de uma afirmação que se tornou célebre, praticamente seu car-
tão de visitas, Harold Garfinkel faz uma crítica severa à ideia de que os
atores sociais são determinados por uma estrutura: “Não somos dopados

8 Para uma boa exploração dos limites lógicos dessa operação – que acaba por ratificá-
-la, considerando sua extrema criatividade e efetividade, ver BRUBAKER, Rogers. The
Limits of Rationality: An Essay on the Social and Moral Thought of Max Weber. Londres/
Nova York: Routledge, 1984.
9 Ver WRIGHT MILLS, Charles. “Situated Actions and Vocabularies of Motive.” Ame-
rican Sociological Review, vol.5, n.6, 1940, pp.904-913. Além do artigo, baseado na
problemática dos motivos de Weber, aproximando sua leitura da do pragmatismo, ele
(com H. H. Gerth) ainda organizou e fez a primeira tradução do clássico alemão nos
EUA, em 1946. Sobre a relação direta do americano com o pragmatismo, que foi in-
clusive tema de seu PhD, ver WRIGHT MILLS, Charles. Sociology and Pragmatism: The
Higher Learning in America. Nova York: Galaxy, 1966.
10 Além deles, cabe registrar ainda a contribuição de Isaac Joseph (e, depois dele, Da-
niel Cefaï), mais ligado ao pragmatismo americano original de James, Mead e John De-
wey, e cujo trabalho igualmente municia a sociologia da moral.
11 GARFINKEL, Harold. Studies in Ethnometodology. Englewood Cliffs: The Free Press,
1967.

 · Sociologia da moral, agência social e criatividade


culturais.”12 A abordagem etnometodológica propõe que os atores sociais
podem, como vimos, ser entendidos como “agentes competentes”, ou seja,
como seres dotados de capacidade de julgamento das ações.13 As deles e
as dos outros. Segundo ele,14 “membros de um arranjo organizado estão
constantemente engajados em ter que decidir, reconhecer, persuadir ou
tornar evidente o caráter racional, isto é, coerente, ou consistente, ou
escolhido, ou planejado, ou efetivo, ou metódico, ou informado, de ati-
vidades e de seus questionamentos”. Isso volta a análise sociológica para
a ideia de que, competentes, os atores sociais “cobram” lógica, coerência,
alguma forma de racionalidade, das ações uns dos outros. Diferentemente,
então, das teorias segundo as quais as pessoas têm suas ações moldadas
por determinantes da estrutura social, a etnometodologia nos considera
como indivíduos capazes de observar as ações uns dos outros e as avaliar,
desenhando uma vida social composta por uma fenomenologia de ações
e situações mútua e constantemente em questão. A competência, então,
aqui, é uma informação sobre a forma como cada um de nós se constitui
como ente social, a partir de uma capacidade de olhar para os lados e,
enxergando-se, enxergar os outros, sem com isso ser guiado por alguma
força externa determinante.
A outra forma é aquela que pode ser sintetizada pelo modelo da eco-
nomia das grandezas (économies de la grandeur, EG) proposto por Boltanski
e Thévenot nos anos 1980. Construído a partir de uma crítica à abordagem
de Pierre Bourdieu, que para eles negligenciaria as potencialidades dos
atores para criticar e, com isso, opondo-se à dominação, o quadro por
eles proposto constrói a afirmação da agência por meio das cores de uma
“capacidade crítica”,15 construindo uma passagem da sociologia crítica

12 GARFINKEL, Harold. “A Conception of, and Experiments with ‘Trust’ as a Condi-


tion of Stable Concerted Actions.” In: Harvey, O. J. (org.). Motivation and Social Interac-
tion. Nova York: Ronald Press, 1963, pp.187-238.
13 Para a influência de Schütz sobre a etnometodologia, ver WERNECK, Alexandre.
A desculpa: As circunstâncias e a moral das relações sociais. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2012, pp.77-81) e HERITAGE, John C. “Etnometodologia.” In: Giddens, An-
thony; Turner, Jonathan. Teoria social hoje. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
14 GARFINKEL, 1967, pp.32-33.
15 BOLTANSKI, Luc; Thévenot, Laurent. “Finding One’s Way in Social Space: A Study
Based on Games.” Social Science Information, vol.22, n.4-5, 1983, pp.631-679; .
“The Sociology of Critical Capacity.” European Journal of Social Theory, vol.2, n.3, 1999,
pp.359-377.

Alexandre Werneck · 
(bourdieusiana) para uma sociologia da crítica.16 Essa capacidade, que
assume a forma de informação antropológica que a competência assumia
em Garfinkel, é aqui acessada por um tipo mecanístico de competência:
inspirados na linguística generativa de Noam Chomsky, por meio da re-
leitura da mesma pela antropologia da ciência de Latour,17 eles entendem
competência como uma faculdade apresentada pelos atores para a de-
senvoltura em uma determinada lógica de ação; ou, como preferem eles
próprios,18 “uma capacidade de reconhecer a natureza de uma situação
e de pôr em ação o princípio (...) que a ela corresponde”. Ou ainda, como
tenho preferido apresentar, não como traço reconhecido como princípio
cognitivo nas pessoas, e sim como traço demonstrado nas próprias ações
localizadas, apontando para sua alocação em determinada gramática
actancial moral, com desenvoltura em regras que verificam critérios de
efetividade da ação. Em outras palavras, é o critério nela procurado quan-
do se verifica se ela pode ou não ser admitida.
Esses dois exemplos chamam a atenção para como a agência dos atores
ganha operacionalidade forte em enquadramentos situacionistas quando
se trata de falar da moral. Mas quero apontar aqui para outra dimensão
dessa agência. O objetivo deste texto, assim, é propor outro deslocamento
da clássica dicotomia agente-estrutura. Mais que isso, a ideia é pensar
como a sociologia da moral é conversora dessa dicotomia em uma verda-
deira mecânica, segundo a qual esses polos passam a ser não princípios
explicativos nem figuras reificáveis (como nas concepções que conside-
ram “sociedade” e “identidade” como coisas). Em vez disso, a proposta
deste trabalho é mostrar como esses polos podem ser entendidos como
dispositivos, mobilizáveis conforme as situações demandem dos atores
mais ou menos de um ou do outro.

16 BOLTANSKI, Luc. “Sociologie critique et sociologie de la critique.” Politix, vol.3,


n.10-11, 1990a, pp.124-134; —————. De la critique: Précis de sociologie de l’émancipation.
Paris: Gallimard, 2009.
17 LATOUR, Bruno; Woolgar, Steve. Laboratory Life: The Social Construction of Scientific
Facts. Nova York: Saze, 1979 ; LATOUR, Bruno. Pasteur, guerre contre les microobes. Pa-
ris, Nathan, 1985; —————. Ciência em ação: Como seguir cientistas e engenheiros sociedade
afora. São Paulo: Editora Unesp, 1997 [1987].
18 BOLTANSKI, Luc; Thévenot, Laurent. De la justification: Les économies de la grandeur.
Paris: Gallimard, 1991, p.183.

 · Sociologia da moral, agência social e criatividade


Sociologia da moral como economia dos dispositivos de
concentração de actância

A afirmação, então, é a seguinte: se, tomados como modelos de descrição


e explicação da maneira como funciona a genética da vida social, agên-
cia do agente e agência da estrutura são realidades opostas mutuamente
anuláveis, elas podem, por outro lado, ser consideradas como representa-
ções que os próprios atores sociais – do lado de fora da análise – utilizam
para entender o mundo. E, como representações, visões de mundo que
habitam nossas cabeças, podem ser também abstrações de que podemos
lançar mão para efetivar19 nossas ações e/ou as situações em que estamos
inseridos. Porque, afinal, é perfeitamente cabível que se diga que se fez
algo, em um momento, porque algo mais forte que eu atuou sobre mim ou,
em outro momento, porque eu queria fazer e agi como eu bem entendia. Isso,
conforme seja melhor – isto é, dê mais certo – dizer um ou o outro. Isso
permite pensar esses princípios em outra condição, como aparatos de uma
caixa de ferramentas moral, isto é, como dispositivos morais.
O conceito de dispositivo tem despertado grande interesse na teoria
sociológica contemporânea, em especial aquela de cunho pragmatista,20
mais especialmente a partir dos trabalhos de Bruno Latour e Michel Cal-
lon com a teoria dos atores-rede, mas também na abordagem da EG e no
trabalho “pragmatista reflexivo” de Francis Chateauraynaud. Ao mesmo
tempo, o conceito passou, nos últimos tempos, em vários autores, por
grandes transformações, de uma perspectiva estrutural para uma inte-
racional e sobretudo situacional.21 Até mesmo em Foucault, para quem
dizia respeito a aparatos de concretização das estruturas abstratas de poder,
o conceito passou a dizer respeito a formas cada vez menos disciplinares
e passou a traduzir uma agência estratégica.22 Trata-se, então, de deixar

19 WERNECK, op.cit.
20 Para uma síntese desse interesse, ver PEETERS, Hugues; Charlier, Philippe. “Con-
tributions à une théorie du disposif.” Hermés, n.25, 1999.
21 Ver DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano, vol. 1: Artes de fazer. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2000; —————. A invenção do cotidiano, vol. 2: Morar, cozinhar. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1994. Thévenot, Laurent. “Le regime de familiarité: Des choses en personnes.”
Genèses, n.17, 1994, pp.72-101.
22 FOUCAULT, Michel. Dits et écris 1954-1988, Tome III: 1976-1979. Paris: Gallimard, 1994.

Alexandre Werneck · 
de lado uma abordagem baseada nas disposições, traços incorporados,
fixos e definidores dos atores sociais e que se tornam determinadores de
suas ações, privilegiando-se, em vez disso, o situacionismo metodo-
lógico e se falando em uma gestão da vida social por meio de aparatos
situacionalmente operados, como “coisas que funcionam”.23 No prag-
matismo, essa perspectiva se encontra ainda com a ideia de gramática,
que, como a de competência também oriunda da linguística generativa,
apresenta as lógicas contextuais não como normatividades inelutáveis,
regramentos prescritivos, mas como desafios, conjuntos de indicações
restritivas e/ou parcialmente prescritivas que levam os atores a agir es-
trategicamente. Nesse sentido, o dispositivo se torna uma coisa da qual se
pode lançar mão, algo que pode ser mobilizado para lidar com os desafios
gramaticais. É, então, algo que adquire um sentido centrado na agência
dos atores, indivíduos autônomos que fazem escolhas de direcionamento
das ações e da vida social como encontro de indivíduos dotados de agência
competente,24 sem configurar individualismo metodológico ou uma pri-
mazia do interesse. Agir no social, dessa maneira, passa a ser se deparar
com os desafios situacionais e lançar mão competentemente de coisas
do mundo para dar conta das ações/situações. Pois como são dimensões
da agência, da capacidade de decidir por si o curso da ação, aqueles dois
polos genéticos devem ser pensados como dispositivos de uma operação
específica, aquela segundo a qual se define e desenha uma metassituação
formal, de avaliação moral, segundo a qual se torna efetiva a tomada de
um caminho de determinação ou outro para efetivar outra situação, esta
do mundo, que esteja em questão. Eles passam, assim, a ser algo que po-
demos chamar de dispositivos de configuração da agência. Ou, melhor,
como quero construir agora, dispositivos de configuração da actância.
O conceito de actante, por sua vez, ocupa um espaço privilegiado no
modelo semiótico do linguista lituano Algirdas Greimas, em seu quadro
conceitual dedicado a analisar narrativas, a narratologia. Segundo ele, o
actante é aquele ou aquilo que pratica um ato e que faz diferença na nar-
rativa. Trata-se de um ente dotado de capacidade determinadora de suas

23 PEETERS; Charlier, op.cit.


24 SCHÜTZ, Alfred. “The Problem of Rationality in the Social World.” Economica,
vol.10, n.38, 1943, pp.130-149; GARFINKEL, op.cit., 1967; BOLTANSKI; Thévenot,
op.cit., 1983.

 · Sociologia da moral, agência social e criatividade


ações, influenciando as ações de outros. E esse ente pode ser de qualquer
natureza, uma pessoa, um animal, um objeto, uma ideia. Latour se utiliza
da ideia de Greimas no modelo dos atores-rede, a fim de construir logica-
mente a simetrização, inclusão de todos os entes contidos em uma situação
em um mesmo plano analítico, não os diferenciando em termos de agên-
cia, ou melhor, de actância (o que permitiu analisar os seres humanos e
os não humanos em um mesmo quadro). Por sua vez, em sua discussão
sobre a denúncia pública, Boltanski25 constrói uma forma abstrata para
dar conta das situações de denúncia, a forma caso (forme affaire), figura
situacional formal segundo a qual se dão disputas em torno da possibili-
dade de generalização de reivindicações e constituída como um sistema
actancial, com actantes definidos e, portanto, com o reconhecimento da
actância, a potencialidade não simplesmente de decisão a respeito do que
faz, mas sobretudo de influência no quadro situacional.
Essa opção pela situação como unidade analítica permite enxergar a
actância por uma geometria distinta daquela da pergunta sobre a origem
das ações. Com a situação, uma configuração de elementos, uma disposi-
ção de peças em um plano, estamos diante de outra pergunta: o que per-
mite que aquela configuração, posta como está, produza consequências,
isto é, se concretize socialmente? Essa pergunta faz retornar ao mesmo
tempo à máxima de Thomas e à questão-chave da sociologia weberiana,
a dos sentidos das ações: com a economia dos motivos conferindo sen-
tido típico-idealmente visado (como se a priori fossem), depreende-se
um modelo de análise em que o que está em questão é uma espécie de
aprovação dos outros para que uma ação possa se dar. Afinal, a própria
definição de ação social de Weber diz respeito à influência de/sobre os
outros. A situação induz uma versão desse questionamento aberta para
a multiplicidade de possibilidades gerada pela configuração de elemen-
tos – como se estivéssemos diante de um tabuleiro de jogo pronto a se
iniciar e cujas consequências é que o tornam “reais”. De modo que a
questão passa a ser não o que torna uma ação legítima, mas o que torna
uma situação, como tenho preferido chamar, efetiva,26 capaz de produzir

25 BOLTANSKI, Luc. L’amour et la justice comme compétences: Trois essais de sociologie de


l’action. Paris: Métailié, 1990b, pp.253-356.
26 WERNECK, op.cit.

Alexandre Werneck · 
efeitos, consequências. A situação, dessa maneira, é um setting ao mesmo
tempo do acontecimento, da experiência, da própria vida social em sua
fenomenologia, e da moral, do aparato de verificação pelos actantes da
efetividade – em termos de bem – do que acontece.
E essa avaliação de efetividade está diretamente ligada à actância, à
capacidade de influir e, nesse sentido, justamente de inseminar conse-
quências – actância e efetividade estão intimamente ligadas. O modelo
da EG é uma ótima demonstração disso: ao se centrar não em entes de-
finidos, mas sim em estados (potencialmente temporários) ocupados
pelos mesmos nas situações – definindo, por exemplo, não pessoas, mas
“estados-pessoas” – e ao reconhecer que os estados são experimentados
na prática pelos atores sociais como posições hierárquicas, o quadro define
as posições ocupadas pelos atores nas situações como grandezas e as si-
tuações efetivas como aquelas nas quais as grandezas são “justificadas”,27
isto é, que podem ser traduzidas em alguma forma ideal de bem comum.
Em um modelo centrado na efetividade, extensivamente, as grandezas
acabam por se provar como formas concentradas da actância, uma vez
que, quando efetivas, provam-se como elementos determinantes da con-
figuração situacional capaz de gerar efeitos, ter influência.
E uma vez que enxerguemos que é o bem o princípio substantivo de
efetivação e que – como já demonstrei em meu trabalho sobre o papel da
desculpa na vida social, no qual modelizo uma geometria pragmatista
de outro grau de abstração em relação ao modelo da EG28 – a questão
do julgamento moral é o direcionamento do bem (que, nesse sentido,
representa a própria grandeza), a sociologia da moral configura-se como
uma verdadeira economia dos recursos de mobilização de actância e a
efetivação, seu fenômeno-chave, sua microeconomia, já que seu mote é
justamente a administração de seu recurso escasso nominal – o bem – por
meio da operacionalização de dispositivos.

27 BOLTANSKI, Luc; Thévenot, Laurent, op.cit.


28 WERNECK, op.cit.

 · Sociologia da moral, agência social e criatividade


Accounts como os dispositivos privilegiados de uma vida
social mutuamente moralizada

A forma proposta por Boltanski e Thévenot como operador da legitima-


ção das situações, a justificação, é, mais classicamente, um account, um
“dispositivo linguístico empregado sempre que se sujeita uma ação a
uma indagação valorativa” ou uma “afirmação feita por um ator social
para explicar um comportamento imprevisto ou impróprio – seja esse
comportamento seu ou de outra pessoa, quer o motivo imediato para a
afirmação parta do próprio ator ou de alguém mais”, como propõem Scott
e Lyman.29 Essa definição é prontamente tributária da descrição inaugural
de John L. Austin30 para esse tipo de dispositivo, em sua discussão sobre
a desculpa, que forma com a justificação a galeria de tipos de accounts.
Esses dois tipos, justificação e desculpa, desenham uma vida social
marcada por aquela exigência de racionalidade contida nas tradições que
analisamos e, mais que isso, por uma perene operação de “cobrança” e
“prestação de contas” (account) de uns aos outros. Os accounts trilham um
caminho importante na sociologia americana desde Wright Mills, mas,
passando por Austin, e com Garfinkel e, em paralelo com o interacionismo
construcionista mais bem representado pela labeling theory,31 se tornariam
uma variável analítica das mais relevantes.
Pois bem, justificação e desculpa. Esses dois dispositivos linguagei-
ros32 são antes de tudo dispositivos de resposta a julgamentos morais,
surgem diante de críticas e/ou acusações. E se, como disse antes, toda

29 SCOTT, Marvin B.; Lyman, Stanford M. “Accounts.” Dilemas: Revista de Estudos de


Conflito e Controle Social, vol.1, n.2, 2008 [1968], p.140.
30 AUSTIN, John L. “A Plea for Excuses.” In: Philosophical Papers. Londres: Oxford
University Press, 1979 [1956-1957].
31 BECKER, Howard S. Outsiders: Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Za-
har, 2008 [1963]. Para uma apresentação sintética e uma discussão sobre o modelo,
ver WERNECK, Alexandre. “Teoria da rotulação.” In: Lima, Renato Sérgio de; Ratton,
José Luiz; Azevedo, Rodrigo Ghiringhelli de (orgs.). Crime, polícia e Justiça no Brasil. São
Paulo: Contexto/FBSP, 2014, pp.105-116.
32 Prefiro chamar esse tipo de dispositivo de linguageiro em vez de linguístico, como
alguns autores nomeiam – e como está, aliás, demarcado originalmente em Scott e
Lyman e na tradução brasileira de seu texto. Afinal, enquanto linguageiro é referente
à linguagem, uma substância, linguístico é referente à linguística, uma disciplina. E
não estamos aqui de posse de dispositivos de análise da linguagem (como seria, por

Alexandre Werneck · 
crítica ou acusação é uma afirmação de agência mal usada, uma suges-
tão de que o outro tinha controle sobre o que estava acontecendo, as
respostas a elas operam de forma reativa justamente a essa afirmação.
Se não, vejamos: segundo Scott e Lyman, justificações são accounts em
que “alguém aceita a responsabilidade pelo ato em questão, mas renega
a qualificação pejorativa associada a tal ato”;33 desculpas, por sua vez,
aqueles accounts em que “alguém admite que o ato em questão seja ruim,
errado ou inapropriado, mas nega ter plena responsabilidade sobre ele”.34
Assim, na justificação, o ator diz: eu sabia exatamente o que estava fazen-
do, eu era o actante de actância efetiva, e justamente por isso o que eu fiz
estava certo; na desculpa, ele diz: o que fiz foi errado, mas eu não sabia o
que estava fazendo, não tive actância efetiva, porque outra coisa/pessoa
a teve e, por isso, foi mais forte que eu para determinar o desenrolar da
situação. Nesses dois casos, o que temos em mente é uma volta ao pas-
sado, a fim de reescrever o que aconteceu de maneira diferente daquela
descrita pelo crítico/acusador. E essa reescrita é exatamente baseada em
uma “correção” no item referente ao controle sobre o curso dos eventos:
eu tinha controle sobre minhas ações e você estava errado em narrar a situação
me apontando como errado ou eu não tinha controle sobre minhas ações e você
estava errado em narrar a situação me apontando como errado. Os dois tipos
de prestação de contas, de satisfações dadas aos outros, podem ser lidos,
assim, como índices de cada um dos polos agenciais que já descrevemos.
Mas não como demonstrações de que são eles os princípios basais da ori-
gem energética do que foi feito, e sim como aparatos convenientemente
operáveis conforme se recorra aos princípios constitutivos de suas me-
cânicas específicas. Mecânicas, então:
1) Justificação: se é possível “renegar a qualificação pejorativa de um
ato” é porque, no caso, para o criticado/acusado, uma crítica/acusação foi
feita de forma injusta, isto é, baseada em um princípio universal que não
corresponde àquele usado por ele para tornar efetiva sua ação. Pois esta é
a base de uma justificação: a adequação entre um conjunto de dispositi-
vos e algum princípio abstrato universalizável – de maneira situada, mas

exemplo, qualquer categoria sintática ou morfológica) e sim de dispositivos cuja pró-


pria materialidade é a linguagem.
33 SCOTT; Lyman, op.cit., p.141.
34 Idem.

 · Sociologia da moral, agência social e criatividade


universalizável ainda assim.35 Segundo Boltanski e Thévenot,36 situações
de crítica têm como característica primeira o fato de que “as pessoas
nelas envolvidas estão sujeitas a um imperativo de justificação. Aquele
que critica outras pessoas tem que produzir justificações para sustentar
suas críticas, assim como alguém que seja alvo de críticas tem que jus-
tificar suas ações para defender sua causa”. Esse imperativo contém ele
próprio um imperativo, interno: na justificação, tanto a crítica quanto
a defesa dependem de um procedimento de comprovação: os atores que
defendem estar de acordo com algum princípio de bem comum precisam
apresentar provas, objetos do mundo (dispositivos, portanto) que inter-
liguem a situação e as grandezas a serem justificadas (ou criticadas) com
uma metafísica moral reconhecida. Essas provas são, no final de contas,
formas incorporais do universal, dispositivos preenchidos de princípios
metafísicos morais, voltadas para a afirmação situada da agência de si.
2) Desculpas: se é possível “recusar a responsabilidade sobre as con-
sequências pejorativas de um ato”, mesmo que se reconheça o quão pejo-
rativas elas são,37 é porque o caso, para o criticado/acusado, corresponde
a uma crítica/acusação que, ao se fixar no universalismo ideal-utópico da
regra, não levou em consideração uma circunstância, um traço específico
daquela situação ou de algum actante nela envolvido, que a torna peculiar
o suficiente para, especificamente naquele momento, não se respeitar o
princípio em questão. Conforme demonstrei,38 essa forma de prestação
de contas se baseia no afastamento do universal, deslocando-se para
longe do setting de discussão de princípios e provas. A desculpa é operada
segundo duas formas, distinguidas justamente pela substância sobre a
qual atua sua torção efetivadora. Em um tipo, a desculpa do “não era eu”,

35 Boltanski e Thévenot propõem um quadro mais ou menos limitado (mas potencial-


mente ampliável) de metafísicas morais estabelecidas, consagradas, na vida moderna,
por eles chamadas de cités. Para a galeria simplificada dessas cités, que correspondem a
línguas morais de bem comum, ver BOLTANSKI; Thévenot, 1999, p.368.
36 BOLTANSKI; Thévenot, op.cit., p.360.
37 Este é um ponto fulcral sobre as desculpas: diferentemente do que se poderia pen-
sar baseando-se no senso comum – marcado por “desculpas esfarrapadas” –, esse ac-
count não representa desengajamento moral. Muito pelo contrário, ele demonstra um
claro engajamento ao princípio usado para a crítica/acusação, já que reconhece o ca-
ráter negativo do ato. Diferentemente do caso da justificação, a desculpa não promove
uma discussão de princípios.
38 WERNECK, op.cit.

Alexandre Werneck · 
a circunstância apontada tem lugar em uma alteração do curso de ação
prevista do ator, de modo que se cria uma partição temporal entre aquele
que o ator sempre é e aquele que ele foi temporariamente quando praticou
a ação – por exemplo, por estar nervoso, bêbado, “fora de si”, ou por não
ser mesmo ele o responsável pelo ocorrido, já que alguém o levou a fazer
o que fez (como Adão no mito bíblico, que afirma ter sido Eva a culpada
por ele ter comido da árvore proibida). No outro tipo, a desculpa do “é
assim mesmo”, a circunstância apontada se manifesta em uma alteração
do curso de ação prevista da própria situação, de modo que se cria uma
partição entre a situação normal e uma normalidade outra, revelada na
desculpa, e segundo a qual o ocorrido é circunstancialmente aceitá-
vel – por exemplo, quando se faz algo que “todo mundo faz” apesar de
“todo mundo” dizer ser errado (como passar por um sinal vermelho “que
ninguém respeita” ou ao se dizer que se chega atrasado porque “nunca
consigo acordar na hora”). Nos dois casos, toda a operação de efetivação
passa por aquele retorno ao passado para reescrevê-lo em outras bases,
mas mantendo o conteúdo substantivo do ocorrido, sua substância: aquele
que não era eu, era eu e teve apenas seu estado alterado; aquilo que ocorre
de determinada maneira imprevista em determinadas circunstâncias o foi
porque é assim mesmo, ou seja, é um estado da realidade que se permite
manifestar circunstancialmente. Em qualquer um dos casos, trata-se de
uma forma que afirma a agência externa a si.
Essas formas chamam, assim, atenção para a flexibilidade segundo a
qual os atores podem lançar mão da agência não a partir do fato de ela ser
uma característica intrínseca deles ou da estrutura, mas sim de acordo
com as condições específicas da situação. Isso não quer dizer que a ac-
countability social corresponda a uma retórica. Ela é antes uma atividade
gramaticalmente orientada pelas demandas situacionais e segundo me-
tafísicas morais que guiem e ofereçam sustentação a diferentes formas de
efetivação, sejam elas justificações ou desculpas. Assim, o livre-arbítrio
e a determinação estrutural erguem-se como recursos de desenvoltura.

 · Sociologia da moral, agência social e criatividade


Críticas x acusações

Uma acusação opera um movimento moral de estabelecimento de papéis:


de um lado, alguém que se investe do direito (e do dever, por que não?) de
apontar o outro como a “causa” de uma negatividade. A etimologia ajuda a
ter uma imagem clara de suas capacidades: vem do latim accusare, formado
por ad, contra, e causari, apontar como causa. Mas, para além da origem da
palavra, o sentido de acusar é perceptível: ela, para funcionar, depende de
um dispositivo cognitivo específico, a culpa. Sobre ela, Austin39 diz que:

Pelo menos duas coisas parecem se confundir nesse termo. Por vezes,
quando se culpa X por fazer A, digamos por quebrar um vaso, é uma
questão simplesmente ou principalmente de minha desaprovação a A,
quebrar o vaso, o que, sem dúvida, X fez: mas o que por vezes ocorre, em
vez disso, é simples e principalmente meu profundo sentimento de que X
é responsável por A, o que inquestionavelmente foi ruim.40

Para ele, então, há duas dimensões na culpa: a indiscutibilidade e a


intensidade. Quando se atribui culpa a alguém, está-se afirmando que
algo grave foi inegavelmente feito por ele. A acusação, então, é estruturada
em torno de um operador que torna a causalidade uma operação moral
simplificadora da complexidade das situações: só há duas possibilidades
em uma situação de acusação: culpa ou não culpa. De maneira que ela é
centrada na punibilidade, ou seja, em uma operação de simplificação das
possibilidades de interação com aquele que praticou a ação reduzidas à
reação compensatória do sofrimento pelo ato cometido: quando não há
mais o que discutir, a gravidade do ato produz um imperativo de puni-
bilidade. Porque a culpa afirma a agência do ator, chama a atenção para
seu controle sobre a situação e para sua opção por fazer algo errado. De
maneira que não resta alternativa senão puni-lo, já que é indiscutível
que ele praticou uma ação negativa. Como diz McEvoy,41 “o que é uma
acusação senão um meio de defender o mau tratamento do acusado?”

39 AUSTIN, op.cit., p.181.


40 Grifos meus.
41 MCEVOY, Sebastian. L’invention défensive: Poétique, linguistique, droit. Paris: Métailié,
1995, p.17.

Alexandre Werneck · 
Pois, quando fazem sua definição de desculpa, Scott e Lyman chamam
a atenção, relembremos, para outro operador: a responsabilidade. E esse
operador está ligado a outra prática, distinta da acusação: é justamente a
crítica, tão cara ao modelo da EG. A crítica representa um momento es-
pecial na vida social, um momento, como mostram Boltanski e Thévenot,
de descontinuidade em uma rotina de não questionamento das ações no
entorno. Trata-se de um momento no tempo no qual, segundo eles (1999,
p. 359), “pessoas, envolvidas em relações cotidianas, que estejam fazendo
coisas juntas (...) e que têm de coordenar suas ações, chegam à conclusão
de que algo está errado; de que eles não podem manter-se daquela forma
por mais tempo; de que algo deve mudar”, e a partir do qual a pessoa que
se dá conta de que algo não está funcionando raramente permanece em
silêncio. Ela não guarda seus sentimentos para si. O momento em que se
dá conta de que algo não está funcionando é, na maioria das vezes, aquele
em que percebe não poder mais suportar esse estado das coisas. A pessoa
deve, por essa razão, expressar descontentamento em relação às outras
com quem estivera desempenhando, até então, uma ação conjunta.
Trata-se, então, assim como a acusação, de uma forma de apontar o
dedo para o outro e indicar a relação entre ele e o ocorrido, negativizan-
do-o moralmente. Estamos diante de uma cena na qual tem lugar uma
manifestação forte de discordância, chamando-se a atenção para uma
diferença de posições.
Do ponto de vista operacional, a responsabilidade diz respeito à asso-
ciação direta entre agente e ação, apontando-se o caráter problemático do
feito, de modo que a questão aberta em uma responsabilização recai sobre
o sentido da ação. A responsabilidade – e, portanto, a crítica – pergunta
ao agente que sentido ele dá para uma ação a princípio sem sentido.
Esse sentido, pensado como uma operação mental, abstrata, assume
uma forma linguageira, expressiva, o motivo. Como mostra C. Wright
Mills,42 estamos falando, weberianamente, de “um complexo de signi-
ficado subjetivo que parece ao próprio ator ou ao observador uma sus-
tentação adequada à conduta em questão”, sendo possível, então, fazer
uma sociologia dos “vocabulários de motivos”, um tratamento segundo o
qual se possa pensar diferentes línguas, nas quais os motivos possam ser

42 WRIGHT MILLS, op.cit.

 · Sociologia da moral, agência social e criatividade


alocados, configurando uma tipologia de orientações de sentido para as
ações que facilmente pode ser pensada como um conjunto de formas de
falar a ação para que elas possam ser consideradas legítimas.
Uma perspectiva compreensiva como essa permite pensar que uma
crítica é um procedimento segundo o qual se aponta a falta de sentido de
uma ação. Essa falta de sentido se baseia na aposta de que, na determi-
nada situação, o crítico imaginava que produzir sentido corresponderia a
estar de acordo com determinado vocabulário de motivos, ou, em outras
palavras, corresponderia a estar de acordo com uma moral.
A crítica, então, aponta para o criticado a responsabilidade de dar senti-
do à situação, ou seja, para uma obrigação de oferecer uma resposta sobre
a motivação do que fez. A etimologia do termo é indicativa aqui também:
“responsável” vem do francês responsable, derivado do verbo latino res-
pondère, “afirmar, assegurar, responder”. Ela é, assim, estruturalmente,
um jogo aberto, uma abertura à negociação: se a ação parece inócua, ela
o é porque não foi falada (ou seja, agida) na língua de sustentação que se
esperava que se usasse em determinado caso. Partimos, assim, do pres-
suposto de que os envolvidos reconhecem a existência e a validade de
uma pluralidade desses vocabulários morais e uma possibilidade comum
de mobilização de alguns deles em uma mesma situação, de modo que a
questão é a expectativa em torno das apresentações de sustentações ca-
bíveis para o que se fez, o que chama a atenção para o fato de o horizonte
potencial da crítica ser a paz, já que ela convida à negociação. Trata-se de
um dispositivo de administração da conflitualidade tipicamente moderno,
uma gestão das diferenças entre os homens por meio de um espaço de
disputas regradas em torno dos sentidos das ações. A responsabilização
é um recurso do dever, que lança sobre o criticado a lembrança de um
compromisso: caso se queira pertencer a esse meio, a vida social, é preciso
se explicar, dar conta do que fez, e de forma expressiva legível, compreensí-
vel, para os outros. A aposta da crítica, então, é que todos nós, diante de
uma admoestação como ela, somos lembrados de nossa responsabilidade
com o mundo ao sermos responsabilizados pela falta de sentido do que
aconteceu e pelo próprio acontecimento em si: fomos nós que o causamos,
logo, somos nós que devemos dar-lhe sentido.
Pois bem, essa responsabilização pode também ser (e talvez na maioria
das vezes seja) operacionalizada segundo um procedimento particular:

Alexandre Werneck · 
uma crítica pode ser mobilizada adotando-se como ponto de partida
uma pretensão de universalidade do princípio moral, do vocabulário de
motivo, usado como base da responsabilidade. Ou seja, trata-se de uma
operação na qual o pluralismo de gramáticas morais compreendido pelos
atores em geral é reduzido a uma unidade lógica por uma reificação de uma
das gramáticas como absoluta, indiscutível, ideal. E é justamente essa a
operação mobilizada na acusação, o que mostra que ela é, na verdade, um
caso particular, uma forma radicalizada, da crítica. Nesse caso, trata-se
de construir um tom acusatorial para a admoestação: ali, pressupõe-se
que tanto o criticado (acusado) quanto aqueles no entorno reconhecem
como legítimo e indiscutível o princípio moral considerado pelo crítico
(acusador) como desrespeitado. É por conta disso, por sua pretensão à
indiscutibilidade, que ela será operacionalizad(ora/a) da/pela culpa, ou
seja, a demanda pelo estabelecimento de um nexo entre a ação e sua
necessária punição (e não apenas sua explicação, como na responsabili-
dade). Evidentemente, o exemplo-limite é a acusação de crime: a lei tem
justamente essa pretensão de universalidade. Dessa maneira, a crítica
feita a alguém que praticou um ato criminalizado está no horizonte dessa
indiscutibilidade da negatividade moral do ato. E, diferentemente do caso
geral da crítica, aqui não estamos diante de um pedido de explicações. A
acusação, em vez disso, procede uma declaração de necessária punição. O
centro da situação de acusação não é a disputa em torno dos elementos
de um acordo. É, em vez disso, a legitimidade – a necessidade mesmo –
da punição. A situação que resulta em uma desculpa, então, segundo a
definição clássica de Austin, parte dessa pretensão acusatorial de que se
investe o ator “ofendido”. Ou seja, parte de um procedimento de reifica-
ção: aquela que busca ocultar o caráter negociável das disputas morais.

De uma perspectiva limitadora a uma perspectiva generativa

Um último ponto que gostaria de explorar antes de esboçar uma conclusão


diz respeito à relação entre a moral como dimensão da vida social, como
dispositivo ela mesma e como faculdade cognitiva. Tenho preferido falar
em sociologia da moral, diferenciando o quadro de referência de duas outras
denominações, mais ou menos recorrentes, sociologia moral e sociologia das

 · Sociologia da moral, agência social e criatividade


moralidades. Não é sem motivo. Da primeira, a diferença se faz pelo fato
de a sociologia moral ter em grande parte se aproximado de uma visão
moralista, aproximada da filosofia, e própria de correntes ditas críticas
(o que em geral opera um prejuízo da análise em favor da prescrição, da
denúncia ou da transformação do mundo); da outra, porque o termo pode
ser compreendido com dois sentidos: a) como um sinônimo de gramática
moral ou “vocabulário de motivos”, isto é, de lógicas delimitadas e con-
textualmente discretas de moral (por exemplo, como quando se diz “a
moralidade dos policiais” ou “a moralidade local mudou pelo contato com
as moralidades dos visitantes”); e b) como faculdade cognitiva definidora
das práticas morais dos atores (por exemplo, como quando se diz que “os
humanos possuem moralidade” ou “Fulano perdeu completamente a
moralidade, é um selvagem”). Nesse último sentido, a moralidade pode
não ser a da sociologia da moral, mas é notadamente um de seus temas
mais relevantes e basais.
Um modelo analítico que se quer da moral como esse precisa partir
de uma capacidade cognitiva basal, a “capacidade moral”,43 ou seja, da
aposta em uma faculdade cognitiva segundo a qual é possível afirmar que,
se os atores podem criticar (“capacidade crítica”), eles precisam poder,
antes disso, distinguir entre o que é o bem e o que não é o bem (para eles):
“Uma capacidade moral está no coração da construção de uma ordem (...)
entre as pessoas, que devem se mostrar capazes de abstrair de suas parti-
cularidades para se entender a respeito de seus bens exteriores cuja lista
e a definição são gerais.” É a moralidade em sua dimensão de afirmação
de que, sendo sociais, somos inevitavelmente morais.

A observação da maneira como a agência pode ser mobilizada – prática


e analiticamente –, não como uma disposição incorporada previamente
nos personagens da vida social e sim como aparato situado de efetivação
de acordo com as condições localizadas, permite ainda enxergar outra

43 BOLTANSKI; Thévenot, op.cit., p.42. Tenho falado ainda em uma capacidade me-
tapragmática, compondo a tríade cognitiva da moral. Essa terceira capacidade diz
respeito à faculdade segundo a qual os atores conseguem perceber a distância entre
gramáticas morais gerais e situações específicas e, com isso, conseguem operar ad
hoc com as circunstâncias experimentadas de forma situada. Para mais a respeito, ver
WERNECK, 2012, pp.267-316.

Alexandre Werneck · 
dimensão da questão do livre-arbítrio: no fundo, quase toda teoria da
agência estrutural é uma teoria da agência individual controlada. As
descrições que conferem à estrutura a primazia decisória precisam em
geral partir de um mapeamento dos métodos utilizados pela – e o traba-
lho que dá para a – estrutura a fim de controlar a primazia decisória dos
atores – individuais e/ou coletivos. Por essa leitura, a prioridade estrutural
acaba por ser uma resultante bem-sucedida de uma operação sócio-
-historicamente localizada de dominação. Daí, uma maneira bastante
tradicional de descrever a moral é como dispositivo de contenção, ou seja,
de forma de limitar a agência individual em favor da manutenção (e da
actância) do coletivo. E daí uma vasta tradição tratar a moral como aparato
de contenção e mesmo de controle – narrativas, por exemplo, como as
de Durkheim,44 com sua moral como aparato de coesão social por meio
da doma dos individualismos mais egoístas e em favor da vida comum
centrada nas funções sociais na divisão social do trabalho; Elias,45 com
seu processo civilizador centrado justamente na contenção, no recalque
mesmo; ou Foucault,46 com suas sociedades disciplinares e seus dispo-
sitivos de internalização da vigilância do poder. Nessa tradição, a moral é
lida como um aparato a serviço da estrutura e a ação moral é representada
por duas formas gerais, o dever e o altruísmo: ser bom corresponderia a
ser bem-sucedido em momentos em que seria exigido abrir mão de seu
bem em favor do bem do(s) outro(s) – individual (altruísmo) ou coletivo (o
dever). Em ambos os casos, é de uma forma de potencialização da agência
estrutural a fim de “domar” a agência pessoal de que estamos falando e,
segundo esse raciocínio, a moral seria entendida como aparato de redi-
recionamento da energia social.
Mas, se adotamos o bem como princípio básico e seu direcionamento
como variável analítica determinante da efetivação, chegamos a um mo-
delo47 que contempla um pluralismo de direcionamentos desse bem mais
complexo que aquela dicotomia – contemplando bem de si, bem do outro,
bem comum e bem de todos, além da própria rotina sem questionamento,

44 DURKHEIM, Émille. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1995
[1893]. DURKHEIM, Émille. Ética e sociologia da moral. São Paulo: Landy, 2003.
45 ELIAS, Norbert. O processo civilizador, vol.1. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.
46 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis, RJ: Vozes, 1989.
47 WERNECK, op.cit., pp.267-316.

 · Sociologia da moral, agência social e criatividade


que chamo de tudo bem. A moral surge aí não como dispositivo de con-
tenção, mas, muito pelo contrário, como dispositivo de potencialização
da agência, uma vez que ela se oferece não como a língua de quem impede
de fazer algo e sim como a língua das estratégias segundo as quais se pode
fazer algo. A desculpa pareceria ser uma prova exclusiva disso, já que por
meio dela os atores podem dizer que não foram eles que, em primeira
instância, decidiram pelo curso de ação tomado, o que resultou em uma
situação cujas diferenças de grandeza não são efetiváveis, provando que,
embora passemos nossas vidas tentando negar que nos controlem e rei-
vindicando o direito de decisão, podemos muito bem, em um momento
em que isso seja conveniente,48 aceitar um lapso momentâneo em que é a
estrutura quem manda e dizer que não se é responsável pelo que fez. Além
disso, como é a forma da circunstância, ela se mostra como um recurso
para permitir acessar uma gama muito maior de ações que poderiam ser
acessadas se se seguisse estritamente o regramento das utopias morais.49
Mas eis que a justificação faz o mesmo: ao se afirmar que se tinha contro-
le, está-se provando uma capacidade de mobilizar princípios abstratos,
metafísicas morais, de forma competente, conveniente, efetiva, o que
igualmente comprova a dimensão dispositiva dessa agência individual,
uma vez que ela será acessada como agência de escolha e operacionaliza-
ção de conteúdos estabelecidos – e, em certa medida, “estruturados”.50
Se, então, fazer o bem é olhar a quem – já que é o direcionamento des-
se princípio o que determina a efetividade –, a sociologia da moral e a

48 THÉVENOT, op.cit.
49 WERNECK, no prelo.
50 Com isso, absolutamente não pretendo corroborar a tese giddensiana – GIDDENS,
Anthony. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1984 – de uma “estru-
turação” mútua entre agente e estrutura ou a de Archer – ARCHER, Margaret S. Being
Human: The Problem of Agency. Cambridge (RU): Cambridge University Press, 2001;
—————. Structure, Agency and the Internal Conversation. Cambridge (RU): Cambridge
University Press, 2003 – de uma “conversação interna” também em uma mútua de-
terminação entre esses dois polos – nem as negar; não é esta a questão aqui. Estou
apenas dizendo que as metafísicas morais recorrentemente mobilizadas pelos atores,
podendo ser entendidas mesmo como representações, se apresentam na vida social
como formas consolidadas, como aparatos formais e, por isso mesmo, dotados de
(previsível e) considerável actância. Ela, entretanto, evidentemente não é oriunda de
uma energia própria, e sim da memória dos próprios atores e da própria história, que
as tornou reconhecidas e recorrentes. Para mais sobre essa história, ver BOLTANSKI,
op.cit., pp.150-151, com sua discussão sobre utopias.

Alexandre Werneck · 
sociologia da agência (considerando que, temporariamente, retomemos a
distinção entre elas) ajudam a captar um dado central para a compreensão
da vida social: a atuação ativa, competente, seja ela mobilizada por meio
da reivindicação da agência de si seja pela da estrutura, dá trabalho. Como
lembram Callon e Latour,51 o ator “precisa constantemente determinar
quem é quem, quem é superior e quem é inferior, quem lidera o grupo e
quem é seguidor e quem precisa se afastar para que ele passe. E tudo de
que dispõe para ajudá-lo são conjuntos difusos cuja lógica é moldada para
avaliar centenas de elementos”. A rigor, eles estão falando de babuínos.
Mas, como de hábito no trabalho de Latour, não escapamos de um efeito
dramático. Entretanto, na frase anterior, eles dizem que as sociedades
desses primatas, em determinada descrição, lhes impõe uma vida “não
menos difícil que a nossa vida como revelada pelos trabalhos etnometodo-
lógicos”, no que se segue essa descrição, moldada ao modelo de Garfinkel.
Preferi essa apresentação entre tantas outras da linhagem teórica sobre a
qual nos debruçamos porque ela sublinha justamente o caráter trabalhoso
da agência competente dos atores.
Pois o fato de sermos capazes de mobilizar tanto nossa agência quanto
a de um ente muito maior que nós52 informa que a actância é um recur-
so, ele próprio construído – ou pelo menos direcionado –, situacional-
mente. Pensados, então, como dispositivos, e tomados em um sistema

51 CALLON, Michel; Latour, Bruno. “Unscrewing the Big Leviathan: How Actors Ma-
cro-Structure Reality and How Sociologists Help Them to Do so.” In: Knorr-Cetina,
Karin; Cicourel, Aaron V. (orgs.). Toward an Integration of Micro- and Macro- Sociologies.
Boston e Londres: Routledge/Keegan Paul, 1981, pp.202-283.
52 Essa afirmação evidentemente parece partir da aceitação de uma diferença dimen-
sional entre os atores micro e os macro, exatamente aquela problematizada por Callon
e Latour – op.cit. – em sua teoria dos atores-rede, que respeito em sua problematiza-
ção justamente do estatuto dimensional dos agentes (em especial o do empoderamen-
to dos atores macro). Mas o ponto de partida aqui é o fato de que, independentemente
da veracidade dessa partição dimensional e mesmo de seu processo de construção, os
atores sociais tomam essas duas dimensões como representações nas quais depositam
sua crença e sua oposição como um verdadeiro dado problemático da vida – CHA-
TEAURAYNAUD, Francis. La faute professionelle: Une sociologie des conflits de responsa-
bilité. Paris: Métailié, 1991; —————. Argumenter dans un champ de forces: Essai de balisti-
que sociologique. Paris: Pétra, 2011 – com o qual eles se confrontam (gerando toda uma
gramática de confrontação), daí a construção da própria oposição ser um elemento
extremamente relevante e que deve ser levado em consideração.

 · Sociologia da moral, agência social e criatividade


de valoração,53 esses dois polos são componentes da maneira como, por
meio da administração moralmente lógica – e reflexiva, no sentido de as
consequências das situações que dependem dos sentidos, mas indicam a
posteriori a intenção dos atores54 –, colocamos a vida social em atividade,
fazemos a vida social. Afinal, são eles quem nos permitem fazer o bem.

53 Do ponto de vista lógico, toda comparação valorativa pode ser convertida em uma
dicotomia moral. Uma valoração é uma operação segundo a qual atribuímos uma
“quantidade” (um... valor) de uma determinada substância, constituinte do valor
em questão. Essa quantidade, entretanto, é relativa: existe na comparação com outra
quantidade. Assim, por exemplo, pode-se falar de mais ou menos coragem, mais ou
menos autocontrole, mais ou menos sensibilidade, mais ou menos de qualquer va-
lor. Uma operação de julgamento moral, por sua vez, poderá facilmente tomar o pon-
to superior na escala do valor e o chamar de “positivo” ou simplesmente de “bom.”
Uma vez que o relevante na comparação é a diferença e não os valores absolutos, ter
“menos”, nessa comparação, independentemente de quanto se tenha, significará ter
“nada”, o que levará esse polo a ser o “mau” na comparação – em outras palavras, por
exemplo, em uma avaliação cuja competência é a justiça, o mais justo será o correto e
o menos sensível, o incorreto. Isso indica que a distribuição do bem é ela própria uma
operação de modulação construtiva da actância.
54 ANSCOMBE, Gertrude M. Intention. Cambridge: Harvard University Press, 2000.

Alexandre Werneck · 
Concretude simbólica e descrição
etnográfica (sobre a relação entre
antropologia e filosofia)1

L R C  O

T odas as disciplinas acadêmico-científicas orientadas para a produ-


ção de conhecimento mantêm algum vínculo com a filosofia. Tal vínculo
é igualmente evidente no caso daquelas disciplinas que tiveram origem
no interior da própria filosofia, como a matemática ou a psicologia, assim
como no caso daquelas que têm outra origem (e.g. ciências da informação,
nutrição etc.), mas que não deixam de dialogar com a filosofia em seus
esforços de fundamentação do conhecimento que produzem. No caso da
antropologia, essa relação aparece de forma particularmente complexa,
na medida em que, além dos vínculos associados ao processo de formação
da disciplina ou aos esforços de fundamentação dos resultados de suas
investigações, o próprio processo de elaboração da interpretação etnográ-
fica tem uma dimensão filosófica incontornável. Em outra oportunidade
procurei caracterizar essa condição disciplinar indicando que ela faz com
que a “constituição da disciplina esteja profundamente marcada por uma
relação dialética entre a ciência e a filosofia, entre a empiria e a metafísica,
ou entre o dado e o significado”.2 Se toda pesquisa empírica, qualquer que

1 Publicado originalmente como CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. “Concretu-


de simbólica e descrição etnográfica (sobre a relação entre antropologia e filosofia)”,
Mana, vol. 19. n. 3, 2013, pp. 409-435. Gostaria de agradecer a Wilson Trajano Filho e a
Alcida Ramos por seus comentários, lembrando que quaisquer problemas interpreta-
tivos são de inteira responsabilidade do autor.
2 CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. “A vocação crítica da antropologia.” Anuário
Antropológico, 1990, 1993, p.67.
seja a sua natureza, tem uma dimensão conceitual que condiciona o olhar
do pesquisador, na antropologia haveria uma tensão permanente entre o
material colhido no campo e o sentido a ele atribuído.
Na tradição francesa, na qual o desenvolvimento da disciplina está
fortemente marcado pela Escola Sociológica liderada por Durkheim e
Mauss, toda a discussão sobre a relação entre categorias do entendimento
e morfologia social se dá em diálogo direto com a filosofia – com filósofos
neokantianos, de um lado, e empiristas, de outro3 – retomado em alguma
medida na discussão sobre a articulação entre práticas e representações
sociais. Neste quadro, a síntese dessa relação com a filosofia talvez pudesse
ser mais bem expressada por meio da noção de concretude simbólica, que
tão bem retrata a trajetória da disciplina de Mauss a Claude Lévi-Strauss,
também desenhada por Merleau-Ponty,4 e que teria levado Lévi-Strauss
a afirmar que “os símbolos são mais reais que aquilo que simbolizam”.5
Pois gostaria de argumentar que o simbólico, foco privilegiado da des-
crição etnográfica, traz consigo o caráter absolutamente indissociável
das dimensões empírica e filosófica da antropologia, ou da relação de
internalidade entre dado e conceito na interpretação antropológica.6
Se essa indissociabilidade entre dado e significado nunca deixou de
ser uma preocupação na tradição francesa, de base fenomenológica, na
tradição anglo-americana o tema passou a ser explorado de forma mais
sistemática apenas a partir dos anos 1960, quando o chamado corte epis-
temológico entre sujeito e objeto começa a ser questionado ou relativizado
de forma mais incisiva. Primeiramente, no conhecido debate sobre a
racionalidade na antropologia inglesa, a partir da crítica de Peter Winch7

3 DURKHEIM, Émile. Les formes élémentaires de la vie religieuse. Paris: PUF, 1912.
4 MERLEAU-PONTY, Maurice. “De Mauss a Claude Lévi-Strauss.” In: Merleau-Ponty:
Coleção Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980, pp.193-206.
5 LÉVI-STRAUSS, Claude. “Introdução à obra de Marcel Mauss.” In: Sociologia e antro-
pologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p.29.
6 Veja a interessante discussão de Winch sobre a relação de internalidade entre ideias
e relações sociais, na qual demonstra convincentemente a existência de uma inter-
dependência radical entre elas, tornando-as completamente ininteligíveis de forma
isolada. WINCH, Peter. The Idea of a Social Science and its Relation to Philosophy. Londres:
Routledge and Kegan Paul, 1958, pp.121-128.
7 WINCH, Peter. “Understanding a Primitive Society.” American Philosophical Quar-
terly, vol.1, n.4, 1964, pp.307-324.

Luís Roberto Cardoso de Oliveira · 


à interpretação de Evans-Pritchard8 sobre o pensamento místico dos
Azande, para dar sentido às práticas de bruxaria do grupo.9 Posteriormen-
te, o problema ganha ainda maior amplitude na proposta de Geertz por
uma antropologia interpretativa 10 que, de certa maneira, representa um
desdobramento das discussões em torno de uma antropologia simbólica.11
Em todos os casos, o que está em jogo é o reconhecimento do caráter
simbolicamente pré-estruturado – ou linguistificado, na vertente inter-
pretativa de base analítica12 – do mundo social ou da vida em sociedade e
de suas implicações para a interpretação antropológica.13 Nesse sentido, a
chamada antropologia pós-moderna é um segundo desdobramento desse
movimento, tendo como foco as dificuldades de validação da interpre-
tação antropológica a partir de critérios estritamente externos à inves-
tigação, ou à relação do sujeito cognoscente com o objeto cognoscível, e a
centralidade da posição do autor na definição dos resultados da pesquisa.14

8 EVANS-PRITCHARD, Edward E. Witchcraft, Oracles and Magic among the Azande. Ox-
ford: The Claredon Press, 1937.
9 As principais intervenções neste debate foram disponibizadas em duas coletâneas:
WILSON, Bryan (org.). Rationality. Worcester: Wiley-Blackwell, 1970; Hollis, Martin e
Lukes, Steven (orgs.). Rationality and Relativism. Cambridge: The MIT Press, 1982.
10 GEERTZ, Clifford. “Thick Description: Toward an Interpretive Theory of Culture.”
In: The Interpretation of Cultures. Nova York: Basic Books, 1973, pp.3-30.
11 Dolgin, Janet L.; Kemnitzer, David S. e Schneider, David M. (orgs.). Symbolic Anth-
ropology: A Reader in the Study of Symbols and Meanings. Nova York: Columbia University
Press, 1977.
12 Ver o interessante livro de Roy Howard (1982) sobre três vertentes interpretativas
na filosofia ocidental: HOWARD, Roy. Three Faces of Hermeneutics. Berkeley: University
of California Press, 1982.
13 Ver também Rabinow, Paul; Sullivan, William (orgs.). Interpretive Social Sciences: A
Reader. Berkeley: University of California Press, 1979.
14 Veja Clifford, James; Marcus, George (orgs.). Writing Culture: The Poetics and Politics
of Ethnography. Berkeley: University of California Press, 1986 e também a crítica de
TRAJANO FILHO, Wilson. “Que barulho é esse, o dos pós-modernos?.” Anuário An-
tropológico, 1986, 1988, pp.133-151. Esta problemática do lugar do autor se coloca de
maneira inteiramente diferente em antropologias como a brasileira ou a mexicana, por
exemplo, que se desenvolveram a partir de pesquisas realizadas dentro das fronteiras
dos respectivos países, e nas quais o esforço de compreensão das sociedades tribais
estudadas não deixava de estar articulado a uma reflexão sobre a sociedade do próprio
pesquisador, na qual conjugava simultaneamente os papéis de intérprete e de ator ou
cidadão (veja, inter alia, CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O índio e o mundo dos bran-
cos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1996 [1964] e BONFIL BATALLA, Guilhermo.
México profundo: Una civilización negada. México: Grijalbo, 1987).

 · Concretude simbólica e descrição etnográfica


De todo modo, essa dimensão de autorreflexão sempre presente na
pesquisa antropológica, também caracterizada como momento não metó-
dico na produção do conhecimento,15 tem implicações significativas para
a etnografia e marca, num só tempo, (1) a crítica incisiva da disciplina ao
etnocentrismo, e (2) o caráter inesgotável da compreensão antropológica.
Se o primeiro aspecto chama a atenção para a necessidade de o pesquisa-
dor relativizar suas categorias ou pressuposições culturais para entender
o outro, evitando equívocos no plano cognitivo e arbitrariedades no plano
normativo, o segundo aspecto realça o caráter local e contextualizado do
conhecimento antropológico, sempre aberto a novas interpretações. A
propósito, as novas interpretações não são motivadas apenas por novos
olhares, partindo de novos pontos de vista, mas também pelo caráter
dinâmico das situações ou eventos etnográficos que se transformam ao
longo do tempo, ganhando continuamente novos significados.16
Embora a antropologia hoje tenha expandido seu universo de pesquisa
para todo tipo de sociedade ou formas de vida humana, não excluindo ne-
nhum tipo de grupo ou segmento social, podendo mesmo ter como objeto
o próprio grupo social a que pertence o pesquisador, no processo de for-
mação da disciplina o foco de interesse estava voltado para a compreensão
de sociedades radicalmente distintas e usualmente distantes da sociedade
do antropólogo – fossem essas sociedades tribais, frequentemente ágrafas
e de pequena escala (como a maioria das sociedades pré-colombianas nas
Américas), ou segmentos de grandes civilizações, como a Índia, a China e
toda ou qualquer forma de organização social situada fora do Ocidente.17
O esforço de descrever e dar sentido etnográfico a estas formas de vida
diversas trazia como contrapartida imediata uma questão filosófica: quais

15 CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. “O lugar – e em lugar – do método.” In: O traba-


lho do antropólogo. Brasília: Paralelo 15/Unesp, 2000, pp.73-93.
16 Wilton Trajano Filho me chama a atenção para o fato de que, inclusive, interpre-
tações antropológicas anteriores também podem contribuir para alterar o próprio
sentido do evento etnográfico em questão. Um caso bem marcante é o poder trans-
formador da interpretação antropológica dos cultos afro-brasileiros sobre o modo de
os filhos de santo conceberem a sua própria prática religiosa e os símbolos que são
centrais a ela.
17 DUMONT, Louis. “The Anthropological Community and Ideology.” In: Essays on In-
dividualism: Modern Ideology in Anthropological Perspective. Chicago: The University of
Chicago Press, 1986, pp.202-233.

Luís Roberto Cardoso de Oliveira · 


seriam as condições de inteligibilidade da etnografia? Ou, como descrever
de forma não estereotipada e distorcida as práticas sociais ou as formas
de vida vigentes além-mar?

Sobre a inteligibilidade das práticas de bruxaria

Ainda que questões de inteligibilidade estejam presentes em toda e qualquer


descrição etnográfica, motivadas pela preocupação em evitar as distorções
do etnocentrismo, sua importância aparece de forma particularmente
dramática nos estudos sobre bruxaria, como indicado acima no debate
provocado pela crítica de Winch a Evans-Pritchard, por enfocarem práticas
totalmente desacreditadas na sociedade do pesquisador, especialmente no
meio acadêmico-científico ao qual pertence. Afinal de contas, dado que
essas práticas não podem produzir, aos olhos do pesquisador, os efeitos a
elas atribuídos pelos sujeitos da pesquisa, como descrevê-las e dar-lhes
sentido etnográfico? No início do século passado, Frazer18 chega a sugerir
que a magia seria produto de um erro cognitivo, posteriormente corrigido
pelo pensamento científico que a teria sucedido, no que foi prontamente
criticado por Wittgenstein.19 Pois, seria a magia um modo de intervenção
no mundo similar ou da mesma ordem das intervenções fundamentadas
no pensamento científico? Winch é um discípulo de Wittgenstein e se ins-
pira nele em sua crítica a Evans-Pritchard, cuja etnografia também sugere
deficiências na relação entre pensamento místico e realidade, embora tenha
sido produto de cuidadoso trabalho de campo, viabilizando um relato muito
mais rico, minucioso e denso do que aquele que encontramos em Frazer.
O debate iniciado por Winch motivou várias intervenções e diversas
perspectivas, reveladoras da riqueza e da importância do tema, que pode-
riam ser sintetizadas na oposição entre perspectivas relativistas e raciona-
listas na fundamentação da compreensão das sociedades ou das formas de
vida estudadas pelos antropólogos (veja a nota 1). Entretanto, vou acionar

18 FRAZER, James. The Golden Bough: A Study in Magic and Religion. Londres: The Mac-
Millan Press, 1976 [1922].
19 WITTGENSTEIN, Ludwig. Remarks on Frazer’s Golden Bough. Nova Jersey: Open Hu-
manities, 1979. A crítica de Wittgenstein teria sido elaborada nos anos 1930, mas pu-
blicada postumamente, muitos anos depois.

 · Concretude simbólica e descrição etnográfica


apenas três aspectos do debate para realçar o diálogo com a filosofia: (1) a
questão da inteligibilidade e as dificuldades de compreensão do outro; (2)
as implicações disso para o status da interpretação antropológica; e (3) a
necessidade de apreensão de pelo menos uma dimensão de positividade
no ponto de vista nativo, mesmo quando o antropólogo se mantém cético
quanto ao poder explicativo desse ponto de vista de forma mais abran-
gente. Em vista das diferenças e da distância entre as visões de mundo
encontradas, respectivamente, nas sociedades do pesquisador e dos su-
jeitos da pesquisa, conforme indicado acima, é praticamente impossível
ao antropólogo produzir um relato convincente do material etnográfico
colhido em campo sem demonstrar alguma dimensão de sintonia entre
sua interpretação e o ponto de vista nativo. Uma orientação consolidada
na disciplina é de que a interlocução com os sujeitos da pesquisa constitui
importante fonte de aprendizado, e tem papel absolutamente fundamental
na elucidação das interrogações do antropólogo.
O principal ponto de discórdia indicado por Winch está no caráter
da distinção proposta por Evans-Pritchard entre pensamento científico,
senso comum e pensamento místico em sua etnografia. Se os três tipos
de pensamento são apresentados como igualmente lógicos, apenas os
dois primeiros teriam respaldo na realidade, pois a suposta referência do
pensamento místico na realidade não poderia ser demonstrada. Winch
cita dois trechos de artigos de Evans-Pritchard nos quais o antropólogo
apresentaria o argumento com clareza:

Noções científicas são aquelas em acordo com a realidade objetiva, tanto


em relação à validade de suas premissas como em relação às inferências
feitas a partir de suas proposições (...) Noções lógicas são aquelas que,
segundo as regras do pensamento, as inferências seriam verdadeiras se as
premissas também o fossem, sendo a verdade das premissas irrelevante
(...). Um pote quebrou durante o cozimento. Isto se deveu provavelmen-
te ao saibro. Vamos examinar o pote e verificar se a causa foi esta. Este
pensamento é lógico e científico. Doenças são causadas por bruxaria. Um
homem está doente. Vamos consultar o oráculo para descobrir quem é
responsável. Este pensamento é lógico e não científico.20

20 EVANS-PRITCHARD, Edward E. “Science and Sentiment.” Bulletin of the Faculty of


Arts. University of Egypt, 1935, apud WINCH, op.cit., p.308.

Luís Roberto Cardoso de Oliveira · 


O trecho acima aparece logo após outro no qual Evans-Pritchard
compara a explicação europeia com a Zande sobre a ocorrência de chuvas
para assinalar que ambas são produtos de construções sociais, igualmente
lógicas, e que não refletiriam de modo algum uma suposta superioridade
intelectual do europeu:

Seria absurdo dizer que o selvagem pensa misticamente e que nós pensa-
mos cientificamente sobre a chuva. Ambos os casos envolvem processos
mentais similares e, além disso, o conteúdo do pensamento é derivado de
forma similar. Mas podemos dizer que o conteúdo social de nosso pen-
samento sobre chuva é científico, ele está em acordo com fatos objetivos,
enquanto o conteúdo social do pensamento selvagem sobre chuva é não
científico, pois não está em acordo com a realidade, e pode ser também
místico quando assume a existência de forças suprassensíveis.21

Entretanto, Evans-Pritchard indica com todas as letras que, enquanto


o pensamento científico estaria em acordo com a realidade, o pensamento
mágico não o estaria. Tal afirmação é questionada por Winch,22 que per-
gunta se Evans-Pritchard não estaria impondo uma definição de realidade
ou critérios de validação próprios do jogo de linguagem da ciência em
contextos nos quais estes não se aplicariam, supondo a existência de uma
realidade independente de qualquer estrutura simbólica ou da linguagem
por meio da qual é articulada.
Em outras palavras, apesar de Winch reconhecer a importância da
distinção entre o que é real e aquilo que não o é em qualquer sociedade,
independentemente da subjetividade ou das idiossincrasias de qualquer
ator, o modo de fazer essa distinção não só varia entre as sociedades no
tempo e no espaço, mas também entre instituições da mesma sociedade,
como a ciência e a religião bem exemplificariam,23 salientando que em to-
dos os casos a distinção seria articulada pela linguagem, e não poderia ser
adequadamente acionada fora de seu contexto de uso, a partir de critérios

21 EVANS-PRITCHARD, Edward E. “Lévy-Bruhl’s Theory of Primitive Mentality.”


Bulletin of the Faculty of Arts. University of Egypt, 1934 apud WINCH, op.cit., p.308.
22 WINCH, op.cit., p.308.
23 Por exemplo, a realidade de Deus para os cristãos não é contestável ou demonstrá-
vel por meio de critérios científicos ou de experimentos empiricamente observáveis.

 · Concretude simbólica e descrição etnográfica


exclusivamente externos.24 Trata-se, fundamentalmente, de desvendar
o que está em jogo nos atos e nas ações humanas, ou qual é o objetivo e o
sentido da ação em foco. Seguindo Wittgenstein, Winch argumenta que
sem situar o ato com referência à regra que estaria sendo seguida, ou que
estaria orientando a ação do ator, não seria possível entender o evento
nem saber o que estaria realmente acontecendo. Um antropólogo diria que,
sem atentar para o ponto de vista nativo, adequadamente contextuali-
zado, seria difícil evitar o etnocentrismo e compreender as instituições
(práticas, representações) de sociedades distantes no tempo ou no espaço.
Como se sabe, Evans-Pritchard chama a atenção para o fato de que
os Azande distinguem claramente as ideias de causalidade física e cau-
salidade mágica ou mística — baseada em forças suprassensíveis cuja
atuação não pode ser demonstrada por meio de uma cadeia de fatos ob-
jetivos empiricamente observáveis. Assim, os Azande explicam que o
teto do celeiro caiu porque os cupins comeram as suas bases, mas que
tais fatos não explicariam por que o teto caiu exatamente quando Fulano
de Tal, atingido pelo teto, estava sentado no celeiro. Para desvendar este
aspecto do evento, os Azande consultam oráculos, cujo funcionamento é
bem descrito na etnografia. O que nós classificaríamos como acidente ou
infortúnio, os Azande classificam como produto de bruxaria.25 Diferen-
temente de Frazer, Evans-Pritchard demonstra convincentemente que as
práticas mágicas ou de bruxaria não envolvem qualquer equívoco (lógico
ou cognitivo) de seus praticantes, ainda que os efeitos a elas atribuídos
não tenham respaldo na realidade.
Mas o famoso antropólogo também afirma que durante sua estada
entre os Azande teria orientado suas ações e sua vida de maneira geral a
partir das noções de bruxaria vigentes, as quais teriam se mostrado tão
satisfatórias e adequadas como as que orientavam sua vida na Inglaterra.

24 A propósito, a discussão de Kuhn sobre “A Estrutura das Revoluções Científicas” e a


incomensurabilidade entre paradigmas científicos traz o problema das distinções en-
tre diferentes definições de realidade para dentro da própria ciência. KUHN, Thomas.
The Structure of Scientific Revolutions. Chicago: The University of Chicago Press, 1962.
25 EVANS-PRITCHARD, op.cit., pp.63-83. Evans-Pritchard distingue bruxaria
(witchcraft) de feitiçaria (sorcery or bad magic) no contexto etnográfico dos Zande,
identificando o segundo termo com práticas que demandam suporte material ou ma-
gia negra (remédios, imprecações etc.), enquanto o primeiro operaria sem suporte
material, a partir de atos estritamente psíquicos (pp.21; 387).

Luís Roberto Cardoso de Oliveira · 


Evans-Pritchard não apenas teria aprendido a manipular adequadamente
as noções de bruxaria dos Azande e entendido a lógica dessas práticas,
mas as teria acionado com sucesso para dar sentido ao seu cotidiano,
no que as mesmas teriam se mostrado plenamente efetivas. Anos mais
tarde Evans-Pritchard 26 oferece uma visão mais favorável à relação entre
as noções de bruxaria dos Azande e a realidade que elas representam.
Embora mantenha certo ceticismo, o autor afirma reconhecer pelo me-
nos parcialmente a realidade das forças psíquicas nas quais as crenças
Zande sobre bruxaria se baseiam, e sugere que colocar essa realidade
em dúvida não só impediria a compreensão das práticas em estudo, mas
inviabilizaria qualquer esforço para dar sentido lógico aos próprios atos
do pesquisador em suas interações no campo.27 É exatamente esta a di-
mensão de positividade do ponto de vista nativo a que me referi acima,
a qual elucida e dá sentido objetivo às formas de vida investigadas pelos
antropólogos, tornando a sua apreensão a condição de inteligibilidade da
realidade etnográfica.
Sem entrar em questões filosóficas mais abstratas sobre o significado
de diferentes modalidades culturais para lidar com o sentido dos acidentes
ou dos infortúnios, bem como com o sentido de práticas religiosas, como
as promessas e as preces, por exemplo – tão presentes nas sociedades
ocidentais que deram origem à antropologia –, não seria mais adequado
concebê-las como evidências de uma realidade que a ciência não explica
satisfatoriamente? Ou que estejam voltadas para questões de outra ordem?
A descrição etnográfica que, como vimos, tem sempre uma dimensão
interpretativa, pois embebida nos símbolos que dão sentido às práticas
e às instituições estudadas, procura dar conta de realidades cuja nitidez
é por vezes de difícil apreensão. Tais símbolos e categorias nativas são
sempre fundamentais para a elucidação de formas de vida locais, e sua
compreensão demanda uma relativização das categorias e das pressupo-
sições culturais do pesquisador, que não podem ser desprezadas, mas que
precisam ser ressituadas ou recontextualizadas para renovar seu poder
explicativo.

26 EVANS-PRITCHARD, Edward E. “Some Reminiscences and Reflections on Field-


work.” In: Witchcraft, Oracles and Magic among the Azande. Oxford: The Claredon Press,
1976, pp.240-254.
27 Ibid., nota 24, p.244.

 · Concretude simbólica e descrição etnográfica


Trata-se de um procedimento de autorreflexão, que autores como
Louis Dumont28 – de orientação maussiana – associam à necessidade de
o pesquisador colocar-se em perspectiva, refletindo criticamente sobre o
seu ponto de partida, e um autor como Clifford Geertz, inspirado na for-
mulação de Heinz Kohut (um psicanalista), caracteriza como um exercício
de colocar em conexão conceitos de experiência próxima com conceitos
de experiência distante.29 Na situação de campo, tendo como referência o
ponto de vista do pesquisador, os primeiros representariam os conceitos
da disciplina e aqueles vigentes na sociedade do antropólogo, enquanto
os conceitos de experiência distante fariam as vezes das categorias nativas
compartilhadas pelos sujeitos da pesquisa. Para acionar apenas um dos
exemplos indicados por Geertz,30 e que dialoga diretamente com a dis-
cussão de Dumont sobre o colocar-se em perspectiva, agora tendo como
referência o ponto de vista dos nativos ou sujeitos da pesquisa, estratifi-
cação social seria um conceito de experiência distante para os hindus, e
casta seria um conceito de experiência próxima para os mesmos.
A caracterização de Geertz é particularmente feliz por enfrentar di-
retamente as questões de inteligibilidade envolvidas na interpretação de
práticas ou instituições distantes e estranhas ao antropólogo, a partir do
esforço de tradução e compreensão de expressões ou locuções básicas da
sociedade estudada. Tendo como referência as reações provocadas pela
publicação póstuma dos diários de campo de Malinowski,31 Geertz per-
gunta: “O que acontece com verstehen (a compreensão) quando einfühlen
(a empatia) desaparece?”32 Com a revelação dos comentários negativos
que Malinowski fazia em relação aos seus “informantes” no campo, o
mito da completa empatia ou sintonia entre o antropólogo e seus nativos
caía por terra de forma definitiva. Como explicar então a capacidade de
entender e interpretar adequadamente costumes tão diferentes, distantes
e estranhos aos olhos do antropólogo?

28 DUMONT, Louis. Homo hierarchicus: Essai sur le système des castes. Paris: Gallimard,
1979.
29 GEERTZ, Clifford. “From the Natives Point of View.” In: Local Knowledge: Further
Essays in Interpretative Anthropology. Nova York: Basic Books, 1983, pp.55-70.
30 DUMONT, op.cit..
31 MALINOWSKI, Bronislaw. A Diary in the Strict Sense of the Term. Redwood City:
Stanford University Press, 1989 [1967].
32 DUMONT, op.cit., p.56.

Luís Roberto Cardoso de Oliveira · 


Ambas as formulações, a de Geertz e a de Dumont, indicam que o
objetivo da etnografia não é tornar o antropólogo capaz de ver e pensar
como os nativos, a partir de uma sensibilidade especial que lhe permitiria
transpor-se para a mente dos sujeitos da pesquisa, e reduziria a noção de
empatia à ideia de simpatia (capacidade de identificar-se com o outro),
mas acionar conceitos e pressuposições que permitam estabelecer algum
nível de interseção com o ponto de vista nativo. A meu ver, o conceito que
melhor exprime esse movimento interpretativo de apreensão de formas
de vida e de visões de mundo distantes no tempo ou no espaço seria o de
fusão de horizontes, como elaborado por Gadamer.33 Inspirando-me em
sua formulação, procurei caracterizar as condições de produção da inter-
pretação antropológica examinando a situação do encontro etnográfico, no
qual o pesquisador teria que construir com sucesso uma área de interseção
entre o seu universo de referência sociocultural e o dos nativos.34
Essa imagem do encontro etnográfico procura tematizar o exercício
hermenêutico-interpretativo da estrutura de contínuas antecipações que
caracterizam o círculo hermenêutico de Schleiermacher a Gadamer, pas-
sando por Dilthey, Heidegger e toda uma série de autores associados ao
romantismo alemão do século XIX.35 A ideia é que, para compreender ou-
tras culturas ou formas de vida, assim como para apreender o significado
de práticas sociais e eventos sob observação, o antropólogo deve acionar,
dentre as pré-concepções que compõem seu horizonte histórico-cultural
de referência, aquelas com maior potencial de ressonância no ponto de
vista nativo, com o objetivo de desvendar a situação que está sendo exa-
minada. As pré-concepções acionadas permitem ao antropólogo antecipar

33 GADAMER, Hans-Georg. Truth and Method. Nova York: The Continuum, 1994
[1960]; —————. “The Universality of the Hermeneutical Problem.” In: Philosophical
Hermeneutics. Berkeley: University of California Press, 1977, pp. 3-17.
34 CARDOSO DE OLIVEIRA, op.cit. (ver o gráfico na p.73).
35 Para uma discussão mais detida da tradição hermenêutica como perspectiva, veja,
além da obra magna de GADAMER, op.cit., as contribuições de RICKMAN, H. P. (org.).
Dilthey: Selected Writings. Londres: Cambridge University Press, 1976; HABERMAS,
Jürgen. “A Review of Gadamer’s Truth and Method.” In: Dallmayr, Fred R.; MacCar-
thy, Thomas A. (orgs.). Understanding and Social Inquiry. Notre Dame: University of
Notre Dame Press, 1977, pp.335-363; BLEICHER, Josef (org.). Contemporary Herme-
neutics: Hermeneutics as Method, Philosophy and Critique. Londres: Routledge & Kegan
Paul, 1980; HOWARD, op.cit.; RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1992; entre outros.

 · Concretude simbólica e descrição etnográfica


um significado ao evento ou à situação etnográfica, e seu poder de elu-
cidação é continuamente testado e renovado no esforço de elaboração de
interpretações coerentes do respectivo evento ou da situação etnográfica
como um todo, assim como de suas partes.36 Esse vaivém entre parte e
todo, a partir das antecipações do intérprete, é o que caracteriza o círculo
hermenêutico, que talvez fosse mais bem concebido como uma espiral,37
na medida em que nesse processo o intérprete nunca volta exatamente
para o mesmo lugar de onde começou, mas para posições sempre poten-
cialmente mais esclarecidas.
O correlato da fusão de horizontes de Gadamer na proposta de Winch
seria a necessidade de o intérprete estender ou ampliar seu universo lin-
guístico-cultural, explorando de forma aberta e criativa, dentre as cate-
gorias preexistentes em nosso universo, aquelas que permitam estabelecer
um ponto de contato produtivo com o universo do outro.38 Em qualquer
hipótese, é importante reter que o acesso à compreensão de outras so-
ciedades ou formas de vida depende de nossa capacidade de encontrar ou
construir áreas de interseção entre nossas pré-concepções ou categorias e
aquelas vigentes no universo pesquisado. Estas frequentemente apontam
para significados contraintuitivos39 que precisamos ancorar em áreas
de interseção suficientemente porosas para produzirmos interpretações
coerentes e enriquecedoras da situação ou do evento em foco.
Antes de trazer a discussão dos problemas de inteligibilidade etno-
gráfica ou da dimensão filosófica da antropologia para contextos mais

36 Gadamer reabilita, em sua obra (op.cit.), as noções de pré-conceito, tradição e au-


toridade – que haviam sido colocadas de lado pela crítica iluminista – como condu-
toras de qualquer esforço compreensivo. Embora este não seja o local adequado para
apresentar de forma mais detalhada a articulação entre essas noções e suas implica-
ções, vale apontar que a maior influência nesse desenvolvimento é Heidegger e sua
definição da pré-estrutura da interpretação composta por três dimensões da antecipa-
ção: (1) Vorhabe (pré-ter), baseado no que já temos ou no que já dispomos antecipada-
mente; (2) Vorsicht (pré-visão) baseado no que prevemos antecipadamente; e (3) Vor-
griff (pré-concepção), baseado no que percebemos ou concebemos antecipadamente
– HEIDEGGER, Martin. Being and Time. Nova York: Harper and Row, 1962 [1927], p.191.
37 FISCHER, Michael. “Da antropologia interpretativa à antropologia crítica.” Anuário
Antropológico, 1983, 1985, pp.55-72.
38 WINCH, op.cit., pp.317-319.
39 CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. “O ofício do antropólogo, ou como des-
vendar evidências simbólicas.” Anuário Antropológico, 2006, 2008a, pp.9-30.

Luís Roberto Cardoso de Oliveira · 


próximos, a partir de meu próprio material de pesquisa, gostaria de
abordar brevemente mais um exemplo envolvendo práticas de bruxaria.
Refiro-me à interessante etnografia de Favret-Saada 40 sobre bruxaria na
região de Bocage, na França.
Diferentemente das práticas de bruxaria estudadas por Evans-
-Pritchard entre os Azande, em que elas permeavam quaisquer aspectos
da vida ou do cotidiano de todos os membros da sociedade – e falava-se
sobre elas o tempo todo, fazendo com que o tema tivesse sido de certa
forma imposto ao pesquisador41 –, na região de Bocage, as práticas de
bruxaria e os discursos que lhe davam sentido competiam com práticas
e discursos dominantes (da ciência e da religião católica) que procuravam
desacreditá-las, não se falando sobre elas com estranhos, sendo muito
difícil o acesso a discursos não estereotipados sobre as referidas práticas.
Segundo Favret-Saada, antes de sua pesquisa, a literatura sobre o tema
na região resumia-se a artigos sensacionalistas na imprensa e a trabalhos
de folcloristas, que apresentavam as crenças e os costumes locais de forma
igualmente estereotipada, como características de camponeses atrasados,
ingênuos e com pouca instrução. Pois, como seria possível acreditar em
bruxas e em seus feitos na contemporaneidade? Receitas e procedimentos
exóticos eram publicados como exemplos de superstições características
da Idade Média que ainda sobreviviam em Bocage, como os relatos sobre
a excêntrica Dame Blonde, que passava a noite com maridos enfeitiçados
para livrá-los do feitiço.42
Não obstante, a etnógrafa demonstra que as práticas de bruxaria lo-
cais não são acessíveis a partir da perspectiva de um observador externo,
como jornalistas e folcloristas se posicionavam, mas apenas de uma das
duas posições nativas institucionalmente disponíveis para a interlocução
sobre o tema no campo: a de enfeitiçado(a) ou a de “desenfeitiçador(a)”
[désorceleur ou désenvoûter]. A terceira posição teoricamente possível, a
de feiticeiro(a), não estava de fato disponível, na medida em que cons-
tituía uma categoria de acusação com a qual ninguém se identificava.
O discurso desinteressado sobre o tema, entre atores não envolvidos

40 FAVRET-SAADA, Jeanne. Les mots, la mort, les sorts. France: Gallimard, 1977.
41 EVANS-PRITCHARD, op.cit., p.242.
42 WINCH, op.cit., p.69.

 · Concretude simbólica e descrição etnográfica


no caso em foco, suscitava sempre respostas distantes e incrédulas da
população, que classificava as respectivas práticas como costumes do
passado ou como excentricidades com as quais não se identificavam.43
A pesquisadora só conseguiu ter acesso a dados sobre casos concretos,
vividos pelos interlocutores, quando foi equivocadamente classifica-
da como desenfeitiçadora, e acabou assumindo o papel, ainda que sem
muita clareza no início, o qual posteriormente combinou com a posição
de enfeitiçada, quando assim identificada pelos interlocutores. A partir
desse momento, foi pouco a pouco desvendando os mistérios das práticas
de bruxaria em Bocage.
Ao contrário da visão impressionista e exotizada difundida pelos
folcloristas, Favret-Saada descreve práticas que ganham vida e sentido no
cotidiano da população local, e que se mostram não apenas lógicas, mas
muito mais bem sintonizadas com os dramas enfrentados pelos atores
do que os discursos da ciência e da religião, que não dão crédito aos seus
problemas nem dão atenção adequada às interrogações dos atores.44 Como
no caso dos Azande, os camponeses de Bocage não têm problemas para
aceitar as explicações de médicos e veterinários sobre doenças na família
ou em seus animais, assim como explicações técnicas sobre problemas na
colheita etc. Entretanto, tais explicações não satisfazem suas demandas
de compreensão de infortúnios em série e, em vez de oráculos, como os
Azande, os atores acionam desenfeitiçadores para tal.
Nesse sentido, é interessante observar que, como demonstra Favret-
-Saada, as consultas com desenfeitiçadores não apenas dão uma res-
posta imediata aos infortúnios, como também chegam a ter um sentido
terapêutico, preenchendo a ausência de significado deixada pelas alter-
nativas interpretativas vigentes, e permitindo uma compreensão mais
satisfatória do destino ou das condições de vida de cada um. A própria
pesquisadora indica ter experimentado essa modalidade de terapia du-
rante a pesquisa, ao ter frequentado uma desenfeitiçadora durante mais
de dois anos, a quem foi conduzida por aqueles que identificaram seu

43 Ibid., pp.15-57.
44 Tanto a ciência (médicos, veterinários) como a religião (o pároco local ou o exor-
cista da diocese) descartam qualquer significado para o caráter serial dos eventos atri-
buídos à bruxaria, não permitindo nenhuma tentativa de elaboração discursiva sobre a
situação vivida pelos atores ou sobre seus conflitos.

Luís Roberto Cardoso de Oliveira · 


estado de enfeitiçada, e a cuja interpretação submeteu os eventos de sua
vida pessoal nas sessões em que era atendida.45
Diferentemente de folcloristas e de jornalistas, por um lado, assim
como de psiquiatras ou profissionais de saúde e de padres, por outro, a
etnógrafa levou a sério o ponto de vista dos camponeses de Bocage, pro-
curando dar sentido às fontes de seu sofrimento e aos discursos por meio
dos quais lidavam com os respectivos problemas e tentavam dar conta de
suas experiências. Assim como no caso das práticas de bruxaria Zande, a
interpretação oferecida pela etnógrafa de Bocage não está imune à crítica
ou ao debate, mas a concretude da experiência dos atores não pode ser
colocada em dúvida.

Filtragem judicial e a invisibilidade do insulto

Mas, como a literatura antropológica tem demonstrado, a dificuldade de


interpretar adequadamente as práticas sociais ou as condições de vida
estudadas não aparece apenas em pesquisas sobre instituições de eficácia
duvidosa aos olhos do mundo acadêmico-científico, como a bruxaria,
nem somente em etnografias sobre sociedades distantes e com costumes
estranhos ao pesquisador. Como veremos, mesmo etnografias sobre insti-
tuições centrais para o funcionamento do Estado nas sociedades modernas
podem revelar dificuldades interpretativas e sentidos surpreendentes.
Minha pesquisa em um Juizado de Pequenas Causas em Massachu-
setts, nos Estados Unidos, por exemplo, revelou que um determinado tipo
de causa era sistematicamente mal compreendida e mal administrada no
âmbito do Juizado.46 Refiro-me em especial às causas que demandavam
reparação por agressão a direitos de caráter ético-moral, cujos atos de
desrespeito não podiam ser traduzidos de forma adequada em evidências
materiais e, portanto, eram de difícil apreensão nas audiências judi-
ciais. Caracterizei tais atos de desrespeito como insultos de ordem moral,

45 WINCH, op.cit., p.39.


46 Trata-se de uma Small Claims Court, e a pesquisa foi realizada nos anos 1980 para a
elaboração de minha tese de doutorado – CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. Fair-
ness and Communication in Small Claims Courts. Tese (doutorado), Harvard University,
1989.

 · Concretude simbólica e descrição etnográfica


contrastando-os com quebra de direitos de ordem estritamente legal,
claramente positivados. Mais tarde essa distinção veio a ser a chave de
minha comparação sobre demandas de direitos e de cidadania no Brasil,
em Quebec e nos Estados Unidos.47
No âmbito do Juizado, as demandas de reparação por insulto apare-
ciam de maneira mais clara nas causas que requeriam indenizações de até
US$ 50, pois, na melhor das hipóteses (nestes casos), se tudo desse certo
para o autor da causa na audiência judicial, ele receberia no máximo o que
teria gasto para levar adiante o processo.48 Por que então, nesses casos, as
partes faziam questão de recorrer ao Juizado e ter suas demandas ouvidas
pelo juiz? Se supuséssemos que o principal objetivo das partes era obter
a indenização pleiteada, as ações perderiam sentido, pois significariam
sempre uma perda de tempo e, frequentemente, de dinheiro também!
De fato, esses Juizados só admitiam causas cíveis, necessariamente
expressas em demandas por indenização, que deveriam ser enquadradas
em uma de duas alternativas: (1) demandas de reparação por um tort ou
delito civil,49 e (2) demandas por quebra de contrato. Em todos os casos
o requerente deve apresentar evidências materiais dos prejuízos sofridos
para ter reconhecido o direito à indenização pleiteada. Além de o insulto
caracterizar uma agressão objetiva a direitos que não pode ser adequa-
damente traduzida em evidências materiais, ele envolve também uma
negação ou desvalorização da identidade daquele que se sente agredido.50

47 CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. Direito legal e insulto moral: Dilemas da cida-
dania no Brasil, Quebec e EUA. Rio de Janeiro: Garamond, 2011 [2002].
48 Durante a minha pesquisa, o valor máximo das causas nesses Juizados era de US$
1.500 e, nas causas de menor valor, o requerente tinha que pagar uma taxa de US$ 8,89
para dar entrada no Juizado, mais cerca de US$ 5 para enviar compulsoriamente cartas
de cobrança registradas ao requerido, e outros US$ 5 para pagar o transporte de, pelo
menos, duas visitas ao Juizado. Como nas duas visitas o requerente perderia, pelo me-
nos, cinco horas de trabalho que não seriam remuneradas, levando-se em conta que
o salário mínimo local à época era de US$ 5/hora, poderíamos dizer que em nenhuma
hipótese seria possível gastar menos de US$ 40 para levar a causa até um desfecho no
Juizado.
49 Tort ou delito civil é uma agressão a direitos de caráter não criminal, que não en-
volve tampouco a quebra de um contrato: se um vaso cai do parapeito de minha janela
e danifica o carro do vizinho, isso caracterizaria um tort, e eu seria responsável pela
reparação dos danos causados.
50 CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. “Existe violência sem agressão moral?.”
Revista Brasileira de Ciências Sociais (RBCS), vol.23, n.67, 2008b, pp.135-146.

Luís Roberto Cardoso de Oliveira · 


As duas modalidades de enquadramento das causas (tort ou quebra
de contrato) representam um forte mecanismo de filtragem, que exclui
da análise dos casos tudo aquilo que não puder ser diretamente vinculado
aos mecanismos de enquadramento judicial. Esse processo de filtragem é
explicitado nos tribunais estadunidenses por meio da expressão to narrow
down a case que, na tradição jurídica brasileira, encontra a expressão cor-
relata na ideia de reduzir a termo as demandas. Em ambos os casos trata-se
de enquadrar as demandas em formulações jurídicas predefinidas, que
permitam selecionar os aspectos (ou os fatos) da disputa aos quais o Jui-
zado pode se dirigir com respaldo institucional para tomar uma decisão.
O fato é que nas tradições jurídicas ocidentais, seja na Common Law
ou na Tradição Civilista, a positivação dos direitos e a preocupação em
delimitar com maior precisão as fronteiras entre questões de ordem legal e
questões de ordem moral fazem do insulto uma agressão quase totalmente
invisível.51 Deste modo, além de as demandas de reparação por insulto não
poderem ser formalizadas no Juizado de Massachusetts, onde fiz minha
pesquisa, não havia muito espaço para discuti-las até mesmo nas sessões
de mediação, cujos procedimentos eram mais flexíveis e assumidamente
distintos das práticas judiciais. A propósito, não deixa de ser interessante
o fato de que, em muitos casos nos quais a percepção de insulto tinha um
papel relevante, as partes tinham dificuldade em articular um discurso
coerente sobre o fundamento da demanda de reparação sempre que esta
não podia ser associada de imediato a um prejuízo material.52

51 Veja a seminal contribuição de Berger – BERGER, Peter. “On the Obsolescence of


the Concept of Honor.” In: Hauerwas, Stanley; Macintyre, Alasdair (orgs.). Revisions:
Changing Perspectives in Moral Philosophy. Indiana: University of Notre Dame Press,
1983, pp.172-181 – em relação à dificuldade de se processar alguém por insulto à honra
em sociedades como a estadunidense. Para contrastar esses mecanismos de filtragem
judicial com instituições jurídicas não ocidentais, que não enquadram os casos com
a mesma rigidez e administram conflitos a partir de um referencial mais amplo, veja
as excelentes etnografias de GLUCKMAN, Max. The Judicial Process Among the Barotse
of Northern Rhodesia (Zambia). Manchester: Manchester University Press, 1967 [1955]
e BOHANNAN, Paul. Justice and Judgment Among the Tiv. Londres: Oxford University
Press, 1968 [1957] sobre sociedades tribais africanas.
52 CARDOSO DE OLIVEIRA, op.cit. No Brasil, os Juizados Especiais têm aceitado de-
mandas de reparação por dano moral, mas essas causas ainda precisam ser mais bem
estudadas, e não está claro em que medida elas permitem melhor encaminhamento
das agressões a direitos que tenho definido como insulto moral.

 · Concretude simbólica e descrição etnográfica


Embora as demandas de reparação por insulto e a dificuldade de dar
visibilidade a elas no Juizado fossem mais claras nas causas por menos
de US$ 50, cuja motivação não poderia ser adequadamente explicada à
luz da indenização pleiteada ou dos prejuízos materiais demandados,
elas não deixavam de ter um papel nas causas envolvendo valores maio-
res, indubitavelmente significativos para as partes. Assim, no caso da
“Frustrante Compra de Carro”, o autor quer desfazer a transação e de-
manda indenização de US$ 500 (US$ 400 pelo carro e US$ 100 com o
conserto), alegando que o carro não estava nas condições combinadas,
no que é enfaticamente contestado pelo requerido, mas a motivação para
recuperar o prejuízo é substancialmente agravada pelo fato de ele ter se
sentido enganado.53 Da mesma forma, no caso das “Camisas Perdidas” o
querelante quer ser reembolsado em US$ 180 por seis camisas perdidas
na lavanderia do requerido e, na sessão de mediação, deixa claro que a
decisão de recorrer ao Juizado e demandar o valor de camisas novas (para
repor camisas velhas) se deve ao fato de o requerido ter negado qualquer
responsabilidade na primeira tentativa de negociação, o que o teria dei-
xado muito irritado com esse ato de desrespeito.54
Do ponto de vista do cidadão, a sensibilidade às agressões por insulto
se manifesta em vários contextos de afirmação de direitos e, em pesquisa
sobre conflitos administrados na Delegacia do Consumidor em Curitiba,
Bevilaqua analisa um caso no qual o consumidor lesado só aceita fazer
acordo com o fornecedor se este se comprometer a pedir desculpas for-
mais, após satisfazer plenamente suas demandas de reparação no plano
material, as quais eram claramente importantes para o consumidor.55 Em

53 CARDOSO DE OLIVEIRA, op.cit., pp.321-326. Como o autor não tinha evidências


que sustentassem suas alegações, o juiz deu ganho de causa ao requerido. Além disso,
durante a audiência não foi possível discutir nenhuma das alegações de comporta-
mento inadequado ou ofensivo de parte a parte.
54 CARDOSO DE OLIVEIRA, op.cit., pp.383-398. As partes chegaram a um acordo na
sessão de mediação no valor dos US$ 180 demandados, mas que seriam pagos em cré-
ditos por serviços na lavanderia. Embora a sessão tenha permitido exposição suficiente
das alegações sobre a relação entre direitos e interesses das partes de modo a viabilizar
um acordo satisfatório, a discussão não chegou a contemplar todas as preocupações
explicitadas pelas partes nesse aspecto, deixando um déficit de satisfação que impediu
a celebração de um acordo plenamente “equânime” em minha classificação dos casos.
55 BEVILAQUA, Ciméa. “Notas sobre a forma e a razão dos conflitos no mercado de
consumo.” Sociedade e Estado, vol.16, n.1-2, 2001, p.319.

Luís Roberto Cardoso de Oliveira · 


outro lugar, sugeri que as demandas de reparação por insulto estariam
associadas à dimensão do reconhecimento que, ao lado das dimensões
dos direitos (legais) e dos interesses, estaria presente em quase toda dis-
puta judicial. Enquanto as duas últimas se referem, respectivamente, à
observação dos direitos vigentes e à reparação dos prejuízos causados
pela quebra desses direitos, a dimensão do reconhecimento estaria rela-
cionada à dignidade do cidadão ou ao direito de ser tratado com respeito
e consideração.56
Onde vigora o direito positivo, o Judiciário concentra sua atenção
nas dimensões dos direitos e na dos interesses, enquanto a dimensão do
reconhecimento parece ser aquela que encontra maiores dificuldades
para receber um tratamento adequado, ainda que sua importância seja
muito variada nos diversos tipos de causas judiciais. Em algumas delas,
como na maioria dos conflitos entre grandes empresas, pode-se dizer
que a dimensão do reconhecimento seria mesmo irrelevante. Entretan-
to, tendo chamado a atenção para aquelas disputas em que as demandas
de reparação por insulto se mostravam particularmente significativas,
gostaria de enfocar agora alguns conflitos nos quais a sua importância,
somada às dificuldades em administrar as respectivas demandas, os torna
quase totalmente ininteligíveis aos olhos do Judiciário, que acaba atri-
buindo alguma deficiência mental ou graves problemas emocionais aos
seus protagonistas.

Como perder o juízo em Juízo

Minha primeira intuição sobre a fecundidade de explorar a relação entre a


dificuldade de o Judiciário administrar demandas de reparação por insulto
e o “diagnóstico” judicial de insanidade mental foi motivada pela leitura
de um artigo publicado no British Journal of Psychiatry.57 Sob o título de

56 CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. “Honra, dignidade e reciprocidade.” In:


Martins, Paulo Henrique; Ferreira Nunes, Brasilmar (orgs.). A nova ordem social: Pers-
pectivas da solidariedade contemporânea. Brasília: Paralelo 15, 2004, p.127.
57 LESTER, Grant; Wilson, Beth; Griffin, Lynn; Mullen, Paul E. “Unusually Persistent
Complainants.” British Journal of Psychiatry, n.184, 2004, pp.352- 356. Agradeço a Da-
niel Simião por ter me chamado a atenção para esse artigo.

 · Concretude simbólica e descrição etnográfica


“Unusually persistent complainants”, o artigo propunha retomar o tema
da paranoia do litigante na identificação de reclamantes especialmente
insistentes, e que no passado eram diagnosticados como portadores de
psicose delirante.58 Tal categoria chegou a ganhar definições nos dois
principais sistemas de classificação de doenças,59 mas teria caído em
desuso na segunda metade do século passado por ser considerada uma
forma de patologizar aqueles reclamantes com energia e disposição para
demandarem seus direitos. A partir de pesquisa realizada em ouvidorias
na Austrália, os autores identificaram características comportamentais
num grupo de reclamantes classificados como persistentes, as quais coin-
cidiriam em grande medida com os antigos casos de querulous paranoia
descritos na literatura psiquiátrica.
A pesquisa da equipe de psiquiatras foi realizada segundo dados co-
letados por funcionários experientes no encaminhamento de demandas
em seis ouvidorias na Austrália, a partir de registros de arquivo, nenhum
reclamante tendo passado por exames clínicos. Foi solicitado a esses
funcionários que selecionassem casos não mais ativos de reclamantes
especialmente persistentes e, para cada caso encontrado, eles deveriam
selecionar também o caso seguinte com características similares, envol-
vendo reclamantes não persistentes de mesmos sexo e faixa etária dos pri-
meiros, para compor um grupo de controle. Para cada caso, eles deveriam
responder a um questionário elaborado a partir de consultas com grupos
focais de funcionários, e de uma revisão da literatura sobre a paranoia do
querelante. Dos 110 questionários distribuídos entre os funcionários das
ouvidorias, 96 foram devolvidos com a seguinte composição: 52 referentes
a reclamantes persistentes e 44 correspondentes ao grupo de controle.60
O questionário privilegia aspectos externos sobre o modo como as
queixas são conduzidas e, quando observam a maneira como os casos
são percebidos pelas partes, organizam o material de acordo com cri-
térios excessivamente formais. Como veremos, tais critérios dificultam
a apreensão adequada do significado de demandas associadas à digni-
dade do cidadão, ou à dimensão do reconhecimento, acentuadamente

58 BEVILAQUA, op.cit. p.352.


59 Os dois sistemas seriam os seguintes: ICD – International Classification of Diseases
– da WHO; e DSM – Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders.
60 CARDOSO DE OLIVEIRA, op.cit.

Luís Roberto Cardoso de Oliveira · 


dependentes de processos de elaboração simbólica. Assim, ficamos sa-
bendo que o processamento das demandas dos reclamantes persistentes
demora 35 meses em média para ter um desfecho, enquanto o tempo
médio das demandas do grupo de controle era de 8,3 meses. Que apenas
23% dos casos dos persistentes são considerados resolvidos no encer-
ramento do processo, enquanto no grupo de controle essa taxa chega a
87%. Da mesma forma, os persistentes visitam a ouvidoria com maior
frequência sem marcar hora (31% vs. 4,5%), e utilizam maior variedade
de instrumentos de comunicação (e-mail, fax, cartas etc.), assim como
60% desses reclamantes mandam mais de 10 cartas, contra 9% do grupo
de controle, sendo que 25% das cartas enviadas por persistentes têm mais
de 100 páginas, contra apenas 2,7% das enviadas pelo grupo de controle.
Além disso, 52% dos persistentes requereram a mudança de atendente ao
longo do processo, contra 19% dos demais.
Todos esses indicadores revelam diferenças significativas entre os
dois grupos no que concerne ao empenho dos reclamantes, ou à ênfase
com que afirmam seus direitos e à eventual complexidade dos casos,
em vista do tempo despendido para processá-los. Mas não dizem nada
sobre as causas em si. Embora os dados sobre a natureza do dano e sobre
o objetivo da reparação pleiteada revelem números muito parecidos em
certos aspectos, as tabelas abaixo também indicam grandes diferenças
que precisam ser exploradas para além dos estereótipos comportamentais
sugeridos no artigo.61

Tabela Comparativa I
Reclamantes Grupo de
Tipo de Dano
persistentes controle
Prejuízo financeiro 71% 72%
Relações afetadas 25% 18%
Funcionamento físico 15% 5%
Danos ao funcionamento social e econômico 35% 9,5%
Danos à autoestima 40% 14%
Danos à saúde em geral 44% 23%

61 As duas tabelas foram elaboradas por mim a partir de dados e indicadores apresen-
tados no artigo de LESTER et al., op.cit.

 · Concretude simbólica e descrição etnográfica


Tabela Comparativa II
Reclamantes Grupo de
Reparação Pleiteada
persistentes controle
Compensação financeira 61% 58%
Serviços aprimorados 42% 47%
Desculpas e reconhecimento de maltrato 67% 32%
Reconhecer implicações sociais abrangentes 39% 9%
Reconhecimento público 25% 0%
Processar ou obter demissão do responsável 43% 11%
Exposição pública e humilhação 14% 0%
Justiça baseada em princípios 60% 18%
Querer ter seu dia no tribunal/day in court 25% 4%
Natureza e razões variadas da queixa 31% 0%

De fato, os dois primeiros itens de cada tabela não apresentam va-


riação significativa nos números, mas as diferenças nos demais itens são
bastante sugestivas. Se não há grandes diferenças na percepção do dano
material entre os dois grupos de reclamantes (prejuízo financeiro), ou no
que seria necessário para reparar esse aspecto da demanda (compensação
financeira), as consequências, o sofrimento e as solicitações de reparação
mais abrangentes apresentam distinções importantes entre os dois grupos.
Os três últimos itens da tabela sobre os tipos de dano são particularmente
significativos no que concerne ao sofrimento dos respectivos reclamantes,
além de sugerirem diferenças na própria definição dos direitos envolvidos.
Os persistentes não só se sentiram mais prejudicados no impacto socioe-
conômico do dano e nas consequências para a sua saúde, como também
indicam ter havido um impacto mais abrangente em relação à sua autoes-
tima (40% vs. 14%), o que constitui um dos aspectos mais sensíveis das
demandas de reconhecimento. A autoestima afeta diretamente a digni-
dade do cidadão e, como tenho procurado mostrar, tem papel importante
nas reivindicações por direito a tratamento com respeito e consideração.62

62 CARDOSO DE OLIVEIRA, op.cit.; CARDOSO DE OLIVEIRA, op.cit.; CARDOSO DE


OLIVEIRA, op.cit. O direito ao reconhecimento tem tido grande espaço na literatura a
partir dos anos 1990, com contribuições especialmente importantes de TAYLOR, Char-
les. “The Politics of Recognition.” In: Gutmann, Amy (org.). Multiculturalism and the
Politics of Recognition. Nova Jersey: Princeton University Press, 1994, pp.25-73; HON-
NETH, Axel. The Struggle for Recognition: The Moral Grammar of Social Conflicts. Cam-
bridge: The MIT Press, 1996 e FRASER, Nancy. “Social Justice in the Age of Identity

Luís Roberto Cardoso de Oliveira · 


A meu ver, o exame da segunda tabela reforça a dificuldade de com-
preensão mais abrangente, no âmbito das ouvidorias, das demandas enfa-
tizadas pelos reclamantes persistentes. Com exceção da sétima linha, que
exige exposição pública e humilhação dos responsáveis pelo dano, reve-
lando um claro desejo de vingança, presente em 14% das exigências dos
persistentes e em nenhuma do grupo de controle, todos os demais itens
de reparação podem ser entendidos como medidas em prol da recuperação
da dignidade perdida. Este parece ser claramente o caso da solicitação
de pedido de desculpas e reconhecimento de tratamento indevido, assim
como do reconhecimento público da necessidade de reparação.
A demanda de justiça com base em princípios também aponta na mes-
ma direção, assim como a exigência de “ter seu dia no tribunal” (to have his
day in court). Esta última expressão é muito comum no mundo anglófono
e nos tribunais estadunidenses, e tem com frequência um significado
ambíguo: pode se referir tanto ao direito inalienável de todo cidadão de ter
suas demandas ouvidas pelo Estado, como se refere também a litigantes
cujas demandas são vistas como irrazoáveis, ou sem sentido jurídico, mas
que insistem em tê-las julgadas no tribunal. A aparente confusão presente
apenas numa parte das causas encaminhadas pelos persistentes, que em
31% dos casos alterariam a natureza e o fundamento de suas queixas ao
longo do processo, também poderia ser entendida como parte do esforço
em se fazer entender num contexto adverso ao reconhecimento de direitos
associados à dignidade do cidadão.
Os indicadores que expressam a percepção dos funcionários que aten-
dem aos reclamantes fortalecem o argumento quanto à dificuldade de as
ouvidorias australianas processarem satisfatoriamente as demandas de
reparação dos reclamantes persistentes, e que eu associaria à problemática
da dignidade e do insulto conforme dito acima. Em 31% dos casos encami-
nhados por reclamantes persistentes, os funcionários acreditam que não
haja perda substancial, contra 9% dos casos do grupo de controle. Apenas
10% das queixas dos persistentes seriam apresentadas com coerência e
racionalidade nas entrevistas, enquanto 82% das queixas do grupo de

Politics: Redistribution, Recognition and Participation.” In: Fraser, Nancy; Honneth,


Axel. Redistribution or Recognition? A Political-Philosophical Exchange. Londres: Verso,
2003, pp.7-109, em que dignidade, autoestima e identidade ganham centralidade nas
respectivas formulações.

 · Concretude simbólica e descrição etnográfica


controle satisfariam esse aspecto. Da mesma forma, os dados sobre as difi-
culdades dos funcionários na interação com os persistentes são ainda mais
impressionantes: a) em apenas 12% dos casos a relação é classificada como
positiva, contra 86% dos casos do grupo de controle; b) em 52% dos casos
persistentes o funcionário busca ajuda de um colega mais experiente, contra
2% dos outros casos; e c) em 48% dos casos persistentes o funcionário evita
contato com frequência, o que não ocorreria em nenhum dos outros casos.
Outras características na apresentação das demandas distinguem os
dois grupos de forma acentuada e contribuem para exotizar os reclamantes
persistentes: redação longa e difícil na exposição das queixas, retórica de
ter sido tratado de forma inaceitável, declarações de terceiros sobre o seu
bom caráter, uso de marcadores coloridos e de várias outras formas de
ênfase nos textos encaminhados etc. Além disso, aspectos comportamen-
tais quase exclusivos dos reclamantes persistentes vão na mesma direção:
ameaças diretas ou indiretas aos atendentes (por escrito, ao telefone ou em
pessoa), ameaças de suicídio, uso de expressões excessivamente dramá-
ticas e outros. Gostaria de chamar a atenção aqui para o fato de que, com
exceção dos indicadores relativos a ameaças aos funcionários das ouvido-
rias e de algumas demandas de vingança, que só aparecem nos casos dos
reclamantes persistentes, os demais indicadores (salvo pela demanda de
reconhecimento público na tabela II) também estão presentes, em alguma
medida, nos demais casos, sugerindo algum espaço de interseção entre as
demandas expressas nas causas dos dois grupos de reclamantes.
Do meu ponto de vista, a área de interseção relativa às demandas do
grupo de controle envolveriam a dimensão temática do reconhecimento
e os direitos associados à dignidade do cidadão que, nesses casos ou para
esses atores, não teriam a mesma importância presente nos casos dos re-
clamantes persistentes. Não quero dizer com isso que alguns reclamantes
persistentes não tenham problemas psicológicos de gravidade variada, mas
que, provavelmente, na maioria dos casos classificados como persistentes, o
principal problema dos reclamantes estaria na dificuldade em receber aten-
ção adequada para o tipo de demanda encaminhada. Isso não deixaria de
ser verdade mesmo nos casos em que se pudesse diagnosticar claramente,
com base em exames clínicos, quadros de paranoia ou a presença de alguma
psicose entre os reclamantes persistentes. Mas, como uma análise mais
conclusiva exigiria maior discussão de aspectos substantivos dos casos, que

Luís Roberto Cardoso de Oliveira · 


a exposição por meio de indicadores exclusivamente formais não permite,
gostaria de concluir minha argumentação com a breve discussão de um
caso coletado por mim durante a pesquisa no Juizado de Massachusetts.
Assim, poderei caracterizar melhor o déficit de compreensão das demandas
de reparação por insulto nos tribunais onde vigora o direito positivo, ou em
ouvidorias como as australianas aqui discutidas, assinalando como não é
tão difícil ou surpreendente perder o juízo em Juízo.
Trata-se de uma disputa de direitos na locação de imóveis residenciais,
envolvendo a caução de segurança (security deposit) comumente cobrada
dos inquilinos no ato de locação, e sobre a qual já me referi em outra pu-
blicação.63 O caso é particularmente interessante nesse contexto porque
a proprietária, cujo comportamento é classificado como totalmente irra-
zoável pelos funcionários do Juizado, é uma businesswoman bem-sucedida,
plenamente funcional em suas atividades cotidianas e na gestão de seus
negócios. Tomei conhecimento do caso quando assistia a sessões na Su-
perior Court do Middlesex County, em Massachusetts, para onde as causas
apeladas em meu Juizado eram encaminhadas.64 O caso chamou a atenção
não só por ter origem no Juizado, mas também porque a proprietária, que
havia formalizado a apelação, não estava representada por advogado e fazia
questão de exercer seu direito de autorrepresentação. A sessão foi inter-
rompida e adiada sob protestos veementes da proprietária, pouco depois de
ela começar a expor seu caso, por não conseguir apresentar evidências de
acordo com as regras procedimentais do tribunal, e por se mostrar incapaz,
aos olhos do juiz, de defender seus direitos naquele fórum.65
O fato de a proprietária não conhecer as regras procedimentais e ser
impedida de exercer o direito de autorrepresentação não me surpreen-
deu muito, e não fugia ao padrão naquelas circunstâncias, mas sim a sua
manifestação de contrariedade e a respectiva repercussão na secretaria
do Tribunal. Além de se exceder na contestação da decisão do juiz pelo

63 CARDOSO DE OLIVEIRA, op.cit., pp.61-62.


64 Quando as partes apelam quanto à decisão prolatada no Juizado, elas são ouvidas
de novo, como na primeira instância, agora numa audiência com procedimentos mais
formais, perante 12 jurados.
65 Esses tribunais têm regras estritas de apresentação de evidências, e mesmo um ad-
vogado não acostumado a “fazer júri” tem dificuldades de atuar adequadamente nesse
fórum.

 · Concretude simbólica e descrição etnográfica


adiamento, fazendo com que ele tivesse que ameaçá-la de prisão por de-
sacato para encerrar a sessão, a proprietária “bateu boca” com o secretário
do juiz no cartório do Tribunal após a sessão, que a deixou falando sozinha
depois de lhe dizer em voz alta: I’ve had it... I’ve had it... (“Cheguei ao meu
limite...”). Os comentários no cartório após o incidente eram de que a
proprietária era uma encrenqueira, emocionalmente perturbada, que just
wants her day in court (“só queria ter seu dia no tribunal”).
Após observar essas cenas, troquei algumas palavras com a proprie-
tária e examinei os arquivos do Juizado sobre o caso. O processo original
havia sido movido pelos ex-inquilinos, que demandavam a devolução
da caução de segurança após a desocupação do imóvel, alegando que
os problemas eram produto da deterioração padrão pelo uso (wear and
tear) do imóvel, e que eles teriam direito à devolução da caução na sua
integralidade. Como os direitos ao uso da caução são regulados por leis de
aplicação estrita (strict liability), não há muito espaço para flexibilização
interpretativa quando o processo é avaliado em audiência judicial. De
acordo com a lei, o proprietário só pode reter a caução quando no início
da locação assina com o inquilino um documento atestando as condi-
ções do imóvel naquele momento, a partir do qual tais condições serão
reavaliadas no momento da desocupação. Durante a ocupação, a caução
deve ficar depositada numa caderneta de poupança, cujo saldo terá que
ser integralmente entregue ao ex-inquilino se não houver reparos justi-
ficáveis a fazer. Quando o proprietário não observa esses procedimentos
e se recusa a rever sua posição após a recepção de uma carta reclamatória
dando-lhe 30 dias para devolver a caução, ele fica sujeito a indenizar o
inquilino em até três vezes o valor original da caução.
Foi exatamente isso que aconteceu no caso em foco. Se a proprietária
não se conformava em devolver a caução ante a suposta constatação de
vários danos produzidos pelos ex-inquilinos em seu imóvel, a decisão
judicial concedendo treble damages aos ex-inquilinos deixou-a comple-
tamente irada. Ela simplesmente não aceitava o fato de não poder ser
indenizada pelos supostos danos no seu imóvel devido a “detalhes” pro-
cedimentais, e sua persistência em procurar reverter uma decisão sem
articular caminhos jurídicos viáveis, ou mesmo lógicos, tornava suas
ações totalmente sem sentido aos olhos do tribunal.
Assim como os reclamantes persistentes australianos, ela havia re-
digido e enviado ao Juizado longos documentos (um deles com mais de

Luís Roberto Cardoso de Oliveira · 


100 páginas) em apoio às suas demandas, chegando mesmo a encaminhar
transcrições de conversas telefônicas com os advogados dos ex-inquilinos,
as quais teriam sido ilegalmente gravadas, o que agravava a sua situa-
ção jurídica no desenvolvimento do caso. Lendo esses documentos e
relacionando-os com algumas de suas falas no tribunal, fica claro que,
além dos interesses materiais envolvidos, a proprietária havia tido de-
sentendimentos com os ex-inquilinos ao longo da locação, e acreditava
que parte dos danos teria sido feita por desleixo intencional, como reação
aos referidos desentendimentos. Em uma palavra, ela se sentia abusada
pelos ex-locatários e não se conformava com o que lhe parecia ser um
respaldo do tribunal aos supostos abusos. Independentemente da maior
ou menor adequação dos tribunais modernos para administrar esse tipo
de conflito, sua existência não é produto da insanidade mental de seus
protagonistas, e a falta de instrumentos apropriados para administrar
conflitos desse tipo ameaça direitos importantes do cidadão, além de
poder agravar outros desentendimentos.
De todo modo, a análise desses casos sugere que há problemas de
inteligibilidade significativos em seu processamento no âmbito dos tri-
bunais e em outras instituições modernas voltadas para a administração
de conflitos. Assim como na discussão sobre as práticas de bruxaria,
a comparação com procedimentos científicos não se mostra o melhor
caminho para compreendê-las, as demandas de reparação por insulto e
os direitos associados ao reconhecimento da dignidade do cidadão tam-
bém não podem ser adequadamente entendidos pelos critérios vigentes
de filtragem judicial ou pela ênfase estrita em direitos positivados. Em
ambos os casos o pesquisador deve procurar expandir ou ampliar seu
horizonte interpretativo, explorando todas as possibilidades de elucidação
a partir da experiência de interação com os sujeitos da pesquisa de forma
abrangente.66 A concretude etnográfica demanda reflexão permanente
sobre critérios de inteligibilidade, cultivando assim questões de caráter
filosófico para dar conta de situações empíricas bem delimitadas e sim-
bolicamente pré-estruturadas.

66 Da mesma forma, ante a dificuldade de processar adequadamente essas causas no


Juizado, seria interessante que o Judiciário ampliasse alternativas de procedimento e
criasse mecanismos de triagem, em associação com outras instituições, de modo a via-
bilizar melhor compreensão das demandas de reparação por insulto, e desfechos mais
sintonizados com as expectativas dos cidadãos.

 · Concretude simbólica e descrição etnográfica


Sociologia da moral,
ação coletiva e espaço público1

J F

Introdução

Neste artigo, apresento um arranjo possível de diferentes perspectivas


de sociologia da moral elaborado por mim nos últimos anos com o pro-
pósito de analisar os modos de acesso ao espaço público em cidades do
estado do Rio de Janeiro – problema sociológico que norteia as pesquisas
das quais participei.2 Nesses termos, a sociologia da moral se define, na
minha proposta, como uma caixa de ferramentas a partir da qual imbri-
quei contribuições dos pragmatismos francês e americano. Esse arranjo
se fundamenta na proposta de um oportunismo metódico, nos termos de
Isaac Joseph,3 que orienta as atividades ordinárias dos atores (bem como
aquelas do pesquisador, na minha proposta). Em suma, o artigo apresenta

1 Agradeço a Luiz Antonio Machado da Silva e a Alexandre Werneck pelos comentários


ao longo da elaboração deste texto. Observo que a elaboração deste capítulo decorreu de
novas intervenções sobre outro artigo de minha autoria: FREIRE, Jussara. “Uma caixa de
ferramentas para a compreensão de públicos possíveis: Um arranjo de sociologias pragma-
tistas.” Revista Brasileira de Sociologia das Emoções (RBSE), vol.12, n.36, 2013, pp.720-736.
2 Devido ao espaço de que disponho para a presente discussão, privilegiarei a apre-
sentação do arranjo de pragmatismos orientadores de minha proposta. Os resultados
das pesquisas por mim realizadas encontram-se na bibliografia do presente texto, de
minha autoria, e alguns foram resumidos recentemente – ver FREIRE, op.cit.
3 JOSEPH, Isaac. “Ariane et l’opportunisme méthodique.” Annales de la Recherche Ur-
baine, n.71, 1996, pp.5-17.
minha própria bricolagem (e não aquelas dos autores analisados), o re-
corte analítico que conduziu minha observação da formação de alguns
públicos, suas circulações, visibilidades e modalidades de tomadas de
voz em cidades do estado do Rio de Janeiro. Em resumo, apresento uma
modalidade possível de uma proposta em sociologia da moral, estabelecendo
articulações entre perspectivas pragmatistas dos dois lados do Atlântico.
Sobre bricolagem, quando o termo é mobilizado em ciências sociais, ele
se refere geralmente à figura do bricoleur de Claude Lévi-Strauss.4 Como
mobilizo esse termo recorrentemente neste texto, aviso que não sigo o
caminho traçado por Lévi-Strauss. Minha bricolagem retoma a proposta
de “oportunismo metódico”5 reapropriada aqui para dar (e, certamente,
prestar) conta de modos segundo os quais conduzi minhas atividades
acadêmicas, considerando que a vida cotidiana do cientista não seja tão
distante daquela do citadino comum. No meu caso, retomo essa proposta
como modo de apresentar minhas pegadas referentes a minhas atividades
de pesquisadora e ao manuseio de ferramentas científicas. Nesse sentido,
este texto aborda uma bricolagem na (e da) engenharia do pragmatismo
sociológico. A ciência não é isenta de bricolagem (e vice-versa). Ainda que
autores que mobilize neste texto extraiam de suas construções esse termo,
pelos motivos apresentados nesta nota, conservei-o por ter me lembrado
do arranjo, analisado por Bruno Latour,6 entre o personagem de quadri-
nhos belga Gaston Lagaffe, uma espécie sui generis de engenheiro, não
humanos e outros humanos. Para solucionar tensões entre os humanos e
não humanos de uma dada situação, o personagem recorre a sua caixa de
ferramentas (no sentido literal do termo) como único meio de solucionar
um impasse da situação em questão. Inspiro-me nessa compreensão da
caixa de ferramentas e me “liberto” das tradicionais divisões entre “ciên-
cias” e “bricolagem”.7 A libertação expressa evidentemente uma recusa de
“assimetrizar” a bricolagem e o domínio da engenharia na pensée sauvage: 8

4 LÉVI-STRAUSS, Claude. La pensée Sauvage. Paris: Plon, 1967.


5 JOSEPH, Isaac, op.cit.
6 LATOUR, Bruno. Petites leçons de sociologie des sciences. Paris: La Découverte, 1993.
7 LATOUR, Bruno. “Les ‘vues’ de ‘l’esprit’: une introduction à l’anthropologie des
sciences et techniques.” In: Akrich, Madeleine; Callon, Michel ; Latour, Bruno (orgs.).
Sociologie de la traduction. Paris: Presses des Mines, 2012, pp.33-69.
8 JOSEPH, op.cit.

 · Sociologia da moral, ação coletiva e espaço público


A bricolagem é definida indiretamente como um déficit de pensamen-
to: quando é feita “com os meios à mão”, o resultado é contingente e o
pensamento se vê submetido ao mundo. Se essa visão corresponde a uma
confissão de incompetência dos atores, o risco de reduzir o conhecimen-
to ao único saber legítimo é grande. Em vez de bricolagem, Isaac Joseph
preferia se referir ao “oportunismo metódico” de pessoas enfrentando
suas atividades.9

E a propósito da denominação da sociologia da moral, quando formu-


lada genericamente, seu uso pode ser problemático por não dar conta da
pluralidade interna do próprio pragmatismo, se tanto é que a sociologia
da moral se restrinja a essa virada sociológica, para retomar a expressão de
Breviglieri e Stavo-Debauge.10 Em minha proposta, a tradição pragmatista
fundamenta meu entendimento da sociologia da moral. Porém, a plurali-
dade no seio do próprio pragmatismo – que é também um dos principais
problemas por ela tratados – é uma observação prévia indispensável para
justificar minha proposta de bricolagem. No entanto, essas abordagens se
reúnem em torno de pelo menos um projeto: levar a sério as competências
dos atores ordinários e descrever densamente suas atividades concertadas
e suas coordenações – o que problematiza as ordens sociais a partir das
capacidades de os atores sociais se coordenarem. Pela expressão “agen-
tes competentes”, proposta por Garfinkel,11 entende-se que as pessoas
possuem e desenvolvem competências próprias quando problematizam
determinados assuntos. Nesse sentido, a compreensão dos públicos por
mim estudados nos últimos anos partiu de um esforço de reconstituição
analítica das competências situadas, dos recortes cognitivos e morais, de
pessoas e coletivos que agem em um horizonte de publicização. Minha
proposta visou compreender parte do processo da construção do espaço

9 BIDET, Alexandra; Boutet, Manuel; Chave, Frédérique; Hédouin, Arnaud; Kellen-


berger, Sonja; Le Mouël, Eloi; Magimel, Claire; Paupardin, Muriel; Renaud, Yann.
“L’empreinte d’Isaac Joseph: Explorations croisées.” In: Cefaï, Daniel; Saturno, Claire.
Itinéraires d’un Pragmatiste: Autour d’Isaac Joseph. Paris: Economica 2007, p.186.
10 BREVIGLIERI, Marc; Stavo-Debauge, Joan. “Le geste pragmatique de la sociolo-
gie française: Autour des travaux de Luc Boltanski et Laurent Thévenot.” Antropolítica,
n.7, 1999, pp.7-22.
11 GARFINKEL, Harold. Studies in Ethnomethodology. Englewood Cliffs, Nova Jersey:
Prentice Hall, 1967.

Jussara Freire · 
público, mas antes, da ordem pública, isto é, das atividades ordinárias
e competências dos atores quando buscam serem ouvidos e suas vozes,
reconhecidas.
O problema que atravessa as diferentes pesquisas das quais tomei
parte em cidades do estado do Rio de Janeiro volta-se para a descrição e
interpretação das dificuldades, senão das francas restrições, encontradas
por certos membros de arenas políticas em suas rotinas quando buscam
publicizar assuntos considerados problemáticos por eles. Ainda que di-
ferentes abordagens sejam mobilizadas em minha proposta, todas se
reúnem em torno de projetos do pragmatismo francês (na continuidade
da filosofia de Paul Ricœur)12 ou do americano (na continuidade de James,
Dewey, Peirce, Mead e a “primeira” Escola de Chicago).13 Destaco ainda
que, na abordagem francesa, alguns autores construíram pontes transa-
tlânticas permitindo apreender os modos de circulação do pragmatismo
francês e americano: Daniel Cefaï e Isaac Joseph,14 Michel De Fornel e
Louis Quéré15 ou, ainda, Bruno Latour.16

12 A propósito da continuidade entre a filosofia de Ricœur nas ciências sociais france-


sas e, em particular, no pragmatismo francês, ver THÉVENOT, Laurent. “Des institu-
tions en personne: Une sociologie pragmatique en dialogue avec Paul Ricœur.” Études
Ricoeuriennes, vol.3, n.1, 2012, pp.11-33; BREVIGLIERI, Marc. “L’espace habité que
réclame l’assurance intime de pouvoir: Un essai d’approfondissement sociologique
de l’anthropologie capacitaire de Paul Ricoeur.” Études Ricoeuriennes, vol.3, n.1, 2012,
pp.34-52. No primeiro texto, Thévenot observa que a “dívida” da sociologia pragma-
tista francesa com Ricœur pode ser situada a partir do diálogo entre os sociólogos prag-
matistas e o filósofo em torno de teorias que problematizavam o “senso do justo.” No
entanto, vale destacar que o artigo descreve também diferentes caminhos seguidos por
sociólogos pragmatistas franceses (como é o caso, por exemplo, de Louis Quéré), mas
cujo ponto de partida é, ainda assim, fortemente marcado por esse diálogo. No segundo
texto citado, Breviglieri apresenta, por sua vez, esse diálogo a partir da análise de duas
posturas sociológicas decorrentes da “antropologia do homem capaz” de Ricœur.
13 Para uma análise sobre a continuidade entre a sociologia pragmatista americana e a
filosofia pragmatista, entre outros, ver Cefaï, Daniel; Joseph, Isaac (orgs.). L’héritage du
pragmatisme: Conflits d’urbanités et épreuves de civisme. Paris: l’Aube, 2002; WERNECK,
Alexandre. A desculpa: As circunstâncias e a moral das relações sociais. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2012.
14 CEFAÏ; Joseph, op.cit.
15 FORNEL, Michel de; Quéré, Louis. La logique des situations. Paris: EHESS, 1999.
16 LATOUR, Bruno. “Formes élémentaires de la sociologie; formes avancées de la
théologie.” Trabalho apresentado no Colloque du Centenaire des Formes Élémentaires
de la Religion, Paris, Collège de France, 8 de junho de 2012. Disponível (on-line) em:
http://www.bruno-latour.fr/sites/default/files/127-DURKHEIM-FORMES_0.pdf

 · Sociologia da moral, ação coletiva e espaço público


Por esse motivo, minha bricolagem pode ser lida como uma busca por
ajustar modelos franceses e americanos pragmatistas para a compreensão
das variações de processos de publicização, em horizonte ou efetivados,17
contextualizados em diferentes lugares e momentos do estado do Rio de
Janeiro. Vale destacar que nem toda intenção de publicização se traduz
pela sua efetivação (tanto nos casos destas abordagens quanto naqueles
que observei). Essa é a chave analítica que escolhi para a compreensão
dos obstáculos de acesso ao espaço público, cerne do problema que atra-
vessa minhas pesquisas. No entanto, o eixo em horizonte – efetividade
da publicização de vozes (cuja manifestação, no caso do tipo de públicos
que analiso, se traduz pela visibilidade e modo de ser reconhecido no es-
paço púbico) – implica uma minuciosa descrição interpretativa da trama
desse processo. Um núcleo possível do olhar sociológico pode ser o de
acompanhar a mobilização dos recursos e dispositivos disponíveis18 em
situação, pelos atores ordinários, que participam da construção desses
processos. Essa me parece outra chave condicionadora da compreensão
plural de processos de publicização, o que implica necessariamente um
ajustamento dos modelos pragmatistas e franceses aos públicos analisa-
dos, no meu caso, em contextos urbanos cariocas e fluminenses.

17 Para uma análise da relação entre a efetivação e o pragmatismo, ver WERNECK, op.cit.
18 Boltanski e Thévenot – BOLTANSKI, Luc; Thévenot, Laurent. De la justification: Les
économies de grandeur. Paris: Gallimard, 1991; BOLTANSKI, Luc. L’amour et la justice
comme compétences. Paris: Métaillé, 1990; BOLTANSKI, Luc e Chiapello, Ève. Le nouvel
esprit du capitalisme. Paris: Gallimard, 1999; ou ainda THÉVENOT, Laurent. L’action au
pluriel: Sociologie des régimes d’engagement. Paris: La Découverte, 2006 – colocaram no
cerne de suas inquietações a noção de dispositivo para a análise das situações de provas
e de disputas, inspirando-se na obra de Bruno Latour. O dispositivo é um ajuntamento
de objetos, regras e convenções (por exemplo, o direito) orientados na direção da justi-
ça (BOLTANSKI; Chiapello, op.cit.). Por meio dos dispositivos, é possível, de um lado,
enquadrar a situação de prova ou de disputa, pois estes sustentam os princípios de jus-
tiça e, de outro, avaliar os princípios de justiça presentes em uma situação específica.
No entanto, em vez de considerar o dispositivo como genérico e fixo, os autores desta-
caram que ele pode ser universalmente situado. Assim, numa perspectiva situacionis-
ta, os dispositivos são conjuntos heterogêneos de homens e coisas (ou não humanos)
que sempre variam pelo fato de os próprios participantes – seus estados e estatutos
– disporem de equipamentos mentais e físicos também variáveis de uma situação para
outra. Logo, os não humanos são actantes, como os humanos, constantemente pas-
síveis de serem mobilizados, redefinidos e ressignificados. O dispositivo aponta para
uma associação sempre prestes a ser recomposta ou reconfigurada, uma mediação que
redefine constante e reciprocamente a relação entre humanos e não humanos.

Jussara Freire · 
A situação como ponto de partida analítico

Goffman, na inusitada introdução de Frame Analysis,19 que elucida desde


o princípio o que é um quadro social, poderá desapontar o leitor à procura
de uma continuidade linear dos pioneiros da primeira Escola de Chicago
com a obra desse autor. Thomas20 e sua clássica sentença “se as pessoas
definem as situações como reais, elas são reais nas suas consequências”
não o influenciam. O fundador apenas sussurra em seu ouvido um ca-
minho: o situacionismo metodológico. Ambos concordam em um ponto:
sim, a compreensão da vida social parte de relações entre as ações e as
situações nas quais as mesmas ocorrem. Mas, para Goffman, a relação
entre realidade e definição de situação, nos termos de Thomas, recai nos
problemas daquela “filosofia de venerável tradição”21 segundo a qual o que
é presumidamente real “não passa de uma sombra”.22 Resta aos seguidores
da tradição o papel de encontrar ferramentas (métodos, conceitos etc.)
para “levantar o véu”.23 Trata-se de uma postura a definir, no lugar dos
atores sociais, a natureza de sua própria realidade. Nisso, os enquadra-
mentos dos atores do que é real têm pouco espaço. Nas primeiras linhas
da introdução de seu livro, Goffman reage quando a realidade se define
a partir do que é real em suas consequências:

[E]sta afirmação é verdadeira em sua formulação literal, mas falsa na


maneira como é interpretada. Definir as situações como reais tem certa-
mente consequências, mas estas só podem ter incidência muito marginal
sobre os acontecimentos em curso [isto é, como se escolheu na tradução
francesa,24 a definição da situação incorreta também pouco interfere no curso
dos acontecimentos]; em alguns casos apenas um ligeiro constrangimento
sobrevoa o cenário como expressão de uma moderada inquietação para

19 GOFFMAN, Erving. Os quadros da experiência social. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.


20 THOMAS, William Isaac. “Définir la situation.” In: Grafmeyer, Yves; Joseph, Isaac
(orgs.). L’école de Chicago: Naissance de l’écologie urbaine. Paris: Aubier, 1979 [1923].
21 GOFFMAN, op.cit.
22 Idem.
23 Idem.
24 GOFFMAN, Erving. Les cadres de l’expérience. Paris: Minuit, 1991.

 · Sociologia da moral, ação coletiva e espaço público


os que tentaram definir a situação erroneamente. (...) O mundo não é
apenas um palco – tampouco o teatro o é totalmente.25

Diferentemente, Goffman insiste em uma das implicações dessa forma


de conceber o que é real a partir de sua natureza – evocando posterior-
mente a guinada de James, que consistiu em interrogar as circunstâncias
segundo as quais achamos que algo é real:26 os atores não inventam a
situação, mas, “ordinariamente, tudo o que eles fazem é avaliar correta-
mente a situação”.27 A definição da situação se assemelha, assim, a uma
expectativa que temos de uma situação, e agimos em consequência desta.
Goffman distingue a ideia de situação da de atividade situada. Esta
última caracteriza-se pelo fato de que é uma atividade que pode ser
descrita, ou talvez reapresentada, e então suas personagens integram
a seu vocabulário certas justificativas, desculpas ou consertos capazes
de viabilizar a repetição da representação em seu sentido dramatúrgico.
Em suma, a ideia de situação diz respeito a um espaço-tempo definido
convencionalmente em que os participantes comunicam ou controlam
sua aparência, sua linguagem corporal e suas atividades.28 Mais ainda, as
situações se constroem de acordo com certos princípios de organização
que estruturam eventos sociais e nosso engajamento subjetivo.29 Ela or-
ganiza a experiência e o engajamento individuais na vida social. Mas esse
engajamento, também situado, depende da possibilidade de nossos es-
quemas mentais e cognitivos estarem ajustados a determinadas situações.
Goffman propôs o conceito de frame, quadro, para analisar essas situações.
O “quadro” é um esquema perceptivo, cognitivo e prático da experiência
social, que permite compreender o que acontece em uma situação e como
nela se envolver. Dessa forma, o quadro estrutura, de um lado, a maneira
como definimos e interpretamos uma situação e, de outro, o modo pelo
qual vamos nos envolver em uma situação.30 Por este motivo, Joseph se
referiu ao quadro goffmaniano como um dispositivo cognitivo e prático

25 GOFFMAN, op.cit., p.23.


26 Ibid., p.24.
27 Ibid., p.24.
28 JOSEPH, Isaac. Erving Goffman e a microssociologia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.
29 GOFFMAN, op.cit.
30 GOFFMAN, op.cit.; JOSEPH, op.cit.

Jussara Freire · 
de organização da experiência que torna os acontecimentos inteligíveis
e, então, viabiliza nossa participação em uma situação. Assim, o quadro
estrutura ao mesmo tempo o modo como definimos e interpretamos uma
situação e o nosso envolvimento em um curso de ação.31

Capacidades críticas e morais e ordem pública situada dos


quadros sociais da experiência aos regimes de ação

Ainda que essas contribuições apresentem diferenças significativas e


substantivas, é possível encontrar pontos de aproximação entre as noções
de quadro goffmaniana, de regimes de ação de Boltanski e Thévenot32 e
ainda de regimes de engajamento de Thévenot.33
Nesse caso, os regimes problematizam enquadramentos entendidos,
em primeiro lugar, como recortes cognitivos e morais ordinariamente
realizados pelas pessoas comuns, agentes competentes. Para essas so-
ciologias, a unidade elementar de observação também é a situação, na
qual se encontram pessoas que estabelecem um acordo, neste espaço-
-tempo específico, em relação a um “bem comum”, que configura um
princípio superior que viabiliza o “viver junto”. Boltanski e Thévenot34
denominaram cité (que literalmente diz respeito à cidadela antiga, como
a polis grega, mas cuja tradução sociologicamente mais apropriada seria
“ordem”) esse modelo de “humanidade comum”:35 um enquadramen-
to ou regime situado, a partir do qual tem lugar um acordo em relação
aos princípios do que é justo para seus membros, em nome de um “bem
comum” visado que permite estabelecer uma relação de equivalência
entre os seres. Portanto, essas cités distribuem e hierarquizam os seres
em uma situação, sem que haja necessidade de questionar a pertinência
dos estados de grandeza, já que há um consenso em torno destes. Esse

31 JOSEPH, op.cit., p. 123.


32 BOLTANSKI; Thévenot, op.cit.
33 THÉVENOT, op.cit.
34 BOLTANSKI; Thévenot, op.cit.
35 O pressuposto dos autores é que o acordo em cada cité é elaborado a partir de uma
relação de equivalência entre os seres. Cada cité, portanto, refere-se a um modelo es-
pecífico de bem comum, que permite a generalização das operações de críticas.

 · Sociologia da moral, ação coletiva e espaço público


recorte não exclui, contudo, a disputa, uma vez que este acordo é situado
e, portanto, em outras situações, questionável. Nessas situações, as partes
conflitantes, os “pequenos”, podem questionar a relação de grandeza dos
“grandes”, ordem definida em nome do “bem comum”, e colocar à prova
a hierarquia que ordenava a situação anterior. Os dispositivos sustentam a
crítica e são engajados ou engajam um ser em uma ação. Esses dispositivos
possibilitam, assim, que atores se refiram a um princípio de justiça, apro-
priem-se dele para reforçar uma crítica ou ainda uma ordem de grandeza.
Eles permitem ancorar um regime de justificação em uma realidade.36
Para essa perspectiva analítica, trata-se de apreender o mundo por meio
dos sentidos corriqueiros do que é o mundo, dos sentidos construídos e
mobilizados por atores em situação (os sentidos corriqueiros conferidos ao
justo, ao amor, ao sofrimento, por exemplo, e retomando alguns objetos
de Boltanski), bem como de observar o trabalho realizado por pessoas no
intuito de se ajustarem de maneira situada a este mundo. Vale destacar
que a questão do ajustamento em situação é outro ponto comum entre a
abordagem goffmaniana e pragmatista francesa.
O bem comum é um componente do dispositivo de justificação visan-
do à “humanidade comum” e à definição de ordens de grandeza. Assim,
Boltanski e Thévenot se concentram nos dispositivos de justificação a
partir dos quais os seres vão se situar e definir a situação. No entanto,
afirmar que haja uma relação de equivalência não significa que os seres
que povoam essas cités ocupem nelas um lugar igual, ou melhor, tenham
um tamanho equivalente, na medida em que um ser percebido ou con-
siderado como grande em uma tornar-se-á pequeno em outra, pelo fato
de variarem os bens comuns de uma ordem para outra. No entanto, o
eixo singular/generalização é uma constante em cada cité. De forma não
exaustiva, os autores enumeram seis cités, mundos ordenados segundo
sensos de justiça compartilhados. A multiplicação de regimes de ação
permite abranger analiticamente parte da pluralidade de registros de
justificação e os princípios do que é justo variam de uma cidade para outra.
A diferenciação operada entre e pelos seres depende intrinsecamente da
cité em que situadamente se encontram.

36 Para o detalhamento da virada pragmatista na sociologia francesa, ver BREVIGLIE-


RI; Stavo-Debauge, op.cit.

Jussara Freire · 
Cada cité é ordenada segundo um bem comum que adquire relevân-
cia em relação aos outros bens comuns das outras cités, considerados
de menor importância. Assim, em um momento de disputa, a crítica se
estabelece em função do bem comum visado em outras ordens e definidor
da relação de equivalência entre seres. Para retomar a expressão dos dois
autores, essa disputa é a que dará a determinadas pessoas (“as grandes”)
sua grandeza e que definirá o princípio superior comum37 – definição que
estabelecerá qual dos bens comuns é prioritário em relação a outros. A
crítica é, portanto, o que vai interrogar, se não desestabilizar, a ordem de
uma cité, os tamanhos dos seres que eram convencionados, com horizonte
constante de uma ameaça de redefinição da hierarquia da cité. Contudo,
os autores notam que os dispositivos e as situações apontam para a relação
tácita que organiza as ordens de grandeza, sem necessidade de lembrar
constantemente quem é grande e quem é pequeno, em uma ordem que se
sustenta por um acordo quanto a um bem comum que rege uma situação,
e que às vezes economiza assim as grandezas e os momentos de disputa.
Esses autores oferecem instrumentos (um modelo, nos seus termos)
para descrever os recursos disponíveis e mobilizados no espaço público,
o que implica um saber-fazer e um “saber-manusear” as ferramentas da
publicização por atores competentes. De certa forma, pode-se afirmar que
abordagens desse tipo privilegiam a compreensão da ideia de um público
como processo decorrente das competências e da exploração do mundo
público. Nos mundos analisados por Boltanski e Thévenot, as operações
críticas e morais se submetem a uma regra de generalização, isto é, a um
horizonte de “ascensão em generalidade”. Nesse sentido, retomando a
denominação dos autores, pode-se considerar essa abordagem uma so-
ciologia da crítica.38 Trata-se de um modelo para descrever a forma como

37 Boltanski e Thévenot definem o princípio superior comum como um princípio de


coordenação que caracteriza a cidade e que permite uma convenção quanto à equiva-
lência entre os seres da cité. Esta garante a qualificação entre os seres. Assim, lembrar
os tamanhos entre os seres é questionado em última instância, desde que, mais fre-
quentemente, apenas é preciso se referir à qualificação dos estados de grandeza. A pe-
quenez e a grandeza dependem da convenção do estado de grande e de pequeno. Mas
os grandes garantem um princípio superior comum (BOLTANSKI; Thévenot, op.cit.,
pp.177-178).
38 Em algumas palavras, podemos apresentar a sociologia da crítica como um mode-
lo voltado para descrever as competências situadas dos atores, o que é incompatível

 · Sociologia da moral, ação coletiva e espaço público


as pessoas se engajam em uma ação a partir da pluralidade de regimes
disponíveis.
Essas sociologias referem-se a operações morais e cognitivas mobi-
lizadas após um evento referencial, um caso, ou, ainda, um problema a
ser tratado com prioridade. A análise de problemas públicos é enrique-
cida pelo fato de a sociologia dos regimes de ação também incluir em sua
análise muitas formas possíveis de denúncia ou de acusação. Dentre elas,
destacam-se o “caso” ou o “escândalo” (o Caso Dreyfus, ou os escândalos
do sangue contaminado, por exemplo), recurso frequentemente mobili-
zado na elaboração do problema público e disponível para problematizar
um assunto e o tornar prioritário.
Por exemplo, analisando a denúncia pública formulada nas cartas de
leitores, e particularmente, as operações de engrandecimento nas formas de
apresentar publicamente sentimentos de injustiça, Boltanski39 analisa-as
do ponto de vista da forma caso (forme affaire). Essa forma de denúncia
traduz um senso de injustiça, uma tentativa de formação de uma causa,
atribuída a algum coletivo. Na elaboração dessas causas, a denunciação
pública pressupõe um “sistema actancial”, e essa relação se dá entre quatro
actantes: o denunciador; aquele em favor de quem é cumprida a denúncia;
aquele contra quem essa denúncia se exerce; e, enfim, aquele diante de
quem ela é formulada. Ou seja, o denunciador, a vítima, o perseguidor e
um juiz. Cada um desses actantes é qualificado pela posição que ocupa
em um eixo contínuo que vai do menor ao maior, do singular ao geral. A
pessoa responsável pela seleção das cartas a serem publicadas é um juízo
de normalidade sobre as denúncias que recebe.
A definição da anormalidade é analisada como condição de publi-
cização de certas vozes: as mais “normais”, ajustadas às exigências de

com o projeto de uma sociologia partindo da ideia de revelar e desvelar as ilusões dos
indivíduos. Boltanski destaca que as atividades científicas do sociólogo crítico são
marcadas pela externalidade em relação à realidade social observada. No limite, o que
é observado são crenças e, logo, o papel da sociologia crítica é de revelar a veracidade
dessa crença, já que ela dispõe de uma autoridade científica que lhe atribui utilidade
social (BOLTANSKI, op.cit., pp.39-44): a compreensão da atividade científica torna-se
uma operação visando descortinar as ilusões sociais como manifestam, por exemplo,
o uso das noções de ideologias, prenoções, representações, crenças, resíduos (Ibid.,
pp.40-41).
39 BOLTANSKI, op.cit.

Jussara Freire · 
publicização em um contexto francês e, mais especificamente, ao jornal
Le Monde, de grande imprensa nacional. Essa normalidade é avaliada
em função de um registro de publicidade e de civismo (com repertórios
republicanos franceses), perceptível por meio do sistema actancial. Para
ser avaliada como “normal”, o denunciante ocupará uma posição mais
próxima do geral. O espaço da denúncia articula posições mais ou menos
homólogas no eixo singular/geral, de um lado, e no eixo proximidade/
alteridade (laço de singularização entre pessoas envolvidas na denúncia/
laço de dessingularização que permite o engrandecimento), de outro.
Essa é a condição para que a explicitação do sentimento de injustiça seja
considerada como “normal” por parte de todos os actantes. Desse ponto
de vista, Boltanski 40 assinala que a normalidade é um mecanismo cog-
nitivo dependente das operações de classificações situadas dos actantes.
Por exemplo, em uma denúncia feita por uma esposa de que seu marido
vai deserdá-la e transferir a herança para sua amante, o denunciante e
a vítima estarão em uma posição do eixo mais próximo do singular. Se
essa denúncia é formulada para uma revista local interessada em publicar
histórias e tragédias de famílias locais, a consideração da “normalidade”
da denúncia dessa suposta publicação fará com que o juiz ocupe uma
posição próxima do singular.
Por esse motivo, a pluralidade de regimes de ação e de formulação
de crítica é sempre situada. Outros pesquisadores, próximos dessa abor-
dagem, trabalharam “o caso” também do ponto de vista de uma forma,
retomando a proposta da sociologia simmeliana, de um recurso político
disponível para publicizar uma crítica abafada que questiona as ordens de
grandezas. A “forma caso” é um recurso disponível para agir no mundo
político: “O caso passa a ser essa configuração que torna visível um não
consenso entre duas partes que se diziam antes únicas e iguais. Uma vez
que se tornou uma forma, o caso é também um recurso político disponível,
doravante suscetível de ser sempre mobilizado e recontextualizado para
tal ou tal situação.”41

40 Ibid., pp.280-285.
41 CLAVERIE, Elisabeth. “La naissance d’une forme politique: L’affaire du Chevalier
de La Barre.” In: Roussin, Philippe (org.). Critique et affaires de blasphème à l’époque des
Lumières. Paris: Honoré Champion, 1998, pp.204-205.

 · Sociologia da moral, ação coletiva e espaço público


A ênfase nos recortes cognitivos, morais e dramatúrgicos dos
atores para a compreensão da ação pública: ordem social e
problemas públicos

Gusfield – que compartilhou os bancos da Universidade de Chicago com


Goffman e Becker – procurou entender como o ato de dirigir um automóvel
em estado alcoolizado (drinking-driving) tornou-se um problema público
americano. Para tanto, estudou as disputas definicionais em torno desse
problema. Seu tratamento dessa construção social incorpora a drama-
tização dos eventos e das ações dos públicos envolvidos42 como forma
de enquadramento. Enfatizar o processo de dramatização do problema
público equivale a se interrogar sobre as performances, as encenações,
os modos de aquisição de visibilidade de certos assuntos elaborados por
arenas públicas, ecoando com a análise goffmaniana das pertinências
motivacionais, ainda que com outro recorte. O que importa não é tanto a
veracidade dos fatos, mas as performances dramatúrgicas de pessoas ou
de arenas públicas, de forma que um problema se torne um drama público
a ser tratado com prioridade.
Dessa maneira, a definição de um assunto problemático se caracteriza
por um processo de dramatização em vista de despertar a atenção pú-
blica, dispositivo de visibilidade e de prioridade. Nesse ponto, o diálogo
entre Gusfield e a forma caso, proposta por Claverie,43 é estreito. O autor
distinguiu problemas públicos e problemas sociais, 44 relacionando o tema

42 GUSFIELD, Joseph R. The Culture of Public Problems: Drinking-Driving and the Symbo-
lic Order. Chicago: The University of Chicago Press, 1981. Gusfield dedica o capítulo 7
desse livro à dimensão dramatúrgica da ação pública. No entanto, vale assinalar que ele
não se inspira conceitualmente apenas nos trabalhos de Goffman e de Burke. O autor
enfatiza três perspectivas da ação pública: do ponto de vista da performance, de sua
encenação e, por fim, da visibilidade de atos, experiências e emoções despertadas em
torno de um evento (p.77).
43 CLAVERIE, op.cit.
44 Fuks – FUKS, Mário. Conflitos ambientais no Rio de Janeiro: Ação e debate nas arenas
públicas. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001 – e Campos – CAMPOS, Marilene de Souza.
A empresa como vocação: O Sebrae e o empreendorismo na cultura da informalidade como
problema público. Rio de Janeiro: Iuperj, 2003, mimeo – examinam o percurso analítico
da construção da categoria sociológica de problemas públicos. Vale apenas relembrar
que essa categoria surge no âmbito de uma perspectiva construtivista, primeiramente
interessada em entender como se elaboram problemas sociais a partir de estudos sobre

Jussara Freire · 
dos problemas públicos com as aptidões cognitivas e morais de um grupo
para denunciar condições avaliadas como injustas ou anormais. Os pro-
tagonistas das arenas públicas são definidores e analisadores de assuntos
considerados por eles problemáticos. Essa perspectiva representa uma
inovação em relação ao anterior modo de analisar um problema público,
abordado a partir da definição de uma condição putativa, nos termos de
Spector e Kitsuse.45
Diferentemente de análises construtivistas, que empregavam in-
distintamente os adjetivos sociais e públicos,46 Gusfield estabelece, por
sua vez, uma diferenciação. O problema social remete a uma condição
reconhecida como problemática por grupo(s) de uma sociedade. Nesse
sentido, o problema social não é obrigatoriamente público pelo fato de que
não se torna necessariamente um assunto que precisará sempre de uma
resposta pública (seja ela em termos de formulação de política pública ou
de inserção em uma agenda pública visando a sua resolução). No entanto,
a distinção entre social e público baseia-se em uma perspectiva insti-
tucional. Ora, alguns autores sugeriram não cercar rigidamente certos
assuntos, não reconhecidos publicamente na esfera da privacidade ou
da intimidade, ou ainda demarcar demasiadamente as fronteiras entre o
íntimo e o político.47 Uma atenção mais fina para a continuidade desses
níveis de problematização é necessária para compreender a elaboração
de um problema público. Determinados assuntos como, por exemplo,

claims makings. Um problema social é analisado como um processo pelo qual grupos
ou membros definem uma condição putativa como sendo problemática (SPECTOR,
Malcolm; Kitsuse, John. “Sociologie des problèmes sociaux: Un modèle d’histoire na-
turelle.” In: Cefaï, Daniel; Terzi, Cédric. L’expérience des problèmes publics, 2012 [1973],
pp.81-107). Coletivos de indivíduos determinam uma condição supostamente proble-
mática e organizam atividades voltadas para uma transformação dessas condições as-
sim definidas em busca de uma resposta. Essa perspectiva se contrapôs às abordagens
anteriores que tratavam do tema dos problemas sociais de forma objetivista, consi-
derando essas condições como “reais”. No entanto, como assinalado por Cefaï – CE-
FAÏ, Daniel. “La construction des problèmes publics: Définitions de situations dans
des arènes publiques.” Réseaux, n.75, 1996, pp.43-66 –, a substituição das condições
objetivas pelas condições putativas gera uma aporia insolúvel que se esquece da plura-
lidade de perspectivas a partir das quais os atores definem uma situação problemática.
45 SPECTOR; Kitsuse, op.cit.
46 Conforme o que foi apontado por CAMPOS, op.cit.
47 BREVIGLIERI, Marc; Trom, Danny. “Troubles et tensions en milieu urbain.” In: Ce-
faï, Daniel; Pasquier, Dominique. Les sens du public: Publics politiques. Paris: Curapp/
PUF, 2003, p.399.

 · Sociologia da moral, ação coletiva e espaço público


problemas de moradia, podem ser os fundamentos de um repertório de
publicização, como é o caso da gramática 48 política das associações de
moradores. Dessa forma, na reflexão sobre o público, estabeleço uma
continuidade entre uma experiência singular e uma experiência pública
– a generalização dos interesses particulares e o fato de se sentir afetiva
e coletivamente concernido e envolvido em busca de solucionar um pro-
blema considerado injusto.

Arenas públicas e atenção pública

A problematização da atenção pública permite, por sua vez, analisar


agrupamentos, processos de mobilização e de visibilidade prévios a uma
resposta pública. O problema da atenção pública tematiza, portanto, a
visibilidade de operações críticas e morais no espaço público. Um processo
de definição, de apropriação e de propriedade de um assunto problemático
em vista de ascender a um nível de publicização ocorre em arenas públi-
cas. Essas concepções todas apontam para uma ideia de público do ponto
de vista dos públicos que definem situações e/ou assuntos problemáticos.
O trabalho de problematização e de definição das situações problemáticas
ocorre nas arenas públicas. As arenas públicas são, portanto, os bastidores
do espaço público.
A arena pública é uma forma possível de organização social. A noção
de arena pública, definida como forma social, possibilita a descrição da
pluralidade de formas de engajamento e de participação em uma ação
coletiva, além de focalizar uma análise nos conflitos, nos processos de
negociações e de mobilização de uma ação coletiva. É um quadro analí-
tico a partir do qual podemos realizar um “trabalho de significação”49 da

48 Neste texto, retomando a proposta de Boltanski, o termo “gramática” designa o


conjunto de regras ou coações (contraintes) a serem seguidas por participantes de uma
mesma situação, unidade espacial e temporal na qual pessoas coordenam suas ações de
modo a comportar-se de forma adequada ao contexto. O ajustamento a essas regras
reflete um trabalho prévio de definição de situação caracterizado pela capacidade de
relacionar o “ajustamento” (justesse) da gramática mobilizada com um princípio supe-
rior comum compartilhado por todos os participantes.
49 SNOW, David. “Analyse de cadres et mouvements sociaux.” In: Cefaï, Daniel;
Trom, Danny. Les formes de l’action collective: Mobilisations dans des arènes publiques.
Paris: EHESS, 2001.

Jussara Freire · 
mobilização coletiva e do engajamento dos atores participantes. A noção de
arena pública permite entender e apreender as práticas políticas concretas
considerando a pluralidade de “regimes de engajamento” nas situações.
As arenas públicas são constituídas dos conjuntos de públicos que
habitam um espaço público concreto. Cefaï50 destacou que a noção de arena
pública se remete a uma forma mais flexível, em movimento, daquela
do espaço público. Ele também assinalou que este último conceito era
fortemente marcado por uma compreensão habermasiana. Retomando
a proposta desse autor, podem-se identificar algumas principais carac-
terísticas de arenas públicas: a dramaturgia (como vimos anteriormente,
os recursos teatralizados, dispositivos e performances mobilizados para o
convencimento ou priorização de um determinado assunto no palco da
vida pública) e representação (teatral); a pluralidade (de atores em uma
mesma arena); os embates (o que pressupõe conflitos e disputas); as ne-
gociações (que terminam ou não em compromissos); as regras de publi-
cidade coercitivas (que os membros de diversas arenas precisam seguir);
e a dispersão (multiplicidade dessas formas, dispersas no espaço público
que ora se encontram, ora competem entre elas, que podem se formar
repentinamente e, com a mesma velocidade, se evaporar em função da
exigência da seleção de assuntos).
A partir dessas abordagens, a noção de ação coletiva torna-se um
instrumento capaz de descrever as atividades de coordenação, a partir
das operações críticas e morais dos atores das arenas públicas. A ordem
pública se refere a uma coordenação com certas modalidades entre hu-
manos, e também, entre humanos e não humanos (retomando a expres-
são de Latour)51. Obviamente, os momentos de provas e de conflitos são
parte integrante da coordenação, uma sequência na qual é questionada
a veracidade de um bem comum. Nesse sentido, a ordem pública é uma
“ordem negociada”.52 Como a negociação nunca é fixada, e tampouco
definitiva, o fundamento da ordem pública é este permanente e infinito
processo de reavaliação, de questionamento e de redefinição de assuntos
problemáticos.

50 CEFAÏ, Daniel. “Qu’estce qu’une arène publique? Quelques pistes pour une ap-
proche Pragmatiste.” In: Cefaï, Daniel; Joseph, Isaac (org.). L’héritage du pragmatisme.
Paris: l’Aube, 2002, pp.5182.
51 LATOUR, op.cit.
52 STRAUSS, Anselm. La trame de la négociation. Paris: L’Harmattan, 1992.

 · Sociologia da moral, ação coletiva e espaço público


Em todas essas abordagens, a ordem pública é apreendida a partir
das posições ocupadas pelos actantes, que variam constantemente de
uma situação para outra. Nesse sentido, a competência do ator consiste
em sua habilidade de se ajustar à situação do que pode ser considerado
normal em uma dada situação. Paralelamente, a ideia de competência
também alude aos múltiplos ajustamentos gerados pela passagem de um
regime de ação a outro. Nesse sentido, uma denúncia é um recurso críti-
co acionável como atividade concertada em horizonte de publicização e
mobilizável em função das situações que enfrentamos na vida cotidiana
e que consideramos injustas e/ou problemáticas. Porém, essa atividade
não se restringe à compreensão de planos “subjetivo”, “local” e/ou “pon-
tual”, desconectados de contextos mais amplos nos quais a denúncia seja
apresentada. Sua formulação e visibilidade dependem intrinsecamente
dos dispositivos, princípios e formas sociais que enquadram as denúncias
reconhecidas como legítimas em cada contexto. Nesse sentido, os qua-
dros sociais e os dispositivos permitem contextualizar uma denúncia em
regimes de ação a partir das gramáticas que as ordenam. As competências
dos atores, nesse caso, consistem em saber acionar essas gramáticas de
forma ajustada (relação problematizada por Boltanski e Thévenot a partir
do eixo justeza/justiça) ao regime no qual a pessoa se encontra. No caso
da denúncia pública, ela consiste em mobilizar os recursos disponíveis no
intuito de a denúncia ser considerada “normal”, o que também viabilizará
o seu tratamento público.

Considerações finais: da moral na continuidade de uma


ordem pública e de uma ordem “violenta”

Evidentemente, o eixo singular/geral ou público, lente analítica de muitas


das abordagens anteriormente apresentadas, dificilmente pode guiar,
seguido rigidamente, a compreensão dos processos de publicização nos
contextos cariocas ou fluminenses que estudei. Ainda que os primeiros
trabalhos de Boltanski e Thévenot tenham se voltado para esse eixo, vale
destacar que os últimos de Thévenot vêm refinando esse eixo analítico
a partir da pluralidade de contextos nacionais estudados por ele e sua
equipe.

Jussara Freire · 
Pois no que diz respeito a meu próprio trabalho, a partir de diversas
contribuições na sociologia e antropologia da moral, propus levar a sério
as múltiplas tematizações da linguagem da “violência urbana” no con-
texto do estado do Rio de Janeiro e descrever esse mosaico com o intuito
de descrever formas de coordenações nas cidades estudadas. Destaco que
o problema que permeia o conjunto de pesquisas das quais participei e
minhas observações volta-se para os recortes cognitivos realizados pelos
atores quando agem em um horizonte de publicização. Em vez de privi-
legiar a análise dos processos de publicização seguindo rigorosamente
os autores citados anteriormente, preferi deixar minha observação ser
guiada pelos modos segundo os quais os atores buscam captar a atenção
pública nos contextos analisados (e os sentidos que lhe conferem). Em
suma, propus afrouxar o eixo singular/geral de meu recorte analítico,
considerando um contexto marcado pela linguagem da “violência urba-
na” e pela copresença de uma ordem pública e de uma ordem violenta.53
Mais recentemente, analisei a gramática da “violência urbana” a
partir da pluralidade de lógicas que substanciam essa categoria em suas
relações com o repertório dos “direitos humanos”.54 A compreensão da
pluralidade dos repertórios da gramática da “violência urbana” na cidade
me aparecia como uma forma de compreender alguns dos dispositivos
que legitimariam e naturalizariam o recurso e/ou ameaça da força estatal
nos “territórios da pobreza”.55 Desta vez, interessava-me compreender a
continuidade públicos/“violência urbana” a partir de coletivos diferentes
daqueles que havia analisado. Por esse motivo, propus descrever e in-
terpretar os sensos de justiça de camadas médias, advogados defensores
dos direitos humanos, moradores de territórios da pobreza (vítimas de

53 MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio (org.). Vida sob cerco: Violência e rotina nas fa-
velas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Faperj, 2008; —————. “Sociabili-
dade violenta: Por uma interpretação da criminalidade contemporânea no Brasil urba-
no.” In: Ribeiro, Luiz Cesar (org.). Metrópoles: Entre a cooperação e o conflito. São Paulo/
Rio de Janeiro: Perseu Abramo/Fase, 2004; —————. “Criminalidade violenta: Por uma
nova perspectiva de análise.” Revista de Sociologia e Política, n.13, 1999, pp.115-124.
54 FREIRE, Jussara. “‘Violência urbana’ e ‘cidadania’ na cidade do Rio de Janeiro: Ten-
sões e disputas em torno das ‘justas’ atribuições do Estado.” Dilemas: Revista de Estudos
de Conflito e Controle Social, vol.7, n.1, 2014, pp.73-94; ————— (org.). Direitos humanos
e vida cotidiana: Pluralidade lógica e violência urbana. Relatório final de pesquisa, edital
Humanidades, Faperj, 2012.
55 MACHADO DA SILVA, op.cit.

 · Sociologia da moral, ação coletiva e espaço público


violência policial) e de policiais para compreender como esses coleti-
vos problematizam “a violência urbana” a partir do tópico dos “direitos
humanos”.56
Procurei reconstituir parte do arranjo de moralidades possíveis e
presentes na cidade do Rio de Janeiro e, assim, compreender alguns dos
significados atribuídos à “cidadania” nesse contexto metropolitano. A
construção moral analisada no coletivo de moradores de um condomínio
fechado da Zona Oeste do Rio de Janeiro permitiu compreender outra
dimensão das operações críticas e morais que contribuem para a frag-
mentação da cidadania no Rio de Janeiro, ou, nos termos de Lautier, para
uma “cidadania de geometria variável”,57 caracterizada pelo “abandono
do postulado que define a própria noção de cidadão: a univocidade da
cidadania e, portanto, do conjunto de direitos/deveres, sobre um dado
território nacional”. Seguindo a sugestão desse autor, as situações por
mim analisadas nos condomínios apresentavam uma constante tema-
tização, explícita ou tácita, daqueles que seriam mais ou menos aptos a
serem tratados como “cidadãos diferenciados”, estabelecendo, portanto,
diversas categorias contextuais de cidadania. Essa construção moral era
elaborada ao longo da exploração das situações da vida cotidiana nas
quais os condôminos põem em questão “o problema da segurança” em
um círculo fechado, e naquelas de suas circulações na cidade. Nessa cons-
trução cognitiva, a “gradação de cidadania” parecia se relacionar com um
esforço de degradar o estado de humano dos moradores dos territórios
da pobreza. Por esse motivo, as operações críticas e morais que ancoram
a “gradação da cidadania” estão fortemente articuladas com processos

56 Refiro-me ao projeto Direitos humanos e vida cotidiana: Pluralidade de lógicas e “vio-


lência urbana”, financiado pela Faperj e coordenado por mim, que contou com a parti-
cipação dos pesquisadores do Coletivo de Estudos sobre Violência e Sociabilidade (Ce-
vis). Cesar Teixeira, Juliana Farias, Fábio Araújo e eu realizáramos as quatro etnografias
desses coletivos. Cada pesquisador desenvolveu um eixo da investigação, o que nos
possibilitou analisar as moralidades produzidas em torno das temáticas “violência ur-
bana” e “direitos humanos”, por quatro tipos de coletivos (respectivamente, policiais
militares, advogados que atuam em defesa dos direitos humanos, familiares de vítimas
de violência policial e moradores de condomínios fechados), nos quais o reconheci-
mento dos atores como dignos de serem percebidos e classificados, de forma igualitá-
ria e simétrica, em uma “humanidade comum”, não era taken for granted.
57 LAUTIER, Bruno. “Os amores tumultuados entre o Estado e a economia informal.”
Contemporaneidade e Educação, vol.2, n.1, 1997.

Jussara Freire · 
de “sujeição criminal”58 na cidade do Rio de Janeiro, mas também com
recortes cognitivos constantemente elaborados que consistem em quali-
ficar as diversas “substâncias morais”59 dos moradores da cidade. No caso
em análise, procurei entender os efeitos das qualificações desses atores,
os condôminos, bem como daquelas de advogados e de policiais sobre os
recortes cognitivos de moradores de favelas e as modalidades de tomadas
de voz desses últimos em tal contexto.
Os sensos do injusto dos condôminos analisados eram sempre contra-
postos à fraca legitimidade dos repertórios da linguagem dos direitos. “O
pessoal da comunidade” (categoria acionada por alguns condôminos para
se referir a seus vizinhos, aqueles que moravam na Cidade de Deus) era
ora percebido como contribuinte inadimplente, ora como não contribuinte.
Nessa construção cognitiva, os condôminos relacionavam esses vizinhos
a atividades previamente definidas como informais e criminosas – o que
justificava, segundo eles, o fato de os moradores da Cidade de Deus serem
considerados “cidadãos inadimplentes”. Por isso, a classificação de dife-
rentes escalas de cidadãos da cidade e do bairro adjacente levava a considerar
injustificável qualquer intervenção estatal nos territórios da pobreza e,
nessa qualidade, os moradores da Cidade de Deus eram percebidos como
“aproveitadores” indevidos de serviços públicos.60 No entanto, não se
questionava ou se negava o acesso dos “pobres” à cidadania. Em vez
disso, os moradores do condomínio analisados apontavam para o fato de
não existir uma cidadania ajustada aos sensos de injustiça das “classes
médias”, cuja humanidade é inquestionável e indegradável. Tomando
por base essa operação moral, esses atores estabeleciam “gradações de
cidadania” a partir da elaboração de um complexo eixo moral de maior ou
menor dignidade para os moradores da cidade do Rio de Janeiro serem
considerados como alvos legítimos de medidas estatais.

58 MISSE, Michel. “Crime, sujeito e sujeição criminal: Aspectos de uma contribuição


analítica sobre a categoria bandido.” Lua Nova, vol.79, 2010, pp.15-38.
59 CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. Droit légal et insulte morale: Dilemmes de la
citoyenneté au Brésil, au Québec et aux États-Unis. Quebec: Les Presses de l’Université
Laval, 2005.
60 Apenas na fase de implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) na Ci-
dade de Deus, em 2009, observei uma aprovação generalizada dos moradores em rela-
ção a este tipo de intervenção, que era problematizada como uma “justa intervenção”
do Estado em “favelas” do Rio de Janeiro.

 · Sociologia da moral, ação coletiva e espaço público


Concluí que as gramáticas da “violência urbana” apresentam, assim,
repertórios múltiplos, reelaborados indefinidamente na medida em que os
citadinos exploram as margens61 – elas também em constante processo de
redefinição. Em outros termos, o questionamento e “a degradação do es-
tado de humano”, como recorte cognitivo e moral disponível nos contextos
que estudei, encobrem uma pluralidade de formas críticas e morais apre-
sentadas nas situações em que “a violência” é problematizada nas rotinas
dos citadinos, sem que esse repertório seja explicitamente mobilizado.
A confrontação das construções morais dos diferentes coletivos ana-
lisados me permitiu elaborar um modelo de humanidade comum no qual
é possível a ausência de consenso entre os diferentes sensos do justo em
torno de um bem comum, em nome de “um bem de todos”.62 Certamente,
devido a sua relação com a cidadania de geometria variável, os diferentes
e contraditórios sensos do justo componentes do regime de humanidade
degradada coexistem sem horizonte simétrico de publicização das vozes
que deles decorrem. Essa característica compromete, em primeiro lu-
gar, o questionamento do acesso ao espaço público das vozes daqueles
cujo estado de humano é questionado. A cidadania de geometria variável
implica, necessariamente, tomadas de voz – também elas de geometria
variável. Em segundo lugar, apresenta a possibilidade de elaboração de
um modelo de humanidade comum, quando situado nas margens, sem
que haja exigência de consenso no que tange ao bem visado. Melhor: este
se impõe sem que seja necessário um acordo, em relação ao seu conteúdo,
entre todos aqueles que se engajam nesse regime.
Nesses termos, a compreensão dos processos de publicização, a partir
da sociologia e antropologia da moral, implica em um trabalho de elabora-
ção de ferramentas analíticas que permitam observar certos contextos nos
quais não são necessariamente articulados a esfera e o espaço públicos,63
de um lado. Por outro, o pressuposto neste trabalho de construção ana-
lítica também deve se pautar para a copresença de diferentes ordens so-
ciais, que incluem a possibilidade de a “violência” tornar-se um recurso
legítimo e coordenador.

61 Das, Veena; Poole, Deborah (orgs.). Anthropology in the Margins of the State. Nova
Delhi: Oxford University Press, 2004.
62 WERNECK, op.cit.
63 CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. “Concepções de igualdade e cidadania.”
Contemporânea: Revista de Sociologia da UFSCar, vol.1, n.1, 2011, pp.35-48.

Jussara Freire · 
A moral em questão: a conformação de
um debate em antropologia

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Cena introdutória: uma nota de pesquisa

No início de 2013, fui convidada a comparecer a uma das reuniões de


um Centro de Atenção Psicossocial da Infância/Adolescência (CAPSi)
para explicar os interesses e pressupostos de minha pesquisa acerca dos
circuitos de atenção ao adolescente considerado infrator no Brasil e das
moralidades e subjetividades que os coproduzem. Tratava-se de uma
reunião com cerca de vinte pessoas para capacitação dos profissionais
e organização dos atendimentos. A equipe do CAPSi era formada por
psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros e pedagogos, além de um
psiquiatra, todos profissionais encarregados de cotidianamente dar vida
a um serviço considerado progressista, ao romper com os pressupostos
da institucionalização de doentes mentais e incentivar a conformação de
redes comunitárias de atendimento a tal população.
Especialmente concentrando-se no universo de crianças e adolescen-
tes, o CAPSi em questão não apenas promovia o atendimento a crianças e
jovens, como também mobilizava redes diversas de instituições e agentes
para esse atendimento, como escolas, conselhos tutelares, organizações de
bairro etc. Em termos práticos, tal mobilização se tornou evidente, na reu-
nião, a partir da discussão sobre o que a equipe denominou de o “caso” de
Roberto, adolescente de 17 anos que frequentava o serviço desde a infância
e, por isso, parecia conhecido e lembrado por todos com muito carinho.
Esse “caso” foi trazido à tona por Diva, assistente social que, bastante
emocionada, disse ter que pedir ao grupo uma atenção especial porque
havia participado de uma reunião fazia dois dias, com cinco profissio-
nais de diversos espaços pelos quais Roberto circulava – escola, conselho
tutelar, unidades do Centro de Referência Especializado em Assistência
Social (Crea) e do Centro de Referência de Assistência Social (Cras) e da
Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase). Ela havia convocado a
reunião com esse conjunto de profissionais quando a própria mãe de Ro-
berto lhe pediu ajuda, pois o menino havia chegado a casa com cerca de
R$ 300 e uma bicicleta nova, sem explicitar a proveniência desses bens.
Além disso, a mãe informou que o adolescente havia fumado crack no meio
da sala, mostrando-se indiferente aos apelos maternos que assinalavam
contrariedade ao comportamento do filho. Nesse contexto de elementos
preocupantes, Diva queria discutir o “caso” porque, mesmo reunindo uma
rede extensa de órgãos de atendimento apenas para configurar as propostas
frente à situação vivenciada pelo jovem, ninguém sabia o que fazer.
Sensibilizados pelo relato emotivo da colega, a equipe do CAPSi ini-
ciou uma discussão, que resultou em certo consenso sobre a configu-
ração dos problemas com as drogas e as supostas apropriações de bens
por parte de Roberto: ambos estariam vinculados fundamentalmente à
ausência paterna sentida pelo adolescente. Elementos da trajetória an-
terior do atendimento foram trazidos à tona para reforçar essa interpre-
tação: um dos melhores períodos vividos pelo jovem, sugeriu uma das
psicólogas, havia sido quando conseguiu estabelecer um vínculo com o
padrasto, interrompido com a abrupta finalização da união, pela mãe.
Sem dúvidas, entretanto, o momento de maior estabilidade na vida de
Roberto, disse a mesma psicóloga, se deu quando ele esteve internado
na Fase. Sobre isso, uma pedagoga perguntou: “Ele ficou lá até mais do
que devia, não?” “Ficou... parece que duas vezes mais o tempo que os
adolescentes que cometeram o mesmo ato que ele cometeu ficam”, disse
a assistente social, parecendo comemorar o procedimento. A pedagoga
continuou: “Parece até que, para o ato infracional cometido, nem seria
para ele receber internação.” Aline, a psicóloga coordenadora da equipe,
tomou a palavra e instruiu o grupo, concluindo a discussão da situação
de Roberto, ao referenciar o papel da lei como o de fornecedor de limites
ao comportamento do jovem:

Patrice Schuch · 
É o seguinte: eu acho que temos que desvincular o atendimento dele do da
mãe. Estamos atendendo a mãe. Ela tem que assumir o filho. Ela goza com
isso. Ela diz: “O meu filho usou crack na minha frente, na sala. Ele usou
para mim.” Quando ele estava na Fase, quando a lei deu um limite a ele,
que ele estava pedindo, aí ela engravidou. Roberto achou que o filho era do
companheiro da mãe e ele já estava construindo o vínculo da figura do pai.
O que ela, mãe, fez, então? A primeira coisa foi dizer que o filho que espe-
rava na época não era do companheiro. Ela recolocou a questão da figura
do pai em questão. E agora ele está pedindo novamente esse limite da lei.

Passado algum tempo da reunião, soube que a equipe do CAPSi havia


resolvido que Aline passaria a ser a profissional de referência no aten-
dimento de Roberto, que finalmente havia sido encaminhado à Fase.
Permaneceu internado nessa instituição por cerca de três meses, tendo
então sido transferido para uma fazenda terapêutica, destinada a usuários
de drogas. No fim de 2013, minha última notícia sobre ele foi que havia
preferido sair da fazenda e estava novamente sendo atendido pela equipe
do CAPSi, frequentando essa unidade toda sexta-feira. Nunca soube,
afinal, qual o ato infracional por ele cometido para que fosse encami-
nhado à instituição de internação de adolescentes; na retórica da equipe
do CAPSi e das reflexões acerca do seu “caso”, o que importava era que o
adolescente foi parar nessa instituição para o seu próprio bem; Roberto
precisava de um limite.

A moral da história: em direção ao estudo etnográfico da


moral

A narrativa anterior descreve uma das inúmeras cenas cotidianas configu-


radas no trabalho dos profissionais envolvidos com as práticas de governo
de adolescentes considerados infratores. No Brasil, ecoando tendências
internacionais, esses adolescentes tornaram-se legalmente “sujeitos de
direitos” a partir da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), em 1990, suscitando mudanças importantes nas práticas para
seu atendimento. As modificações nas artes de governo dessa população
têm sido meu objeto preferencial de estudo antropológico há mais de dez

 · A moral em questão
anos.1 A atenção para esse objeto implica levar em conta analiticamente
um conjunto diverso e multifacetado de técnicas, saberes, instrumentos,
dispositivos legais e programas de ação em que a questão do governo é
refletida e praticada.2
É a partir desse interesse particular que a cena introdutória deste
texto busca fazer sentido: em apenas trinta minutos de discussão, a equipe
tanto deu visibilidade a uma problemática a ser enfrentada – processo de
construção dinâmico que ocorria desde os primeiros contatos de Roberto
com o CAPSi –, como também conformou justificativas e sentidos para sua
realização e tentou esboçar os meios ou procedimentos adequados para
sua resolução. A análise da situação suscita interrogações mais amplas
sobre as sensibilidades morais operadas nos interstícios dos domínios
legais, justificando a internação do adolescente em termos mais severos do
que aqueles delimitados pela própria lei. Na constituição da problemática
a ser enfrentada pela equipe para administrar a situação de Roberto, uma
série de princípios avaliativos de diferenciação e valoração do “bem” –
dispositivos morais – foi empregada, mostrando a impossibilidade de
estudar as práticas de governo de indivíduos e populações tendo por
objeto apenas a racionalidade legal das práticas de intervenção, em que
pese sua centralidade nas retóricas dos agentes institucionais que in-
vestem na celebração do ideário dos “direitos”.3 Pois é na busca de uma
maior explicitação da importância da análise da moral/das moralidades
na pesquisa antropológica, na explicitação de algumas das contribuições
da antropologia para o estudo desse objeto, assim como na discussão sobre

1 Sobre isso, ver SCHUCH, Patrice. Práticas de justiça: Antropologia dos modos de governo
da infância e juventude pós-ECA. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009; —————. “Justi-
ce, Culture and Subjectivity.” Vibrant, vol.9, 2012, pp.34-69.
2 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal,
1977; —————. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
3 Para o campo de estudos da antropologia do direito, essa não é uma afirmativa nova
e, no Brasil, vários estudos já apontaram nessa direção. Entre outros, destaco o estudo
de Luís Roberto Cardoso de Oliveira, que se preocupou em compreender etnografica-
mente, a partir de uma perspectiva comparativa entre Brasil, Canadá e Estados Unidos,
o equacionamento entre a dimensão legal (direitos juridicamente estabelecidos) e a
dimensão moral (referente aos valores e identidades) dos direitos. Ver CARDOSO DE
OLIVEIRA, Luís Roberto. Direito legal e insulto moral: Dilemas da cidadania no Brasil,
Quebec e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Nuap/Relume Dumará, 2002.

Patrice Schuch · 
algumas recentes propostas em direção a uma “antropologia da moral/das
moralidades” ou de uma “antropologia moral”, que este texto se justifica.

Moral: onipresente, mas invisível?

Embora a moral tenha estado presente como objeto legítimo de engaja-


mento desde o próprio aparecimento das ciências sociais – vide o clássico
trabalho de Durkheim, com sua ênfase no aspecto integrativo da moral
e sua pioneira definição do fato moral como aquele dependente de uma
regra de conduta sancionada 4 –, é inegável a recente vitalidade do tema e a
inserção de novas possibilidades analíticas. Isso é explícito pela formação
de novas problemáticas de estudo – como, por exemplo, a colocada por
Fassin e Lézé ao proclamarem a atualidade da “questão moral” como uma
configuração histórica contemporânea, marcada por uma multiplicação
de preocupações em torno da moral e da ética e por uma banalização das
palavras, imagens e práticas que as afirmam.5 Também se torna visível
pela publicação de várias propostas de incentivo à investigação na área
que, em que pese sua diversidade, clamam por uma específica atenção
etnográfica e maior desenvolvimento teórico desse objeto. Os chamados
para a constituição de uma “antropologia da moral/das moralidades” e
uma “antropologia moral”, por exemplo, desenvolvidos, sobretudo, a
partir da última década dos anos 1990, fazem parte desse processo.
Em texto introdutório ao dossiê La Morale, publicado em 2007 pela
Revista Terrain, que coloca em questão a pertinência de uma “antropologia
da moral/das moralidades” e debate seus desafios, Baumard e Sperber
expõem que os antropólogos muito raramente delimitam um espaço es-
pecífico à moral.6 A dimensão moral estaria onipresente na vida social,
mas, paradoxalmente, essa onipresença acabaria por torná-la invisível na
pesquisa etnográfica. Segundo esses autores, pode-se dizer que a moral
está presente e adequadamente tratada nas análises acerca do parentes-
co, política, economia, religião etc. No entanto, raros seriam os livros,

4 Ver DURKHEIM, Émile. A educação moral. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.


5 Fassin, Didier; Lézé, Samuel (orgs.). La question morale: Une anthologie critique. Paris:
PUF, 2013.
6 BAUMARD, Nicolas; Sperber, Dan. “La morale.” Terrain, n.48, 2007, pp.5-12.

 · A moral em questão
capítulos ou artigos que tratariam a moral como objeto preferencial de
engajamento reflexivo.
Embora este texto não tenha a pretensão de realizar uma análise da
produção brasileira sobre o assunto, é viável destacar que o diagnóstico
elaborado por Baumard e Sperber e referenciado posteriormente por Fassin
e Lézé, além de por Brito, em introdução a um recente dossiê sobre o tema
publicado no Brasil, parece válido também para as pesquisas realizadas
sobre o assunto em nosso país.7 Por sinal, em artigo publicado em 1996,
Roberto Cardoso de Oliveira já apontava que o tema era insuficientemente
tratado por antropólogos.8 Em sua proposta, pioneira para os estudos no
Brasil e forjada no interior da tradição hermenêutica crítica, seria neces-
sário relacionar o domínio da moralidade – que se definiria pela noção de
“bem viver” em seu sentido de vida justa e proba no mundo da vida – com
a noção de eticidade, que envolveria o “dever” como o valor mais alto
de uma pessoa, de um ser social. Com trabalhos valiosos nesta direção,
o autor desenvolveu essa abordagem para refletir sobre a própria tarefa
antropológica e também nos estudos acerca dos contatos interétnicos.
Não obstante o apelo de Cardoso de Oliveira, analisando rapidamente
e não exaustivamente a bibliografia sobre a moral/a moralidade como
objeto de pesquisa antropológica no Brasil, pode-se salientar que duas
características parecem se evidenciar: de um lado, um expressivo número
de trabalhos sobre as moralidades elaboradas por determinado univer-
so, segmento ou grupo social (grupos populares urbanos, campesinato,
famílias pobres, por exemplo).9 Nessa forma de elaboração analítica, a

7 BAUMARD, Nicolas; Sperber, Dan, op.cit.; FASSIN, Didier; Lézé, Daniel, op.cit.; BRI-
TO, Simone Magalhães. “Dossiê Sociologia e Antropologia da Moralidade: Apresenta-
ção.” Revista Brasileira de Sociologia da Emoção (RBSE), vol.12, n.36, 2013, pp.700-702.
8 Ver CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. “Antropologia e moralidade: Etnicidade e as
possibilidades de ética planetária.” In: CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto; Cardoso de
Oliveira, Luís Roberto. Ensaios antropológicos sobre moral e ética. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1996.
9 Entre outros, ver ALVIM, Rosilene; Lopes, José Sérgio. “Famílias operárias, famílias
de operárias.” Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.14, n.5, 1990, pp.7-17; DUARTE,
Luiz Fernando Dias. “Pouca vergonha, muita vergonha: sexo e moralidade entre as
classes trabalhadoras urbanas.” In: Lopes, José Sérgio Leite (org.). Cultura e identidade
operária: Aspectos da classe trabalhadora. Rio de Janeiro: UFRJ/Proed, 1987; GUEDES,
Simoni Lahud. Jogo de corpo: Um estudo da construção social dos trabalhadores. Niterói:
EdUFF, 1997; SARTI, Cynthia Andersen. A família como espelho: Um estudo sobre a moral

Patrice Schuch · 
moralidade – definida como conjunto de normatizações, valores e signi-
ficados – se aproxima do conceito antropológico convencional de cultura,
o que pode justificar a invisibilidade de problematização mais específica
sobre esse objeto.
De outro lado, há vários estudos em que a moral é considerada um
aparato ou dimensão específica contrastado com outro domínio de pro-
blematização, como, por exemplo, o âmbito legal, econômico ou político.
Em geral, tais estudos investigam as influências da moral e suas implica-
ções e/ou efeitos no domínio privilegiado da investigação, isto é, a moral
é chamada à investigação para contribuir na melhor compreensão, por
exemplo, do universo jurídico, das relações econômicas, das instâncias
políticas.10 A moral é apreendida, nessa forma de abordagem, funda-
mentalmente a partir da sua relacionalidade com outros domínios de
problematização e não como um objeto em si.

A potência antropológica

Não obstante essa diversidade de características dos estudos feitos no


Brasil, as quais não conformam uma homogeneidade de perspectivas
analíticas e sim modos específicos de considerar o objeto em análise,
certas configurações disciplinares mais amplas conformam as possíveis
contribuições da antropologia em torno do tema. Destaco-as a seguir,

dos pobres. Campinas, SP: Autores Associados, 1996; WOORTMAN, Klaas. “Com pa-
rente não se neguceia. O campesinato como ordem moral.” Anuário Antropológico,
1987, 1990, pp.11-73.
10 Entre outros, ver, por exemplo, BEZERRA, Marcos Otavio. Em nome das bases: Políti-
ca, favor e dependência pessoal. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999; CHAVES, Christi-
ne de Alencar. “Eleições em Buritis: A pessoa política.” In: Palmeira, Moacir; Goldman,
Márcio (orgs.). Antropologia, voto e representação política. Rio de Janeiro: Contracapa,
1996, pp.127-164; COMERFORD, John. Como uma família: Sociabilidade, territórios de
parentesco e sindicalismo rural. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Nuap, 2003; FONSECA,
Claudia. “‘Ordem e progresso’ à brasileira: Lei, ciência e gente na ‘co-produção’ de
novas moralidades familiares.” In: Ferreira, Jaqueline; Schuch, Patrice (orgs.). Direitos
e ajuda humanitária: Perspectivas sobre família, gênero e saúde. Rio de Janeiro: Editora da
Fiocruz, 2010, pp. 151-181; TEIXEIRA, Carla Costa. A honra da política. Rio de Janeiro:
Relume Dumará/Nuap, 1998; VIANNA, Adriana. Limites da menoridade: Tutela, família e
autoridade em julgamento. Tese (doutorado), PPGAS, MN, UFRJ, 2000.

 · A moral em questão
privilegiando a variedade dessas possiblidades, em que pese o fato de que,
na singularidade das pesquisas antropológicas, os pesquisadores possam
optar por algumas dessas ênfases analíticas, em detrimento de outras:
a) De forma proeminente, destaca-se a riqueza da pesquisa etnográfica
como balizadora dos engajamentos em torno do objeto. Ao possibilitar ir
além dos discursos e regras de enunciação moral para também abarcar
os fluxos dos comportamentos e práticas em cenários históricos e polí-
ticos situados, as pesquisas etnográficas desestabilizam pretensões de
consideração da moral somente a partir de sua associação ao universo
das regras, tal como proposto na tradição durkheimiana.11 Nas disputas,
tensões e contradições da vida social que as etnografias têm condições de
captar a partir da informalidade e do fluxo de comportamentos, a moral
também pode ser entendida como um elemento produtivo de corrupção
das forças de integração social e não apenas um instrumento que trabalha
para sua estabilidade.
Como assinalam Baumard e Sperber, os valores morais não podem ser
entendidos exclusivamente como guias de comportamento e/ou princípios
normativos do “deve ser”: “Eles são ao mesmo tempo os meios para se re-
presentar e julgar as ações dos outros e para negociar essas representações
e julgamentos.”12 As próprias interrogações em torno da constituição de
categorias e a formação de sujeitos morais, por exemplo, de suas condi-
ções de possibilidade, de seus atributos conformadores e de sua agência
sugerem a abertura de interrogações sobre o caráter produtivo da moral
na constituição de novos cenários político-culturais e não apenas como
um elemento por esses conformado, o que introduz dinamicidade no
estudo do tema.13

11 Atualmente, há um conjunto importante de trabalhos que revisitam as propostas de


Durkheim acerca da moral e revigoram sua importância nesse campo de estudos. Ver,
por exemplo: KARSENTI, Bruno. “Durkheim and the Moral Fact.” In: Fassin, Didier;
Lézé, Samuel (orgs.), op.cit, pp.21-36; STEINER, Philippe. La Sociologie de Durkheim.
Paris: Découverte, 2000; WEISS, Raquel de Andrade. “Do mundano ao sagrado: o pa-
pel da efervescência na teoria moral durkheimiana.” Horizontes Antropológicos, vol.19,
n.40, 2013, pp.395-421.
12 BAUMARD; Sperber, op.cit, p.6.
13 No campo da sociologia, veja-se o texto de Alexandre Werneck neste livro, que
também destaca esse caráter produtivo da moral, a partir das discussões teóricas dos
pragmatistas.

Patrice Schuch · 
b) Esses argumentos têm consequências importantes para o estudo
da moral, pois permitem evocar um segundo aspecto da contribuição da
antropologia ao tema, que é a valorização das perspectivas dos atores,
forjadas a partir de práticas e domínios situados política e historicamente.
O foco na variedade e situacionalidade dos sentidos das ações morais pelos
agentes elaborados, nas justificações morais que dão aos seus atos, nos
relacionamentos e práticas que forjam sujeitos e comunidades morais,
tornam-se fundamentais, na medida em que permitem ao pesquisador
compreender o que os próprios atores configuram como o(s) domínio(s)
da moral. Nesse sentido, o próprio recorte do objeto pode ser efetuado a
partir dos pontos de vista daqueles envolvidos nas situações e dinâmicas
pesquisadas e não a partir de qualquer a priori estabelecido pelo analista.
É nesse sentido também que Howell afirma a potência analítica das situa-
ções de conflito, que explicitam o que os próprios atores compreendem
como comportamentos moralmente corretos.14 De toda forma, esse modo
de constituição analítica é uma resposta possível a um dos debates per-
manentes a respeito desse campo de problematização: quais os limites do
domínio da moral na vida social? Ao privilegiar a construção desse objeto
a partir da perspectiva das práticas e sentidos elaborados pelos atores em
seus variados relacionamentos, a categoria moral torna-se uma questão
etnográfica. Essa analítica tanto tem por consequência a valorização das
particularidades das variadas construções da moral quanto insere as
possibilidades de estudos comparativos sobre o tema.
c) Nesta direção, cabe ainda evocar a relevância do projeto compa-
rativo da antropologia, intrínseco ao seu próprio desenvolvimento dis-
ciplinar. As repercussões dessa configuração para o estudo da moral são
vastas, mas sobretudo importa assinalar as possibilidades de combate a
eventuais pretensões normativas em relação ao estudo dessa área temá-
tica – como a descoberta de um fundamento universal da moralidade,
por exemplo. Outra consequência do valor fundamental da comparação
em antropologia diz respeito a seu próprio estatuto epistemológico e suas
condições de possibilidade. A comparação é o empreendimento que per-
mite o estranhamento, o contraste e a produção de uma relação que, nos

14 HOWELL, Signe. “Introduction.” In:


————— (org.). The Ethography of Moralities.
Londres/Nova York: Routledge, 1997.

 · A moral em questão


termos de Roy Wagner, é sempre inventiva, entre as categorias, princípios
avaliativos e valores morais do pesquisador e aqueles encontrados nos
universos pesquisados.15 Nesses termos, a comparação é a própria con-
dição da invenção das categorias de investigação e, em última instância,
da própria antropologia.

Antropologia da moral/das moralidades ou antropologia


moral?

Como espero ter deixado claro anteriormente, o estudo antropológico da


moral não é um projeto moralizador. Trata-se de uma antropologia que
toma a moral como objeto de estudo, projeto para o qual a antropologia
está capacitada e pode contribuir em muitos aspectos, entre os quais
aqueles já citados. E, embora tenha sido um elemento onipresente de
preocupação antropológica, há uma multiplicação de publicações reali-
zadas a partir da última década dos anos 1900 em torno da ambição de
revigorar o estudo da moral como um objeto específico de preocupações
antropológicas.16 Essas publicações, confrontando o que Fassin denomi-
nou de “desconforto” da antropologia em torno desse objeto, realizam
um grande esforço de diferenciar o estudo antropológico da moral17 – no
que poderia ser denominado de uma “antropologia da moral” – de um
projeto moralizador, assim como debatem o escopo desse próprio projeto
e seus alcances.
Considerando esse empreendimento contrastivo e diferenciador em
relação a perspectivas normativas sobre o assunto, alguns autores prefe-
rem o uso do termo no plural – “antropologia das moralidades”, como, por

15 WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010.


16 Ver, por exemplo, BAUMARD, Nicolas; Sperber, Dan, op.cit.; BRITO, Simone Ma-
galhães, op.cit.; HOWELL, Signe (org.), op.cit.; FASSIN, Didier (org.). A Companion
to Moral Anthropology. Oxford: Wiley-Blackwell, 2012; FASSIN, Didier; Lézé, Samuel
(org.), op.cit.; ZIGON, Jarrett. “Moral Breakdown and the Ethical Demand: A Theo-
retical Framework to an Anthropology of Moralities.” Anthropological Theory, vol. 7,
n.2, 2007, pp.131-150; ZIGON, Jarrett. Morality: an Anthropological Perspective. Oxford:
Berg, 2008.
17 FASSIN, Didier. “Beyond Good and Evil? Questioning the Anthropological Dis-
comfort with Morals.” Anthropological Theory, n.8, 2008, pp.333-345.

Patrice Schuch · 


exemplo, Howell e Zigon 18 – visando explicitar as variadas possibilidades
de constituição e coexistência entre princípios normativos e formas de
valoração social do “bem”. Ao se pronunciar sobre essa escolha, Howell
salienta que o uso do termo no plural não apenas reforça o sentido antro-
pológico da investigação sobre as moralidades, ao apostar na diversidade
das construções morais, como também permite contemplar igualmente
discursos, práticas e suas contradições.19
A tarefa da distinção entre esses diferentes domínios de expressão da
moral e de suas categorias, comportamentos e constituições valorativas
estaria no cerne do que Baumard e Sperber chamam de uma “antropo-
logia da moral”. Os autores evocam que: “Uma antropologia da moral
deve distinguir os valores morais das expressões públicas desses valores,
das justificações em que são invocados e, enfim, dos comportamentos
que se espera que eles orientem.”20 Nessa ótica, os cenários situados em
que os enunciados, valorações e justificações morais são expressados e
chamados a existir são enfatizados, e não apenas a diversidade local de
sentidos e valorações que compõem moralidades particulares, como na
proposta de Howell.21
Chama a atenção no artigo de Baumard e Sperber, entretanto, que,
mesmo inserindo as possibilidades de uma “antropologia da moral”, os
autores afirmam que tal projeto deve ser olhado criticamente:22 afinal,
como diferenciar os limites do âmbito moral na vida social? De outro
lado, interrogam os autores, não seria a moral uma noção historicamente
situada e ligada aos interesses filosóficos e às práticas educativas espe-
cíficas do Ocidente? Nessa formulação recoloca-se a suspeita em relação
aos riscos de uma pesquisa eminentemente normativa sobre o assunto;
a variabilidade das possibilidades de constituição de um recorte para
estudar esse objeto específico de problematização – a moral – permanece
como uma questão a ser discutida por meio das etnografias e dos debates
teóricos, que os autores propõem que sejam realizados.

18 HOWELL, Signe (org.), op.cit.; ZIGON, Jarrett, op.cit.;


—————., op.cit.
19 HOWELL, Signe (org.), op.cit.
20 BAURMARD, Nicolas; Sperber, Dan, op.cit., p.7.
21 HOUWELL, Signe (org.), op.cit.
22 BAUMARD, Nicolas; Sperber, Dan, op.cit.

 · A moral em questão


Talvez por conta da insistência e persistência das questões em torno
dos limites e extensão dos fenômenos morais e dos riscos de uma aná-
lise normativa em torno desse objeto, as propostas mais recentes para o
desenvolvimento da moral como objeto de pesquisa antropológica ainda
contemplem uma severa oposição às perspectivas moralizadoras e pro-
blematizem as especificidades desse objeto. Didier Fassin, ao explicitar
seus interesses em torno da constituição de uma “antropologia moral”,
afirma que essa não se refere à procura de produção de um guia para o
bem da humanidade ou à conversão de antropólogos em produtores de
códigos de conduta; simplesmente se relaciona com a procura de uma
antropologia que tenha a moral como objeto:

em outras palavras, que explora como ideológica e emocionalmente as


sociedades encontram as suas distinções culturais entre o bem e o mal,
e como os agentes sociais concretamente elaboram essa separação nas
suas vidas cotidianas (...) Ela ajuda a entender os princípios avaliativos e
as práticas operando no mundo social, os debates que eles suscitam, os
processos por meio dos quais eles se tornam implementados, as justifica-
ções que são dadas para explicar o que deveria ser e o que realmente é.23

O autor define a moral como a crença humana na possibilidade de


discernir o certo do errado e na necessidade de agir em favor do bem
e contra o mal.24 Ao mesmo tempo, contrasta sua elaboração de uma
“antropologia moral” com aquelas que se definem a partir do recorte em
torno das “moralidades”, as quais podem ser incluídas no escopo de sua
proposta, mas não são suficientes para defini-la. Isso porque o estudo
das “moralidades” estaria confinado à análise das configurações locais
de normas, valores e emoções e/ou de sua comparação. Embora extensa,
a seguinte citação é reveladora de sua perspectiva, na medida em que
expõe os limites do domínio a ser problematizado:

23 FASSIN, Didier, op.cit., pp.334-335.


24 Nas palavras do autor: “Por moral eu não compreendo qualquer tipo de valores ou
normas, de certezas sobre verdade ou conhecimento (frequentemente escritas com le-
tras maiúsculas), de denúncias de poder ou autoridade (separando claramente os dois):
eu simplesmente me refiro à crença humana na possibilidade de distinguir o certo do
errado e na necessidade de agir em favor do bem e contra o mal.” FASSIN, op.cit., p.334.

Patrice Schuch · 


Não há necessidade de confinar a antropologia moral às configurações
locais de normas, valores e emoções: esse domínio de estudo e os assuntos
que levanta vão muito além das moralidades locais; ele as inclui, mas
as excede. E não há necessidade de limitar o seu escopo às moralidades
entendidas como entidades discretas separadas de outras esferas das
atividades humanas: as questões morais estão imbricadas na substância
do social; não é suficiente analisar os códigos ou dilemas éticos como se
eles pudessem ser isolados de assuntos políticos, religiosos, econômicos
ou sociais. A antropologia moral lida com o modo como as questões mo-
rais são colocadas e endereçadas ou, simetricamente, como questões não
morais são reconfiguradas como morais. Ela explora como as categorias
pelas quais nós apreendemos o mundo e identificamos as comunidades
morais que construímos, examina as significações morais das ações e
o trabalho moral dos agentes, analisa os assuntos morais e os debates
morais em nível individual e coletivo. Ela se preocupa com a criação de
vocabulários morais, a circulação de valores morais, a produção de su-
jeitos morais e a regulação da sociedade por meio de injunções morais. O
objeto da antropologia moral é a produção moral do mundo.25

Destaca-se, nessa definição, uma analítica que aposta na compreen-


são da moral exatamente a partir de uma imersão desse objeto nas tramas
sociais e nas dinâmicas políticas e econômicas e não a partir de qualquer
contraste ou separação desses âmbitos das atividades humanas. Apresen-
tando uma extensa proposta de interrogações possíveis sobre o tema, Fas-
sin desloca as interrogações acerca das “moralidades” para a configuração,
significação e existência prática das “questões morais”. São interrogações
pertinentes em sua agenda de estudos: vocabulários e categorias morais,
modos de circulação e regulação moral da sociedade, significações morais
das ações, assim como a pesquisa dos modos de constituição de sujeitos
e comunidades morais.26 Como ele bem sumariza, trata-se de investigar
a “produção moral do mundo”.

25 FASSIN, Didier. “Introduction: Towards a Critical Moral Anthropology.” In:


—————
(org.). A Companion to Moral Anthropology. Oxford: Wiley-Blackwell, 2012, p.5.
26 FASSIN, Didier, op.cit.

 · A moral em questão


Além de ampliar o escopo de problematizações e dos modos de definir
os limites da investigação sobre a moral, Fassin também desloca uma
“antropologia da moral/das moralidades” para “antropologia moral”. Tal
expressão, explica o autor, tem por objetivo provocar um engajamento
simultaneamente reflexivo e descritivo em torno do assunto. Para Fassin, a
investigação de uma “antropologia da(s) moralidade(s)” ou “antropologia
da moral” como modo de configuração do objeto corre o risco de obscu-
recer o trabalho, a influência e as relações do investigador com a própria
produção da problemática investigada.27 Mais do que à primeira vista a
expressão poderia sugerir, portanto, a “antropologia moral” não trata da
moralização do mundo, mas reivindica uma reflexividade imanente ao
próprio trabalho investigativo em torno do tema. A “antropologia moral”
proposta por Fassin, dessa forma, também deve enfrentar reflexivamente
as próprias implicações morais de sua existência como um projeto ima-
nente a sua própria configuração.28 A partir desse ponto de vista, o estudo
da moral também é, portanto, uma reflexão sobre a própria antropologia
e seus limites e desafios.

Considerações finais: um debate em aberto

Este texto foi um esboço limitado e parcial em torno de algumas pers-


pectivas analíticas possíveis para o estudo antropológico da moral/das
moralidades. A ideia foi de fornecer pistas em torno das possibilidades
de engajamento etnográfico na investigação desse objeto, assim como
salientar a sua onipresença e, muitas vezes, paradoxal invisibilidade nas
pesquisas antropológicas. Foram discutidas também propostas variadas
em torno de uma “antropologia da moral/das moralidades” e suas dife-
renças frente a distintos projetos de uma “antropologia moral”. Dada a
vitalidade do tema, seria perigoso ou suspeito imaginar uma possibilidade
de encerramento ou conclusão para os debates; a ideia aqui foi exatamente
expor sua conformação e matizar propostas que, não raro, são utilizadas

27 Idem.
28 Como explica o autor: “Reconhecendo-o ou não, há sempre um posicionamento
moral nos objetos que escolhemos, o lugar que ocupamos no campo, o modo que in-
terpretamos fatos, a forma de escrita que elaboramos.” In: FASSIN, Didier, op.cit., p.6.

Patrice Schuch · 


na literatura de forma não definida ou não problematizada, como se o
objeto “moral” fosse autoexplicativo.
Tão ou mais importante do que as contribuições antropológicas possí-
veis acerca desse objeto, estão os desafios trazidos pelo estudo do assunto
para a antropologia, isto é, de que formas a investigação etnográfica da
moral/das moralidades desafia essa disciplina para expandir suas próprias
formas de produção de saber e de construção de conhecimento. Debates
em torno das fronteiras de construção desse objeto e suas possibilidades
analíticas, por exemplo, são convites para problematizarmos a porosidade
efetiva de nossos subcampos disciplinares por vezes tão consolidados
(direito, família e parentesco, economia, política etc.). A própria especi-
ficidade do tema também permite o alargamento da reflexividade acerca
dos modos de engajamento dos antropólogos nas disputas, tensões e
dinâmicas morais mais amplas que também constituem e circunscrevem
os nossos trabalhos, como sugere Fassin.29
São elementos privilegiados de atenção, nesse sentido, os modos
de engajamento antropológico na análise de códigos que se propõem
universais, práticas culturais envolvidas em debates públicos de grande
visibilidade e modos de intervenção social – como aqueles discutidos na
introdução deste texto, a partir do “caso” de Roberto – que constituem
narrativas morais configuradoras de objetos legítimos de intervenção e
técnicas específicas para seu governo e controle. Esses elementos todos
não podem ser compreendidos como ferramentas neutras de cuidado e
ação, mas sim como elementos políticos e morais em que são configu-
radas autoridades, populações e modos preferenciais de intervenção.
É esse aspecto produtivo da moral na constituição de novos cenários e
problemáticas sociais, assim como sua potencialidade inventiva de novos
desafios para a antropologia, que o estudo da moral provoca e revela.

29 FASSIN, Didier, op.cit.

 · A moral em questão


Moralidades possíveis e o sujeito como
multiplicidade de práticas: um campo
aberto de questões

L S

E xperimentar novas aberturas para um campo de pesquisa é uma


tarefa coletiva. Nenhuma cachola é capaz de sacar de si, de modo isolado,
as respostas requeridas para o amadurecimento teórico e metodológico
de qualquer universo de investigação. Buscar deslocamentos para a re-
configuração das questões que alimentam a constituição dos estudos de
antropologia e sociologia da moral como campo de pesquisa não fugiria
dessa condição. As atividades de problematização requerem esforço de vá-
rias imaginações conceituais, pensando juntas, não necessariamente em
uníssono, mas pelo menos colaborando imersas na pluralidade conflitual
que constitui a base das experiências compartilhadas pelas comunidades
acadêmicas, como discute Edgar Morin.1 É nessa modalidade de trabalho
que este texto foi concebido, pretendendo ser uma das peças desse mosai-
co em montagem por uma rede de pesquisadores, parcialmente reunida
neste livro, com seus diversos estilos de pensamento.
Apresento para tanto algumas considerações reflexivas com o intuito
de oferecer uma contribuição para o debate objetivado pelo grupo de
trabalho e seus desdobramentos. Cabe lembrar que essas observações
refletem um modo próprio de relatar o problema sociológico que anima
as ações do grupo, sendo assim tributárias dele, o que não quer dizer que
seja o caso de transferir responsabilidade para o coletivo diante do caráter
impreciso e limitado deste ensaio.

1 MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
O objetivo é perscrutar possibilidades imaginativas em torno da ques-
tão da moral como fio condutor da pesquisa sociocultural, a moral como
problema sociológico que se abre para um campo de problematizações
desenvolvidas a partir da pesquisa de campo etnográfica da antropologia
e da sociologia. Talvez, entre seus efeitos, este esforço possa desbloquear
um ou dois problemas para as análises em curso ou vindouras, o que já é
pretensão em demasia para um punhado de páginas.
Como seguirei o mote da retomada de algumas notas realizadas quan-
do fui debatedor de uma das sessões do Grupo de Trabalho Sociologia e
Antropologia da Moral, no encontro anual da Anpocs de 2013, o que dará
ao todo uma dinâmica própria de comentários elaboradores originalmente
no contexto da oralidade, gostaria de ressaltar também que o próprio uso
da expressão “possibilidades imaginativas” é igualmente um mote de
trabalho, desta feita, extraído de Norbert Elias.2 É uma maneira como o
autor propõe que busquemos o caminho de uma questão no ato mesmo
de esboçar comentários teóricos capazes de “desbloquear problemas”, e
que possam assim vir a ser úteis, de um ponto de vista heurístico, para a
constituição do campo de estudos e suas pesquisas. Destarte, é desneces-
sário dizer que não se trata de apresentar um modelo teórico, mas sim-
plesmente comentários, pontos críticos que podem ajudar modelizações
realizadas por outros e em outros lugares. Se as estratégias metodológicas
de colegas puderem se beneficiar dos comentários feitos aqui, tornando
acessíveis certos aspectos do problema da moral para a vida social, o texto
encontrará sua justificativa.

Da violência à moralidade

Em minha trajetória, os problemas dos regimes de violência em conexão


com as análises das relações de poder e dos conflitos sociais foram o fio
condutor das pesquisas, que não foram muitas. Faço essa pontuação para
registrar a passagem de uma problemática a outra, ou seja, dos regimes
de violência pensados em relação ao campo das práticas morais. Antes
de iniciar essa transição, sob a instigação das pesquisas de colegas que
enveredaram há mais tempo no debate, a questão da moralidade estava

2 ELIAS, Norbert. Introdução à sociologia. Lisboa: Edições 70, 2008.

 · Moralidades possíveis e o sujeito como multiplicidade de práticas


como que diluída no conjunto dos interesses que visavam, sobretudo, a
relação entre violência, criminalidade e segurança pública. Tratava do
problema da moral subsumindo-o às dimensões simbólicas usuais, lendo
a moralidade na chave dos códigos sociais que a envolvem. Adotava em
uma chave talvez maussiana o problema como componente moral da
representação social.
Não tratava ainda essa dimensão como um componente moral-sim-
bólico das relações sociais no sentido proposto por Luís Roberto Cardoso
de Oliveira,3 o que destaca o modo intersubjetivo de vivência da morali-
dade pública. Também não pensava nas circunstâncias como elementos
decisivos na mobilização dos apelos e das justificativas morais, como
proposto por Alexandre Werneck,4 que faz da situacionalidade na ordem
da interação social e, sobretudo, das contingências, a ocasião para se
pensar a criatividade, a imaginação e a competência dos atores sociais, na
direção de uma sociologia da moral que opera como sociologia da agência,
como explicita o autor.
Não tenho pejo de confessar que a moralidade como problema socio-
lógico nesse sentido pós-representacional (para além dos códigos em si) e
pós-disposicional (para além das determinações como habitus) estava em
um cenário teoricamente marginal nos estudos que fiz sobre a formação
dos policiais militares no Ceará5 e sobre os jovens das facções armadas
das favelas à beira-mar na cidade de Fortaleza.6 De modo que, retrospec-
tivamente, consciente da ilusão promovida pela força da revisão, poderia
dizer que meus materiais de pesquisa estavam etnograficamente imersos
na questão sociológica da moral, centrada na agência dos sujeitos, mas
apenas recentemente me dei conta disso nos termos com que os colegas já
mencionados vêm mobilizando seus idiomas conceituais e nos instigando
a fazer o mesmo. Mas seria muito mais uma estratégia retórica do que um
juízo de fato. Só não fugiria totalmente com a verdade, pois as tentativas

3 CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. “A dimensão simbólica dos direitos e a aná-


lise de conflitos.” Revista de Antropologia, vol.53, n.2, 2010, pp.451-473.
4 WERNECK, Alexandre. “Sociologia da moral como sociologia da agência.” Revista
Brasileira de Sociologia da Emoção (RBSE), vol.12, n.36, 2013, pp.704-718.
5 SÁ, Leonardo. Os filhos do estado: Autoimagem e disciplina na formação dos oficiais da
Polícia Militar do Ceará. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
6 SÁ, Leonardo. Guerra, mundão e consideração: Uma etnografia das relações sociais dos
jovens no Serviluz. Tese (doutorado), PPGS, UFC, 2010.

Leonardo Sá · 
que havia feito, no sentido de mobilizar outras leituras possíveis sobre
a questão da moral, passavam pelas discussões de Marcel Mauss7 sobre
reciprocidade e moralidade nas trocas entre parceiros e de Norbert Elias8
sobre os códigos morais guerreiros conformando o ethos e os sentimentos
sociais da honra e da vingança no espaço social. Debates que me acompa-
nham desde longa data, sem falar da forte influência da teoria da prática
em Pierre Bourdieu9 que recebi por meio das pesquisas de César Barreira,10
meu orientador de tese, que enfatizou nos seus estudos sobre pistolagem a
dimensão moral das relações entre mandantes, pistoleiros e vítimas, com
justificativas construídas em torno do campo da honra, dos conflitos e
dos valores. Todavia, mais recentemente, foram as problematizações de
colegas, principalmente de Alexandre Werneck,11 incluindo nessa troca
intelectual um curso que ministramos juntos, Estratégias Discursivas de
Poder e de Competência, no Programa de Pós-Graduação em Sociologia
da Universidade Federal do Ceará (UFC), no primeiro semestre de 2012,
que mexeram com as ideias sobre a moral no limiar das situações sociais
de acusação e justificação de atitudes próprias na relação com os outros.
Outra porta de entrada passa pelo modo como Luís Roberto Cardoso
de Oliveira 12 pontuou a complexa relação entre direito e vida moral nas
sociedades brasileira, canadense (Quebec) e americana. Os temas socioló-
gicos do reconhecimento e da consideração em quadros de reivindicação
de igualdade jurídica em contextos culturais com orientações distintas do
ponto de vista das práticas do direito permitiram, na chave da discussão
sobre as formas da cidadania, uma retomada do que Roberto Cardoso de
Oliveira havia discutido na chave da eticidade argumentativa. Afinal, foi
em um texto seminal sobre a relação entre antropologia e moralidade13

7 MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003;


—————. En-
saios de sociologia. São Paulo: Perspectiva, 1999.
8 ELIAS, Norbert. Os alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e
XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
9 BOURDIEU, Pierre. Le sens pratique. Paris: Minuit, 1980.
10 BARREIRA, César. Crimes por encomenda: Violência e pistolagem no cenário brasileiro.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998.
11 WERNECK, Alexandre. A desculpa: As circunstâncias e a moral das relações sociais. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
12 CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. Direito legal e insulto moral: Dilemas da cida-
dania no Brasil, Quebec e EUA. Rio de Janeiro: Nuap/Relume Dumará, 2002.
13 CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. “Antropologia e moralidade.” Revista Brasileira
de Ciências Sociais, vol.9, n.24, 1994, pp.110-121.

 · Moralidades possíveis e o sujeito como multiplicidade de práticas


que muito desse debate se iniciou. Lembro que houve inclusive um inte-
ressante diálogo entre o antropólogo e o filósofo Sérgio Paulo Rouanet14
sobre os limites da antropologia e seu relativismo metodológico no trato
das questões da moralidade. Ambos os autores relatam detalhes dessa
interlocução, que vinha ocorrendo desde pelo menos 1990, e que, a meu
ver, merece ser retomada pelas novas gerações de pesquisadores. Essas
tentativas de transitar de uma antropologia da moralidade para uma an-
tropologia da eticidade, sob a influência de Apel, Habermas e Honneth,
possuem uma entrada vigorosa que foi mais evitada do que enfrentada
teoricamente pelos colegas. Seja na chave de leitura de Michel Foucault
ou na de Honneth, o debate da moralidade à eticidade15 não perdeu, a
meu ver, a atualidade.
Roberto Cardoso de Oliveira criticava as limitações da antropologia
relativista em pensar o problema da validade universal dos apelos éticos.
Pois é um ponto de partida central para a contribuição da antropologia
que, do ponto de vista etnográfico, as moralidades sejam plurais. Todavia,
passar da constatação empírica dessa pluralidade cultural para um tipo
de ideologia culturalista é um passo que põe em cheque a conexão entre
universalidade e singularidade do agir humano. A antropologia, para além
de sua contribuição etnográfica fundamental, precisaria enfrentar o de-
safio teórico de refletir sobre os sentidos de uma ética capaz de ser válida
universalmente. Como o etnocentrismo é justamente a universalização
de um sistema de normas particular, sendo alçado à posição de sistema
de referência supostamente universal, essa ética não poderia ser pensada
de modo substantivo, mas sim na direção de uma ética argumentativa
por meio da qual a pluralidade empírica de regimes morais poderia ceder
lugar a uma reflexão sobre os direitos humanos e a cidadania em escala
planetária. Na base desse esforço, está a elaboração de um diálogo entre
filosofia e antropologia, como faz Luís Roberto Cardoso de Oliveira neste
livro mesmo, de modo instigante, explorando tanto as consequências
teóricas quanto metodológicas disso a partir da tradição da pesquisa de
campo etnográfica na antropologia.

14 ROUANET, Paulo Sergio. “Antropologia e ética.” In: Mal-estar na modernidade: En-


saios. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
15 CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. “Da moralidade à eticidade.” In: Cardoso
de Oliveira, Roberto; Cardoso de Oliveira, Luís Roberto. Ensaios antropológicos sobre
moral e ética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.

Leonardo Sá · 
Com os autores até aqui citados, pode-se perceber quão árdua é a
tarefa de problematizar a relação que diversos atores sociais mantêm
com normatividades da vida social diante das definições de situação
que mobilizam simbolismos de cunho moral. E quais simbolismos não
seriam mobilizados nessa fronteira da moralidade? Inclusive, pode-se
igualmente problematizar os modos como normatividades são pensadas,
elaboradas pelas práticas sociais de atores posicionados em lugares díspa-
res da vida social, fornecendo assim um importante direcionamento para
o questionamento das relações entre moralidade, direito, lei, nas tensões
das fronteiras entre o legal e o ilegal que marcam a vida social brasileira.
As pesquisas de Kant de Lima 16 sobre as sensibilidades jurídicas e
suas bases culturais e de Luís Roberto Cardoso de Oliveira 17 sobre as
relações entre direitos, insulto moral e apelos por cidadania para a aná-
lise de conflitos sociais oferecem um repertório considerável de desafios
desenvolvidos por orientandos e parceiros de equipe dos dois autores.
De qualquer modo, esse mapa de leituras é o diagrama de minha
trajetória pessoal, e não pretendo que ele seja tomado como a moldura
de referência para os estudos de sociologia e antropologia da moral, nem
como revisão de literatura, mas apenas como menção de um percurso
concreto que pode ser revisitado por outros colegas de modo proveitoso.
Há muitas outras formas de navegar nesse campo de pesquisa, mo-
bilizando autores tão competentes quanto os que foram citados acima e
configurando os problemas por outras plagas e com outras sensibilida-
des. Entre várias, gostaria de destacar os trabalhos de John Comerford,
inspiradores nesse sentido, que inclusive está fazendo uma interessante
revisão de literatura do problema a partir de sua atividade docente e como
membro da rede de estudos da moralidade. Destaca-se o programa da
disciplina Antropologia das Moralidades, ministrada por ele no segundo
semestre de 2013 no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
(PPGAS) do Museu Nacional (MN) da UFRJ.18

16 KANT DE LIMA, Roberto. “Sensibilidades jurídicas, saber e poder: Bases culturais


de alguns aspectos do direito brasileiro em uma perspectiva comparada.” Anuário An-
tropológico, 2009, vol.2, 2010, pp.25-51.
17 CARDOSO DE OLIVEIRA, op.cit.
18 COMERFORD, John. Como uma família: Sociabilidade, territórios de parentesco e sin-
dicalismo rural. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003; —————. Fazendo a luta: Sociabi-

 · Moralidades possíveis e o sujeito como multiplicidade de práticas


Parece-me relevante ressaltar que as apropriações das ferramentas
conceituais como agenciamento, competência, dispositivo, práticas e regimes
morais, derivadas das leituras sugeridas, possam deixar entrever que meu
modo de relatar o problema aqui não tem pretensão de generalizar um
tipo de acesso ao campo, mas apenas registrar uma das possibilidades
de construção desse acesso. E essa possibilidade passa pela ideia de que
agenciamento de poder, aquisição de habilidades agentivas e competência
moral são elementos de uma mesma equação, mesmo que ela não seja
necessária, o que de fato não é. E tal equação resulta em uma apreciação
analítica das formas de subjetividade atribuídas aos agentes nas situações
sociais em que eles se definem ou são definidos como sujeitos morais.
Ponto de vista que se aproxima da ideia de Sherry Ortner,19 segundo quem
a moralidade, o poder e a agência são problemas coetâneos e que giram
em torno de formas de subjetividade atribuídas pelos próprios atores so-
ciais no contexto da interação social. A revisão que a autora faz da teoria
da prática possibilita uma aproximação entre relações de poder e regime
morais que pode possuir boas potencialidades.
Com essas leituras cruzadas e transversais, posso afirmar que o que
venho tentando compreender sobre as práticas de indivíduos inseridos
nos universos do crime, dos ilegalismos populares, das disputas terri-
toriais armadas entre facções, bandos e traficantes de drogas ilícitas,
sem esquecer os policiais, atores centrais em tal configuração, está em
função da releitura de problemas sugeridos pelas pesquisas etnográficas
que fazem das concepções imaginárias e das formas de ação dos atores
sociais o ponto de partida para as reflexões mais amplas sobre moralidade
na vida social.
Como elabora Luís Roberto Cardoso de Oliveira,20 sentimentos so-
ciais, intersubjetivamente compartilhados, estão inseridos em contextos
de conflito, nos quais respeitabilidade e consideração são recursos fun-
damentais para a significação moral das disputas mais formalizadas ou
menos formalizadas e até mesmo mais informais na vida social.

lidade, falas e rituais na construção de organizações camponesas. Rio de Janeiro: Relume


Dumará, 1999.
19 ORTNER, Sherry. Anthropology and Social Theory: Culture, Power and the Acting Sub-
ject. Durham, EUA: Duke University Press, 2006.
20 CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. “Existe violência sem agressão moral?.”
Revista Brasileira de Ciências Sociais (RBCS), vol.23, n.67, 2008, pp.135-146.

Leonardo Sá · 
Pensar bem o caminho da moral

As leituras que insistem em partir de um modelo teórico do objeto costu-


mam tratá-lo como algo dado, um tipo de reificação que ignora o campo
de historicidade da produção da própria objetividade. Talvez seja nesse
sentido que possamos criticar o determinismo sociológico presente nas
análises que enfatizam o caráter disposicional das práticas morais. Des-
tarte, o que nos é instado a fazer, quando lidamos analiticamente com o
travejamento das realidades sociais que estudamos, é apostar nas proble-
matizações que rompem com as evidências do objeto dado, orientando-
-nos por estilos de aproximação do problema sociológico da moral que
abrem novas possibilidades de construção a partir de campos empíricos
diversos. Pois, enfim, os modelos teóricos, em geral, trazem definições
prévias do objeto que mais atrapalham do que ensejam avanços de pes-
quisas, justamente por esconderem os processos históricos de objetiva-
ção pelo qual a objetividade do objeto é estabelecida na forma do objeto
dado. A moral precisa ser implodida como objeto dado da sociologia e da
antropologia para poder vicejar.
A perspectiva da pragmática das relações sociais é um ponto decisivo
para a formulação do problema. Grosso modo, o que isso quer dizer? Para
onde isso aponta? Em primeiro lugar, precisa-se levar a sério a variação
empírica contínua das definições morais nos contextos de interação social
e nas situações sociais abordadas em sua especificidade, o que se conecta
com a ideia de que não há espaços vazios – os mundos sociais estão re-
pletos de heterogeneidades.
Há multiplicidades de práticas e praticantes e é dessa mixórdia, dessa
confusão que caracteriza qualquer realidade social, que o pesquisador
retira seus materiais. O fato de os atores sociais terem de lidar, precisa-
rem recorrer, manusear e manipular formas culturais para fazer acordos,
atribuir responsabilidades, livrarem-se delas, estabelecerem mecanis-
mos situacionais de prestação de contas, manterem procedimentos de
acusação, enfim, fazer uso das formas simbólicas imersas na ordem da
interação, tudo isso parece funcionar como ajustes recursivos e recorren-
tes frente à pluralidade de gramáticas morais. Em segundo lugar, ter de
lidar criticamente com uma coisa chamada lei, ou seja, algo essenciali-
zado pelas práticas de sentido dos próprios atores sociais e que interfere
nos significados atribuídos às moralidades em conflito, é uma tarefa de

 · Moralidades possíveis e o sujeito como multiplicidade de práticas


pesquisa permanente. Afinal, se a lei, como entidade social, é uma coisa
para si, é algo não natural, meramente convencional, em função dos
agenciamentos de poder e de competência dos atores, o que vale tanto
para o ator social quanto para o ator social analista, torna-se pertinente
entender como a metafísica da lei é parte desses mesmos agenciamentos,
como a apresentação da lei como algo natural é uma estratégia de essen-
cialização recorrente.
Portanto, redimensionar em uma perspectiva pragmática o lugar
dos códigos normativos e dos usos sociais das normas em contextos de
interação social é um procedimento possível para a instauração dessa
analítica das relações sociais que pode fazer render algo mais do que divi-
sões peremptórias entre agência e estrutura, fazendo-as se interpenetrar.
Ao passo que estamos coletivamente buscando uma perspectiva não
jural para tratar a relação com a lei, justamente por ela se diferenciar da
moral e uma não viver sem a outra, pelo menos no plano das representa-
ções simbólicas, por que então não encaminharmos o dilema entre criação
de vínculos e novos contextos, de um lado, e reprodução da ordem social,
de outro, nos termos da relação dos indivíduos com as entidades sociais
jurídicas? Por que não questionar as formas de subjetivação que adentram
os meandros de constituição de tais entidades? Elaborar análises sobre
os dispositivos morais que recortam os aparatos legais de ponta a ponta
é um dos caminhos que me parecem promissores.
O modo de relação do indivíduo com as entidades sociais que são
investidas por atos de magia social – como entidades jurídicas, represen-
tantes da lei, do direito, das normas jurídicas – parece ser uma chave de
entrada para a pesquisa do problema da moral. Pois as formas de subjeti-
vação da relação com a lei e com a moralidade na base dessa aproximação
envolvem racionalizações e reflexões dos sujeitos sobre a problemática
relação entre campo de obrigações e campo de práticas de liberdade.
Tanto a questão do cálculo quanto a das fantasias de grupo atreladas a
ele estão aí presentes.
A produção social do sujeito moral como forma de modulação da
concepção do self dos atores no campo de suas práticas está em função
das formas de racionalidade com que agenciamentos de justificação de si
e de condenação dos outros podem ser lidas in situ. O sujeito constituído
no âmbito das coisas já ditas e a função derivada de sujeito que brota
dessa autoposição na relação com o já dito têm como base o conjunto das

Leonardo Sá · 
capacidades agentivas na relação com as normatividades vigentes, ou
seja, quando garantidas por guardiões de códigos que operam sobreco-
dificando quaisquer tentativas alternativas de leitura da relação com os
sentidos morais objetivados no direito, na legislação e nos regulamentos.
O controle da dispersão da atividade dos sujeitos no campo das prá-
ticas, da variação contínua da significação moral, é o alvo principal da
ação estatal. São os investimentos dos dispositivos morais estatais sobre
o universo subjetivo dos atores sociais que buscarão imprimir marcas
normativas da associação política ao campo de decisão ou de escolhas com
que os atores sociais operam a qualificação de si próprios como avaliadores
de seus recursos morais, com ferramentas de justificação e de acusação,
funcionando no plano das responsabilizações.

Considerações finais

Heuristicamente, como já foi observado no início desse texto, o ponto de


partida parece-me ser evitar partir de modelos teóricos que definam previa-
mente o que seja a moral, independentemente da riqueza empírica. A ques-
tão então ficaria contornada nas pesquisas de campo a partir da análise que
podemos fazer das pessoas, como indivíduos competentes, relacionando-se
com o sentido de fixação de sua própria agência moral. A porta de entra-
da, então, seria a reflexividade dos agentes nesse processo. Seria inclusive
melhor falar de exercícios criativos e reflexivos de imaginar e atribuir lugar
de sujeito moral nas situações. As criações diante de si, pressionadas pelas
circunstâncias e desafiadas pelas contingências, favorecem uma conside-
rável mobilidade de formas de atribuir subjetividade em sentido moral às
relações sociais. Se a capacidade de criar novos contextos é central para o
estudo da agência moral dos atores, a ideia de que o sujeito é produzido no
e pelo campo de práticas ganha mais algum fôlego em termos de validade
analítica. A ressalva é que esse sujeito talvez deva ser pensado mais incisi-
vamente como uma multiplicidade de práticas. Em geral, os autores pensam
muito mais a pluralidade do sujeito do que a multiplicidade que é o sujeito.
As estilizações morais funcionam como estilos de existência pressionados
a lidar com suas formas de alteridade. Assim, para finalizar, deixando um
campo aberto de questões, os acertos e os ajustes são mais importantes do
que os arranjos institucionais que lhes dão suporte e espessura.

 · Moralidades possíveis e o sujeito como multiplicidade de práticas


Dos códigos aos repertórios: alguns
atavismos persistentes acerca da cultura
e uma proposta de reformulação1

G D. N

1 Esse texto faz parte do projeto Fronteras Morales, Fronteras Sociales: Las Moralida-
des en el Proceso de Articulación de Identidades, Alteridades y Conflictos en Condiciones de
Fragmentación Social, do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas
(Conicet), e contou com financiamento do projeto Moralidades, Fronteras Sociales y Ac-
ceso Diferencial a Recursos en Condiciones de Fragmentación Social da Universidad Nacio-
nal de San Martín (Unsam), assim como do programa “Naturalización y Legitimación
de las Desigualdades Sociales en la Argentina Reciente”, coordenado pelo professor
Alejandro Grimson junto ao Instituto de Altos Estudios Sociales (Idaes) da Unsam.
Agradeço pelo valioso apoio e por preciosos comentários aos membros do Núcleo de
Estudios Sociales sobre Moralidades do Idaes/Unsam, em particular a José Garriga,
e a meus alunos do seminário de doutorado, na Universidad Nacional de Córdoba e
na Universidad de Buenos Aires, Antropología de las Moralidades: Cuestiones Teóri-
cas, Metodológicas y Éticas, com quem foram discutidas várias das ideias deste texto.
Agradeço também a Morita Carrasco e a Andrea Lombraña pelo convite a particiopar
das II Jornadas de Debate y Actualización en Temas de Antropología Jurídica e a Ana
Lía Kornblit e Gabriela Wald pelo convite para a reunião mensal de discussões da Área
de Salud y Población do Instituto Gino Germani, onde foram discutidas de maneira
sistemática várias das propostas teóricas deste texto. Reservo ainda particular gratidão
a Alexandre Werneck e Luís Roberto Cardoso de Oliveira, organizadores deste livro,
e a Jussara Freire, Luiz Antonio Machado da Silva e os outros participantes do gru-
po Sociologia e Antropologia da Moral. Finalmente, gostaria de agradecer de maneira
especial a Silvia Alucín, Lucía de Abrantes, Luciana Denardi, Andrea Flórez Medina,
María Celeste Godoy, Lorena Narciso e Jimena Ramírez Casas por sua colaboração e
suas leituras atentas.
A persistência de uma visão

Os debates em torno do conceito “clássico” de cultura têm suscitado, na


antropologia, várias das mais influentes discussões das últimas décadas.
As principais linhas da controvérsia são amplamente conhecidas, assim
como os diversos “manifestos” surgidos no calor do debate, oscilando
entre a rejeição do conceito2 e intentos de recuperá-lo e o redefinir, com
a finalidade de não dilapidar o capital conceitual acumulado.3 Ainda as-
sim, na prática, as coisas não são tão simples. Os conceitos têm história,
e nos libertar de seus efeitos sedimentados não resulta tão fácil como
gostaríamos de crer.4 Certamente, isso não significa a negação de nossa
capacidade de depurar os conceitos analíticos por nós utilizados. No en-
tanto, passadas três décadas de refinamento conceitual, determinadas
figuras e metáforas, muito afins a esse conceito de cultura denunciado
uma e outra vez, reaparecem com uma assiduidade que parece desmentir
a eficácia das condenações lançadas contra ele.
A ubíqua e insistente noção de código é um dos exemplos mais exatos
desse gênero de atavismo teórico, visto que funciona como uma sorte de
eufemismo de “cultura” – no sentido já referido – que costuma passar sob
o radar de seus críticos, inclusive dos mais agudos. Convém lembrar que
essa noção é herdeira e resultante de uma dimensão normativa de longa
data, da qual o conceito de cultura nunca conseguiu se liberar totalmente,
em virtude do peso de sua dupla genealogia: por um lado, aprofundando
suas raízes na gramática – e que por meio da linguística estrutural condu-
zirá até o estruturalismo – e, por outro lado, a que se remonta ao direito,
que pela via de Maine, McLennan e Morgan (citando só três dos nomes
mais conspícuos) conduz à noção de regra jurídica e/ou moral tal como
apareceriam em Durkheim, Radcliffe-Brown e a versão oxfordiana da

2 ABU-LUGHOD, Lila. “La interpretación de la(s) cultura(s) después de la Televisión.”


Etnografías Contemporáneas, n.1, 2005, pp.57-90.
3 WRIGHT, Susan. “La politización de la cultura.” In: Boivin, Mauricio; Rosato, Ana;
Arribas, Victoria. Constructores de otredad. Buenos Aires: Antropofagia, 2007; BRU-
MANN, Christoph. “Writing for Culture: Why a Successful Concept Should Not Be Dis-
carded.” Current Anthropology, vol.40, n.S1, 1999, pp.1-41.
4 WILLIAMS, Raymond. Palabras clave: Un vocabulario de la cultura y la sociedad. Bue-
nos Aires: Nueva Visión, 2000; —————. Cultura y sociedad, 1780-1950: De Coleridge a
Orwell. Buenos Aires: Nueva Visión, 2001.

 · Dos códigos aos repertórios


antropologia social britânica.5 Como consequência dessa dupla deriva,
cujas vertentes costumam reforçar-se mutuamente, o conceito de código
mantém praticamente intactos vários dos atributos principais da criticada
ideia de cultura, em particular sua articulação sistemática, seu caráter
fechado e sua atribuição em bloco aos coletivos sociais discretos.6 Mesmo
assim, essa dupla filiação permite entender por que a ideia de “código”
costuma fazer sua aparição – até em autores contemporâneos conscientes
dessa mesma crítica – quando os textos aludem a qualquer um desses dois
domínios, o da linguagem e o do direito (no qual podemos incluir a moral
entendida more jurídico). Como esta última constitui o objeto do presente
trabalho, teremos de nos ocupar7 dela.

5 As reconstruções “presentistas”, assim como aparecem em Stocking – STOCKING,


George. “On the Limits of ‘Presentism’ and ‘Historicism’ in the Historiography of the
Behavioral Sciences.” In: Race, Culture and Evolution: Essays in the History of Anthropo-
logy. Nova York: The Free Press, 1992 [1968] –, relegam o evolucionismo ao papel de
iniciador em falso e nos fizeram esquecer até que ponto a antropologia foi influenciada
pelo aparelho conceitual e a terminologia do direito e pela doutrina jurídica. Não só
porque muitos dos primeiro trabalhos reconhecidos como parte da genealogia da nos-
sa disciplina foram escritos por juristas – como Maine, Morgan ou McLennan –, mas tam-
bém porque boa parte do vocabulário das discussões sobre parentesco ou organização
social – agnatício, cognatício, genos fratria – foi tomado do direito (e em particular do
direito romano).
6 TURNER, Terence. “Anthropology and Multiculturalism: What is Anthropology that
Multiculturalists Should Be Mindful of it?.” Cultural Anthropology, vol.8, n.4, 1993,
pp.411-429.
7 Como exemplo dessa instância referida à linguagem, podemos citar GRIMSON, Ale-
jandro. Los límites de la cultura. Buenos Aires: Siglo XXI, 2011. Embora o autor se mostre
a todo momento consciente de que “os pressupostos que equiparam grupos humanos
a conjuntos delimitáveis por valores ou símbolos são equivocados (...) e seus símbolos,
valores e práticas são recriados e reinventados em função de contextos relacionais e
disputas políticas diversas” (Ibid., p.61), ele parece estar disposto a fazer concessões
sem maior incômodo no que diz respeito à linguagem e seus putativos homólogos,
em cuja discussão reintroduz clandestinamente a noção de código compartido (Ibid.,
pp.163;177;188;191). Tudo acontece como se por um lado se tivesse dedicado à lingua-
gem articulada uma reverência tão excepcional quanto indevida, reconhecendo-lhe
um privilégio extemporâneo que teria sido recusado ao restante da cultura, ou como se
o autor recorresse à noção de código como consequência de uma associação mecânica
se subtrair a uma reflexividade da qual faz uso farto no restante do texto.

Gabriel D. Noel · 


Os códigos jurídicos e morais

Essa persistência atávica da noção de código que aparece mobilizada na


antropologia das moralidades8 apoia-se em dois pressupostos. O primeiro
deles concebe um ato moralmente conformado como algo precedido ou
mediado por um juízo de valor que implica uma avaliação prévia da si-
tuação por referência a critérios morais preexistentes.9 O segundo implica
que esses critérios ou valores estariam articulados em códigos morais que
os vinculariam segundo uma relação hierarquizada ou mais ou menos
sistemática. Dentro dessa visão, um ato moralmente conformado implica
alguma forma de cálculo moral,10 isto é, uma consideração explícita e rela-
tivamente raciocinada dos princípios contidos na ação futura ou de suas
consequências plausíveis, princípios por sua vez articulados em códigos
compartidos pelos membros de um coletivo. Os comportamentos dessa
classe seriam produto de um processo de deliberação, e a sua prática
constituiria sua conclusão silogística.
Ainda assim, a experiência mostra que a maioria das pessoas não se
orienta nem aspira a um alto grau de reflexibilidade moral. Muito pelo
contrário: tal como foi demonstrado por sociólogos de variadas estirpes,
acostumamo-nos a conduzir nossa vida social e moral de modo relati-
vamente irreflexivo. Boa parte das nossas orientações valorativas está
integrada como disposições e, quer seja pensada segundo modalidades
mais “profundas”, como o habitus de Bourdieu,11 ou mais “superficiais”,

8 O argumento que nos compete não se refere ao caso específico de trabalhos situa-
dos na tensão entre as esferas jurídica e moral (como vários neste livro). Referimo-nos
em especial aos textos que mesmo quando colocados fora de uma tradição jurídica
explicitamente codificada, concebem e discutem a ação moral sob o modelo de uma
racionalidade que reproduz em suas linhas substanciais a forma canônica recolhida
dentro e por essa mesma tradição.
9 BROWN, Marvin. Working Ethics: Strategies for Decision Making and Organizational
Responsibility. Oakland, EUA: Regent Press, 2000.
10 Vários dos textos compilados em SYKES, Karen (org.). Ethnographies of Moral Reasoning:
Living Paradoxes of a Global Age. Nova York: Palgrave Macmillan, 2008, em particular os
de Shah – SHAH, Alpa. “Corruption Insights into Combating Corruption in Rural Develop-
ment”, pp.117-138 – e de Gregory – GREGORY, Chris. A. “After Words: From Ethos to Pathos”,
pp.189-202 –, podem ser apresentados como ilustrativos deste tipo de enfoque.
11 BOURDIEU, Pierre. El sentido práctico. Buenos Aires: Siglo XXI, 2007.

 · Dos códigos aos repertórios


como a consciência prática de Giddens,12 não é usualmente consciente
na hora de atuar, embora em circunstâncias específicas isso possa suce-
der.13 Sendo assim, parece prudente duvidar da fecundidade do “cálculo
moral” como modelo geral para a ação moralmente conformada, e nos
perguntar, quanto mais, quais circunstâncias na vida social cotidiana
tornam possível, provável e, inclusive, exigem uma mediação reflexiva
da ação moral.14
Um vasto registro etnográfico sugere que boa parte da avaliação
reflexiva no seio da vida social seria retrospectiva:15 mesmo não tendo
motivos para crer que o cálculo moral esteja presente de forma habitual,
como parte de um processo decisivo que precederia à ação moralmente
conformada,16 ele aparece na justificação ex post de um comportamento
impugnado ou interpelado, ante a si mesmo ou ante terceiros. Assim, se
quisermos conservar a noção de “cálculo moral”, devemos reescrevê-la
– seguindo intuições como as de Austin17 ou Boltanski e Thévenot18 – não
como parte de uma racionalidade que precederia a ação, mas como uma
lógica da justificação ulterior a ela própria.
A reflexibilidade moral também costuma emergir ante outras classes
de disrupção. Como foi demonstrado por Zigon,19 os dilemas éticos –
contingências que põem frente a frente valores incompatíveis e a sua vez

12 GIDDENS, Anthony. La constitución de la sociedad: Bases para la teoría de la estructu-


ración. Buenos Aires: Amorrortu, 1995.
13 ZIGON, Jarrett. “Moral Breakdown and the Ethical Demand: A Theoretical Fra-
mework for an Anthropology of Moralities.” Anthropological Theory, vol.7, n.2, 2007,
pp.131-150.
14 Nos termos de Giddens, um passo da consciência prática à consciência discursiva.
15 GLUCKMAN, Max (org.). The Allocation of Responsibility. Manchester: Manchester
University Press, 1972.
16 Além de uma afirmação dessa natureza implicar um acesso aos inner states dos ato-
res impossível de se obter. Para uma discussão sobre a questão dos inner states e sua
relevância putativa para a investigação em antropologia das moralidades, ver BALBI,
Fernando. De leales, desleales y traidores: Valor moral y concepción de política en el pero-
nismo. Buenos Aires: Antropofagia, 2008.
17 AUSTIN, John. “A Plea for Excuses.” Proceedings of the Aristotelian Society, vol.57,
1957. Ver também WERNECK, Alexandre. A desculpa. As circunstâncias e a moral das
relações sociais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
18 BOLTANSKI, Luc; Thévenot, Laurent. On Justification: Economies of Worth. Prince-
ton: Princeton University Press, 2006.
19 Op.cit.

Gabriel D. Noel · 


igualmente desejáveis – e as situações limite – cenários nos quais atuar
em conformidade com as disposições morais habituais significa um alto
custo – costumam precipitar os envolvidos na direção da reflexibilidade
moral. A essas contingências podemos acrescentar, em um gesto durkhei-
miano, as transformações sociais súbitas ou aceleradas20 que funcionam
em uma interpolação generalizada para aqueles que as atravessam ou são
por elas atravessados.21
Mas, ainda que admitidas essas ressalvas,22 continua sendo evidente
que os contextos nos quais os atores sociais são convidados por outros a
justificar-se, como aqueles em que as disposições morais habituais são
empurradas na direção da consciência discursiva, costumam ser exceções
pontuais – embora infrequentes – no decorrer da vida social, de maneira
que na maior parte do tempo nossa orientação moral estaria conformada
de forma irreflexiva por uma série de disposições incorporadas.23

“Ter códigos”

Retomemos agora a segunda premissa dessa visão, que implica pensar as


categorias mobilizadas no cálculo moral (os “valores”) como hierarqui-
zadas ou codificadas de maneira consistente em sistemas de regras ou
códigos morais, que os atores “interiorizariam” de forma igualmente sis-
temática. Uma vez mais, essa presunção passa por cima do fato de os atores

20 ALEXANDER, Catherine. “Privatisation: Jokes, Scandals and Absurdity in a Time of


Rapid Change.” In: Sykes, Karen (org.). Ethnographies of Moral Reasoning: Living Para-
doxes of a Global Age. Basingstoke: Palgrave MacMillan, 2008.
21 GRIMSON, Alejandro. “La nación después del deconstructivismo: La experiencia
argentina y sus fantasmas.” Sociedad, vol.20, n.2, 2002, pp.177-193.
22 As ressalvas introduzidas nos oferecem uma interessante via de acesso para a re-
constituição analítica da vida moral dos atores sociais, na medida em que impugna-
ções e disrupções especificam as condições nas quais podemos esperar que se façam
visíveis ante a um observador interessado – por exemplo, um etnógrafo – seus critérios
e categorias morais. Como nossa própria experiência e a de outros pesquisadores ates-
tam, os etnógrafos interessados em observar os modos em que se desdobram as cate-
gorias morais “no campo” fariam bem em procurar situações de conflito persistente,
de câmbio social acelerado, ou qualquer uma daquelas circunstâncias em que se possa
supor que os atores implicados estão enfrentando dilemas ou situações limites.
23 ZIGON, op.cit.

 · Dos códigos aos repertórios


sociais demonstrarem grande capacidade ao sustentar valores alternativos
e inclusive contraditórios. Como têm mostrado recorrentemente os me-
lhores trabalhos empíricos (incluindo vários dos contidos neste livro), os
“valores” são mobilizados segundo uma dinâmica mais afim à do sentido
prático à la Bourdieu 24 que com a silogística aristotélica. A consistência
moral que percebemos nos atos alheios e próprios não é nada mais do que
uma aparência falaz dando testemunho de nossa capacidade de eliminar a
dissonância e organizar sobre uma evidência cuidadosamente selecionada
esse adulador (auto)retrato que Bourdieu 25 denominou “a ilusão biográ-
fica”. Mas, se não tem sentido pensar a agência moral sob a forma de um
cálculo racional, ainda menos teria imaginar que as práticas pudessem
se desdobrar more geométrico sobre o molde de uma escala de valores ou
um “código moral” ao qual se professaria adesão. Se essa visão aduladora
segue resultando persuasiva é porque está reproduzindo com fidelidade
as narrativas que costumamos estender quando nos pensamos ou nos
descrevemos como atores morais. Mas devemos ter redobrado cuidado
para não adotar as representações sistemáticas feitas pelos atores sobre
seu comportamento como evidência da existência desses códigos articu-
lados, aos quais recorrentemente fazem referência. Desde Malinowski,26
sabemos que, quando um pesquisador formula perguntas gerais sobre as
práticas, obterá respostas referidas a hipotéticas regras sistematicamente
articuladas, ainda que a sujeição às práticas efetivas a essas “regras” seja
um fato discutível. Embora não haja qualquer problema em articular
em um modelo analítico as referências de nossos nativos a seus valores
morais, dar o passo adicional de transformar esse modelo em um código
de existência efetiva a regular as práticas dos atores implica confundir o
modelo da realidade com a realidade do modelo.27

24 Op.cit.
25 BOURDIEU, Pierre. Razones prácticas: Sobre la teoría de la acción. Barcelona: Ana-
grama, 1997.
26 MALINOWSKI, Bronislaw. Crimen y costumbre en la sociedad salvaje. Barcelona:
Ariel, 1991.
27 Um texto que ilustra de maneira aguda algumas das consequências e os problemas
de um potencial deslizamento dessa classe é MÍGUEZ, Daniel. Delito y cultura: Los códi-
gos de la ilegalidad en la juventud marginal urbana. Buenos Aires: Biblos, 2008.

Gabriel D. Noel · 


Cultura e agência: do comportamento sujeito a regras à
mobilização de recursos

O certo, ante a qualquer caso, é que o “código” tem se tornado uma ma-
neira de fazer passar o conceito de “cultura” – nessa acepção clássica que
se tem sedimentado no “sentido comum” das sociedades contemporâneas
– sob o radar. Não pretendemos dizer com isso que a maioria dos antro-
pólogos siga pensando e escrevendo como se nada tivesse acontecido em
matéria de debate nos últimos anos. Apontamos para o fato de que, cada
vez que nossa vigilância epistemológica relaxa, fica livre o caminho para
nossos automatismos intelectuais voltarem a configurar o modo como
pensamos as práticas sociais baseados em uma série de supostos implícitos
de inspiração gramatical ou jurídica que interfere com nossa capacidade
de compreender a vida social de forma consistente com os refinamentos
recentes de nossas disciplinas.
Os “culturalismos do código”, como mencionamos, sobre a base de
uma dupla herança normativa, que se pode indagar à gramática e ao direi-
to, seguem argumentando como se a “cultura” pudesse pensar-se como
uma série de “códigos compartidos” seguidos pelos atores e que estariam
conformados por regras e sistemas de regras capazes de estipular os com-
portamentos socialmente aceitáveis. Contudo, a ideia de “comportamento
sujeito a regras” se mostra devedora tanto de um determinismo estrutu-
ral ao qual provavelmente poucos antropólogos ou sociólogos estariam
dispostos a se alinhar quanto daquele pressuposto de uma racionalidade
fundada no cálculo moral que já discutimos. Portanto, se não tem sentido
afirmar que os atores sociais sejam determinados pelas regras, nem sigam
regras prefixadas e incorporadas quando levam a cabo ações moralmente
conformadas: como poderíamos descrever o que estão fazendo? De que
forma poderíamos caracterizar o papel e o estatuto das categorias morais –
e da “cultura” de que fazem parte – no desdobramento de sua vida social?
Para esses fins, gostaríamos de propor um aparelho conceitual e ter-
minológico para evitar esbarrarmos nesses pressupostos inconsistentes
com a sofisticação atingida pela teoria social contemporânea. Seguindo
o dictum de Latour28 a respeito da necessidade de utilizar uma linguagem

28 LATOUR, Bruno. Reensamblar lo social: Una introducción a la teoría del actor-red.


Buenos Aires: Manantial, 2008, pp.49-50ss.

 · Dos códigos aos repertórios


“leve”, esboçaremos uma proposta originalmente forjada e posta à prova
em nossa própria pesquisa29 e que, enquanto finca suas raízes na tradição
processualista da antropologia social britânica de meados do século XX,30
reconhece fortes afinidades com a teoria da prática em sociologia e com
seus consequentes desenvolvimentos na antropologia.31
Como argumentou Brumann,32 recusarmo-nos a pensar a cultura
como um código não equivale a negar a existência de recorrências no
comportamento dos atores sociais. Afirmar que a palavra “código” e seus
cognatos devem ser desterrados da linguagem das ciências sociais deve
ser lido somente como um convite a pôr em quarentena uma terminologia
cuja carga sedimentada alenta e permite deslizes para visões atávicas
da “cultura” e da “moral”, para utilizar, em vez disso, um aparelho e
um léxico atentos às dimensões processuais da vida social e ao rol da
agência na emergência, configuração, reconfiguração e “fecho” de suas
dimensões estruturais e não a atualização ou a execução de um código
preestabelecido e preexistente. A esse fim, proporemos a introdução de
um vocabulário no qual ocupam um lugar central as noções de recursos
e repertórios33 e, como complemento, as de apropriação, mobilização e
modalidades de uso socialmente disponíveis ou habituais desses recursos.

29 NOEL, Gabriel. La conflictividad cotidiana en el escenario escolar: Una perspectiva et-


nográfica. San Martín: Unsam Edita, 2009; —————. “Guardianes del paraíso: Génesis
y genealogía de una identidad colectiva en Mar de las Pampas, Provincia de Buenos
Aires.” Revista del Museo de Antropología, n.4, 2011, pp.211-226; —————. “Cuestiones
disputadas: Repertórios morales y procesos de delimitación de una comunidad imagi-
nada en la costa atlántica bonaerense.” Publicar en Antropología y Ciencias Sociales, XI,
2011, pp.99-126 ; —————. “Vida Slow y Slow Food en una Localidad Balnearia.” Tra-
balho apresentado na 28a Reunião Brasileira de Antropologia. São Paulo, 2 a 7 de julho
de 2012; —————. “Historias de pioneros: Configuración y surgimiento de un repertório
histórico-identitario en la Costa Atlántica Bonaerense.” Atek Na-En la Tierra, n.2, 2012,
pp.165-206.
30 LEACH, Edmund. Sistemas políticos de la Alta Birmania: Un estudio de la estructura
social Kachin. Barcelona: Anagrama, 1977; BARTH, Frederik. Political Leadership Among
the Swat Pathans. Londres: The Athlone Press, 2000; TURNER, Victor. “Dramas sociais
e metáforas rituais.” In: Dramas, campos e metáforas: Ação simbólica na sociedade huma-
na. Niterói, EdUFF, 2008.
31 ORTNER, Sherry. Anthropology and Social Theory. Durham, EUA: Duke University
Press, 2006.
32 Op.cit.
33 Nossa noção de “recurso” tem uma relação frouxa com a revisão de Sewell para o
conceito de recurso originalmente introduzido por Giddens, no entanto seu conceito

Gabriel D. Noel · 


Comecemos com a afirmação de que os atores sociais, em virtude de
suas posições sucessivas no marco de seus coletivos de referência34 (sua
“sociedade”, no sentido amplo da palavra, mas também os diversos cená-
rios sociais a que ulteriormente acedem), entram em contato, por meio de
suas trajetórias biográficas35 – isto é, dos processos de socialização36 e da
configuração e reconfiguração permanente de seus laços de sociabilidade
–, com diversos recursos,37 tanto materiais quanto simbólicos.38 Esses
recursos são habilitados – postos ao alcance dos atores – em relação com

de “regra” tem sido entendido por nós na formulação “modalidades de uso socialmen-
te disponíveis.” Nossa ideia de “repertório” tem paralelos com a de Lahire – LAHIRE,
Bernard. El hombre plural: Los resortes de la acción. Barcelona: Bellaterra, 2004 – ainda
que ele próprio se refira principalmente aos repertórios de práticas dos atores sociais
considerados individualmente. E em menor medida tem paralelos com a de Swidler,
mesmo que consideremos problemática sua ideia de agência, que se apresenta como se
fosse em certo sentido “exterior” à cultura.
34 Classe e gênero constituem, sem nenhuma dúvida, as coordenadas mais visíveis
dessa posição, porém não as únicas: a filiação nacional ou étnica, a longitude da resi-
dência (como apresentam Elias e Scotson – ELIAS, Norbert; Scotson, John L. Os estabe-
lecidos e os outsiders: Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade.
Rio de Janeiro: Zahar, 2000) e muitos outros podem ter um peso comparável.
35 Compete recordar que as trajetórias biográficas dos seres humanos não são monó-
tonas e que, em virtude disso, mesmo uma transformação na estrutura de seus cole-
tivos de referência que seja suficientemente drástica para afetar a todos os contem-
porâneos interpelados por um coletivo determinado não os afetará a todos da mesma
forma. Por exemplo, sem dúvida uma crise de emprego generalizada afetará por igual
uma criança, que está fora do mercado de trabalho, um jovem que esteja por nele in-
gressar, um jovem adulto com um emprego e um aposentado saindo do seu.
36 O emprego do plural indica que não estamos apenas nos referindo à “socialização
primária”: cada vez que um ator ingressa em um novo coletivo de referência, deve ser
– e de fato é – socializado em relação aos recursos e usos socialmente disponíveis dos
mesmos por outros atores neles proficientes. Em virtude de isso continuar, o processo
de socialização de um ator em um cenário novo pode revelar muitos dos recursos cru-
ciais, assim como seus usos socialmente disponíveis.
37 Nossa posição teve como ponto de partida original uma revisão substantiva do es-
quema teórico “estrutura-cultura-biografia” introduzido por Hall e Jefferson – Hall,
Stuart; Jefferson, Tony (orgs). Resistance Through Rituals: Youth Subcultures in Post-war
Britain. Londres: Routledge, 1992 – à luz das críticas realizadas por Stanley Cohen
no prefácio à segunda edição de Folk Devils and Moral Panics e da resposta posterior
daqueles. Para uma versão embrionária de nosso argumento, ver NOEL, Gabriel. La
conflictividad cotidiana en el escenario escolar: Una perspectiva etnográfica. San Martin,
Argentina: Unsam Edita, 2009.
38 Visto que a distinção na maioria dos casos é meramente analítica, caberia melhor
falar das dimensões ou aspectos materiais e simbólicos dos recursos.

 · Dos códigos aos repertórios


essas posições na estrutura dos coletivos de referência.39 Ainda assim, os
atores sociais não apenas entram em contato com recursos, mas também
com modalidades socialmente disponíveis de utilizá-los, combiná-los e
os mobilizar para fins determinados. Essas modalidades não são apenas
aprendidas de outros atores,40 mas cada vez que são postas em prática
abrem-se à interpelação potencial de terceiros com acesso direto a elas
ou a suas consequências. E ainda são essas modalidades que fazem dos
recursos de determinada classe, na medida em que estão associadas a eles
com maior ou menor grau de intensidade.
Mesmo assim, se em princípio todo recurso aparece na vida dos atores
objetivado de alguma forma, muitos irão sendo incorporados – juntamente
com uma ou mais de suas modalidades socialmente disponíveis de uso –
como disposições mais ou menos duradouras.
Os recursos, então, podem ser reunidos analiticamente em repertó-
rios. E estes podem ser pensados como configurações socialmente dis-
poníveis, mais ou menos abertas e mais ou menos mutáveis em recursos
associados sobre a base das afinidades em suas formas socialmente habi-
tuais de aquisição, circulação, acumulação, acesso ou uso em determinado
coletivo de referência.41 “Repertório” não deve ser pensado como um
eufemismo politicamente correto de “código”, não apenas porque não se
supõe que os repertórios estejam fechados ou sistematicamente articu-
lados, mas porque não é possível pensá-los como ativos nem prescriti-
vos: não são mais do que um atalho analítico que nos permite organizar
taquigraficamente as formas mais frequentes nas quais os recursos são
associados pelos atores na hora de serem adquiridos, postos em circulação

39 Estrutura que, evidentemente, é continuamente construída/transformada pelas


práticas dos atores.
40 Como os atores nunca se apropriam de recursos sem uma ou mais formas social-
mente disponíveis de mobilizá-los, não deve se subestimar o rol que a imitação – no
sentido que lhe dá o recentemente reabilitado Tarde – tem na incorporação desses re-
cursos e essas formas.
41 Também se poderia usar “repertório”, como o faz Lahire, não no sentido social,
mas individual, para referir-se aos conjuntos de recursos incorporados e objetivados
disponíveis para um ator social determinado ou a um desses conjuntos. Embora não
tenhamos objeções contra esse uso, nos abstivemos, no presente texto, de usar o termo
nesse sentido, na medida em que não nos ocupamos, a não ser muito tangencialmente,
do modo como os recursos resultam “amarrados” na subjetividade dos atores sociais
individualmente considerados.

Gabriel D. Noel · 


ou mobilizados, e os pensar sob a modalidade do código supõe confundir
usos habituais e prescrições supostas sobre os usos.
Certamente as formas em que os recursos se associam não são aleató-
rias nem arbitrárias e qualquer associação de recursos não é igualmente
provável (ou sequer possível) na medida em que determinadas modali-
dades de uso estendidas no espaço e no tempo produzem efeitos de se-
dimentação histórica que os transformam em disposições incorporadas.42
Mas o grau de sedimentação pode variar consideravelmente, da mesma
forma que o grau em que as associações de recursos são mobilizadas de
maneira “compartida” nas práticas dos atores. 43
“Apropriados” e “mobilizados” constituem termos chaves nesse es-
quema: os recursos com os quais os atores entram em contato permane-
cem “em disponibilidade” até serem efetivamente apropriados – com ou
sem uma ou mais modalidades socialmente disponíveis de utilizá-los:
sem agência não há recursos mais do que em potencial – ainda que essa
agência não seja uma enteléquia acultural, e sim uma forma de ser e de
atuar configurada pelos usos habituais que esses atores têm visto serem
feitos desses recursos, pelos usos precedentes dos mesmos e de outros
afins, e pelo que os outros lhes dizem e permitem em relação a eles.
Essa última dimensão incumbe aos efeitos das diferenças de poder,
que podemos referir não apenas à legitimidade potencial dos usos de um
ator para um recurso aos olhos de outros atores – quer dizer, à possibili-
dade de interpelação – mas também à quantidade e variedade de recursos
a que um ator tem acesso em um momento determinado, assim como à
possibilidade de impor ou retirar recursos de acesso de terceiros ou – em
último termo – de transformar os próprios atores sociais e seus recursos
em recursos para uso próprio.
Diferentemente, portanto, do que implicam as noções de “código
compartido” e de “comportamento sujeito a regras”, a relação entre os
atores sociais e os recursos a que têm acesso deve ser pensada como aberta.
Em primeiro lugar, porque os atores sociais se deslocam continuamente

42 GRIMSON, op.cit.
43 Poderíamos pensar em um continuum decrescente que teria em um dos seus polos
modalidades com um alto grau de sedimentação – e, por isso, amplamente comparti-
das – como a gramática da linguagem articulada, e, em outro, recursos e modalidades
singulares e efêmeras – como o hit musical das discotecas no último verão.

 · Dos códigos aos repertórios


– tanto em sentido literal como metafórico44 –, de modo que suas trajetó-
rias biográficas com frequência os põem em contato com novos recursos,
com novos usos para velhos recursos ou com novos juízos a respeito de
seus usos habituais, ao mesmo tempo que podem retornar outros irrele-
vantes. Em segundo lugar, porque, como adiantamos, os repertórios não
podem ser pensados como fechados: os atores sociais podem contribuir,
como de fato fazem frequentemente, para sua reconfiguração ativa, mo-
dificando velhas associações, agrupando, reinterpretando, transladando
ou removendo recursos em associações disponíveis para mobilizá-los e
os combinar. Ainda assim, não há razões para pensar que os repertórios
sejam consistentes em alto grau, nem no que faz à articulação dos recur-
sos reunidos em cada um deles, e nem ainda naquilo que faz às mútuas
relações entre repertórios disponíveis para atores de um mesmo coletivo
de referência. Também não teria sentido pensá-los como compartimentos
estancados ou mutuamente excludentes: na medida em que a noção de
repertório não é mais que um atalho analítico para caracterizar recur-
sos que em algum sentido “costumam ir juntos” nos usos habituais dos
atores de um coletivo determinado, pode se pensar sem dificuldade em
uma multiplicidade de recursos adjudicáveis a múltiplos repertórios,
ou inclusive em grandes porções de recursos “compartidos” por um ou
mais deles. Na medida em que a relação dos recursos em um repertório
é uma articulação débil que tem a ver com a frequência das associações
socialmente habituais entre eles, compreende-se o rol central da agência
em sua apropriação e sua mobilização. No entanto, pode-se pensar que
repertórios “similares” estariam, em princípio, disponíveis para aqueles
atores sociais ocupando posições homólogas, ou que tenham transitado
trajetórias análogas na estrutura social, os recursos efetivamente mobili-
zados em uma situação concreta dependerão dos processos específicos de

44 Gostaríamos de deixar claro que essa mobilidade não deve ser entendida como re-
ferida somente a movimentos de “ascenso” ou “descenso” na estrutura social, e nem
sequer a “movimentos transversais”. Referimo-nos ao fato mais banal, mas sociolo-
gicamente significativo, de que as pessoas com frequência aprendem novos idiomas,
viajam, conversam, leem, frequentam várias instituições, fazem cursos, olham páginas
da internet, filmes ou programas de televisão, todos pondo à sua disposição recursos
materiais e/ou simbólicos capazes de serem apropriados como recursos incorporados
ou objetivados pelos mesmos atores, assim como mobilizados nas suas formas habituais
de uso nos contextos locais, ou em formas novas exatamente onde estas não existam.

Gabriel D. Noel · 


apropriação a desdobrarem em relação com suas biografias acumuladas,
incluindo as interpelações específicas sofridas em ocasião de sua mobi-
lização prévia e seus efeitos sedimentados.

Considerações finais

Após este tour de force teórico e conceitual, gostaríamos de, para finali-
zar, suavizar os excessos de um argumento deliberadamente polêmico,
para propor uma leitura do mesmo como um triplo convite: em primeiro
lugar, deixar para trás, de uma vez e para sempre, uma série de noções
e usos atávicos como o de “código”, que nos atolam uma e outra vez em
pântanos conceituais dos quais, faz tempo, acreditamos ter saído; em
segundo lugar, pôr à prova nossa proposta terminológica e conceitual do
único modo em que uma proposta desta classe pode existir: em relação
com seu valor heurístico como ferramenta de análises;45 e, em terceiro,
evidentemente, continuar pensando em como refinar nossas ferramentas
analíticas, em um empreendimento do qual este texto não é e nem pode
ser, como é costume, nada mais do que um capítulo provisório.

45 Alguns exemplos do uso etnográfico dessa “caixa de ferramentas” podem se en-


contrar em nossos textos, citados nas referências bibliográficas.

 · Dos códigos aos repertórios


Gramáticas, sentidos
e dispositivos morais
O drama moral de
certa pedagogia feminista

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Malu mulher: alguns temas da pauta feminista no horário


nobre

Malu: Enquanto [o aborto] não for legalizado, as infelizes das mulheres es-
tão nas mãos deles mesmo [médicos em clínicas clandestinas]. Todo mundo
condena, diz que é crime, diz que é pecado, mas, na hora, todo mundo
fecha os olhos porque um dia pode precisar. Isso chama-se hipocrisia.
(...) [S]e é necessário, se é uma coisa inevitável, por que não legalizar? Por
que não tornar menos sórdido, mais civilizado?

Essa é uma das falas conclusivas do episódio “Ainda não é hora”, do


seriado Malu mulher, exibido em 14 de junho de 1979, no horário das 22h,
pela Rede Globo. Malu é a protagonista do seriado e nesse episódio ajuda
uma jovem a fazer um aborto em uma clínica clandestina. A série visava
atingir como audiência as mulheres de classe média urbana escolarizadas,
e para tanto tratava da história de Maria Lucia, Malu, socióloga, 32 anos,
com uma filha, que se separa no primeiro episódio, buscando, como diz
a canção da abertura, “Começar de novo”,1 encontrar-se consigo mesma
e se libertar do marido e do casamento. O ex, ao longo dos dois anos do
programa e de algumas disputas, torna-se uma pessoa comum, e mesmo

1 De Ivan Lins e Vitor Martins.


um amigo da protagonista. Os principais antagonistas, contra os quais
ela luta e sobre os quais discute de modo discursivo e didático, eram o
machismo, os preconceitos (de vários tipos, contra negros, homossexuais,
desquitadas etc.), a hipocrisia, o casamento tradicional, a opressão, a vio-
lência (não apenas a dos homens contra mulheres, mas também a urbana,
e até a da polícia). Conjugalidade, autonomia feminina e sexualidade eram
os temas centrais, vistos e questionados em diversos episódios. Eram
pautas fulcrais para grupos feministas (no Brasil e no mundo), particu-
larmente em sua vertente de classe média, como inclusive espelha o perfil
estereotipado da socióloga Malu, construído pela forte ênfase dada ao
trabalho como espaço de realização e libertação, considerando que para
mulheres de camadas populares o trabalho não era visto como “escolha”
e nem afirmação individual.2
No período em que o seriado foi exibido, entre maio de 1979 e dezem-
bro de 1980, suas referências e sua conexão com algumas pautas do femi-
nismo3 eram explícitas. A ONU promoveu em 1975 o Ano Internacional da
Mulher, e a partir de então se observa no Brasil uma crescente visibilidade
do movimento feminista e mesmo de certos movimentos de mulheres não
necessariamente “feministas” em sentido estrito, associadas às demandas
das periferias (tais como a demanda por creches). Todo esse movimento é
central na concepção da personagem e das histórias contadas.
Em linhas gerais, ao longo daqueles dois anos, vê-se Malu discutir for-
mas de desigualdade que afetam especialmente as mulheres: ela rechaça
o casamento tradicional, questionando a dupla moral sexual; defende a
autonomia e a independência feminina; valoriza, como vimos, o trabalho
feminino como realização pessoal; politiza a violência doméstica; e de-
fende a legalização do aborto. Ademais, assim como acontecia com certas
correntes no movimento feminista, defende outras pessoas que sofrem
preconceitos ou que lidam com as desigualdades sociais, como domésti-
cas, homossexuais, negros, deficientes. De acordo com certa postura de
esquerda, questiona inclusive (ainda que indiretamente) o regime militar
e clama pela abertura. Essa associação entre feminismo e uma política

2 Este texto resulta de uma pesquisa que já contou com o apoio da Fapesp, do CNPq e
de bolsistas da Universidade de São Paulo (USP).
3 Evidentemente, há várias correntes no feminismo, mas é possível notar uma linha
geral de luta pelos direitos das mulheres.

 · O drama moral de certa pedagogia feminista


progressista, vinculada à luta pela anistia e contra a ditadura, é muito
lembrada nos trabalhos sobre o feminismo daquele período no Brasil.4
Alguns episódios são bastante explícitos em sua abordagem política,
como esse que defende a legalização do aborto e outro que busca crimina-
lizar a violência doméstica. No entanto, o seriado não é apenas feminista.
Outras vezes é uma concepção essencialista de feminino e de uma sen-
sibilidade feminina que aflora, como já era comum na teledramaturgia,
mesmo com episódios que valorizam noções tradicionais de dedicação
materna – a variação na abordagem segue a diversidade dos escritores
participantes na produção.5 Na visão de Mariza Corrêa,6 o seriado teria
tido o impacto de popularizar alguns temas do feminismo de então. Eu-
clydes Marinho, que participou da equipe de criação (com Armando Costa,
Lenita Plonczynski e Renata Pallotini) e escreveu o primeiro episódio da
série, conta inclusive que, na época, participou de inúmeras reuniões
feministas a convite de Ruth Cardoso e Rosiska de Oliveira, e diz que as
feministas “estavam muito ativas”.7
Mais do que explorar apenas essa associação entre um seriado e al-
guns temas do movimento social de grande repercussão na época, tenho

4 Sobre o feminismo do período, ver, por exemplo: CORRÊA, Mariza. “Do feminismo
aos estudos de gênero no Brasil: Um exemplo pessoal.” Cadernos Pagu, n.16, 2001, pp.
13-30; GREGORI, Maria Filomena: Cenas e queixas: Um estudo sobre mulheres, relações
violentas e a prática feminista. São Paulo: Anpocs/Paz e Terra, 1993; MORAES, Maria
Lygia Quartim. A experiência feminista dos anos setenta. Araraquara, SP: Editora Unesp,
1990; PONTES, Heloisa. Do palco aos bastidores: O SOS Mulher e as práticas feministas
contemporâneas. Dissertação (mestrado), Unicamp, 1986; SARTI, Cynthia. “Feminismo
e contexto: Lições do caso brasileiro.” Cadernos Pagu n.16, 2001, pp.31-48.
5 Explorei mais esses temas gerais de Malu mulher em ALMEIDA, Heloisa Buarque de.
“Gênero e sexualidade na mídia: de ‘Malu’ a ‘Mulher’.” Trabalho apresentado no 31o
Encontro Anual da Anpocs, Caxambu (MG), outubro de 2007; —————. “Trocando em
miúdos: Gênero e sexualidade na TV a partir de ‘Malu mulher’.” Revista Brasileira de
Ciências Sociais (RBCS), vol.27, n.79, 2012, pp.125-137. Autores como Euclydes Mari-
nho e Armando Costa escrevem os episódios mais politizados, e autores como Manoel
Carlos mantêm roteiros mais conservadores. Escreveram também para o seriado Le-
nita Plonczynski e Renata Pallotini, Walter Negrão, Marta Góes, Aguinaldo Silva, Doc
Comparato, João Carlos Motta, Flavio Marinho, Luiz Carlos Maciel e, a convite, Odete
Lara, Leilah Assumpção, Marina Colasanti e Roberto Freire.
6 CORRÊA, op.cit.
7 Essas reuniões lhe forneceram não apenas material para Malu, mas também para
a minissérie Quem ama não mata (1982). Entrevista com o autor em Memória Globo.
Autores: Histórias da teledramaturgia, Vols. 1 e 2. São Paulo: Globo, 2008, pp.338-339.

Heloisa Buarque de Almeida · 


feito uma reflexão sobre as construções de gênero na produção televisiva.
Considero que Malu faz parte de um movimento de mudança de cons-
truções simbólicas sobre o feminino na TV brasileira, descolando-se de
heroínas melodramáticas tradicionais e buscando constituir imagens de
uma mulher relativamente “moderna” e menos submissa. Evidentemente,
isso aparece também nas telenovelas a partir do final dos anos 1970, mas
nesse seriado a temática feminista é apresentada de modo didático.
Malu mulher é apresentado – em inúmeros depoimentos, matérias
de jornal, sites, no DVD lançado pela Globo, em entrevistas de Regina
Duarte, Daniel Filho, Dennis Carvalho e nas memórias oficiais, como o
site Memória Globo – como dotado de uma forte relação com o momento
(histórico e social) da vida “das mulheres”. Haveria uma mudança social
em curso que o seriado buscava captar e retratar. Os textos da época de
sua exibição referem-se à associação entre o seriado e o movimento fe-
minista. No entanto, os discursos posteriores de memória da emissora,
como o lançamento em 2004 de um DVD comercial com dez episódios,
entrevistas posteriores sobre a época (exceto as de dois autores, Euclydes
Marinho e Renata Palottini) omitem especificamente o lado “feminista”
do seriado, e ressaltam a noção de uma “emancipação feminina”. Talvez o
termo “feminista” tenha ganhado uma imagem negativa que a publicidade
mais recente da emissora visa evitar.
Assim como os outros seriados nacionais exibidos na mesma época,
Carga pesada e Plantão de polícia, muitas vezes em Malu mulher os auto-
res se inspiram em notícias de jornais e fatos da época para construir a
narrativa. Por exemplo, “Legítima defesa da honra e outras loucuras” (de
Armando Costa) discute violência doméstica por meio do caso de Duca,
que não apenas parece referir-se ao caso de grande repercussão daquele
ano (1980) do assassinato da socialite Angela Diniz pelo empresário Doca
Street, como o título menciona o argumento usado então pelos advogados
para liberarem os agressores que estariam “defendendo a sua honra”. No
episódio “Filhos, melhor não tê-los” (de Marta Góes e Walter Negrão), por
meio da vida de uma doméstica tematizam-se outras questões, como a
vida de uma mãe solteira que é demitida e busca emprego como doméstica,
é confundida com prostituta em certo bairro e sofre violência direta da
polícia. O caso faz menção a certa “operação limpeza” promovida pelo
delegado Richetti, em maio e junho de 1980, no centro da cidade de São
Paulo e que teve como alvo as prostitutas.

 · O drama moral de certa pedagogia feminista


No entanto, as escolhas das narrativas de Carga pesada e Plantão de
polícia parecem remeter com mais frequência a notícias de jornais, como
índice de realidade, ao passo que em Malu mulher, embora também haja
esse recurso como inspiração para os roteiristas, a narrativa remete com
maior frequência à experiência de pessoas comuns que nem sempre se
tornam “notícia de jornal”. Malu é recém-separada, assim como Re-
gina Duarte havia se separado havia pouco, e os dramas pessoais de
casamentos e separações, afins não só à trajetória pessoal da atriz, mas
também dos diretores e alguns autores, são usados na composição das
narrativas. Quando se lê alguns depoimentos e entrevistas dos autores,
atores e diretores, nota-se que o aspecto “real” de Malu refere-se não
apenas à tal “emancipação da mulher” (ou seja, o contexto social), mas
também a fatos por eles próprios vivenciados: separações e desquites,
certos momentos de tensão em um casal que beiram a violência, rela-
ções e conflitos entre pais e filhos, fatos corriqueiros vivenciados que
permitem fazer a ponte com as histórias pessoais de Malu. Assim é que
se unem temas típicos do feminismo de então a experiências pessoais.
Os assuntos mais recorrentes no programa eram conjugalidade, auto-
nomia feminina e sexualidade – temas do feminismo que adentravam
também as relações pessoais das camadas médias urbanas a quem o
seriado se destinava, assim como o contexto social dos profissionais
que trabalhavam na produção. Por outro lado, são aqueles mais afeitos
a esse contexto privado, da vida íntima, que o seriado explora de modo
semelhante às telenovelas.
A produção imaginara inicialmente fazer um sitcom, ou seja, uma
comédia de situação, segundo Daniel Filho. Mas esse modelo foi rejeitado
pelo diretor de programação da emissora, Boni, que indicou que haveria
um abrandamento da censura, e propôs algo mais dramático.8 O fato de a
censura liberar essa programação inicial dos seriados leva os produtores e
autores a ter certeza de que “o Boni tinha razão”: viria a abertura, o rela-
xamento da censura. Os seriados são um sucesso, mas manter a produção
de Malu mulher no primeiro ano resultou em um longo e constante embate
com a censura, e alterações nos roteiros e imagens.

8 FILHO, Daniel. Depoimento ao projeto Memória Globo. Disponível em: http://me-


moriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,GYE0-5268-268478,00.html

Heloisa Buarque de Almeida · 


Tomando-se o primeiro episódio da série, nota-se que, diversa-
mente do imaginado, ainda que repleto de alguns dos mesmos clichês
narrativos e de interpretação das novelas, a mocinha não quer mais
o galã. Quer, em vez disso, se livrar dele e de tudo que o casamento
tradicional representa. O final feliz é invertido: não o casamento, mas
a separação. Esse episódio teve um grande impacto, e o seriado parece
ter condensado temáticas candentes de um modo mais concentrado e
em uma abordagem relativamente mais feminista do que apareciam na
teledramaturgia do período. No entanto, vários desses temas já estavam
lá: a sensualidade de personagens de novelas, as separações e recasa-
mentos que apareciam na produção importada da TV, como filmes,
seriados “enlatados”, e também já havia algum tempo no teatro e nas
canções da MPB.
Nesse seriado, a narrativa de cada episódio tem um tom moral, e há
um discurso pedagógico tanto nas falas de Malu quanto no desdobramento
das cenas e no encadeamento da narrativa. Como já mencionei em outros
trabalhos,9 a narrativa melodramática parece se adequar muito bem a
esses estilos didáticos, de expor e defender certas posturas políticas. Uso
o termo “melodrama” a partir das contribuições de Peter Brooks e da
forma que sua reflexão sobre a literatura é transposta para o cinema e a
televisão na análise feita por Ismail Xavier.10 Brooks propõe uma análise
da literatura que percebe uma “imaginação melodramática” por trás de
narrativas consideradas “realistas” (como a produção de Henry James e
Balzac). Para o autor, o melodrama é um formato com certo caráter peda-
gógico típico de uma sociedade pós-sagrada (moderna). Outras análises
sobre o melodrama já ressaltaram seu caráter pedagógico, e como nesse

9 ALMEIDA, Heloisa Buarque de. Telenovela, consumo e gênero: “Muitas mais coisas.”
Bauru/São Paulo: Anpocs/Edusc, 2003; —————. “Gênero e sexualidade na mídia: de
‘Malu’ a ‘Mulher’.” Trabalho apresentado no 31o Encontro Anual da Anpocs, Caxambu
(MG), outubro de 2007; —————. “Trocando em miúdos: Gênero e sexualidade na TV a
partir de ‘Malu mulher’.” Revista Brasileira de Ciências Sociais (RBCS), vol.27, n.79, 2012,
pp.125-137; —————. “Pedagogia feminista no formato da teledramaturgia.” In: Micelli,
Sérgio (org.) Cultura e sociedade (Brasil e Argentina). São Paulo: Edusp, 2014.
10 BROOKS, Peter. The Melodramatic Imagination: Balzac, Henry James, Melodrama, and
the Mode of Excess. New Haven: Yale University Press, 1976; XAVIER, Ismail. O olhar e a
cena. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

 · O drama moral de certa pedagogia feminista


formato podem caber ideologias distintas no aspecto político, podendo
tender tanto à direita quanto à esquerda.11
Para Brooks, a base do melodrama consiste em um drama moral, que
toma o comum, o ordinário e a vida privada como tema, classifica entre
o bem e o mal, e faz uma narrativa de embates cuja moral final traz uma
“cola social” necessária, repõe valores comuns. Nas palavras de Ismail
Xavier:12

Se a moral do gênero supõe conflitos, sem nuanças, entre bem e mal, se


oferece uma imagem simples demais para os valores partilhados, isto
se deve a que sua vocação é oferecer matrizes aparentemente sólidas de
avaliação da experiência num mundo tremendamente instável, porque
capitalista na ordem econômica, pós-sagrado no terreno da luta polí-
tica (sem a antiga autoridade do rei ou da Igreja) e sem o mesmo rigor
normativo no terreno da estética. Flexível, capaz de rápidas adaptações,
o melodrama formaliza um imaginário que busca sempre dar corpo à
moral, torná-la visível, quando esta parece ter perdido seus alicerces.
Provê a sociedade de uma pedagogia do certo e do errado que não exige
uma explicação racional do mundo, confiando na intuição e nos sentimentos
“naturais” do indivíduo na lida com dramas que envolvem, quase sempre,
laços de família.

Todavia, Xavier destaca que ao longo do século XX as mudanças so-


ciais promoveram um imaginário marcado pela psicologia moderna e
pela lógica de uma sociedade capitalista e de consumo. Em muito da
produção cultural contemporânea, o conflito entre bem e mal é explici-
tado na oposição entre pessoas autênticas e hipócritas. Essas convenções
narrativas acerca da oposição entre bem e mal em seus novos e discretos
formatos destacados por Xavier são evidentes em Malu mulher. Exploro
então, neste artigo, como o drama moral sobre o aborto é apresentado,
no episódio citado, de modo que mostra como a própria personagem cen-
tral é aos poucos convencida a ajudar sua amiga a realizar um aborto em

11 Ver THOMASSEAU, Jean-Marie. El melodrama. México: Fondo de Cultura Económica,


1989; MEYER, Marlise. Folhetim: Uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
12 XAVIER, op.cit., p.91.

Heloisa Buarque de Almeida · 


uma clínica. Vê-se aqui algumas convenções narrativas do drama moral
típico do melodrama modernizado da televisão, como explora Xavier em
seu trabalho, e como a narrativa parece tentar convencer o espectador a
entender o ponto de vista favorável à legalização do aborto.

Malu: socióloga, separada, feminista

Para chegar a este que foi o quarto episódio, vale lembrar o que veio antes,
e como os espectadores foram se acostumando com a performance questio-
nadora e pedagógica da personagem. No primeiro episódio (“Acabou-se o
que era doce”), os espectadores entram em contato com a história de Malu
(Regina Duarte), acompanhando sua tentativa de conversar com o marido,
Pedro Henrique (Dennis Carvalho), para tentar renovar um casamento
que lhe parece ter se tornado uma relação formal e falsa, tendo perdido
seu sentido. Para ele, “casamento é assim mesmo”, mas a protagonista
busca uma relação mais verdadeira. Os conflitos nesse episódio mostram
cenas em que ela tenta conversar e esclarecer, diante do desinteresse do
marido. Uma dessas cenas é recorrente na memória sobre o seriado, como
aquela em que Pedro Henrique joga pela janela do apartamento o texto
datilografado dado a ele poucos minutos antes por Malu. A discussão se
torna cada vez mais acalorada até acabar em uma agressão física, que o
espectador entende, pelos diálogos, não ser a primeira. Mas agora Malu
avisa: é o fim; não quer aturar as agressões, quer se opor a uma dupla moral
sexual que supõe “natural” que seu marido “dê umas transadinhas por
aí”. Ela não acredita mais, esta não é mais uma relação verdadeira, ela
precisa “respirar” e “sobreviver”.
Os dois negociam a separação diante inclusive da influência dos pais
– os dela aconselhando sobre seus direitos, a mãe de Pedro Henrique ten-
tando incluir na discussão a herança de seu falecido marido. Conseguir
o desquite significa para Malu inclusive impor-se diante de sua sogra, ao
vincular o pedido dela à sua vontade de definir formalmente a separação.
Na conversa entre Malu e sua amiga Vilma (Natália do Vale), depois do
acontecido, novamente algumas frases reforçam ideias centrais reiteradas
em todo o seriado:

 · O drama moral de certa pedagogia feminista


Malu: Estou aprendendo a me defender, né?
Vilma: Mas é isso que eu sempre te falei. Mulher para viver sozinha tem
que saber se defender.
Malu: Engraçado que homem não tem vergonha de ser agressivo. E mulher
tem, por que ter esse pudor, né?
Elisa: Mamãe, do que é que vocês estão falando, hein?
Malu: Que mulher não tem que ser essa coisinha frágil, indefesa, não.
Mulher tem que saber ser agressiva também de vez enquanto, saber lu-
tar para se defender, enfim... Vai aprendendo porque a barra é pesada,
minha filha.13

É preciso saber se defender, lutar, impor-se: todo o seriado voltará a


essa ideia inúmeras vezes, e em muitas delas será Malu explicitando essa
noção para Elisa ou alguma outra mulher ou jovem necessitando de sua
ajuda. O feminino precisa ser forte, imagem que certamente permeia
também outras produções da teledramaturgia com foco em persona-
gens femininas. Certamente essa é uma das mensagens didáticas mais
repetidas ao longo de todo o seriado e que estava se tornando recorrente
também nas telenovelas da época.
Ainda nesse episódio, Malu e Pedro se aproximam na hora de separa-
rem os discos, e acabam tendo uma relação sexual, que termina melan-
colicamente. Depois de finalizarem os trâmites da separação no fórum, a
cena final do episódio mostra Malu sozinha em casa, pés descalços sobre
a mesa, sorridente, quando chega sua filha, e senta a seu lado. As duas
brincam com os pés descalços, em uma singela cena de proximidade entre
mãe e filha, em que a câmera mostra os pés em primeiro plano e os rostos
sorridentes das duas ao fundo, dando a sensação de muita intimidade e
afeto entre as duas. Depois de vários conflitos para definir e conseguir
realizar a separação, a sensação é de alívio e de certa libertação, como
sugere a canção tema, “Começar de novo”.14
No segundo episódio, “Bendito fruto”, escrito por Lenita Ploczinsky, o
roteiro trata da situação de Malu buscando dar conta das muitas tarefas, a

13 Não cabem nesse formato de artigo descrições mais detalhadas do seriado. Algumas
imagens estão disponíveis na internet em sites como Youtube.
14 Analisei mais longamente este episódio em ALMEIDA, op.cit.

Heloisa Buarque de Almeida · 


difícil relação entre ser mãe, separada, trabalhar fora, cuidar da filha, dar
conta das “tarefas do lar”. Outro tema caro ao feminismo está em jogo: a
dupla jornada. Ela se angustia por um incidente em casa com Elisa, em que
seus pais e a vizinha a socorrem: será que ela está “abandonando” a filha
por trabalhar fora? Por outro lado, tem todo o jargão sociológico: as tarefas
do lar, que “não entram no circuito monetário e que, portanto, não são
contabilizadas como parte do produto social”, e isso é parte importante
do trabalho feminino. “Qual o ordenado de uma dona de casa?” (ainda
que Malu tenha, irregularmente, empregada doméstica ou diarista). Ela
discute com a Dra. Rute, com quem trabalha,15 como está se angustiando
com essa situação, e como se sente culpada por não dar a devida atenção à
filha. Larga o trabalho por um tempo para cuidar melhor de Elisa, mas isso
gera outros conflitos entre elas, e então tenta ensinar a filha a se cuidar,
cozinhar, a arrumar a casa, para não ser “escrava” de Elisa, como a mãe
dela foi. Não quer que a filha seja uma “burguesinha incapaz” – nota-
-se aqui um vocabulário muito usado pelas feministas de esquerda, e
uma preocupação em fazer algo diverso do que seria o padrão da geração
anterior. Volta a procurar trabalho, e exige que Pedro Henrique também
cuide de Elisa e arrume tempo para ela. Ao final, afirma que, se os filhos
são sagrados, o trabalho também é. A moral da história é que, apesar das
dificuldades, é possível fazer as duas coisas: “Se eu conseguir trabalhar e
ser mãe é porque muitas mulheres também poderão fazer o mesmo e isso
quer dizer que o sonho da mulher de ser livre e independente não precisa
ser só um sonho. Pode ser verdade.”
O terceiro episódio, “De repente, tudo novamente”, escrito por Ar-
mando Costa, fala do prazer sexual e do encontro consigo mesma que
esse prazer pode significar. É o episódio que tem a primeira cena de or-
gasmo feminino na TV brasileira, também muito lembrada por algumas
espectadoras. Nele, a mãe de Malu a vê tomar pílula anticoncepcional e
pergunta, inocentemente, por que o faz, se está separada. A atitude res-
ponsável de contracepção é normalmente tratada no seriado por meio do
uso da pílula anticoncepcional. Nessa narrativa, Malu tem pela primeira
vez uma relação sexual depois da separação, em um envolvimento afetivo

15 A menção aqui é à antropóloga Ruth Cardoso, que foi inclusive consultora para a
produção do seriado.

 · O drama moral de certa pedagogia feminista


que não se desdobra num namoro ou paixão, mas que é apresentado como
uma relação delicada entre dois amigos. A primeira vez entre eles não é
muito boa, mas a segunda gera em Malu um encontro de si mesma: “Hoje,
com você, eu aprendi que posso ser mulher de novo. Como eu era antes.
Você foi o primeiro depois do Pedro Henrique. Eu estou leve, voando...”
O orgasmo é representado pela mão de Malu abrindo-se em um espasmo.
É nesse episódio que aparece pela primeira vez a noção do prazer sexual
como realização, encontro de si, como um aspecto muito importante não
apenas na relação entre duas pessoas, mas como um valor para o sujeito
que vivencia o prazer, uma realização. Essa concepção será posteriormen-
te muito reiterada na dramaturgia da Globo, associada inclusive a certa
mudança no padrão sexual, com maior “liberação feminina”.16
Novamente, esse foi um dos temas caros ao feminismo na época,
particularmente o feminismo mais associado à classe média: a noção de
um direito ao prazer, o orgasmo como um valor, uma forma de libera-
ção. Mais ainda, nesse episódio a relação sexual não se restringe nem ao
casamento nem a um namoro mais estável; pode aparecer em termos de
uma faceta carinhosa e “liberada” entre amigos. Trata-se de uma relação
delicada e afetiva, mas não necessariamente um encontro amoroso nem
a formação de um casal.

“Ainda não é hora” ou por que é preciso legalizar o aborto

Pois o quarto episódio da série trata, como já vimos, de uma jovem que
busca o aborto voluntário em uma clínica clandestina, com a ajuda da
protagonista. Como já explorado, essa história parece basear-se na ex-
periência pessoal ou pelo menos de geração e de mesma classe social
dos autores, pois relata uma trajetória bem comum quanto à forma e o

16 Em outros trabalhos – ALMEIDA, Heloisa Buarque de. “Gênero e sexualidade na


mídia: De ‘Malu’ a ‘mulher’.” Trabalho apresentado no 31o Encontro Anual da Anpocs,
Caxambu (MG), outubro de 2007; —————. “De Malu a mulher: Gênero, sexualidade e
feminismo na TV.” In: Cancela, Cristina; Moutinho, Laura; Simões, Julio (orgs.): Raça,
etnicidade, sexualidade e gênero em perspectiva comparada. São Paulo: Terceiro Nome, no
prelo –, já discuti como essas ideias sobre sexualidade e prazer aparecem em Malu de
modo mais didático, ao passo que trinta anos depois, na teledramaturgia, estão natu-
ralizadas e dadas como óbvias.

Heloisa Buarque de Almeida · 


contexto que faz com que muitas jovens busquem o aborto inseguro. Os
argumentos ali usados são muito parecidos com o que mostram diver-
sas pesquisas empíricas sobre aborto no Brasil, no caso de mulheres de
camadas médias e com maior escolaridade,17 embora a personagem que
aborta no programa seja de camada popular. O que explica a decisão pela
interrupção voluntária da gravidez, no entanto, é o argumento da esco-
larização, do desejo de fazer faculdade e se profissionalizar, argumento
provavelmente próximo socialmente dos produtores. O mesmo vale para a
escolha por uma clínica clandestina e mais cara e elitizada do que outros
métodos (como o uso de remédios) e o fato de a narrativa combinar melhor
com relatos de aborto de mulheres de camadas médias e altas.
No episódio, Malu atua apenas auxiliando, já que o núcleo é a histó-
ria de Jô (Lucélia Santos), filha do porteiro do prédio. Na cena inicial, a
protagonista conversa na cozinha com seu Moacir, nordestino que faz um
pequeno serviço na casa dela, e logo se revela ser ele o porteiro do prédio
e falam de sua filha, Joseneide (Jô). Na cena seguinte, Jô vem à casa de
Malu e elas conversam no quarto sobre o trabalho que a socióloga quer lhe
oferecer: datilografar uma tese de 250 páginas. Aos poucos, nessa cena,
Jô vai abaixando a cabeça e sua expressão torna-se cada vez mais tensa
e, de uma tese sobre “controle de natalidade” que ela já teria datilogra-
fado para outra amiga de Malu, aparece o tema da gravidez. Ao longo da
conversa, que se torna pessoal, Jô revela seu desespero diante da gravidez
não planejada, que ela não confessa ser com ela, mas inicialmente revela
de modo indireto, falando de “uma amiga”.

Jô: Não, imagina! É uma amiga minha que está com esse problema.
Malu: É um problema! [Jô baixa a cabeça] Eu conheço ela?
Jô: Não, não conhece ela. É a Alaíde. Nem te falei nunca dela. É lá da facul-
dade. Está desesperada. Coitada. [Jô senta na cama, junto à Malu, cabisbaixa]

17 Como RAMÍREZ, Martha Célia. “A propriedade do corpo.” Cadernos Pagu, n.15,


2000. Mais dados sobre os padrões de aborto voluntário no Brasil em artigos como
BARBOSA, Regina; Arilha, Margareth. “A experiência brasileira com o Cytotec.” Re-
vista Estudos Feministas, vol.1, n.2, 1993, que demonstram que o método mais comum
nas camadas populares é o uso do misoprostol, e a recente pesquisa de DINIZ, Débora;
Medeiros, Marcelo. “Aborto no Brasil: Uma pesquisa domiciliar com técnica de urna.”
Ciência e Saúde Coletiva, vol.15, 2010, pp.959-966.

 · O drama moral de certa pedagogia feminista


Malu: Como é que aconteceu, realmente?
Jô: Ela descobriu que estava grávida, mas ela não pode ter esse filho de
jeito nenhum.
Malu: Não pode, por quê?
Jô [irritada, perturbada]: Não pode porque não dá! Porque não é casada.
Malu: Casa, ué!
Jô: Mas, não dá para casar agora. É impossível. Não tem condição.
Malu: E o pai da criança?
Jô: É o namorado dela.
Malu: Então?
Jô: Ele nem sabe. Eles são só namorados. Nem noivos eles são. Ele também
é estudante, nem trabalha, nem nada! Nunca pensaram em casamento,
que filho! São duas crianças! [começa a se alterar]

Aqui aparece o primeiro argumento a favor da interrupção da gravi-


dez, de fato muito usado entre pessoas com maior escolaridade, de cama-
das médias e altas: apesar de os jovens serem namorados e de haver um
compromisso, uma relação estável que justifique a prática sexual, “ainda
não é hora” para a maternidade e a paternidade. São moços demais, ainda
estão na faculdade, não têm trabalho, uma forma de sustento econômico
para cuidar de uma criança. E, assim, Jô revela que “a amiga” que está
grávida é ela própria.
O diálogo continua e Malu questiona por que ela não evitou, e pergun-
ta pela pílula, ao que a jovem responde que nem sempre se lembra de to-
mar. Nota-se que a personagem de Regina Duarte não é de início favorável
aos argumentos de Jô, e que sua postura vai se modificando, tornando a
decisão do aborto algo paulatinamente explicado na narrativa. Vê-se aqui
outro ponto muito recorrente nesse seriado e mais disseminado na tele-
dramaturgia posterior: certa popularização de uma visão psicanalítica.
Para Malu, o “esquecimento” de tomar a pílula é revelador de um desejo
inconsciente – por trás dos atos e dos pensamentos conscientes (no caso,
não querer ter filhos ainda), há sempre um inconsciente, outra verdade
mais profunda. Ao longo desse diálogo, que se torna cada vez mais tenso,
veem-se outros pontos aproximando aquele caso e as formas de decisão
pelo aborto em mulheres de camadas médias e altas escolarizadas.18

18 Idem.

Heloisa Buarque de Almeida · 


Jô pede que Malu mantenha segredo: “Ninguém pode saber.” Outro
ponto comum em narrativas sobre aborto: quando a mulher está pensando
em abortar, ninguém mais deve saber, para que não haja uma gravidez
socialmente reconhecida.19 A relação da moça com o pai a faz ter certeza
de que é preciso manter um segredo – tanto da gravidez, como de sua já
inferida decisão de não a levar adiante. Ela teme que seu Moacir reaja de
modo violento ao descobrir que a filha não é mais virgem. Malu insiste
para que ela pense melhor. Jô tem, portanto, mais um problema a enfren-
tar: a moralidade sexual e o conservadorismo do pai. Aos poucos, os mo-
tivos que justificam uma decisão pelo aborto tornam-se mais evidentes.
No limite, o episódio coloca a posição feminista e mais associada aos
discursos sobre aborto em camadas médias de alto capital cultural: só a
mulher pode decidir, e essa decisão, pessoal, é complexa e envolve di-
versas questões. Mas é uma decisão individual. É a mulher, como pessoa,
como sujeito, que deve decidir, como era mais recorrente no discurso
feminista acerca do tema na década de 1970.20 Como em todo o seriado,
trata-se de reforçar a ideia de que as mulheres devem ser sujeitos de di-
reito, cidadãs completas. Mas o termo “direitos”, que aparece em outros
episódios, não é explicitado aqui. Cabe destacar que, na época, tanto
França quanto Itália haviam recentemente legalizado o aborto, e essas
notícias estavam então presentes na imprensa. Em 1978 e 1979, o jornal
Folha de S.Paulo publicou 58 matérias tratando do aborto, e trazia uma
coluna de Irede Cardoso que propagava ideias do feminismo.21
Malu retoma em outra cena a ideia de que Jô deveria discutir o tema
com o namorado, mas é dissuadida pela explicação de que os pais de
Jorginho não aceitam o namoro, porque ela é apenas a filha do porteiro.
Predominam as gírias da época, e Jô diz que Jorginho “enfrenta uma barra”

19 BOLTANSKI, Luc. “As dimensões antropológicas sobre o aborto.” Revista Brasileira


de Ciência Política, n.7, 2012, pp.205-245.
20 MACHADO, Lia Zanotta. “Os novos contextos e os novos termos do debate con-
temporâneo sobre o aborto.” Série Antropologia, n.419. Brasília: DAN/UnB, 2008.
21 Agradeço a Maria Talib Assad, tanto como bolsista deste projeto, organizando as
matérias de Folha de S.Paulo, Jornal do Brasil e da revista Veja de 1978 e 1979, coletadas
por ela e Ivi Machado, como por seu trabalho de iniciação científica, que explora mais
detalhadamente as matérias da imprensa sobre aborto no período. Ver ASSAD, Maria
Talib. “Aborto e mídia numa perspectiva de gênero.” Relatório de Iniciação Científica,
USP, 2010.

 · O drama moral de certa pedagogia feminista


com os pais. A ideia de que a situação é uma “barra” serve para tratar de
diversos temas e, nesse caso, para revelar o preconceito enfrentado pelo
casal. Jô explica que os pais do namorado acham que ela quer dar o “golpe
do baú”, casando-se com ele, e que ele, por reação, pode querer casar
apenas para “agredir a família”. A ideia de um casamento “antes da hora
certa” também parece um problema, que inclusive foi vivido por Malu
(explicitado no primeiro episódio, quando ela menciona que se casou por
ter engravidado), e seu caso pessoal serve de mais uma justificativa para
que Jô decida pelo aborto:

Malu: Eu fui mãe com a tua idade. Eu tinha 19 anos. O que é que é? Você
já está com 18?
Jô: Mas era diferente. Você já estava casada, você queria ter um filho e o
teu marido já estava formado, trabalhava.
Malu: O quê? A Elisa nasceu três semanas antes do Pedro Henrique se
formar. Foi aí que ele começou a vender apartamento.
Jô: E foi também, segundo o que você mesma me contou, que começou
toda a frustração porque ele deixou de batalhar em economia, que era o
que ele curtia, para sustentar a mulher e o filho. Ah, não, muito obrigada.
Sabe o que é, Malu? Eu não posso obrigar Jorginho a abandonar o curso
de arquitetura, que é a paixão da vida dele, para arranjar um emprego e
amanhã ser um cara infeliz. Ah, não, de jeito nenhum.
Malu: Faz sentido, está certo. Faz sentido. De qualquer forma, é tão com-
plicado... Um cafezinho para levantar?

A convenção de “normalidade” do contexto de Malu: um cafezinho,


uma conversa na cozinha, onde Jô conta que ela também não está prepa-
rada para ser mãe e tem outros planos antes de se casar, afinal “as coisas
têm o seu tempo”. Mesmo assim, a socióloga insiste: “Tá. Eu concordo. Eu
só não entendo como você pode ser tão objetiva, racional. Não te toca? Não
te emociona saber que tem uma vida que está se desenvolvendo dentro
de você?” Jô chora, não é uma decisão fácil:

E você pensa que para mim é fácil? Você pensa que eu também não queria
ter o meu canto, ter um cara dividindo a vida comigo? Os meus filhotes
brincando com as galinhas no quintal, tapetinho no banheiro... Só que

Heloisa Buarque de Almeida · 


ainda não é hora. Eu sei que não é. Sabe o que é, Malu? A vida já me deu
muito cacete. Meu pai já me deu muito cacete. Tudo que eu consegui foi
com muito esforço e eu não quero perder. Eu não quero perder agora. Eu
não quero perder o Jorge e também não quero que ele se perca por causa de
um esquecimento meu. (...) Por isso é que eu preciso que você me ajude.

Assim, aos poucos, Malu vai sendo convencida da razão e de que a


decisão pelo aborto é a melhor, neste caso. Ela leva Jô a uma consulta
com seu ginecologista, mas o Dr. Pompeu não apenas se recusa a ajudar
no aborto, como avisa do perigo do procedimento e ainda aconselha Jô a
aceitar a maternidade, como “a função psicobiológica da mulher”. Esse
personagem permite certo debate do tema, e traz o outro ponto de vista,
os argumentos opostos aos de Jô. A maternidade é linda, não se deveria
abortar, e, como é ilegal, há riscos. Depois revela seus princípios católicos:
“A vida é uma dádiva de Deus e dela só ele pode dispor”, e desconversa
lembrando suas outras pacientes que o esperam. Ainda afirma que se ela
levar a gravidez adiante pode contar com ele como obstetra. Assim, esse
personagem permite a visão contrária, o argumento religioso – a vida é
uma dádiva de Deus – e essencializante – a maternidade como função
natural da mulher. Mas Jô não recusa a maternidade de todo, apenas
considera que não é a hora.
Ela conta que sua prima conhece uma clínica que não deve ser tão
cara, pois a outra jovem também é “dura” como ela. Não é Malu que co-
nhece esses meandros da ilegalidade – embora ela ajude a amiga, sua
ingenuidade em alguns momentos será destacada, e é parte central na
construção de uma personagem “do bem”. Jô precisa que alguém venha
junto, e pede a Malu que a acompanhe. Na entrada na clínica, um lugar
apertado, vários casais, todos tensos, as mulheres são chamadas pelo
número da ficha – umas entram, outras saem. Ouvem-se conversas em
off, com closes em Malu e Jô, dando a impressão de que, para algumas mu-
lheres que esperam na sala, o aborto virou um procedimento corriqueiro.
Jô tem medo do que pode acontecer, mas não hesita na decisão. O
médico (Cecil Thiré) pergunta ironicamente: “Você tem certeza que você
quer desistir dessa coisa maravilhosa que é ser mãe?” Jô, sempre com ar
preocupado, ansioso, afirma que sim e ele diz que entende, pois cada um
tem suas razões. Em seguida, aconselha e indica o remédio que ela deve

 · O drama moral de certa pedagogia feminista


tomar depois. O médico dá as instruções para que Jô se deite na maca, e
ela se coloca em posição ginecológica. O enfermeiro se aproxima para dar
anestesia. Nessa parte não há falas, só uma música, como de suspense.
Passa a imagem do enfermeiro apertando o braço com um elástico para
procurar a veia, e aplicando a injeção. Malu espera, aparentemente preo-
cupada (ou aflita?), na sala de espera.
Jô está adormecida na sala de intervenção. O médico coloca uma pin-
ça com sangue, juntamente com o instrumental usado – o único objeto
ensanguentado é a pinça que deixa, o restante está limpo. A música de
suspense permanece. Vê-se o médico (da cintura para cima) em um movi-
mento como de curetagem. Enquanto isso, Malu espera, fuma um cigarro
ao lado de um homem nervoso que também fuma, e, como Jô demora a
sair, se aflige. Entra de repente uma mulher vestida de branco e pergunta
quem está com a “Moça 20” (o número da senha). Malu, aflita, encontra
Jô meio sonolenta ainda, e acaba tendo uma discussão com o médico, que
explica que ela está bem, mas que teve que tomar mais anestésicos, por
isso demorou mais a acordar. Mas ela exige quase de modo ingênuo que
ele se responsabilize pelo estado da amiga.

Médico [sorrindo de modo irônico]: Você é engraçada. [muda a expressão,


passa para a irritação] Veio aqui porque ninguém aí fora quis resolver teu
problema, ninguém quis fazer o serviço sujo. OK, eu faço. Eu corro o risco,
mas as regras do jogo são estas.
Malu: O que é que o senhor está pensando?
Médico: Espera aí, que eu ainda não acabei! Você acha caro Cr$ 2.500
para livrar sua amiga de uma situação penosa? Tem gente que cobra me-
nos, tem gente que cobra mais. Eu já ouvi falar em 20 mil para moças da
nossa sociedade. Meu preço é esse. O preço do risco, ou você pensa que
a impunidade lhe vai sair de graça? [o médico sai]
Malu: Devia chamar a polícia.
Médico [voltando]: Devia, mas não vai. Sabe por quê? Porque, diante da
lei, a sua amiga é tão culpada quanto eu. De um a três anos de cadeia. Só
por isso! [vai embora]

Estrito senso, o médico é mais criminalizado do que a mulher, a pena


é maior para ele. Mas a fala dele explicita: é crime, tem pena, ela também

Heloisa Buarque de Almeida · 


é culpada perante a Justiça. As mulheres são, portanto, criminalizadas e
esse é um ponto que deixa Malu indignada.
Na casa da protagonista, Jô sente-se mal, reencontra o namorado
(Fábio Júnior), para quem conta toda a verdade: diz que “tirou” um filho
deles. Ele responde que vai lhe dar todo o apoio, é carinhoso e gentil,
mostra-se preocupado com ela. Enquanto Malu deixa os namorados con-
versando, em seu quarto, o pai de Jô, o zelador Moacir, toca a campainha
para pedir a chave do carro dela, mas ela entende mal a chegada de seu
Moacir e acaba contando que Jô está no seu quarto. Ele entra no quarto e
fica espantado com a cena, sua filha sentada na cama ao lado do namo-
rado, e reage de acordo com sua moral, falando com sotaque nordestino:
“Joseneide! Mas que pouca vergonha é essa! Levante dessa cama!” Malu
explica que ela não está bem e que já chamou o médico, mas mesmo assim
seu Moacir tenta agredir Jorginho, perguntando o que ele fez com sua
filha. Volta-se e segura os braços da filha:

Jô: Me larga, me larga, porque eu não sou cachorra. Sou sua filha e o senhor
não é dono de mim. [Se solta com força das mãos dele.] Me larga, me larga!
Moacir: Mas o que foi que ele fez com você?
Jô: O Jorginho não fez nada comigo. Nada que eu não quisesse. Eu não sou
a menininha indefesa que o senhor quer que eu seja, não! Não sou uma pa-
naca que nem minhas irmãs, que o senhor transformou em escravas, não.
Não, senhor! Eu tenho vontade própria. O meu mundo não é seu mundo.

Há aqui um evidente conflito de gerações em torno de construções e


normas de gênero, família e moral sexual, do tipo que foi mais explorado
no seriado Ciranda Cirandinha (exibido em 1978), aliás, com esses mes-
mos atores, Lucélia Santos e Fábio Júnior. Diante da cena dramática que
se montou no quarto de Malu, Jô resolve então “contar tudo” ao seu pai
“porque assim a gente não tem nada que fingir”. É uma posição muito
semelhante à de Malu em termos de ser uma pessoa sincera e transparen-
te, que não tem sentimentos fingidos, que é franca e honesta. Esse tipo
de franqueza e honestidade das personagens é muito usado na oposição
maniqueísta entre personagens que são do “bem” por oposição àqueles
cujas intenções e interesses são dissimulados, configurando certa matriz
melodramática que permeia as narrativas da mídia contemporânea. É

 · O drama moral de certa pedagogia feminista


com essa dicotomia entre verdadeiros e hipócritas que se percebe que a
narrativa melodramática se moderniza na televisão, mas mantém uma
matriz semelhante, como afirma Ismail Xavier. Por isso, Malu não havia
sequer conseguido mentir para Moacir.
Há um conflito entre Moacir e Jorginho e a chegada do Dr. Pompeu,
a quem Malu tinha telefonado, rompe a cena um tanto melodramática,
mas que dá o tom que parece surgir ao final quanto à história de Jô. Depois
de fazer o aborto escondido inclusive por temor dessa reação do pai, ela
rompe com ele, enfrenta-o abertamente – prefere a sinceridade, ainda
que isso lhe custe ter que sair da casa paterna. É como se o episódio inteiro
fosse o processo de afirmação da jovem como adulta – uma espécie de
rito de passagem, com uma marca corporal. O aborto aparece como uma
decisão de um processo de amadurecimento.
O médico afinal diz, depois de examinar a moça, que está tudo bem,
e que ela vai ficar bem. Mas adverte que o que elas fizeram é uma loucura
e muito arriscado, e então Malu dá seu recado, com a fala que abre este
artigo, apontando para a hipocrisia da sociedade brasileira e defendendo
a legalização do aborto.
Ainda há uma cena em que Jô conta a Malu seus planos de se casar
e ter filhos, “como todo mundo”. Ela cozinha delícias e associa o fato de
fazê-lo à maternidade, a alimentar outra pessoa, e sonha em ter muitos
filhos e cuidar deles. O fato de abortar significa apenas adiar a maternida-
de. Vê-se nessa cena as oportunidades em que as personagens se afirmam
como feministas, mas negociam com certas construções de gênero mais
tradicionais: a mãe que alimenta, “coisa de mulher”, inclusive essencia-
lizando a característica. Mas com ressalvas que demandam a divisão do
trabalho doméstico.
O episódio termina com a jovem saindo do apartamento de Malu
decidida a procurar o pai para conversar, e tentar reatar. Se ele a aceitar
de volta, ela volta a morar com ele. Quer fazer as pazes, pois ainda não
queria ter que sair de casa. Afinal, por isso inclusive fez o aborto. Mas, se
não der certo, terá que “encarar”. Não se sabe, ainda nesse episódio, o que
aconteceu, ele termina em aberto.22 Nessa tomada de posição favorável à

22 O público saberá apenas ao longo dos episódios posteriores que seu Moacir e Jô
reataram.

Heloisa Buarque de Almeida · 


legalização do aborto, o seriado foi de fato bastante ousado e talvez único
na história da TV brasileira. O “crime” é a legislação restritiva.

Reações e os sentidos negociados nas narrativas

Surpreendentemente, o texto foi aprovado pela censura sem meias pala-


vras, sem sugestões indiretas. Ele é muito claro em seu discurso favorável
à legalização do aborto, de um modo então inédito na TV brasileira, e que
ainda não vi se repetir a partir dessa abordagem de defesa de direitos
das mulheres.23 No entanto, esse foi o episódio que parece ter gerado
mais polêmica na imprensa escrita, mesmo no caso de jornalistas que
se demonstravam admiradores declarados do seriado, como o colunista
do jornal O Globo Artur da Távola. Este chocou-se com o episódio sobre
o aborto, no qual “teria ocorrido um erro grave e um retrocesso”.24 Do
seu ponto de vista, o erro grave teria sido por parte de Euclydes Marinho
(o autor) em tratar o problema do aborto “de forma superficial e juvenil”,
fazendo uma “apologia do aborto legal”. Távola diz ser contra o aborto,
embora o respeite como um assunto sério. O que o incomodou foi uma
“trama incoerente e absurda”, que misturaria boas ideias e tomadas de
posição românticas. Para ele, houve apenas um “proselitismo do aborto
legal”. O lado positivo foi a denúncia contra as clínicas brutais e ilegais
e o fato de a televisão estar discutindo um tema como esse, o que antes
teria sido impossível.
Na Folha de S.Paulo, uma crítica sobre esse episódio, “‘Malu mulher’
provoca polêmica”,25 traz uma postura favorável ao episódio e outro co-
mentário indignado pela defesa da legalização, trazendo dois pontos de

23 Foi apenas em 2013 que duas novelas (o remake de Saramandaia e a nova produção
Amor à vida) mencionaram o aborto sem considerar a mulher que aborta uma “vilã” do
mal, ou uma mocinha arrependida. No seriado Mulher, exibido entre 1998 e 1999, as
médicas protagonistas socorrem sem julgar mulheres que abortaram, mas se declaram
contra o aborto, e reforçam mensagens de prevenção e anticoncepção, aceitando, no
entanto, os abortos nos termos da lei vigente, como por exemplo, em caso de estupro.
24 TÁVOLA, Artur da. “Maluranda, malurandinha.” O Globo, Cultura, 19 de junho de
1979, p.38, que, no título, faz referência ao seriado Ciranda cirandinha, exibido em 1978.
25 “Malu Mulher provoca polêmica.” Folha de S.Paulo, Ilustrada, 17 de junho de 1979,
p.56.

 · O drama moral de certa pedagogia feminista


vista opostos. No Jornal do Brasil, a carta de uma leitora 26 que se mostra
indignada e chocada com o episódio o qualifica como uma “propaganda
do aborto”, que iria contra o “Ano Internacional da Criança”, e estaria
desafiando o amor mais puro (o materno), defendendo um ato que vai
“contra os planos de Deus”.
Há também uma reação indireta positiva. Não explicitando nenhum
comentário ao seriado, uma ampla matéria da Folha de S.Paulo sobre abor-
tos no Brasil é publicada cerca de um mês depois da exibição do episódio
(em 29 de julho de 1979). Com a chamada “Brasil, mais de 3 milhões de
aborto por ano”, tenta trazer um panorama sobre as clínicas, as conse-
quências e sequelas da proibição, abrangendo vários aspectos do tema.
Indiretamente, a matéria parece favorável à legalização, ou pelo menos à
descriminalização. Diversamente do seriado, cujo conteúdo se concentra
em uma história particular e discute de modo pessoalizado a temática,
o jornal enfatiza os temas mais associados à saúde pública e às conse-
quências sociais da proibição, associando a legislação restritiva às mortes
maternas (calculada em cerca de 340 mil ao ano) e ao custo do aborto
ilegal em clínicas clandestinas.
Os profissionais da produção do seriado são cobrados publicamente
por esse episódio, e tentam relativizar a postura que parece predominar
na narrativa. Quando Daniel Filho é perguntado diretamente por um
jornalista como tivera a coragem de colocar no ar um episódio que fa-
zia uma “apologia ao aborto”, ele nega, dizendo que Malu seria contra o
aborto e que, se entenderam isso, não houve essa intenção.27 No entanto,
é evidente que ao final do episódio Malu defende a legalização, embora
tenha inicialmente questionado Jô e tenha sido convencida dessa decisão.
O entrevistador pergunta por que não foi a própria Malu a viver o pro-
blema do aborto. Daniel Filho responde que a personagem da Malu tem
um tipo de consciência que a impediria de ficar grávida e de ter que fazer
um aborto. Ela tem uma consciência racional, e dá exemplos de falas da
Malu nos episódios. O entrevistador pergunta se não foi por medo do que
iriam pensar da “namoradinha do Brasil” fazendo um aborto. Daniel Filho
responde que não, pois Malu é contra o aborto.

26 Cláudia Beatriz Agueda. “Aula de egoísmo.” Jornal do Brasil, Cartas do Leitor, 22 de


junho de 1979, p.11.
27 “‘Malu mulher’ em debate.” Caderno B, Jornal do Brasil, 19 de julho de 1979.

Heloisa Buarque de Almeida · 


Nesse ponto, como em outros episódios, é evidente que o seriado
permite certa negociação de sentidos: o texto da protagonista é direto e
favorável a uma “legalização”. Mas quem “fala” também por meio de Malu
é outra persona pública: Regina Duarte. Essa atriz representa também uma
figura típica das “estrelas” e celebridades.28 A imagem pública da doce
e bela mocinha foi predominante na carreira da atriz, que veio de uma
família sem recursos do interior de São Paulo, entrou para a televisão por
meio da publicidade, estreando em novelas com 18 anos como uma das
protagonistas em Véu de Noiva (1965), de Ivani Ribeiro, na TV Excelsior.
Regina, que havia sido a ingênua e doce Ritinha em Irmãos Coragem (1970),
par romântico do então galã Claudio Marzo, havia personificado também
a Patrícia de Minha Doce Namorada (1971), de onde ganhara o apelido de
“namoradinha do Brasil”, então promovido pela indústria cultural e seu
star system.29 Some-se a esses personagens a sofredora Simone de Selva de
Pedra (1972), a meiga Cecília de Carinhoso (1973) e a pacificadora Bárbara de
Fogo sobre Terra (1974-75), sempre a boa moça e par romântico de atores-
-galãs. Em 1977, a atriz tenta, aos poucos, mudar sua imagem pública,
vivendo a personagem título questionadora e quase feminista de Nina,
novela das 22h. Sua persona pública era, apesar de Nina, ainda a de “na-
moradinha” – boa e bela moça, sempre do lado do bem nas tradicionais
oposições maniqueístas das telenovelas. De certa forma, parece-me que
essa imagem de Regina Duarte, que tanto permeia Malu, só muda um pou-
co a partir da viúva Porcina, em Roque Santeiro (1985). Considero, assim,
que é apenas porque Regina Duarte tinha essa imagem que tal discurso

28 Sobre a persona pública de certos atores na indústria de Hollywood, ver SOBRAL,


Luís Felipe Bueno. Bogart duplo de Bogart: Pistas da persona cinematográfica de Humphrey
Bogart, 1941-46. Dissertação (mestrado), Unicamp, 2010; WASSON, Sam. Quinta Aveni-
da, 5 da Manhã: Audrey Hepburn, “Bonequinha de luxo” e o surgimento da mulher moderna.
Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
29 O nome star system advém da produção de um sistema de promoção de certas per-
sonalidades públicas, principalmente atores, muito explorado pelos grandes estúdios
de Hollywood nos anos 1930 e 1940. Evidentemente, toda indústria cultural com base
comercial faz isso, e no Brasil, desde os grandes sucessos do rádio, também a vida pes-
soal das estrelas (cantores) era objeto de fofoca pública e promovida pela imprensa
escrita. Sobre o star system de Hollywood, ver SCHATZ, Thomaz. O gênio do sistema: A
era dos estúdios em Hollywood. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

 · O drama moral de certa pedagogia feminista


abertamente feminista sobre o aborto – tema ainda tabu – pôde ser feito,
e foi liberado pela censura.30
Escolhi exatamente debater aqui o tema que gera mais polêmica, e
nem tanto o que se tornou mais consensual no país, como a valorização do
trabalho e da autonomia feminina muito recorrente também nas novelas
dos anos 1980 e 1990. Mas ele também decorre de um esforço em entender
essa teledramaturgia feita para o público feminino, que é grande parte
do sustento econômico da TV comercial aberta. E, no estudo sobre essa
ampla produção cultural, esse episódio destoa completamente – e con-
sidero que por isso ainda gera polêmica. Ele parece mais surpreendente
por ter sido exibido em uma época em que tais temáticas sofriam forte
censura. Considero que é nas suas ambiguidades que se pode entender
melhor sua veiculação na época, e é diante da reação pública negativa a ele
que se explica por que o tema não volta à pauta na mídia contemporânea.

30 Sobre a negociação de sentidos na produção e na recepção dos filmes de Holly-


wood, ver GLEDHILL, Christine. “Pleasurable Negotiations.” In: Pribram, E. Deidre
(org.). Female Spectators: Looking at Film and Television. Londres: Verso, 1988. Sobre
como isso se deu em um seriado policial de TV que inspira minha interpretação, ver
D’ACCI, Julie. Defining Women: Television and the Case of Cagney & Lacey. Chapel Hill,
EUA: University of North Carolina Press, 1994.

Heloisa Buarque de Almeida · 


Produzindo moralidades:
dilemas, polêmicas e narrativas
em terras do “agronegócio”1

J C

A região e suas transformações

No início dos anos 1970, o Alto Paranaíba, em Minas Gerais, estava longe
de ser uma região isolada, pois fica próxima ao eixo de transportes ligando
São Paulo a Brasília e Goiânia. Mas também estava longe de ser uma re-
gião pujante. Nunca havia tido grande destaque em termos econômicos.
Caracterizava-se então por cidades pacatas e uma área rural formada por
fazendas que dividiam suas áreas entre as chamadas “terras de cultura”,
mais acidentadas e férteis, nas quais se produzia milho, feijão, mandioca,
criavam-se porcos e galinhas e se concentrava o gado na estação seca; e
as áreas de cerrado, no topo plano das chapadas, pouco férteis, que ser-
viam para coletar frutos, lenha e forneciam pasto para o gado na estação
chuvosa. Nessas fazendas moravam agregados e meeiros, por meio de
acertos com os donos, estabelecendo relações bastante personalizadas
e próximas. Desde os anos 1960, porém, isso já estava mudando, com

1 A pesquisa que deu origem a este texto faz parte do projeto Sociedade e Economia do
Agronegócio, coordenado por Beatriz Heredia, Moacir Palmeira, Sergio Leite e Leonilde
Medeiros, que contou com apoio financeiro da Fundação Ford e do CNPq. Contei tam-
bém com apoio da Faperj. Sobre o projeto, ver HEREDIA, Beatriz; Palmeira, Moacir;
Pereira Leite, Sérgio. “Sociedade e economia do ‘agronegócio’ no Brasil.” Revista Bra-
sileira de Ciências Sociais (RBCS), vol.25, n.74, 2010, pp.159-176.
os fazendeiros pressionando pela saída de meeiros e agregados, e com a
maior especialização das fazendas na pecuária.2
Mas a “grande transformação” veio no início dos anos 1970, com os
projetos de incentivo do governo à agricultura moderna, tecnificada e em
larga escala nas terras até então pouco valorizadas dos cerrados. Planas e
mecanizáveis, porém de baixa fertilidade, essas terras puderam começar a
ser aproveitadas para a agricultura a partir da incorporação de tecnologias
desenvolvidas pela pesquisa agrícola oficial, que viabilizaram a correção
dos problemas de fertilidade e o desenvolvimento de variedades adap-
tadas das principais culturas comerciais. Com esses projetos, gestados e
implementados pela tecnoburocracia dos governos estadual e federal, e
apoiados por acordos internacionais com o Japão, as terras das chapadas
foram vendidas pelos antigos donos de fazendas por um preço bastante
baixo aos novos empreendedores agrícolas atraídos para a região, ou para
a implantação de projetos oficiais de colonização dirigidos a agricultores
considerados “vocacionados” para a agricultura comercial em larga escala.
E houve uma forte injeção de crédito subsidiado para plantar nos cerrados.
Esses agricultores e empreendedores, que em poucos anos derrubaram
o cerrado e o substituíram por imensas plantações, inicialmente de arroz
e soja, depois também de milho, café, trigo, hortaliças, eram, em geral,
do Paraná, do Rio Grande do Sul e de São Paulo. Houve uma considerável
heterogeneidade entre os que foram atraídos para as oportunidades aí
abertas, mas uma importante parcela deles era formada por pequenos
agricultores. Uma parte deles, descendentes dos imigrantes italianos e
alemães dos estados do Sul. Mais numerosos, porém, foram os descenden-
tes de famílias de italianos, espanhóis e japoneses, trazidos para trabalhar
como “colonos” nas grandes fazendas de café de São Paulo, que ao longo
do tempo e das gerações adquiriram pequenas áreas, participando a partir
dos anos 1940 da expansão rumo ao norte do Paraná.3
Outros agentes também se juntaram nesse processo: empresas, gran-
des proprietários rurais mineiros e paulistas, comerciantes e profissionais
liberais locais, agrônomos paulistas e mineiros. Com isso tudo, nos anos

2 LINHART, Ana Maria Galano. “Êxodo rural, fazendas e desagregação.” Estudos Socie-
dade e Agricultura, n.19, 2002.
3 MONBEIG, Pierre. Pioneiros e fazendeiros em São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1984;
CANCIAN, Nadir. Cafeicultura paranaense, 1900-1970. Curitiba: Grafipar, 1981.

John Comerford · 


1980 e, com maior vigor, nos 1990, a região transformou-se muito: de
uma região “atrasada” com estradas de terra e, no dizer de um grande
cafeicultor de origem paulista, “economia de escambo”, passou a ser
considerada emblemática da moderna agricultura (nos anos 1990 passa-
-se a dizer agronegócio), contando com todo aparato técnico, comercial,
financeiro e científico ligado à agricultura em larga escala e dirigida para
a exportação, bem como criando importantes canais políticos de repre-
sentação junto ao governo.4 Nos municípios da região, a centralidade da
atividade cafeeira e a importância social alcançada pelos cafeicultores
(geralmente qualificados como paranaenses) generalizaram o envolvi-
mento com tudo o que diga respeito ao café, espalhando a “paixão pelo
café” para além dos seus produtores e colocando a figura do cafeicultor no
centro da cena social local.
Com o surgimento das lavouras de café em larga escala, milhares de
trabalhadores rurais passaram a incluir essa região no seu circuito de
busca de serviço, principalmente para o trabalho na colheita de café (hoje,
porém, cada vez mais mecanizada). Às vezes chamados genericamente
de baianos, mas invariavelmente considerados gente de fora mesmo depois
de fixarem residência há anos nas periferias das cidades, estigmatizados
como violentos, rudes e inconstantes, são geralmente originários do norte
de Minas Gerais e de vários estados do Nordeste.5 Alguns ficam alojados
nas próprias fazendas; outros alugam, em grupos, casas nos bairros peri-
féricos das cidades da região; ou hospedam-se com parentes que por ali
se fixaram. Outros ainda frequentam, por um tempo restrito, instituições
como o abrigo mantido pela prefeitura de Patrocínio.6

4 Nos anos 2000, Patrocínio, município que acabou por se tornar o centro da eco-
nomia cafeeira do Alto Paranaíba, havia se tornado o segundo maior produtor de café
arábica do Brasil (por um momento chegou a ocupar o primeiro lugar) e a região se
tornou a segunda maior região produtora do maior estado produtor de café.
5 NOVAES, Roberta. Gente de fora: Vida e trabalho dos assalariados do café em uma re-
gião de Minas Gerais. Rio de Janeiro: e-Papers, 2011.
6 Cabe observar ainda que, durante a colheita do café, muita gente da própria re-
gião, moradores das cidades ou da roça que ao longo do ano vivem dos mais variados
trabalhos (construção civil, comércio, trabalhos domésticos, estudantes, pequenos
sitiantes etc.), mobilizam-se para trabalhar temporariamente na atividade cafeeira,
aproveitando a oportunidade de uma renda adicional.

 · Produzindo moralidades


Para o que nos importa discutir, é fundamental observar que essa
dinâmica, ao longo desses anos, representou oportunidades de enriqueci-
mento, mas certamente não para todos, contrastou o sucesso produtivo e
financeiro de alguns dos novos habitantes com a modéstia da agricultura
anteriormente existente e com a pobreza dos que buscam trabalho na co-
lheita, e também trouxe casos de perda de fortunas em função de dívidas
ou apostas erradas no mercado de café. Mais do que isso, esse encontro
mais ou menos contingente de moradores de cidades pacatas e fazendas
mineiras, de camponeses sulistas em busca de terras para permitir a
suas famílias ir para a frente, de empresários e outros agentes procurando
oportunidades comerciais e financeiras, de médios e grandes produtores
buscando diversificação de local e produto, de trabalhadores-camponeses
em busca de serviço, de comerciantes, técnicos e demais funcionários
do setor de serviços voltado para a grande agricultura, de cientistas de
instituições de pesquisa, tudo isso em uma situação de grande circulação
de dinheiro, levou a um cotidiano atravessado por uma reflexão e uma
retórica moral sobre riqueza, trabalho, família, moradia, agricultura, e
assim por diante.

Alguns focos de interesse e preocupação moral

Para muitos dos que foram ali reunidos por essa dinâmica, a acelerada
criação e circulação da riqueza marca um forte contraste com uma si-
tuação anterior relativamente mais simples e rústica (ainda que muitos
assinalem a fartura da “vida na roça”). Para quase todos, também, a vida
anteriormente, ali ou nas respectivas regiões de origem, se passava mais
entre conhecidos, vinculados por laços de parentesco e vizinhança re-
lativamente bem estabelecidos. Não que tais laços tenham deixado para
trás sua importância – há muitas evidências do contrário –, mas a atual
situação implica o encontro, de certo modo súbito, de mundos sociais
estranhos, antes apartados geográfica e socialmente. Outro contraste
recorrentemente assinalado é entre os tempos do trabalho braçal na roça
– experiência comum a muitos e geralmente a forma de trabalho mais evo-
cada como qualificativo moral – e a atual mecanização e quimificação das
tarefas agrícolas, que em grande medida dispensam o esforço físico (a não

John Comerford · 


ser em momentos específicos do ciclo agrícola, como a colheita). Diante
de tais mudanças e estranhamentos, surgem com especial intensidade
dilemas e polêmicas morais – relativos a critérios éticos do bem viver,
às expectativas de respeitabilidade, à hierarquia dos diferentes tipos de
obrigação, às modalidades de afirmação do bom caráter pessoal e familiar,
e assim por diante. Coloca-se em jogo o sentido e a inteligibilidade moral
das ações alheias e próprias, e constroem-se modalidades (não necessa-
riamente congruentes) de conhecimento e de compreensão do próprio
mundo social em transformação, delineando círculos que compartilham
em alguma medida uma perspectiva moral, círculos estes não necessa-
riamente estáveis e certamente com diferentes pesos na sociedade local.
Abordarei inicialmente alguns dos focos de problematização moral
que foi possível perceber na pesquisa de campo. O leque desses focos
poderia ser ampliado, e nem todos serão discutidos com a mesma atenção
nos limites deste trabalho. A intenção é apenas apontar algumas dessas
áreas ou temas interessantes e problemáticos do ponto de vista de alguns
dos atores, antes de apresentar indicações sobre situações ou tipos de
eventos que favorecem ou induzem a realização de julgamentos morais.
Cabe ressaltar que as observações estão claramente enviesadas por
uma pesquisa de campo realizada basicamente entre médios e grandes ca-
feicultores oriundos do Paraná e de São Paulo, sobretudo entre os homens,
complementada aqui pelas observações de trabalhos de outros membros
da equipe seja entre pequenos produtores originários do Paraná,7 seja
entre empreiteiros de mão de obra ou trabalhadores e trabalhadoras re-
sidentes em um bairro periférico.8

Ambição ou sossego

O mais evidente eixo de questões morais nas conversas realizadas ao longo


do trabalho de campo foi o que se constrói em torno do contraste entre
ambição e sossego. Em muitas circunstâncias, esse contraste sobrepõe-se
àquele entre paranaenses e mineiros. Eventualmente pode adquirir uma

7 SOUZA JR., Hailton Pinheiro. O lugar do progresso: Família, trabalho e sociabilidade em


uma comunidade de produtores de café do cerrado mineiro. Rio de Janeiro: e-Papers, 2011.
8 NOVAES, op.cit.

 · Produzindo moralidades


tonalidade étnica de contraste entre paranaenses descendentes de europeus
ou orientais, e mineiros “misturados” (para não falar nos baianos “more-
nos”). Ou ainda, pode surgir quando se contrasta paranaenses que ficaram
no Paraná e os que vieram para essa região ou outras (como o Mato Grosso).
Esse contraste poderia ser lido como a oposição entre o “trabalhador”
e seu oposto, o “preguiçoso”, mas ambição é uma palavra bastante mais
ambígua, assim como sossego, o que torna a evocação desses termos mais
interessante. Se o ambicioso certamente é trabalhador, e nesse sentido
positivamente valorizado, a palavra pode sugerir a “vontade de ser mais
que os outros”, ou uma forma de descontrole na gestão dos bens e recursos
excedendo os limites do moralmente recomendável e colocando em risco
sua família e suas relações com a comunidade, os amigos, e com Deus.
Sossegado, por sua vez, qualifica uma postura algo humilde, o resguardo
do tempo para dedicar à família, aos amigos e à religião, certa resigna-
ção com o que Deus oferece, e nesse sentido pode ser valorizado. Mas o
termo pode ser usado como eufemismo para indicar a falta de vontade e
coragem para o trabalho, a lassidão e a preguiça, e também aqui a família
pode estar em risco.
Como qualquer outro termo moralmente carregado, ambição e sossego
costumam ser acionados em referência a pessoas, categorias, situações
ou eventos específicos, e não discutido abstratamente. Assim, em vários
momentos, o termo veio à tona nas narrativas sobre as transformações
da região: seja nas críticas de pessoas do lugar à excessiva ambição dos
paranaenses, mesmo reconhecendo a importância de sua chegada para o
crescimento ou progresso; seja nas narrativas dos cafeicultores oriundos
do Paraná ao excessivo sossego dos mineiros, ainda que reconhecendo a
hospitalidade e a amistosidade que estes demonstraram diante de sua
chegada à região. Ou, ainda, foi acionado por cafeicultores paranaenses ao
contarem de sua relação com os parentes sossegados que permaneceram
em sua região de origem, e que, no dizer de um jovem nascido no Paraná
mas que já cresceu em Patrocínio, continuam, a cada visita anual que ele
lhes faz, “com o mesmo carro, a mesma casa, se duvidar a mesma cami-
sa”. Para ele, esses parentes não pensam nos filhos, pois “ficar como está
já é cair”. Ele mesmo planeja seguir em frente, adquirir terras em novas
regiões, “crescer” e “ir adiante” para “deixar algo mais para os filhos”.
Também foi acionado em situações como conversas de cafeicultores sobre

John Comerford · 


seus parentes e familiares: para criticar a ambição excessiva de um irmão
ou cunhado, para justificar o próprio sossego em contraste com irmãos
ou cunhados, para distinguir filhos e genros, ou ainda para contrastar
diferentes momentos na própria história de vida. Foi acionado também
por mineiros, ao refletir em tom de perplexidade sobre o modo pelo qual
os paranaenses transformaram terras pouco valorizadas em áreas muito
produtivas, possibilidade que eles, por serem excessivamente sossegados,
não haviam antevisto.
O tema da ambição e do sossego pode estar ligado a reflexões religiosas.
Certa noite, jantando com um casal de grandes produtores de origem
paranaense, um casal já de certa idade, vi-me em certo momento instado
a me posicionar em um debate a respeito da relação entre a graça de Deus
e a produção agrícola. Do ponto de vista da esposa, a produção era em
si graça de Deus, que dá a chuva no momento certo, que é o responsável
pela vida das plantas, pela terra e por toda a natureza. A riqueza deles era
graça de Deus, e não faria sentido nem ambicionar mais, nem recusar. Do
ponto de vista do marido, a graça de Deus consiste de oportunidades que
só serão aproveitadas por aqueles que optarem pelo trabalho incessante
e dedicado. A natureza sem o trabalho não é nada. Certa dose de ambição
para “crescer”, desde que por meio do trabalho, se coaduna, na visão dele,
com a graça de Deus, e na verdade consiste em uma expectativa ou um
teste de Deus. A graça de Deus precisa da “garra” dos homens. E afinal,
perguntou-me ele, não era a minha presença ali também fruto da minha
ambição de produzir um bom trabalho? E essa não foi a única vez que fui
interpelado nesse sentido por cafeicultores.

Exibição ou simplicidade

No trabalho de campo entre os cafeicultores, alguns deles bastante abas-


tados, foi comum que se autocaracterizassem como pessoas simples, e en-
fatizassem sua preocupação em não exibir a riqueza (mesmo que em alguns
casos isso parecesse, aos meus olhos, contradito pelas poderosas e novas
caminhonetes 4x4 e grandes casas, cuja existência era sempre explicada
por motivos funcionais). Em várias visitas a casas de cafeicultores, a sim-
plicidade foi insistentemente afirmada e paradoxalmente, “exibida”. Em
uma casa de um cafeicultor relativamente grande de Patrocínio, oriundo

 · Produzindo moralidades


do Paraná, e que excepcionalmente morava “na roça” e não na cidade, o
casal fez questão de mostrar os cômodos da casa e sua mobília, sempre
enfatizando a simplicidade (e a casa tinha de fato um estilo austero). Um
dos maiores produtores de Patrocínio, por sua vez, ao me levar para visitar
suas fazendas e o escritório de sua firma de exportação, fez questão de
explicar que sua picape não era “carro do ano” e que o luxo relativo do
escritório era uma necessidade comercial, pois precisava receber com-
pradores estrangeiros, sempre deixando claro que não estava em jogo
exibir sua riqueza e que ele, uma pessoa simples, não é do tipo que faria
isso. Críticas genéricas eram feitas frequentemente aos que “queriam se
exibir”, com carros luxuosos ou outras formas de consumo conspícuo.
Por outro lado, também foi comum ouvir de cafeicultores paranaenses
que eles eram criticados por mineiros em função de seus hábitos simples,
como cuidar do jardim, trabalhar pesado nas fazendas junto com os fun-
cionários ou fazer os próprios móveis. Nessas narrativas, reafirmavam o
valor moral da simplicidade e da discrição em relação à riqueza, mesmo
em situações de “sucesso”, e ao mesmo tempo marcavam o estranhamento
que isso causava junto a outros que, sugere-se implicitamente, se fossem
ricos exibiriam sua riqueza e deixariam de ter hábitos simples.

Aventura ou prudência

Ao ouvir a movimentada história de vida de um senhor, grande produtor


em um município da região, na qual ele narrava sua saída da região de
origem na Bahia para trabalhar na abertura de fazendas no norte do Pa-
raná nos anos 1950, depois a progressiva aquisição de sítios no Paraná, a
ida para o norte do Mato Grosso, e finalmente a vinda para Minas Gerais,
comentei ingenuamente que a vida dele tinha sido “uma aventura”. Logo
percebi que cometera uma gafe. Incomodado, ele negou que tivesse sido
uma aventura: ele sempre procedera com cuidado e preocupado com a
família. Um pai de família não deve se aventurar. Fiquei um pouco surpreso
com a minha gafe, pois em outras circunstâncias ouvira o termo aventura
usado com conotação positiva, para descrever uma qualidade da vinda
para a região. Mais atento, fui percebendo que aventurar pode ser acionado
com conotação positiva de ousadia em certos momentos ou para certas
finalidades, ou com conotação negativa de irresponsabilidade, como na

John Comerford · 


fala do senhor referido. O limite entre a ousadia e a irresponsabilidade
parece um foco de preocupação entre os “pais de família”: é possível jus-
tificar aventurar-se em busca de oportunidades para que a família possa
ir para frente, de modo que não ter certa dose de ousadia pode ser tido
como colocar em risco o futuro dos filhos (considerando que “ficar como
está já é cair”). Mas é possível também criticar o aventureirismo de quem
coloca em risco a situação da família, e não faltarão histórias de migração
para o Mato Grosso ou de outros investimentos incertos ou apostas ex-
cessivamente arriscadas no momento da venda do café, com resultados
desastrosos, para demonstrar a irresponsabilidade alheia, contrastando-a
com a prudência do narrador. As narrativas de grandes decisões, como
a mudança de um estado para outro ou a compra de uma fazenda, são
sempre bastante emocionadas e expressivas das tensões morais em jogo,
que de algum modo apontam para essa dosagem sempre contestável e
potencialmente criticável de ousadia e prudência.

O pai exemplar e a família unida

Não é surpresa que as relações familiares sejam uma das áreas mais “in-
vestidas” com significados e polêmicas morais. Em diversas ocasiões
em que conversamos com os cafeicultores, a figura do “pai de família”
foi ressaltada. Muito do que foi dito pelos cafeicultores homens e mes-
mo pelas mulheres destacou a importância do pai como exemplo moral.
Em certo sentido, um pai realizado é aquele que reconhece seu próprio
exemplo nos filhos, e mesmo nos netos. A exemplaridade paterna, entre
os cafeicultores com quem conversei, aponta para aspectos como o gosto
pelo trabalho (em especial agrícola, no caso dos filhos homens), a dose
“certa” (sempre discutível) de espírito de aventura e de prudência, de
ambição e de sossego. E também a exemplaridade enquanto organiza-
dor da cooperação da família, identificando talentos, atribuindo tarefas,
ajudando filhos, filhas e genros de acordo com critérios de merecimento
e direcionando investimentos.
Na perspectiva desses cafeicultores, um pai exemplar terá sempre
uma família exemplarmente unida. A colaboração entre pai, mãe, fi-
lhos/irmãos-irmãs e eventualmente os maridos-cunhados-genros é
invariavelmente enfatizada nas conversas dos cafeicultores. Apontam

 · Produzindo moralidades


concretamente para conjuntos de pais e filhos que conseguem manter-se
unidos e com isso crescer. E as narrativas do processo de estabelecer-se
na região recorrentemente apontam exemplos positivos ou negativos no
que se refere à “união da família”. Da mesma forma, e na direção oposta,
são lembrados exemplos de divergências na família, rivalidades, ou ainda,
como exemplo tristemente lembrado, o caso de um produtor bem-sucedi-
do, porém sem filhos e, portanto, sem herdeiros. A expectativa de ir para
frente, componente do sucesso tal como avaliado por esses cafeicultores,
se estende com bastante clareza às gerações seguintes, inclusive no sen-
tido de que os irmãos (homens) se articulem para explorar novas regiões
abertas para expandir as atividades agrícolas, ou que essa possibilidade
seja explorada ainda pelo pai, mas sempre visando o futuro dos filhos.
Isso pode, todavia, ser tido como aventureirismo de um pai que talvez
esteja se mostrando excessivamente ambicioso.
Alguns dos relatos obtidos entre cafeicultores estabelecidos na região
apontam para esse universo de valores em torno da exemplaridade do pai e
do seu papel em consolidar a união da família. Um dos mais interessantes
nesse sentido foi um grande produtor paranaense (na verdade paulista),
que era um dos ricos “exemplares” do município, sempre indicado para
nós quando explicávamos que estávamos interessados na cafeicultura, e
bastante mencionado em rodas de conversa. Sua narrativa enfatiza o seu
sucesso “empresarial”, ou seja, o fato de ter nascido em um pequeno sítio
de café, ter se tornado esteio da família com a morte do pai, ter começado
a trabalhar como empregado de uma fazenda, e finalmente ter conseguido
estabelecer-se como sitiante e depois fazendeiro, primeiro no Paraná e
depois em Minas Gerais. A narrativa está centrada em seu sucesso no sen-
tido de tornar-se um homem completo, direito e, portanto, pai de família.
A grande ênfase foi sobre como ele conseguiu deixar um legado para os
filhos, por meio do trabalho e da graça de Deus (que o permitiu trabalhar).
Mais do que apenas o legado material, ele de diversas maneiras enfatiza
que deixa o exemplo, reconhecido pelos filhos e netos. Deixa bem claro que
até hoje, aos oitenta anos, ajuda, orienta e direciona cada um dos filhos em
seus empreendimentos. As suas estratégias de mudança para Minas, de
aquisição de áreas e de técnicas de cultivo e decisões de comercialização
por vezes foram contestadas pelos filhos, mas no final ele mostrou estar
certo e ter agido com prudência e de acordo com a orientação divina. O

John Comerford · 


crescimento desse empreendimento familiar – onde os filhos continuam
em sociedade com o pai e entre si, mesmo depois de casados – é apresen-
tado como uma construção moral em torno dos valores da solidariedade
familiar, e da generosidade e da autoridade paterna. Na sua apresentação,
não se trata nunca, evidentemente, da valorização de enriquecimento em
si. Mesmo ao narrar a construção de sua casa, muito grande e localizada
em ponto nobre da cidade, ele enfatiza que é o cumprimento de uma pro-
messa aos filhos quando da chegada em Minas. O tempo todo reafirma sua
simplicidade e se afasta da imagem do rico avaro e ambicioso, talvez ainda
incomodado com as consequências do fato de ter sido apresentado (ou ter
se exibido, conforme alguns julgamentos contrários) como exemplo da
riqueza produzida pela expansão do café na região, em uma reportagem
de revista de circulação nacional feita há alguns anos.
Nessa moldura moral, a ampliação da escala das atividades e a acumu-
lação de riqueza são apresentadas como o que se espera do pai de família:
legar aos filhos terras e exemplo moral. Mas creio que não se pode disso-
ciar essa maneira de apresentar a própria trajetória sem levar em conta
justamente a acusação moral corrente, com relação aos que cresceram
muito, de que são movidos pela ambição excessiva e pelo intuito de exibir
sua riqueza. Os relatos autobiográficos nas entrevistas adotaram formas
de autoapresentação bastante elaboradas, e o cultivo dessa modalidade
de relato parece fazer sentido em um mundo atravessado por debates e
contendas morais sobre a natureza da acumulação de riqueza e que tem
na vida familiar uma referência fundamental para a justificativa moral.
Tomando como referência esse ponto de vista bem estabelecido dos
cafeicultores paranaenses e suas expectativas morais quanto à união da
família em torno das perspectivas de ir para frente e o papel do pai como
referência central e exemplar, não chega a ser surpresa que manifestem
estranhamento ou repulsa diante de arranjos familiares distintos obser-
vados, seja entre famílias mineiras, seja entre os trabalhadores que residem
nas periferias das cidades ou que vêm para a colheita do café. Com relação
aos primeiros, seria interessante uma investigação mais sistemática, que
não foi possível realizar, sobre as famílias surgidas do casamento entre
homens paranaenses e mulheres mineiras, do ponto de vista das tensões e
diálogos morais. A atribuição recorrente de excessivo sossego aos homens
mineiros e, portanto, o julgamento de sua inadequação para casar com as

 · Produzindo moralidades


mulheres paranaenses, ou seja, de se tornarem pais de família aceitáveis (ao
contrário da ampla aceitação do casamento de homens paranaenses com
mulheres mineiras, tidas como boas mães), parece uma pista importante.

Brigas, cachaça e descontrole

O uso do termo desestruturada para se referir às famílias de moradores


de bairros periféricos e de trabalhadores temporários soma-se a uma
constelação de termos usados recorrentemente para julgar moralmente
tal categoria de pessoas. As referências mais frequentes são ao perigo e
à violência. Rumores sobre o perigo desses bairros e dessas pessoas que
vêm para a colheita, sobre seu comportamento descontroladamente vio-
lento, sobre crimes espantosos dos quais se ouviu vagamente falar são
uma constante e podem ser ouvidos no táxi, em conversa no bar ou no
restaurante, no sindicato ou na associação, na igreja ou no banco, nos
órgãos da prefeitura voltados para a assistência social ou no abrigo para
os trabalhadores em busca de trabalho. Também não é surpreendente que
esses mesmos rumores circulem a partir dos próprios moradores desses
bairros, ao precaver, por exemplo, a pesquisadora que ali trabalhava sobre
os riscos de andar no bairro para além da vizinhança imediata em que ela
se encontrava, ou ao comentar sobre a impossibilidade de ali realizar festas
públicas pela alta probabilidade de descontrole e violência; ou, ainda, ao
qualificar os trabalhadores de outra origem geográfica que não a sua (os
baianos, os do norte de Minas, os paraibanos...) como dados à briga e à
violência. Também era comum a circulação de rumores e narrativas sobre
brigas nos alojamentos de fazendas. Além da violência, outros focos de
interesse e preocupação nos julgamentos morais entre os trabalhadores
rurais e em relação a eles diz respeito ao contraste trabalhador/preguiçoso
ou vagabundo (aqui sem a ambiguidade permitida pelo par ambição/sosse-
go); e, ainda, ao alcoolismo e ao descontrole (principalmente dos homens).
Entre cafeicultores, as conversas sobre as dificuldades de mexer com
gente, em referência a gerir as relações com os trabalhadores na época da
colheita, eram constantes, e em torno desse mote circulavam histórias
de perigo, violência, drogas e alcoolismo, construindo um quadro de
descontrole moral nesses contingentes de “gente de todo tipo”, como se
diz com frequência. As exceções iam por conta de relatos de trabalhadores

John Comerford · 


com os quais se havia estabelecido uma relação duradoura, esses sim di-
ferentes dos outros: gente trabalhadora, focada em obter recursos para a
família, que não frequenta “a rua”, não bebe e não se envolve em brigas.
Mas há sempre uma preocupação dos cafeicultores com as dificuldades
de “saber com quem estão lidando”, ou seja, de não ter canais de acesso
a reputações.9 Nessas circunstâncias, os cafeicultores recorrem sistema-
ticamente aos famosos gatos, empreiteiros de mão de obra. Essa figura é
moralmente bastante ambígua e, por isso mesmo, tida como adequada
para lidar com gente de todo tipo. Do ponto de vista dos trabalhadores, por
sua vez, são vistos com desconfiança, mas é quase impossível conseguir
acesso ao serviço sem recorrer aos gatos. São, portanto, quase imprescin-
díveis e moralmente muito ambíguos tanto do ponto de vista dos patrões
como dos empregados.

Alguns circuitos de julgamento

Tentarei esboçar algumas situações e modalidades de interação que fa-


vorecem a produção e circulação de avaliações morais. Farei observações
sobre algumas modalidades de encontro nas quais se realizam, ajustam,
sugerem, ensaiam ou refutam julgamentos, se fazem ou desfazem repu-
tações, ao mesmo tempo que se reproduzem ou se transformam temas e
tópicos de interesse moral e se cria certo autoconhecimento em termos
morais dessa sociedade diversificada e heterogênea. Tais eventos ou situa-
ções também apontam para alguns dos circuitos de julgamento moral que
reforçam a heterogeneidade e diversidade dessa sociedade. Cabe ressaltar
que não há nenhuma pretensão de ser exaustivo.

Festas de aniversário e outros eventos em casa

Esses eventos parecem ser uma importante modalidade de encontro entre


cafeicultores. Fui convidado a diversas festas de aniversário. Membros de

9 Chegaram a surgir empresas especificamente dedicadas a levantar informações


policiais sobre trabalhadores em vários estados, em uma espécie de “burocratização”
daquilo que em outras circunstâncias pode ser realizado pelo acesso à reputação moral.

 · Produzindo moralidades


uma família de cafeicultores “paranaenses” me contaram que não havia
mês do ano em que não se reunissem em torno de algum aniversário. Não
me parece que isso seja excepcional. Nesses eventos, reunindo apenas
familiares, parentes e amigos relativamente próximos, um dos com-
ponentes invariavelmente é a conversa entre os homens a respeito das
atividades agrícolas e dos negócios de conhecidos, parentes, vizinhos e
dos maiores produtores da cidade. No caso dos paranaenses, a conversa
entre os homens está centrada no “falar sobre café”. Em um aniversário
de uma família paranaense em que estive presente, por exemplo, entre os
homens falou-se da desconfiança com relação a uma nova firma corretora
de café que surgira na cidade e seus desígnios; avaliou-se detidamente o
caso de uma pessoa que insistentemente “jogava” com o seu café na bolsa
de mercadorias; estabeleceu-se um contraste em termos de progresso e
riqueza com os parentes que ficaram no Paraná e com os quais mantinham
contato por meio de visitas; discutiu-se a forma de gestão de uma grande
fazenda em que um dos membros da geração mais nova era administrador.
Em outro aniversário dessa mesma família, só que dessa vez de um homem
casado com uma mineira, de modo que, em vez da “roda dos homens” e
da “roda das mulheres”, havia a “mesa dos paranaenses” e a “mesa dos
mineiros”, na mesa dos paranaenses (que incluía as mulheres) se discutiu
a compra e venda de terras na região e em outras, em torno de casos espe-
cíficos de pessoas conhecidas cujas ações foram julgadas; falou-se muito
da colheita de café daquele ano e das expectativas de preço, trazendo à
tona narrativas de pessoas que souberam, ou não, prever oscilações de
preço, ou que foram movidas pela ambição de grandes ganhos.
Além dos aniversários, almoços e jantares em casa dirigidos à família
e aos parentes parecem ser fundamentais na sociabilidade “de classe mé-
dia” dessas cidades, tanto entre “paranaenses” como entre “mineiros”. E,
nesses eventos de muita conversa, faz-se muito julgamento moral, com a
liberdade que a relativa segregação de “público” permite. Em um almoço
de dia das mães de uma família mineira, a “roda de homens” me pareceu
mais centrada na discussão de “negócios” e “dinheiro” em geral mais do
que no “falar de café”, ainda que o tema do café estivesse presente. Em
certo momento dedicou-se a discutir as estratégias comerciais e as dí-
vidas do maior e mais conhecido produtor de café do município, falando
longamente da falsidade de sua riqueza e de suas dívidas imprudentes e

John Comerford · 


impagáveis. Também conversaram sobre dimensões “ilegais” (mas não
imorais) da corretagem de café em pequena escala, o mercado de terras
na região e a política local, sempre com uma importante dimensão de
julgamento moral das pessoas mencionadas.
Em todas as conversas masculinas e algo técnicas, há um forte e explí-
cito componente de avaliação moral, conforme mencionei. As atividades
e estratégias comerciais e agrícolas, próprias e alheias, são debatidas
explicitamente em uma linguagem de certo ou errado, não apenas do
ponto de vista estritamente econômico. Se em palestras durante eventos
promovidos pela associação dos cafeicultores ou por bancos de investi-
mento foi possível ouvir uma linguagem exclusivamente técnica e geren-
cial a respeito das atividades agrícolas e comerciais, no ambiente mais
próximo e íntimo dessas conversas caseiras ou entre amigos o centro é a
avaliação moral: é correto apostar muito na bolsa de mercadorias, levando
em conta que isso coloca em risco o patrimônio que é da família? É certo
pensar em comprar mais terras e expandir suas atividades agrícolas em
outras regiões, ou é uma ambição desmedida? O grande produtor que se
endivida excessivamente está agindo de maneira certa, ou isso é fruto de
sua ganância? O que dizer dos parentes que continuaram humildemente
no Paraná, sem crescer a escala de suas atividades? Essa “falta de ambi-
ção” não é uma traição aos filhos? Os novos corretores que têm capital
para desbancar os concorrentes, oferecendo melhores preços pelo café,
estão agindo de forma moralmente correta? O que pretendem com isso?
Se pensarmos que eventos como esses se repetem regularmente, ve-
remos que essas rodas relativamente íntimas que discutem incessante-
mente as atividades econômicas e a gestão da riqueza são importantes
nós de uma rede que produz incessantemente avaliações morais. Não se
trata apenas de troca de informações ou de saberes técnicos e comerciais
– se trata disso também, sem dúvida – mas de formas cristalizadas de
produzir discursos morais em torno de certos temas e termos chave, dos
quais a ambição certamente é um dos mais importantes. É impossível ir
a um aniversário ou a um almoço e não emitir opiniões morais sobre as
atividades dos outros. E não se sobrevive bem socialmente nos círculos
médios e altos desses municípios sem frequentar aniversários e outros
eventos “fechados” desse tipo.

 · Produzindo moralidades


Visitas para mostrar a lavoura

Uma das atividades da pesquisa consistiu em visitar propriedades de ca-


feicultores. Percebi também que as visitas entre esses produtores são uma
atividade comum, nos fins de semana, por exemplo, tendo presenciado
em vários momentos cafeicultores combinando visitas a amigos, para ver
novidades na lavoura e na criação ou nas máquinas e nos equipamentos.
Em alguma medida, essas visitas são também formas de autoapresenta-
ção de seus proprietários, e essa autoapresentação tem uma dimensão
de performance de valores morais. Ainda que a visita de um pesquisador
seja distinta de uma visita de um vizinho ou amigo, há aproximações
possíveis entre essas situações. Com essa perspectiva, trago observações
sobre três situações de campo.
Uma delas foi a visita a propriedades de um dos maiores produtores
da região. Partimos da sede de sua empresa, onde estão os escritórios
administrativos das fazendas e da empresa de exportação de café. Ao
longo da visita ficou evidente a demonstração do caráter quase frenético
do trabalho de direção desse produtor. O tempo todo, ele apresentou sua
qualificação moral como alguém cuja vida é o trabalho incessante. Desde
o escritório até a fazenda, mostrou sua ocupação com questões que vão da
aquisição de botas para os trabalhadores, o acompanhamento do preço
internacional do café, a captação de água, o planejamento técnico da enor-
me unidade de beneficiamento de café em sua nova fazenda, o conserto
de máquinas agrícolas na oficina, e assim por diante. Figura de grande
visibilidade na sociedade local, mencionou também suas atividades à
frente de iniciativas educacionais e na área de saúde. O peso do discurso
moral sobre a família ou sobre seu lugar como pai de família teve menos
destaque. Só com algum custo consegui que ele falasse um pouco sobre
os filhos e a esposa, num evidente resguardo do seu universo “privado”
que era justamente o mais exposto em outros casos. No entanto, também
ele pareceu preocupado com uma possível acusação de pura ambição:
comparou-se a um artista que compra áreas de terra improdutiva e as
transforma em fazendas que são verdadeiras “obras de arte”.
Outro caso foi a visita a um produtor relativamente grande, dono de
importante empresa comercial de máquinas agrícolas. Era muito impres-
sionante o grau de controle que mantinha sobre tudo o que se passava

John Comerford · 


na fazenda. Diferentemente do produtor anteriormente mencionado, a
moralidade familiar como base do empreendimento foi a primeira coisa
que ele abordou, ainda no escritório, numa fala quase formal, bastante
paradigmática. Na fazenda, apresentou seus pais idosos e incentivou a
minha conversa com eles após enfatizar que, apesar de morarem na cidade,
gostavam muito de ficar na roça (enquanto ele mesmo continuava freneti-
camente verificando as atividades da fazenda e dando ordens aos funcioná-
rios). Ao longo da conversa, mencionou como horizonte a ampliação de sua
rede comercial e de fazendas por meio de viagens de prospecção a outras
regiões promissoras, mas tudo isso era apresentado como decorrência do
que ele aprendera com o pai exemplar, tanto na agricultura como no co-
mércio (o pai teve um armazém no Paraná), colocando-se desde o início
como continuador, em sociedade com o irmão, de uma tradição familiar.
Por fim, um terceiro produtor, considerado médio ou quase pequeno
para os parâmetros locais, levou-me à sua propriedade em seu carro.
Parou diversas vezes, sem pressa, para mostrar pés de café carregados,
sempre acompanhando essa apresentação à lavoura com a frase “benção
de Deus”... Mostrou suas instalações, relativamente modestas, na sede da
propriedade e falou com orgulho do reconhecimento que tinha por parte
dos técnicos, no Paraná e ali em Minas, sugerindo que era reconhecido
como agricultor exemplar do ponto de vista técnico. Por fim, contou so-
bre a vinda de sua família e o progressivo afastamento em relação ao seu
irmão, que cresceu muito mais do que ele. Comentou que os que crescem
muito ficam sem tempo e que ele prefere uma vida com “mais sossego”,
reafirmando que o que ele precisa Deus oferece como benção.
Creio que esses breves esboços de visitas a propriedades permitem
perceber que, ao se fazer a apresentação da propriedade, está em jogo a
apresentação moral de si e de sua família. Para esses cafeicultores, essa
apresentação pode estar atravessada por uma constelação de noções,
reflexões e problemas em torno de questões como os limites da ambição,
a simplicidade ou a exibição, a aventura ou a prudência, a importância do
pai e sua exemplaridade. Imersos em um mundo de oportunidades e in-
centivos de crescimento econômico e de acumulação de riqueza, torna-se
impossível não se posicionar moralmente em relação a isso, demonstrando
sempre o trabalho enquanto valor (seja pelo tempo dedicado a ele, seja pelo
cuidado amoroso aí manifesto), negando sempre que a riqueza que daí

 · Produzindo moralidades


resulta tenha em sua raiz a ambição excessiva, egoísta, e imoral, ou então
negando que a menor riqueza relativa (em comparação a um irmão, por
exemplo) seja ocasionada pela indolência, igualmente egoísta na medida
em que é o oposto da dedicação à família e ao “fazer para os filhos”. Todo
esse esforço de apresentação moral pode ser visto também como indício
de um mundo em que acusações morais formuladas nesses termos são
das mais importantes matérias do cotidiano.

Falar sobre os “grandes” notáveis

Nas cidades da região, ao menos nas mais importantes, não foi difícil iden-
tificar personalidades “conhecidas” por todos, do sorveteiro da esquina
ao taxista, dos políticos aos dirigentes associativos e gerentes de bancos.
São grandes produtores, muito bem-sucedidos, e inseridos com destaque
na alta sociedade local. São homens que foram insistentemente mencio-
nados como exemplos quando a equipe de pesquisa chegou à região. Sobre
eles, circulam muitas narrativas, e todos na cidade dão a impressão de
conhecê-los intimamente. Nas rodas de conversa no clube, nas festas de
aniversário, nas esquinas, no comércio, nas conversas nos restaurantes,
comenta-se às vezes em detalhes a vida desses personagens “públicos”: a
sua última viagem, a sua situação financeira, o desempenho dos filhos, a
sua relação com os trabalhadores, suas rivalidades, simpatias e antipatias,
sua vida privada ou a história de seu enriquecimento.
A impressão geral é de ambiguidade em relação a tais figuras. Nos
casos que tenho em mente, são valorizados como pessoas que vieram de
baixo e ascenderam pelo trabalho e pela inteligência. Mas sempre surgem
rumores de operações financeiras nebulosas, dívidas excessivas que vão
recair sobre os filhos ou comentários sobre o luxo desmedido das casas,
o hábito de andar de avião próprio, os contatos em Brasília, as viagens
dos filhos ao exterior, as rivalidades com outros grandes produtores, sua
ambição desmedida ou sua simplicidade surpreendente (mas seria ver-
dadeira e sincera?). A discussão moral sobre dívidas e os riscos que elas
trazem parecem, em especial, ser um foco de grande interesse público.
As incessantes conversas sobre tais personalidades públicas, nas mais
variadas circunstâncias, são momentos de intenso comentário moral,
um exercício de polêmica, reflexão e elaboração de moralidades. Diante

John Comerford · 


do destaque social e do investimento dessas figuras exemplares na sua
autoapresentação pública, o uso da ironia parece ser uma modalidade
frequente, e, ao que me pareceu, bastante eficaz, de comentário moral.

“Fidelização”, “dias de campo”, “treinamentos”: circuitos de


interação no mundo da técnica

A produção de café nessa região coloca os produtores numa relação bas-


tante próxima com o universo da geração e distribuição comercial de
tecnologia agrícola. Esse universo envolve algumas modalidades de inte-
ração nas quais, para além das finalidades técnicas e comerciais, entram
em jogo a construção de reputações e a elaboração de julgamentos morais,
circunscrevendo ao mesmo tempo determinados círculos sociais.
Todos os produtores trabalham com revendas, que são lojas de in-
sumos agrícolas, em geral de propriedade de empresários locais e que
possuem um corpo técnico cuja atribuição é vender os produtos e também
orientar o seu uso pelos cafeicultores. Os que trabalham nessas empresas,
agrônomos ou técnicos agrícolas, são em geral jovens. É uma ocupação
comum para filhos de cafeicultores modestos que tenham completado
seus estudos, médios ou superiores, na área técnica. Trabalham sempre
na perspectiva do que chamam de fidelização, ou seja, tornar o produtor
um freguês constante da loja e da linha de produtos que ela comercializa.
Há toda uma série de incentivos nesse sentido, desde descontos para os
que optam pelo pacote de produtos até concursos entre os clientes da
loja, e a atenção especial dispensada cotidianamente para os mais per-
manentes. Os técnicos visitam as propriedades dos clientes com uma
razoável frequência (uma ou duas vezes por mês). Eles têm claro que não
se trata de uma relação simplesmente de venda de produtos. Ao mesmo
tempo, é preciso vender... Os produtores, por sua vez, deixaram sem-
pre claro que sua fidelidade a uma dada revenda nunca é total, e alguns
mencionaram que tentam comprar em mais de uma para manter boas
relações com todas as lojas e não chatear seus conhecidos nesse ramo.
Eles afirmaram que buscam os menores preços, mas levam também em
conta sua relação com a loja e com os técnicos, pois têm confiança e uma
relação de amizade com alguns (alguns vendedores são filhos de parentes,
amigos, ou conhecidos). Em torno das atividades de venda de insumos,

 · Produzindo moralidades


geram-se, portanto, relações de proximidade, confiança e amizade entre
cafeicultores e funcionários das revendas. Conversas entre produtores e
por outro lado conversas entre técnicos-vendedores são momentos em
que circulam avaliações técnicas mas também morais sobre uns e outros,
a partir da interação recorrente tendo em vista a fidelização.10
Uma importante estratégia das empresas e das revendas para divulgar
seus produtos e para aproximar-se de seus clientes e clientes potenciais
são os dias de campo. Esses eventos envolvem a divulgação de algum novo
produto. Um produtor é escolhido para ser o anfitrião, o que em si é con-
siderado uma distinção ou homenagem importante. A empresa monta o
evento na propriedade, divulga entre os produtores e traz pesquisadores
e técnicos da própria empresa ou de universidades para apresentar o pro-
duto ou fazer palestras. Mas, se esse é o fulcro “oficial” do evento, para
os produtores conta muito a oportunidade de se encontrar com outros
produtores, reencontrar amigos e fazer novos, conversar sobre as lavou-
ras, saber notícias, e, claro, exercitar julgamentos morais. Também é um
momento de encontro mais informal entre os técnicos da empresa e os
produtores. Costuma haver um churrasco.
A demonstração de conhecimento técnico é muito valorizada pelos
produtores – sobretudo o conhecimento “demonstrado na prática”. A
informação mais valorizada é aquela obtida dos outros cafeicultores. As
visitas, dias de campo e viagens para conhecer outras regiões de expansão
da cafeicultura e para eventos técnicos são sempre espaços de intensa troca
de opiniões técnicas e informações entre cafeicultores. Ser reconhecido
como alguém que tem um domínio especialmente bom das técnicas de
produção é motivo de orgulho e de prestígio. E as conversas de cafeicultores

10 Além das revendas de insumos, outro foco importante nas relações dos cafeicul-
tores com o mundo da tecnologia são as revendas de tratores e máquinas. Ligadas a
grandes empresas do ramo, essas revendas são de propriedade de empresários locais,
do mesmo modo que as revendas de insumos. Como comercializam equipamentos
muito caros, é comum que a compra seja feita a crédito. Talvez por isso mesmo os
vendedores dessas lojas de máquinas parecem ter a fama de estarem sempre muito
atentos às informações que correm a respeito de sua clientela ou clientela potencial.
Um ex-funcionário de uma dessas lojas me explicou que, além das informações oficiais
que constam do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC), sempre sabem muito, por meio
de suas conversas cotidianas, sobre a vida dos clientes e clientes potenciais – sua vida
financeira, a situação de suas propriedades e, ao que parece, muito mais.

John Comerford · 


nesses eventos e espaços com facilidade se encaminham na direção não
só de uma sutil disputa em torno do saber técnico e comercial, como de
uma conversa marcada pelo julgamento moral de terceiros enquanto pais
de família, e concomitante afirmação de sua própria excelência moral nesse
sentido.
Cabe observar também que no mundo das empresas – revendas, em-
presas de insumos, de comercialização de máquinas, bancos – os funcioná-
rios, incluindo jovens técnicos agrícolas ou agrônomos filhos de produtores,
se tornam colegas e passam a conhecer também toda uma rede de outros
jovens como eles, não apenas no trabalho cotidiano como também em
cursos e treinamentos reunindo funcionários de diferentes regiões e distintas
posições na hierarquia da empresa. No caso das maiores empresas, filhos
de produtores da região têm contato com funcionários mais graduados que
são agrônomos formados nas escolas mais prestigiadas (alguns deles vindos
de famílias com uma tradição na agronomia, e com tradição de formação
nas escolas de agronomia mais tradicionais). Esses mundos sociais acabam
por acionar uma linguagem própria e um conjunto de expectativas, por
exemplo, quanto ao melhor modo de gestão técnica e administrativa das
propriedades, bem como critérios de reputação e prestígio. A perspectiva
desse universo “técnico”, com sua linguagem, seus eventos, seus círculos
sociais hierarquizados, é algo que os jovens filhos de cafeicultores que tra-
balham, por exemplo, nas revendedoras, vão levar para “dentro de casa”,
como elemento na relação com os pais, tios e primos envolvidos na gestão
das unidades sob controle da família. Os filhos empregados nesse universo
passam a ser consultados sobre técnicas, produtos, acesso a crédito, infor-
mações sobre o mercado local e nacional, sobre compra e venda de áreas etc.
Em algumas circunstâncias, a tensão entre as perspectivas dos jovens mais
imersos nesse universo da técnica e da gestão e as perspectivas de pais e
irmãos em relação às atividades agrícolas podem se tornar um desencontro
de expectativas morais no plano das relações familiares.

Clubes e associações

Os cafeicultores que vieram do norte do Paraná, e que lá eram pequenos


ou mesmo médios lavradores, são unânimes em se lembrar de uma vida
“comunitária” intensiva na área rural. Havia muita gente na roça, muitos

 · Produzindo moralidades


vizinhos, muitas visitas, festas, futebol. No distrito estudado por Hailton
Pinheiro em Araguari, isso de certo modo se reproduziu. Há ali vizinhos
que convivem cotidianamente, festas de igreja, um antigo povoado rural
do qual os paranaenses se tornaram figuras centrais. Já nas áreas de grandes
fazendas em Patrocínio, Coromandel e Monte Carmelo, o contraste com o
Paraná foi enfatizado: dadas as dimensões das propriedades, os vizinhos
estão distantes, e de todo modo em geral moram nas cidades. Não é nas
proximidades das lavouras que se encontram, não há ali “comunidades
rurais” de cafeicultores. Os cafeicultores têm seus espaços de “comuni-
dade” na cidade, inclusive em alguns clubes e associações.
Ouvi reclamações de que já houve época em que, na cidade, havia
mais encontros entre cafeicultores. Em Patrocínio, o Clube da Bocha,
visto como algo “dos paranaenses”, mas também “dos italianos”, teve
seu melhor período nos anos 1990, quando era muito frequentado. Foi
ampliado com apoio da prefeitura, atraía jogadores de outras cidades
(especialmente Araguari) e tinha animação não só nos finais de semana
como também nos dias de semana. Hoje, os seus frequentadores reclamam
do esvaziamento, da falta de tempo para frequentá-lo, da concorrência do
lazer mais fragmentado nos ranchos na beira da represa. Mas não deixa
de ser um espaço de encontro, reunindo basicamente cafeicultores de
origem italiana, mas também acabando por agregar alguns mineiros,
às vezes seus parentes por afinidade. Apesar da atual irregularidade da
frequência ao clube, especialmente na época da colheita do café, o padrão
é que a cada semana um membro do clube se encarregue de oferecer a
carne do churrasco, em rotação, sendo a bebida vendida separadamen-
te. Comparecem principalmente homens, e a conversa, como o leitor já
deve imaginar, gira em torno do café, mas também de política, futebol,
da própria bocha, das notícias do Paraná, dos casamentos, dos filhos, de
narrativas sobre acontecimentos na região de origem, de anedotas, casos e
piadas. E, como o leitor já deve também imaginar, há sempre um intenso
julgamento ou debate moral em todas elas.11

11 A Associação Nipo-Brasilera do município também teve um período de dinamis-


mo, incentivado por três senhores muito respeitados da comunidade, que faleceram
em um pequeno intervalo. Hoje, também se reclama do esvaziamento e da “falta de
tempo” dos antigos frequentadores, da atual fragmentação da colônia japonesa, e do
esvaziamento ocasionado pela ida de muitos para o Japão ou para as grandes cidades. A
associação continua, contudo, promovendo alguns eventos.

John Comerford · 


Outro espaço de encontro dos cafeicultores é a sede das associações
e cooperativas do sistema “Café do Cerrado”. Para além das funções for-
mais dessas entidades, a frequência às sedes também é um espaço onde
os cafeicultores se encontram e trocam ideias e informações, entre si e
com os funcionários, técnicos e dirigentes. Os funcionários assinalaram
que muitas vezes os produtores visitam a sede simplesmente para con-
versar, pedir conselhos sobre as mais variadas coisas, inclusive de sua
vida privada, saber dos rumores sobre o mercado de café, e assim por
diante. Mais de uma vez, dirigentes e funcionários qualificaram a sede de
sua entidade como a casa do cafeicultor. Os cafeicultores às vezes trazem
presentes para os funcionários e funcionárias dali e comparecem aos
eventos patrocinados pela associação.
Os encontros em espaços como esses dão oportunidade tanto para
momentos de agrupamento por família ou círculos de parentes como en-
contros “entre famílias”, entre funcionários e técnicos da associação com
cafeicultores individualmente e para encontros mais ou menos casuais
entre cafeicultores individualmente. É sempre um contexto mais aberto
do que os já mencionados eventos “em casa”, o que certamente tem efeitos
sobre a forma de circulação de opiniões e avaliações morais.

“Mexer com gente”

Como já dito, os cafeicultores evitam o quanto podem “mexer com gen-


te”, atividade para a qual preferem acionar os gatos. Os gatos em geral
consideram pejorativa essa denominação e preferem se autocaracterizar
como empreiteiros ou fiscais, ou simplesmente definir sua atividade como
mexer com turma. Invariavelmente já foram apanhadores de café, e alguns
voltarão a ser, porque, se há os que conseguem viver permanentemente
disso, vários outros mexem com turma durante algum tempo e depois
deixam essa atividade em função de maus resultados financeiros e/ou
do desgaste moral que essa função ocasiona. Os gatos fazem parte basi-
camente do mesmo universo social que os trabalhadores, e, ainda que
os mais bem-sucedidos sejam figuras em processo de enriquecimento, a
maioria mora nos bairros de trabalhadores.
O ideal do gato é não ter que procurar nem os trabalhadores nem os
fazendeiros, e ser por eles procurado. Para isso, é essencial fazer nome. Ser

 · Produzindo moralidades


gato coloca em risco, por definição, a reputação: há certo senso comum
de que gatos ganham nas costas dos outros. Eles são alvo de desconfian-
ça generalizada e ameaças explícitas ou implícitas (por exemplo, um
gato que contou que certo dia encontrou sua caminhonete apedrejada,
e circulam narrativas de gatos que sofrem ameaças e espancamentos).
Os saberes que o gato precisa ter para conseguir construir um bom nome
foram expostos em algumas das entrevistas feitas por Novaes:12 ele pre-
cisa saber avaliar técnica e moralmente os trabalhadores com rapidez e
precisão: distinguir trabalhadores de preguiçosos, honestos de desonestos,
bandidos de trabalhadores, os que sabem fazer a apanha e os que não sabem.
Precisam ter jogo de cintura e saber pedir tanto aos fazendeiros como aos
trabalhadores – no caso dos fazendeiros, precisam saber negociar preço;
no caso dos trabalhadores, disciplinar o trabalho; devem saber fiscalizar,
ou seja, perceber quando o trabalho está sendo bem-feito, e saber fazer
isso sem ser percebido para não ser enganado; precisam saber apartar
brigas e discussões, pacificar a turma. Em suma, precisam conseguir ser
respeitados pelo fazendeiro bem como por sua turma, mostrando sempre
a sua responsabilidade e o modo pelo qual cuidam de sua turma e sabem
ouvir os dois lados.
O gato precisa fazer isso tudo em um ambiente de forte concorrência.
Eles concorrem entre si pelas fazendas e pelos trabalhadores, especial-
mente os que têm fama de bons trabalhadores (individualmente ou em
grupo). Lidam com um ambiente em que outro gato pode estar querendo
jogar para baixo (por meio de boatos, ou pagando mais apenas para derru-
bar um concorrente). A relação que mantém com suas turmas é de relativa
proximidade, e as rivalidades parecem de algum modo se transmitir para
as turmas.
Narrativas e rumores negativos sobre gatos circulam com insistência:
histórias de gatos que espancaram ou mataram trabalhadores, fugiram
com o pagamento, roubaram nas contas. Não parece ser fácil a tarefa de
construir uma reputação positiva ao mexer com turma. Ao mesmo tempo,
falar sobre os gatos, ou os gatos falarem sobre sua atividade, é também
realizar uma reflexão e julgamentos sobre a natureza moral dos trabalha-
dores e dos cafeicultores, individualmente e como categoria.

12 NOVAES, Roberta, op.cit.

John Comerford · 


Considerações finais

Políticas públicas, estratégias empresariais, dinâmicas do mercado de


commodities e transformações tecnológicas estão sem dúvida na raiz da
atual configuração social dessa e de outras regiões comparáveis. Porém,
uma imagem mais completa e complexa dos processos sociais em curso
deve incorporar outras dimensões. Na cafeicultura, por exemplo, setor
localmente mais destacado na implementação de um mundo agrícola mo-
derno e em larga escala, fortemente integrado ao mercado internacional
e respaldado por políticas do governo, encontramos alguns agentes que,
mais do que apenas centrados em responder a incentivos de mercado,
realizar cálculos propriamente econômicos, incorporar tecnologia ou
reivindicar políticas favoráveis, estavam muito preocupados, interessa-
dos ou às vezes mesmo atormentados por questões morais, que por vezes
assumiam também um tom religioso. Diante do pesquisador, em muitos
momentos pareciam espontaneamente mais preocupados em justificar
moralmente sua vida e a narrar histórias ressaltando seu significado ético
do que em explicar seus problemas técnicos ou econômicos ou criticar as
políticas do governo (ainda que tudo isso certamente tenha aparecido, às
vezes com força e predominância).
Apresentar-se como pai de família exemplar ou filho de um pai exem-
plar e que tenta passar o exemplo adiante para o seu próprio filho; ou
como alguém que se preocupa em permanentemente “ir para frente”,
numa situação em que “ficar como está já é cair”, para que os filhos não
tenham que enfrentar essa “queda”; ou ainda explicar que sua riqueza é
fruto da graça de Deus e com isso justificar seja seu sossego relativo, seja
sua aparente ambição; ou lembrar que foi a união da família em torno do
pai que permitiu enfrentar momentos de humilhação (tais como ter de
trabalhar para os outros, ou ser desprezado por parentes em função de
sua pobreza relativa); ou ironizar moralmente os “grandes” notáveis do
lugar ou os exibidos que “querem ser mais do que os outros”, ou os que
apostam excessivamente na especulação com o preço; tudo isso aponta
para um mundo no qual estão em jogo questões éticas mesmo nos assun-
tos aparentemente mais “técnicos” ou “econômicos”. Do mesmo modo,
uma perspectiva sobre o mercado de trabalho ou sobre a adoção de tec-
nologias teria muito a ganhar ao levar em conta o enquadramento moral

 · Produzindo moralidades


que tais questões podem receber nesse universo social. Enquadramento
moral este que se faz a partir dos eventos ou encontros constitutivos da
sociabilidade local.
Nesse sentido, parece-me interessante pensar em “moralidades” ou
em sensibilidades morais como sendo produzidas, cultivadas e transfor-
madas nesses eventos cotidianos, tanto nas festas em família como nas
visitas, nas fofocas dos técnicos das revendas ou na decisão de comprar
terras ou de mudar de cidade. Conforme sugerido por Lambek,13 “mais
do que tentar localizar e especificar um domínio da ética, nós precisamos
esclarecer e aprofundar nosso entendimento da qualidade ou dimensão
ética de todo o leque de ação e prática humanas”. Ao mesmo tempo, con-
forme sugere Keane,14 há contextos que favorecem ou requerem elabora-
ção de razões ou justificativas, o que é em si uma prática que requer certas
competências ou capacidades de objetificação. Alguns desses contextos
podem parecer muito prosaicos e algumas dessas capacidades, muito
ordinárias, mas talvez uma atenção cuidadosa revele aí buscas, mais ou
menos disciplinadas, menos ou mais felizes e reconhecidas, por virtudes
e excelências, ainda nem sempre mutuamente compreensíveis entre os
diferentes atores.

13 LAMBEK, Michael. “Introduction.” In:


————— (org.). Ordinary Ethics: Anthropology,
Language and Action. Nova York: Fordham University Press, 2010.
14 KEANE, Webb. “Minds, Surfaces and Reasons in the Anthropology of Ethics.” In:
Lambek, Michael (org.). Ordinary Ethics: Anthropology, Language and Action. Nova York:
Fordham University Press, 2010.

John Comerford · 


Magia e moralidade:
o caso dos “trabalhos de amor”
nos terreiros de umbanda1

K G O C 


M A  S Q

Introdução

Uma matéria importante abordada por alguns clássicos da sociologia e da


antropologia da religião, e que hoje se encontra relativamente abando-
nada, é a da dimensão da moralidade na prática mágico-religiosa.2 Este
texto se propõe a retomar o debate, discutindo questões morais surgidas
da prática mágico-religiosa em terreiros de umbanda, mais especifi-
camente quando da realização dos chamados trabalhos de amor.3 Esses
trabalhos, assim denominados pelos pais e mães de santo que os reali-
zam, são conhecidos e extensamente praticados, de diversas formas, em

1 Uma versão anterior deste texto foi publicada como “Dilemas morais de amor: Con-
trole, conflitos e negociações em terreiros de umbanda.” Dilemas: Revista de Estudos de
Conflito e Controle Social, vol.6, n.4, 2013, pp.581-602. Nesta versão, desenvolvemos
pontos daquele texto de forma mais aprofundada.
2 Usamos quase sempre o termo “mágico-religioso”, em vez de falar somente de
magia, por questão conceitual e empírica, ao considerar que não “existe religião sem
magia, nem magia que não contenha pelo menos um grão de religião”, conforme já
havia ponderado Lévi-Strauss – ver LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem.
Campinas: Papirus, 1989, p.247.
3 A categoria “trabalho” tem muitos significados na umbanda, mas é como sinôni-
mo daquilo que em antropologia se entende por ato mágico-religioso, que ela é mais
recorrente no cotidiano dos terreiros. É esse também o sentido que mais importa neste
texto.
muitos terreiros de umbanda Brasil afora. Este estudo, entretanto, teve
campo empírico bem preciso, concentrando-se em terreiros situados no
município de Limoeiro do Norte, no interior do Ceará.4
O interesse pela relação entre a prática mágico-religiosa e a dimensão
da moralidade surgiu quando buscávamos compreender, de maneira am-
pla, a dimensão da experiência mágico-religiosa nos terreiros de umbanda
do referido município e, num dado momento, percebemos o quanto as
concepções de moralidade, sua diversidade, conflitos e polêmicas morais
permeavam tal experiência, especialmente quando se tratava da realiza-
ção de ritos que visavam resolver problemas de amor.
Desde os estudos de Roger Bastide a recorrência a ritos mágico-re-
ligiosos com finalidades de cura, amor e dinheiro fora constatada nos
templos das religiões afro-brasileiras. São muitos os estudos que merecem
respeito,5 em diferentes épocas e com diferentes campos empíricos,
que mencionam o fato, nem que seja de maneira passageira. No que diz
respeito ao nosso campo de pesquisa, os trabalhos de amor, juntamente
com os trabalhos de cura, destinados a resolver problemas de saúde, e os
trabalhos de destranca, que visam resolver problemas financeiros, são
indubitavelmente os mais procurados.

4 O município de Limoeiro do Norte está localizado na região do Vale do Jaguaribe,


Ceará, e dista cerca de 200 km da capital do estado, Fortaleza. Possuía uma população,
em 2009, segundo dados do IBGE, de 56.098 habitantes. Em termos de religiosidade,
em Limoeiro do Norte encontramos a Igreja Católica, inúmeras igrejas pentecostais e
neopentecostais, Testemunhas de Jeová, três centros de espiritismo kardecista, além
de onze terreiros de umbanda. A umbanda está presente na cidade, segundo relatos
que colhemos, há pelo menos cinquenta anos.
5 Sobre esse fato, indicamos BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil: Contribuição
a uma sociologia das interpenetrações de civilizações, Vols.1 e 2. São Paulo: Livraria Pioneira
Editora, 1971; ASSUNÇÃO, Luiz. O reino dos mestres: A tradição da jurema na umbanda nor-
destina. Rio de Janeiro: Pallas, 2006; —————. “A transgressão no religioso: Exus e mestres
nos rituais de umbanda.” Revista Anthropológicas, vol.19, n.1, 2010; FERRETTI, Mundicar-
mo. Encantaria de “barba soeira”: Codó, capital da magia negra?. São Paulo: Siciliano, 2001;
NEGRÃO, Lísias Nogueira. Entre a cruz e a encruzilhada: Formação do campo umbandista em
São Paulo. São Paulo: Edusp, 1996; —————. “Magia e religião na umbanda.” Revista USP,
n.31, 1996b, pp.76-89; CONCONE, Maria Helena Villas Boas. Umbanda: uma religião bra-
sileira. São Paulo: FFLCH/USP-CER, 1987; —————. “Cura e visão de mundo.” In: Maués,
Raymundo Heraldo; Villacorta, Gisela Macambira (orgs.). Pajelanças e religiões africanas na
Amazônia. Belém: EDUFPA, 2008; MAGGIE, Yvonne. Medo do feitiço: Relações entre magia e
poder no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992; ORTIZ, Renato. A morte branca do
feiticeiro negro: Umbanda e sociedade brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1999.

Kelson Gérison Oliveira Chaves e Marcos Alexandre de Souza Queiroz · 


Aqueles trabalhos que se referem ao amor, no entanto, possuem a
peculiaridade de suscitar debates e discórdias entre pais e mães de santo,
bem como entre os clientes, em torno do que é ou não é certo fazer. Esse
fato nos fez perceber que a dimensão da vida moral, a seleção e decisão do
que é considerado certo e errado, marcava profundamente a experiência
da realização desses trabalhos. Nas narrativas de pais de santo, mães de
santo e clientes, inúmeros conflitos e distintas concepções se revelam
quando os sujeitos da pesquisa tentam justificar e legitimar suas escolhas
e posições.
As práticas comumente qualificadas como trabalhos de amor podem
ser reunidas, em resumo, em cinco subcategorias, que são a arrasta, a
amarração, a união, a capação e a separação, todas contendo suas idios-
sincrasias e propósitos bem definidos.
A arrasta é um trabalho feito com a intenção de trazer, fisicamen-
te, a pessoa desejada para perto. É o primeiro passo para a conquista. A
amarração já adentra o âmbito emocional, e se destina a fazer com que a
pessoa desejada se apaixone perdidamente por quem solicitou o trabalho.
A união, como o próprio nome sugere, é feita para que um casal fique
unido, em estado de harmonia. Esse trabalho pode ser solicitado tanto
por membros de casais já estabelecidos, como também por um membro
do novo casal resultante da arrasta e da amarração que deseja mais esse
acréscimo ao relacionamento. As possibilidades não se encerram na união.
Há a capação, trabalho que objetiva fazer com que a pessoa não se sinta
atraída por mais ninguém, estando, dessa forma, literalmente com o seu
desejo castrado em relação às demais. Já a separação entra mais fundo
na intervenção dos fatos e visa separar um casal para “tomar” o marido
ou a esposa de alguém. Nesse caso, o que é trabalho de amor para um
pode ser encarado como demanda,6 que visa prejudicar alguém, por
outro, isto é, por quem é atingido. Assim, o que é trabalho de amor ou
demanda, este último visando causar prejuízos a outrem, nem sempre

6 Em síntese, vistos antropologicamente, tanto os trabalhos quanto as demandas são


ritos mágico-religiosos. Só que há uma diferença entre eles: os trabalhos, em geral,
têm fins auxiliatórios, enquanto as demandas servem para derrubar, prejudicar inten-
cionalmente alguém. Pode ocorrer também do próprio termo trabalho ser utilizado
como sinônimo de demanda. Nesse caso, a distinção é compreendida pelos atores que
estão inseridos no contexto.

 · Magia e moralidade


se define de maneira absoluta, podendo haver interferência do contexto
nessa demarcação.
Deve-se reconhecer que a umbanda está inserida e faz parte de uma
sociedade em que uma macromoral de fundamento religioso judaico-
-cristão orienta de maneira hegemônica as ações, valores e julgamentos
dos indivíduos. Apesar disso, alguns aspectos dessa moral hegemônica são
transgredidos, negociados, flexibilizados, transformados ou substituídos
pelos agentes no momento em que tentam resolver certas aflições por
meio do recurso mágico-religioso. Por isso, as intervenções na realidade
que podem ser feitas pelos trabalhos trazem à discussão inúmeros temas
relativos à moral, como, por exemplo, o livre-arbítrio, o bem ao próximo,
o amor como um dom, entre outros.
Apresentaremos um exemplo a partir do qual a discussão pode ser
iniciada, quando Sofia,7 uma das clientes do terreiro de umbanda São
Jorge Guerreiro, na cidade de Limoeiro, sendo naquele momento univer-
sitária, mas já tendo passado certo tempo num convento – experiência da
qual não se despiu por completo –, sentiu algum incômodo ao justificar
sua decisão de realizar um trabalho de amor:

Porque, muitas vezes, talvez não seja nem correto, mas a gente quer tanto
uma pessoa que por isso as pessoas recorrem a esses meios na tentativa
de trazer a pessoa para perto da gente. Não sei nem se isso é bom. Não sei
se seria bom influenciar as pessoas usando outros meios; já que a pessoa
não ama, por que a gente usaria métodos, outros métodos, para trazê-la
e para fazer com que essa pessoa fique do meu lado? (Diálogo realizado
em julho de 2005.)

Vemos que Sofia, em sua fala, suscita para si mesma algumas inter-
rogações do tipo bom e mau, quando diz “Não sei nem se isso é bom”, e
certo ou errado, ao dizer que “talvez não seja nem correto”. Essas questões
lhe trouxeram dúvidas que podem ser traduzidas nas perguntas: impe-
dir ou não a liberdade de escolha do outro? Tenho esse direito? É certo
fazer isso? Em que valores posso me basear para tomar essa decisão?

7 Para preservar a identidade da entrevistada, visto que ela solicitou um trabalho de


amor, logicamente dirigido a outra pessoa, foi usado o nome Sofia, que é fictício.

Kelson Gérison Oliveira Chaves e Marcos Alexandre de Souza Queiroz · 


Essas dúvidas, ressalte-se, não a impediram de realizar o trabalho, tal-
vez porque ela via nessa realização uma possibilidade de dar fim ao seu
infortúnio individual.
Esse conflito inicial de Sofia é um mote frutífero para se repensar
grande parte das ideias teóricas acerca do tema da moralidade na prática
de magia. Numa vasta literatura sociológica e antropológica de embasa-
mento durkheimiano, por exemplo, é corriqueiro nos depararmos com
um “preconceito teológico” que liga os atos mágico-religiosos à amora-
lidade e à imoralidade. Conforme pensa Georges Gurvitch, a magia não é
avessa à moralidade, é antes uma afirmação do desejo e do diverso ante a
moralidade tradicional estabelecida. Não se tratando da clássica oposição
do individual em relação ao social, argumento também corriqueiro na
literatura anteriormente citada, representaria antes um princípio dis-
tinto: uma moralidade de autonomia diante da moral hegemônica nesse
mundo social.8
Talvez a ideia de uma “moral de autonomia” diante de uma moral tra-
dicional peque por excesso de pureza, pois, na própria fala de Sofia, citada
anteriormente, vê-se o quanto a cliente não estava convicta se sua ação
era ou não correta, o que a fazia balançar entre a ação tida previamente
como a certa e a nova opção que se apresentava, tendo o desejo como
um imperativo. A hesitação de Sofia no uso da primeira ou da terceira
pessoa também revela o conflito, que ora assume sua atitude, ora busca
se esquivar em um discurso distanciado: “Porque muitas vezes, talvez
não seja nem correto, mas a gente quer tanto uma pessoa que por isso
as pessoas recorrem a esses meios na tentativa de trazer a pessoa para
perto da gente.” De qualquer modo, a ideia de Georges Gurvitch serve de
sugestão para nos lembrar do trânsito entre modelos de moral presentes
na sociedade. É entre eles que Sofia hesita.
Como se vê, alguns trabalhos da umbanda acabam colocando frente
a frente modelos de moral diferentes para discutir, dialogar, repelir-se ou
adaptar-se. Mesmo existindo em nossa sociedade diversos “programas”
de moral, na medida em que se aciona aquele que não seja o hegemônico
entra-se de imediato no campo da transgressão, como no caso de Sofia.

8 GURVITCH, Georges. A vocação atual da sociologia, vol.2. Lisboa: Cosmos/Martins


Fontes, 1968.

 · Magia e moralidade


Se as normas falam de como se deve agir é porque, ao menos teo-
ricamente, existe a possibilidade de não agir daquele modo. Assim, na
busca pela felicidade e bem-estar, Sofia transgride os próprios valores,
que estavam de acordo com a moral hegemônica. O desejo a fez pensar
e repensar suas concepções preestabelecidas. Quando perguntada sobre
o que sabia dos terreiros de umbanda, antes que começasse a frequentar
um deles, ela respondeu:

Eu conhecia como macumba9 e a visão que eu tinha era que lá se pra-


ticava o mal, que ia lá para fazer determinados trabalhos para prejudicar
as pessoas, e que não havia rituais mais... digamos assim, mais sagrados.
Entrevistador: Rituais sagrados? Como assim?
Tipo para cultuar entidades… E eu não sabia também que dentro daquele
ambiente, daquele contexto, havia também as questões culturais. Então
a visão que eu tinha era mais dessa prática do mal.
Entrevistador: Como assim, questões culturais?
Não há as misturas dos elementos afros, da dança, das entidades, dos
pretos velhos que são vindos dos escravos, herdados dos escravos?
Entrevistador: Se você achava que lá se praticava o mal, o que a levou
até lá?
Primeiro eu tive medo, muito medo, como a visão que eu tinha era do
mal, então isso me dava medo. Mas também me dava curiosidade e me
desafiava a ver na realidade como eram as práticas.
Entrevistador: Foi isso?
A princípio, sim. Mas como eu estava buscando algo que me desse res-
postas, que me desse motivações, que me norteasse para o que eu es-
tava vivendo, então eu achei que seria bom também ir lá e de repente
eu pudesse descobrir ali as respostas que eu estava buscando. (Diálogo
realizado em julho de 2005).

Assim como Sofia, muitas das pessoas que vão ao terreiro sob a mesma
condição, isto é, não se considerando umbandistas e desejando apenas uma

9 O termo macumba, como se pode compreender da fala de Sofia, é uma maneira


pejorativa de se falar das religiões afro-brasileiras. Trata-se também de uma expressão
generalista, pois trata todas essas religiões como se fossem uma coisa só, ignorando um
dos pontos que mais as caracterizam, que é a sua diversidade.

Kelson Gérison Oliveira Chaves e Marcos Alexandre de Souza Queiroz · 


solução imediata para uma situação já de desespero, são tomadas por um
ecletismo religioso que, às vezes, gera um conflito interno relativo aos pre-
ceitos morais da própria pertença religiosa, ou mesmo da moral hegemônica
que fora socialmente aprendida. Na tentativa de se justificar, Sofia também
opera com os preconceitos difundidos sobre religião e magia de forma
separada e hierarquizada. Religião como algo legítimo, associado ao bem
coletivo, e magia como ilegítima, vista como expressão egoísta de desejos
individuais. Essa dicotomia instaura modelos de normalidade e define que
práticas são consideradas corretas. Tal divisão taxativa serve apenas para
manter uma estrutura pré-existente.10 Ou seja, a hesitação de Sofia surge
quando decide ultrapassar os limites morais aprendidos ao longo da vida
sem querer, ao mesmo instante, distanciar-se daquilo que lhe é familiar.
Nesse conflito existencial, Sofia parece corroborar com a ideia de que
essa prática não seria correta, mas também acredita que pode ser sua úl-
tima opção de conseguir as respostas desejadas. Quando interpelada por
uma pessoa que contingencialmente soube do evento, ela demonstra certa
necessidade de conectar de forma lógica teoria e prática. A insegurança
de como discorrer de forma objetivada a faz optar por uma argumenta-
ção que não justifica a busca por esse local (o terreiro) e por esse meio de
intervenção (o trabalho mágico-religioso). As ditas questões culturais
são acionadas na tentativa de acomodar uma visão antiga e assumir uma
nova postura mais compreensiva desse contexto mágico-religioso. A
preocupação maior é consigo mesma, pois é desconsiderada a opinião
geral que os religiosos possuem sobre esse tipo de trabalho.
É possível compreender também, ainda sobre a fala de Sofia, que suas
dúvidas relativas à moralidade perpassam essencialmente o ponto onde
se sabe que fazer o trabalho é interferir no curso natural das coisas, ma-
nipulando o sentimento alheio. A questão é a da liberdade. Isto é muito
perceptível quando ela diz: “Não sei se seria bom influenciar as pessoas
usando outros meios, já que a pessoa não ama por que a gente usaria
métodos (…)?” O ideal de amor gratuito e a liberdade de escolha, a noção
de livre-arbítrio, pesam muito no momento da autoanálise. Quando o
amor é conseguido ao se excluir a liberdade de escolha, seriam as duas
instâncias adversárias?

10 DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, 1976.

 · Magia e moralidade


O bem de si e o bem do outro

É comum, obviamente, que no dia a dia algumas concepções muito pes-


soais confrontem as normas sociais mais hegemônicas relativas à mora-
lidade. Além disso, a subjetividade, mais especificamente o modo como
se encara o sofrimento do “outro”, e o próprio sofrimento afetivo são
elementos influenciadores nas decisões pessoais. No caso da realização
de trabalhos de amor, isso é ainda mais verdadeiro. E ambas as esferas, da
subjetividade das aflições cotidianas por um lado, e dos valores morais por
outro, interpenetram-se e decisivamente se influenciam de forma mútua.
Assim se deu com Ivna,11 mais uma das pessoas que adentraram o
terreiro umbandista em busca de destruir suas angústias amorosas, que
a seguir nos conta sobre sua experiência no terreiro de Pai Gledson:

Entrevistador: Como você chegou, primeiramente, ao terreiro de Gledson?


Eu cheguei através do irmão dele. A gente trabalhava na campanha [elei-
toral] e eu peguei amizade com ele e comecei a contar as coisas da minha
vida. De princípio eu já estava sofrendo por causa dessa pessoa, certo? Aí
Paulinho [irmão de Pai Gledson] viu assim meu jeito… aí de princípio ele
não queria me dizer aonde ele frequentava pelo fato assim… de eu criticar
ou alguma coisa do tipo, mas ele não sabia que eu já frequentava outros…
outros lugares [terreiros]. Aí foi aonde ele me falou: Ivna, quero te levar
num lugar… não sei o quê… pronto. Aí foi através dele que eu vim para cá.
A princípio eu vim conversar com Gledson, antes de frequentar a gira.
Conversei com ele e tudo mais, e gostei. Só na conversa ele me colocou
para cima. A conversa foi muito boa, cheguei aqui muito pesada, muito
negativa mesmo, estava sofrendo mesmo! Aí só na conversa Gledson me
colocou para cima. Aí foi aonde eu senti firmeza, aí foi aonde eu vim. No
outro dia eu vim para a gira. Eu fui muito bem-recebida, gostei muito,
inclusive achei até um pouco diferente dos outros lugares que eu fre-
quentei, os caboclos e tudo mais. E gostei e até hoje estou. Graças a Deus!
(Diálogo realizado em janeiro de 2009.)
(…)

11 Novamente para preservar a identidade da entrevistada, usamos um nome fictício.

Kelson Gérison Oliveira Chaves e Marcos Alexandre de Souza Queiroz · 


Entrevistador: E quando você veio conversar com Gledson, antes de vir
para a gira, era sobre o quê?
Era sobre o que eu estava sofrendo. Era um problema amoroso. Eu gos-
tava… eu gosto muito e não queria desistir dele, estava assim é… estava
uma coisa difícil de lidar, eu não estava conseguindo fazer nada! As coisas
da minha vida eu estava deixando em último lugar. Só ele! Estava me
atrapalhando em tudo! E não estava conseguindo me alimentar direito,
aquela coisa toda. Aí quando eu cheguei aqui, Gledson me deu uma luz…
Entrevistador: E você teve conforto só por conta das conversas, ou, de
alguma forma, por meio da umbanda, você tentou “ajeitar” os problemas
que você tinha?
Ótimo! A conversa me ajudou muito, muito mesmo, como eu falei, né?
A princípio eu conversei primeiro com ele para poder assistir uma gira.
Aí quando eu comecei a assistir a gira, lógico que, de princípio, a gente
acha tudo esquisito. Mas depois eu fui conhecendo. Aí, às vezes quando
eu vinha para a gira, assim, eu vinha muito negativa, muito pesada, mas
quando eu saía parecia assim que não tinha acontecido nada! Sabe as-
sim: parecia que não tinha acontecido nada comigo, nada negativo tinha
acontecido… sabe? Eu chegava pesada, ave Maria, saía flutuando… Tudo
bem, depende muito da positividade da gente. Depois que a gente chega,
cada caboclo vai passando, e depende do que cada caboclo venha fazer,
cada problema, cada propósito da pessoa. E eu saía… flutuando… Sempre
que eu vinha para a gira, o meu objetivo era esse problema… amoroso.
Eu gostava… gosto duma pessoa, não quero perder ele por nada nesse
mundo, o que eu sinto por ele é maior do que eu… do que tudo! Minha
cabeça pedia uma coisa, mas meu coração queria outra… e a gente não
pode ir contra o coração não. Quando o coração quer, manda e manda
mesmo! Pelo menos assim, eu não consegui controlar, entendeu? É tanto
que até hoje eu estou brigando por isso, estou lutando… e muita coisa
eu já consegui… porque, se não fosse através daqui [do terreiro], eu acho
que eu não estava mais com ele. Se eu não estivesse frequentando aqui
pode ter certeza que eu não estava mais com ele. (Diálogo realizado em
janeiro de 2009.)

Ao dizer essas palavras, Ivna caracteriza uma “paixão amorosa”


acompanhada de sofrimento, em termos de modelos culturais, como um

 · Magia e moralidade


sentimento incontrolável, que tira o apetite, a atenção, e traz o esqueci-
mento de si mesmo, ocupando-se somente do ser amado. A ideia de posse
desse ser, a qualquer esforço, é permanente; mas a existência coletiva de
tais realidades não funciona como uma máscara de ferro em que todas as
maneiras de se expressar dos sujeitos se nivelam, ao contrário.
A conversa com Ivna, transcrita anteriormente, demonstra veemente
rejeição de uma moral que, nas palavras de Nietzsche, é vista como uma
“moral dos ressentidos”. Em suma: moral racionalista, avessa às paixões,
aos desejos e às vontades fortes que fazem os corpos reféns dos instin-
tos, e que é entendida como má pelo viés que lhe é contrário – ou, para
Nietzsche, que a teme.12 A moral judaico-cristã, em sua valorização da
“sobriedade” e da “castidade”, designadas como “virtudes morais”, e da
“temperança” e “prudência”, alçadas ao patamar das “virtudes cardeais”,
das quais as anteriores dependeriam, rejeita essa maneira passional e
intervencionista de conduta.
Ivna também fez um trabalho de amor com Pai Gledson. Contudo, ela
elaborou respostas diferentes das de Sofia para o tema da intervenção no
livre-arbítrio, ao aprisionamento da liberdade dos sentimentos alheios. O
tema surgiu por acaso. Durante uma entrevista, a todo momento ela falava
de seu problema amoroso e da tentativa de resolvê-lo no terreiro, por meio
da ajuda de Pombajira. Em nenhum instante, porém, ela pronunciava a
expressão trabalho de amor, que sabíamos ser uma categoria consagrada
entre os pais e mães de santo que colaboravam com esta pesquisa. Então,
foi preciso indagá-la:

Entrevistador: Alguma hora você chama isso [que ela vinha contando] de
trabalho de amor?
De trabalho…?
Entrevistador: Sim, fazer um trabalho de amor…?

Foi então que ela ficou indignada:

Trabalho? Não digo bem trabaaalho… porque assim, olhe: muita gente já
chegou para mim, algumas pessoas assim próximas, já chegou para mim

12 NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Kelson Gérison Oliveira Chaves e Marcos Alexandre de Souza Queiroz · 


e disse assim: “Eu não seria capaz de estar querendo conseguir alguma
coisa através disso!” Mas eu acho, sinceramente, a minha opinião, quando
se gosta e quer uma pessoa de verdade, quando é um sentimento puro,
eu não acho que seja errado! Eu não estou matando, não estou roubando,
né? Eu não estou prejudicando ninguém! O que eu quero é a pessoa que eu
gosto do meu lado, e eu não vou maltratar, não vou fazer ele sofrer, pelo
contrário, se eu gosto dele vou fazer ele feliz, entendeu? Eu não acho que
seja assim, trabaaalho, simplesmente trabalho! Porque eu estou aqui por
amor, porque eu gosto muito, através do meu coração, meu coração está
pedindo, certo? E se eu sei que isso aqui pode me dar… (Diálogo realizado
em janeiro de 2009.)

Fica claro que, apesar de estar inserida no meio umbandista como


religiosa, Ivna demonstra ainda carregar certo preconceito com a ideia
de trabalho e sua complexidade. Talvez, mesmo que vivenciando isso de
perto, ela não tenha abandonado por completo as concepções que en-
xergam os trabalhos como algo prejudicial e condenável. A diferença de
intensidade no tom, ao se referir a essa categoria, reproduz uma concepção
externa ao contexto que, além de negar a polissemia existente, condena
qualquer tentativa de intervenção na realidade por meios mágicos. E nos
terreiros essa intervenção é chamada de trabalho.
Na verdade, quase toda ação executada dentro do terreiro é chama-
da de trabalho, mas a valoração moral de cada um, se é certo ou errado
fazê-los, é que varia de acordo com a apreciação social. Uma cura, por
exemplo, é um trabalho como outro qualquer, mas qualquer esforço para
reabilitar a saúde de alguém é sempre considerado legítimo e benéfico. Já
os trabalhos de amor não possuem o mesmo status, havendo reservas em
relação à possibilidade de sua execução.
Outro aspecto diz respeito à propriedade sobre o outro. Nesse ponto,
Ivna não mostra a mesma hesitação de Sofia. Sua preocupação não se
reporta em justificar as decisões tomadas, pois não há conflito de certo
e errado em relação à sua decisão. A forma como afirma a positividade
da ação é a de quem está convencida de que esse desejo é legitimo: é um
sentimento puro. Para ela, errado é matar ou roubar. E seu modo de se
expressar coloca estes valores como verdades inquestionáveis, imutá-
veis, ao contrário da sua ação, que pode ter outras interpretações. Ainda

 · Magia e moralidade


nas palavras de Ivna, é indiscutivelmente errado maltratar. Dar amor só
pode ser certo. Agir de acordo com a moral que se tem como correta é
como se sentir agindo de concordata com o bem. Outra história é como
se determina o que será visto como o bem. Quando uma ação vai contra a
moral hegemônica é rapidamente avaliada como má, fato que gera reação
defensiva de Ivna, que ressignifica sua ação, construindo, portanto, uma
contestação ao que era de antemão moralmente visto como o bem. Para
ela, dar amor, mesmo que o outro não tenha a opção de escolher receber
esse amor, é correto, e inquestionável.
As regras e os valores presentes na cultura, uma vez internalizados,
inevitavelmente inclinam os atores a agir e pensar dentro de alguns li-
mites, de modo que ninguém toma decisões com embasamento no nada,
mas sim com o suporte de normas e orientações socialmente aprendidas.
Apesar de não termos a toda hora consciência de quais valores estão nos
guiando no instante das decisões, a condição sociocultural regula nossas
decisões mais do que gostaríamos. Dentro mesmo dessa condição, entre-
tanto, existem inumeráveis opções de escolha à disposição de cada indi-
víduo. A maneira de encarar essas opções é suscetível à nossa experiência
individual, que termina de dar feição à nossa sensibilidade e subjetividade.
Sob este novo prisma, perceba-se que a fala de Ivna não vai, em mo-
mento algum, contra outro discurso dominante: o de que o amor é o bem
maior. Ao mesmo tempo, porém, revela uma concepção na qual o fim,
isto é, seu objeto de amor, justifica o meio utilizado para alcançá-lo, o
que comumente vai contra o discurso moral dominante. A vida moral é
imensamente flexível e de uma mobilidade desconcertante para quem
idealiza que uma única moralidade possa ou deva ser aplicada a todas as
situações. Além disso, como ensina Gurvitch, enquanto a experiência
jurídica e suas leis são inteiramente coletivas, “a realidade e a experiência
morais podem ser tanto individuais como coletivas”, sendo por mais das
vezes comum que o vetor individual seja mais fortemente acentuado.13
O ato mágico-religioso buscado por Ivna carrega consigo o desejo de
dominar um sentimento de outrem, de se assenhorear de seu cotidiano,
o que desestabiliza a moral hegemônica, no que diz respeito à noção de
liberdade e livre-arbítrio, como única forma de enxergar o mundo das

13 GURVITCH, op.cit., p.222.

Kelson Gérison Oliveira Chaves e Marcos Alexandre de Souza Queiroz · 


ações corretas. A leitura do problema vivido é feita por meio de valores
adquiridos na cultura, mas em diálogo com seus sentimentos pessoais:
tristezas, carências, entre outras instâncias. Quando ela falava, o fazia
bastante emocionada, demonstrando que seu amor e intenção de fazer
o amado feliz tornavam, do ponto de vista de sua moral, a intervenção
mágico-religiosa na realidade um ato absolutamente correto, pois, se-
gundo sua consideração, era para o bem do outro também. Nessa situação,
Ivna revisa os valores tradicionais e, numa relação dialógica com o dis-
curso sobre o amor presente na cultura, cria os próprios, que lhe sirvam
sem deixá-la com sentimento de culpa no atual contexto de vida. Desse
modo, o caráter coletivo e comumente coercitivo da moral dominante
não se impôs como algo asfixiante à sua individualidade.
Ante esse acontecimento, diante desse modo de pensar, foi que o
termo trabalho lhe pareceu muito ofensivo, conforme sua tonalidade de
voz e sua argumentação, ao reafirmar com veemência: “Eu acho, eu acho
isso, não é simplesmente um trabalho!”
Acreditamos que o termo trabalho lhe causou tanta indignação por-
que pode lhe ter parecido um vocábulo muito técnico, e isso acarretou
duas coisas: primeiramente, sugeria que sua ação tinha consequências
dominadoras, de aprisionamento sentimental, e isso significava eluci-
dar o ponto crucial e moralmente polêmico e conflitivo, sempre motivo
de julgamentos alheios; ademais, o caráter aparentemente técnico do
vocábulo carrega consigo uma frieza que acabava deixando ausente toda
a carga amorosa e emocional que a ação dela implicava, toda a realidade
que sentia individualmente. Para ela, não se tratava de executar algo, e
sim de conquistar um amor. Um amor que, com certeza, no coração dela,
era lindo, mas que precisava de uma ajuda da entidade Pombajira para
se concretizar. Além dos clientes, tais como Sofia e Ivna, todos os pais e
mães de santo também discorriam sobre o assunto. Vejamos, por exemplo,
uma fala de Pai Salviano, quando explicava por que não gosta muito de
realizar determinados tipos de trabalhos de amor:

Quando é um amor que acaba… porque assim como começou também


tem um fim. Aí eu não gosto de lutar por isso aí não. Eu desanimo logo,
porque todo mundo tem o direito de começar e de acabar a hora que qui-
ser. Começar a hora que quiser e acabar a hora que quiser. Agora quando

 · Magia e moralidade


é um amor, uma união de um casal que foi através de demanda aquela
separação, uma demanda para destruir, aí eu trabalho com gosto, pro-
curo ajeitar e resolver aquele casal, porque a gente pensa nas crianças,
na família, numa luta de muitos anos do casal. (Diálogo realizado em
junho de 2007.)

Fica evidente que, entre outras questões, Pai Salviano valoriza em


seu julgamento o livre-arbítrio como fundamental na decisão de fazer
ou não certos trabalhos de amor. O único caso de exceção é quando ter-
ceiros tentam prejudicar um casal, destruí-lo com uma demanda. Há
uma espécie de proteção ao casamento e à família, símbolos socialmente
vistos como mantenedores da ordem e do bem. Um trabalho dessa na-
tureza pode ser executado desde que sirva a esse modelo, isso imprime
a legitimidade necessária ao seu desempenho. Se Pai Salviano tem essa
concepção a respeito dos trabalhos de amor, Dona Luiza tem ideias pa-
recidas, mas levanta outros problemas e questionamentos, como se vê no
diálogo transcrito logo na sequência:

Entrevistador: A senhora disse uma vez que não recomenda muito os


trabalhos de amor, no sentido de que acha que é um amor forçado…
É! O amor forçado eu acho que não dá… não serve, né?! Então é assim,
você, vamos supor: você tem sua mulher. Então aí vocês por um motivo
às vezes até muito bobo vocês dois brigam e se afastam, não é? Aí estão os
dois naquele negócio: não, não vou pedir desculpas a Fulano porque foi
Fulano o culpado. Aí a mulher diz: não, foi ele quem foi o culpado. E fica
naquela dúvida medonha! Nesse caso, se a pessoa chegar a mim e falar:
“Dona Luiza, eu quero que a senhora… (longa pausa) por intermédio dos
guias faça alguma coisa para Fulano ter coragem de se chegar a mim.”
Aí sim, eu faço. Mas negócio assim, só porque você quer a dona ali! E a
dona não lhe quer! Para mim, isso não… eu acho muito errado. Assim,
cada um faça do seu jeito, não tenho nada contra. Mas para eu fazer…
acho muito esquisito…
Entrevistador: E os que a senhora já fez… não fez de todo gosto, então?
De jeito nenhum! Têm pessoas que chegam a chorar! Porque você sabe que
as pessoas às vezes aprendem tanto a conviver com o outro que fica difícil
de conviver distante. Tem um caso de uma mulher, que tem 13 anos de

Kelson Gérison Oliveira Chaves e Marcos Alexandre de Souza Queiroz · 


casada, e agora estão… o marido arrumou outra pessoa. Ou se arrumou
ele e ela, ele e a criatura. E essa mulher está sofrendo muito (…). Aí ela
tem insistido muito para eu fazer alguma coisa para que voltem as pazes,
fazerem as pazes e viverem felizes. Já essa parte assim eu acho que… logo
que ela quer porque ela gosta daquele outro ainda muito, não sabe viver
sem aquele, não aprendeu a viver sem aquele outro, né? Assim, nesses
casos eu tento ajudar aos dois se reaproximar novamente. Mas em outros
casos de casal… vamos dizer uma mulher, uma mulher da vida livre, e
quer o marido daquela, de outra mulher acolá… por dinheiro nenhum eu
trabalho para essa pessoa! De jeito nenhum! Porque eu tenho marido e
não quero que ninguém faça isso comigo. Minhas filhas são casadas e eu
não gostaria que ninguém fizesse isso com uma filha minha também, e
eu já tenho várias coisas assim para pensar… (Diálogo realizado em junho
de 2007.)

Nessas palavras, percebe-se que o livre-arbítrio não é visto como um


valor universal e irrevogável, pois não é em toda e qualquer situação que
ele merece a mesma atenção. Se são feitos determinados tipos de traba-
lho de amor para trazer de volta um marido que se debandou, porque há
certos valores que consideram o matrimônio importante, então, neste
caso, a relevância própria do livre-arbítrio como um valor em si deixa
de importar. É outro valor moral, o matrimônio, e a questão subjetiva do
sofrimento da mulher abandonada, que passam a ser mais imperativos.
Aliás, a categoria sofrimento se mostra como grande responsável por fle-
xibilizações e negociações morais, donde também se vê o quanto as duas
esferas, da emoção e da moral, andam em diálogo. O desejo da mulher
abandonada é mais justo que o livre-arbítrio do ex-marido, isso se torna
claro quando Dona Luiza indica o status social da mulher que sofre por
amor e apresenta a dicotomia esposa/mulher de vida livre – como o que
é legítimo e ilegítimo.
Ao mesmo tempo que transgride valores tradicionais, as palavras de
Dona Luiza revelam uma moral também ortodoxa, de modo que os tra-
balhos de amor que ela concebe fazer são somente para salvar o “sagrado
matrimônio”. Quem deseja pessoas casadas não merece ajuda, mesmo
que esteja sofrendo. Quem era casado e está sofrendo pelo fim do rela-
cionamento merece. O próprio sofrimento, portanto, é também avaliado

 · Magia e moralidade


segundo critérios específicos e necessita de legitimação. E, mesmo que
seja importante e quase sempre levado em consideração, não justifica,
por si só, qualquer trabalho. Não há contradição alguma nisso tudo. O
que temos aqui é uma constante negociação entre o que se pode chamar
de “programas” de moralidade diferentes.
Em outro ponto, vê-se a decisão de não fazer trabalhos de separação
porque não gostaria que ela e suas filhas casadas fossem alvo do mesmo
veneno. Neste momento, sua consciência moral não parece pensar com
base em conceitos preestabelecidos do que seria certo ou errado, mas sim,
dentro do caso, partindo de uma reflexão comparativa: pondo-se no lugar
do outro, e tomando para si seus sentimentos. Constata-se, porém, que
pôr-se no lugar do outro antes de tomar qualquer atitude é um preceito
moral imperativo em nossa sociedade, de modo que se pode ter aí também
esse dever normativo aliado a uma visão estritamente pessoal, de quem
conhece os efeitos de um trabalho de modo diferenciado, se comparado
aos clientes, e tem demasiado amor pelos filhos e pelo marido, desejando
preservá-los de tais intervenções. Os interesses pessoais de Dona Luiza
entram em sintonia com o preceito moral e ela toma uma premissa indi-
vidualista para afirmar a norma coletiva, o que, de outra maneira, seria
moralmente errado. A definição de uma conduta correta sugere os modelos
errados. Mary Douglas diz que para estabelecer um modelo de ordem é
selecionado um conjunto limitado de elementos. Os que estão fora desse
modelo tem um infinito potencial para a padronização, pois representam
simplesmente os modelos condenáveis.14 Não é a toa que Dona Luiza acusa
o tipo de mulher para a qual não se deve executar trabalhos de amor.
Quando se depara com um conjunto de questões morais relativas aos
atos mágico-religiosos, é preciso ressaltar que se trata de um conjunto de
questões para conjuntos diferenciados de pessoas. O coletivo é repleto de
nuanças e idiossincrasias. Sendo assim, é preciso introduzir “uma ruptura
nessa ideia de que todas as pessoas sonham juntas”.15 De forma que, em
certos momentos, talvez seja mais importante pensar as identificações
individuais, ou as identificações de secções, ou de subgrupos dentro da

14 DOUGLAS, op.cit.
15 CARVALHO, José Jorge de. “A religião como sistema simbólico: Uma atualização
teórica.” Série Antropologia, n. 285. Brasília: DAN/UnB, 2000, p. 4. Disponível (on-
-line) em: http://dan.unb.br/images/doc/Serie285empdf.pdf

Kelson Gérison Oliveira Chaves e Marcos Alexandre de Souza Queiroz · 


mesma comunidade, do que a questão da estabilidade. Acompanhando
esse modo de pensar, a ideia é abandonar denominações que pressupõem
que todos os membros desses grupos ou comunidades se identificariam
individualmente, mas de um modo comum.16
Também por isso a representação do diálogo e a inserção extensa de
vozes no texto etnográfico tornam-se importantes, na medida em que
possibilitam expor a multiplicidade de significados e escolhas que envol-
vem a experiência moral de pessoas diversas com os trabalhos mágico-
-religiosos da umbanda.

Duas dimensões: controle e divergências morais

Os trabalhos de amor, indubitavelmente, são os que suscitam mais diver-


gências entre clientes e pais e mães de santo a respeito das questões mo-
rais. Os chamados trabalhos de destranca, que visam resolver problemas
de cunho financeiro, quase nunca são discutidos sob tais temáticas, e os
de cura são apresentados com certa unanimidade como atos de caridade.
Dona Luiza nos dá um exemplo da recorrência desse discurso:

Na umbanda mesmo diz: a umbanda é paz e amor e caridade. Se eu não


pratico a caridade, como é que eu vou receber uma graça dos meus es-
píritos? Porque eu, para mim, eles vêm aqui com essa missão de ajudar,
de curar. Você está desempregado… quer um emprego, um trabalho,
uma coisa, você vai pedir aquilo… então dali a gente ajuda. Tanto eu da
minha parte, eu mesmo da minha parte sem estar manifestada, ajudo
as pessoas, faço, acendo ponto para a pessoa arrumar um emprego, para
que seu caminho seja limpo… sua vida tenha prosperidade. Para mim o
que importa é você conseguir aquilo ali que você veio atrás: seu empre-
go, viver em paz, ter felicidade na sua vida. O dinheiro para mim não
importa, porque eu tenho casa, eu tenho comida, eu tenho um marido
que tem um emprego bom. A gente não vive à custa de espírito. Jamais
eu invoco um espírito meu para eu ter que ganhar o dinheiro através da
minha entidade. (Diálogo realizado em junho de 2007.)

16 Idem.

 · Magia e moralidade


Segundo Lísias Negrão, que desenvolveu pesquisas em São Paulo, foi
pela influência kardecista que a umbanda, em sua formação, se impregnou
do ideal do amor cristão desinteressado, caridoso, tendo a realização de
curas se tornado o ponto central do valor da caridade umbandista. Para o
mesmo autor, porém, essa prática se choca profundamente com a realiza-
ção de demandas, que visam causar danos a outrem, ou com a cobrança por
outros serviços mágico-religiosos comuns dentro da religião.17 A demanda,
considerada “magia negra”, é uma das categorias de explicação dos males
e aflições que afetam os indivíduos. Qualquer doença pode ter sido uma
vingança de um inimigo que encomendou uma demanda a outro pai ou
mãe de santo. A perda do emprego pode também ter sido uma coisa-feita,
como às vezes as demandas são chamadas, por alguém que sente inveja de
uma pessoa e quis trancar seus caminhos. O sumiço do amor e da paixão
do ser amado pode ter sido obra de outra pessoa que também o deseja.
Nenhum dos pais e mães de santo que fizeram parte desta pesquisa
disse realizar demandas, todos tendo se posicionando inclusive contra.
Vários dos problemas que estes resolvem são, entretanto, diagnosticados
como causados pelas mesmas. A história se dá, então, como expressou
Mundicarmo Ferretti: a chamada “magia negra” funcionando sempre
como uma categoria de acusação, e nunca de autodefinição.18 Ninguém,
entre os sujeitos pesquisados, quer associar à sua identidade moral um
ato desse nível, porque este é associado ao mal. É nesse ponto que sur-
ge, porém, outra encruzilhada moral, que é a da agência das entidades
independentemente da vontade e caráter do pai ou mãe de santo. Elas
têm moralidade autônoma e, conforme revela a fala da cambona19 de Pai
Gledson, conhecida por Cecília, a moralidade delas, das entidades, pode
estar em desacordo com a do próprio pai de santo:

A Pombajira, chega uma pessoa aqui: “Eu quero Fulano.” Ela não quer
nem saber se é casado, o que é, o que não é (…). Pombajira não está nem
aí não. Ela quer saber se está ganhando o dela! (Diálogo realizado em
junho de 2005.)

17 NEGRÃO, op.cit.
18 FERRETTI, op.cit.
19 Cambono, cambone ou cambona designa a pessoa que auxilia o pai de santo quan-
do este está inconsciente, sob o transe de possessão.

Kelson Gérison Oliveira Chaves e Marcos Alexandre de Souza Queiroz · 


E o que a entidade ganha? As oferendas. Em troca delas é que se age.
Para a Pombajira, em relação ao amor, não existem proibições. Por isso é
que todos acabam chegando até ela. Se for para destruir um casamento, o
pai ou mãe de santo é quem se opõe, porque, no que depender dela, tudo
é permitido. Reginaldo Prandi faz interessante observação acerca desse
radical caráter libertário da Pombajira:

Para a [P]ombajira e seus companheiros exus, qualquer desejo pode ser


atendido. Por meio dos pedidos feitos às pombajiras, podemos entender
algo das aspirações e frustrações de parcelas da população que estão de
certo modo distantes de um código de ética e moralidade embasado em
valores da tradição ocidental cristã. O culto dá acesso às dimensões mais
próximas do mundo da natureza, dos instintos, das pulsões sexuais, das
aspirações e desejos inconfessos. Revela esse lado “menos nobre” da
concepção de mundo e de agir no mundo. Umbanda e candomblé são
religiões que aceitam o mundo como ele é e ensinam que cada um deve
lutar para realizar seus desejos. Por isso, com frequência são vistas como
liberadoras. Não se crê no pecado nem em premiação ou punição após a
morte. A vida é boa e deve ser levada com prazer e alegria. Nessa busca da
realização dos anseios humanos mais íntimos, exus e pombajiras reforçam
sem dúvida uma importante valorização da intimidade, às vezes obscura,
de cada um de nós, pois para os exus e pombajiras não há desejo ilegítimo
nem aspiração inalcançável nem fantasia reprovável.20

Não obstante terem moralidade própria, as entidades não têm liberda-


de para fazer tudo o que quiserem. Sua moral estará em constante diálogo
e conflito com a do médium. O que é o “exu batizado”, senão um exu
um pouco mais condicionado aos preceitos judaico-cristãos do próprio
médium que o doutrinou? É preciso destacar esse elemento de contraste
entre o médium e suas entidades.
O médium comumente evoca uma retórica de diferenciação da en-
tidade incorporada, o que também visa fortalecer a veracidade daquele

20 PRANDI, Reginaldo. “Coração de pombagira: Espírito de mulher, esse exu feminino


cultuado na quimbanda é usado para solucionar problemas relacionados ao amor e à
sexualidade.” Folha de S.Paulo, Mais, 2008.

 · Magia e moralidade


fenômeno. A forma como se dá a relação com os orixás é diferente de como
se dá com as entidades. Neste caso, a construção da personalidade da
pessoa se estabelece no espelhamento diante da imagem da divindade.
Já em relação aos espíritos umbandistas, eles são pensados como sujeitos
autônomos, mais como amigos que uma mera expressão da personalidade
do médium. Por isso, as entidades se manifestam com tendências morais
divergentes das do médium e, às escondidas, executam contravenções às
normas do terreiro.21 Isso pode ocorrer quando as entidades encontram-
-se incorporadas, ao assumirem o controle da consciência e o corpo do
cavalo, negociam por conta própria com o cliente, sem que a cambona
perceba. Além disso, elas também podem agir como força espiritual,
pois na cosmologia umbandista as entidades não existem apenas quando
incorporadas: elas expressam agência permanente e podem assumir ou
serem responsabilizadas por interferir na vida das pessoas mesmo quando
não incorporadas.
Um problema que se coloca é o da alteração mnemônica causada pelo
transe de possessão, isto é, a perda de consciência durante a incorporação,
o que teoricamente daria total liberdade de ação à entidade que ocupa
seu “cavalo” (o médium). Para resolver esse impasse é que a cambona
ou cambono, que auxilia o médium quando atuado, tem de estar sempre
presente no instante das consultas, fiscalizando se o cliente não irá pedir
à entidade alguma coisa que o pai ou mãe de santo não se permita fazer.
A esse respeito, Pai Salviano contou que certa vez chegou ao terreiro
um cliente com todo um material comprado para se realizar um trabalho.
Segundo o cliente, o material foi indicado por Pombajira Maria Padilha.
Mas esta consulta, por algum motivo, a cambona deixou escapar. Sen-
do um conhecedor dos meandros da tradição mágico-religiosa afro-
-brasileira, que comporta um saber fazer próprio, extenso e passível de
identificação,22 Pai Salviano contou que achou o material meio “suspeito”.
Por isso, advertiu o tal cliente de que só iria se preparar para incorporar

21 QUEIROZ, Marcos Alexandre de Souza. “Dos saberes das bruxas: Relações entre
feminino e esquerda na jurema.” In: Assunção, Luiz (org.). Da minha folha: Múltiplos
olhares sobre as religiões afro-brasileiras. São Paulo: Arché, 2012, pp.151-189.
22 CHAVES, Kelson Gérison Oliveira. “Umbanda: saberes e tradição mágico-religio-
sa.” In: Assunção, Luiz (org.). Da minha folha: Múltiplos olhares sobre as religiões afro-
-brasileiras. São Paulo: Arché, 2012, pp.109-149.

Kelson Gérison Oliveira Chaves e Marcos Alexandre de Souza Queiroz · 


a Pombajira Maria Padilha quando ele expusesse para qual trabalho, sua
finalidade exata, destinava-se aquele material. Com isso Pai Salviano
evitava a possibilidade da realização de qualquer tipo de trabalho contra
a própria vontade.
Várias entidades transgridem os valores morais dominantes na so-
ciedade, o que não as torna menos poderosas. O caso da entidade Zé
Malandro, muito querida no terreiro de Pai Gledson, é exemplar. Esta
entidade, como o valor semântico de seu nome sugere, não possui com-
portamento aprovado pelos padrões morais e sociais de nossa sociedade,
sendo um sujeito “deslocado das regras formais”.23 Falando arrastado e se
utilizando de gírias, anda de forma sinuosa e não se limita a pedir cachaça
ou cerveja, comum a muitas entidades, mas também substâncias ilícitas,
como o próprio Pai Gledson narra:

Esse Zé Malandro é o seguinte: têm pedras [terreiros] por aí, não vou
dizer aqui, mas têm pedras [terreiros] que ele usa realmente o negócio,
está entendendo? Quer dizer, ele é mais esse tipo de coisa assim… Mas
têm terreiros que preservam. Ele chega e pede, é só não dar. Porque fica
ruim, digamos, numa gira uma pessoa consumir drogas, essas coisas.
Quer dizer, está dando má influência. Só que ele vem pedindo, mas é
assim… a forma dele, o jeito dele pedir droga, pedir cocaína, pedir, va-
mos dizer, maconha, essas coisas todas (…). Ele é malandro, assim, ele
é malandro mesmo (…), no sentido assim de malandragem (…). Agora é
o seguinte: de trabalho, ele é pesado no trabalho! (Diálogo realizado em
fevereiro de 2005.)

Fica evidente que o próprio Pai Gledson, apesar de incorporar esta


entidade, não concorda com seu comportamento, o que o faz negar seus
pedidos, que são uma má influência. Luiz Assunção aponta que a um-
banda corresponde à difusão dos aspectos morais e valores dominantes
da sociedade e, ao mesmo tempo, possui um espaço que possibilita o
atravessamento desses mesmos valores.24 Essa dimensão está associada a

23 DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: Para uma sociologia do dilema


brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p.263.
24 ASSUNÇÃO, Luiz. “A transgressão no religioso: exus e mestres nos rituais de um-
banda.” Revista Anthopológicas, vol.19, n.1, 2010.

 · Magia e moralidade


valores desviantes e as entidades situadas aí vão expressar comportamento
diverso daquela ideia de conduta correta. Zé Malando é um bom exemplo
disso. Primeiramente, a sua alcunha nos alerta para a imagem de alguém
conhecido dessa maneira, a imagem de um sujeito perigoso e que abusa
da confiança alheia. De alguém em quem não se pode confiar, espera-se
de tudo. E a expressão que afirma que Zé é pesado no trabalho denota que
ele participa dessa dimensão onde valores desviantes podem se expressar.
É preciso retomar aqui a ideia de que as pessoas e as entidades não são
as mesmas, não possuem as mesmas vidas, e que por isso ambas possuem
e projetam programas de moralidades distintos. As entidades situam-se
no passado, num tempo ideal. A ética de construção delas evidencia a
importância sobre a experiência de vida que lhes dão propriedade para
aconselhar e ajudar, além de assegurar a eficácia dos seus poderes. Elas
estão num plano moral que não é o das relações entre as pessoas. Por isso,
exercitam, como bem disse José Jorge de Carvalho, uma liberação frente
a esquemas previstos. Em vida, essas entidades preferiram o questiona-
mento e a liberdade. Elas são perigosas por atravessarem valores morais
– para os religiosos, essa é a fonte de poder. Carvalho propõe enxergar
uma dimensão libertária na transgressão dessas entidades, elas repre-
sentando personagens que não se deixam cercear diante dos mecanismos
de controle social.25
Reveja-se, assim, o caso da entidade Zé Malandro, que apenas é cha-
mada de malandro em virtude do seu jeito de ser, pois, o que é aparen-
temente contraditório, Zé é um malandro que trabalha, e que é pesado
no trabalho. Ou seja: em se tratando das forças invisíveis que permeiam
o mundo, Zé Malandro é poderoso e é essa face ameaçadora e capaz de
transgredir que sustenta seu poder. Para os umbandistas, o fato de ele
pedir drogas ilícitas só sugere um princípio de realidade possível. O que
conta mais, e é mais importante, é o poder mágico-religioso, o trabalho.
Como bem exprimiu Patrícia Birman, moral e poder, na umbanda, são
duas coisas que funcionam de forma separada,26 ao contrário da concepção

25 CARVALHO, José Jorge de. “Violência e caos na experiência religiosa: A dimensão


dionisíaca dos cultos afro-brasileiros.” In: Moura, Carlos E. M. de (org.). As senhoras
do pássaro da noite: Escritos sobre a religião dos orixás V. São Paulo: Edusp/Axis Mundi,
1994.
26 BIRMAN, Patrícia. O que é umbanda. São Paulo: Abril Cultural/Brasiliense, 1985.

Kelson Gérison Oliveira Chaves e Marcos Alexandre de Souza Queiroz · 


católica, segundo a qual aqueles que têm poderes podem “obrar milagres”,
os têm por serem considerados moralmente virtuosos – de acordo com o
que esta doutrina considera virtude.
Conclui-se, assim, que a pluralidade de modos de pensar as mesmas
questões, expostas nas reflexões dos sujeitos pesquisados, fala-nos dessa
igual pluralidade de moralidades presentes na cultura. Daí decorrem as
transições entre diferentes modelos de moralidade, as negociações entre
eles, e as transgressões aos valores mais cristalizados, principais dispara-
dores de conflitos. E é em meio a conflitos, certezas, dúvidas e reflexões,
sobre os valores e as ações consideradas certas e erradas, que estes sujeitos
tentam superar suas aflições de amor cotidianas e se entregam a viver a
experiência mágico-religiosa dos trabalhos, sentindo na pele, na prática
e de forma imediata, o que aqui foi discutido de forma ponderada.

 · Magia e moralidade


Sob a ótica do feminino: raça e nação,
ressentimentos e (re)negociações na
África do Sul pós-apartheid1

L M

Introdução

Os tempos da experiência e da escrita, diferentemente vividos, informam


a construção do conhecimento antropológico. A reflexão ora proposta
segue um percurso distinto, ao trazer alguns dos resultados de duas dife-
rentes pesquisas: o projeto internacional Relations among “Race”, Sexuality
and Gender in Different Local and National Contexts,2 que contou com a par-
ticipação de cerca de cinquenta pessoas, entre professores, pesquisadores

1 Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada anteriormente como paper no
colóquio Race and Citizenship Now and Then, Princeton University, 22 e 23 de feve-
reiro de 2013.
2 Esse projeto foi concebido originalmente por Laura Moutinho, Simone Monteiro,
Cathy Cohen, Omar Ribeiro Thomaz, Rafael Diaz e Elaine Salo. A pesquisa foi desen-
volvida por nove diferentes centros de estudos e pesquisa: Universidade de São Pau-
lo (USP) (São Paulo), Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos
(Clam) do Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (Uerj) (Rio de Janeiro), Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap)
(São Paulo), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) (Rio de Janeiro), Center for Research
on Gender and Sexuality (CGRS) da San Francisco State University (SFSU) (São Fran-
cisco), Center for the Study of Race, Politics and Culture (CSRPC) (Chicago), African
Gender Institute (AGI) da University of Cape Town (UCT) (Cape Town), WITS e OUT
(Joanesburgo). A pesquisa foi realizada por Laura Moutinho (coordenação geral), Si-
mone Monteiro (coordenadora local, Rio de Janeiro), Julio Simões (coordenador local,
São Paulo), Elaine Salo (coordenadora local, Cape Town), Brigitte Bagnol (coordena-
dora local, Joanesburgo), Cathy Cohen (coordenadora local, Chicago) e Jessica Fields
e alunos de diferentes cores/raças, gênero e orientação sexual nos três
diferentes países onde a pesquisa foi realizada, e o projeto individual
de pesquisa intitulado Entre a exclusão, o reconhecimento e a negociação:
(Homos)sexualidade e raça em uma perspectiva comparada no Brasil e África
do Sul.3 São questões importantes, uma vez que informam a natureza di-
ferenciada que orientou as pesquisas realizadas. O projeto multicêntrico
internacional se concentrou nas condições materiais de vida de jovens
entre 18 e 24-26 anos, entendidas na interface entre as ideias de raça/ra-
cismo, sexualidade e gênero. Os cuidados com a saúde eram outro ponto
de fundamental importância e tiveram como foco a prevenção das DSTs/
Aids. A pesquisa foi realizada obedecendo a tempos e dinâmicas diferen-
ciadas entre fins de 2005 e 2009 no Brasil (Rio de Janeiro e São Paulo),
África do Sul (Cape Town e Joanesburgo) e EUA (São Francisco e Chicago).
Em termos metodológicos, foi definido coletivamente que cada equipe
realizaria um trabalho etnográfico em locais de sociabilidade juvenil que
agregassem os diferentes marcadores sociais da diferença componentes da
pesquisa. Em seguida, foram realizadas 24 entrevistas em profundidade
seguindo as histórias de vida de frequentadores dos espaços mapeados
e pesquisados. Por fim, foram aplicados 48 questionários em cada uma
das cidades como forma de acessar informações complementares e criar
parâmetros de controle do corpus de informações colhido na parte mais
etnográfica da pesquisa.
O fato de a coordenação da pesquisa ter sido localizada no Brasil,
bem como os diferenciais acadêmicos, nacionais e locais relativos à com-
preensão das ideias de raça/racismo, gênero, sexualidade, miscigenação,
nação e desigualdade social, foi objeto de uma primeira reflexão anterior.4
Tratou-se, de fato, de uma pesquisa na qual a conexão entre o acadêmico
e o político se mostrou porosa. Essa característica não apenas se expres-
sa nas parcerias estabelecidas com ONGs. A politização desses temas

(coordenadora local, São Francisco). O projeto contou com os financiamentos da Fun-


dação Ford e do CNPq.
3 Projeto financiado pelo Edital Gênero/SPM-CNPq, n.57/2008, processo
n.402916/2008-5 e pela bolsa de produtividade em pesquisa do CNPq, coordenado
pela professora Laura Moutinho.
4 Moutinho, Laura; Carrara, Sérgio (orgs.). “Special Section: Race and Sexuality in
Different National Contexts – Brazil and South Africa.” Sexuality Research and Social Po-
licy, vol.7, n.4, 2010b; —————. “Apresentação.” Cadernos Pagu, n.35, 2010a, pp.9-35.

 · Sob a ótica do feminino


obedeceu a profundas diferenças nacionais/regionais e de forma alguma
pode ser entendida em unívoco. Para que se tenha uma ideia, ainda que
muito ampla, em termos raciais, por exemplo, o Brasil vivia o calor do
debate sobre cotas raciais e ações afirmativas e as questões relativas aos
direitos LGBT iniciavam seu curso na agenda política. Na África do Sul, a
Black Economic Empowerment (BEE), estava em fase de implementação
(a lei foi aprovada em 2003, no governo de Thabo Mbeki) e, se alguns di-
reitos LGBT já haviam sido garantidos na Constituição (1996), o “same-sex
marriage” somente foi aprovado em 2006. No caso dos EUA, a pesquisa foi
iniciada no auge do governo de George W. Bush, época em que o trabalho
de campo foi realizado e momento em que uma série de medidas polêmi-
cas em campos diversos foi tomada. O presidente Barack Obama, eleito
em 2009, enquanto escrevíamos os relatórios finais, é tido, por sua vez,
como aquele que mais fez pela população LGBT, revertendo uma série de
políticas do governo anterior. O debate racial ganhou igualmente novos
contornos a partir da eleição do primeiro presidente negro no país. Várias
das mais urgentes questões da pauta do movimento feminista também
recebem diferentes enquadramentos legais e sociais, como o aborto (legal
na África do Sul e nos EUA e crime no Brasil), a violência doméstica e as
leis que punem atos abusivos contra as mulheres, as diferenças salariais
por gênero, raça/etnia, entre outros pontos.
Do amplo desafio de enfrentar uma pesquisa dessa natureza, gostaria
de reter a interação (nada homogênea, aliás) que realizei com os jovens
pesquisadores atuantes no projeto. Mais especificamente, com aqueles
que atuaram na equipe de Cape Town.5 Trabalhei em parceria com esse
grupo em vários momentos distintos. Os pesquisadores produziram cerca
de quarenta relatos etnográficos, 31 entrevistas – seis a mais do que o
previsto, com o objetivo de abordar experiências e trajetórias de mora-
dores de townships –, além dos 48 questionários aplicados como previsto.
Fizemos várias reuniões para discutir a adequação dos instrumentos da

5 Como dito anteriormente, a coordenação local desta pesquisa foi realizada por
Elaine Salo. Mario Ribas foi coordenador de campo do trabalho. Fizeram parte da equi-
pe de pesquisadores: Blessing Masiyakurima, Cleo de Vos, Dale Choudree, Deborah
Diedericks, Julie Aaboe, Martha Qumba e Phyllida Cok. Pedro Lopes e Marcio Zambo-
ni sistematizaram os dados etnográficos e as entrevistas em profundidade produzidas
pela equipe de Cape Town sob a orientação de Laura Moutinho.

Laura Moutinho · 


pesquisa, especialmente o roteiro das entrevistas de controle e das en-
trevistas em profundidade. Além disso, circulei o quanto possível com os
jovens pesquisadores pelos espaços de sociabilidade juvenil, não tendo
conseguido apenas realizar trabalhos nos townships, executados exclu-
sivamente por uma pesquisadora que morava no local e fora contratada
pela coordenação regional.
Nesse percurso, fiquei particularmente próxima de quatro pesqui-
sadores e com um deles, que já conhecia anteriormente e ingressou na
pesquisa a meu convite, estreitei ainda mais a amizade e a interlocução
intelectual. Nossos frequentes encontros e conversas seguiram pela se-
gunda pesquisa anteriormente mencionada, também por mim conduzida
em Cape Town. Se no projeto multicêntrico internacional coordenei a pes-
quisa vinculada ao IMS/Uerj nos papéis de recém-doutora pesquisadora
do Clam e posteriormente professora visitante, na segunda experiência me
movimentei e levantei recursos como professora concursada do Departa-
mento de Antropologia da USP. Na transição entre instituições, projetos e
cidades, incorporei à pesquisa dois estudantes do curso de ciências sociais
da USP, que venho formando desde a graduação.
No projeto Entre a exclusão, o reconhecimento e a negociação: (Homos)
sexualidade e raça em uma perspectiva comparada no Brasil e na África do Sul
dei ênfase às lacunas da investigação internacional e segui minha agenda
particular de pesquisa, retomando algumas das questões do período do
doutoramento.6 A proposta de investigação teve por objetivo geral refletir,
a partir de uma perspectiva comparada internacional, sobre a dinâmica
da construção e da vivência da homossexualidade na África do Sul e no
Brasil. O objetivo mais amplo foi analisar a maneira como as relações
entre distintos grupos raciais e étnicos vinham se configurando tanto
na África do Sul pós-apartheid quanto no Brasil pós-regime militar.7 Em

6 Ver MOUTINHO, Laura. Razão, “cor” e desejo: Uma análise comparativa sobre relaciona-
mentos afetivo-sexuais “inter-raciais” no Brasil e África do Sul. São Paulo: Editora Unesp,
2004a; —————. “‘Raça’, sexualidade e gênero na construção da identidade nacional:
Uma comparação entre Brasil e África do Sul.” Cadernos Pagu, n.23, 2004b, pp.55-88.
7 Entre os alunos vinculados a este projeto, tiveram especial destaque as seguintes
pesquisas desenvolvidas: Marcio Zamboni, Homossexualidade e geração em camadas al-
tas da cidade de São Paulo; Valéria Alves de Sousa, Raça, gênero, sexualidade e cultura no
bloco afro Ilú Obá De Min; Pedro Lopes, Negociando deficiências: Sobre identidades, sub-
jetividades e corporalidades entre pessoas com “deficiência intelectual”; Leandro Souza,

 · Sob a ótica do feminino


outras palavras, afinado com outros projetos do Núcleo de Estudos sobre
Marcadores Sociais da Diferença (Numas), da USP, todo o esforço estava
centrado em uma compreensão renovada de convenções, representações
e sociabilidades associadas a raça, etnia, sexualidade e gênero, em uma
faixa etária que havia vivido diretamente os constrangimentos legais do
período do apartheid. Nessa pesquisa, apesar da diferença de idade, segui
com a mesma rede de interlocutores. Conforme estreitamos mais e mais
os laços, diante da multiplicidade de mundos, situações e pessoas que
eles me apresentaram, resolvi conduzir entrevistas formais com alguns
deles(as) de modo tanto a refletir sobre suas experiências na pesquisa
internacional quanto a observar como eles próprios equilibravam as di-
ferenças e desigualdades relativas ao gênero, à raça, à sexualidade e aos
cuidados que assumiam (ou não) para se prevenir das DSTs/Aids. Pos-
teriormente, entrevistei pesquisadores que atuaram em Chicago e, com
ajuda de Silvia Aguião, na época minha orientanda no IMS/Uerj, algumas
entrevistas foram conduzidas no Brasil.
Nesse sentido, a reflexão que ora apresento traz uma combinação
de distintas experiências. Algumas das entrevistas não conduzi direta-
mente e o resultado final somente foi possível pela estreita relação esta-
belecida nos dois projetos de pesquisa com um grupo muito particular
de pesquisadores, com quem venho estabelecendo intensas amizade e
interlocução. Além disso, este artigo8 e estas pesquisas se inscrevem no
amplo campo de investigações conhecido como marcadores sociais da
diferença. Nesta reflexão, parto do princípio de que não se pode falar em
black, white, coloured9 na África do Sul sem considerar os diferenciais de

Atores, processos e valores: Interações entre Estado e crianças e adolescentes acolhidos e


suas famílias; Renata Harumi, Emoção e empatia: Os limites do humano e do não humano na
relação entre homens e animais domésticos: as pet shops na cidade de São Paulo; Ana Paula
Silva, “O que a brasileira tem?”: Estudo sobre “cor” e sexualidade entre mulheres brasileiras
e homens estrangeiros (pós-doutorado, bolsa Fapesp).
8 Uma parte desta reflexão foi publicada como MOUTINHO, Laura; Lopes, Pedro;
Zamboni, Márcio; Ribas, Mário; Salo, Elaine. “Retóricas ambivalentes: ressentimentos
e negociações em contextos de sociabilidade juvenil em Cape Town (África do Sul).”
Cadernos Pagu, n.35, 2010.
9 Optei por manter os termos de cor/raça da forma como apareceram ao longo das
pesquisas. Com esse recurso, objetivo chamar atenção para a importância de se ob-
servar as lógicas locais, os valores e as representações que conformam a construção e
o uso dos sistemas classificatórios. Os termos raciais não serão, portanto, traduzidos.

Laura Moutinho · 


gênero, sexualidade e classe. Sigo aqui, portanto, alinhada aos estudos
e pesquisas que tratam da articulação destes diferentes marcadores.10
Adriana Piscitelli 11 abordou esse campo e traçou pioneiramente suas
linhas no Brasil, refletindo sobre o lugar dessas categorias e sua articu-
lação no pensamento feminista. A ênfase é depositada sobre a análise da
feminização da migração internacional e o modo como estas categorias
de diferenciação são importantes para dar inteligibilidade a seu objeto de
pesquisa. É interessante notar, no quadro delineado pela autora, como é
no marco do pensamento feminista e das críticas ao conceito de gênero
que as categorias de diferenciação ganham destaque. De fato, é inegável
que se a reflexão ganhou fôlego no bojo de pressões políticas do movi-
mento feminista, no qual a categoria gênero aparece como mobilizadora
das demais clivagens, esta não pode obscurecer o fato de que o que está
em jogo é um grande esforço de se entender as múltiplas maneiras como
a desigualdade e a diferença se articulam em situações marcadas por uma
estrutura de poder desigual. Se Piscitelli elaborou esse campo a partir da
perspectiva feminista, ainda estão para ser produzidas pistas sobre como

10 Ver CORREA, Mariza. “Sobre a invenção da mulata.” Cadernos Pagu, n.6-7, 1996,
pp.35-50; —————. “O mistério dos orixás e das bonecas: Raça e gênero na antropo-
logia brasileira.” Etnográfica, vol.4, n.2, 2000, pp.233-266; MCCLINTOCK, Anne.
Couro imperial: Raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas: Editora Uni-
camp, 2010; BRAH, Avtar. “Diferença, diversidade, diferenciação.” Cadernos Pagu,
n.26, 2006, pp.329-365; CRENSHAW, Kemberle. “Demarginalizing the Intersection
of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist
Theory and Antiracist Politics.” University of Chicago Legal Forum, n.140, 1989, pp.139–
167; —————. “Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence
against Women of Color.” Stanford Law Review, vol.43, n.6, 1991, pp.1241–1279; PISCI-
TELLI, Adriana G. “Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de
migrantes brasileiras.” Sociedade e Cultura, vol.11, n.2, 2008, p.263-274, entre vários
outros; MOUTINHO, op.cit., 2004a e 2004b, entre outros; STOLCKE, Verena. “Sexo
está para gênero assim como raça para etnicidade?.” Estudos Afro-Asiáticos, vol.20,
1991, pp.101-119; FACCHINI, Regina; França, Isadora Lins. “De cores e de matizes: Su-
jeitos, conexões e desafios no Movimento LGBT brasileiro.” Sexualidad, Salud y Socie-
dad, vol.1, 2009, pp.33-53; FRANÇA, Isadora L. Consumindo lugares, consumindo nos lu-
gares: Homossexualidade, consumo e produção de subjetividade na cidade de São Paulo. Tese
(doutorado), IFCH/Unicamp, 2010; SIMÕES, Júlio Assis; França, Isadora Lins; Macedo,
Marcio. “Jeitos de corpo: Cor/raça, gênero, sexualidade e sociabilidade juvenil no cen-
tro de São Paulo.” Cadernos Pagu, n.35, 2010, pp.37-78.
11 PISCITELLI, op.cit.

 · Sob a ótica do feminino


a área de relações raciais12 incorporou, mesmo que parcialmente, essas
diferenciações.
Gostaria de destacar, para os fins da análise proposta, um dos eixos
mobilizados pela articulação entre diferentes clivagens como gênero, raça,
nação, sexualidade, classe. Neste ponto, o trabalho a representar uma
referência para a reflexão proposta chama-se Tributo a Vênus, escrito por
Sergio Carrara. A interseccionalidade entre esses marcadores nos Estados
nacionais tem se desenvolvido a partir de três grandes lógicas: a da repres-
são – criminaliza-se a homossexualidade, a prostituição, os casamentos
e o sexo inter-raciais; o não reconhecimento público, isto é, o confina-
mento na esfera privada e não reconhecimento público da sexualidade não
normativa – ignora-se, por exemplo, a homossexualidade, os mestiços e
suas famílias, os quilombolas e os negros após a abolição dos escravos;
e a lógica da defesa social – a ênfase, nesse caso, é na sexualidade como
algo que diz respeito à nação, à saúde publica e à espécie.13 A regulação
das uniões e do sexo inter-raciais, por exemplo, e toda a preocupação com
a pureza racial ou de sangue que a sustentava se inscreve neste campo.14

Tendo esse amplo quadro como base, a ideia é seguirmos as narrativas


de três jovens mulheres de diferentes raças e origens sociais e orientações
sexuais igualmente distintas. Acompanharemos trajetórias femininas
posicionadas de maneira complexa em campos de força sociais profun-
damente desiguais. Objetiva-se com esta reflexão colocar em perspectiva
alguns dos novos regimes de produção e de reconhecimento de sujeitos,
tema de forte interesse para uma antropologia das moralidades. Conco-
mitantemente, será dada ênfase a suas lacunas e tensões e à permanência
de formas não mais autorizadas, mas mantidas presentes de modos mais
ou menos explícitos na vida social.
As múltiplas narrativas do feminino (e seus agenciamentos) são aqui
compreendidas em uma relação espaço-temporal específica, articula-
das às novas hierarquias de poder ganhando espaço no país a partir da

12 Para uma primeira reflexão a respeito ver MOUTINHO; Carrara, op.cit., 2010a e 2010b.
13 CARRARA, Sergio. Tributo a Vênus: A luta contra a sífilis no Brasil, da passagem do
século aos anos 1940. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1996. Ver também sobre o tema
MOUTINHO; Carrara, 2010a e 2010b.
14 Ver MOUTINHO, op.cit., 2004a e 2004b.

Laura Moutinho · 


transformação concomitantemente legal, moral e ontológica,15 que foi
e vem sendo construída após o fim do regime racial e da instalação da
democracia: uma ordem moral a operar com as ideias de igualdade e
humanidades comuns.
O objetivo mais amplo da atual análise é iluminar, a partir da pers-
pectiva de gênero,16 esse amplo cenário de transformações locais, proe-
minente como exemplo, inspiração e desafio no campo contemporâneo
dos direitos humanos. Para tanto, retornarei a duas trajetórias anterior-
mente apresentadas e discutidas, Cindi e Bsy,17 observadas agora à luz
da interação estabelecida com Anne e daquela mantida por Bsy e Anne
durante a pesquisa.

Múltiplas vozes sem escuta: a “verdade” do feminino na


vocalização do sofrimento

A África do Sul do pós-apartheid traz muitas fraturas, ainda que o país seja
frequentemente citado como o que possui a “mais progressista Consti-
tuição do mundo” – tendo assombrado todos pela forma como conduziu
a reconstituição do tecido social após o regime racista autoritário. Espe-
cialmente, a partir da polêmica experiência com a Comissão de Verdade e
Reconciliação (CVR), que fez com que vítimas e algozes se encontrassem.18
A postura rumo à reconciliação do país, que acompanhou a libertação
de Nelson Mandela, encarcerado por 27 anos na prisão de Robben Island,

15 Ver MOUTINHO, Laura. “Ressentimento, dor e solidariedade: Narrativas sobre raça,


gênero e nação na ‘nova África do Sul’.” Trabalho apresentado no 33o Encontro Anual
da Anpocs, Caxambu (MG), 2009; —————. “Sobre danos, dores e reparações: The Moral
Regeneration Movement, controvérsias morais e tensões religiosas na ordem demo-
crática sul-africana.” In: Trajano Filho, Wilson (org.). Travessias antropológicas: Estudos
em contextos africanos. Brasília: ABA, 2012, pp.275-296.
16 Sobre organizações de mulheres rurais na África do Sul e no Brasil, ver BARBOSA,
Viviane de Oliveira. “Rural Women and Social Struggle in Brazil and South Africa.”
Sephys E-Magazine, vol.8, n.3, 2012.
17 Ver MOUTINHO et al., op.cit.
18 A Comissão de Verdade e Reconciliação da África do Sul se tornou uma referência
para as comissões de verdade e todos os projetos que averiguam crimes contra os di-
reitos humanos e que envolvem reconciliação, reparação e esforços de reconstrução
do tecido social.

 · Sob a ótica do feminino


em Cape Town, surpreendeu os que falavam em vingança, guerra civil,
morte e confisco das terras dos whites sul-africanos. Mesmo quando Chris
Hani, amigo de Mandela, membro do Partido Comunista e presidente do
Umkhonto we Sizwe, braço armado do Congresso Nacional Africano, foi
assassinado por um white (polonês) em 1993 e tumultos se espalharam
por várias regiões, o líder foi à televisão pedir calma, destacando que se
whites o assassinaram havia sido também a denúncia de uma mulher white
e africâner o que havia permitido a identificação e a prisão do assassino.
Vejamos algumas de suas palavras:

Esta noite eu falo com todos os sul-africanos, black e white (...) Um homem
white, cheio de preconceito e ódio, veio ao nosso país e cometeu um ato
tão abominável que agora toda a nossa nação está à beira do desastre.
Uma mulher white, de origem africânder, arriscou sua vida [nos infor-
mando] para que pudéssemos levar este assassino à justiça. (...) Somos
uma nação de luto.19

Todo um amplo processo social e ideológico transformou Nelson Man-


dela em mito: um homem, uma nação. Seu caminho e formas de nego-
ciação são os mesmos em que a nação deveria se inspirar e que deveria
seguir. Sob a legitimidade de alguém que havia sofrido as consequências
do governo autoritário racista, palavras como perdão e reconciliação, so-
frimento e verdade (em suas múltiplas acepções) ganharam novos sentidos
e usos contra outras também ressignificadas: ressentimento, remorso,
revanche e vingança. Na nova Constituição, a reconciliação é apresentada
como parte de um processo de reconhecimento (das injustiças raciais) e
de cura (das divisões do passado).20
Essa é a atmosfera envolvendo a criação da CVR. Seu foco foi a verda-
de: a localização de informações revelando os crimes praticados durante
o período do apartheid (por vítimas e perpetradores) e que expusessem
meandros do funcionamento do regime de segregação. A comissão visava
desvelar a verdade, enfrentar o passado e nesse processo reconstruir a

19 Ver o pronunciamento completo em http://www.anc.org.za/show.php?id=4304


20 Ver DERRIDA, Jacques. “O perdão, a verdade, a reconciliação: Qual gênero?.” In:
Nascimento, Evando (org.). Jacques Derrida: Pensar a desconstrução. São Paulo: Estação
Liberdade, 2005.

Laura Moutinho · 


nação. O objetivo, portanto, não era processar ou condenar judicialmente
os que cometeram crimes contra os direitos humanos, como foi feito com
os nazistas após a Segunda Guerra Mundial.21
A CVR foi criada depois de um amplo processo consultivo que envolveu
mais de cinquenta grupos, entre os quais organizações de vítimas, advo-
gados dos direitos humanos, líderes e comunidades religiosas. A força da
entidade fica evidente no ato legal que a instituiu: Promotion of National
Unity and Reconciliation Act 34, de 1995. Tratou-se, portanto, não de um
ato de vingança, mas de promoção da reconciliação e da unidade nacional.
No sentido de investigar crimes ocorridos entre 1960 e 1994, um grupo
com 17 membros ficou responsável por compor a CVR, com três comitês:
o Comitê das Violações dos Direitos Humanos, o Comitê de Reparação e
Reabilitação e o Comitê de Anistia. Nelson Mandela, então presidente da
África do Sul, apontou o arcebispo anglicano Desmond Tutu como o presi-
dente da comissão e Alex Boraine, político e pastor metodista, como vice.
As vítimas foram ouvidas publicamente, dando testemunhos das vio-
lações sofridas em frente aos seus perpetradores, que podiam solicitar
anistia da pena, caso estivessem condenados, em troca de informações
que esclarecessem os crimes. Muitas dessas audiências foram transmitidas
por rádio e pela televisão. Todo o seu formato, que combina confissão (no
sentido religioso), interrogatório legal, história oral e cura religiosa pro-
duziu um cenário no qual o país poderia expurgar seu passado, produzir
o perdão e a reconciliação.22 Um grupo amparava aqueles que testemu-
nharam. Tradutores permitiam que todos ouvissem e acompanhassem as
audiências – a África do Sul reconhece 11 línguas oficiais. O sofrimento é
nesse contexto uma categoria chave contra o racismo, na construção de
uma humanidade comum. A CVR, por meio dos testemunhos narrando as
violações contra os direitos humanos e das investigações sobre os casos,
articulava a anistia e a reparação. Desse amplo e complexo processo, que
já abordei anteriormente,23 interessa para a reflexão ora proposta reter um
importante aspecto: a arquitetura de gênero que conformou sua elaboração.

21 Ver TUTU, Desmond. No Future Without Forgiveness. Nova York: Doubedlay, 1999.
22 OBOE, Annalisa. “The TRC Women’s Hearing as Performance and Protest in the
New South Africa.” Research in Africa Literatures, vol.38, n.3, 2007, pp.60-76.
23 MOUTINHO, Laura. “Sobre danos, dores e reparações: The Moral Regeneration Mo-
vement, controvérsias morais e tensões religiosas na ordem democrática sul-africana.”

 · Sob a ótica do feminino


A CVR é um empreendimento polêmico. Dentre as críticas recebidas,
destacam-se: a ênfase nos testemunhos individuais em detrimento dos
processos mais estruturais que abordariam a construção do apartheid e da
segregação. Em outras palavras, enfrentou-se o sistema de ocultamento
promovido pelo Estado por meio de ações individuais. Outro aspecto
muito discutido se refere à ideia de “cura” por meio da fala e, portanto,
da tendência psicoteológica expressada na estrutura calcada nos tes-
temunhos. Essa estrutura operou ainda em uma formulação desigual
de gênero, no qual as mulheres raramente falaram sobre si: a experiên-
cia dos “outros” – os homens – eram o foco dos seus testemunhos. Se a
vocalização seguia esse sistema específico de comunicação na qual as
suas lutas, experiências, violências sofridas (especialmente as sexuais)
ficavam subsumidas às de seus filhos, irmãos, maridos e aos danos à
comunidade,24 a palavra “vítima” foi outro fator gerador de resistência
de ambos nesse processo. A percepção de si não era como “vítimas”, mas
como “sobreviventes”, “ativistas”, “heróis/heroínas”, “lutadores(as)”.25
As mulheres entrevistadas por Fiona Ross no trabalho anteriormente
citado se expressavam usando uma linguagem marcada pela autonomia
e pela escolha em oposição à vitimização e à passividade. Para a autora,
esteve ausente da CVR a narrativa sobre o dia a dia dos que lutaram contra
o regime de segregação, ou seja, a violência espetacularizada desviou o
olhar dos processos cotidianos de exploração, violação e de resistência.
Em 28 e 29 de julho de 1997, audiências especiais foram preparadas
para acolher testemunhos de mulheres que haviam sofrido violência se-
xual durante o período do apartheid. Como a presidente da Comissão
pela Igualdade de Gênero, Thenjiwe Mtintso, destacou na cerimônia de

In: Trajano Filho, Wilson (org.). Travessias antropológicas: Estudos em contextos africa-
nos. Brasília: ABA, 2012, pp.275-296.
24 ROSS, Fiona. “Speech and Silence: Women’s Testimony in the First Five Weeks of
Public Hearings of the South African Truth and Reconciliation Commission.” In: Das,
Veena; Kleinman, Arthur; Lock, Margareth; Ramphele, Mamphela; Reynolds, Pamela
(orgs.). Remaking a World: Violence, Social Suffering and Recovery. Berkeley: University
of California Press, 2001, pp. 250-279; Ross, Fiona. “La elaboración de uma ‘memoria
nacional’: La Comisión de Verdad y Reconciliación de Sudáfrica.” Cuadernos de Antro-
pología Social, n.24, 2006; OBOE, op.cit.
25 ROSS, Fiona. Bearing Witness: Women and the Truth and Reconciliation Commission in
South Africa. Londres: Pluto, 2003.

Laura Moutinho · 


abertura das audiências, as mulheres estavam ali para narrar suas próprias
experiências sob o apartheid e não para se apresentarem como esposas,
mães, filhas ou irmãs.26 Os testemunhos trouxeram o corpo para o centro
da narrativa: black women. Nas falas, elas narram a violência, a tortura,
o estupro, a falta de qualidade de vida. Perdas. O receio de que o estupro,
alguns continuados, as estigmatizem como prostitutas. Honra. Seus cor-
pos eram parte do território da luta masculina. Abusos. Nas audiências, o
sofrimento dos atos violentos remetem ao sofrimento de ser mulher.27 Se a
estrutura da CVR estimulava a presença da vítima, mulheres como Nom-
bango, pseudônimo de militância que significa “lutar pelo que se acre-
dita”, desafiaram a retórica do sofrimento produtora da reconciliação.28
Nesse cenário, o livro de Anjie Krog, Country of My Skull29 ocupa lugar
de fundamental importância. A jornalista e poeta africâner acompanhou
as audiências da CVR, produzindo reportagens radiofônicas sobre aquilo
a que assistia nesse cenário de dor e reparação. Além das falas, o silêncio
e os testemunhos fragmentados (principalmente os femininos quando o
foco são as próprias mulheres) são parte da experiência de narração: são
recursos de legitimação e construção dos sujeitos. O livro, baseado nessa
experiência, é dedicado “a cada vítima que traz em seus lábios um sobre-
nome africâner”. Country of My Skull não é uma unanimidade. Trata-se de
um livro polêmico e incômodo: foi festejado por Derrida30 e criticado por
outros autores como, por exemplo, Moss.31
Há algo nesse processo que ecoa a narrativa de Crapanzano.32 Em
sua polêmica análise sobre os whites sul-africanos realizada na década
de 1980, quando os protestos contra o apartheid estavam no auge, o autor
mostrou esse grupo cristalizado em um “tempo morto”: aguardando com
medo e profundo pavor um futuro inevitável. O autor os descreve como
autoindulgentes, covardes, sem consciência do “outro” ou mesmo do

26 OBOE, op.cit.
27 Idem.
28 Idem.
29 KROG, Anjie. Country of my Skull. Cape Town: Random House South Africa, 1998.
30 DERRIDA, op.cit.
31 MOSS, Laura. “‘Nice Audible Crying’: Editions, Testimonies, and ‘Country of My
Skull’.” Research in Africa Literatures, vol.37, n.4, 2006, pp.85-104.
32 CRAPANZANO, Vincent. Waiting: The Whites of South Africa. Nova York: Random
House, 1985.

 · Sob a ótica do feminino


violento processo político produzido pelo apartheid. Em certo sentido,
a CVR parece caminhar na direção de produzir justamente essa “cons-
ciência” ausente por meio de um sofrimento partilhado, mas igualmente
de uma possibilidade de reparação: seria talvez uma reversão do “tempo
morto”. A palavra correta, inclusive, talvez seja liberação (não apenas
liberdade) de todos – a nação – da estreiteza humana do apartheid.
Foi Anne, que será mais bem-apresentada adiante, quem me deu esse
livro logo que nos conhecemos. Meu primeiro olhar para a CVR não foi,
portanto, mirando a questão da justiça restaurativa ou da reconstituição
nacional. Outros amigos de diferentes raças/cores me recomendaram a
leitura, como parte de uma dieta básica de leituras. Entretanto, a forma
como o livro tocava Anne, as questões por ela levantadas, fizeram-me,
anos depois de o processo ter sido finalizado, observar a CVR e seus com-
plexos efeitos sob a ótica de uma jovem cidadã sul-africana. Mas, além
disso, na ocasião falei sobre o livro com um amigo africâner. Ele reagiu de
imediato: “Anjie Krog é louca”, disse, com ênfase. A loucura me interessou.
Lembrei-me do debate sobre o próprio apartheid como forma de loucura
coletiva.33 Essa foi claramente uma leitura em que Anne mergulhou, se
espelhou, a partir da qual revisitou sua história e de seu país e que dis-
cutiu com amigos. Nas perturbadoras páginas do trabalho de Krog há
revelações, confissões e uma conversão a uma humanidade comum. As
múltiplas vozes femininas subsumidas a uma mecânica de gênero impe-
didora de sua vocalização aparecem na narrativa da autora.
Dessa maneira, convido, então, à observação de duas cenas e a ouvir
três trajetórias.

Cena 1: diferença e exclusão não negociadas

Cindi, 22 anos, lésbica e black, criada no township de Phillipi, Cape Town,


e atualmente mora com a parceira em Khayelitsha,34 vivencia em sentido

33 Ver RIBEIRO, Fernando Rosa. Apartheid e democracia racial: South Africa and Brazil
in contrast. Tese (doutorado), Universidade de Utrecht, 1995; COETZEE, John M. “The
Mind of Apartheid: Geoffrey Cronjé, 1903.” Social Dynamics, vol. 17, n.1, 1991, pp.1-35.
34 Na África do Sul, townships são áreas urbanas, em geral com serviços básicos pre-
cários, definidas racialmente no período do apartheid como “non-white”, ou seja, a

Laura Moutinho · 


diverso o domínio de uma língua e suas chances no mercado dos afetos
e prazeres. Ela afirma que

apesar de não ter problemas com outras raças, eu não teria, por exem-
plo, uma parceira white nem indian, porque detesto falar inglês o tempo
inteiro. Eu adoro a minha língua [xhosa] e meus amigos sabem que eu
tenho limites para falar inglês.

Morar em um township com a parceira não é algo banal, pois na África


do Sul partilha-se a crença de que a homossexualidade não faz parte da
cultura negra: seria uma doença branca, com origem no capitalismo. Uma
das consequências dessa crença e da ampliação dos direitos humanos
no campo do gênero e da sexualidade foi a intensificação dos estupros
corretivos de lésbicas.
Em outro sentido, ao restringir suas opções tendo como base a lín-
gua, Cindi não se engaja em uma relação com mulheres de outra raça.
Impossível nesse ponto não evocar Cronjé – um dos principais ideólogos
do apartheid, que defendia que o convívio entre raças distintas enfraque-
ceria os sentimentos e as hierarquias raciais. Ao partilhar o cotidiano com
outros grupos raciais, os whites (ele pensa aqui nos africâneres) acabariam
por desenvolver um sentimento de igualdade – um “abastardamento”
da diferença racial (“blunting process”) que suplantaria seu sentimento
de pertencimento ao volk.35 Cronjé estava preocupado com o casamento
inter-racial e a reprodução. Seu foco eram os males da miscigenação.
Ele, sem dúvida, não estava pensando em uma relação afetivo-sexual
entre mulheres de diferentes raças. Se em parte Cronjé estava correto – o
convívio tem potencial para produzir empatia e um novo sentido de hu-
manidade –, de outra parte, entretanto, vê-se, pela forma como o sistema
de classificação racial foi rigidamente concebido (especialmente na me-
tonímica relação entre língua, tradição e etnicidade), que são inúmeras
as dificuldades de se construir e experienciar a alteridade. Essa tendência
ganha novos contornos a partir do processo ascensional das novas redes
de sociabilidade e, claro, do manejo da língua inglesa.

política de segregação estabeleceu áreas e moradias classificadas como blacks, indians


ou coloureds.
35 RIBEIRO, op.cit.; MOUTINHO, op.cit., 2004a e 2004b.

 · Sob a ótica do feminino


O relato de Cindi, que diversas vezes ao longo da entrevista afirma
seu orgulho em ser falante do xhosa, acresce a essas narrativas algumas
dimensões ainda mais concretas. Suas ponderações reafirmam a rigidez
do sistema de classificação racial sul-africano – tanto nos casos que des-
creveu quanto por sua própria forma de conceber as relações – e apontam
para algumas consequências sociais, especialmente na definição de vetos
e acessos a alguns mercados. O foco de suas reflexões remete à maneira
como é construída a preeminência da língua inglesa, a contrapelo do
discurso da igualdade e diversidade linguística. Ela diz ainda:

Whites ainda têm mais oportunidade que nós africans, por causa da língua.
Por exemplo, no ano passado eu me inscrevi na UCT [University of Cape
Town], mas não tive êxito porque o meu inglês não estava de acordo com
os padrões. Minha primeira língua é xhosa, e eu amo meu xhosa (...). Eles
não olharam para a performance acadêmica, mas para o inglês. Entende
o que eu quero dizer? Whites têm mais vantagens por causa da língua e
do dinheiro. Eles falam inglês em casa, têm internet nos seus quartos e
recursos. (...) Eles falam inglês dia e noite e, quando vão a uma entrevista,
isso não é um problema. (...) Essas pessoas têm dinheiro, eles podem ir
a hospitais particulares a qualquer hora. Podem estudar no exterior, se
quiserem. (…) Eles têm melhores oportunidades de emprego por causa da
língua e do acesso à informação. São expostos a outras coisas na infância.

O discurso de Cindi é marcado por classificação racial forte – e rígida


–, mesmo considerando o campo de possibilidades atual em contraste
com o do período do apartheid. Sua contundente e sofrida experiência de
interdição ao acesso a diversas esferas da vida social – academia, internet,
hospital, empregos – é explicada pela diferença racial e pelo domínio da
língua inglesa, que ela mesma aponta como historicamente construída.
Nesse contexto, a fluência em xhosa não funciona como senha de acesso.36
Assim, a memória de um Estado que diferencia seus cidadãos em catego-
rias de raça se articula a outras experiências vividas e apresenta a diferença

36 Ver um aprofundamento desta questão em LOPES, Pedro e Moutinho, Laura. “Uma


nação de onze línguas? Diversidade social e linguística nas novas configurações de po-
der na África do Sul.” Tomo, n.20, 2012, pp.27-58.

Laura Moutinho · 


racial como algo encopassador das diferenças de classe, escolaridade e de
oportunidades no mercado de trabalho. Em realidade, o tempo do apar-
theid se mantém vivo e atuante por meio de uma experiência de exclusão
e de humilhação, cuja base é a combinação entre raça e língua. Raça e
racismo em intersecção com gênero e sexualidade aparecem, portanto,
como ficções morais, evocando valores referentes a honra e a vergonha.37
Alguns aspectos, entretanto, precisam ser considerados. Vejamos outra
cena com diferentes personagens.

Cena 2: diferenças e exclusões negociadas

Anne, uma africâner de 29 anos que fez parte equipe da pesquisa em


Cape Town, explicita alguns dos aspectos mencionados ao dizer que a
entrevista que ela mais apreciou foi com uma mulher “urban black” de
22 anos e heterossexual como ela. Bsy nasceu em Soweto, Joanesburgo.
E afirmou que “em termos de etnicidade, eu seria Zulu, mas cresci muito
intercultural com sotho, xhosa e inglês”. A mãe é professora e “ensina em
uma escola católica” disciplinas como história e ciências sociais. O pai é
médico e Tswana de origem.
A pesquisadora notou no processo grande semelhança entre as duas
trajetórias.38 Elas vivem nos subúrbios de Cape Town, respectivamente
em Claremont e Woodstock (um bairro coloured, ou seja, mestiço), em

37 Essa articulação sem dúvida não é uma exclusividade sul-africana. O escritor Lima
Barreto, que em suas internações desejava negociar sua classificação de cor (branco
ou mulato) e profissão (escritor ou funcionário público), se sentiu “humilhado” quan-
do foi classificado como mulato: “Desses que tantas vezes manifestavam a fraqueza da
loucura mestiça – a psicose dos degenerados”, como afirma SCHWARCZ, Lilia Moritz.
“O homem da ficha antropométrica e do uniforme pandemônio: Lima Barreto e a in-
ternação de 1914.” Sociologia & Antropologia, vol.1, n.1, 2011, p.124.
38 Anne, que como disse anteriormente vem acompanhando minhas pesquisas há
anos, fez a seguinte “observação de campo”: “Nós nos demos muito bem e rimos mui-
to durante a entrevista. Em geral, as entrevistas foram confortáveis e descontraídas.”
Ela realizou três entrevistas em que deveria percorrer a “história de vida” dos entre-
vistados, seguindo um roteiro longo previamente discutido entre todos os participan-
tes deste amplo projeto. Sobre si mesma, ela fez ainda o seguinte registro: “Em termos
de renda eu provavelmente seria classe média (renda de professor de inglês), mas em
termos de histórico familiar ‘branco pobre’.” A categoria “branco pobre” (poor white)
esteve na base da construção do apartheid.

 · Sob a ótica do feminino


uma espécie de “república” com estudantes e pessoas de diferentes back-
grounds. Ambas são “muito parecidas”: gostam de livros, gostam de ler e
a entrevistada “pensa realmente” sobre o mundo. Anne afirma que elas
tinham opiniões similares. Ambas possuem um histórico familiar parecido:
Bsy vem de uma família black católica, ou seja, uma família extremamente
religiosa. A outra foi criada na Igreja Holandesa Reformada (que susten-
tou o apartheid) e atualmente é metodista. Ambas vieram de um espaço
profundamente segregado; as duas cresceram sem pai.
Anne diz que Bsy é “muito consciente”. Isso significa, entre as pessoas
com quem convivi, que elas são conscientes da forma como o racismo
se constituiu. Anne explicita e vislumbrou esse movimento em Bsy: a
necessidade de se mover para fora de – ou mesmo contra – um universo
profundamente instintivo e arraigado resumido na postura de se ver e se
perceber primeiramente como black ou white. Anne se diz preconceituosa,
pois acredita não ser possível ser sul-africano sem ser preconceituoso.
Mas elas são críticas do racismo que marcou suas trajetórias. Ambas são,
sobretudo, profundamente conscientes do código cultural ao qual estão
atreladas.
A dúvida sobre o vocabulário39 que suas famílias e os grupos de ori-
gem possuem para se expressar e pensar o mundo marca a fala dessas
moças. Foi possível entrever um novo “campo de possibilidades”,40 que
não exclui o racismo sul-africano, uma ferida aberta e desafiadora (como
vimos na cena anterior). Entretanto, o marcador classe apareceu na pes-
quisa como o grande operador da diferença entre Cindi, Anne e Bsy.
Em realidade, alguns desses jovens localizados pela investigação en-
contram um espaço “in between”, valorizando o desenvolvimento de uma
competência cultural, linguística e comportamental que os permita lidar
com a herança do apartheid, negociar com seu próprio racismo, lidar com
as diferenças e, sobretudo, percorrer distintos espaços. Há um enfrenta-
mento a ser feito e esse não é um processo simples. Anne e Bsy convivem
com jovens de outros grupos de cor, raça e etnia. O seguinte trecho da
entrevista que realizei com Anne explicita o que desejo enfatizar:

39 RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
40 VELHO, Gilberto. Subjetividade e sociedade: Uma experiência de geração. Rio de Ja-
neiro: Zahar, 1986.

Laura Moutinho · 


Ela me disse que uma vez que ela [Bsy] estava andando com seus amigos
whites, e um senhor black [an old black man] veio até ela e ele cuspiu aos
pés dela, porque ela estava andando com um grupo de pessoas whites,
sabe? Ou seja, porque ela era amiga de pessoas whites. Então, eu acho
que nós temos a experiência muito semelhante (...) Por exemplo, se eu
for a uma loja e as pessoas são Afrikaans [africâneres], terei que falar com
eles em inglês, porque se eu falar com eles em Afrikaans eu teria que
usar imediatamente os termos de referência dessa cultura, eu teria que
chamá-los de “tia” e “tio”, mesmo que eles não sejam meus parentes,
porque essa é a tradição do Afrikaans. (...) A mesma coisa acontece com
ela [Bsy]. Se ela entra em uma loja e as pessoas são blacks, ela tem que usar
imediatamente os termos de referência da cultura dela.

Em resumo, a forte conexão entre as duas parece estar relacionada a


uma experiência de conteúdo geracional, porém, de certo modo, também
de classe. São duas jovens em processo de (re)colocação, que dominam
o inglês (não sendo esta sua primeira língua e tendo sido aprendida aos
poucos), lidando com a tradição de suas respectivas culturas, bem como
com o tipo de racismo que as caracteriza. Nota-se, ainda, um elo inte-
lectual importante entre duas moças egressas da mesma universidade, a
UCT. Mover-se entre várias línguas – destacando esta experiência como
multicultural (e não racista) – é um recurso para lidar com antigos e no-
vos padrões de desigualdade e hierarquia, possibilidade vedada a Cindi.
O campo de manobras dos indivíduos depende, de fato, de certos con-
textos. Simões, França, e Macedo41 exploraram as etnografias realizadas
em São Paulo no sentido de mostrar como a combinação entre homosse-
xualidade, erotismo e negritude potencializada positivamente no samba
GLS de São Paulo não faria efeito em um “ambiente onde se valoriza o
‘gay’ discreto, viril e branco”. Guardadas as diferenças entre as cidades e
os países onde as cenas registradas se desenvolveram, nota-se em ambos

41 Ver SIMÕES; França; Macedo, op.cit. Sobre o tema ver também MOUTINHO, Laura.
“Negociando com a adversidade: Reflexões sobre ‘raça’, (homos)sexualidade e desi-
gualdade social no Rio de Janeiro.” Estudos Feministas, vol.14, n.1, 2006, pp.103-116;
MOUTINHO, Laura; Simões, Julio. “‘Convenções’ de gênero, cor/raça, e idade em lu-
gares de sociabilidade homoerótica em São Paulo.” Trabalho apresentado no XIV Con-
gresso Brasileiro de Sociologia (SBS), Rio de Janeiro, 2009.

 · Sob a ótica do feminino


os lugares a força, por um lado, de um estilo de vida (ou de classe) similar
para que certo repertório linguístico e performativo possa ser operado
positivamente; por outro lado, seja em Cape Town, seja em São Paulo,
convenções comunicativas sintomatizantes e restritivas emergem não no
sentido de desestabilizar (mesmo que temporariamente) uma estrutura
marcada pela desigualdade, mas, antes, de reforçá-la pelo uso de uma
senha moralizante e restritiva.
Minha sugestão é que no Brasil nos acostumamos a falar de misci-
genação42 – e entre as muitas formas possíveis a de maior destaque é a
de Gilberto Freyre, que, como defende Ricardo Benzaquén de Araújo,43
retém as diferenças e, como argumento, em um arranjo profundamente
hierárquico e desigual.44
Não creio que possamos falar de miscigenação nesses termos na África
do Sul, mas no processo de pesquisa foi possível acessar uma narrativa
diferenciada que talvez seja uma forma de hibridismo – sem miscigenação
ou sem o sexo inter-racial.
Alguns jovens e algumas situações parecem se situar em um espaço
“in between”. Como disse anteriormente, um campo de intersecção entre
distintos sistemas e a ideia de forgiveness parece ocupar um lugar central
nesse cenário: uma possibilidade de perdão e/ou reconciliação por meio
da história das vítimas do apartheid e da conversa frente a frente entre
essas vítimas e seus algozes com o objetivo de enfrentar o passado e de
reconduzir o país.
Este não é, portanto, um processo de hibridismo aniquilador das
diferenças, mas um processo que as retém e em sua radicalidade amplia
a possibilidade de identificação, troca e solidariedade, mas não – faz-se
necessário destacar – do contato sexual.
Ao se postular a “igualdade de todos”, há que se perguntar os sentidos
adquiridos por essa noção em contextos diversos. Como visto anterior-
mente, “igualdade” para Cronjé implicava um esgarçamento da hierarquia

42 Sobre a (re)construção do pensamento racial e da ideia de miscigenação no Brasil,


ver SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: Cientistas, instituições e pensamento
racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
43 ARAÚJO, Ricardo Benzaquen. Guerra e paz: Casa grande & senzala e a obra de Gilber-
to Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: 34, 1994.
44 MOUTINHO, op.cit., 2004a e 2004b.

Laura Moutinho · 


racial, no qual os whites degenerariam (o sexo inter-racial é parte deste
processo). No discurso de Anne, a “igualdade” se configura como um
espaço possível de trocas e afinidades. Anne e Bsy caminham para um
terreno comum. Não se trata de dizer: “Somos iguais.” Uma afirmação
que implicitamente tem como consequência perguntar: mas “você é igual
a mim” ou “eu sou igual a você”? Não está em jogo a “conversão” a um
sistema de referências distinto.45 No caso de Anne e Bsy, a força de uma
experiência tradicional distinta em termos culturais, mas com uma lógica
que elas leem como similares possibilita a criação ou a emergência deste
terreno comum de identificação.
Em resumo, se por um lado a retórica do apartheid, como outras,
operou em um registro essencializador no qual religião, língua, gênero
e uma série de sanções morais foram fundamentais na construção das
identidade raciais rígidas, pela narrativa de Anne pode-se observar que
a experiência pós-apartheid (e situações ou espetáculos sociais como a
CVR) abriu espaço para a produção de um tipo de identificação, cujo o
núcleo não é a identidade em sua especificidade ou singularidade, mas
de recomposição do tecido social. Na nova ordem moral humanista e
democrática, laços emocionais e afetivos foram acionados como base,
no sentido de criar uma experiência comum não marcada ou amarrada
aos elos raciais estimulados e estipulados pelo apartheid. Nesse contexto,
a oportunidade, portanto, é observar como o apelo a uma experiência
humana comum ou a uma similitude alimenta não uma diferença ou di-
visão imutável atendendo a um ansioso e instável pertencimento étnico
ou racial, mas, antes, promove um espaço de alteridade.

45 Ver, em especial, a sensível análise de Larissa Pelúcio sobre os modelos de preven-


ção às DSTs/Aids e as travestis em São Paulo: PELÚCIO, Larissa. Abjeção e desejo: Uma
etnografia travesti sobre o modelo preventivo de Aids. São Paulo: Annablume, 2009. Ver
também o inspirador artigo de Marcia Ochoa – OCHOA, Marcia. “Ciudadania perversa:
Divas, marginación, y participación em la localización.” In: Mato, Daniel (org.). Polí-
ticas de ciudadanía y sociedad civil en tiempos de globalización. Caracas: FACES/Universi-
dad Central de Venezuela, 2004 – quando a autora afirma: “Há dois tipos de igualdade:
uma em que eu sou igual a você, a outra em que você é igual a mim. A partir de uma
posição de abjeção ou de absoluta rejeição social, esta diferença implica em diferen-
tes estratégias: se sou igual a você, eu me conformo à tua estética para me apresentar
como sujeito de direitos; se você é igual a mim, e eu sou uma pessoa rejeitada pela
sociedade, então você também, no momento em que me equiparo consigo eu te con-
tamino (p.246).”

 · Sob a ótica do feminino


Nas narrativas das duas mulheres, a empatia não foi viabilizada pela
linguagem da transgressão. Nesse contexto, essas falas expressam com-
promisso. Forgiveness é a ideia-chave. Mas apontam, sobretudo, para um
importante diferencial: o de classe. Uma pressão incidente sobre jovens,
especialmente mulheres (muitas das quais chamadas de coconut, ou seja
coco – brancas por dentro). Mulheres “que adquirem bens materiais, tais
como ousadas e provocativas roupas de moda e capital cultural como a
habilidade de falar inglês, e/ou xhosa, e que transitam por espaços con-
siderados pouco familiares e cosmopolitas da cidade”.46 Se essa é uma
restrição que acomete as mulheres africâneres e blacks em processo as-
censional, mais terrível parece ser a trajetória de Cindi, que, como black,
lésbica e moradora de um township (portanto, pobre), se vê confinada aos
antigos espaços construídos décadas atrás pelo apartheid.

46 SALO, Elaine. “Coconuts Do Not Live in Townships: Cosmopolitanism and its Fai-
lures in the Urban Peripheries of Cape Town.” Feminist Africa, vol.13, 2010, pp.11-21.

Laura Moutinho · 


Um valor de múltiplas faces: a
construção da “pequena” e da “grande”
honras entre trabalhadores em minas
de carvão no Brasil e na França1

M C

E m minhas etnografias de mestrado e de doutorado na comunidade


de Minas do Leão, no Rio Grande do Sul, ouvi de forma recorrente que
ali “é todo mundo unido”, que todos são como “uma grande família”. A
apresentação de si como uma comunidade harmônica, como um “nós”, é
bastante convincente à primeira vista. Quando passei a morar na pequena
cidade e a compartilhar do seu dia a dia podia notar que, sob a repre-
sentação social que traduz uma sociedade cordial, unida e homogênea,
havia várias outras tessituras, nenhuma delas menos verdadeira, mas
cada uma engendrando sua própria intriga. Na comunidade formada em
torno da exploração carbonífera, foi preciso considerar com atenção o que
disse um interlocutor: “Aqui nada do que parece é.” Pode-se dizer que

1 Este texto contém elementos de minha tese de doutorado, defendida sob a orientação
de José Sergio Leite Lopes. Ver CIOCCARI, Marta. Do gosto da mina, do jogo e da revolta: um
estudo antropológico sobre a construção da honra em uma comunidade de mineiros de carvão.
Tese (doutorado), PPGAS, MN, UFRJ, 2010. Agradeço a José Sergio e a Moacir Palmeira,
membros da minha banca, a discussão em torno de aspectos da honra dos trabalhado-
res. Versões distintas do texto, contendo elementos comuns, foram publicadas em pe-
riódicos no Brasil e na Argentina: CIOCCARI, Marta. “Risco, riso e respeito: Notas sobre
a construção da honra entre os trabalhadores nas minas de carvão no Brasil e na Fran-
ça.” Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, vol.3, n.6, 2011, pp.17-27; —————.
“Aspectos da construção da honra entre mineiros de carvão em uma comunidade no sul
do Brasil.” Revista Theomai: Estudios sobre Sociedad y Desarollo, n.24, 2012, pp.141-165.
diferentes “regiões morais”, nos termos de Robert Park,2 estruturam as
relações cotidianas, compondo distintas arenas de disputa simbólica, que
atravessam as diferentes dimensões da vida. Para melhor se compreender
esse universo, é importante lembrar ainda a definição usada pelo mineiro
Jango para falar da atividade exercida nos subterrâneos escavados sob a
cidade: “A mina é uma caixa de segredos, que ninguém consegue assim
descobrir o significado.” Essa fala, um tanto enigmática, sugere uma
mitificação do ofício exercido nas entranhas da terra e igualmente uma
das formas pelas quais a mina é percebida pelos trabalhadores. Logo
ficaria mais evidente para mim que o próprio “encantamento da mina”,
para usar a linguagem de Lucas,3 integra a construção de uma forma de
honra, a “grande honra” da profissão, que ganha novos contornos após o
desaparecimento da mina de subsolo.
Esses aspectos foram emergindo em minha pesquisa de mestrado
(2002-2004), mas especialmente na investigação de doutorado (2005-
2010), quando realizei um estudo etnográfico em Minas do Leão, no Rio
Grande do Sul, e em Creutzwald, na Lorena Francesa. Nos dois contextos,
as minas de subsolo foram fechadas na última década: em 2002, no caso
brasileiro; em 2004, no caso francês. Tratava-se efetivamente da “morte
da mina” e dos relatos envolvendo decepção e nostalgia em torno da de-
saparição desse projeto familiar que atravessou gerações de mineiros. Em
minhas análises, venho sugerindo que uma espécie de “grande honra”
da profissão foi sendo desenhada historicamente, oferecendo sustenta-
ção à imagem de heroísmo que acompanha os mineiros de subsolo em
diferentes lugares do mundo. Misturam-se à “grande honra”, múltiplas
formas de “pequena honra”, ancoradas na identificação com o métier, a
partir do “orgulho” do trabalho bem feito, das “artes” da malandragem,
assim como em pertencimentos políticos, sindicais, familiares, religiosos,
esportivos etc.

2 Ver PARK, Robert E. “A cidade: sugestões para a investigação do comportamento


social no meio urbano.” In: Velho, Otavio G. (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro:
Zahar, 1973.
3 LUCAS, Philippe. La religion de la vie cotidienne. Paris: PUF, 1981. Na perspectiva
do autor, a morte da mina de subsolo e o encolhimento da atividade “não é menos
encantada” que sua duração.

Marta Cioccari · 


Na etnografia realizada em Minas do Leão, habitei durante seis meses
– entre setembro de 2006 e fevereiro de 2007 – numa casa alugada na
antiga vila operária, junto à chamada Vila Freitas, compartilhando com
os moradores as diversas facetas do cotidiano. Ali e na cidade vizinha de
Butiá, realizei cerca de sessenta entrevistas biográficas gravadas e outras
vinte com caráter temático, aprofundando determinados aspectos. Em
Creutzwald, na Lorena Francesa, experiência que serviu para iluminar
aspectos da etnografia realizada no Brasil, sem consistir numa compara-
ção no sentido estrito, gravei 25 entrevistas num período de observação
de 21 dias (entre fevereiro e junho-julho de 2008).4 Nos dois contextos,
reuni documentos, fotos, vídeos e arquivos digitais com materiais de
interlocutores, de sindicatos, de companhias carboníferas e prefeituras.5
Em vez de uma superação da importância da honra entre classes po-
pulares na contemporaneidade, como apregoado por parte da literatura
antropológica, os fartos indícios que recolhi sugerem que esse valor é
atualizado em novos moldes na vida cotidiana, com configurações pró-
prias em cada contexto. Para dar conta dessa complexidade, foi preci-
so desdobrar a noção de honra, no sentido formulado por Pitt-Rivers
e Peristiany,6 em duas dimensões: a da “grande honra”, mais voltada
para as imagens que figuram nas representações idealizadas do heroísmo
mineiro, e a da “pequena honra”, correspondendo aos diversos perten-
cimentos locais e às circunstâncias cotidianas, com suas tensões e seus
conflitos internos.

4 A experiência de campo na Lorena Francesa deu-se durante meu estágio de dou-


torado junto ao CRBC–EHESS, entre novembro de 2007 e agosto de 2008.
5 Para um aprofundamento metodológico, ver CIOCCARI, Marta. Ecos do subterrâneo:
Estudo antropológico do cotidiano e memória da comunidade de mineiros de carvão de Minas
do Leão (RS). Dissertação (mestrado), PPGAS, UFRGS, 2004; —————. “Du rire et de la
tragédie: Notes sur la construction héroïque du métier de mineur de charbon au Brésil
et en France.” Passages de Paris, n.e. 2008, 2009, pp.1-18; —————. “Reflexões de uma
antropóloga ‘andarina’ sobre a etnografia numa comunidade de mineiros de carvão.”
Horizontes Antropológicos, vol.15, n.32, 2009, pp.217-246; —————, op.cit.
6 Peristiany, John; Pitt-Rivers, Julian (orgs). Honor y gracia. Madri: Alianza Editorial,
1992; PITT-RIVERS, Julian. “Honra e posição social.” In: Peristiany, John G. (org.).
Honra e vergonha: valores das sociedades mediterrâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gul-
benkian, 1965, pp.13-59; —————. Anthropologie de l’honneur: La mésaventure de Sichem.
Paris: Le Sycomore, 1983; —————. “A doença da honra.” In: Gautheron, Marie (org.). A
honra: Imagem de si ou dom de si: um ideal equívoco. Porto Alegre: L&PM, 1992, pp.17-32.

 · Um valor de múltiplas faces


O estudo realizado nos dois contextos – assim como a pesquisa docu-
mental7 e bibliográfica – levou-me à percepção de que, entre os mineiros
de carvão, uma determinada face do sentimento de heroísmo era só uma
das construções existentes no imaginário dos trabalhadores, ainda que
importante e bem enraizada. Passei, assim, a denominar esse sentimento
de heroísmo presente no universo dos mineiros de “a grande honra” da
profissão. Meu duplo investimento em pesquisas no Brasil e na França, por
suas características contrastivas, propiciou uma percepção mais nítida
dessa multiplicidade das formas de honra, revelando configurações que
emergiam das trajetórias individuais e dos pertencimentos coletivos. A
essas manifestações variadas e múltiplas passei a denominar “pequena
honra”. A construção do heroísmo dos mineiros, tratada aqui como a
“grande honra” da profissão, aproxima-se do que Guattari8 definiu como
perspectiva “molar”, enquanto que a “pequena honra”, relacionada a
diferentes aspectos da vida cotidiana, poderia ser remetida a um caráter
“molecular”, envolvendo sua atualização e recombinação constante.

A “grande honra” e os mineiros franceses

A última mina de carvão francesa, La Houve, que começou a operar em


1856, em Creutzwald, na Lorena, foi fechada em 23 de abril de 2004, du-
rante uma cerimônia, segundo a imprensa, “carregada de simbolismo e
de tristeza”, na qual as autoridades prestaram homenagens aos últimos
410 mineiros, os “gueules noires”. Quatro anos depois, em 2008, quando
estive na cidade para uma imersão etnográfica,9 percebi que, ao lado do

7 Trata-se de arquivos que pertenceram no passado a uma companhia carbonífera


gaúcha, o Cadem, mantidos na época da pesquisa por uma historiadora local. Apesar
da má conservação, era possível obter-se informações sobre as condições de vida e de
trabalho dos mineiros entre as décadas de 1920 e 1960. Outro arquivo, da CRM, diz res-
peito às fichas funcionais dos seus empregados, nas quais é possível obter pistas acerca
das promoções e das punições, por exemplo.
8 GUATTARI, Félix. Les années d’hiver: 1980-1985. Paris: Bernard Barrault, 1986.
9 A iniciativa foi estimulada por Stéphane Beaud, cujo seminário “Recomposition de
classes sociales” eu frequentava na École Normale Supérieure (ENS) no ano universi-
tário de 2007-2008, durante estágio de doutorado, em Paris. O relato da pesquisa foi
apresentado como trabalho final do seu curso.

Marta Cioccari · 


sentimento de luto que persistia para muitos ex-mineiros, havia nu-
merosas manifestações da “grande honra”, celebrada e materializada
nos objetos que adornam as casas – documentos e imagens que reúnem
fragmentos de uma memória coletiva, guardados como relíquias pessoais.
Nas falas dos mineiros, após o desaparecimento da mina, podia-se per-
ceber um sentimento de heroicidade frustrada.10 O fim da mina originou
uma reatualização do trabalho de mitificação, por meio de homenagens
públicas e da abertura de museus de carvão. Um antigo mineiro evocava
o lamento de um colega: “Onde está a minha mina? Sinto falta da mina!”,
dizia o trabalhador.
Foi ali, entre os mineiros franceses, que identifiquei mais claramen-
te aspectos da “grande honra” da profissão. Os estudos documentais e
bibliográficos mostram que ela parte de uma “mitologia” criada em tor-
no do mineiro de subsolo, com sua reverberação íntima mais ou menos
entranhada nos sujeitos. Os aportes representados pela literatura e pelas
autobiografias operárias tornaram-se iluminadores em meu trajeto de
pesquisa. A partir dessas fontes, foi possível notar que a “grande honra”
da profissão do mineiro de carvão atravessa diferentes nações e culturas,
tendo sido alimentada desde o século XIX pela literatura, especialmente
com as obras de Victor Hugo e Émile Zola,11 assim como pelas biografias
e autobiografias operárias, como as produções de Malva e de Viseux.12 A
“grande honra” ganhou corpo com as campanhas movidas pelos Estados
nacionais – francês, inglês, alemão,13 e, antes disso, soviético –, com
o apoio de sindicatos, visando tornar o mineiro “o primeiro operário”
do país e convertê-lo num modelo moderno do proletariado, como bem
indicaram Desbois, Jeanneau e Mattéi.14 As homenagens, as medalhas e
placas concedidas aos trabalhadores, enaltecendo a “honra do trabalho”,
principalmente na França, resultaram de uma política com o propósito de

10 Agradeço a José Sergio Leite Lopes a feliz sugestão desta expressão.


11 HUGO, Victor. Os trabalhadores do mar. São Paulo: Abril Cultural, 1971 [1866];
ZOLA, Émile. Germinal. São Paulo: Abril Cultural, 1979 [1881].
12 MALVA, Constant. Ma nuit au jour le jour. Paris: Maspero, 1978; VISEUX, Augustin.
Mineur de fond. Paris: Plon, 1991.
13 MOORE JR., Barrigton. “Militância e apatia no Ruhr antes de 1914.” In: Injustiça: As
bases da obediência e da revolta. São Paulo: Brasiliense, 1987.
14 DESBOIS, Evelyne; Jeanneau, Yves; Mattéi, Bruno. La fois des charbonniers: Les mi-
neurs dans la Bataille du charbon 1945-1947. Paris: FMSH, 1986.

 · Um valor de múltiplas faces


estimular a produção carbonífera durante a crise energética da Segunda
Guerra Mundial. Essas práticas voltadas a estimular a produção se man-
tiveram até o fim da mineração no país.
Até a desativação da última mina francesa, La Houve, na Lorena, em
2004, os mineiros continuavam a receber medalhas de “Honra do Traba-
lho”, comemorativas aos 20, 25, 30 e 35 anos de trabalho, mas era neces-
sário que as solicitassem à companhia. Vários ex-mineiros que entrevistei
na região exibiam com orgulho, à pesquisadora estrangeira, sua coleção de
medalhas e de placas honoríficas, como no caso do ex-mineiro Roger Stark,
militante da Confédération Générale du Travail (CGT) e do Parti Commu-
niste Français (PCF). Mas nem todos compartilhavam interiormente do
significado de tais “honras”. Quando perguntei ao ex-mineiro de origem
polonesa Stanislas, de 79 anos, por que os trabalhadores solicitavam essas
medalhas, sua resposta desfez as idealizações de uma aspiração honrosa,
evidenciando razões práticas: isso significava um dia de trabalho pago,
uma cerimônia na qual “ouviam um discurso besta e tudo”, mas na qual
podiam passar quatro horas tranquilamente, bebendo champanhe e fu-
mando. E, à noite, havia a saída com os companheiros para novos festejos.
De sua parte, não via heroísmo na profissão: “Não é um herói, para mim é
um trabalho para ganhar dinheiro. Isso é tudo!” Lembrava que no começo
havia a “febre”, a paixão pela mina, mas esse entusiasmo desaparecia após
quatro ou cinco anos enfrentando as duras jornadas no subsolo. Quando
lhe perguntei se havia pensado em mudar de profissão, me respondeu
resoluto: “E fazer o quê?!” A mina era seu horizonte possível.
Outras motivações, mais próximas à da “grande honra”, eram revela-
das por outros interlocutores, como Graziano Balzani, imigrante italiano,
filho de operário-camponês que começou a trabalhar nas minas francesas
em 1961. Ele mostrava-se comovido quando assistimos ao vídeo com ima-
gens da cerimônia de entrega de medalhas pela empresa, na qual era um
dos homenageados. A condecoração era vista como um evento simbólico
que fazia referência ao conjunto de uma vida, marcada pelo sacrifício
familiar e pela superação. A nostalgia estava ligada, sobretudo, à relação
de camaradagem com os companheiros de jornada e ao reconhecimen-
to de valores de solidariedade que, a seu ver, só existiam no subsolo. O
seu sentimento em relação aos valores que marcavam aquele cotidiano
transparece neste trecho da entrevista:

Marta Cioccari · 


Graziano: Eu sempre lamentei o fim da mina. (...) Como dizia outro mi-
neiro quando ainda estávamos na mina: “O métier de mineiro é o mais
belo métier do mundo!” Mesmo que isso não seja verdade, mas... [o fim da
mina] faz mal ao coração. O mineiro é assim como um bloco de cimento: a
cordialidade, a amabilidade, a sinceridade, a camaradagem não existiam
na superfície como existia no subsolo.
E na superfície?
Graziano: Quando um mineiro está na superfície, isso acaba. A mina não
existe senão quando se vai ao subsolo. Lá embaixo, no interior da terra, a
1.100 m, o mineiro partilhava com os outros mesmo se não os conhecesse,
com os italianos, os marroquinos, os russos, os portugueses, os espa-
nhóis, de toda parte... Quando um companheiro não tinha pão dava-se
um pedaço mesmo que não o conhecesse. (...) É algo fundamental e que
não havia na superfície.

Desenhando os contornos da “pequena honra”

A noção de “pequena honra” foi esboçada durante minha etnografia em


Minas do Leão – uma cidade interiorana situada a 80 km de Porto Alegre,
na Região Centro-Sul do Rio Grande do Sul, às margens da BR-290. O
município pertence à Microrregião Carbonífera do Baixo Jacuí, que reúne
várias cidades que se desenvolveram na esteira da mineração de carvão
e que, nas últimas décadas, enfrentam o empobrecimento causado pela
decadência da extração mineral.
Depois de algumas visitas como jornalista à comunidade entre meados
e o final dos anos 1990, realizei ali minha primeira pesquisa etnográfica
em 2002, no mestrado. Pouco antes havia sido fechada a última mina de
subsolo da região, a mina de Leão I. Registrei os relatos dos trabalhadores,
carregados de desalento e de tristeza pelo fim da mina e pelas transforma-
ções impostas sobre seu modo de vida. Quando retornei a campo para a
pesquisa de doutorado, em 2006, percebi que o sentimento de luto havia
sido em boa parte processado e as referências à mina tinham sido suplan-
tadas nas conversas cotidianas por questões familiares e de vizinhança,
pelos conflitos sazonais na política, pela celebração dos esportes e jogos,
pelas intensas e variadas procuras religiosas, assim como pelos embates

 · Um valor de múltiplas faces


das novas gerações em busca de emprego ou de uma ocupação. Percebi que
à medida que se distanciava o “tempo da mina” de subsolo afloravam mais
claramente outros mundos que teciam os sentimentos, valores e práticas
dos moradores dessa cidade – mesmo que uma exploração à flor da terra
se mantivesse. Com o arrefecimento das emoções ligadas ao subterrâneo,
pareciam emergir outras realidades, de uma tessitura diversa e movente,
que ajudavam a desvendar como se forjaram as contradições em torno da
mina. Neste contexto, a observação das práticas sociais, a interação com
as famílias e a escuta das narrativas remetiam à construção cotidiana
de uma dignidade pessoal e coletiva que dizia respeito ao trabalho, mas
também ao esporte, à política, à religião, à vida familiar.
Diferentemente de outras vilas operárias abordadas pela literatura an-
tropológica, em que a cidade ou comunidade se constrói em torno de uma
única empresa,15 em Minas do Leão havia uma diversidade de poderes,
demarcando diferentes espaços sociais e geográficos, com as oposições
entre os bairros Recreio e Leão (ou Centro), como se fossem duas vilas
operárias, dois núcleos urbanos formados em torno de diferentes minas,
gerando hostilidades e disputas, das quais uma das mais expressivas pare-
ce ter sido a rivalidade entre as equipes de futebol operário Olaria (formada
em torno da mina de Alencastro, no Recreio) e Atlético (constituído em
torno da Companhia Riograndense de Mineração, CRM, no Centro).16
O estudo de Bailey17 sobre reputações serviu-me como chave de lei-
tura, contribuindo para desenhar os contornos da noção de “pequena
honra”, cujo valor se inscreve na vida ordinária. Segundo esse autor, em
pequenas comunidades a pequena política da vida cotidiana de cada um
está ligada às reputações, o que significa “ter um bom nome”, “evitar a
desqualificação social”. Sugiro que a “pequena honra”, tal como a reputa-
ção estudada por Bailey, precisa do reconhecimento dos outros, mas está

15 LEITE LOPES, José Sergio. A tecelagem dos conflitos de classe na cidade das chaminés.
São Paulo/Brasília: Marco Zero/Editora UnB, 1988.
16 O tema das equipes de futebol ligadas às minas de carvão foi explorado em CIOCCA-
RI, Marta. “Mina de jogadores: O futebol operário e a construção da ‘pequena honra’.”
Cadernos Arquivo Edgard Leuenroth, vol.16, n.28, pp.76-115, 2011; —————. “Football in
the Rio Grande do Sul Coal Mines.” In: Fontes, Paulo e Holanda, Bernardo Buarque de
(orgs.). Football, Work and Politics in Brazil. Londres: Hurst, 2014.
17 BAILEY, Frederick George. Gifts and Poison: The Politics of Reputation. Oxford: Basil
Blackwell, 1971, p.21.

Marta Cioccari · 


calcada num sentimento íntimo que lhe corresponde ou lhe contradiz,
enquanto que a reputação mantém o seu caráter de exterioridade.18 Essa
“pequena honra” seria então a combinação entre o prestígio que cada um
obtém socialmente e a estima de si, seu próprio sentimento de dignidade,
que tanto é alimentado por esse reconhecimento como o alimenta na
esfera social. Tal como na “grande honra”, as formas de “pequena honra”
se constituem na tensão entre o prestígio e o desprestígio, o respeito e o
desrespeito.
Na abordagem sobre a honra, são inspiradores os estudos de Pitt-
-Rivers e Peristiany sobre a “honra mediterrânea”; os trabalhos contidos
na coletânea organizada por Gautheron19 sobre a honra como “dom de si ou
imagem de si”; e, ainda, a investigação de Fonseca 20 sobre as modalidades
de honra numa vila popular de Porto Alegre. A profusão dos usos da noção
de honra nos estudos antropológicos, nem sempre indicando claramente
a situação etnográfica ou evidenciando as variações de significado, pro-
vocou a reação de Herzfeld,21 para quem as massivas generalizações de
“honra” e “vergonha” teriam se tornado contraproducentes. Uma correta
interpretação de termos de avaliação moral requer, a seu ver, uma clara
percepção do contexto social e linguístico em cada comunidade, de forma
que “honra” e “vergonha” poderiam ser laminações insuficientes de uma
variedade de terminologias nativas. Ele sugere que os insights devem ser
buscados no “particularismo etnográfico”.22 Estudos publicados nos anos
1990 também lançaram dúvidas se ainda valeria a pena se falar em honra,
considerando que a noção estivesse “doente” ou “degradada”. Gautheron
alertava para o risco de se banalizar a honra por uma extensão abusiva do
sentido, considerando-se honra a uma exigência individual ou universal
de dignidade. Entretanto, parece-me que Pitt-Rivers está certo quando
afirma que “a honra só foi expurgada da língua, não do sistema simbólico”.

18 Para BAILEY, op.cit., p.4, a reputação não é uma qualidade que a pessoa possui,
mas a opinião que as outras pessoas têm dela.
19 GAUTHERON, op.cit.
20 FONSECA, Claudia. Família, fofoca e honra: Etnografia de relações de gênero e violência
em grupos populares. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2000.
21 HERZFELD, Michael. “Honour and Shame: Problems in the Compative Analyses of
Moral Systems.” Man (New Series), vol.15, n.2, 1980, pp.339-351.
22 HERZFELD, 1980, pp.348-349. Atenta a isso, procuro manter as categorias nati-
vas, explicitando os sentidos nos diferentes contextos.

 · Um valor de múltiplas faces


Em minhas análises, adoto a definição de Pitt-Rivers de honra como
“o valor de uma pessoa aos seus próprios olhos, mas também aos olhos
da sociedade”. Em seus primeiros estudos, o autor definiu a honra como
“a estimativa de seu próprio valor ou dignidade, pretensão ao orgulho,
mas também o reconhecimento dessa pretensão, sua excelência reco-
nhecida pela sociedade, seu direito ao orgulho”.23 Em investigações mais
recentes, refletiu sobre as dificuldades inerentes à análise da honra, em
razão de ela ser um sentimento e também um fato social objetivo. De um
lado, há um estado moral que deriva da imagem que cada um faz de si,
de outro, o meio de representar o valor moral dos outros: sua virtude, seu
prestígio, seu estatuto etc. A honra pode ter uma dimensão individual,
porque depende da vontade de cada um, como no caso da motivação que
responde a um chamado divino. Mas também é coletiva e pode se ligar a
um grupo social, como a família, a comunidade e a pátria. Varia segundo
o gênero,24 a posição ocupada por cada um na sociedade, a classe social,
as profissões. Mesmo que seja sentida antes de ser concebida, esse aspecto
subjetivo deve, segundo o autor, entrar em contato com a realidade, pois a
conduta será julgada pelos outros. Assim, a aspiração do indivíduo à honra
deve ser reconhecida publicamente. Por outro lado, o indivíduo também
pode reconhecer a própria vergonha, quando uma negação social da honra
suscita um desprestígio que pode ser interiorizado.
Ao conceber os conceitos de “grande honra” e de “pequena honra”,
inspiro-me ainda no modelo teórico de Redfield25 acerca da Grande e da
Pequena Tradição, a partir de estudos em comunidades camponesas e na
forma pela qual as duas tradições interagem como processos complemen-
tares, viabilizados pela ação de mediadores.26 Guardando uma alusão ao

23 PITT-RIVERS, op.cit., p.21.


24 Na perspectiva dos estudos “mediterrâneos”, o requisito da honra para o homem é
a coragem, enquanto que para a mulher é a pureza sexual. Nos estudos mais recentes,
porém, Pitt-Rivers deixa entrever que este valor feminino poderia estar em mutação
naquele contexto. Ver PITT-RIVERS, op.cit., pp.18-19.
25 REDFIELD, Robert. “The Social Organization of Tradition.” In: Potter, Jack M.;
Diaz, May N.; Foster, George M. (orgs.). Peasant Society: A Reader. Boston, Little Brown
& Company, 1967, pp.25-34.
26 Conforme REDFIELD, op.cit., a Grande Tradição ancorava-se na Igreja e no trabalho
dos teólogos que comandaram a Idade Média, com raízes profundas e duradouras. A
Pequena Tradição, mais recente, menos enraizada e relacionada aos setores populares,
estaria vinculada às crenças locais das pequenas comunidades, apartadas das Grandes

Marta Cioccari · 


sentido original, tomei de empréstimo o modelo, transformando-o em
“grande honra”, de cuja construção participaria o Estado, as empresas,
os partidos, a mídia, os sindicatos, os intelectuais e toda uma gama de
agentes com poder sobre a opinião pública, e “pequena honra”, correspon-
dendo a uma diversidade de valores, crenças e práticas locais combinados
entre si, com origem periférica em relação à centralidade representada
pela “grande honra”.

Um valor reinventado no cotidiano

Não foram muitas as ocasiões em que escutei a palavra “honra” em mi-


nhas interações em Minas do Leão, mas o leque de expressões que re-
gistrei, a manifestação de sentimentos e comportamentos remetiam a
uma inequívoca importância conferida a esse valor. O termo “honra” foi
evocado espontaneamente em algumas circunstâncias. Alex, um rapaz
de seus vinte e poucos anos, que trabalhava como eletricista nas obras de
implantação da mina de Leão II,27 contratado por uma empreiteira ter-
ceirizada, dizia-me que, no tempo do seu pai, mineiro de subsolo, saber
manusear o facão nas brigas de rua que marcavam as disputas masculinas
na vila mineira era uma “questão de honra”. Perguntei-lhe então qual era
a “questão de honra” da sua geração. Alex me respondeu que era sair da
cidade e se qualificar profissionalmente para encontrar um emprego me-
lhor. Ou seja, como o ingresso e a carreira na mina não são mais caminhos
naturais para os filhos de mineiros, a “questão de honra” não estaria mais
condicionada à coragem, à força e à habilidade física – que fazia tanto a
fama dos “valentes” como compunha a honra profissional na mina. A

Tradições, mas comunicando-se com elas. A Grande Tradição estaria relacionada ao


letrado, ao culto, desenvolvida nos templos e escolas, enquanto que a Pequena Tra-
dição diria respeito ao oral, às classes populares e aos iletrados. Peter Burke considera
que a “pequena” e a “grande” tradição não correspondem de forma simétrica à cultura
do povo e das elites, pois uma parte da elite era analfabeta, mais próxima assim da pe-
quena tradição. Ver BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna: Europa, 1500-1800.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p.51.
27 Leão II é uma “nova” mina de subsolo, de 180 m de profundidade, cuja construção
começou nos anos 1980 e foi retomada nos anos 2000, com a concessão a uma mine-
radora de Santa Catarina.

 · Um valor de múltiplas faces


nova modalidade de honra estaria exigindo disposição, disciplina e es-
forço pessoal para buscar uma qualificação técnica nos grandes centros
urbanos que pudesse se reverter em competência profissional, de forma
a ocupar melhores postos de trabalho. Não devo me alongar aqui sobre
esta questão, mas é preciso assinalar que própria concepção de “honra
masculina” se altera.
Em Minas do Leão, o valor que estou denominando de “pequena
honra” se expressa, particularmente, nas manifestações de “orgulho”
que não se limitam à profissão de mineiro (condição que pode ou não
evocá-lo), mas que se esboça ainda no interior de outros liames – como o
pertencimento a certa família ou origem cultural, militância ou posição
política, a determinada religião, time de futebol etc. Outros termos evo-
cados são a “consideração” e o “respeito”, referindo-se a laços sociais ou
familiares, valores vistos como transmissíveis de geração a geração e que
podem se relacionar com a posição ocupada na companhia no passado.
Muitas referências são feitas à “reputação”, à importância de se ter amiza-
des, crédito, de preservar o “bom nome”, a estima dos outros e de evitar
a “desconsideração” e o “desrespeito”. Formas de honra parecem estar
em jogo ainda nas atribuições e/ou autoatribuições em torno do “dom”
(usado geralmente por referência ao sagrado) e das habilidades e talentos
(para o trabalho, o esporte, a política ou mesmo para a “malandragem”).
Como em outras localidades em que predominam as interações face a
face, há uma constante preocupação dos moradores em relação à própria
reputação, tecida pelas observações e pelos comentários alheios, de cuja
construção cada qual participa no sentido de preservar a própria ima-
gem (e a própria honra) e em estabelecer a vigilância sobre os demais. As
identidades e o sentimento pessoal e coletivo de valor são forjados nesses
entrecruzamentos de mundos que atravessam e circundam o universo da
mina, nos quais há relações de sobreposição, de mistura, mas também
de tensão e exclusão.

Ambiguidades e contradições no mundo da mina

No universo da mineração carbonífera junto ao sentimento de heroísmo


relacionado ao perigo da profissão, encontram-se ainda formas de negação

Marta Cioccari · 


deste heroísmo, convertidas em outras modalidades de honra. Lembro-me
de um comentário feito por mineiros, num tom entre jocoso e afetivo,
de que sua categoria profissional “é a classe mais ordinária que existe”,
“a mais sem-vergonha”, a “mais bagaceira”, remetendo ao orgulho de
uma malandragem bem cultivada. Podia ser uma forma contraditória de
obtenção de prestígio, que exibe certos valores afirmados socialmente e
fere outros também presentes na moralidade local. Podem estar em jogo
tanto as moralidades tradicionais, mais caras ao universo rural – como
manter o respeito, ser provedor etc. – como algumas “novas” moralidades,
mais relacionadas à cultura urbana e industrial, que faz apelo à esperteza,
à desenvoltura e à habilidade social.
Os valores da “pequena honra” são compartilhados socialmente, mas
cada um os conjuga de modo singular, hierarquizando-os de acordo com
os valores inscritos em sua trajetória, com seu contexto e com as circuns-
tâncias em que se encontra. Cada qual também esboça suas próprias jus-
tificações para condutas adotadas em momentos de tensão, de conflito ou
de crise. As principais formas de “pequena honra” que vislumbrei durante
o trabalho de campo envolviam principalmente as questões profissionais,
o jogo (considerando a malandragem uma dimensão), o sagrado, a família
e a origem rural, expressadas sempre de modo híbrido e complementar.
A título de exemplo, a pequena honra profissional pode revelar-se
pela afirmação dos valores do esforço, da competência e da habilidade
técnica, encarnando intensa dedicação à atividade. Entretanto, a habi-
lidade, o dom de que se orgulha o mineiro pode estar relacionado não ao
trabalho, mas às formas de esquiva da disciplina industrial, à cultura da
malandragem, que parece compor intensamente os saberes locais. Sabe-
-se que, em determinados contextos, uma “má reputação” pode ser tanto
ou mais prestigiosa que uma “boa reputação”, pois as definições estão em
permanente negociação. No universo em que pesquisei, o valor social da
malandragem enfatiza mais o mérito de uma boa performance do que um
determinado conteúdo moral.
Algumas narrativas, por exemplo, mencionam alguém que “não pres-
ta” (trai a mulher desabridamente, por exemplo), “mas é um bom pai de
família”, pois “não deixa faltar nada em casa”, ou que “vive arrumando
encrenca com os chefes”, mas “é um pé de boi para o trabalho” – ex-
pressões recorrentes também em outros segmentos de classes populares.

 · Um valor de múltiplas faces


Essas formulações aparecem nos relatos sobre “valentões” do passado,
grupos que se enfrentavam em brigas de facão nas ruas da vila mineira
até os anos 1980. Diz-se que eram “metidos a valentes”, “encrenqueiros”,
mas “muito trabalhadores”. Por vezes, a própria fama de “valente” – ou
até de “mau”, de “malvado” – poderia ajudar a impor respeito, rendendo
prestígio e admiração.
De outro modo, a valorização da astúcia, da esperteza, da ousadia pode
entrar em contradição com outros valores morais presentes na sociedade
local, contrapondo ao valor da verdade uma legitimação da mentira, do
logro, da obtenção de vantagem pessoal. Mas tais deslizamentos morais
são, muitas vezes, justificados e legitimados pelo estabelecimento de outra
moral, mais voltada às insurgências da vida prática, que leva em consi-
deração os aspectos relacionais e o contexto em que tais lógicas operam.
Assim, uma determinada ação que, em princípio, poderia ser considerada
condenável (como a mentira ou as artimanhas), pode ser vista socialmente
como meritória, principalmente se considerada “bem-feita”.
Nos relatos sobre as atividades na mina, encontra-se frequentemente
o orgulho do “trabalho bem feito” (a expressão é adotada também por
Hoggart e Leite Lopes),28 da competência e da habilidade profissional de-
senvolvida ao longo de anos, por vezes considerada aprendida com colegas
de trabalho mais experientes ou herdada de gerações de mineiros (gente
que “sabia desde criança que o carvão era preto”, como ouvi na Lorena
Francesa). Junto à “grande honra” que idealiza o trabalho mineiro, na
vida cotidiana há formas pelas quais a “pequena honra profissional” se
apresenta, relacionada à conversão do trabalho a um estatuto de “arte”,29
sobre a qual se colocam as competências técnicas apreendidas, o caráter
de uma transmissão (como aprendiz ou filho de mineiro), conformando
uma dedicação que possui os contornos do “gosto”, do “amor” pelo ofí-
cio. Essa modalidade de “pequena honra”, ligada ao exercício primoroso

28 Ver HOGGART, Richard. As utilizações da cultura: Aspectos da vida cultural da classe


trabalhadora. Lisboa: Presença, 1973; LEITE LOPES, op.cit.
29 Sobre o trabalho elevado à categoria de arte, destaca-se a pesquisa de Alvim sobre
os “artesãos do ouro”, citado por LEITE LOPES, José Sergio. O vapor do diabo: o trabalho
dos operários de açúcar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. Ver, também, sobre os “artis-
tas” na usina de açúcar, LEITE LOPES, José Sergio, op.cit. E, ainda, sobre o “pescador
feito”, DUARTE, Luiz Fernando Dias. As redes do suor: A reprodução social dos trabalha-
dores da pesca em Jurujuba. Niterói, RJ: EdUFF, 1999.

Marta Cioccari · 


da profissão, pode reforçar as imagens grandiosas da “grande honra” ou
conjugar-se a uma honra familiar enfatizando o papel da hereditariedade,
a “patrilinhagem”.30
A “pequena honra profissional” poderia revelar-se, portanto, pela
afirmação dos valores do esforço, da competência, do conhecimento e
habilidade técnica, encarnando uma dedicação intensa à atividade. Po-
dem-se identificar traços desse valor também na semiprofissionalização
dos jogadores de futebol das equipes amadoras que surgiram em torno
das minas.31 A “pequena honra profissional” pode guardar uma ligação
íntima com a “grande honra”, mas parece opor-se a uma mistificação do
trabalho mineiro, contrapondo razões práticas. O “gosto” pelo trabalho ou
mesmo pela mina surge nas justificativas sobre o engajamento junto com
argumentos sobre os benefícios representados pelos ganhos salariais, pela
duração da jornada de trabalho, pelo regime especial de aposentadoria etc.

As artimanhas do jogo

De outra forma, a habilidade, o dom de que se orgulha o mineiro pode


estar relacionada não ao trabalho, mas às formas de esquiva da disciplina
industrial, a uma “pequena honra da malandragem”, que compõe a cultura
operária em Minas do Leão. Como sugeri antes, tais práticas conformam
uma espécie de “jogo”. Pode-se dizer que, num universo no qual a honra
parece estar sempre em disputa, com as reputações se alterando rapida-
mente, dada a intensa suscetibilidade nas relações sociais, expressa na re-
lativa facilidade com que se fazem inimigos e acontecem as rupturas entre
parentes ou amigos de longa data – bastando para isso um episódio visto
como de “desrespeito” ou de “desconsideração” que nenhuma das partes
tem a disposição de esclarecer porque uma nova aproximação poderia ferir
o seu orgulho –, pode-se inverter a formulação para realçar o fato de que
no jogo está sempre envolvida certa dose de honra. As noções de jogo e de

30 ECKERT, Cornelia. Une ville autrefois minière: La Grand-Combe, étude d’anthropologie


sociale. Tese (doutorado), Université Paris V, Sorbonne, 1991; —————. “Relato de uma
pesquisa etnográfica na França.” Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
vol.15, 1992, pp.9-30.
31 CIOCCARI, op.cit.

 · Um valor de múltiplas faces


honra lançam luz não apenas sobre a sociabilidade lúdica ou agonística,
mas podem estar presentes em diferentes circunstâncias da vida.32
Na convivência com os moradores, percebe-se logo que o “espírito
do jogo” permeia desde o mundo do trabalho na mina, passa pelo terreno
flutuante da política local (com as “apostas eleitorais”, para usar os termos
de Palmeira)33 e ingressa na vida privada, como indicava uma peculiar
“votação” masculina sobre a existência do amor, ocorrida num mini-
mercado e que me foi narrada por um trabalhador aposentado. Sabe-se
que os jogos envolvem a dimensão do risco, como bem indicou Callois.34
O jogo distingue pelo talento, habilidade física ou verbal, sorte, audácia,
criatividade, força ou valentia. No que diz respeito à sociabilidade e ao
esporte, o talento no jogo pode agregar prestígio à construção de uma
honra profissional (como no caso dos mineiros-jogadores das equipes de
futebol ligadas às minas), assim como pode reforçar identidades e laços
de parentesco (como nos times de futebol criados por famílias).
Para alguns trabalhadores, há o orgulho pelo “trabalho bem feito”,
o destaque pelas habilidades para aperfeiçoar ou “inventar” formas de
trabalho ou equipamentos,35 ou mesmo pela “coragem” para enfrentar
patrões e chefias. Mas a maior popularidade parece ser suscitada pelos
trabalhadores que ressaltam a sua “esperteza”, “ousadia”, a própria arte
da malandragem – espécie de anti-honra que, como vim sugerindo, pode
tornar-se fonte de prestígio e reconhecimento. Os personagens que detém
talento e disposição para o exercício destas artes de fazer e de dizer, nos
termos de Certeaux,36 costumam ser muito apreciados, de forma similar
à descrita por Hoggart37 entre os bairros operários ingleses. Ali, como
menciona o autor, o verdadeiro herói do proletariado é o herói cômico,

32 Sobre a dimensão lúdica, ver HUIZINGA, Johan. Homo ludens: O jogo como elemento
da cultura. São Paulo: Perspectiva, 1971. Acerca do caráter agonístico, ver CALLOIS,
Roger. Les jeux et les hommes. Paris: Gallimard, 1967; COMERFORD, John. Como uma fa-
mília: Sociabilidade, territórios de parentesco e sindicalismo rural. Rio de Janeiro: Relume-
-Dumará, 2003.
33 PALMEIRA, Moacir. Apostas eleitorais: Notas etnográficas. Rio de Janeiro: Museu Na-
cional, UFRJ, mimeo, 2006.
34 Op.cit.
35 Tal como os “artistas” citados por LEITE LOPES, op.cit.
36 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
37 HOGGART, op.cit.

Marta Cioccari · 


não o herói romântico. Em Minas do Leão, a falta de vergonha38 – seja
para o enfrentamento com o patrão, seja para o “brinquedo” – coaduna-
-se com o jogo de cintura, com a habilidade verbal e corporal esperada
de um “mineiro de verdade”.

O sagrado e o dom

Sugiro ainda a existência de uma “pequena honra do sagrado”, uma distin-


ção incorporada pelos praticantes de diferentes religiões, que se conside-
ram “eleitos”, “escolhidos”, “tocados” por Deus ou outras divindades e que
se manifesta na maior parte das vezes como um reforço da fé, do despren-
dimento, da generosidade, da coragem ou determinação. Vê-se também a
referência ao “dom” que permite o exercício de uma atividade espiritual,
assim como as manifestações de “orgulho” dizendo respeito a uma deter-
minada trajetória religiosa. Ainda que a dimensão religiosa possa exaltar
características da honra clássica, como o desapego das glórias mundanas,
é bom lembrar que na maior parte das situações os valores se mesclam. No
diz-que-diz-que pelo qual as reputações se constroem cotidianamente, os
críticos dos praticantes religiosos apontam, por vezes, que no modo com
que esses se relacionam com as suas crenças não haveria grande diferença
com outras formas de paixões – estariam presos, como outros mortais, às
armadilhas da vaidade e do “fanatismo”. Mas é bom lembrar que nessas
atentas observações recíprocas, como bem apontou Hoggart, as línguas
podem ser bastante ferinas sobre as diferenças engendradas pelas crenças
ou pelos modos de vida. Neste contexto, observam-se ainda combinações
entre os valores do sagrado e o da honra familiar, especialmente quando
a própria ideia de sagrado liga-se à centralidade atribuída aos laços de
sangue, como no caso do culto aos “mortos familiares”.39

38 Sobre o aspecto da “vergonha” nas classes populares, ver DUARTE, Luiz Fernando
Dias. “Pouca vergonha, muita vergonha: sexo e moralidade entre as classes trabalha-
doras urbanas.” In: Leite Lopes, José Sérgio (org.). Cultura e identidade operária. Rio de
Janeiro: Marco Zero, 1987.
39 Para um aprofundamento dessa questão, ver CIOCCARI, Marta. “Do ofício, do san-
gue e do sagrado: Uma análise sobre a religiosidade numa comunidade de mineiros
de carvão.” Campos, vol.11, n.2, 2010, pp.35-57; —————. “Intercâmbios entre vivos e
mortos numa cidade industrial.” Habitus, vol.10, 2013, pp.263-82.

 · Um valor de múltiplas faces


Há exemplos de honra familiar correspondendo às tradições em torno
de um sobrenome ou de várias “assinaturas” (como os Freitas, os Flores
etc.), a uma origem étnica ou cultural, como ser descendente de polone-
ses, ou mesmo a determinados valores que se consideram transmitidos
pela hereditariedade ou pela educação doméstica. Entre esses valores,
destaca-se o da honradez construída pelos antepassados, no sentido de
“se ter um bom nome”, de “ser um bom pagador”. A honra familiar parece,
frequentemente, combinar-se com a honra tradicional ou de origem rural,
pois não raro partilham de uma origem comum.
A sexta e última dimensão denominei de “pequena honra tradicio-
nal ou de origem rural”, enfatizando a permanência de valores como o
trabalho árduo, a honestidade, a palavra dada, o respeito, a austeridade
nos gastos e, por vezes, a pureza sexual para as mulheres. Outros traços
podem reafirmar a importância da hombridade e da virilidade masculina,
no sentido de que um homem não deve “levar desaforo para casa”, signi-
ficando que deve responder a uma afronta pelo enfrentamento verbal e/ou
corporal. Outras formas aceitáveis socialmente de lidar com o desrespeito
são o rompimento de laços, a evitação (como menciona Pitt-Rivers),40 em
atitudes como não olhar, não cumprimentar, atravessar a rua à vista da
presença do outro, não estender a mão quando se encontram num recinto
junto a outras pessoas, “virar a cara” etc. Há todo um código destinado a
proteger o sujeito de um agravamento do conflito, mas que pode ser usado
também para denegrir a imagem, atingir a estima e a honra do outro.41

Como se forjam as reputações

No âmbito familiar, percebi que, em Minas do Leão, os valores e práticas


acionadas pela honra destoam do núcleo tradicional apontado pela litera-
tura identificada com a “honra mediterrânea” que articula de forma com-
plementar honra masculina e feminina. Em contraste com o verificado por

40 PITT-RIVERS, Julian, op.cit., pp.43-44.


41 PITT-RIVERS, op.cit., pp.43-44, ressalta que, na Andaluzia, o estatuto da honora-
bilidade dos membros da comunidade era objeto de incansáveis comentários, de forma
que “a reputação não é somente um tema de orgulho, mas também um fato de utilida-
de pública”: o “bom nome” é o capital mais precioso.

Marta Cioccari · 


Peristiany e Pitt-Rivers,42 neste contexto a honra masculina não parece
estar calcada sobre a pureza feminina, ao menos não nos dias atuais.
Ainda que se escutem depoimentos sobre a importância da virgindade
feminina, essas defesas ganham uma convicção esmaecida diante do fato
de que, no período da pesquisa, algumas moças se casavam grávidas sem
que isso resultasse num drama doméstico – estando mantida em boa parte
das vezes a importância do casamento.
De outro modo, ainda que as histórias de “cornos”43 despertem pro-
fundo interesse, mobilizem atenções, anedotas e fofocas (e, por vezes,
desabafos dos próprios homens enganados ao seu círculo mais chegado),
parece haver atualmente certa flexibilidade moral para tratar desses as-
pectos nas referências de que “decerto ela [a esposa] está fazendo o que
ele [o marido] sempre fez”, ou “ele aprontou tanto que agora tem que
aguentar se... [se ela faz o mesmo]”. Homens que admitiram em nossas
conversas terem sido traídos são de gerações mais jovens do que os pais
mineiros – com idades entre 25 e 35 anos –, e embora mencionassem ter
sido a infidelidade geradora de sofrimento e ter contribuído para uma
eventual separação não se sentiam particularmente “desonrados”. Pes-
soas de gerações mais velhas podiam dizer que lhes faltavam os “brios” e
que, por isso, eram capazes de aceitar uma reconciliação com uma esposa
infiel, mas esses jovens, partilhando de valores mais individualistas e
igualitários, consideravam incoerente exigir da parceira uma fidelidade
que, de sua parte, nem sempre podiam assegurar.
Parece-me que a honra masculina local está ancorada em diferentes
papéis, associada a distintos liames sociais – profissionais, religiosos,
políticos, esportivos, familiares etc. –, mas ainda mobilizando fortemente
a imagem de virilidade, de bom desempenho sexual e de habilidade nas
conquistas amorosas seja por referência ao presente ou ao passado, fama
essa que homens de diferentes faixas etárias se empenham em manter
com comentários autoelogiosos.
A honra feminina reveste-se igualmente de múltiplos aspectos, va-
lorizando-se a forma tradicional que consiste na imagem de boa esposa
e mãe de família, mas havendo também a consideração, o respeito e o

42 Op.cit.
43 Homem cuja mulher comete o adultério.

 · Um valor de múltiplas faces


prestígio nas trajetórias de mulheres no meio profissional, religioso, es-
portivo ou político, em que pesem os resquícios de um machismo que
vê com maus olhos o destaque feminino em mundos antes considera-
dos masculinos. As mulheres se orgulham de sua firmeza moral, de sua
competência, habilidade ou senso prático e são vistas como menos su-
jeitas às paixões dos jogos que, não raro, drenam as energias pessoais e
as finanças domésticas. Em muitos casos, são elas que administram o
orçamento familiar. As mães têm um papel determinante na decisão de
um prolongamento da vida escolar para os filhos, do mesmo modo como
as jovens registram, em boa parte, uma escolaridade mais longa que os
rapazes. Percebi que há mulheres que valorizam a própria “esperteza”,
uma espécie de versão feminina da “malandragem”,44 seja na adminis-
tração do seu dia a dia, seja na relação conjugal, para vigiar ou controlar
o marido, por exemplo.
A pureza sexual feminina já não parece mobilizar adesões, ou seja,
não confere honra em sua positividade, mas o comportamento moral
continua a ser o principal alvo de ataques à reputação de mulheres, mes-
mo quando estão em jogo “diferenças” de outra ordem – tais como uma
rivalidade política, preconceitos de gênero e conflitos hierárquicos. As-
sim, sobre uma mulher da região que seguiu carreira na política, ouvi
de um de seus adversários que ela teria vários amantes e que, assim, não
tinha a competência e a seriedade requeridas para a função. Noutro caso,
um ex-mineiro que tinha tido desavenças com uma profissional ligada
à companhia no passado e se sentiu humilhado por ela numa ocasião,
quando foi questionado se ela alertava os trabalhadores sobre os riscos
do alcoolismo, me disse: “Aquela ali?! Ela bebe até cair... Bebia mais do
que os mineiros!”, como a sugerir que uma mulher assim não poderia dar
“lições de moral”. Outra mulher que trabalhou numa das companhias
carboníferas foi referida com desprezo em relatos de ex-mineiros tanto
por suas atitudes consideradas “provocativas” como por um suposto abu-
so de superioridade hierárquica. Os comentários desabonadores faziam
referência às sumárias minissaias que usava ao receber operários em sua
sala, diante dos quais, segundo os relatos, cruzava e descruzava as pernas
como que para “testá-los”: se algum deles perdesse a compostura, ela teria

44 Sobre a “mulher interesseira” e a “mulher malandra”, ver FONSECA, op.cit.

Marta Cioccari · 


um pretexto para pedir a sua demissão. Mas uma mulher que se destacasse
numa atividade considerada masculina também podia ser apontada com
admiração, como no episódio de uma corrida de cavalos a que fui assistir
e ouvi o comentário elogioso de um informante sobre uma senhora que
passava, ela mesma criadora de cavalos para carreiras: “Aquela ali é mais
carreirista do que eles tudo!”45
Entre os paradoxos da honra indicados por Pitt-Rivers46 está o fato
de que um sentimento de dignidade nem sempre é acompanhado de um
reconhecimento social na forma de prestígio ou de popularidade positi-
va, com os comentários sobre a reputação ficando à mercê de afinidades
pessoais, políticas, profissionais. Por exemplo, um ex-mineiro com uma
trajetória de destaque nas lutas sindicais dos anos 1960 era mencionado
com certo desprezo nos comentários de um ex-encarregado que tinha
uma posição política antagônica à sua. Era apontado como “um agitador”
e alguém que, “quando foi candidato a vereador, fez só meia dúzia de vo-
tos”. A mulher de outro ex-mineiro, que foi vizinha desse líder sindical
num antigo bairro operário, via-o como alguém “violento e perigoso”.47
É preciso notar então que a construção das reputações – e da própria hon-
ra – está sujeita aos meandros das diferenças ideológicas e aos conflitos
advindos de relações pessoais e de vizinhança.
Quando comentei com um de meus vizinhos que pretendia fazer uma
entrevista com um ex-mineiro que era seu conhecido, ele me advertiu:
“Aquele ali? Está sempre bêbado, tu não vai conseguir entrevistá-lo!”
Nas primeiras vezes em que ouvi essa menção (estendida depois a outros
informantes), pareceu-me verossímil pela tendência ao alcoolismo entre
parte dos trabalhadores da mina, mas fiquei consternada, já que se tratava
de antigo informante com quem eu estabelecera laços de amizade. Minha
experiência direta, no entanto, foi bem diferente. Não tive oportunidades
de ver o ex-mineiro embriagado. Em todas as ocasiões em que o encontrei

45 Quando ouvi o comentário, já entendia o uso habitual do termo naquele contexto,


tendo superado o espanto que o termo “carreirista” provocou em mim da primeira
vez, quando o tomei em outro sentido, referindo-se a quem, para fazer carreira, lança
mão de qualquer meio.
46 Op.cit.
47 Características, aliás, que o próprio ex-líder sindical atribuía a si mesmo, mas as ven-
do como marcas de uma atuação combativa e corajosa para enfrentar a opressão patronal.

 · Um valor de múltiplas faces


estava perfeitamente sóbrio, tendo me fornecido uma boa entrevista.
A única vez em que o vi um tanto “alto” foi durante o carnaval de rua,
quando estavam legitimados os excessos.
Essa desqualificação do outro, praticada com um tom que se disfarça
indiferente, pode ser movida por diversas razões, das quais não se exclui
uma competição pela atenção do antropólogo. No caso mencionado acima,
havia um antigo conflito pessoal que opunha os dois ex-mineiros; em
outro caso (cuja acusação de alcoolismo se mostrou igualmente infundada
a meus olhos), havia diferenças político-partidárias em jogo.
A respeito de alguém que passa por um tratamento para depressão, o
aviso era: “Olha, não sei se tu vai conseguir falar com ele, ficou esquisito,
não sai mais de casa.” Sobre outro, que se recupera de um “derrame”, não
raro ouvia: “Mas agora ele não vai conseguir te dar entrevista.” Na verdade,
o problema de saúde tinha afetado apenas – e bem parcialmente – certa
agilidade motora do trabalhador, em nada prejudicando a memória, o
raciocínio e a expressão verbal. De viúvas que se casaram novamente,
não raro havia o comentário de que “se casou em seguida”, sugerindo
que nem tinha esperado o marido esfriar no túmulo, ou que “vive mui-
to bem”, “ficou com a vida feita”, por conta de pensão ou indenização.
Essa vigilância social, carregada de malícia quanto ao comportamento
alheio e que nutre generosamente a fofoca, é uma das razões que alguns
manifestam para querer deixar a cidade ou por já tê-lo feito. Uma viúva
que perdeu o marido num acidente e que reconstruiu sua vida com um
novo companheiro traduziu assim seu mal-estar: “Sabe aquela cidade
que repara em cada passo que tu dá?”
Ao mesmo tempo que se está altamente vulnerável aos comentá-
rios dos vizinhos, obter a sua estima e seu respeito pode representar
o suprassumo da honra, considerando-se que esta seja uma relação de
igualdade, como na comunidade camponesa pesquisada por Pitt-Rivers.48
Uma reação de crítica pode surgir, portanto, contra aquele que “quer ser
importante”, que “quer ser grande”, que “está bancando o rico”, ou mesmo
que “ficou estranho” com o dinheiro recebido de uma indenização por
acidente na mina. A atmosfera das relações de vizinhança se assemelha em

48 PITT-RIVERS, op.cit.

Marta Cioccari · 


alguns aspectos à descrita por Hoggart49 entre bairros operários ingleses,
sobre os quais ele mencionava a reação de exclusão dos que se afastam dos
valores partilhados pelo grupo, dos que deixam de fazer parte de um “nós”
para tornarem-se “eles”. É sugestiva, por outro lado, a análise conduzida
por Foster na comunidade camponesa de Tzintzuntzan, México, sobre a
noção do “bem limitado”.50 De forma similar, em Minas do Leão, alguém
que exiba poder, dinheiro, popularidade ou notoriedade pode contrariar
os valores locais se vizinhos e parentes considerarem que “mudou”, que
“não nos trata como antes”, que “já não é como nós”, havendo uma am-
bivalência entre a apreciação social do sucesso e do prestígio e a reação
contrária que suscita. Talvez por isso as trajetórias com grande popula-
ridade recebam críticas incisivas. A reputação do sujeito, sua imagem e
sua pretensão à honra estão constantemente vulneráveis.
A análise de um grupo de trajetórias, tanto no contexto profissio-
nal como no relativo aos jogos, aos esportes e ao sagrado nos revela a
incorporação de diferentes formas de “pequena honra”, baseadas tanto
no “orgulho” que suscita tal pertencimento, como na afirmação de um
“dom”, de uma “herança” familiar ou mesmo na força acionada para a
ruptura da transmissão familiar, constituindo-se o mérito a partir das
escolhas do sujeito.51 Nesses diferentes domínios, se entrevê nos relatos
certas noções dando conta de uma combinação entre hereditariedade e
educação familiar. Mas é no universo religioso que tal mosaico parece ser
mais nítido, como atesta o depoimento de um interlocutor que menciona
ter “puxado” da avó benzedeira suas habilidades para prever o futuro e
para curar, sugerindo uma espécie de “transmissão do dom”, situação na
qual esses poderes excepcionais se revelariam em mais de uma geração.

49 Op.cit.
50 Ver FOSTER, George. “The Dyadic Contract: A Model for the Social Structure of a
Mexican Peasant Village.” In: Potter, Jack M.; Diaz, May N.; Foster, George M. (orgs.).
Peasant Society: A Reader. Boston, Little Brown & Company, 1967, pp.213-230; FOSTER,
George. “La sociedad campesina y la imagem del bien limitado.” In: Wagley, Charles;
Bartolomé, Leopoldo José; Gorostiaga, Enrique E. (orgs.). Estudios sobre el campesinato
latinoamericano: La perspectiva de la antropología social. Argentina: Periferia, 1974.
51 Duarte examinou diferenças entre religiosidade por atribuição, de uma confissão her-
dada dos ascendentes, e por aquisição, refletindo escolha ou adesão. Ver DUARTE, Luiz
Fernando Dias. “‘Ethos’ privado e modernidade: O desafio das religiões entre indivíduo,
família e congregação.” In: Duarte, Luiz Fernando Dias; Heilborn, Maria Luiza; Barros, My-
riam Lins de; Peixoto, Clarice (orgs.). Família e religião. Rio de Janeiro: Contracapa, 2006.

 · Um valor de múltiplas faces


Como mencionado antes, vivos e mortos constroem as suas reputações por
meio do reconhecimento social conferido por devotos, fiéis e seguidores.
As referências ao “dom” e à “herança” aparecem em alguns rela-
tos como transmissões instauradas nas profundidades do ser à maneira
de algo inato. Se mobilizam reciprocidades, essas podem estar do lado
das trocas simbólicas às quais não se pode ou não se deseja retribuir (no
sentido de fortalecer essa incorporação), podendo-se inclusive buscar a
neutralização desses poderes. Nem sempre um “dom” é desejável, mas na
maior parte das vezes em que é reconhecido como “dom” já corresponde
ao universo das dádivas cuja retribuição será considerada sempre limitada,
consistindo num bem que se deve honrar, preservar e desenvolver. Em
algumas situações, a herança e o laço familiar são considerados benéficos.
Em outras, o que se herda do grupo familiar é visto como prejudicial, prin-
cipalmente numa conversão evangélica, quando determinados valores e
traços comportamentais podem receber o significado de “maldições” –
opondo-se ao “dom”, à “bênção”, ao “bendito”. Nessa dimensão, o “dom”
só pode ser recebido do elo com o sagrado, podendo ser “despertado”
por um chamado divino. O traço que se considera “maldito” se inscre-
ve no polo contrário: parte do humano e atravessa laços de parentesco,
ancorando-se nas relações de sangue, numa espécie de hereditariedade
biológica e espiritual. Traços de personalidade ou comportamento, como
o “rancor”, a “brabeza”, que poderiam ser remetido antes à coragem, à
hombridade, à virilidade e ao orgulho são ressignificados pela conversão.
Observei que a expressão mais usada na comunicação espiritual é a de
“pedir ajuda”. É interessante notar que esses termos também aparecem
na relação com políticos e pessoas influentes de quem se espera um favor
– as “cunhas”.52 Aspectos das relações clientelísticas encontram assim
uma correspondência no sagrado. Uma pode ser alternativa à outra, mas
em geral são usadas de forma concomitante. Como os laços sociais são
atravessados por uma tessitura diversa (envolvendo o trabalho na mina,
o parentesco, a vizinhança, os pertencimentos esportivos e religiosos e o
compadrio) há um campo fértil para as relações pessoais, com a demanda

52 Segundo um operário, “cunha” é o pedaço de madeira que serve para apertar os


quadros das galerias subterrâneas. Então, “cunha é o que ajuda o outro” como a ma-
deira ajudava na segurança da mina.

Marta Cioccari · 


e concessão de “ajudas”, especialmente na “época da política”.53 Uma de
minhas interlocutoras, considerando-se “sem religião”, costumava pedir
favores a autoridades (como pagamento da luz, dinheiro para um remédio
etc.). Quando a situação “apertava”, podia ser vista no gabinete do prefeito
ou de um vereador, utilizando como moeda de troca para as “graças” o
apoio em campanhas políticas. O dom, sagrado ou profano, como indicou
bem Mauss,54 não descansa enquanto não alcança a reciprocidade.

53 Ver PALMEIRA, Moacir. “Política e tempo: Uma nota exploratória.” In: Peirano,
Mariza (org.). O dito e o feito: Ensaios de antropologia de rituais. Rio de Janeiro: Relume-
-Dumará, 2001.
54 MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70, 2001.

 · Um valor de múltiplas faces


Aspectos sociológicos da fofoca

P P  O

“Pois toda espécie de feras, aves e répteis se doma e tem sido domada
pelo gênero humano; a língua, porém nenhum dos homens é capaz
de domar; é mal incontido, carregado de veneno mortífero.”
Tiago, 3, 7-8

“Na boca de quem não presta, quem é bom não tem valor.”
Folclore popular, trecho de Lapa, interpretada por Clementina de Jesus

P or que fofocamos? Alguns psicólogos sociais especulam sobre uma


série de hipóteses ao tentarem explicar o fato de a fofoca ser algo tão
comum na sociabilidade humana. Pode-se postular simplesmente, por
exemplo, que ela propicia vínculos entre as pessoas num determinado
grupo,1 ou então que decorre de nossa propensão a nos comparar social-
mente com os nossos semelhantes e com aqueles que nos são próximos.2
Na mesma matriz disciplinar, houve quem recorresse à velha ideia da

1 DUNBAR, Robin. Grooming, Gossip, and the Evolution of Language. Boston: Harvard
University Press, 1996.
2 WERT, Sarah R.; Salovey, Peter. “A Social Comparison Account of Gossip.” Review of
General Psychology, vol.8, n.2, 2004, pp.122-137.
seleção natural, segundo a qual se trata de uma estratégia comportamen-
tal vencedora, entre outras constitutivas da natureza humana:

A inteligência social necessária para o sucesso nesse ambiente [nosso


passado pré-histórico] exigia a habilidade de prever e influenciar o com-
portamento dos outros; e uma atenção especial nas transações proveitosas
– e muitas vezes decisivas no processo de seleção natural – realizadas
por outras pessoas. Em resumo, quem se interessava pela vida alheia em
geral obtinha mais sucesso que os demais.3

Distanciando-se destas perspectivas, o objetivo deste artigo é sugerir


um conjunto de postulados sociológicos que possam desvelar alguns as-
pectos das fofocas. Trabalho aqui a fofoca como uma narrativa na qual se
informa ao interlocutor sobre o comportamento visto como “desviante”
de outro agente, ausente à interação na qual este “informe” ocorre. Pode
ser narrada na forma de revelação conspiratória e/ou como petisco pream-
bular para desqualificação daquele(s) que é (são) alvo(s) das chacotas e
outras formas de sarcasmo que ela propicia, constituindo-se assim como
uma verdadeira arma, dentro de uma determinada rede, para o confisco
do prestígio alheio, em contrapartida à elevação do próprio status dos
que acionam a boataria, uma vez que (hipocritamente ou não) expressa,
no instante em que é narrada, a adesão dos fofoqueiros aos preceitos e
prescrições socialmente sancionados de forma positiva. Estas caracte-
rísticas já apontam para a necessidade de se pensar o regime interacional
como fundamental para a emergência das relações nas quais fofocas são
narradas. É preciso distinguir as fofocas de outras modalidades de narra-
tivas do cotidiano, tais como os rumores, as calúnias, as difamações, os
relatos de situações cômicas e/ou embaraçosas, entre outras que podem
nelas estar contidas, mas que nem sempre podem com elas se confundir.
Aparecem no texto, de forma equivalente às fofocas, os termos “boataria”
ou “mexericos”. Parto de algumas sugestões presentes na obra de Norbert
Elias, mais especificamente os insights sobre o tema que ele nos fornece

3 MCANDREW, Frank T. “A sedução da fofoca.” Mente e Cérebro, Ano XVI, n.194, 2009,
pp.36-43.

 · Aspectos sociológicos da fofoca


em passagens de Os estabelecidos e os outsiders. 4 Além disso, trabalho com
a noção de ludicidade como elemento fundamental dos jogos, tramas e
narrativas sociais (cotidianas, históricas), bem como outras, inspiradas
em diversos autores (destaque para Simmel), para justificar a ideia de
que elas podem ser tratadas como um fenômeno social importante da
vida cotidiana, com peculiaridades sociológicas próprias, dentre as quais
aquela de servir como veículo moralizador, de atuar como “fala falada”
de preceitos morais, mesmo em bocas que sofrem estigmas neles basea-
dos, uma vez que são fundamentais para a constituição de preconceitos
e práticas de discriminação.

Norbert Elias e algumas observações sobre as fofocas

Em Os estabelecidos e os outsiders, livro no qual expõe os resultados de uma


pesquisa empírica realizada juntamente com John Scotson, Elias dedica
um capítulo à discussão de uma temática singular. Na tentativa de definir
o que ele próprio intitulou de “uma sociogênese do preconceito”, o autor
chama a atenção para o problema dos mexericos entre os habitantes de
Winston Parva (nome fictício dado à cidade alvo do estudo), e nos fornece
valiosas indicações quanto a aspectos importantes para uma abordagem
sociológica acerca do tema das fofocas.
As fofocas não podem ser vistas como fenômenos independentes,
pois dependem das normas e crenças coletivas e das relações e interações
entre os agentes. Elias não endossa a ideia de que elas tenham uma função
específica, única, exclusiva, clara e determinada; nem mesmo que sejam
a causa da integração do grupo, no qual são acionadas e narradas. Elas
atuam sim, entretanto, reforçando a integridade previamente sólida do
grupo e, nesse sentido, postula-se que “o grupo mais bem integrado tende
a fofocar mais livremente do que o menos integrado, e que, no primeiro
caso, as fofocas das pessoas reforçam a coesão existente”.5 Este reforço
se deve à reiteração de valores morais comuns que consolidam a base

4 ELIAS, Norbert; Scotson, John L. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Zahar,


2000.
5 Ibid., p.129.

Pedro Paulo de Oliveira · 


identitária dos agentes da rede de interdependência ou grupo cultural
em questão.
Há que se distinguir as “blame gossips”, que são as fofocas deprecia-
tivas, das “pride gossips”, que tendem a celebrar e elogiar as pessoas das
quais se comenta. As primeiras reforçam a imagem negativa dos agentes
que se afastam das prescrições e valores morais e que geralmente não
pertencem ou que não são identificáveis com o grupo do qual fazem parte
os que acionam a boataria.6 Quando incidem sobre os agentes do grupo
(ou da rede de interdependência) funcionam como um mecanismo de
controle, uma vez que operam no sentido de depreciar o seu prestígio, a
sua reputação frente aos demais. Segundo Elias, a ideia de prestígio tem
um papel fundamental para a interação pessoal, sendo talvez o mais
desejado bem simbólico ao qual alguém pode aspirar dentro das redes de
interdependência nas quais ele(a) interage com os outros: “É esse medo de
perda de prestígio aos olhos dos demais, instilado sob a forma de autocom-
pulsão, seja na forma de vergonha, seja no senso de honra, que garante a
reprodução habitual da conduta característica, e como sua condição um
rigoroso controle das pulsões em cada pessoa.”7
Estas redes, das quais nos fala o autor, podem ser bastante diferentes:
desde um grupo de amigos, ou um conjunto de parceiros comerciais, uma
família, uma instituição que reúne cientistas de uma determinada área e
até mesmo uma roda de carteado, entre outras possibilidades.8 Nelas, a

6 Quando pertencem ao grupo, aqueles que são os alvos dos mexericos passam a
sofrer retaliações em função de estarem se afastando das normas estabelecidas e, nesse
sentido, as fofocas são o primeiro passo para um processo social que pode levar ao
estigma e mesmo ao seu isolamento dentro do grupo. No caso de se referir àqueles
que não fazem parte do grupo, as fofocas depreciativas funcionavam como forma de
reiterar a identidade dos estabelecidos e confirmar a execração pública dos outsiders.
7 ELIAS, Norbert. O processo civilizador, vol. 2: Formação do Estado e civilização. Rio de
Janeiro: Zahar, 1993, p.213.
8 A ideia de redes de interdependência apresenta uma salutar flexibilidade para des-
crever estes diversos formatos interacionais. Além da noção de posição dinâmica dos
agentes nas redes, elas podem ser pensadas na diacronia e sincronia históricas, consti-
tuídas pelos equilíbrios flutuantes de tensões, que se apresentam mais equilibrados ou
tensionados, de acordo com “o retrato momentâneo” em que se encontram. Com esta
noção, são passíveis de descrição as redes diversas que constituem as mais diferentes
instituições e seus variados processos interacionais, ocorram estes num departamento
de uma empresa, numa sala de aula, numa repartição pública, num bar, numa sala de
estar etc. As fofocas se exprimem e são veiculadas como narrativas do cotidiano que se

 · Aspectos sociológicos da fofoca


posição e o prestígio social do agente dependem, entre outras coisas, da
imagem que o mesmo possui junto aos demais que a integram e que com
ele ali interagem. Assim, uma fofoca depreciativa tende a funcionar como
um elemento corrosivo e desestabilizador desta imagem. Destacam-se
aqui dois dos três paradoxos que permeiam a obra do sociólogo alemão:
1) a realidade na aparência: no caso, a imagem pessoal do agente como
representação de seu valor frente aos demais e que, em função dela, lhe
atribuirão prestígio que se traduz em importância e celebração social do
mesmo, garantindo-lhe prerrogativas reais e efetivas que se exprimem
como poder em situações cruciais e decisivas em sua dinâmica relacional
com os seus pares; 2) independência na submissão: o poder, o prestígio,
o renome, enfim o status social do agente está diretamente relacionado à
sua capacidade de atender às demandas simbólicas, que são produzidas
de acordo com os valores hegemônicos e que são preponderantes naquele
grupo (ou rede), portanto, de acordo com a sua submissão a estes mesmos
valores.9
A posição dos agentes em espaços de poder num grupo que cultua
determinados valores só servirá para legitimar e reforçar mais ainda esses
mesmos valores, fechando um circuito no qual agentes se esforçam para se
conformar a crenças e padrões de classificação dominantes e que acabam,
assim, reiterando e confirmando a dominação daquilo que já os domina.
Mede-se o grau destes valores pela capacidade destrutiva do prestígio
daquele que deles se afastou conforme a narrativa acionada na boataria. A
desestabilização destes valores pode ser expressada pela ineficácia desta
capacidade, o que, entre outras coisas, aponta para um processo signifi-
cativo de mudança dos mesmos e, portanto, da própria forma assumida
pelas redes em que aqueles valores adquiriam o poder de conformá-la.
Assim, o que antes poderia ser considerado indecoroso, indecente, ina-
ceitável, pode, em função de mudanças, perder a capacidade de atuar

desenvolvem nestes incontáveis contextos interacionais reticulares (típicos das redes,


segundo a terminologia eliasiana).
9 “Distância na proximidade” é o terceiro paradoxo, que ao lado dos outros dois cons-
tituem uma tríade de postulados fundamentais na sociologia de Elias. Ver, a este res-
peito, CHARTIER, Roger. “Prefácio: Formação social e economia psíquica: A sociedade
de corte no processo civilizador.” In: Elias, Norbert. A sociedade de corte. Rio de Janeiro:
Zahar, 2001.

Pedro Paulo de Oliveira · 


como elemento corrosivo e destruidor do prestígio alheio. Isto ocorreria
tanto em função da mudança dos valores (atenuando as exigências de
se manter um comportamento de acordo com prescrições e obrigações
morais) ou porque em determinada rede tal atitude ou comportamento,
antes estigmatizado e narrado em fofocas depreciativas, deixa de ser nela
condenado ou já não suscita mais o anátema de outrora. Como a vida social
apresenta um incessante dinamismo, é sempre possível perceber graus e
variações na intensidade dos valores tanto do ponto de vista diacrônico
(o que antes era cultivado pode deixar de sê-lo ou atenuar as prescrições
que a ele estavam implicadas), como também do ponto de vista sincrônico
(no mesmo momento histórico, regimes interacionais diferenciados em
redes diversas podem condenar de formas distintas os comportamentos
que são objetos dos mexericos).
A verve moral e conservadora das fofocas exprime-se no fato de que
os boatos podem em algum grau desestabilizar o prestígio de um deter-
minado agente dentro da rede na qual ele interage com outros. O pânico
de se transformar em alvo de boataria, de ser acusado de não partilhar
dos comportamentos e valores prescritos, deve dissuadir os potenciais
“desviantes” e desclassificar os que se desvia(ra)m; desta forma, ser alvo
de boataria converte-se num obstáculo importante a ser evitado diante
da necessidade humana, nunca serenada, de elevar a autoestima, por
meio de uma melhoria ou, na pior das hipóteses, da manutenção do valor
de si próprio diante dos demais (“realidade na aparência”), em sua busca
pelo prestígio social que lhe garanta prerrogativas importantes para a
conservação, entre outras coisas, de uma boa posição social adquirida,
condição, muitas vezes, salutar para se defender dos ataques de seus rivais
ou possíveis competidores na rede (“independência na submissão”). Neste
sentido, o perigo de ser objeto ou tema de fofocas e mexericos é o mesmo
de ter sua autoestima depreciada em função desta última estar também
relacionada à imagem que o agente pensa ter junto aos demais.
A fofoca depreciativa propiciaria um afastamento simbólico dos que a
enunciam em relação aos que são alvos dos comentários, bem como a con-
firmação de seu valor pessoal positivo frente ao transgressor que incorreu
num ato condenável e “narrativizável” (fato digno de ser fofocado como
alvo de mexerico). Existe a possibilidade de se encontrarem agentes que
fofocam, mas que na vida cotidiana praticam ou comportam-se da mesma

 · Aspectos sociológicos da fofoca


maneira que aqueles que são alvo da boataria. Neste caso, as fofocas teriam
a função de aproximar aqueles que aparentam ter um comportamento
correto, mas que secretamente comportam-se de forma “desviada”, tal
qual os que já estão expostos à execração e que agora se refestelam em
fofocar sarcasticamente dos que foram forçados “a sair do armário”.10
Funcionariam como um anátema contra os que se apresentam socialmente
como imaculados, mas que longe dos olhos dos demais se comportam e
praticam os mesmos atos que são a causa da depreciação social dos que
agora deles fofocam. Este é o caso, por exemplo, dos comentários sobre
a (suposta, muitas vezes) vida sexual “desviante” de pessoas ou celebri-
dades, realizados por gays, que costumam apontá-los como “enrustidos”
(“in the closet”, na famosa expressão anglófona, os que estão “dentro do
armário”) e se deliciam em acionar a boataria sobre a identidade sexual
não assumida dos que são alvos dos “comentários bisbilhoteiros”. Vale
dizer que nesse caso, como em outros, os que acionam a boataria apenas
confirmam os preconceitos de que são vítimas em sua vida cotidiana.
Explicitam a introjeção dos valores que os condenam ao exprimirem-se
em torno de “falas faladas”. “Acionar a boataria” tem entre outros efeitos,
portanto, aquele específico de reiteração dos valores hegemônicos.
Da mesma forma, as fofocas elogiosas e positivas (“praise gossips”)
também reforçam valores sociais prescritos e hegemônicos, mas são me-
nos frequentes do que as depreciativas. Elas são na maior parte das vezes
restringidas para os agentes com os quais o enunciador se identifica (nem
sempre é o caso do ouvinte, que pode ou não pertencer ao mesmo grupo):
“Ao elogiar a Sra. Crouch, as pessoas louvavam, ao mesmo tempo, a vida
digna e respeitável que levavam em seu bairro, em contraste com outras
de que tinham conhecimento.”11
Tal como as narrativas tradicionais, explicitadas em contos, novelas,
romances, narrativas mitológicas etc., as fofocas também atuam como
mecanismo de controle social ao reiterar os valores sociais prescritos. Em

10 Um exemplo: fofocas nos corredores do Congresso, possibilitando o sarcasmo


fruído por políticos corruptos que descobrem esquemas de suborno ou qualquer tipo
de corrupção que envolva políticos adversários que “se orgulhavam” (de forma hi-
pócrita) de terem uma imagem pública ilibada e que apontavam, até então, para os
primeiros como as maçãs podres do mundo da política.
11 ELIAS; Scotson, op.cit., p.123.

Pedro Paulo de Oliveira · 


Winston Parva, elas confirmavam a comunhão dos virtuosos, segundo
a perspectiva do grupo dos estabelecidos. A censura grupal imposta aos
que infringiam as regras tinha uma vigorosa função integradora, ainda
que não se sustentasse sozinha, pois apenas “mantinha vivos e reforçava
os vínculos grupais já existentes”.12 As fofocas também propiciavam aos
estabelecidos um rígido mecanismo de controle social em algumas cir-
cunstâncias, uma vez que “tinham também a função de excluir pessoas
e cortar relações” ao funcionarem como “instrumento de rejeição de
extrema eficácia”.13
As fofocas satisfazem inusitadas demandas humanas, como, por
exemplo, possibilitar aos que acionam a boataria realizarem vivências
vicárias dos fatos. Para os que têm curiosidade, mas não a coragem de
protagonizar determinados atos, elas podem representar uma forma de
vivência vicária do agente que as narra, bem como daquele que as ouve:

[O]s mexericos de censura apelavam mais diretamente para o sentimento


de retidão e virtude daqueles que os transmitiam. Mas traziam também
o prazer de permitir que se falasse com terceiros sobre coisas proibidas
que o próprio indivíduo não devia fazer. E a conversa, muitas vezes, soava
como se, para a imaginação dos boateiros, fosse excitante pensar por
um momento que eles mesmos pudessem ter feito o que não convinha –
“imagine só, uma coisa dessas!” –, sentissem o peso do medo e da culpa
que sentiriam se praticassem tal ato, e rapidamente tornassem a cair em
si, radiantes e aliviados, com a sensação de que “não fui eu!”.14

Em Winston Parva, as notícias (fofocas) sobre uns e outros e sobre


todas as pessoas publicamente conhecidas tornavam a vida comum muito
mais interessante: “Em todas as suas diversas formas, as fofocas tinham
um valor considerável como entretenimento. Se um dia parassem os moi-
nhos da boataria na ‘aldeia’, a vida perderia muito de seu tempero.”15
Antecipando aqui uma discussão que farei mais à frente em relação
à ludicidade, Elias destaca o fato de que há uma competição envolvendo

12 Ibid., p.124.
13 Ibid., p.125.
14 Ibid., p.124, grifos do original.
15 Ibid., p.122.

 · Aspectos sociológicos da fofoca


os fofoqueiros: “Um dos determinantes das fofocas costuma ser o grau de
competição entre os que disputam o ouvido e a atenção de seus seme-
lhantes, o qual, por sua vez, depende da pressão competitiva, particu-
larmente a pressão das rivalidades de status, nesse tipo de grupo. Tem-se
mais probabilidade de ganhar atenção e aprovação quando se consegue
superar outros boateiros, quando, por exemplo, ao mexericar sobre out-
siders, consegue-se contar alguma coisa ainda mais desfavorável, mais
escandalosa e ultrajante a seu respeito do que eles ou, noutros casos,
quando se consegue mostrar que se é ainda mais fiel do que os rivais do
credo comum do grupo, e mais radical na própria afirmação das crenças
que fortalecem o orgulho grupal.”16
Entre outras coisas, algo que está implícito nesta passagem é o fato
de que os agentes humanos precisam de atenção e muitas vezes fofocar é
uma ótima isca para obtê-la. A capacidade de atrair a atenção alheia não
é a única força impulsora da fofoca: quanto mais escandaloso o fato nar-
rado enquanto fofoca, mais o enunciador exprime sua adesão às normas
consagradas pelo grupo.
As fofocas mais excitantes costumam ser aquelas que mais provocam
escândalo e que, portanto, tendem a ter um efeito mais devastador na
imagem e no status dos envolvidos nos fatos que suscitaram os mexericos,
com um consequente efeito de desestabilizar e depreciar o seu prestígio.
Pode-se entender isto também pelo fato de as fofocas proporcionarem
um controle do prestígio e status alheios. Quanto mais escandaloso, mais
vexatório e ignomioso os comportamentos e condutas narrados nas fofo-
cas, maior a excitação da vivência vicária e também maior é a sensação
de controle, superioridade e possível desforra, se for o caso, frente aos
alvos dos comentários.
A ideia da coesão social como facilitadora para a emergência dos me-
xericos indica que as “comunas paroquiais” (“igrejinhas”) ou os grupos
mais próximos de redes em que a ideia de comunidade se faz mais presente
(grupos economicamente menos favorecidos, populações rurais, coletivos
religiosos etc.) tendem a ser aqueles nos quais o controle do comporta-
mento alheio acaba sendo mais rígido do que em redes caracterizadas pela
impessoalidade e distância social entre os agentes.

16 Ibid., p.125.

Pedro Paulo de Oliveira · 


Fofocas e narrativas

Para o que aqui me interessa, destaco algumas características das nar-


rativas. Antes de tudo, penso nelas como relatos nos quais se verifica
alguma forma de organização lógica temporal e/ou causal que organiza a
exposição e o encadeamento dos fatos e eventos ali narrados. Além disso,
nelas pode-se perceber, invariavelmente, uma descrição de fatos na qual
personagens interagem na forma de conflito e/ou cooperação, configu-
rando tramas que se orientam pela temporalização sucessiva dos eventos
e pelas causalidades cumulativas que os acompanham e que os explicam.
Nas narrativas os personagens assumem objetivos que norteiam suas
ações, modelando um percurso de sentido em que tarefas são realizadas
ao mesmo tempo que obstáculos são enfrentados. Estes últimos podem
ser inclusive outros personagens com objetivos que se confrontam àqueles
perseguidos pelos primeiros; ou trabalhos, desafios etc. que vão tecendo o
percurso e a orientação da narrativa. Assim, um elemento fundamental de
qualquer narrativa é o conflito que exprime a tensão que lhe é essencial.
Todo texto ou narrativa pode possuir também aquilo que se chama,
coloquialmente, de “moral da história” e que corresponde, de modo ge-
ral, ao sentido social mais comum nele veiculado. Normalmente esta
“moral” se articula com os objetivos de um personagem ou de um núcleo
de personagens que tendem a ser vistos como os virtuosos ou alinhados
com os valores do grupo no qual a narrativa foi formulada. Um exemplo
significativo de sentido social expresso em narrativas é a famosa asser-
ção segundo a qual “o crime ou a maldade não compensa” e que subjaz à
maioria das narrativas tradicionais, veiculado em romances, filmes, no-
velas etc., especialmente quando tematizam eventos de violência contra
inocentes e/ou a questão da criminalidade.
Por fim, deve-se apontar para uma característica fundamental das
narrativas: sua capacidade de entretenimento para o imaginário hu-
mano. Poucas atividades têm tanta importância neste quesito quanto a
prática de narrar, ouvir e mesmo apreciar narrativas. Não há sociedade
sem suas narrativas míticas que tendem a reiterar e reproduzir os valores
por ela cultivados enquanto dignos de serem adotados como paradigmas
comportamentais e orientadores de condutas dos agentes que a consti-
tuem. Narrativas podem ser cômicas, trágicas, ousadas, sugestivas para

 · Aspectos sociológicos da fofoca


a reflexão etc. Elas alimentam o imaginário humano de uma forma mar-
cante, leve, empolgante, inesquecível. Não se prestam apenas a isso, mas,
certamente, entretêm.
De um ponto de vista mais existencial, as narrativas tendem a satisfa-
zer diversas demandas humanas. Uma das mais importantes é representar
simbolicamente os sentidos que devem constituir e modelar as diversas
trajetórias possíveis e sancionadas como positivas ou eufóricas para os
agentes de uma determinada cultura ou mesmo de uma subcultura. Ex-
primem e prescrevem os valores simbólicos nela cultivados, como dignos
de serem perseguidos. Sua estrutura geral assemelha-se a uma trajetória.
Um desenrolar de fatos e eventos, com um começo, meio e fim. Pode ser
uma epopeia, um mito, uma tragédia, ou mesmo um conto, uma comédia
ou uma história simples.17 Na sua ampla possibilidade de expressões, as
narrativas não apenas veiculam sentidos, mas antes os estruturam de
forma lúdica, criativa, exprimindo-os de maneira a entreter e a reter a
atenção dos que as ouvem e as interpretam (pode-se acrescentar também
o prazer da enunciação da narrativa, quando se pensa que o contador do
fato ou do evento também extrai prazer desta prática). Neste sentido, as
narrativas exprimem a capacidade de recobrir a vida humana de aspectos
lúdicos. Uma vida humana interessante tende a se espelhar numa nar-
rativa de mesmo calibre, ou seja, numa narrativa lúdica, que entretém,
que prende os actantes (atores, personagens, participantes da narrativa)
numa trama na qual há alvos a serem perseguidos, conflitos e inimigos
a serem vencidos, trajetórias a serem percorridas. É nesta trama que os
sentidos da vida humana vão sendo criados, desenvolvidos e cultivados.
Daí a possibilidade de identificar a trajetória da vida de cada agente numa
narrativa que dê a ele possibilidades e horizontes a serem descortinados.
Os estudos semióticos acerca das narrativas permitiram desvendá-las
como trajetórias textuais que desenvolvem percursos gerativos de sentido.

17 A escola de semiótica de Pierre Greimas mostra de modo convincente que as


estruturas narrativas estão presentes em várias outras formas de expressão artística
como as canções ou mesmo em quadros e representações pictóricas, sendo também
verificadas em textos e discursos com formatos aparentemente incapazes de compor-
tar os elementos típicos de uma narrativa, como é o caso de receitas culinárias ou as
bulas de remédios, entre outros. Ver, a esse respeito, entre outros, GREIMAS, Algirdas
J. Semiótica das paixões. São Paulo: Ática, 1993.

Pedro Paulo de Oliveira · 


Esta perspectiva pode ser ampliada e abarcar a vida humana espelhada
nos fenômenos sociais, em suas tramas e trajetórias. A vida social constitui
uma imbricação de trajetórias individuais moduladas pelas possibilida-
des efetivas que cada uma delas desenvolve, num processo que envolve
conflito e cooperação entre trajetórias distintas ou similares. O conjunto
destas trajetórias, sua imbricação complexa e variável, dentro daquilo
que Elias chamava de “equilíbrio flutuante de tensões típicos das redes
de interdependência”, exprime a trama das histórias que desembocam no
percurso daquilo que nós chamamos de História coletiva. Dentro deste
quadro móvel, que se refaz a cada instante, é que se exprime o complexo
jogo não apenas de conflitos e disputas, mas também daqueles constituí-
dos e ladeados pelos comportamentos de solidariedade e amizade e que
tecem a vida cotidiana de todos nós.
As fofocas constituem uma forma de enunciação destas narrativas,
uma vez que participam ativamente da constituição das vivências inte-
racionais dos agentes. Elas apresentam aspectos bastante coincidentes
com a estrutura geral das narrativas.
Uma primeira aproximação óbvia entre as fofocas e as narrativas diz
respeito ao fato de que toda e qualquer fofoca consiste num relato de
eventos. Alguém narra acontecimentos acerca de fatos e comportamentos
de outros para um ou vários interlocutores.
Assim, como em qualquer narrativa, as fofocas são comunicadas,
obedecendo a um encadeamento de fatos e eventos numa ordem lógica
e/ou temporal capaz de ser enunciada e apreendida pelos ouvintes que as
repassam numa cadeia de interdependência, na qual os valores implícitos
são reiterados e reafirmados.
Da mesma forma que conflitos e tensões são fundamentais para o
desenvolvimento das narrativas, eles também têm importância precípua
para as atitudes conspiratórias das tramas comuns e ordinárias do nosso
cotidiano que podem motivar ou serem motivadas por fofocas. Essa carac-
terística comum é o que torna a vida social semelhante às narrativas, no
sentido em que boa parte dela se exprime em pequenas tramas e jogos que
modelam as vivências interacionais do nosso dia a dia. De um modo mais
amplo, o grande jogo da vida social se modela em torno dos conflitos que
configuram o equilíbrio flutuante de tensões típicos das redes de interde-
pendência nas quais prerrogativas destinadas a agentes e posições estão

 · Aspectos sociológicos da fofoca


sempre sendo disputadas, contestadas, confrontadas, buscadas a partir
de perspectivas variadas e distintas formuladas e assumidas pelos atores
que nelas vivem e interagem. Tal qual ocorre no modelo das narrativas.
Se as narrativas sempre veiculam sentidos que se exprimem em fór-
mulas muitas vezes sintéticas e simplificadas em que se percebe uma
admoestação ou crítica aos malfeitores e desviantes, o mesmo pode ser
percebido nos relatos típicos das fofocas. Se alguém realiza um ato ou
se comporta de maneira moralmente condenável para a maioria de um
modo furtivo, e é depois descoberto, ele(a) pode ser alvo de fofoca na qual
o seu prestígio vê-se diminuído, e neste caso a fofoca funcionaria como a
sanção negativa que ele recebe podendo inclusive desencadear uma trama
de reparação, bem como uma tentativa de alertar outros para o perigo de
se relacionar com o alvo da fofoca. Fofocar sobre tal fato é um primeiro
ato de condenação social que acarreta implicações diversas.
Na qualidade de narrativas da vida cotidiana, as fofocas sempre trans-
mitem sentidos sociais que exprimem e celebram os valores hegemônicos
num determinado contexto sócio-histórico. Dessa forma, as prescrições
em torno dos comportamentos sexuais, das atitudes em relação aos bens
alheios, das expressões pessoais inadequadas etc., orientam o aspecto
moral que baliza a interpretação dos fatos narrados, à luz de sua con-
veniência e adequação àqueles mesmos valores. Às fofocas subjaz um
sentido implícito que se exprime na adesão aos valores sociais prescritos
e hegemônicos, revelando aspecto semelhante ao que se pode encontrar
nas narrativas tradicionais.
As fofocas em geral alimentam o sarcasmo em relação aos que são
objetos de comentários e narrativas desprestigiosas, propiciam a ocasião
para a difamação de outrem, depreciam seu status simbólico e social;
funcionam na maior parte das vezes como recurso típico dos exercícios
conspiratórios que alimentam as tramas e narrativas do cotidiano. Este
fato é de uma significação fundamental quando se adota a perspectiva de
que a sociabilidade humana é caracterizada pelo lúdico, pelo caráter do
jogo (que é o mesmo que caracteriza as narrativas).
Além de funcionar como recurso nas tramas interacionais do coti-
diano, a boataria propicia outras fontes de prazer lúdico. Um dos aspectos
fundamentais para se entender esta característica de diversão essen-
cial é a capacidade de vivenciar vicariamente o périplo e a trajetória dos

Pedro Paulo de Oliveira · 


personagens em uma narrativa. Já foi destacada anteriormente a possibi-
lidade de vivência vicária que as fofocas propiciam aos “comentaristas da
vida alheia”. Acrescente-se aí o fato de a enunciação da fofoca ser em si
própria um ato de jogo e deleite entre os jogadores, neste caso os próprios
fofoqueiros. É interessante pensar como a fofoca, enquanto forma social,
apoia-se no desvelamento de segredos e como tal fato tem um inegável
rendimento lúdico.
Aqui também há uma importante aproximação entre os efeitos sociais
e individuais propiciados pelas fofocas e pelas narrativas, ainda que no
caso destas últimas as “benesses” sociais sejam mais amplas e de uma
significação mais relevante. Aristóteles já enunciou o efeito catártico que
as tragédias gregas produziam em seus espectadores e o mesmo pode
ser dito de qualquer narrativa clássica ou contemporânea em suas mais
diversas e inusitadas formas e fórmulas. Além das vivências vicárias, as
catarses que se exprimem na condenação implícita dos que são alvo de
boatarias aproximam também fofocas e narrativas. Ao se pensar as fofocas
como elementos fundamentais das tramas e jogos do cotidiano, podemos
perceber a importância desta última para as vivências interacionais de
todos nós.

Profecias que se autorrealizam

Além do efeito facilmente verificável de desprestigiar e macular ima-


gens sociais dos agentes, outro efeito menos evidente, porém dos mais
interessantes, da fofoca, é aquele no qual uma boataria reiterada sobre
comportamentos tidos como desviantes acaba por propiciar a realização
dos efeitos previstos, obedecendo ao postulado sociológico da profecia
que se autorrealiza.18
As fofocas são narrativas que descrevem eventos e ao mesmo tempo
trazem implícitos julgamentos acerca dos comportamentos narrados,

18 Pelo que sei, o primeiro sociólogo a esboçar as ideias que constituem tal postulado
foi Weber em seu Economia e sociedade – WEBER, Max. Economia e sociedade, Vols. 1 e 2.
Brasília: Editora UnB, 1994 [1910] –, no entanto, ficou famoso na pena de Merton e foi
utilizado por outros sociólogos, dentre os quais o próprio Elias e também Bourdieu –
ver BOURDIEU, Pierre. Razões práticas. Campinas: Papirus, 1996.

 · Aspectos sociológicos da fofoca


imputando aos agentes envolvidos nos fatos relatados as avaliações elo-
giosas ou depreciativas de acordo com as fórmulas das praise gossips ou
blame gossips, respectivamente. Assim, ajudam a disseminar uma imagem
social específica daqueles que são os protagonistas envolvidos nos relatos
de mexericos. Esta imagem social tem importância no processo de cons-
tituição identitária dos agentes, tal como o processo de identificação dos
jovens discriminados de Winston Parva, que acabavam por confirmar em
suas condutas expressas em regimes de interação específicos a fama de
desordeiros que lhes era comum na cidade.
Seguindo as argumentações presentes em Os estabelecidos e os outsi-
ders, se um grupo tem suficiente força para imputar aos outsiders a mácula
de desonra em função do comportamento que o grupo dominante consi-
dera desviante, ocorre um interessante efeito de profecia que se autorrea-
liza. Ao perceberem a total inutilidade de se comportar tal como a cartilha
de honra mantida pelos dominantes, uma vez que serão alvo de fofocas
independentemente do que venham a fazer, os outsiders passam a desfrutar
de uma liberdade frente às restrições comportamentais que os dominantes
precisam considerar para manter seu status. Uma vez estigmatizados e
transformados em alvos de constantes mexericos, fundamentados ou não,
os outsiders passam a confirmar sua inconsistência de status.
Nos encontros de jovens nas igrejas locais, os moradores dos bairros
da zona 3 (região de má fama na cidade) faziam algazarras, falavam pa-
lavrões e se comportavam de modo a se adequar à fama que possuíam.
Pode-se pensar que agiam assim, pois explicitavam uma forma de revolta
contra a condição a eles imputada. Alguns deles, ao tentarem explicar
este comportamento, diziam que era aquela conduta criticada a única
forma de serem notados ou vistos pelos que os discriminavam. Aprovei-
tavam-se naquelas ocasiões para se divertir, dando rédea solta aos seus
“desregramentos”, uma vez que não tinham que defender nenhum status
favorável advindo de comportamentos elogiáveis, mesmo porque, quando
procediam socialmente de modo comum, não recebiam nenhum mérito
por isso. Assim, mesmo que agissem de modo “adequado”, eram sempre
vistos com desconfiança por seus detratores.
Sem condições de adquirir um status favorável, eles relaxavam e ne-
gligenciavam em suas condutas o tipo de comportamento visto como con-
veniente. Dessa forma confirmavam o que socialmente era disseminado

Pedro Paulo de Oliveira · 


por meio de fofocas e mexericos, reafirmando assim um velho adágio
popular, segundo o qual “quem tem fama deita na cama”. Tão logo sur-
giam as oportunidades para o comportamento tido como inadequado eles
se manifestavam nas atitudes dos jovens discriminados que, em função
disso, reforçavam o estigma que sobre eles incidia.
Se as fofocas consagraram para um segmento social ou mesmo para
um agente isolado uma imagem social vilipendiada, elas tendem a pro-
pendê-los ou, ao menos, tornam mais plausível que seus comportamentos
venham a confirmar esta visão socialmente disseminada. Esta proposição
vai ao encontro do famoso teorema de Thomas, que postula a ideia se-
gundo a qual não é tão importante se a interpretação dada por um grande
número de pessoas acerca dos fatos é ou não correta, o que importa de
fato é que, “se os homens definem situações como reais, elas são reais em
suas consequências”.19
Não se trata de determinismo, pois isso não quer dizer que todos os
agentes de um grupo específico irão se comportar da forma que costumam
ser socialmente vistos e depreciados, mas torna as atitudes criticadas
mais plausíveis para alguns deles e, portanto, estatisticamente mais re-
presentativas na conduta dos agentes do grupo em questão, efetivando o
famoso postulado da profecia que se autorrealiza.
Esta formulação só pode ser mais bem-compreendida quando se pen-
sa a ideia de formação da autoimagem do agente correspondente ao seu
self (si-mesmo, si-próprio) por meio dos processos de interação que irão
também constituir sua identidade pessoal e social, bem como as práticas
a ela associadas, segundo as argumentações descritas por Mead em seu
clássico Mind, Self, and Society.20
Ao perceber a força coletiva da imagem social que se constrói na dinâ-
mica interacional e que modela o self do agente, ele tende a confirmá-la,
retirando daí as vantagens que ela propicia e ao mesmo tempo pagando
os custos de estar a ela associado. Essa dinâmica não é percebida de modo
consciente pelos agentes, mas se constitui paulatinamente no decurso
cotidiano das inúmeras situações de convívio e interação entre as pessoas.

19 THOMAS, William Isaac; Thomas, Dorothy Swaine. The Child in América: Behavior
Problems and Programs. Nova York: Knopf, 1928.
20 MEAD, George Herbert. Mind, Self, and Society. Chicago: The University of Chicago
Press, 1967 [1934].

 · Aspectos sociológicos da fofoca


As vantagens de uma imagem social valorizada são o alto prestígio e
status sociais que garantem prerrogativas de poder (simbólicas e mate-
riais) em situações específicas. As desvantagens advêm da necessidade de
contínua monitoração do comportamento de acordo com as prescrições
sociais que devem ser seguidas; em outras palavras, trata-se do decoro
que se impõe aos que buscam a ela se conformar e que se traduzem como
os custos ineludíveis para se manter no topo da escala social. Os que
se comportam de forma condenada não possuem poder nem prestígio,
mas não precisam se ater aos rígidos preceitos que incidem sobre os que
buscam se manter no grau mais alto e valorizado das posições existentes
na rede configuracional. Se por um lado, noblesse oblige, por outro, misère
n’oblige pas.

Vivências interacionais

Simmel, incontestavelmente o primeiro sociólogo a propugnar o modelo


interacional de análise sociológica, dizia que seria impossível pensar a
existência do beijo sem o processo que envolve dois agentes. Poderíamos
dizer que não há beijo sem a interação de parceiros e que ele encerra um
processo que está além de um mero par de lábios, além dos movimentos
e sensações que provoca.21 Da mesma forma, se existe fofoca é porque
há uma interação que envolve, no mínimo, uma díade interacional. A
interação é o ponto de partida tanto para Simmel como para Mead e Gof-
fman, e de alguma forma esse autores nos ajudam a pensar, de um ponto
de vista sociológico, as tramas da vida cotidiana que suscitam as fofocas,
bem como aquelas por elas propiciadas. Tramas, jogos e narrativas são
aqui tomados como elementos fundamentais para o entendimento das
interações sociais. Subjazem enquanto forma fundamental das interações.
Antes, no entanto, de explorarmos esses aspectos, foquemos na questão
da interação.
Goffman pensava a interação como aquela influência recíproca dos
indivíduos sobre as ações uns dos outros, quando em presença física

21 SIMMEL, Georg. On Individuality and Social Forms (Selected Writings). Chicago: The
University of Chicago Press, 1971.

Pedro Paulo de Oliveira · 


imediata.22 Neste sentido, a fofoca pode ser vista como uma narrativa
que se efetua em presença física imediata ou não e que tem o impacto de
revelar alguma novidade na qual se reavalia a posição e o status social dos
envolvidos na trama e nos eventos descritos.
As fofocas devem ser pensadas como um momento de interação que
reatualiza valores e práticas legitimadas como socialmente válidas e po-
sitivamente sancionadas, embora nem sempre isto esteja claro ou seja
percebido de forma consciente entre os que fofocam. Da mesma forma,
as implicações sociais aqui discutidas acerca das fofocas não são visíveis e
controláveis pelos que acionam a boataria dentro das cadeias de interação
e interdependência dos agentes nelas envolvidos.
Elas são narrativas que em tese descrevem outras narrativas vivas, ou
seja, descrevem tramas expressas em vivências interacionais efetivamente
encenadas num momento pregresso. Por serem representações que podem
se moldar ao feitio de quem as aciona, guardam um variável grau de distân-
cia e imprecisão em relação aos fatos que lhes deram origem (o que nos faz
lembrar o adágio popular, segundo o qual “quem conta um conto aumenta
um ponto”). A possibilidade de enfatizar aspectos dos fatos em detrimentos
de outros, de realçar nuances e de omitir deliberadamente informações,
de poder manipular os fatos dentro de certo limite, constituem algumas
das possibilidades lúdicas que as fofocas propiciam aos que as repassam.
O agente que aciona a boataria pode utilizá-la como estímulo fun-
damental para tramar com outros. Aqui há um elemento importante: as
fofocas podem descrever tramas e ao mesmo tempo iniciar e/ou reiterar
outras que se desdobram em implicações futuras para a manutenção ou
mudança no equilíbrio de poder constante na rede de configuração dos
agentes. Daí a possibilidade de chamá-las de narrativas vivas. Admitindo
as tramas e narrativas do cotidiano como forma elementar das interações,
é possível então entender a importância que esse processo pode ter no
sentido de fortalecer ou emascular a imagem social dos que são alvo dos
mexericos. Neste sentido, elas expressam momentos de outras narrati-
vas, reportando-as, retratando-as, revelando-as, enviesando-as, enfim,
tornando-as narrativas outras que por meio das fofocas influenciam e
alteram os rumos e ritmos das vivências interacionais cotidianas.

22 GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

 · Aspectos sociológicos da fofoca


Jogos, tramas e narrativas

Vários aspectos podem ser indicados para apontar o fato de que os jogos
contêm as estruturas mínimas que constituem as narrativas e que estas
são, em essência, um tipo complexo de jogo que pode incluir em suas
tramas vários outros tipos de jogos. Poderíamos pensar numa escala de
complexidade que vai do jogo à narrativa, passando, neste percurso, pelas
inúmeras tramas que compõem esta última e que se constitui por uma
miríade de possibilidades de jogos.
Trabalho aqui com a ideia segundo a qual a sociabilidade humana
apresenta em essência o formato do jogo ou, ainda, que o elemento lúdico
constitui a forma básica da sociabilidade. Esta ideia é formulada expli-
citamente por Simmel. Dos impulsos eróticos aos interesses práticos,
das questões religiosas aos assuntos referentes ao comércio, à guerra, à
defesa etc. estamos sempre diante de formas de associação entre agen-
tes humanos que se organizam solidariamente e/ou em contraposição a
outros. Os conteúdos podem ser os mais variados possíveis, mas a forma
que a sociabilidade presente nestes processos assume é aquela típica do
jogo, que para mim é apenas um modelo restrito de narrativa. Simmel é
o primeiro sociólogo que destaca a forma da sociabilidade como sendo
tipicamente lúdica. Outros irão segui-lo, ainda que acrescentem a estas
formulações, até então inusitadas, ideias também originais.
Mead nos permite pensar a passagem dos jogos sociais para as tramas
e consequentemente para as narrativas do cotidiano. Nele é possível cons-
tatar, por exemplo, a relação entre processos interacionais e as questões
lúdicas. Para ele, os regimes interacionais que constituem o self de cada
agente são primeiramente ensaiados durante a infância nas diversas brin-
cadeiras em que as crianças assumem diversos papéis sociais diferentes:23
pai, mãe, médico, cavaleiro, monstro, herói etc. Esses papéis são aqueles
adotados pelos diversos actantes que compõem as narrativas sociais e
humanas. As brincadeiras (“play”) transformam-se em jogos (“games”)

23 Apesar de Mead ter enunciado com clareza a noção de papel social bem antes de
Parsons, este último figura como o responsável pela elaboração deste conceito, devido
a dois fatores: em função do fato de ele fazer desta ideia amplo uso em sua caudalo-
sa obra e, é claro, pelo simples desconhecimento por parte dos sociólogos da obra de
Mead. Ver MEAD, op.cit.

Pedro Paulo de Oliveira · 


quando então, já adultos, os agentes integram com os demais as diversas
“equipes” no trabalho, na família, na política, na rede de amigos, nos
cultos, nos campos científicos24 etc. Em todos esses universos sociais,
constituem-se tramas e narrativas vívidas e reais, nas quais os agentes
nelas estão integrados por meio de suas atuações e relações com os demais.
Em Goffman, podemos observar a dimensão das interações humanas
em um regime de dramaturgia, ou seja, num formato típico das narrativas.
Para ele, a sociabilidade humana nos diversos regimes interacionais pode
ser pensada na modalidade dramatúrgica dos enredos teatrais. Juntos
aqui estão jogos, tramas e narrativas. Bateson formulou a ideia segundo
a qual até mesmo as nossas conversas cotidianas, frívolas ou sérias, são
modelos de jogos interacionais.25 Finalmente, em Huizinga, o homo ludens
foi postulado como sendo aquele que melhor descreve a essência da vida
humana e esta essência se inscreve no coração da própria cultura que para
ele assume também o caráter do jogo, pois “no ato de conferir expressão
à vida, o homem cria um segundo mundo, um mundo poético contíguo
ao mundo da natureza”. Assim, “o jogo cria a ordem, o jogo é a ordem.
O jogo introduz uma perfeição limitada e temporária na imperfeição do
mundo e na confusão da vida. Exige uma ordem suprema e absoluta”.
O jogo é aquele formato de existência no qual se desloca a preocupação
para os aspectos não sérios da vida, “mas, que ao mesmo tempo, absorve
intensa e completamente o jogador”.26
A possibilidade de aproximação entre jogos e narrativas é percebida no
momento em que o autor busca aproximar o jogo dos rituais sociais, pois, da
mesma forma que estes últimos, as narrativas têm todas as características
formais e essenciais de um conjunto de jogos que se entremesclam num
compósito harmônico com relações de solidariedade e cooperação coorde-
nadas com outras de conflito e competição entre actantes (atores, agentes).

24 Deve-se mencionar o fato de que em cada rede de interdependência, em cada


grupo, em cada vivência interacional há a humana propensão para o jogo. Partindo
daí, posteriormente, Bourdieu buscou trabalhar o processo de sublimação da libido
em atividades socialmente sancionadas que se traduz, segundo a sugestão do autor,
em illusio, elemento fundamental que mobiliza os agentes em torno dos processos e
vivencias interacionais nos diversos campos em que atuam (ou nas diversas redes de
interdependência interacional) – ver BOURDIEU, op.cit.
25 BATESON, Gregory. Metadiálogos. Lisboa: Gradiva, 1996, pp.27-36.
26 HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. Lisboa: Edições 70, 2003.

 · Aspectos sociológicos da fofoca


As narrativas são jogos, porém diferentemente destes que possuem
ordenamentos, regras e posições pré-determinados que devem ser obede-
cidos para efetivar sua realização e desenvolvimento, elas se constituem de
uma miríade de possibilidades de jogos dentro de sua própria estrutura. As
unidades constituídas por jogos diversos são as tramas que vão organizar
e consolidar um determinado percurso gerativo de sentido nas narrativas.
Isto quer dizer que, obedecidas as regras básicas de realização de um
percurso gerativo de sentido no qual programas, objetivos e actantes
(atores, personagens, agentes envolvidos nas tramas) se entrelaçam para
constituir a sua tessitura, as narrativas têm as características de com-
preender jogos dentro de jogos e mudar as possibilidades de ordenamento
de acordo com o desenvolvimento dos jogos que a constituem, tornando-
-a aberta e não circunscrita aos ordenamentos característicos dos jogos
comuns. Nesse sentido a estrutura da narrativa é mais aberta e flexível do
que aquela que se percebe quando comparada com as estruturas menos
flexíveis dos diversos jogos existentes. Desse modo, as narrativas são
marcadas por seu caráter aberto, ainda que mantenham com os jogos a
similaridade de possuir um importante elemento lúdico que as caracteriza
e as define em sua essência.
O que se postula aqui é o fato de que toda atividade social está marcada
pelas tramas interacionais nas quais os agentes assumem papéis variados
que se transformam tão logo tenhamos uma dinâmica ambientada em
contextos diferenciados. Essas tramas são facilmente percebidas como
narrativas, ou melhor, podem ser encaradas como uma estrutura narrativa
na qual os jogos se desdobram e se reatualizam a partir das diferentes
atuações e vivências interacionais que os agentes constituem em suas
vidas. As tramas seriam uma denominação adequada para os diversos
regimes de sociabilidade e interação vivenciados pelos agentes e que
variam de um jogo relativamente simples (como as conversas) até um
conjunto de jogos que tornam bem mais complexa a cadeia de tramas a
ponto de se consolidar uma verdadeira narrativa (disputas geopolíticas,
lutas em torno da defesa de planos, leis etc; processos de consolidação
ou desestabilização institucional, entre outras inúmeras possibilidades).
Em relação a isto, as fofocas são aquelas narrativas do cotidiano que
aparecem como decalcadas a partir das diversas perspectivas e valores que
constituem uma dada cultura num determinado contexto e momento. Elas

Pedro Paulo de Oliveira · 


são narrativas de segunda ordem que buscam descrever outras narrativas
vividas por outros e se integram à vida social como elemento importante
de controle das atividades e comportamentos alheios.
As fofocas estão numa situação bastante singular quando pensadas
de acordo com os modelos das narrativas vivas que são constituídas pelas
tramas interacionais da vida cotidiana. Descrevem-nas e ao mesmo tempo
inspiram-nas, pois, acionadas pelos eventos interacionais pregressos,
elas dinamizam batalhas em torno da especulação do prestígio e do status
alheios, desencadeando assim eventos futuros nos quais se rearticulam
os conflitos e as alianças num processo complexo, entremesclados pela
reatualização dos valores consagrados e hegemônicos numa determinada
rede configuracional.
Pode-se pensar que as fofocas não apenas reiteram valores, mas tam-
bém que servem para reavaliar o status dos agentes (actantes, atores) e
dessa forma funcionam como elemento de desestabilização dos circuitos
de poderes estabelecidos num contexto específico de sociabilidade. De
acordo com essa perspectiva, elas funcionariam então como recurso de
controle e/ou alteração dos instáveis equilíbrios de tensões que envolvem
os agentes nas tramas da vida cotidiana.
Vários exemplos poderiam servir para ilustrar essa potencialidade
das fofocas. Uma trama simples poderia ilustrar situações desse tipo: um
subalterno, ao replicar, de forma intencional e com objetivos definidos, o
comentário inconfessável que um determinado colega expressou acerca
de sua incompatibilidade com as práticas gerenciais de um superior para
o próprio, pode estar atuando no sentido de desprestigiá-lo frente ao
superior, esperando daí retirar vantagens, tal como assumir seu lugar. Se
já houver um conjunto de tramas que possibilite tratar essa fofoca como a
“gota d’água” na relação entre superior e subordinado, o estratagema pode
funcionar e levar a uma mudança concreta e prática da relação de forças
envolvidas na configuração da rede de interdependência constituída no
local de trabalho, a partir da destituição de um subordinado e sua conse-
quente substituição pelo outro que fez chegar tais mexericos aos ouvidos
adequados, de acordo com a perspectiva de quem acionou a boataria.
Este exemplo exprime a potencialidade das fofocas que são cons-
tantemente repassadas nas redes de interdependência, atuando como
elementos fundamentais para a manutenção ou mudança do equilíbrio

 · Aspectos sociológicos da fofoca


instável de tensões que constituem as dinâmicas configuracionais sub-
jacentes às práticas e atividades cotidianas de todos nós.
Ao mesmo tempo que funcionam como “chamadas à ordem” pela
ameaça de constrangimentos causados pela depreciação do prestígio
daqueles que ousam “atuar” de forma a contestarem valores caros à rede
social como um todo, elas oferecem inúmeras possibilidades lúdicas aos
que vivem da excitação propiciada pelos mexericos e que constituem a
quase totalidade dos agentes integrados às diversas redes de interação
social existentes. Dessa forma, se constituem como eficientes mecanismos
constantemente acionados de manutenção dos objetivos fundamentais
que orientam as diversas tramas que compõem a vida social de uma cul-
tura. Por fim, as fofocas se elaboram para auferir ganhos práticos e lúdi-
cos da revelação dos segredos pessoais e sociais. Aqui a volta a Simmel é
inevitável, pois foi ele quem postulou a ideia de que os segredos, assim
como o dinheiro, reúne potencialidades a serem desfrutadas por aqueles
que os guardam. Ao gastá-los, ou revelá-los os agentes auferem benefícios
potenciais que se efetivam nas trocas cotidianas, ainda que ao fazerem
isto dilapidem-se riquezas e desvelem-se segredos. A característica do
lúdico e, portanto, do jogo como fundamento da vida social está nova-
mente explicíta nesta breve e sumária tentativa de análise das fofocas.

Conclusões

As fofocas podem ser analisadas segundo uma perspectiva na qual elas


atuam para reiterar o ordenamento social e a manutenção dos valores
hegemônicos de uma cultura num determinado momento histórico. As-
sim, podem ser vistas como veículos de manutenção de valores. Exercem
fascínio nos agentes, pois por meio delas pode-se obter a atenção dos
outros. Ademais, permitem aos fofoqueiros um afastamento dos agentes
que estariam incidindo em práticas socialmente censuráveis.
Abordou-se também a ideia segundo a qual a enunciação de uma
fofoca delicia os que acionam ou mantêm a boataria, pois provê aos me-
xeriqueiros a vivência, ainda que vicária, dos fatos e eventos narrados
e enunciados. Dessa forma, no jogo para se obter a atenção do interlo-
cutor deve ser explorado o elemento sádico de depreciação do outro, o

Pedro Paulo de Oliveira · 


afastamento e a vivência vicária, bem como a manipulação do prestígio
e status alheio que propicia sensação de poder aos que gostam de “soltar
a língua”.
Assim como as fofocas sobre as pessoas de seu circuito de relações,
os moradores de Winston Parva adoravam comentar os fatos acerca das
celebridades que apareciam nos jornais da cidade. Vivência vicária e ao
mesmo tempo vivência protagonizada ao se relatar para o outro a narra-
tiva do mexerico.
Baseando-se na obra de Elias, pode-se observar que há uma tendência
para que as fofocas sejam mais frequentes entre agentes ligados entre si em
grupos de sociabilidade mais estreita, as chamadas paróquias comunais,
ou “igrejinhas”, o que denota um maior controle do comportamento dos
agentes nestes grupos em função, entre outras coisas, do grau e frequência
da boataria intensa que só neles ocorrer. Elias menciona o fato de que, de
modo geral, pode-se dizer que, quanto mais os membros de um grupo
sentem-se seguros de sua superioridade e seu orgulho, menor tende a
ser a distorção, a discrepância entre sua imagem e a realidade, o que leva
a uma menor necessidade de se recorrer a mexericos para tramar nas
microbatalhas do cotidiano, e, por outro lado, quanto mais ameaçados e
inseguros eles se sentem, maior é a probabilidade de que a pressão interna
e, como parte dela, a competição interna levem as crenças coletivas a ex-
tremos de ilusão e de rigidez doutrinária”,27 bem como a uma intensa rede
de boataria acionada para exercer tal controle. A incongruência entre as
crenças (que acabam por favorecer percepções distorcidas da realidade) e
os fatos efetivos leva a um menor controle sobre esses últimos, propiciando
assim um sentimento de insegurança que irá por sua vez propiciar mais
distorção sobre os fatos, num circuito recursivo difícil de ser quebrado.
Foi possível abordar também o fato de a fofoca ou boataria poderem
atuar no sentido de realizar o postulado da profecia que se autorreali-
za, por meio de mecanismos complexos nos quais os eventos narrados,
baseados ou não em evidências reais, exercem um poder de realização
inusitado em diversas situações.
A fofoca torna a vida das pessoas mais interessante, pois as tira da sua
rotina e dá a elas uma possibilidade de representação espetacularizada

27 ELIAS; Scotson, op.cit., pp.125-126.

 · Aspectos sociológicos da fofoca


de eventos da vida alheia que tenham algum significado escandaloso ou
digno de atenção diferenciada, por isso têm um valor considerável como
entretenimento, sem contar os benefícios auferidos por aqueles que se
refestelam com o protagonismo da revelação dos segredos.
Seria possível pensar que nossa vida e nossas relações são formas de
narrativas vivas. A narrativa viva compõe-se de outras narrativas que são
móveis, abertas, rígidas, aceleradas, densas, contrapostas, conflagradas
entre si ou numa cooperação cega e surda. A complexa trama da vida
social torna-se pensável a partir da combinação destas possibilidades
em inúmeros arranjos e formatos variados. Neste sentido, nós próprios
exprimimos, por meio de nossas ações e relações, narrativas vivas para
outros seres humanos e continuamente nos convertemos em símbolos,
somos personagens de narrativas contrárias ou amistosas para os outros.
Ou melhor, identificamo-nos com alguns que são símbolos e narrativas
para nós próprios. Confrontamo-nos com aqueles que desafiam, impedem
ou prejudicam o prosseguimento de nossas ações ou que interpõem razões
existenciais diferentes das nossas para a realização de suas narrativas.
Somos alvos e enunciadores de fofocas e mexericos.
As fofocas seriam assim formas narradas de apresentação destes even-
tos num formato de censura prévia nas quais os valores sociais funciona-
riam como régua de análise e avaliação dos comportamentos humanos.
A ideia da concorrência sistemática pela aprovação reforça a ideia da su-
perioridade na submissão.
Uma das coisas mais interessantes na análise sociológica da fofoca é
o fato de que ela pode fornecer elementos de compreensão da vida social
em seu aspecto sócio-estrutural, bem como em suas facetas microin-
teracionais. Elas não têm uma função única, exclusiva e determinada.
Podem ser vistas como índices que exprimem o grau de celebração de
valores: quando tiverem alto poder de desestabilização do prestígio dos
que estão nelas envolvidos tendem a exprimir o alto grau de que goza
um determinado valor no qual se baseiam comportamentos, atitudes,
condutas; na situação contrária, apontam para a erosão daquele valor em
grupos específicos, uma vez que a transgressão dos valores em questão
não mais suscita qualquer tipo de reação mais forte e nem deprecia o va-
lor dos protagonistas envolvidos nos fatos que geraram as narrativas de
fofocas. Nesta perspectiva, integram o conjunto de elementos nos quais

Pedro Paulo de Oliveira · 


se pode enxergar um mapa dos aspectos sócio-estruturais de uma dada
(sub)cultura. Assim também ocorre quando se percebe o valor integrador
que as fofocas exprimem ao atuar como elemento de controle e integração
do grupo.
A realização do teorema de Thomas e as confirmações inesperadas
previstas pela fórmula das profecias que se autorrealizam dão conta de
um imbricado processo social no qual aspectos sócio-estruturais se dis-
põem em momentos diferentes das práticas microinteracionais do nosso
cotidiano, no qual as fofocas têm um papel inusitado e insuspeitado.
As fofocas propiciam deleite, prazer e excitação aos que as enunciam
e aos que as ouvem. Promovem uma importante distância simbólica dos
fatos e personagens envolvidos nas narrativas ventiladas, ao mesmo tempo
que permitem a famosa vivência vicária destes mesmos fatos. A sensação
de domínio sobre a vida alheia, a excitação de conspirar, tramar e decidir
sobre a reputação de outrem e, portanto, de influir no processo de de-
preciação dos outros, traz uma inegável possibilidade de fruição pessoal
importante para se entender o porquê de ela ser um expediente recorrente
e frequente nas interações cotidianas. Isso sem contar a possibilidade de
desforra frente aos adversários e o delicioso exercício de passar o tempo
comentando sobre os problemas alheios, enquanto nos esquecemos dos
nossos e nos refestelamos em dissecar e aumentar (sempre que possível)
os “desvios” e fraquezas dos que nos cercam.
Sua importância ultrapassa a dimensão dos conflitos e vivências coti-
dianas, pois integram a concertação da vida social ao funcionarem como
elemento de controle moral, influindo de modo constante na conformação
dos esquemas e disposições sociais, bem como confirmando e reiterando
valores e visões de mundo específicas.

 · Aspectos sociológicos da fofoca


“Cumpri a minha missão”: dádiva,
sacrifício e reconhecimento

P G  A

“C umpri a minha missão” poderia soar retórico se a com-


preensão não partisse da perspectiva êmica daqueles cuja categorização
nativa de duas cidades da Zona da Mata Mineira define como filhos de
criação: “Pessoas especiais, escolhidas por Deus, que cuidam dos pais até
a morte.” A expressão no título é de Clara,1 58 anos, “adotada” aos 5 anos
por um casal economicamente bem-sucedido que possuía três filhos de
sangue (duas mulheres e um homem), sendo dois deles “bem mais velhos”
e que já não moravam com os pais. Após a chegada de Clara, a família teve
mais um filho de sangue, um menino. Assim, viviam juntos o casal, uma
filha de sangue, Clara e o caçula. Passado alguns anos, a filha de sangue foi
estudar odontologia em Belo Horizonte. Mais alguns anos depois, o caçula
“se formou no colégio e se casou”. Clara não estudou, nem se casou. Sua
“missão” era outra. Até os 49 anos, ela dedicou sua vida ao cuidado da
casa e dos pais, até que eles morressem (o pai cinco anos antes da mãe).
A “missão” de “cuidar dos pais até a morte” é algo recorrente nas
narrativas e todos os dez filhos de criação entrevistados (seis mulheres
e quatro homens) cumpriram sua “missão” ou ainda a cumprem. Pre-
servadas as diferenças entre as trajetórias, alguns pontos são comuns
na vida dessas pessoas: o escasso acesso (às vezes nenhum) à escola; o

1 Todos os nomes citados são fictícios.


aprendizado desde a infância das tarefas de casa, apenas para as meninas,
e da roça, para meninos e meninas; rigorosa instrução religiosa (católica);
ausência de relacionamento amoroso concomitante à vida com os pais de
criação; ausência de outras formas de trabalho fora do contexto familiar;
imobilidade com relação a viagens ou passeios; e, por fim, satisfação em
contar que cumprem ou cumpriram a “missão”.
A pesquisa de campo foi realizada em duas etapas de três meses, a
primeira em 2006-2007 e a segunda em 2012, nas zonas rural e urbana
de duas cidades da Zona da Mata Mineira,2 que ficticiamente chamo de
Barão de São João Batista e Bagre Bonito. Vários são os motivos que levam
os pais, na grande maioria apenas a mãe, a dar seus filhos a outras famílias,
mas dificuldades de ordem econômica geralmente lhes são subjacentes.
Todos os filhos de criação são oriundos de famílias economicamente muito
pobres. Entretanto, o mesmo não se estende às famílias que “pegam uma
criança para criar”; delas, não é possível traçar um perfil econômico, pois
na pesquisa apareceram desde núcleos muito pobres até famílias conside-
radas “ricas” que “pegaram para criar” uma ou mais crianças. Contudo, a
socialização do filho de criação acontece de modo análogo em todas essas
famílias, isto é, seja nas famílias pobres, seja nas famílias “ricas”, os filhos
de criação são “criados” para “cuidar dos pais até a morte”.
A prática de “pegar para criar” é uma herança do período colonial que
foi muito comum até o fim do século XX. Atualmente, não há registro de
novos casos desse tipo de adoção ilegal, em função, “apenas”, segundo
explicação nativa, do aumento da fiscalização (“a assistente social vem e
toma”). Contudo, é possível perceber a prática e o modo de socialização
dos filhos de criação preservados tal como outrora na memória coletiva,
cujas implicações tem ecos hodiernos.
De modo geral, as expressões “filho adotivo” e “filho de criação” se
mesclam nas narrativas; é comum a família apresentar um filho adotado
legalmente como filho de criação: “Esse aqui é o meu de criação.” Mas o
contrário é mais frequente: o filho de criação ser chamado e se classificar
como adotivo ou adotado. No âmbito da ação comunicativa, não existe

2 A Zona da Mata é uma das 12 mesorregiões do estado de Minas Gerais, formada


por 142 municípios agrupados em sete microrregiões. Situa-se na porção sudeste do
estado, próximo à divisa dos estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo.

 · “Cumpri a minha missão”


diferença entre “adotado” e “de criação”, como é possível perceber na
prosaica explicação de Laura: “É igual mandioca e aipim... é uma coisa
só, né? Eu acho que é tudo uma coisa só, não muda nada não, criação
com adotivo.” Contudo, como diz a doceira e poeta Cora Coralina, “na
prática, a teoria é outra”. Existe uma diferença que é decisiva entre adotar
ou “pegar para criar” uma criança: o acesso à herança. É compartilhado
socialmente que apenas o filho adotado legalmente tem direito à herança.
Com relação aos filhos de criação, o que acontece é exatamente o contrário:
eles próprios são concebidos pela família de criação como potencialmente
“herdáveis”, como mostram os casos de Maria, Joana e João Paulo, que
passam de uma geração a outra “cuidando da família”.
É comum encontrarmos a categoria filho de criação associada à prática
da “circulação de crianças”3 e analisada nos quadros analíticos do que

3 Foi a antropóloga Cláudia Fonseca quem inaugurou as investigações brasileiras a


respeito da circulação de crianças com base nos resultados de uma pesquisa de cam-
po realizada na década de 1980 em bairros populares de Porto Alegre, RS. FONSECA,
Cláudia. Caminhos da adoção. São Paulo: Cortez, 1995. Posteriormente, Maria Angélica
Motta-Maués – MOTTA-MAUÉS, Maria Angélica. “Na ‘casa da mãe’/na ‘casa do pai’:
Anotações (de uma antropóloga e avó) em torno da ‘circulação’ de crianças.” Revista
de Antropologia, vol.47, n.2, 2004, pp.427-452 – chamou atenção para a circulação de
crianças também nas classes média e alta da população. Recentemente, Emília Pie-
trafesa de Godoi – PIETRAFESA DE GODOI, Emília. “Reciprocidade e circulação de
crianças entre camponeses do Sertão.” In: Pietrafesa de Godoi, Emília; Menezes, Ma-
rilda Aparecida de; Marin, Roza Acevedo (orgs.). Diversidade do campesinato: Expressões
e categorias, Vol II: Estratégias de reprodução social. São Paulo: Editora Unesp, 2002 –
dedicou-se à análise da prática entre os camponeses do Sertão do Piauí. É importante
observar que a categoria “filho de criação” aparece de maneiras e em graus diferencia-
dos nesses estudos. Fonseca observa que seus interlocutores reconhecem a categoria,
mas raramente a utilizam, pois a ênfase está mais no vínculo, “o menino que eu criei”,
do que no indivíduo autônomo. Em Motta-Mauès, o termo não cabe nos contextos de
socialização onde as crianças das classes média e alta circulam, e nos contextos onde
se encontram, a autora observa sua sobreposição pela categoria “cria de família”, cujas
configurações são distintas da categoria filho de criação. Ver MOTTA-MAUÉS, Maria
Angélica. “Crias, criadas, filhos de criação: Filhos todos são? Adoção, afetividade e fa-
mília na Amazônia.” Trabalho apresentado na 25ª Reunião Brasileira de Antropologia,
Goiânia, 2006. Tradicionalmente, como apontaram estudos clássicos da sociologia e da
antropologia rural, a categoria filho de criação é frequente entre camponeses, de modo
que é no estudo de Pietrafesa de Godoi que podemos observar maior referência a ela.
De todo modo, é importante frisar que esses estudos tratam a circulação de crianças a
partir dos motivos/estratégias ou códigos morais que levam os pais a colocarem seus
filhos em circulação.

Priscila Gomes de Azevedo · 


alhures convencionou-se chamar de fosterage. 4 Nos contextos da Zona
da Mata Mineira, a prática de “pegar para criar” não se confunde com a
“circulação de crianças” e nem o filho de criação com o foster child. O filho
de criação “pertence” a apenas uma unidade familiar, a dos pais de criação.
A partir do acolhimento, rompe-se o vínculo e o contato com a família
de origem e, como vimos, com vários outros contextos de socialização.
A identidade do filho de criação está atrelada à coabitação da “casa”5 dos
pais de criação. A coabitação, associada às práticas concernentes a um filho
de criação, constituem o parentesco.6
O caráter de “imobilidade”, contudo, também é percebido na defi-
nição de outras categorias próprias do mundo rural, o que faz com que
a categoria filho de criação tenha mais uma vez o apagamento de suas
fronteiras. Trata-se, sobretudo, das categorias morador e agregado.7 Po-
rém, existe uma questão fundamental de diferenciação: o agregado não

4 Margaret Mead, nas etnografias clássicas dos Arapsh e de Samoa, faz uma das pri-
meiras descrições etnográficas de arranjos familiares e residenciais que tendem a apa-
gar o papel de um só casal na criação e educação dos filhos. MEAD, Margaret. Coming of
age in Samoa: a psychological study of primitive youth for western civilization. Nova York:
Morrow Quill Paperback, 1961. Para etnografias sobre fosterage em diversos contex-
tos, consultar: na África Ocidental, GOODY, Esther. Parenthood and Social Reproduction:
Fosterage and Occupational Roles in West Africa. Cambridge: Cambridge University Press,
1982; na Oceania, CARROLL, Vern. Adoption in Eastern Oceania. Honolulu: University
of Hawaii Press, 1970; e entre os esquimós, GUEMPLE, Lee. Inuit Adoption. Ottawa: Na-
tional Museum of Man, Mercury Series, Canadian Ethnology Service, Paper n.47, 1979.
5 A categoria “casa” aparece como “espaço moral”. Utilizo como referência DAMAT-
TA, Roberto. A casa e a rua: Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro:
Rocco, 1985; DUARTE, Luiz Fernando Dias; Gomes, Edilaine de Campos. Três famílias:
Identidades e trajetórias intergeracionais nas classes populares. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2003; CABRAL, João de Pina. O homem na família: Cinco ensaios de antropologia.
Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2003; MARCELIN, Louis. “A linguagem da casa
entre os negros do recôncavo baiano.” Mana: Estudos de Antropologia Social, vol.5, n.2,
1999, pp.31-30.
6 Vale observar que não é apenas na Zona da Mata Mineira que a categoria filho de
criação ganha contornos muito distintos daqueles que caracterizam as modalidades
de fosterage ou circulação de crianças. No estudo sobre os povos ribeirinhos de Parus
na Amazônia, Mark Harris chama atenção para o desconforto que sente em traduzir a
expressão filhos de criação por adopted children: HARRIS, Mark. Life on the Amazon: The
Anthropology of a Brazilian Peaseant Village. Oxford: Oxford University Press, 2000. Ver
também a esse respeito VIEGAS, Suzana de Matos. Terra calada: Os Tupinambá na Mata
Atlântica do Sul da Bahia. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.
7 HEREDIA, Beatriz. Formas de dominação e espaço social: A modernização da agroindústria
canavieira em Alagoas. São Paulo: Marco Zero, 1988, p.116; MOURA, Margarida Maria.

 · “Cumpri a minha missão”


é educado, socializado, pela família à qual se agrega e isso é exatamente
o que define a categoria filho de criação. Essa diferença é explorada com
exatidão por Ana Maria Galano, no estudo realizado na década de 1980
no cerrado do Alto Paranaíba, Minas Gerais.8 O texto de Galano define
com precisão os moldes da relação entre família e filho de criação que
encontrei na Zona da Mata de Minas Gerais. Evidentemente, como sua
descrição reporta à década de 1980, escapam-lhe algumas transformações
que ocorreram com a categoria ao longo dos últimos trinta anos, as quais
terminaram por destituir a estreita correlação entre “filhos de criação/

Os deserdados da Terra. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988, pp.81-82; FRANCO, Maria
Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Unesp, 1997.
8 GALANO, Ana Maria. “Êxodo rural, fazendas e desagregação.” Estudos Sociedade e
Agricultura, n.19, 2002, pp.6-39. Ao se dedicar à história de constituição de uma fa-
zenda, a autora destaca: “Além desses trabalhadores [agregados], o casal [proprietário
da fazenda] sempre teve outras pessoas, sob suas ordens, para executarem diferentes
tarefas. Não se trata aqui de participação eventual, sazonal, no processo produtivo na
roça ou em atividades dentro de casa. Através da criação, dos filhos de criação, Dona
Maria Fernanda e o marido sempre tiveram criados (...) A prática de utilizar ‘filhos de
criação’ como força de trabalho certamente apresentou vantagens do ponto de vista
da constituição do patrimônio e da acumulação real do capital. Até uma certa ida-
de, enquanto as crianças não puderam trabalhar, o casal teve de fornecer meios de
vida sem nenhuma contrapartida dos ‘filhos de criação’. Mas, desde que começaram
a trabalhar, aqueles filhos de criação continuaram a ter acesso apenas a meios de vida
necessários para sua reprodução e não à totalidade do valor gerado por eles. Os pais
adotivos guardavam para si e apara os seus filhos biológicos o excedente acumulável
que lhes permitiu não só reproduzir-se como produtores, mas também capitalizar
sua exploração. (...) o padrão de consumo para os criados foi calculado para que se
reproduzissem como trabalhadores sob a continuada dominação da família que os
acolheu. (...) Do ponto de vista dos que cedem terras em parceria a agregados, há
consideráveis vantagens em se ter meeiros que foram filhos de criação. No sistema de
obrigações e direitos, que regem tradicionalmente as relações de dominação pessoal
da morada, as obrigações devidas ao proprietário não se apoiam, neste caso, apenas
na retribuição pelo acesso à terra. O filho de criação deve mais: sua própria sobrevivên-
cia inicial; a comida, a roupa, a escolaridade etc. ao longo de muitos anos. Quantas
vezes não terão escutado o relato aparentemente pitoresco da criancinha alimentada
com leite de cabra? [Em nota de rodapé:] ‘Um dia apareceu aqui uma mulher com uma
criancinha de dez dias que a mãe deu (...) não quis a criança, enjeitou e eu não queria.
Mas eu peguei assim mesmo e criei essa menina com leite de cabra, não foi? Foi na ou-
tra fazenda. Ainda não tinha leite naquela época. Ele arranjou uma cabrita e a menina
criou mamando na cabrita. Eu punha ela em cima da mesa, a cabrita, e trazia a me-
nina embrulhadinha no pano e punha debaixo da cabrita e segurava no pé da cabrita.
Ela mamava. A menina chorava e a cabrita berrava. É assim que eu criei ela. E é uma
menina muito sadia, graças a Deus, até hoje’.” (Grifos da autora, op.cit.: pp.23-27.)

Priscila Gomes de Azevedo · 


trabalho-excedente monetário” que a autora observou e criaram novas
configurações; que basicamente poderíamos expressar na fórmula “filha
de criação/trabalho-cuidado”.9 Contudo, esse hiato cronológico não retira
a importância da análise de Galano para a compreensão atual da categoria,
pois ela nos fornece uma contextualização histórica muito afinada com a
explicação histórica nativa; a qual remete o acolhimento ao desempenho
de uma função e à divisão sexual desta função.10

A dádiva da vida11

As cidades onde a pesquisa foi desenvolvida, Barão de São João Batista e


Bagre Bonito, são demograficamente pequenas,12 sobretudo nas zonas
rurais, o que favorece a “rede de observação”13 que, apesar de informal,

9 A categoria cuidado é central para compreender a relação entre os filhos de criação,


sejam eles homens ou mulheres, com suas famílias. Como reza a memória coletiva, “fi-
lhos de criação [independentemente do sexo], são pessoas especiais, escolhidas por Deus,
que cuidam dos pais até a morte”. Contudo, é no “trabalho emocional” e nas tarefas
domésticas definidos pelos nativos como “coisas de mulher”, que a categoria cuidado
tem mais expressão. Baseio minha análise nos trabalhos sobre o care: GILLIGAN, Carol.
Uma voz diferente. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1990; TRONTO, Joan. Un monde
vulnérable: Pour une politique du care. Paris: La Découverte, 2009; PAPERMAN, Patrícia;
Laugier, Sandra (org.). Le souci des autres: Éthique et politique du care. Paris: Éditions
de l’EHESS, 2005; Hirata, Helena; Guimarães, Nádia (orgs.). Cuidado e cuidadoras: As
várias faces do trabalho do care. São Paulo: Atlas, 2012.
10 Segundo a narrativa dos moradores das cidades, até meados de 1970-1980, quando
“os trabalhos da roça” constituíam a principal forma de subsistência da região, havia
paridade entre o acolhimento de meninas e de meninos. O menino acolhido deveria
ajudar no “trabalho do pai”, na roça, e a menina, no “trabalho da mãe”, isto é, do-
méstico (embora ajudassem também no “trabalho do pai”). Como nos últimos anos o
“trabalho do pai” extinguiu-se consideravelmente, diferentemente do trabalho do-
méstico, pois, de acordo com as filhas de criação entrevistadas, “serviço de casa é uma
coisa que nunca vai acabar” e “trabalho de casa é trabalho de mulher”, o maior núme-
ro de filhas de criação em comparação ao de filhos de criação observados hodiernamente
é assim explicado.
11 Agradeço ao professor Frédéric Vandenberghe as cuidadosas leituras de trabalhos
anteriores e a sugestão de explorar, mais e melhor (o que está em andamento), o tema
da dádiva no contexto das relações aqui observadas.
12 De acordo com censo realizado pelo IBGE em 2010, Barão de São João Batista pos-
suía cerca de 38 mil habitantes e Bagre Bonito, 8 mil.
13 COMERFORD, John. Como uma família: Sociabilidade, territórios de parentesco e sin-
dicalismo rural. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003, p.32.

 · “Cumpri a minha missão”


é muito eficaz e à qual todos estão sujeitos. Como apontou Comerford em
estudo realizado também na região rural da Zona da Mata Mineira, existe
um controle por parte dos moradores sobre a movimentação das pessoas
nas estradas, sobre quem entra e sai da casa de quem, sobre a presença de
“gente de fora”, enfim, sobre a vida e os relacionamentos entre parentes,
vizinhos, entre eles todos e os outros; temas que modulam as narrativas
cotidianas. O “capital social”14 constitui um dos pilares da organização
social. O “nome de família” exerce um papel crucial, seja como capital,
seja para o “interconhecimento”, ponto estruturante de socialidades. A
partir da resposta à costumeira pergunta “você é filho de quem?”, as rela-
ções de cordialidade ou de hostilidade são traçadas.15 Por meio do “nome
de família” os habitantes se identificam, não como indivíduos, mas como
partes de um grupo. Sobre o indivíduo pesa a “trajetória familiar”, seus
“estigmas” ou sua honra. Assim, ao perguntar “você é filho de quem?”,
imediatamente e indiretamente uma gama de informações é acessada: a
condição econômica, se “é gente boa” ou não, se “é de família de bem”
ou não, onde mora, “o que faz da vida”, a religião etc.16

14 BOURDIEU, Pierre. La distinción: Criterios y bases sociales del gusto. Cidade do Mé-
xico: Taurus, 2002.
15 A própria pesquisa em questão dependeu de minhas relações familiares nas cida-
des. Meus avós maternos, minha mãe e minhas tias são nativos de Bagre Bonito e lá
permanecem, algumas delas em Barão de São João Batista. Foi por intermédio de duas
tias, Neuza e Janice, e de minha mãe que consegui ser recebida “dentro de casa” e
realizar entrevistas de cunho tão íntimo. Aproveito a ocasião para agradecer-lhes. Em
outra pesquisa, em equipe, realizada na Zona da Mata Pernambucana – ver L’estoile,
Benoît de; Sigaud, Lygia (orgs.). Ocupações de terra e transformações sociais. Rio de Ja-
neiro: Editora FGV, 2006, pp.67-76, os coordenadores tocam nesse ponto: “A própria
possibilidade da pesquisa dependia da existência dessas relações pessoais preexisten-
tes [por meio de Lygia Sigaud e de Afrânio Garcia], essa constatação permite colocar em
evidência o quanto a produção de um saber etnográfico passava pela mobilização e o
desenvolvimento de uma rede de relações pessoais com os pesquisados.”
16 Além das relações sociais, o “nome de família” define também as relações políticas
e econômicas. Na política, há gerações duas famílias revezam entre si a administração
municipal, tanto em Barão de São João Batista, quanto em Bagre Bonito. Economica-
mente, o “nome de família” funciona como uma espécie de “crédito.” Sobretudo em
Bagre Bonito, o comércio é condensado pelas populares vendas, espécies de mercearias
que vendem um pouco de tudo e suprem a ausência de lojas especializadas. As relações
de compra e venda nessas vendas são pautadas pelo “crédito familiar”; tudo é vendido
a prazo, sem qualquer garantia formal de pagamento (cheque, cartão de crédito, pro-
missória etc.). O dono da venda anota o que foi comprado num pequeno caderno, popu-
larmente chamado de caderneta, que fica com o próprio comprador. Nem toda família

Priscila Gomes de Azevedo · 


O outro pilar da organização social é a religião. A pessoa que não
pratica a religião católica ou protestante não é bem vista socialmente.
Nas duas cidades, a religiosidade se estrutura sobre um viés estoico que
desemboca numa valorização do sofrimento. As missas dominicais da
Igreja Matriz constituem o ápice da “rede de observação”. A religião ca-
tólica é seguida pela maioria dos moradores das cidades. Para muitos, as
missas dominicais e a subsequente conversa na praça da igreja constituem
o principal lazer. Muito do sermão do padre ou do pastor é reproduzido
nessas conversas, assim como na conversa cotidiana ao longo da semana:
“No domingo, o padre falou...” Como também são recorrentes referências
aos “Dez Mandamentos”, sobretudo aos mandamentos “Amar a Deus
sobre todas as coisas” e “Honrar pai e mãe”.
É nesse contexto, reproduzido parcialmente e grosso modo, que tem
lugar a prática de “pegar para criar”. O acolhimento de uma criança se
dá sob o julgamento moral da rede de socialidade na qual a família está
inserida e é compartilhado como um ato de “caridade”. “Ninguém tem
obrigação de pegar filho dos outros pra criar”, explicou-me uma mãe de
criação. Destacar as péssimas condições (econômicas, sociais e psicoló-
gicas) da família consanguínea e da própria criança faz parte do rito do
acolhimento. Desse modo, o ato é engrandecido, bem como a generosi-
dade da família.
Embora o “nome de família” seja fundamental para a navegação social
e constitutivo do parentesco, os filhos de criação não recebem o “nome
da família” que o acolheu;17 eles preservam o sobrenome da família de

possui conta na venda e sua respectiva caderneta, apenas aquelas aptas pelo julgamento
dessa “economia moral”. Em Barão de São João Batista, apesar da maior diversificação
comercial, o mesmo fenômeno é observado. As famílias possuem várias cadernetas: da
venda, do açougue, de lojas de roupas etc.
17 Com exceção de dois casos, o de Laura e o de Seu José Mario. Os pais de criação de
Laura não tiveram filhos consanguíneos e antes de “adotar” (esse é o termo que a famí-
lia utiliza) Laura, haviam “adotado” outras duas crianças, “já crescidinhas”, mas que
tão logo entravam na adolescência, iam embora. “Não dá certo adotar criança grande,
já vem com a cabeça formada” e quando crescem “dão na louca de ir embora”, expli-
cou-me sua mãe “adotiva”. Para não repetir com Laura o mesmo destino dos casos
anteriores, seus pais explicaram-me que resolveram duas coisas: “Ter um documento
que não deixa [a pessoa ‘adotada’] fazer o que quer” e “adotar uma criança que não
tem a cabeça formada”. Assim, com quatro meses de idade, Laura foi acolhida e re-
gistrada “no” nome da família, como enfatiza sua mãe “adotiva”: “Ela está no nosso

 · “Cumpri a minha missão”


origem, mesmo nos casos de acolhimento em tenra idade, em que a criança
não era registrada. Isso não impede, entretanto, que a família apresente
o filho de criação “como filho”, “como se fosse da família”. O que cons-
titui o parentesco é a coabitação, “morar dentro de casa”, e os repetidos
e cotidianos atos de “dar de comer” por parte da família de criação e de
“servir” e “agradecer” por parte dos filhos de criação.
A regra fundamental que rege a prática de “pegar para criar” não
repousa sobre contratos, mas sobre três obrigações complementares: dar,
receber e retribuir. Inspiro-me na análise de Marcel Mauss18 da dádiva
para tentar compreender a complexa relação que mescla indissociavel-
mente obrigação e liberdade, interesse e desinteresse que também envolve
a família e o filho de criação. Tal como observado nas sociedades “arcai-
cas”, a dádiva nada tem de caridosa; pois trata-se de “dádiva agonística”.
Contudo, Mauss deixa bem claro que a prestação de tipo agonístico é uma
entre outras formas de “prestações totais”. O que é inerente a toda e qual-
quer forma de dádiva (“agonística” ou não) é a sua “complementaridade
paradoxal”; isto é, seu caráter voluntário, aparentemente livre e gratuito,
porém coercitivo e interessado. É esse desvelamento que torna o Ensaio
sobre a dádiva profícuo para pensar o tema aqui em questão.
Pensando a respeito desse “interesse desinteressado” que engendra
a dádiva, Alain Caillé19 destaca que “o interesse está no final do processo
(e não no início, como quer o utilitarismo), pois a generosidade, se tudo
correr bem (mas não há como ter certeza de que tudo correrá bem), acaba
compensando”. Esse raciocínio me parece válido, pois, embora exista

nome, com papel no nome da gente, não pode fazer o que quer; deve satisfação a nós.”
Com relação ao caso de Seu José Mario, 70 anos, também acolhido com quatro meses,
ele conta que possui “dois registros”: um no nome da “mãe verdadeira” e outro no
nome da família de criação. Este último fora realizado quando ele estava com aproxi-
madamente 10 anos, em função de “uma ajuda que o governo resolveu dar para quem
tivesse sete filhos”. Como a família de criação tinha apenas seis filhos, seu pai de criação
resolveu registrá-lo em seu nome para obter o benefício. Contudo, é o “primeiro regis-
tro” que Seu José Mario utiliza. Além disso, o “segundo registro” não lhe proporcionou
participação na herança deixada pelos pais de criação.
18 MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a dádiva: Forma e razão da troca nas sociedades ar-
caicas.” In: Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
19 CAILLÉ, Alain. “Nem holismo nem individualismo metodológicos: Marcel Mauss e
o paradigma da dádiva.” Revista Brasileira de Ciências Sociais (RBCS), vol.13, n.38, 1998,
pp.5-38.

Priscila Gomes de Azevedo · 


uma doxa em torno dos filhos de criação, “são pessoas especiais, escolhidas
por Deus, que cuidam dos pais até a morte”, também pesa sobre eles o
estigma do sangue: “‘Isso’ vai crescer e você não sabe o que vai ser.” A
incerteza da retribuição é algo que paira no horizonte. Mesmo assim, o
acolhimento é efetuado, o que, de fato, demonstra a dependência de uma
generosidade inicial.

[O] sentimento de uma pessoa adotada é diferente do sentimento de uma


pessoa que não é.
Pesquisadora: É mesmo?
É. Eu classifico assim.
Pesquisadora: Mesmo tendo vindo pra cá ainda bebê e sendo criada como
filha, como você disse?
Mesmo assim. Sabe por quê? A sociedade te vê de uma forma diferente.
Você é especial para a sociedade porque você é adotada. (...) Você pensa
de uma forma diferente. Parece que você se sente mais sofrida do que as
outras crianças, entende? Eu sempre me senti assim, sabe? (...) A família
do meu pai meio que ficaram revoltados. Eles pensavam assim: “Deixa
de ser bobo! Você vai deixar de ter filho para adotar filho dos outros? Isso
vai crescer e você não sabe o que vai ser.” [silêncio] Entendeu? (...) Então
você tem que crescer meio que provando para os outros que você não vai
ser aquilo que maquiaram. [silêncio] É um pouquinho diferente. (Laura)

Ainda que a família afirme não haver diferença entre filho de sangue e
filho de criação, a socialização de um e de outro é bastante diferente. A dá-
diva da vida é lembrada durante todo o processo de “criação”: “Se não fosse
por nós, talvez nem vivo você estaria.” O tratamento dos filhos de criação
acontece de modo desigual porque “é assim mesmo, é filho de criação”.

Pesquisadora: O que você mais admira na sua mãe “adotiva”?


Na minha mãe? Hum... deixa eu ver o que eu mais gosto nela... [longo silên-
cio] A minha mãe é muito trabalhadora. Ela sempre trabalhou demais. Ela
teve uma infância sofrida demais, sabe? De trabalhar pesado mesmo. De
carregar peso igual a um burro! Sabe? Ela sempre trabalhou muito, desde
muito novinha. Então, assim, eu acho ela muito guerreira, sabe? (...) Eles
[os pais] trabalharam muito, muito. Eu lembro que, às vezes, quando eu

 · “Cumpri a minha missão”


era pequena, a minha mãe me contava histórias que ela não se tocava que
me machucava e eu também não falava nada... Até que um dia o meu pai
falou pra ela: “‘Minha filha’, você está contando um caso seu, mas que
machuca ela!”. O caso era assim: o pai dela obrigava ela a trabalhar muito
e ela não tinha o direito de reclamar. Se um dente estivesse dolorido, não
se tinha o direito de ir lá e consertar o dente. Aquilo tinha que apodrecer
e cair pra lá. Tanto é que uma época a minha mãe infeccionou o canal de
um dente que chegou de perfurar o rosto dela! Ela tem a cicatriz! Chegou
a perfurar! E o pai dela não deixava ela procurar um médico. Até que isso
deu uma febre muito forte, que ela trincou [cerrou] os dentes! Ela não
conseguia abrir a boca para comer, para beber... Chegou no limite! E o pai
dela, muito rico: “Ó só, procê ver!”, não deixava ela ir ao médico. Aí quan-
do chegou no limite do limite, que ele viu que não tinha recurso mais,
que ia manchar o nome dele na sociedade... Imagina: filha de homem rico
nessa situação! Aí ele deixou ela ir ao médico. Mas também assim: para
fazer o que fosse preciso com o menor preço possível! E tinha que ir e vir
do médico debaixo de sol quente a pé! Se desse hemorragia, que desse!
É a pé e pronto! Então, assim, quando eu era menor, eles queriam passar
isso para mim. A forma de criação deles. Mas eu nunca aceitei muito isso,
não. O que é isso, gente? Isso é um absurdo! Mas, assim, eles nunca qui-
seram que eu trabalhasse muito não. Mas, voltando ao assunto, quando
ela [a mãe] cresceu, estava numa faixa maior de idade, ela chegou para
ele [o pai] e falou assim: “Ô, pai, eu sou filha adotiva?” E o pai respondeu:
“Não, por quê?” E ela disse: “Não, porque quando o filho é adotivo é que
a gente judia. Por que o senhor judia tanto de mim?” [silêncio] Entendeu?
Ela falava assim com ele, só que contava para mim. Ou seja, se judiassem
de mim, eu tinha que aguentar porque eu sou adotiva.
Pesquisadora: E você não falava nada?
Não. Quando eu era pequena, havia mais conflito em relação a isso, sabe?
Às vezes eles falavam coisas que me ofendiam e, se eu tentasse responder
ou tentasse conversar a respeito do problema, eles falavam comigo que
não, que eu deveria ser muito agradecida a eles, porque, se eu estivesse
com a minha mãe lá em São João [Barão de São João Batista], talvez nem
viva eu estaria. Eles me criaram com a mente o seguinte: eu tenho que
viver agradecendo somente a eles, porque foram eles que me deram a
vida. Entendeu? (Laura)

Priscila Gomes de Azevedo · 


No contexto mineiro observado, “os pais cuidam dos filhos para de-
pois os filhos cuidarem dos pais” e isso não se restringe aos filhos de criação.
Então, por que no caso dos filhos de criação essa “troca de cuidados” tem
tanto peso? Tudo indica que por estar ligada à dádiva, à retribuição de
um favor.20 À máxima acima é acrescido: “Os filhos de criação mais ainda
porque adotar uma criança é uma escolha.” Além disso, as narrativas
sugerem que cuidar de um filho de criação é mais difícil do que cuidar de
um filho de sangue, pois aqueles “puxam” os comportamentos “inade-
quados” dos pais consanguíneos. Nas famílias que possuem apenas filhos
consanguíneos, a tarefa de cuidar dos pais quando idosos deve ser dividida
entre os filhos, embora um deles, geralmente uma filha, assuma a maior
parte. No caso das famílias que possuem filha de criação, cabe a ela cuidar
dos pais; a parte dos filhos consanguíneos se limita às visitas e ao suporte
econômico quando necessário. No caso das famílias que possuem filho
de criação, homem, esse cuidado é divido com as filhas consanguíneas da
família ou acontece o mesmo o que no caso de famílias que não possuem
filhas consanguíneas e apenas um filho de criação: esse filho de criação se
casa e sua esposa assume o cuidado da casa e dos pais de criação. A dimensão
do cuidado remete ao que vimos anteriormente sobre o acolhimento estar
atrelado ao desempenho de uma função e a divisão sexual dessa função.
As narrativas dos filhos de criação demonstram que a criança acolhida
vem geralmente preencher uma “futura necessidade” da família. Nos
casos de acolhimentos depois da primeira infância (após os 5 anos), a
necessidade é atual e seu preenchimento é imediato.

O casal que me acolheu ia precisar de um rapazinho para ajudar nos


serviços e porque ficou com pena da miséria que eu vivia com a minha
família biológica. (...) A minha mãe [de criação] tinha 65 anos e o meu pai
[de criação] tinha 70, ele não tinha mais idade para fazer essas coisas. (...)
Porque naquela época o serviço era buscar uma lenha, buscar uma água
na mina, porque não tinha a Copasa [Companhia de Saneamento de Minas
Gerais, agência que fornece água para a região]. Então eu mesmo ficava por
conta daquele serviço ali.

20 Mais um exemplo do “paradoxo do favor imposto”, como observado por Margari-


da Moura entre os “agregados” do Vale do Jequitinhonha. MOURA, op.cit.

 · “Cumpri a minha missão”


Pesquisadora: E você se importava?
Não, de jeito nenhum! Fazia com maior prazer. (Alessandro, 35 anos,
acolhido aos 2)

Você sabe quantos anos eu tenho? Eu tenho 70 anos! Quando eu fiz um


ano, a Maria [8 anos] foi lá para casa cuidar de mim. [Dois anos depois,
Joana, também aos 8, irmã de Maria, foi doada para essa família]. A mãe delas
era muito amiga da mamãe, moravam na fazenda do vovô. Aí mandaram
as duas... Foi uma bênção de Deus!
Pesquisadora: Quando elas foram para a sua casa, foram como filhas ou
para trabalhar?
Não! Como uma filha! Mas trabalhava. A mamãe era brava, né, Maria? [Ma-
ria ri] (...) Elas são uma bênção na minha vida! Eu as tenho como mães. Quer
dizer, elas são minha família! (...) A Maria é uma excelente cozinheira! A
Joana é ajudante. Elas são muito caprichosas. É a Maria quem lava a minha
roupa. Aí eu falei para ela que eu não queria que colocasse na máquina...
Pesquisadora: Ela lava tudo à mão?
Lava! Tudo na mão... (...) Toda vez que minha filha vem aqui, ela me
pergunta se eu estou com lençol novo, porque a Maria lava e engoma os
lençóis e eles ficam parecendo novos! A casa fica na mão delas! Se eu disser
que eu não sei o que tem na cozinha, você não acredita! (Vera, pedagoga
e psicóloga, filha consanguínea da família que acolheu Maria e Joana e
que posteriormente as recebeu como “herança”)

Os filhos homens [da família de criação] estavam todos casados. Eles [pais
de criação] precisavam de alguém pra fazer companhia para elas [filhas
consanguíneas].
Pesquisadora: O senhor ficava tomando conta delas?
Isso, tomando conta.
Pesquisadora: Como o senhor era tratado?
Como filho! Como filho! Do mesmo jeito, do mesmo jeito. Dormia no
mesmo quarto que as meninas, igual irmão mesmo.
Pesquisadora: Até que série o senhor estudou?
Ah, eu estudei só até a terceira [série, atual quarto ano]. Por causa do ser-
viço. O serviço era muito! Porque a gente tinha que moer cana para fazer
rapadura.

Priscila Gomes de Azevedo · 


Pesquisadora: Para vender ou para casa?
Para vender. Tirava para a despesa e para vender. Então era assim: às 3h
da manhã já estava trabalhando, tocava boi, né? Porque no plantio não
usava motor, não tinha luz, né? Era roda de boi para moer cana, colocava
os bois para rodar aquilo ali e ficava tocando os bois. Aí depois, dava 6h,
eu trocava de roupa “de galope” e ia correndo pra escola. Eu já ia cansa-
do... De vez em quando eu dormia na aula. E de noite para fazer o dever?
Morrendo de cansado? Como que eu aprendia? Que jeito?
Pesquisadora: E os seus irmãos de criação estudaram?
Estudaram.
Pesquisadora: O senhor se importava em trabalhar?
Não! De jeito nenhum! O que é isso? De jeito nenhum, ué! (Sebastião, 50
anos, acolhido aos 4)

Pesquisadora: E você acha que a sua mãe, quando te adotou, ela já pensava
nisso [se fazia questão que fosse uma menina porque queria uma companheira]?
Isso, isso. Sempre pensou assim, porque, na cabeça dela, ela pensava o
seguinte: como ela já tinha problema [de saúde], se ela arrumasse um
menino a tendência seria ele ajudar no serviço do homem, do pai. Então
ela pensou assim: “Eu vou dançar nessa! [risos] Então eu quero arrumar
uma menina, porque uma menina vai me ajudar.” Entendeu? Ela pensou
nela, você tá entendendo? E nessa o meu pai também entrou... (Laura)

Apesar da recorrente referência ao trabalho como apanágio de suas


vidas, os filhos de criação entrevistados não o fazem em tom de queixa.
Exceto Laura, cuja narrativa possui uma conotação crítica inexistente nos
demais casos. De modo geral, o trabalho acerbo é exaltado com orgulho.
Uma espécie de “pedagogia do sofrimento” é destacada como responsável
por tê-los constituído em “pessoas de bem”. Trata-se de algo inerente
à qualificação moral por que necessariamente todo filho de criação tem
de passar. A aceitação resignada da “condição de filho de criação” é sinal
de gratidão, de reconhecimento da dádiva, portanto. De acordo com o
julgamento moral próprio do contexto, a retribuição da dádiva é obriga-
tória, mas não imposta. A servidão que caracteriza a relação com a família
de criação é vista como “vontade”, como “escolha”, fruto da “gratidão”

 · “Cumpri a minha missão”


dos próprios filhos de criação. É isso o que os torna “especiais”, “pessoas
boas”, “escolhidos de Deus”. Pensando com Bourdieu,21 aquele que se
ajusta às expectativas coletivas, que (aparentemente) sem qualquer cál-
culo ajusta-se de imediato às exigências inscritas em uma situação, tira
todo o proveito do mercado de bens simbólicos. Ele é tanto mais elogiado
pela consciência comum por ter feito, como se fosse natural, algo que era
a única coisa a fazer, mas que ele poderia “simplesmente” não ter feito.

É igual eu te falei, pelo que as pessoas têm de maldade ou de pensar que...


se foi adotado, sempre vai dever um favor, porque ela foi tirada de um
mundo que talvez seria ruim. Eu acho que as pessoas vão sempre achar
que aquela pessoa que foi adotada tem que ser a melhor possível porque...
ela deve um favor. Ela sempre vai andar devendo um favor.
Pesquisadora: Você acha que a sociedade encara a adoção como um favor?
É. É um favor.
Pesquisadora: E você acha que a sociedade espera a retribuição desse
favor?
Espera sempre! Sempre! [silêncio] Ela sempre te cobra isso. É igual eu tô
te falando, a pessoa te cobra. Ou se você tiver uma briga entre mãe e filho
ali... entre pai e filho, eles vão te cutucar nesse ponto aí: “Engraçado,
eu te adotei achando que você seria isto... [algo ‘bom’].” E... não... não
existe isso! Você vai entrevistar mil pessoas adotadas, elas vão sempre
te responder isso aí. [silêncio] Infelizmente, sim.
Pesquisadora: Como seria essa retribuição?
É igual eu tô te falando, você tem que seguir uma linha: onde eu piso,
você tem que pisar. Você tem que ser sempre... submissa. É. [silêncio]
(...) É isso que eu tô te falando; eles te moldaram para ser criado assim: a
mesma coisa que um robozinho. Você criou um robozinho na função de
ser faxineiro, ele vai viver naquilo ali. Infelizmente é assim. Querendo
ou não, é assim. [silêncio] Vida de filho adotivo. (Laura)

21 BOURDIEU, Pierre. “A economia dos bens simbólicos.” In: Razões práticas. Campi-
nas: Papirus, 1996, p.142.

Priscila Gomes de Azevedo · 


O sacrifício como dádiva

O depoimento de Laura remete de forma pungente a “missão” ao “sacri-


fício”. Como comentado anteriormente, Laura é o único caso cuja narra-
tiva possui uma conotação marcadamente reflexiva e crítica. As chaves
explicativas dessa peculiaridade estão nas imbricações das questões de
ordem geracional, ela é significativamente mais nova do que os demais,
com questões resultantes do acesso prolongado à escola, ela foi o único
caso pesquisado que frequentou sistematicamente a escola, chegando
a concluir o Ensino Médio e a vislumbrar uma faculdade de Psicologia,
o que, infelizmente, não passou de vislumbre, devido à sua “condição
de filha de criação”. Nos limites desse artigo, gostaria apenas de chamar
atenção para os períodos de silêncio que compõem a narrativa reproduzida
anteriormente (como outras citadas ao longo do texto). Essa, contudo, não
é uma peculiaridade de Laura.
No contato inicial com os filhos de criação, observei uma descrição
de si muito espontânea, mas um tanto “mecânica”. Isso foi ficando mais
claro na medida em que a pesquisa avançava e a semelhança dos discur-
sos acentuava-se. “Todo mundo gosta de mim” era quase unânime. As
múltiplas aptidões para o trabalho eram citadas com recorrência, mesmo
quando o assunto era outro. Isso é extensivo à Laura. Contudo, ao passo
que a formalidade de uma “entrevista” cedia lugar a uma “simples conver-
sa”, curiosamente, a espontaneidade narrativa se diluía. Muitas passagens
do início da entrevista ou dos primeiros contatos foram “contrapostas”.22
No caso de Laura, a crítica assume o tom e o silêncio passa a fazer parte
da narrativa. Nos demais casos, o silêncio em si emerge como narrativa.
Diversas perguntas foram respondidas pelo total silêncio.
Entre outras correlações, o silêncio como narrativa parecia estar co-
nectado a um profundo senso de “missão” e à valorização religiosa do
sofrimento, que proíbe críticas ou reclamações. “Não adianta reclamar...

22 No sentido conferido por Cabral – CABRAL, João de Pina. “A difusão do limiar: Mar-
gens, hegemonias e contradições.” Análise Social, vol.29, n.153, 2000, pp.865-892. Se-
gundo o autor, a contradição diz respeito primordialmente ao embate dinâmico de
princípios que geram conflitos e não à incoerência, no sentido de falta de harmonia ou
de convergência de princípios. Nesse sentido, estamos falando mais de contraposições
do que de “contradições”.

 · “Cumpri a minha missão”


Foi Deus que quis”, disse-me Alessandro, depois de um longo silêncio à
pergunta: “Você tinha vontade de fazer outra coisa, trabalhar em alguma
coisa?” O sofrimento é concebido como inerente à vida; herança de Adão
e Eva. A “salvação” precisa ser “merecida” e isso requer “esforço”, “sa-
crifício”. “Porque Deus falou: ‘aquele que sofre aqui, dele será o reino do
céu’.” (Anita) Desse modo, os filhos de criação aceitam com resignação sua
“missão”, enaltecendo-a em frases prontas socialmente bem-recebidas
ou se calando.
A resposta inusitada que dona Maria me deu, no auge dos seus 82
anos durante a primeira fase da pesquisa em 2007, me fez pensar além
da retribuição da dádiva como “missão”: a “missão” como “sacrifício e
dádiva” e a explorar seu ponto de vista nos demais filhos de criação.

Pesquisadora: Dona Maria, o que a senhora acha que acontece depois que
a gente morre?
Eu não sei...
Pesquisadora: A gente vai para o céu?
Quem merece vai, né? Eles falam que quem não merece vai para o infer-
no, mas eu acho que não é assim... Eu acho que o inferno é aqui mesmo.
Pesquisadora: É? E por que a senhora acha isso?
Eu acho que o inferno é aqui embaixo mesmo. [silêncio] Porque é aqui que
a gente sofre, né? [silêncio] (...)
Vera entra na conversa: Engraçado, eu acho que pelo fato da minha mãe
ser muito amiga da mãe delas, elas não sentiram nenhuma falta da mãe.
Se a Maria sentiu alguma falta, ela não deixou transparecer, né, Maria?
Porque eu nunca notei ela chorando.
Pesquisadora: A senhora chora, dona Maria?
Dona Maria apenas meneia afirmativamente a cabeça. Silêncio. Inter-
rompendo-o, Vera: Quando os meus filhos, os meus netos vão embora,
elas choram muito. (Maria e Vera)

E diante da mesma questão, sobre se acreditar ou não na existência


do céu e do inferno, outras respostas se somam:

Bom... Muitos falam, né? Céu existe, agora, inferno... eu não sei, não.
(Sebastião)

Priscila Gomes de Azevedo · 


Acredito. É... Não, eu acredito que existe céu. O inferno é aqui, aqui na
terra. Aqui se faz, aqui se paga. A gente paga é aqui na terra. (Clara)

Acredito. Você pode ter certeza: se você é uma pessoa boa, que ajuda as
outras pessoas, se você faz tudo direitinho, você vai para o céu.
Pesquisadora: Mas e quem é ruim, que não faz tudo direitinho?
Aí vai para o inferno, né? (Dona Fiinha)

Olha, Priscila... Eu acredito, sim, que existe céu. Mas eu acho que inferno
não existe, não. (Alessandro)

É... Eu acredito assim: a gente tem que fazer a nossa parte. Não adianta
achar que Deus vai levar para o céu se a gente não faz a nossa parte.
Pesquisadora: E quem não faz a sua parte?
Ah, esse daí vai voltar até cumprir tudo aqui. (Seu José Mario)

Eu acredito que exista céu, eu não acredito que exista inferno. Você sabe
por quê? Você imagina bem: você morre e vai para o céu. Tem inferno
pior do que esse: você lá no céu e conviver sabendo tudo de errado que
você fez lá na Terra? Você se martiriza. Pra que ir para o inferno? Precisa?
O inferno pior é a consciência. (...)
Pesquisadora: Você já ouviu a frase: “O inferno é aqui”?
Já ouvi muito!
Pesquisadora: Você concorda?
Concordo quando a pessoa tem consciência disso. Porque a maioria das
pessoas que se inferniza ou que inferniza as pessoas, elas não se cons-
cientizam disso.
Pesquisadora: Nos seus momentos difíceis você acha que está vivendo
o “seu” inferno?
Isso. Sempre pensei assim. Quando eu ouvia coisas que me machucava,
eu pensava: “Meu Deus do céu! Não existe inferno pior do que isso, não.
Não precisa existir.” É igual eu tô te falando: eu acho que eu tenho que
ajudar todo mundo, senão eu vou ser castigada. Eu penso assim. Eu penso
nisso o tempo todo. “Meu Deus, e se eu negar ajuda e realmente a pessoa
estiver precisando?” Eu sou assim. Eu acho que isso aí é um martírio!
[risos] É um martírio! (Laura)

 · “Cumpri a minha missão”


A sugestão de Alain Caillé23 de ler o Ensaio sobre o sacrifício, de Marcel
Mauss e Henri Hubert, à luz do Ensaio sobre a dádiva me parece interessante
e elucidativa da relação entre dádiva, missão e sacrifício aqui observada.
De acordo com Mauss e Hubert,

em todo sacrifício há um ato de abnegação, já que o sacrificante se priva


e dá. E geralmente essa abnegação lhe é mesmo imposta como um dever,
pois o sacrifício nem sempre é facultativo; os deuses o exigem. (…) Mas
essa abnegação e essa submissão não suprimem um retorno egoísta. Se
o sacrificante dá algo de si, ele não se dá: reserva-se prudentemente. Se
ele dá, é em parte para receber. O sacrifício se apresenta assim sob um
duplo aspecto. É um ato útil e é uma obrigação.24

Nesse sentido, podemos pensar as abnegações e a submissão dos fi-


lhos de criação como formas de sacrifício, não apenas à família, mas so-
bretudo “a Deus”. Quando pensamos que a servidão é uma entre outras
formas possíveis de submissão, fica mais fácil perceber que a servidão é
direcionada à família, mas a submissão direciona-se à “missão” (“filhos
de criação são pessoas especiais, escolhidas por Deus, que cuidam dos
pais até a morte”), a qual tem “dupla composição”: ao mesmo tempo
que é um código moral, é também um “imperativo divino”. Assim, na
medida em que os filhos de criação apreendem (“disposicionalmente” e
não “utilitariamente”) os códigos morais que condicionam a servidão ao
reconhecimento social e o imperativo divino que condiciona o sofrimento
resignado à “salvação”, podemos pensar que, no limite, trata-se de uma
“submissão para si”.25 Desse modo, ao retribuir a dádiva à família, os
filhos de criação ofertam, ou seja, “dão”, o sacrifício que essa retribuição
engendra a Deus, e esperam (“mas”, como observa Caillé, “não se pode
ter certeza”) que Ele o “receba” e o “retribua” com a “salvação”.
Não se trata de um simples condicionamento e, portanto, de uma
redução do tema do sacrifício ao remetê-lo especialmente a Deus. Atenta

23 CAILLÉ, Alain. “Sacrifice, don et utilitarisme: Notes sur la théorie du sacrifice, sui-
vies d’une nouvelle conclusion.” In: Sacrifice(s): Enjeux cliniques. Paris: L’Harmattan,
1997.
24 MAUSS, Marcel; Hubert, Henri. Sobre o sacrifício. São Paulo: Cosac Naify, 2005. p.106.
25 Voltarei a esse ponto quando abordar a questão do reconhecimento.

Priscila Gomes de Azevedo · 


a essa crítica feita por Caillé26 ao próprio Ensaio sobre o sacrifício, enten-
do que pensar a “missão” como sacrifício é abordá-lo, entretanto, “nos
quadros da lógica mais vasta e mais original da dádiva”, como sugere o
próprio Caillé. Contudo, o principal risco aqui, como também alerta Cail-
lé, seria reduzir a dádiva ao sacrifício a uma “entidade superior”.27 Isso
não significa, ressalva Caillé, retirar a dimensão do sacrifício existente
na dádiva, posto que, em alguns casos, não é possível dar sem se privar
do gozo daquilo que é dado. Mais do que isso, o autor acrescenta: “Essa
privação constitui sem dúvida uma boa medida do valor daquilo que é
dado.”28 Nesse sentido, creio que tal risco de redução está fora de questão,
pois pensar a “missão” dos filhos de criação como sacrifício e este como
dádiva a uma “entidade superior” não retira o sacrifício inerente à própria
retribuição, no âmbito humano das relações. A dádiva da vida se retribui
com a vida. A devoção de uma vida inteira à servidão implica uma “perda
absoluta”, como define Caillé, isto é, perda de bens “supremos, indivisí-
veis e incomensuráveis” (como o gozo da vida), e configura o único tipo
de perda que, do ponto de vista do autor, tem verdadeiramente sentido
chamar de “sacrifício”.29 Assim, no caso dos filhos de criação, podemos
perceber “dádivas paralelas”: a dádiva da vida e o sacrifício como dádiva,
no sentido de Mauss e Hubert, porém lido com as lentes de Caillé.

Submissão e reconhecimento

A “missão” de cuidar dos pais até a morte é sobejamente conhecida e


compartilhada nas relações sociais, de modo que o filho de criação que

26 CAILLÉ, op.cit., pp.36-37.


27 O que, segundo Caillé – op.cit., p.42 –, é o que Maurice Godelier faz no seu L’enigme
du don, quando diz que a tripla obrigação maussiana de dar, receber e retribuir não seria
inteligível se não reportasse a uma “quarta obrigação”, a obrigação de dar aos deuses.
28 CAILLÉ, op.cit, p.43.
29 Para Caillé – op.cit., pp.45-46 –, é justamente essa dimensão “trágica” do sacrifí-
cio que o contrapõe ao “utilitarismo doutrinário”, que se caracteriza, diferentemente,
pelo postulado de que todas as escolhas se reduzem a decisões tomadas no seio de um
universo de divisibilidade e comensurabilidade perfeitas. Nesse caso, espera-se capi-
talizar os benefícios do sacrifício (de “simples perdas”: bens desejáveis, comensuráveis
e divisíveis) e enquadrar sua dimensão trágica num simples mecanismo de arbitragem
de custos e benefícios.

 · “Cumpri a minha missão”


a cumpre acessa uma gama de valores morais que lhe confere legítima
“distinção”.30 De modo bastante significativo, a categoria filho de criação
é apreciada com elogios em todas as camadas sociais devido ao seu status
benfazejo.
Num primeiro momento, quando questionadas se conheciam algum
filho de criação, as pessoas das cidades manifestaram comiseração pelas
abnegações dos filhos de criação que conheciam, o que foi feito, curiosa-
mente, em tons de elogios justamente à pletora da submissão: “É tratado
como escravo, mas não abandona a família que o acolheu!”; “Nem os
filhos de sangue têm tanto carinho e cuidado com os pais como ela tem”;
“É melhor ter filho de criação do que de sangue porque ele não abandona
os pais.” Porém, num segundo momento, quando questionadas sobre o
tratamento conferido aos filhos de criação, a submissão passou a ser expli-
cada sob o viés da “dádiva retribuída”: “Filho tem obrigação de ajudar os
pais. Os pais cuidam dos filhos para depois os filhos cuidarem dos pais.
Os filhos de criação mais ainda, porque adotar uma criança é uma escolha.”
As “contraposições” na narrativa social indicam, de um modo ou de ou-
tro, a servidão como algo inerente à “condição” de filho de criação. É essa
servidão que o identifica e o legitima como “parte da família”, pois casos
em que os filhos de criação resolveram seguir sua própria vida e saíram de
casa31 passaram a ser vistos socialmente como “ingratos” e perderam o
status de “como se fosse da família”.
Quanto mais submissos, mais servis à família, mais os filhos de cria-
ção são e se sentem reconhecidos. Mais o sentimento de “dignidade”, de
“distinção”, é fortalecido. Isso fica claro nas narrativas:

Eu sou bom com todo mundo, por isso que todo mundo gosta de mim!
(Sebastião)

Os outros pisa, pisa, pisa, pisa eu estou sempre feliz.


Pesquisadora: A senhora acha isso bom?
Acho bom, é de pessoa boa, coração bom. É... é bom. (Anita)

30 BOURDIEU, op.cit.
31 Tive acesso a dois casos de rompimento com a família. Nos dois, o acolhimento não
havia se dado na primeira infância; a menina tinha 8 anos e o menino, 10. Também nos
dois casos, os filhos de criação se mudaram de cidade após o rompimento.

Priscila Gomes de Azevedo · 


Fiquei com eles até eles morrerem. Até morrer! [longo silêncio] Aí eu cum-
pri a minha missão. Fiquei com eles até eles morrerem. (Clara).

A correlação estabelecida por Taylor32 entre reconhecimento e dig-


nidade iluminou a compreensão do papel do reconhecimento social na
vida dos filhos de criação, sem, contudo, explicá-lo; em vez disso, a ligação
entre reconhecimento e submissão coloca-lhe uma questão. Em linhas
gerais, a dignidade configura um dos três eixos daquilo que Taylor defi-
ne como “pensamento moral”, a saber: nosso sentido de respeito pelos
outros e de obrigação perante eles; nossos modos de compreender o que
constitui uma vida plena, expressados na noção de “afirmação da vida
cotidiana”; e os pressupostos que nos conferem “dignidade”. O princípio
da dignidade refere-se às características mediante as quais pensamos em
nós mesmos como merecedores ou não do respeito das pessoas que nos
cercam. Não apenas do respeito “ativo” (respeito aos direitos, no sentido
da não violação), como no primeiro eixo, mas, sobretudo, do respeito “ati-
tudinal”, que implica reconhecimento, admiração por parte das pessoas
que nos cercam. Contudo, como explicar o sentimento de dignidade em
um contexto de pletora de submissão que fere os princípios de “respeito
ativo” (primeiro eixo) e de “vida plena” (segundo eixo), se há na confi-
guração do pensamento moral, como observa o autor, uma sobreposição
substancial, ou uma relação complexa, entre os eixos, de modo que o
tema da dignidade configurador do terceiro eixo está interligado aos dois
primeiros? Ampliando o quadro analítico, com base em Axel Honneth,33 a
questão ainda permanece. Nele, o reconhecimento tem mais ligação com
o respeito “ativo”; a noção de “desrespeito” recai na violação da “pessoa
de direito”. É a partir das três esferas de reconhecimento definidas por
ele, a saber, o “amor”, a “estima social” e o “direito”, que os indivíduos
formam seus juízos de “amor-próprio”, “autoestima” e “autorrespeito”.
O cerne da análise de Honneth consiste em perceber como é possível em
indivíduos historicamente desprovidos de autoestima, autorrespeito e
amor-próprio uma consciência capaz de refletir não apenas sobre suas

32 TAYLOR, Charles. As fontes do self: A construção da identidade moderna. São Paulo:


Loyola, 1997.
33 HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais.
São Paulo: 34, 2003.

 · “Cumpri a minha missão”


vãs condições, mas, sobretudo, de pensar formas de reverter esse qua-
dro. Depreende-se que a experiência compartilhada de situações de não
reconhecimento possibilita aos sujeitos desrespeitados identificarem uns
com os outros suas condições, instituírem uma ligação solidária e lutarem
por reconhecimento. Nesse sentido, ao enfatizar uma unidade psíquica
centrada no sentimento de injustiça, de tratamento desigual, social ou
juridicamente, Honneth concebe o desrespeito como propulsor da luta
por reconhecimento. Ainda que Honneth tenha percebido a “gramática
moral do desrespeito”, vale notar que se trata de um desrespeito “ativo”
(aplicando a lógica de Taylor). Como compreender formas de “desrespeito
ativo” que não resultam em “desrespeito atitudinal”, no sentido de falta de
reconhecimento? Nos casos dos filhos de criação, a violação da “pessoa de
direito” não gerou o sentimento de desrespeito, suposto por Honneth, por-
que não violou o “respeito atitudinal”, no sentido empregado por Taylor.
Mas, antes de atribuirmos aos filhos de criação uma “servidão vo-
luntária”,34 cabe lembrar a centralidade da socialização familiar na vida
destas pessoas. Como vimos, a família constitui o principal, não raro o
único, contexto de ação dos filhos de criação, de modo que suas princi-
pais “disposições”35 foram constituídas pela relação familiar desde a
mais tenra infância e pouco foram alteradas ao longo de suas trajetórias;
como mostram as passagens de “rupturas biográficas”36 em que mesmo
diante de novos contextos a servidão é preservada. O discurso da família
de criação “se não fosse por nós, talvez nem vivo você estaria” resume o

34 Conceito cunhado pelo filósofo renascentista francês Étienne De La Boétie para


expressar um tipo de submissão oriunda da fascinação, do ensorcellement, dos oprimi-
dos aos mecanismos de poder. La Boétie apresenta o comportamento dos dominados
– LA BOÉTIE, Étienne de. Le discours de la servitude volontaire. Paris: Payot, 2002 [1548]
– como uma questão de escolha, de opção voluntária, e insiste no caráter não coerci-
tivo do consentimento obtido pelos dominantes. Diferente do que se pode observar
nos casos dos filhos de criação, onde há coerção, simbólica e verbal, para a efetivação
da retribuição.
35 Apesar de Bourdieu recorrer à noção de disposição em suas principais obras, não
se encontra em nenhuma delas, nem mesmo em La Distinction, uma explicação sobre
o que vem a ser uma “disposição”. Esse esforço é empreendido por Bernard Lahire –
LAHIRE, Bernard. Retratos sociológicos: Disposições e variações individuais. Porto Alegre:
Artmed, 2004.
36 “Rupturas biográficas” – LAHIRE, op.cit. – de várias ordens; mudança de casa e
de região, partida de membros da família, novos trabalhos, nascimentos, mortes etc.

Priscila Gomes de Azevedo · 


processo de inculcação da dádiva. Os filhos de criação são criados desde
sempre para agir de modo a retribuir a dádiva e com isso obter o reco-
nhecimento familiar e social. É esse reconhecimento que lhes confere
não só honra, “dignidade”, “distinção”, mas sobretudo razões de existir.
Podemos pensar que a expressão “filhos de criação” possui uma sabedoria
implícita, pois retira o véu da fascinação, do encantamento característicos
do processo de servidão voluntária, e compreende os filhos de criação jus-
tamente como o produto da educação, da socialização, enfim, da “criação”
que receberam. Há ainda ambiguidades que tornam o jogo de palavras
mais preciso: “criados” no duplo sentido, isto é, no de educação/criação
e também no sentido de servos/criados; “educados para servos”, enfim,
“criados para criados”.37 Nesse contexto, ainda que a servidão seja uma
ação consciente, reflexivamente orientada, não se pode dizer que seja
voluntária, pois a lógica que a fundamenta e a alimenta é fruto da força
das disposições incorporadas, que faz perceber o reconhecimento familiar
e social como conditio sine qua non.
O caso de Clara, de modo especial, mas não exclusivo, é interessante
para demonstrar a força dessas disposições incorporadas. Depois da morte
dos pais, ela se mudou de cidade e conseguiu emprego em uma indústria,
como operária no horário noturno, das 15h às 3h. Certa noite, voltando
para casa, ela reencontrou um antigo “conhecido” que a acompanhou
até sua casa e de lá “nunca mais saiu”, nem para trabalhar. É Clara quem
sustenta a casa. Além disso, ela trabalha como empregada doméstica não
regulamentada nas casas de sua sogra e de sua cunhada, recebendo como
pagamento alguns “presentes” (antena parabólica, peças de decoração,
roupas etc.).

Na minha cunhada eu vou só uma vez por semana, na minha sogra é que
eu vou todo dia.
Pesquisadora: Então você não consegue ficar parada.
Consigo, não. Ainda tenho a minha casa! Eu chego 3h30 da manhã.
Pesquisadora: Você vem de ônibus?

37 Interessante notar ainda que, no contexto mineiro observado, a palavra “criação”


também designa “animais domesticados”. Cuidar da criação é uma das tarefas do filho
de criação.

 · “Cumpri a minha missão”


Venho, até a esquina ali, né? Porque dali eu tenho que vir a pé. Aí eu
durmo até 9h e pouca e está bom! Eu vou para a dona Guiomar [sua sogra].
Arrumo as coisas, faço o almoço para ela e dali eu já vou para o trabalho.
Dá tempo! Pouco tempo, sabe?
Pesquisadora: E você não se importa [com o fato de o marido não trabalhar]?
Não. Ah, eu nem esquento! Ele estando em casa perto de mim, eu acho
melhor, sabe? Ele já foi muito arteiro! Nossa Senhora! Mas não é por causa
de mulher, não, sabe? Ele gostava de droga, bebia muito... O Edson era
das noitada, menina! Você não achava o Edson em casa à noite, não. Ele
saía na quinta-feira e chegava na segunda! Depois que está comigo, não!
Agora ele é outra pessoa. Bebe só uma vez por semana.

Os filhos de criação sabem da “missão” que lhes cabe e o quão cara ela
lhes sai para ser cumprida, porém é algo do qual não podem escapar, pois
vai ao encontro daquilo que disposicionalmente valorizam e perseguem. O
discurso autorreferido “todo mundo gosta de mim” ou “os outros pisam,
pisam, pisam, pisam e eu estou sempre feliz” é a reprodução do discurso
social depois da total servidão à família. Esta reprodução consiste na
exaltação máxima de quem logrou atingir o reconhecimento social que
tanto almejava e, consequentemente, a “distinção” que lhe cabe. Por
outro lado, sustentar e manter essa “missão” os faz sofrer enormemente
porque, conscientemente, os limita e aprisiona. Desse modo, ainda que
haja consciência e certo connaissance de soi, não há muita “margem para
manobras”.

Considerações finais

O discurso dos pais de criação “se não fosse por nós, talvez nem vivo você
estaria” é o fio condutor da relação de dominação e servidão (involuntá-
ria) que liga família, filhos de criação e sociedade. Quanto à família, esse
discurso justifica o privilégio de gozar sem culpa da servidão daquele que
lhes deve “a vida”. Quanto aos filhos de criação, explica a constituição do
sentimento de dívida e a origem da servidão. Por fim, quanto à sociedade,
esse discurso cria a expectativa coletiva da retribuição.

Priscila Gomes de Azevedo · 


Como estão inseridos numa sociedade cuja “rede de observação” é
intensa e cuja valorização religiosa do sofrimento está entranhada nos
julgamentos morais, os filhos de criação são impelidos a “honrar” a dádiva
por meio do cumprimento da “missão” que lhes cabe, sob o risco de ser
tomados por “ingratos”, de perder a posição de “como se fosse da família”
e, no limite, de não merecer a graça divina da salvação. Por outro lado,
ao cumprir tal “missão”, os filhos de criação obtêm o reconhecimento fa-
miliar e social, reafirmam suas identidade e dignidade e passam a gozar
da conspícua distinção de seu status benfazejo, embora sofram ao ponto
de acreditar que o inferno seja “aqui”. Sacrifício que aguarda Salvação.

 · “Cumpri a minha missão”


Violência,
identidades e
moralidades
criminais
Globalização no crime:
cultura ou etos?

A Z

U ma das mais importantes assertivas da antropologia pós-moderna


é a de que a narrativa etnográfica não apenas representa o objeto/sujeito
de estudo, mas o constitui, na medida em que a autoridade etnográfica
embutida no “estive lá”, “registrei lá” e “escrevi aqui” impõe sobre essa
narrativa o cunho de verdade sobre o objeto.1 Os estudiosos do assunto,
com seus acordos e divergências, muitas destas devidas à adesão per-
sistente a uma grande teoria, vêm a ser referências comprobatórias dos
que discutem as questões sociais a serem enfrentadas politicamente, em
especial as que provocam comoção pública porque afetam os direitos ou
a moralidade da população do país. Como em todo diálogo, o consenso
entre cientistas sociais jamais foi alcançado e os hiatos mantiveram aceso
o debate, embora nem sempre as ideologias políticas dos participantes
fossem explicitadas.
Outros importantes debates no mundo globalizado, pela rapidez da
comunicação em redes via internet e pela predominância do neolibera-
lismo e do capital financeiro, são também cruciais: o do utilitarismo e o
das redes sociais abertas e transnacionais. Na querela sobre o racionalismo
econômico do mercado ou o utilitarismo, os fundadores do Mouvement
Anti-Utilitariste dans les Sciences Sociales (Mauss) ressaltaram que o

1 Gupta, Akhil; Ferguson, James (orgs.). Culture, Power, Place: Explorations in Critical
Anthropology. Durham e Londres, Duke University Press, 1999.
laço social é criado entre pessoas ou grupos pelo dom em seus três mo-
mentos (dar, aceitar, retribuir), pela obrigação livre de retribuir a dádiva
aceita.2 Esse seria o laço social a acompanhar os seres humanos desde
seus primórdios até hoje, no mundo contemporâneo, constituindo o que
Simmel chamou “sociabilidade”3 ou forma-jogo, na qual o que importa
é a interação, ou seja a conversa, a gentileza e o dom que as acompanha,4
enquanto outros autores, incluindo Habermas, falaram do “mundo da
vida”. Simmel diferencia a sociabilidade das outras formas de interação
(a troca econômica, a dominação, o conflito) e reserva a ela o que resulta
da interação pela interação sem objetivos mercantis ou de poder. É a
própria interação que importa.5 Tais formas sociais se passam no terreno
do implícito, do moralmente aceito como natural. É sociologia de rede
social, constitutiva das sociedades, das arcaicas até as pós-industriais,
mas é também sociologia da ação prática, pois a dádiva e a sociabilidade
não estão no registro da norma escrita. A teoria da reciprocidade e da
sociabilidade são, pois, sociologia da moralidade básica, nem sempre
consciente, das relações humanas, que se aprende no longo processo de
socialização pela fala ou pelo exemplo observado entre pessoas em inte-
ração. Por isso é vida e não sistema.6

2 CAILLÉ, Alain. Anthropologie du don: Le tiers paradigme. Paris: Desclée de Brouwer,


2000; GODBOUT, Jacques. O espírito da dádiva. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998.
3 Neste texto, como na maioria dos autores, seguirei o conceito de sociabilidade defi-
nido por Simmel como forma de associação, em que a avaliação do indivíduo não deve
ser expressada para que a interação permaneça sem motivos, fins ou interesses. Nesse
enquadramento específico do termo, a expressão “sociabilidade violenta” – proposta
por MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio. “Sociabilidade violenta: Por uma interpre-
tação da criminalidade contemporânea no Brasil urbano.” Sociedade e Estado, vol.19,
n.1, 2000, pp.53-84 – é uma contradição em termos, pois a violência é um meio para
atingir um fim material, político ou simbólico e estaria mais adequada à forma de as-
sociação denominada conflito.
4 SIMMEL, Georg. On Individuality and Social Forms. Chicago e Londres: The Univer-
sity of Chicago Press, 1971, p.130.
5 Ibid: “Sociabilidade é portanto uma forma lúdica de associação… Visto que, em sua
forma pura não tem nem finalidade ulterior, nem conteúdo, nem tampouco resultado
fora de si mesma, a sociabilidade é completamente orientada sobre as personalidades.
Visto que nada além do impulso para a sociedade (…) será ganho, o processo permane-
ce (…) estritamente limitado aos seus condutores pessoais, os traços pessoais de ama-
bilidade, criação, cordialidade.”
6 RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação. Lisboa: Edições 70, 1976, pp.20-21.

 · Globalização no crime


Mantém-se, porém, a necessidade de entender como os sistemas
econômico e político-institucional interferem ou dominam esse espa-
ço social, colonizando-o.7 Devido ao aumento da violência em várias
cidades, vem crescendo, por exemplo, a importância da teoria do crime
transnacional organizado em redes para entender o que se passa com os
jovens, especialmente os originários das camadas mais pobres da popu-
lação. Muitos sociólogos abordaram formas diversas de organização da
atividade ilegal empresarial envolvendo jovens pobres que já estariam
presentes desde o início do século XX, quando da proibição da venda de
álcool, especialmente nas cidades estudadas pela Escola de Chicago. Vá-
rios sociólogos assinalaram as profundas associações político-econômicas
e a interpenetração cultural entre o crime profissionalizado, a política
clientelista local e o capitalismo selvagem, ou seja, as vinculações entre
os negócios ilegais e os legais, as passagens entre o desvio e o mundo
convencional,8 entre o sistema econômico, com a estrutura de poder que
acompanha a atividade ilícita, e o mundo da vida dos pequenos vendedo-
res, seus familiares e seus vizinhos, regendo as interações mais fortuitas
ou a sociabilidade ao longo do tempo. É esse aspecto que vamos abordar
neste texto.
Como já afirmei anteriormente, para se entender como o sistema
político-econômico da organização dessa atividade empresarial ilegal
funciona, é preciso ter como pano de fundo a política da guerra às drogas,
iniciada no final dos anos 1970. Essa política coincidiu com o aumento da
violência em quase todo o continente americano, que criou mais uma vez
o cenário paradoxal da proibição de uma mercadoria desejada por muitos.
Apesar das políticas repressivas ao uso e comércio das drogas consideradas
ilegais, irromperam formas letais de violência vinculadas, por diversos
autores, ao crescimento das máfias ou redes do crime-negócio. Com es-
tas, novas configurações político-econômicas surgiram. Entre as drogas
ilegais, a cocaína desenvolveu um mercado muito lucrativo e um estilo

7 HABERMAS, Jurgen. Pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,


1991; DOMINGUES, José Mauricio. Modernidade global e civilização contemporânea. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2013.
8 HANNERZ, Ulf. Transnational Connections, Culture, People, Places. Londres: Routledge,
1996, p.54; MATZA, David. Becoming Deviant. Nova Jersey: Prentice Hall, 1969, pp.70-
71; SAMUEL, Raphael. East End Underworld. Londres: Routledge/Kegan Paul, 1981.

Alba Zaluar · 


de tráfico violento, colonizado pelos valores do mercado financeiro, que
aprecia o dinheiro fácil, e pelo sistema de poder despótico, adquirido na
conquista de territórios, até mesmo dentro de cidades. Na América Cen-
tral e na do Sul, o comércio ilegal afetou profundamente a vida política e
social em vastos territórios rurais e urbanos de seus países.9 Isso porque
a necessidade de manter secreta a atividade ilegal invade e coloniza o
mundo da vida, exigindo o segredo absoluto e uma lealdade sem falta à
empresa e a seus chefes, no limite punida com a morte de quem não segue
tais regras sempre lembradas por serem tão importantes para a continui-
dade do negócio e da estrutura de poder que o mantém.
Como sempre acontece quando os estereótipos de criminosos pre-
dominam na imaginação policial, pouca ou nenhuma investigação foi
feita para desvendar e desmantelar as redes articuladas do tráfico de
drogas ilegais e do tráfico de armas, além de outras máfias que controlam
negócios de modo ilegal mesmo quando as mercadorias são legais. Essas
redes articuladas ultrapassam barreiras de classe, perímetros urbanos,
fronteiras estaduais e nacionais, e se imiscuem nos negócios legais, nas
instituições estatais e nos governos. A articulação entre Estado e tráfico
de drogas ilegais sempre esteve presente, desde os seus primórdios, e
sempre foi discutida pelos estudiosos do tema. Por isso, há carência de
informações permitindo reconstituir as dinâmicas e os fluxos dos vários
tipos de crime organizado, inclusive o de tráfico de drogas ilegais, que
tanto atrai jovens vulneráveis nas áreas menos favorecidas do país. Per-
manece assim a dificuldade de pesquisar o grande banditismo no Brasil,
pois os grandes bandidos são pouco investigados e registrados, tampouco
julgados e condenados.
Há certo acordo entre os estudiosos de que há especificidades nas
práticas usuais dos jovens pobres nos pontos finais das redes de crime
organizado aqui instaladas.10 Os termos empregados – etos guerreiro,

9 SALAMA, Pierre. Macro-economie de la drogue. Paris: GREITD-CEDI, 1993; SCHIRAY,


Michel. “Les filières-stupéfiants: Trois niveaux, cinq logiques.” Futuribles, n.185, 1994;
THOUMI, Francisco. Económia, política y narcotráfico. Bogotá: Tercer Mundo, 1994.
10 ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1985;
—————. Con-
domínio do diabo. Rio de Janeiro: Revan, 1994; MISSE, Michel. “Crime e pobreza: Ve-
lhos enfoques, novos problemas.” In: Gonçalves, Marco Antônio; Villas Bôas, Gláucia
(orgs.). O Brasil na virada do século. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995; MACHADO
DA SILVA, op.cit.; FELTRAN, Gabriel de Santis. “A gestão da violência nas periferias de

 · Globalização no crime


sociabilidade violenta, mercadoria política, forma de vida, consenso,
mundo do crime, Crime – suscitaram, no entanto, divergências teóricas,
nem sempre explicitadas, que merecem análise. Estaríamos falando de
uma sociabilidade específica porque violenta de um tipo de poder no
mercado, de um mundo da vida ou de um híbrido de mundos da vida
locais colonizados pelo mercado e pela estrutura de poder característica
dos empreendimentos ilegais e secretos?
Para começar, os termos têm diferentes estatutos teóricos, uns bro-
tando exclusivamente de palavras do senso comum com emprego na vida
cotidiana de transgressores, outros derivados de arcabouços teóricos
mais ou menos claros e definidos. Não há dúvidas de que o termo crime,
tal como usado em diversas instâncias, inclusive na vida cotidiana dos
transgressores, está referido ao Código Penal Brasileiro e é uma categoria
jurídica. Mas se não é considerada uma “categoria analítica”, entretanto,
a palavra crime remete a uma tipificação de conduta que desencadeia (ou
deveria desencadear) repressão estatal e é alvo de julgamentos morais de
cidadãos. Além disso, aponta para o ponto de inflexão da relação entre o
mercado, as instituições e a vida social.
Qualquer explicação, descrição ou interpretação da moralidade es-
pecífica dos grupos fora da lei no Brasil tem de partir da constatação de
que se trata de uma moralidade própria de organização subterrânea, em
interação e tensão com a moralidade dos moradores em suas vizinhanças,
assim como em conflito com o aparato jurídico-institucional do Estado
brasileiro. Ou seja, trata-se da moralidade tributária do sistema próprio
a sociedades secretas ou foras da lei, da moralidade de setores populares
e a de que, por suas atividades ilegais, é permeada pelo sistema jurídico
que os chama “criminosos”. Nas interações cotidianas que vão formar a
sua prática, habitus ou etos, nota-se a superposição em diferentes graus
das regras e dos valores da reciprocidade em suas famílias, vizinhanças
e classe social, bem como as regras e valores do mercado regido pelas
relações de poder, modificadas pelas exigências sistêmicas de completa
adesão e lealdade à facção e a seus líderes.11

São Paulo.” Vibrant, vol.7, 2010; GRILLO, Carolina Christoph. Coisas da vida no crime:
Tráfico e roubo em favelas cariocas. Tese (doutorado), PPGSA, UFRJ, 2013.
11 ZALUAR, Alba. Integração perversa: Pobreza e tráfico de drogas. Rio de Janeiro: Edi-
tora FGV, 2004.

Alba Zaluar · 


Ainda há o problema de indagar que leis servem ao cidadão, qualquer
que seja sua classe social, sendo portanto legitimadas, autenticadas e
aceitas como básicas na defesa dos interesses públicos no Estado-nação
organizado como estado democrático de direito. Tal problema não se co-
loca apenas quando partimos dos pressupostos da teoria da criminologia
radical, que afirma ser o aparato jurídico-penal, portanto, todas as leis
penais, que definem o que é crime, criado para defender os interesses da
classe dominante.12
Segundo a teoria do estado democrático de direito, quando a trans-
gressão tem a ver com a maneira de viver das pessoas e não produz danos
materiais ou pessoais a ninguém (como a prostituição, a homossexua-
lidade, o uso de drogas ilegais e até mesmo o comércio dessas drogas), a
imputação penal continua alvo de disputas em torno da sua legitimidade e
moralidade, permanecendo no campo político da disputa pelo significado
da ação. Excluindo as guerras justas, porque moralmente sustentadas, o
mesmo não se passa com as que provocam danos morais, psíquicos, físicos
a outrem, chegando até da perda de vida da vítima de tal ação, como é o
caso dos crimes comuns de roubo, agressão e homicídio, especialmente
quando a força ou as armas do agressor deixam a vítima sem defesa e
liberdade de resposta, ou seja, quando a agressão é qualificada de covar-
de. Nas favelas cariocas, a censura moral vai não para os que comerciam
drogas, mas para os “covardes”, que se impõem em diversas situações
e até matam por andarem armados.13 Nesse caso, a repulsa moral pela
ação transgressora é compartilhada socialmente, o que legitima e exige
a punição de seus autores. Crime, então, torna-se uma categoria de senso
comum e adquire outro campo semântico nem sempre coerente inter-
namente nem muito menos consistente com o Código Penal. E isso não
impede que o trabalho de justificativa moral, nunca concluso, seja feito
também pelos que cometem assassinatos e roubos.
Qualquer agrupamento menor ou primitivo, aldeias, tribos, grupos
de parentesco, associações voluntárias, organizações não estatais, por-
tanto sem Estado e sem classe dominante têm normas do que consideram

12 CHAMBLISS, William J.; Mankoff, Milton. Whose Law, What Order: A Conflict Ap-
proach to Criminology. Nova York: Wiley, 1976.
13 ZALUAR, op.cit.

 · Globalização no crime


transgressões às regras e expectativas não correspondidas na interação.
Sociedades iletradas, como os Barotse e os Nuer, estudados por Max Gluck-
man e Evans Pritchard, tiveram dispositivos pré-jurídicos com funções
de julgar, mediar e definir penas para transgressões a valores e práticas
consideradas importantes, especialmente quando a ação transgressiva
de uns provoca danos a outrem. Nesses estudos, os termos nativos foram
traduzidos e estão muito próximos da ideia de crime, pois desencadeiam
mediações, julgamentos e retribuições, mesmo que na ausência de um
sistema de Justiça separado como um campo social autônomo. As facções
de traficantes e ladrões têm seus códigos normativos de conduta ou leis e
procedimentos para julgar os transgressores, mimetizando procedimen-
tos do sistema jurídico estatal. A questão passa a ser então até que ponto o
relativismo cultural radical permite considerar todos aceitos não só para
os membros dos grupos, mas para os que interagem cotidianamente com
eles. Um código de normas prescritas e escritas poderia ser considerado
uma cultura autônoma, tratada ontológica e metafisicamente?
Tais questões teóricas da antropologia tornam-se ainda mais com-
plexas porquanto hoje não haja mais culturas isoladas, transformadas em
bolas de bilhar que se expelem mutuamente. As culturas contemporâneas
não podem mais ser estudadas como universos de significados compar-
tilhados pela coletividade de seus membros, radicalmente diferentes de
ou impermeáveis às outras. Segundo Marcus e Fischer,14 culturas não
passaram de ficções construídas por antropólogos mais do que vividas
pelos nativos em seus encontros com aqueles. A narrativa etnográfica cria
mais do que narra tais objetos analíticos considerados como distintos e
coerentes, compreendidos holisticamente. Mas as culturas hoje seriam
fragmentadas e não teriam nem fronteiras nem unidade essencial, imutá-
vel. A diferença seria como que ficção etnográfica, o que leva outro autor
a falar em etnografia sem etno,15 algo que se tornou não apenas cabível,

14 MARCUS, George E. “Ethnography in/of the World System: The Emergence of


Multi-visited Ethnography.” Annual Review of Anthropology, vol.24, 1995, pp.95-117;
FISCHER, Michael. Futuros antropológicos. Rio de Janeiro: Zahar, 2011; CLIFFORD, Ja-
mes. The Predicament of Culture. Cambridge, EUA: Harvard University Press, 1988, p.3.
15 APPADURAI, Arjun. “Global Ethnoscapes: Notes and Queries for a Transnational
Anthropology.” In: Fox, Richard G. (org.). Recapturing Anthropology: Working in the
present. Santa Fe, EUA: SAR Press, 1991, p.2.

Alba Zaluar · 


mas necessário, especialmente nos centros urbanos do planeta. Não seria
mais possível estudar as culturas como entidades distintas como sistema
único de significados, práticas e valores, pois elas se tornaram híbridas,
interconectadas e sem fronteiras físicas predefinidas, mundos que se
interpenetram. As formas globais de rápida e constante conexão negam o
isolamento de unidades culturais e criam a polifonia que, embora sempre
existente, mudou a dinâmica cultural em seus múltiplos rearranjos. As
culturas sempre mudaram, mas agora mudam mais rapidamente.
As transformações decorrentes do processo atual de globalização
têm várias consequências para a associação entre lugar e cultura, entre
diferença, identidade e lugar. A teoria antropológica afastou-se da ideia
de totalidade para discutir as relações entre cultura, lugar e poder. O
conhecimento deixou de ser considerado apenas local. A diferença cul-
tural está, pois, cada vez mais desterritorializada por causa dos fluxos
migratórios e os fluxos da cultura transnacional no mundo pós-industrial,
pós-colonial. Ulf Hannerz e Appadurai falam até mesmo de uma ecumene
que seria híbrida, creolizada, como as culturas brasileiras foram conside-
radas desde a primeira metade do século XX. A territorialização de uma
cultura (etnia, nação) ainda poderia acontecer como resultado complexo
e contingente de um processo histórico contínuo que convém entender.
No mais, estar-se-ia diante de etos, habitus, práticas sociais submetidas
à história na rapidez das mudanças culturais.
Portanto, o artifício de destacar e tratar como cultura distinta os có-
digos e práticas sociais dos que optam por ações criminalizáveis e embar-
cam em carreira criminosa, por isso transgredindo códigos mais amplos,
torna-se meramente cirúrgico. São muitos os pontos comuns em sistemas
exteriores aos locais em que vivem os jovens: adquirir poder pelas armas,
reconhecimento entre pares ou “consideração”, pertencimento a um
grupo montado no segredo e na lealdade absolutos, e ganhar dinheiro
fácil. Se, tal como constatado em várias pesquisas, a delinquência juvenil
é circunstancial, intermitente, passageira e espalhada em todas as classes
sociais,16 como considerá-la a “cultura” de um segmento apenas – os
traficantes – nas áreas em que vivem os trabalhadores pobres, sejam

16 MATZA, op.cit.; JANKOWSKI, Mártin Sánchez. Islands in the Street: Gangs and Ame-
rican Urban Life. Berkeley: University of California Press, 1991.

 · Globalização no crime


eles biscateiros, trabalhadores com carteira assinada, trabalhadores com
emprego temporário? Os traficantes têm familiares, vizinhos, colegas
de escola, frequentam diferentes grupos religiosos que fazem parte do
contexto sociocultural local. No mínimo, trata-se de habitus ou etos,
de história ainda curta, atrelado a uma proibição imposta por nações
poderosas que transformou em crime algo aceito por muitos, gerando o
etos guerreiro pela repressão violenta usada na perspectiva da guerra às
drogas e da caça aos traficantes.
Seria possível ignorar que, no que se refere à identificação como cri-
minoso, por exemplo, a referência permanente seja ao código penal estatal
e à avaliação moral das pessoas com as quais convivem na vizinhança, na
escola, em diversas associações e espaços públicos? Os egos se constroem
a partir do contexto das numerosas relações sociais em que cada um se
envolve e é nesse contexto que se individualiza.17 A sujeição criminal (es-
tigma) é inevitável, embora variável: o criminoso terá alguma consciência
de que seus atos são objeto de avaliação moral das pessoas comuns e do
julgamento penal estatal, mesmo que se apresente “revoltado”, dependen-
do de seu gênero e da sua idade. Impossível tratar essa identidade isolada
do contexto mais amplo. Mesmo que sociedades nacionais não tenham
um centro constituído de valores e crenças afetando todas as pessoas
habitantes do território nacional, seja para agir em conformidade, seja
para transgredir porque são fragmentadas, ainda assim haveria consensos
diversos mais amplos para as ações violadoras de direitos alheios.
Bourdieu e Elias18 ofereceram o modelo teórico para pensar as ques-
tões relativas à honra masculina envolvidas nas guerras entre as quadri-
lhas pensadas como habitus ou etos. Mas a matriz prática como sistema de
disposições que levariam os homens a fazer escolhas estratégicas na busca
pelo máximo de capital simbólico possível quando diante de desafios e
respostas a estes pertence ao mundo da vida dos grupos estudados. No
caso dos grupos de traficantes nas favelas havia dissenso claro e profundo
quanto ao que era moral no homem – se o trabalho, se o dinheiro fácil

17 BURKITT, Ian. Social Selves: Theories of Self and Society. Londres: Sage, 2008.
18 BOURDIEU, Pierre. Esquisse d’une théorie de la pratique. Paris: Droz, 1972, pp.189-
221; —————. “Interest, Habitus and Rationality.” In: BOURDIEU, Pierre; Wacquant,
Loïc. An Invitation to Reflexive Sociology. Chicago: The University of Chicago Press. 1992;
ELIAS, Norbert, O processo civilizador, vol. 2. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

Alba Zaluar · 


conseguido no crime – e quanto à coragem envolvida nos desafios entre
parceiros desiguais, em que uns tinham arma de fogo e outros não. O
revólver, símbolo fálico e instrumento da violência, apesar de sua as-
sociação com a virilidade, especialmente para os jovens, era visto pelos
trabalhadores maduros e desarmados como sinal negativo da covardia e
da marca da pessoa “teleguiada”, “sugestionada”, portanto sem autono-
mia de vontade. Aqui, o desafio ou o golpe, fundamentais na estratégia
da afirmação da virilidade, não eram valorizados pelos trabalhadores
fora do mundo do crime. Em vez de sistema de disposições, dilema de
disposições: para matar ou para trabalhar.19 Os próprios traficantes com
uma atividade permanente e diária se diferenciam dos “vagabundos”
que nada fazem e roubam ocasionalmente. Isso é mais uma prova de que
as moralidades se interpenetram, como as culturas, as linguagens e os
discursos. É preciso, pois, trabalhar na intertextualidade, na intercul-
turalidade, na intermoralidade. Não pode ser tratado como uma cultura
tribal ou uma forma de vida.
A importância de considerar os significados múltiplos sobre o crime
advém do fato de que, se há uma condenação moral entre os trabalhado-
res pobres de algumas atividades criminosas, embora não de todas, nem
na mesma intensidade, o controle social informal sobre essas atividades
estaria presente nas relações sociais estabelecedoras de intragerações e
intergerações. A dicotomia mundo do trabalho/mundo do crime, ambí-
gua e complexa, continua operante. Pois a socialização se dá tanto entre
pessoas de diferentes gerações quanto entre as de mesma idade. Crianças
e jovens são socializados na família, na escola, em grupos religiosos,
esportivos e culturais, mas, se recebem pouca atenção e cuidado dessas
agências de socialização, aprendem principalmente as práticas sociais
violentas predominantes na rua. Nesse caso, seria mais apropriado falar
de uma socialização violenta do que de uma sociabilidade violenta, pois
a confiança, a lealdade, a reciprocidade, base da sociabilidade, estão pre-
sentes frouxamente na interação entre os jovens dos grupos de tráfico por
conta das exigências sistêmicas que colonizam sua vida social.

19 ZALUAR, Alba, op.cit.;


—————. “Gangues, galeras e quadrilhas: Globalização, ju-
ventude e violência.” In: Vianna, Hermano (org.). Galeras cariocas. Rio de Janeiro: Edi-
tora da UFRJ, 1997; —————. , op.cit.

 · Globalização no crime


Como acompanhei de perto as transformações no tráfico segundo as
técnicas da história oral, posso afirmar que as facções criminosas forma-
das na prisão passaram a dominar o tráfico de drogas a partir de meados
da década 1980.20 O habitus que desenvolveram para suas atividades
cotidianas, com a capacidade de comunicação, cooperação e confiança
necessárias para qualquer atividade coletiva, dificilmente poderia ser
considerado entidade separada das atividades cotidianas dos seus vi-
zinhos, da cidade e do país. O seu caráter intermitente e provisório está
dado pela idade dos participantes, muitos dos quais deixam o mundo do
crime quando amadurecem.21
Nessas áreas, as relações intergeracionais socializam crianças e jovens,
mas por vezes falham na contenção da impulsividade, do engajamento em
práticas arriscadas ou não convencionais, da agressividade, da importân-
cia assumida pelo grupo de pares na construção da identidade surgidas
justamente nessa fase da vida humana, a adolescência.22 Essa constatação
dará lugar às teorias que exploram a “eficácia coletiva” na abordagem
ecológica ao crime.23 Novas descobertas da neurociência mostram, no
entanto, que a juventude é também o período da maior flexibilidade e
capacidade de aprendizado do cérebro humano,24 assim como da vontade
de mudar o status quo. Resta saber como usam essa capacidade e como
lutam para mudar a sociedade.
Trata-se, portanto, de importante questão no debate, pois há uma
grande brecha entre as interpretações que ignoram ou negam a forma de
vida, a moralidade ou o etos predominante entre trabalhadores pobres
em algumas vizinhanças, opondo a sociabilidade predominante entre

20 Idem.
21 PEREIRA, Luis Fernando A. Meninos e lobos: Trajetórias de saída do tráfico na cidade
do Rio de Janeiro. Tese (doutorado), IMS, Uerj, 2008.
22 WEXLER, Bruce E. Brain and Culture: Neurobiology, Ideology, and Social Change.
Cambridge, EUA: MIT Press, 2006.
23 BEATO FILHO, Cláudio; Alves, Bráulio F.; Tavares, Ricardo. Crime, Police and Urban
Space: Working Paper Number CBS-65-05. Oxford: Centre for Brazilian Studies, University
of Oxford, 2005; ZALUAR, Alba; Ribeiro, Ana Paula A. “Teoria da eficácia coletiva e vio-
lência: o paradoxo do subúrbio carioca.” Novos Estudos Cebrap, n.84, 2009, pp.175-196.
24 CRONE, Eveline A.; Dahl, Ronald E. “Understanding Adolescence as a Period of
Social-Affective Engagement and Goal Flexibility.” Nature, vol.13, n.9, 2012, pp.636-
650.

Alba Zaluar · 


pobres ou favelados ora à ideologia burguesa 25 – a sociabilidade violenta
– ora à ordem convencional e formal de uma das partes da cidade. Misse26
sugere uma dicotomia entre os crimes dos ricos e os crimes dos pobres,
defendendo a “associação de certo tipo de criminalidade com modos de
operar o poder das classes subalternas ‘marginalizadas’”. Os dois auto-
res parecem, portanto, negar divisões internas profundas no interior do
proletariado urbano relativas à moralidade e ao modo de operar o poder
e generalizam para os moradores de tais locais o que vem a ser o etos
predominante entre componentes das facções de traficantes regido pela
violência exigida exteriormente pelo sistema do crime organizado.
Machado da Silva afirma que a sociabilidade violenta é uma cultura
autônoma em relação ao que denomina ora organização estatal, ora conven-
cional das atividades cotidianas, ordenamento contra o qual os criminosos
não violariam nem se rebelariam, visto que não é elemento significativo de
suas práticas. Depois, afirma que essa sociabilidade e a convencional não
estariam em luta, mas conviveriam diante da inevitabilidade da primei-
ra, já entranhada nas atividades cotidianas da população urbana pobre.
Misse, quando analisa os modos de operar o poder supostamente tí-
picos das classes subalternas, sugere tratar-se de uma cultura autônoma,
marca de classe social, existente ignorando de forma solene a oposição
legal/ilegal. Suas afirmações apontam igualmente para a indistinção entre
o informal e o ilegal, imputando às classes populares a incapacidade de
fazer a distinção moral entre práticas criminais e informais.
Os dois autores, portanto, aderem à teoria dicotômica da estrutura de
classes, concebidas no marxismo na permanente luta entre elas, como o fio
condutor para se entender as questões relativas à criminalidade violenta,
mesmo aquelas que não constituem crimes, como a desregulamentação e
a informalidade. Não consideram as segmentações em seu interior, nem
as que separam gerações na adesão ao “trabalho”, categoria nativa, nem as
diferenças entre as ações transgressivas que desconstroem em parte a dico-
tomia mundo do crime/mundo do trabalho. Muito menos o fazem quanto às
diferenças entre as concepções de masculinidade de nordestinos, baseada
na categoria nativa de sujeito homem, e a que foi desenvolvida nas favelas

25 MACHADO DA SILVA, op.cit., pp.54-59.


26 MISSE, op.cit., pp.17-18.

 · Globalização no crime


do Rio de Janeiro no mundo do samba, parte, portanto, da cultura local.27
“Sujeito homem” cobre um campo semântico estendido desde a capacidade
de defender sua mulher, seu time de futebol, seu local de moradia, até a
disposição para “não levar desaforo” nem ser humilhado publicamente
por quaisquer ínfimos motivos. Entre os jovens com disposição, ou seja,
insubmissos e armados, o último significado se difundiu e a resposta pas-
sou a ser mortal por conta da facilidade de se obter armas. O espetacular
aumento das taxas de homicídios nas últimas décadas atesta isso.
Ao circunscrever o novo tipo de sociabilidade, o “modo de operar o
poder” ou o “etos”, não estaríamos dando nomes diferentes a fenômenos
que guardariam grande superposição empírica? Os campos semânticos
dos conceitos de “etos guerreiro”, “hipermasculinidade”, “sociabilidade
violenta”, e até mesmo de “mercadoria política”, a despeito de seus di-
ferentes contextos teóricos, não teriam superposição empírica? Todos se
referem a práticas sociais que mudaram a forma de pensamento, senti-
mento e ação, admitindo a dimensão da subjetividade dos homens jovens
envolvidos nas tramas do tráfico de drogas ilegais no Brasil, fazendo-os
agir de forma cada vez mais brutal e insensível para com o sofrimento
alheio. Todos apontam para a dimensão do poder, ou a busca do domínio
sobre o outro, como a motivação e o objetivo básicos de tais práticas.
Mas há um paradoxo a ser discutido. A existência de um emaranhado
complexo simbólico que geraria a pertença, a solidariedade e a comunica-
ção entre os jovens traficantes garantiria a sua forma de vida, mas, nesta,
comumente eles fazem uso da guerra e da violência para manter-se, ao
custo da perda da liberdade de agir, dos bens materiais e até da vida de seus
rivais ou vítimas, uma imposição do sistema. Pois é o fracasso da pertença,
da solidariedade e da comunicação que faz surgir a ação instrumental dos
que buscam apenas o benefício próprio e usam de qualquer meio para
impor o seu poder sobre os demais,28 anulando a sociabilidade sociável e
o dom. Portanto, cabe a pergunta: até que ponto os grupos organizados
dos que vivem do crime se baseiam e se reproduzem pela solidariedade,
pertença e comunicação?

27 ZALUAR, Alba. “Para não dizer que não falei de samba.” In: Schwarcz, Lilia Moritz
(org.). História da vida privada no Brasil, vol. 4. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
28 HABERMAS, op.cit.

Alba Zaluar · 


Os conceitos mencionados anteriormente, embora nem sempre ex-
plicitamente, remetem tanto aos códigos de boas maneiras que presidem
as relações entre indivíduos e grupos nas áreas “informais” ou “margi-
nalizadas” da cidade quanto às configurações psíquicas da pessoa, isto
é, o modo de controlar suas emoções e relacionar-se consigo mesmo.29
Em poucas palavras, ao abordar os fenômenos do crime e da violência
pelas relações sociais locais, afirma-se também que é preciso levar em
conta a dimensão da sociabilidade, qualquer que seja o nome dado a ela,
para buscar as saídas. A diferença está na abrangência e na pretendida
irreversibilidade dessa sociabilidade. Considerar um etos circunstancial e
contingente como cultura transcendental, tradição cristalizada ou cultura
de classe não permite pensar em sua transformação de modo a diminuir
a altíssima taxa de homicídio entre os jovens participantes, desejo dos
moradores, inclusive de grande parte dos jovens.
Novos pesquisadores foram mais além e abordaram as práticas ado-
tadas nas facções como cultura independente, que, em isolamento quase
que sagrado, têm aquelas características atribuídas pelos funcionalistas
às culturas tribais: o consenso, a solidariedade indivisível, a crença ina-
balável de seus membros na figura do chefe. O debate sobre a violência no
tráfico de drogas ilegais no Brasil ressurge, então, de maneira inusitada
nos termos escolhidos para tratar dos que optam por ganhar dinheiro em
atividades duradouras e sistematizadas, como o tráfico de drogas ilegais.
Baseada principalmente na convivência com as mulheres que com
ela frequentavam bailes funk, uma autora declara que a firma (ou boca de
fumo) é um sistema de dádiva mais do que um empreendimento comer-
cial, uma entidade espiritual mais do que uma estrutura de poder.30 A
divergência passou, então, a remeter igualmente à conceituação de cultura
como um sistema de significados claramente distintos e internalizados, de
tal modo entre os “nativos” que pode receber o mesmo tratamento dado
a culturas tribais e tradicionais, que envolvem todos os planos da vida
social, inclusive o espiritual e transcendente. Seria cabível considerar o
mundo do crime como cultura radicalmente diferente de outras cultu-
ras, com a sua própria lógica holista? Desse modo, não há como pensar o

29 ELIAS, op.cit.
30 GRILLO, op.cit.

 · Globalização no crime


intercruzamento, a justaposição e a mimesis entre modos de agir e pensar
tão próximos. E a cultura entendida em seus próprios termos caminha no
reverso do etnocentrismo: romantizada por uma concepção de comuni-
dades pré-industriais internamente consensuais e solidárias, negando o
sistema que a coloniza.
Nem sempre de maneira clara e explícita, vários autores hoje falam
dos grupos de jovens que executam ações econômicas, políticas e sim-
bólicas contínuas, alvo de diferentes julgamentos morais pelo conjunto
da população, para ganhar a vida (ou a perder facilmente), como se fosse
cultura baseada no consenso em torno de regras e valores estabelecidos,
devendo pois gozar do relativismo cultural em sua análise. Há uma clara
“nativização”31 dos grupos de traficantes e ladrões em que lugar, identi-
dade, solidariedade, ordem baseada no consenso32 e crença (no dono, na
firma) estariam harmonicamente entrelaçados. Na análise de Biondi,33
o mundo do crime é “uma ética34 e uma conduta prescrita”, mas simulta-
neamente uma entidade abstrata, transcendente para seus “nativos”.
Para Grillo,35 mesmo concordando que as atividades giram em torno de
“negócios ilícitos do narcotráfico, dos roubos, assaltos e furtos”, esta
constitui não uma estrutura de poder, internamente conflituosa, mas uma
entidade espiritual, transcendente, na qual os participantes acreditam
e em que a troca de dádivas não se distingue claramente do comércio de
mercadorias. Usando o preceito da pesquisa etnográfica de entender a
cultura nativa pelos seus termos, a autora afirma:

É a facção que oferece ao tráfico uma base mínima de finalidade coletiva,


à medida que ela mobiliza uma série de referentes simbólicos em torno

31 GUPTA; Ferguson, op.cit.


32 FELTRAN, op.cit.; BIONDI, op.cit.; RUI, Taniele. Corpos abjetos: Etnografia em cená-
rios de uso e comércio de crack. Tese (doutorado), Unicamp, 2012.
33 BIONDI, Karina. Junto e misturado: Uma etnografia do PCC. São Paulo: Terceiro
Nome, 2010, p.54.
34 Sem dúvida a autora se baseia no conceito de ética de Foucault, que segue Hegel
e não Kant. Para este filósofo, a ética seria baseada em princípios claros e prescritivos,
enquanto para os primeiros, os membros da comunidade saberiam os modos apro-
vados de se comportar mutuamente sem precisar apelar para princípios explícitos.
No entanto, nas facções há normas e princípios explicitados em um código escrito de
prescrições impostas a seus membros.
35 GRILLO, op.cit., pp.80-95 e p.171.

Alba Zaluar · 


do discurso de sua existência. O simbolismo faccional promove vínculos
afetivos com uma ideia de pertencimento, construída em oposição a uma
alteridade e fortalecida pela exaltação da fraternidade e da fidelidade, em
meio às imagens de guerra que faz circular. (...) para que uma ação de dar
seja interpretada como um ato de generosidade e não um ato interessado,
é preciso que se passe tempo o suficiente para que ela seja esquecida, antes
da sua retribuição por um contradom. Deste modo, a diferença entre a
troca de dádivas e a troca mercantil é uma questão de enquadramento
em uma rede de relações, isto é, de quais as relações consideradas e as
ignoradas. (...) O dono de morro – cuja própria denominação já denota
a relação de propriedade – doa responsabilidades – cuja denominação
também denota o aspecto relacional da dádiva – aos seus funcionários –
mais um termo que traz implícito o vínculo de trabalho com o patrão. Em
troca, o funcionário deve a ele fidelidade incondicional, o que se trata,
evidentemente, de um contradom relacional.

A estratégia discursiva de transformar o etos ou habitus ou forma de


vida (e de comunicação) dos criminosos em uma cultura integrada nos
seus próprios termos e valores, sem entender que essa forma de vida está
afetada pelas exterioridades impostas pelo sistema, está na surpreendente
afirmação da mesma autora de que o roubo é uma troca:

Na ocasião do roubo, é estabelecido um contrato circunstancial que regula


os termos em que são efetuadas trocas. Ao propor que pensemos o roubo
como uma forma de troca, me baseio nas formulações de Simmel. Segun-
do este autor, as trocas não necessariamente produzem equivalências,
de modo que são corriqueiras as reclamações de que elas não são justas.
Em casos de trabalho mal pago, por exemplo, a escolha por engajar-se
na troca indica que de algum modo ela é válida, ou seja, é melhor ser mal
pago do que morrer de fome. O mesmo valeria para o roubo, pois quando
um ladrão rende uma pessoa para roubar os seus pertences, deixando-
-lhe, “em troca”, a sua vida e integridade física, tal troca vale a pena.

Evidentemente, não é levado em consideração o significado que a ou-


tra parte da relação (a roubada) atribui a esta troca imposta sobre ela, pro-
vavelmente por uma arma de fogo. A questão não é a falta de equivalência,

 · Globalização no crime


mas a imposição pela ameaça de perda da vida, diante da qual a vítima
não tem escolha, ou seja, nenhuma liberdade, o que é fundamental para
definir a reciprocidade, segundo Marcel Mauss36 e, por definição, o con-
trato que não se confunde com o dom. Não é, portanto, um ato de paz
como a dádiva, mas de guerra, desde o primeiro momento da transação.
E pode ser também o reverso da “sujeição criminal” observada pelo ponto
de vista da vítima. No trecho em que se refere ao roubo, a única afirmação
de Mauss é que a coisa roubada trará uma carga simbólica negativa por
pesar na consciência moral do ladrão. O ato de roubar alguém pode ser
entendido como o reverso da reciprocidade como definida por Mauss:
tomar, recusar e acumular em vez de dar, aceitar e retribuir, base da
moralidade cotidiana.
O laço social é, segundo Mauss, criado entre pessoas ou grupos pelo
dom em seus três momentos (dar, aceitar, retribuir), sob a obrigação livre
de retribuir a dádiva aceita. Essa seria a sociabilidade que acompanha os
seres humanos desde seus primórdios até hoje, no mundo contemporâ-
neo. Sua eficácia depende do silêncio sobre o que foi doado, ou seja, da
não cobrança da retribuição para que ela seja de fato livre. Esse é o seu
segredo, partilhado tacitamente entre quem doa e quem aceita a doação.
Não está, portanto, no registro do conhecimento escrito que se aprende
nos livros e na escola, mas sim do etos, do saber implícito, da cultura
entranhada no social, da prática na sociabilidade cotidiana. Nem muito
menos na ameaça real ou virtual de penalidade máxima, ou seja, da morte
de quem não retribui o presente dado. As apostas são feitas por distintas
pessoas em situações díspares e com resultados nem sempre previsíveis,
justamente porque, pelo menos na ideia do jogo do dom, cada parceiro
teria liberdade no agir. O dom não é norma coercitiva, é prática que impele
a retribuir o que se recebe de alguém, na gangorra entre a liberdade e a
obrigação. Liberdade obrigatória e obrigação livre, eis a tensão consti-
tutiva do paradoxo ético e do dilema do dom na ação prática. Com essas
características, conserva as ambiguidades e ambivalências do que não é
contrato, nem direito, nem reivindicação política. Não está escrito, não é
coercitivo, nem é apenas obrigatório, podendo então ter sinais positivos

36 MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a dádiva.” In: Antropologia e sociologia, vol.2. São
Paulo: EPU/Edusp, 1974.

Alba Zaluar · 


e negativos; ou seja, o dom é paradoxal. Daí seu caráter ambíguo, ambi-
valente, imprevisível.
Se a sociabilidade se dá entre pessoas que criam laços entre si, isso
não afasta a dimensão do poder que pode vir a diferenciá-las. De fato, no
social sempre há o entrelaçamento entre a necessidade e o dom, o interesse
e o desinteresse, o egoísmo e a generosidade, a cobiça e a solidariedade,
o amor e o ódio, apesar de as afirmações às vezes exageradamente oti-
mistas de críticos do interesse próprio como cimento da sociedade. Falar
apenas de reciprocidade no dom, portanto, não basta. É preciso saber de
que reciprocidade se trata, do seu contexto social, dos seus limites, dos
significados socialmente atribuídos às ações que a caracterizam e das
suas perversões socialmente percebidas e criticadas. Como acontece no
clientelismo político, na esmola, no presente de grego que não passa de
um ato de guerra, no dom manipulado para melhor dominar e submeter
o outro e na vingança mortal que é a completa negação da relação com o
outro. Seria preciso, portanto, ir além das relações interpessoais dos três
momentos do dom para se entender por que e como se oferece ou se nega
algo a alguém, por que e como se aceita ou recusa algo de alguém e por
que e como se retribui algo a alguém. A análise ou interpretação só ficaria
mais completa quando os contextos sociocultural e político-institucional
da prestação e da contraprestação estivessem nela incluídos.
Ora, muito do que é narrado como se fosse a cultura ou forma de vida
específica dos bandidos é a repetição dos acordos tácitos no cotidiano
dos moradores da favela e sua economia moral, na qual a denúncia ou
caguetagem, a traição ou escama, o engodo ou volta são moralmente con-
denados, considerados errados em qualquer transação. Mas os moradores
desarmados não têm poder para reparar o dano sofrido e reestabelecer o
equilíbrio nas relações do mesmo modo que os irmãos armados pela oferta
de armas e dinheiro do tráfico.
Ao falar das mudanças que teriam ocorrido no PCC, e baseados em
um depoimento de Marcola, o líder da facção em São Paulo, na CPI do
Narcotráfico outros autores afirmam que as decisões, como a proibição
de venda de crack na prisão, são coletivas – o consenso –, não havendo,
portanto, comando. Não são ordens, mas propostas discutidas em todas
as prisões por todos os presos. Biondi afirma que “o PCC é constituído
de relações travadas artesanalmente, nas quais tudo está em constante

 · Globalização no crime


negociação, transformação, discussão”.37 Mais importante, consensos
e orientações não podem ser confundidos com leis, regras, ordens ou
julgamentos; devem ser observados à luz de um incessante debate sobre
o que é certo – isso implica que, se de um lado, “ninguém é obrigado a
nada” e não são previstas punições a quem infringe o suposto código;
de outro é preciso saber que “tudo vai ter consequências”. O problema
é saber sobre quem e como irão se impor tais consequências, mas isto
não é enfatizado. Feltran,38 que teve de fato uma longa e rica experiência
de pesquisa de campo, afirma que a lei do crime, cujo papel de controle
social na drástica diminuição dos homicídios na periferia de São Paulo
teria aumentado muito nos últimos anos, preconiza a atitude do proce-
der, categoria nativa para operações em julgamentos extralegais, ou dos
debates, qualificados como muito sofisticados. Essa seria uma das quatro
diferentes leis (códigos normativos de conduta) consideradas legítimas
funcionando como diferentes instâncias de justiça no cotidiano. A lei do
crime seria invocada quando alguém fosse roubado, agredido, coagido
ou morto, caso não fossem policiais os autores da morte. Ele narra um
desses debates assim:

O curso das ações do “debate” que decidiu pela expulsão de Lázaro é muito
instrutivo da operação desse dispositivo. O principal traficante daquele
território, José, que conhecia Ivete há 14 anos, desde que a família havia
chegado à favela, chamou Lázaro imediatamente para uma conversa séria.
Participaram do “debate” apenas José e um de seus subordinados, que
ouvira de um dos policiais a denúncia de que Lázaro era seu informante.
José perguntou diretamente a Lázaro se ele integrava algum esquema de
“caguetagem” da polícia, o que ele negou veementemente (é Ivete quem
me conta isso). A acusação era gravíssima, mas não havia provas. Lázaro
era conhecido desde criança e, embora o desvio merecesse a morte, José
respeitava demais Ivete para ordenar a morte de um de seus filhos sem que
se tivesse certeza. Por isso, José intercedeu diretamente no caso, pedindo
para Anísio levar Lázaro até a rodoviária, para que ele “desaparecesse”
imediatamente. Era uma “chance de vida” que ele lhe dava, sem que o

37 Apud RUI, op.cit., p.147.


38 FELTRAN, op.cit.

Alba Zaluar · 


“debate” fosse concluído. (...) No caminho do terminal rodoviário, entre-
tanto, o telefone de Anísio tocou. A informação de que Lázaro era “cague-
ta” já teria chegado aos “irmãos” (do PCC), e eles tinham mais poder que
José. Apesar de ter obtido muitos relatos de que o PCC “controla” toda a
região de Sapopemba, obtive informações também da existência de outras
facções criminosas no distrito, e ainda de traficantes “independentes”. A
hipótese com que venho trabalhando é a de que os “irmãos” (PCC) con-
trolam apenas uma parte dos mercados ilícitos efetivamente existentes
ali, embora sejam a instância de deliberação normativa final sobre a tota-
lidade o ordenamento do “mundo do crime” local. Ou seja, um rapaz pode
roubar um carro de modo independente, e não entregá-lo a ninguém do
PCC, mas sua conduta frente a outros integrantes “do crime” e à polícia
está orientada pela lei ditada pelo dispositivo normativo do “Comando”.
Em Sapopemba, por isso, estão orientados por essa “lei”, além de todos
os indivíduos inscritos “no crime”, todos os moradores de favela (inde-
pendente de serem ou não participantes de atividades criminalizadas).
(...) Os “irmãos” telefonaram a José e solicitaram que Lázaro retornasse
para um segundo “debate”, agora na presença deles. Anísio trouxe o irmão
de volta. Lázaro foi, então, submetido a outra discussão, dessa vez muito
mais pesada. Parte dos “irmãos” queriam executá-lo sumariamente – o
“proceder” considera “correr com polícia” e “caguetar” pecados capitais,
dignos da pena de morte. No entanto, uma parte dos que integravam o
debate não estavam seguros da decisão, e só se executa alguém quando há
consenso. Talvez por respeitarem José, traficante antigo e considerado na
região, ou para evitar o mal-estar de atravessar uma decisão tomada por
ele, o “debate” deliberou por “espirrar” Lázaro para sempre da favela...
(...) Antes de voltar à rodoviária, entretanto, Lázaro foi espancado, com a
participação compulsória do irmão, a ponto de ter alguns ossos quebrados.
Anísio o levou arrastado para casa e, uma hora depois, ele foi colocado num
ônibus rumo a uma capital do Nordeste. Lázaro ainda corria o risco de ser
morto por lá, caso outros “irmãos” discordassem da sentença proferida.

Não por acaso, o caso narrado refere-se não à proteção de morador


roubado ou agredido, mas à manutenção da ordem interna e do po-
der da facção. É fácil, mesmo sem ler Habermas e os demais filósofos
da comunicação, entender que este debate e o consenso ensejados estão

 · Globalização no crime


fundamentados em um sistema muito eficaz de poder repressivo, em úl-
tima análise baseados no uso das armas para justiçar quem transgride as
regras impostas por esse poder. E de que a acusação, mesmo sem provas
cabais, é suficiente para uma condenação. A penalidade, por sua vez,
pode ser mais branda quando relações pessoais com parentes oferecem
a possibilidade de salvar a vida do acusado, embora sem garantia de que
a pena de morte não venha a ser executada.
Longe de ser uma comunidade constituída na crença, no consenso
e na solidariedade, essa forma de poder normativo, como o denomina
Feltran, é um modo de operar o poder repressivamente, que não poderia
ser considerado uniforme e consensual nas classes subalternas. Não há,
em nenhuma das etnografias já feitas, um estudo dos diferentes casos
levados a essa instância de justiça, apenas sua descrição por terceiros,
nem sempre testemunhas do caso, e que também ouviram a descrição
feita por outros. Esse fato já revela o caráter secreto e fechado do proceder
nem sempre passível de ser testemunhado.
Embora a ordem interna ou a submissão voluntária à estrutura de
poder desenvolvida na clandestinidade se sustentem internamente na
reciprocidade entre seus membros, na solidariedade e lealdade sempre
exigida aos que nelas ingressam, em que não faltam dons (nos dois sen-
tidos da palavra), o apelo à força das armas é inevitável. Quanto mais
organizada for, mais a facção criminosa é capaz de controlar o confronto
letal entre seus membros, sempre disputando postos de venda e de po-
der. São numerosos os depoimentos de jovens envolvidos no tráfico ou
ex-traficantes que narram as dificuldades de conservar amigos nesse
mundo, sobretudo na fase inicial em que as facções ainda não domina-
vam territórios e todas as etapas e redes do tráfico de drogas. Os laços são
frágeis, a confiança é mantida sob a ameaça de sanções fatais, a lealdade
sofre viradas repentinas e completas. Com a consolidação do poder das
facções, especialmente em São Paulo, onde apenas uma domina as prisões
e as áreas periféricas, novas formas de regular e conter a sanção fatal aos
rivais e inimigos são estabelecidas. No Rio de Janeiro, ainda na virada do
século XX para o XXI tais confrontos aconteciam mais amiúde.
Entrevistando longamente ex-traficantes, recolhi os seguintes depoi-
mentos que falam dos obstáculos à solidariedade, à lealdade, à amizade,
à dádiva, enfim, que são perseguidos sem muito êxito em um pano de

Alba Zaluar · 


fundo da descrença. Empréstimos de armas e de cocaína têm que ser
devolvidos ou pagos prontamente segundo seu valor de mercado. E com
os policiais a troca é de tiros e de arregos, sem ser exatamente alternativa,
pois andam juntos:

Dali em diante, eu comecei a comprar armas. Tudo que era arma que apa-
recia eu comprava e, às vezes, quando convidava um pra sair eu falava:
“Pô, cara, vamos dar uma volta até Madureira, Penha, Rocha Miranda pra
arrumar um dinheiro!” A gente era novinho, uns 15 ou 16 anos. Quando
alguém dizia: “Rodei com um fulano aí, perdi um dinheiro, perdi um
revólver!” Eu falava: “Não tem problema, não, eu te empresto outro.”
Hoje em dia é diferente, os caras da PM vão metendo bala. Naquela época,
eles rendiam a gente e assaltavam. Eles davam geral, puxavam o revól-
ver, pegavam o que tava no bolso e mandava se adiantar: “Se adianta, se
adianta.” (...) Hoje, a polícia é arregada, eles entram no plantão e recebem
o arrego. Então, tem uma certa hora, é assim que funciona, que eles falam
que o pessoal da Supervisão ou da Corregedoria vai fazer uma ronda lá,
então avisam: “Hoje não vai ter arrego, não!” Aí os caras não querem saber
de nada. Quando os PM vêm, já vai bala. E, aquele mesmo PM que está
entrando na bala hoje, amanhã está pegando o dinheiro, o arrego dele.
Hoje em dia, é assim que a coisa está funcionando nas favelas. Se hoje ele
não pode pegar dinheiro porque vai ter uma ronda, (...) porque tem uma
supervisão na viatura ou porque vai querer invadir, então o pessoal vai
meter bala... Por exemplo, lá em Jacarepaguá é assim: o arrego tem que
chegar até umas 2h da tarde. Se não, a polícia entra metendo bala... Hoje, o
que funciona mais é o argumento do arrego. Pagar pra não ser incomodado!

A desconfiança está sempre atrás da confiança precária e do paga-


mento pela ajuda recebida. Ainda é o mercado como interesse pecuniário
que predomina. Nem o fiel, que acompanha sempre o dono da boca mais
de perto em todas as horas do dia, escapa dessa lógica. Nos primórdios do
tráfico de cocaína no Rio de Janeiro, acontecia assim, segundo depoimento
feito em 2009 por um traficante preso por muitos anos:

Endolava a droga cada dia era em um lugar. Pessoas cediam a casa, en-
tendeu? Levava um dinheiro para liberar a casa para a gente trabalhar.

 · Globalização no crime


Aí, a vizinhança via, né? Aí da outra vez a gente já não ia naquela, porque
correria o risco de ser caguetado pelo telefonema anônimo. (...) Eu só vivia
ali assim, desconfiado. Tanto é que o [nome de outro traficante] não teve a
sorte que ele queria por causa disso, né? Às vezes, [ele] chegava perto de
mim e falava assim com dez/doze pessoas: “Aí, estou com uns amigos de
fora aí, vem cá pra mim te apresentar os amigos ali.” Eu o via de longe,
já ficava com os dois revolves debaixo do braço assim, e os caras se es-
ticando para apertar a minha mão: “Legal, não precisa apertar a minha
mão, não”; ele: “Pô, você não vai apertar a mão dos meus amigos, não?”;
eu: “Eu não, rapaz, você está matando seus amigos”; ele: “Amigo é nós,
vai deixar os amigos com a mão no alto aí”; eu: “Vai, não precisa apertar
a mão, não, tá maneiro assim.” Então, se eu não fizesse isso assim com
ele, eu não estaria aqui conversando com vocês hoje. E foi várias vezes
que aconteceu isso, eu o via de longe e já metia a mão no revólver. O que
acontecia? Ele trancava os dentes de nervoso comigo, aquela vontade
de fazer, mas ele vai fazer e eu também... Vai morrer nós dois... Então, o
[nome de outro traficante] não se deu bem por causa disso. Ele matava os
amigos, conversando assim com os amigos, comendo, bebendo e daqui
a pouco “bum”, dava um tiro na cara... Aí tomava tudo que o cara tinha.
(...) Isso também, mas, às vezes tem alguma coisa errada, né?, alguma
mancada. O cara vai sair matando aí daqui a pouco nego vai está falando:
“Pô, o cara está matando todo mundo, matando os amigos...” Então, eles
vão limpando o terreno assim, um matando o outro. Aí chega onde o cara
quer. No final aqueles que ele queria se livrar, ele se livrou... A primeira
coisa que vem na cabeça do cara que está envolvido é o seguinte: se não
mata aquele cara, o cara é que te mata. Aí nego fala: “Se é para chorar a
minha mãe, que chore a mãe dele.” Às vezes o cara pensa dessa forma:
“Não, coitado do cara, ele é amigo.” (...) O cara, quando faz isso, ele está
com raiva. Ele está matando alguém para não morrer, entendeu? Às vezes
o cara fica com pena, “o Fulano é legal, vou dar uma oportunidade pra
ele...”, aí vira as costas, está arriscado dele ganhar um tiro na cabeça.
Então, o cara vai cobrar já com esse pensamento: “Se eu não fizer isso
com esse filho da puta, ele vai fazer em mim.” É assim que acontece. Em
boca de fumo tem muito cara também que se diz assim, ninguém fala
na cara, ninguém diz, mas tem o cara que é robotizado. Na cadeia usava
muito essa palavra: robô é o cara que, “Mata Fulano”, ele vai lá e mata...

Alba Zaluar · 


Ele não está com raiva do cara. Isso é uma coisa diferente, você matar
uma pessoa sem estar com raiva, sem o cara ter feito nada. É o robô ou
teleguiado. Em boca de fumo tem muito isso. Tem muitos caras na boca
que querem mostrar serviço, que pretendem ganhar um posto melhor,
né? Esses são os caras que não têm pátria porque na boca todo mundo é
amigo, “oi, irmãozinho”, nego só chama de irmão, mano pra lá, mano
pra cá... Se abraça, vai lá na comida do cara. Daqui a pouco o dono da
boca: “Pode quebrar Fulano.” Acabou de comer no prato do cara e vai lá
matar o cara. (...) Tem o fiel, mas só que naquela época não se usava essa
palavra. Mas, sempre que estoura uma coisa, foi o fiel que traiu, foi o fiel
que deu. O cara está colado com ele, mas tem a inveja dele, quer o lugar
dele. Eu tinha essas pessoas que me rodeavam, mas quando eles iam
fazer a minha escolta que eu ia dormir ou me esconder em algum lugar
eu deixava eles parado até um certo ponto. Em uma certa caminhada que
eu sabia que eu podia ir sozinho eu falava pra eles, “podem voltar daqui.”
É fiel de confiança, mas nem tanto... Se eu for bajulado eu me sinto mal,
vejo que é uma coisa falsa, né?

Com Denis, “dono” da Rocinha no final dos anos 1980, quando as


facções já dominavam o tráfico, a vingança mortal pela confiança traída
revela-se uma tragédia em que a dissimulação e a mentira não conseguem
esconder os sinais invertidos do dom (tomar, recusar e acumular).

Até que um dia o Denis viajou para o México, que ele queria atravessar
do México para os Estados Unidos, fazer uns negócios lá... com essa via-
gem do Denis os caras começaram a trair ele com um grupo que estava
fugindo da Ilha Grande... Ele tinha um encontro com uma boliviana que
trazia mercadoria... Foi para vários lugares com os documentos falsos,
entendeu? ... Ele foi e deixou a boca com os caras lá, os dois irmãos,
mas aí os dois irmãos passou a ser dominados pelos caras que chegaram
da Ilha Grande... Os caras querem dar um golpe na boca e os amigos
do Denis que chegavam à Rocinha eles estavam matando. Aí eu já des-
confiado com aquilo fui embora... Então, uma mulher que já foi desse
cara era atualmente mulher do Denis, (...) então a mãe dessa garota ia à
Rocinha pegar dinheiro que o Denis fazia contato com eles dos Estados
Unidos e os caras começaram a rir e eu de longe via aquilo e percebia a

 · Globalização no crime


traição, “esses caras estão traindo o Denis, vão dar um golpe dele”. Os
caras estavam alucinados, cheirando dia e noite, pó e uísque. Então, às
vezes eles estavam conversando com os caras assim sentados, encosta-
vam a pistola do ouvido e já era. Matava e colocava na mala do carro. Os
moradores passavam para ir trabalhar de carro, viam um corpo no chão,
eles falavam: “Leva esse corpo aí”, o morador não estava acostumado
com aquilo, né, o Denis não fazia isso. Os caras estavam barbarizando a
favela. Aí os moradores com medo, não querendo levar, eles falavam: “Ou
você leva o corpo ou vai junto também...” Eles andavam com um saco de
pó pela favela. Eles pegavam um canudo e enfiavam dentro do saco para
cheirar... E matando dia e noite. Parecia que estavam matando mosca. (...)
Aí quando eu já estava fora da favela eu liguei para o Bolado. Ele era fiel de
verdade ao Denis. Aí telefonei para ele e expliquei a situação. Um coroa
que estava fugitivo da Ilha Grande, ele... estava liderando o golpe contra
o Denis. Quando eu liguei da (nome da favela) pra lá para avisar onde eu
tinha deixado umas armas do Denis, esse velho... era cascudo mesmo...
ele quem atendeu ao telefone: “Quem é?” Eu disse quem era. Aí ele falou
assim: “Pô é você meu camarada, não leva mal não, mas para você eu tiro
o chapéu.” Eu falei: “O que você quer dizer com isso?” “Você enxerga pra
caralho, hein?” Então, ele quis dizer mesmo que eles iam tentar tirar a
minha vida ali. Aí eu falei: “Eu nem sei o que você está querendo dizer.”
Ele: “Não, sabe, sim, você enxerga pra caramba.” Aí quando o fiel veio, ele
me explicou: “Pô ... você está certo, eles estão tramando um golpe mesmo,
mas eu não dou mole perto deles, fico com a mão no gatilho, eles vão se
fuder...” Acho que passou uns dois dias... Nesse dia eu fui até assumir a
situação de um cara lá que ele também me pediu um socorro, precisava
de cocaína pra lá que não tinha... Aí eu já aproveitei e pedi ao Bolado 1
kg de pó emprestado... Aí dois dias depois o Denis chegou de viagem, se
reuniu na Rua Um sem ninguém saber, aí subiu o fiel e mais um grupo
que confiava nele, aí desceu para Rua Dois e matou todo mundo. Foi uma
matança muito grande. Ele matou esses caras todos que tinham fugido da
Ilha Grande... esse coroa e mais um bando deles lá. Descobriu um porão
com várias metralhadoras que os caras estavam guardando lá. Só fugiu
um que era o cara que estava de frente na boca lá. Mas, fugiu como? A
polícia invadiu e ele pediu garantia de vida. (...) Ele (Denis) estava via-
jando muito. Eles gostavam muito de ir para Florianópolis. Eles chegaram

Alba Zaluar · 


a assaltar vários bancos lá... Nessa época, o fiel do Denis, ele e um grupo
de seis assaltaram uns cinco bancos, arrumaram muito dinheiro. Eles já
tinham os lugares certos para deixar o dinheiro para vir embora sem o
dinheiro e só depois as mulheres vinham para o Rio trazendo o dinheiro.
Em uma dessas Bolado foi preso. Ele era um branquinho, baixinho igual
um playboy. Ele era da Rocinha, mas quem não o conhecia achava que
era mauricinho da Zona Sul, mas era um cara responsável e amigo de
todo mundo. O Denis gostava muito dele. Então, esse foi o único que foi
preso em Florianópolis. O Denis gostava tanto desse cara que reuniu um
grupo, gastou muito dinheiro, embarcou os caras para Florianópolis e os
caras o resgataram lá na cadeia. Eu sei que trocou a bandidagem da favela
depois que ele fez a matança... Mas quem está no posto? Bolado que está
mandando em tudo... Aí o Denis está conversando com o fiel, aí falou:
“Deixa eu conversar com o Fulano agora.” Bolado passou o telefone pro
cara que estava ao lado dele e o Denis falou no telefone: “Quebra ele,
quebra ele que eu quero escutar o tiro, e assuma a boca.” Isso foram os
amigos que estavam lá que depois me contaram, né? Aí o cara acabou de
falar com o Denis: “Atende aqui que o cara ainda quer falar com você”, aí
Bolado atendeu ao telefone e ele matou o fiel. Era amigão, criados juntos...
Um policial arregado é que contou que Bolado tinha caguetado o Denis.39

Muitos relatos ouvi, ao longo dos anos e muito recentemente, de pes-


soas roubadas ou agredidas que foram procurar os chefes do tráfico local
para reaver seus bens ou impedir a continuidade da agressão, sem necessi-
dade de nenhum debate com os líderes da facção. Na verdade, segundo as
afirmações dos moradores entrevistados ao longo dos últimos trinta anos,
muitos deles procuram os membros da facção porque teriam que prestar
contas aos mesmos caso chamassem a polícia para resolver as pequenas
querelas e danos sofridos localmente. Nesse caso, estariam trazendo a
polícia para dentro da localidade, prejudicando o comércio ilegal. São
os casos que atrapalham os negócios, ameaçam os membros ou podem
abalar o poder da facção que mobilizam os “irmãos” e ocupam o debate
para decidir a pena. Nos pequenos casos de roubo e agressão a moradores,

39 Denis foi preso em 1987; Bolado morreu com um tiro na cabeça em 1988, que a
imprensa local chamou “acidental”. Denis apareceu enforcado na sua cela em 2001.

 · Globalização no crime


a instância deliberativa é um meio de evitar a presença da polícia, o maior
problema a ser evitado, pois é a fonte da identidade, do estigma, também
chamada de sujeição criminal, do criminoso, além da possibilidade de ser
preso, julgado, condenado, ou ter que se submeter à extorsão do custoso
arrego com policiais. Em outras palavras, as instâncias de deliberação
normativa presentes e atuantes localmente se limitam e conformam as
práticas utilizadas nelas. Duas questões tornam-se, então, cruciais: como
se desenvolveu a necessidade sistêmica de manter o segredo das ativida-
des comerciais e a sua lucratividade, bem como a lealdade aos chefes na
hierarquia de poder em que a inércia e a convenção se impõem sobre as
mentes mais fracas, e quem são os jovens que aderem a essas sociedades
clandestinas dispostos a morrer em conflitos armados? Se o mal é sistê-
mico, ou banal, como sugeriu Hannah Arendt no caso do extermínio de
judeus no Holocausto, é a inércia que leva os jovens a se matarem entre
si. Mas são os mais vulneráveis, porque originários de famílias pobres e
conflitadas, que procuram o reconhecimento social oferecendo sua co-
ragem e seu sacrifício pela firma. É preciso explicitar e levar em conta o
caráter secreto de suas decisões e transações, assim como o apelo àqueles
que buscam desesperadamente o reconhecimento, a glória, a fama.
Outro senão nos textos dos autores citados é que eles não mencionam
os conflitos que sempre ocorreram entre moradores e traficantes por
conta do controle da associação de moradores, da disputa de mulheres,
principalmente pela proibição de que qualquer uma delas que tenha sido
namorada de um traficante venha a namorar um morador comum, pelo
desconforto provocado pelo excessivo barulho dos bailes, mesmo que
os moradores não tenham coragem de reclamar dele. Os conflitos não
se reduzem nem aos interesses pecuniários nem aos conflitos de classe.
Para entendê-los, faz-se imperativo considerar os contextos social, po-
lítico e econômico mais amplos, seja da atividade subterrânea, seja da
política local.
No que concerne à subjetividade dos jovens envolvidos, há hoje certo
acordo entre antropólogos que estudam a grande diversidade surgida no
acelerado processo de globalização. Após as críticas ao consensualismo, à
harmonia e à homogeneidade, os etnógrafos passaram a ficar atentos tam-
bém para o inesperado, o surpreendente, o desviante, aquilo que o próprio
Malinowski chamava “os imponderáveis da vida real”. Os que lidam com

Alba Zaluar · 


o processo infindável e os conflitos inerentes a sistemas nunca perfeita-
mente arranjados não buscam o sistema, mas o que fazem em diferentes
situações as pessoas de carne e osso, os atores estratégicos que apontam
para desdobramentos das situações vividas. Em culturas híbridas, fle-
xíveis ou transicionais, o sujeito tem a seu dispor várias identificações
que adota contextualmente, negociando-as, mas nunca assumindo-as
como sua essência imutável e transcendente. Em tais culturas, os sujeitos
seriam mais personagens hamletianos, sempre em dúvida quanto ao ser
ou não ser, que resolvem o conflito trágico por optar, diante de um leque
de alternativas à mão, quais vão definir um projeto identificatório nunca
terminado e sempre renovado. É a intermitência e o entrecruzamento de
lugares, identificações, discursos e bens que se observa nas muitas situa-
ções em que interagem diversos atores, desde moradores da vizinhança
até agentes institucionais – policiais, médicos, professores, assistentes
sociais –, bem como pesquisadores e jornalistas em constante disputa
pelo discurso sobre a localidade e a identidade social.
Nos períodos em que mais favelas estavam sob o domínio armado
de traficantes, continuei a recolher depoimentos apontando para outras
formas de pensar e organizar o poder dentro delas. Líderes comunitários
independentes do tráfico continuaram a exercer suas atividades, mesmo
que limitadas, fora das associações de moradores, que foram sendo con-
troladas seja pelos paramilitares que compõem algumas das “milícias”,40
seja por traficantes.41 É preciso, pois, assinalar tanto o equívoco de ge-
neralizar tal etos, sociabilidade ou modo de operar o poder para toda a
classe social, seja ela chamada de classes populares, classes subalternas
ou populações marginais, assim como apostar em sua permanência e
irreversibilidade. O contexto social é de intercruzamentos institucionais,
hibridismo cultural e redes de relações sociais entrecortadas, recortadas
e reconstituídas em processos complexos e diversos.
Concomitantemente às diferenças na avaliação moral de ações clas-
sificadas como crime pelos moradores das favelas cariocas, havia também

40 ZALUAR, Alba; Conceição, Isabel S. “Favelas sob o controle das milícias no Rio
de Janeiro: Que paz?.” São Paulo em Perspectiva, vol.21, n.2, 2007, pp.89-101; CANO,
Ignacio. “Seis por meia dúzia?.” In: Justiça Global (org.). Segurança, tráfico e milícia no
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2008.
41 ZALUAR, op.cit.;
—————, op.cit.

 · Globalização no crime


alterações na sensibilidade em relação ao sofrimento alheio dos que eram
envolvidos nas atividades do tráfico, que se tornavam cada vez mais cruéis.
O horror, porém, nunca foi aceito pela grande maioria dos moradores,
embora eles tivessem que aprender a conviver com as formas despóticas
de poder tão perto de suas casas.
Com isso se espalhou, entre alguns dos muitos jovens pobres que
moram nesses locais, uma primeira natureza 42 solta,43 junto a uma se-
gunda natureza contra a legalidade, porém submissa às regras despóticas
dos tiranos locais, desenvolvendo o etos guerreiro de impiedade ao so-
frimento alheio, de orgulho ao infligir violações ao corpo de seus rivais,
negros, pardos e pobres como eles, então vistos como inimigos mortais
a serem destruídos em uma guerra sem fim. Entre os muitos estilos de
masculinidade entre migrantes de outros estados, entre jovens da segunda
geração, entre jovens negros, pardos, mulatos, brancos, destacava-se, nas
diversas pesquisas etnográficas feitas pela equipe do Núcleo de Pesquisa
das Violências (Nupevi),44 aquele que estava mais claramente vinculado à
ação violenta contra os outros: o etos guerreiro e a hipermasculinidade, na
qual o consumo conspícuo define as novas identidades masculinas bem-
-sucedidas e obriga a ter dinheiro para exibir e ajudar amigos, vizinhos e
parentes, impressionando-os com a exibição de joias e roupas dispendio-
sas em seu próprio corpo, com festas e pagamento de bebidas em locais
públicos, estratégias dos que buscam dominar pelo poder das armas e de
muito dinheiro no bolso. Esses estilos de masculinidade exacerbada ou
de exibição espetacular de protesto masculino criaram o contexto social
do conflito armado localizado, mas sem fim, que alguns chamam “guerra
molecular”45 operante pela desumanização do inimigo, o que justificaria
as atrocidades cometidas contra eles. E, ao final, abalou a sempre frágil

42 WOUTERS, Cas. “Changing Relations of Manners and Emotions: From Disciplin-


ning to Informalizing.” In: Loyal, Steven; Quilley, Stephen (orgs.). The Sociology of Nor-
bert Elias. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, pp.193-211.
43 Um dos termos usados para designar os jovens que mais “barbarizam”, ou seja, que
agem descontroladamente sem seguir as regras locais de sociabilidade, sem respeitar
nada e ninguém é justamente “bicho solto”.
44 CECCHETTO Fatima. Violências e estilos de masculinidade no Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2004; MONTEIRO, Rodrigo. Prevenção da violência: O caso dos pro-
jetos esportivos no subúrbio carioca. Tese (doutorado), IMS, Uerj, 2009.
45 ZALUAR, op.cit.

Alba Zaluar · 


civilidade dos moradores de cidades brasileiras, civilidade construída ao
longo de décadas, principalmente nas variadas associações vicinais, in-
clusive as recreativas escolas de samba, em blocos de carnaval, maracatus,
folias etc. Houve um retrocesso na interiorização de uma terceira natureza
menos convencional e menos submissa à autoridade incontestável e mais
flexível na negociação com o outro.
A maior divergência estaria, portanto, no lugar dos processos de longo
prazo nas tentativas de interpretação da violência entre os homens jovens
e pobres no Brasil, mais especificamente na cidade do Rio de Janeiro. Tais
processos, que Elias e Wouters estudaram no contexto social da Euro-
pa desde a Idade Média, e, mais recentemente, os estudos de Dunning,
abarcam as regras de fair play e de relacionamento entre pessoas de dife-
rentes classes sociais, gêneros e gerações como parte do longo processo
de ordenamento ou disciplina que substituiu a destruição física dos rivais
pelo controle das emoções na rivalidade regrada. Esse longo processo foi
observado no jogo parlamentar, na competição esportiva 46 ou nos desfiles
das escolas de samba do Rio de Janeiro,47 revelando outras dimensões
e segmentações das classes sociais. Nessas expressões do fair play e da
civilidade não estavam em questão, portanto, as boas maneiras que per-
mitiriam o acesso às elites ou aos grupos fechados dos bem-nascidos e
bem-criados, mas sim o respeito às regras do jogo que valeriam para todos
os envolvidos nos espaços públicos, ou seja, além da paróquia. Pode-se
dizer que, nos esportes e desfiles competitivos, opera-se no registro da
igualdade diante das regras, de um senso de justiça informal que se apren-
de ao longo da socialização, muito mais do que na corrida pela ascensão
social. Como reúne pessoas de diferentes famílias, gerações e bairros da
cidade em espaços públicos, propicia a interiorização da civilidade entre
concidadãos. Seria ela também a base para a solidariedade interna da
classe social, portanto de seus movimentos reivindicativos.
O foco passou a ser, então, o processo de pacificação dos costumes,
ou o que poderia se chamar “a cultura da civilidade”, que transforma-
ram a relação entre o Estado e a sociedade, dividida em classes sociais,

46 ELIAS, Norbert; Dunning, Eric. Quest for Excitement, Sport and Leisure in the Civili-
zing Process. Oxford: Blackwell, 1993.
47 ZALUAR, op.cit.

 · Globalização no crime


etnias, raças, grupos de idade, gêneros, afiliações religiosas. Ao sublinhar
a civilidade em vez da etiqueta ou o código de boas maneiras, interpretei
o processo civilizatório pelo viés político-institucional do monopólio
legítimo da violência pelo Estado e as mudanças na formação subjetiva
devido ao fair play e ao controle das emoções. Nesse processo aprende-
-se a respeitar as regras do jogo, das quais um dos objetivos é poupar a
vida alheia. Interpreto-a, portanto, pelo viés da cultura da civilidade e
da associação para a ação coletiva, mais próximo daquilo que Putnam 48
denominou cultura cívica.
Segundo Wouters, o processo de “informalização” das etiquetas du-
rante as décadas de 1960 e 1970, também chamado de “emancipação
coletiva”, teria tornado mais flexível essa oposição com a aceitação do
que denomina “lower impulses” e “lower classes”. Isso significou, na re-
lação entre as gerações, ultrapassar a figura da autoridade peremptória
e incontestável cujas ordens teriam que ser obedecidas sem discussão.
Alternativas de padrões de conduta, principalmente vindas da cultura
jovem, passam a ser admissíveis, objetos de negociação entre figuras de
autoridade e os jovens. Na economia psíquica dos indivíduos, a respon-
sabilidade e, portanto, a racionalidade diante das escolhas feitas entre
as alternativas possíveis aumentaram, assim como maior igualitarismo
social na medida em que diminuiria a distância social entre os hierar-
quicamente considerados inferiores e superiores.
Embora o triunfo do mercado na década de 1980 tenha significado
um retorno à necessidade de escalar socialmente a hierarquia social,
mais desigualdade e mais conformismo perante as elites estabelecidas,
o surgimento de uma terceira natureza que provoca o diálogo entre as
emoções reprimidas (primeira natureza) e a etiqueta social aprovada
(segunda natureza) não desapareceu. A terceira natureza se caracterizaria
pela maior flexibilidade moral e maior entendimento entre consciência e
impulsos de tal modo que os bem-sucedidos seriam os que combinariam
firmeza e flexibilidade, franqueza e tato.49

48 PUTNAM, Robert D. “E Pluribus Unum: Diversity and Community in the Twenty-


-First Century (The Johan Skytte Prize Lecture).” Scandinavian Political Studies, vol.30,
n.2, 2007, pp.137-174.
49 WOUTERS, op.cit., pp.208-210.

Alba Zaluar · 


De fato, seria importante analisar como o capital de personalidade
entre os jovens das cidades brasileiras está comprometido pela interrupção
e incompletude do processo de informalização/igualitarismo social, visto
que a democratização social não se deu no mesmo ritmo da democrati-
zação política. A permanência do autoritarismo social, ou da hierarquia
social no Brasil, mas principalmente as formas de poder despótico surgi-
das a partir dos anos 1970 nas áreas urbanas mais desfavorecidas, teriam
abortado o processo de informalização ou de maior diálogo com as figuras
de autoridade, inclusive para discutir as regras do jogo, especialmente
nas camadas menos escolarizadas e mais subalternas. Mais uma vez nos
deparamos com um processo de redemocratização inconcluso, parcial e
excludente que combina diferentes estágios na consolidação do estado de
direito. Mais uma vez, manifesta-se a desigualdade social, agora também
no processo de socialização e na aquisição das disposições e posturas mais
condizentes com a participação ou inclusão na sociedade.

 · Globalização no crime


Pelo certo: o direito informal
do tráfico em favelas cariocas

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Introdução

A imprensa carioca costuma denominar as práticas de justiçamento ilegal


cometidas por traficantes pela alcunha de “tribunais do tráfico”. Notícias
sobre vítimas letais em favelas, presos ordenando homicídios em grava-
ções telefônicas e filmagens de espancamentos coletivos costumam ser
representadas por esta analogia direta com as instituições formais de
justiça, projetando no tráfico o modelo do tribunal. Por certo, os coleti-
vos formados por criminosos articulam processos de mediação de litígio
que frequentemente culminam no uso da força contra uma ou todas as
partes envolvidas na contenda. A analogia com os tribunais justifica-se
pela centralização do poder de arbítrio sobre os conflitos locais na figura
do patrão ou chefe do tráfico, seja ele o dono do morro ou o gerente-geral
por ele nomeado, também conhecido como frente ou responsável do morro.
Pretendo, contudo, descongelar a imagem do “tribunal do tráfico”
por meio de uma análise descritiva das negociações de conflito mediadas
por traficantes em favelas do Rio de Janeiro. Com base em cerca de dois
anos e meio de pesquisa etnográfica em áreas controladas pela facção do
tráfico de drogas intitulada Comando Vermelho,1 examinarei algumas

1 Essa pesquisa resultou em minha tese de doutorado: GRILLO, Carolina Christoph. Coisas
da vida no crime: Tráfico e roubo em favelas cariocas, Tese (doutorado), PPGSA, UFRJ, 2013.
questões relativas ao direito informal articulado sob a influência desta
facção, tomando por referência as práticas, as experiências e os concei-
tos dos próprios sujeitos da “violência urbana”. Defendo a ideia de que
a produção e reprodução do ordenamento a que os bandidos se referem
como mundo do crime ou apenas Crime depende em grande medida da
incorporação de uma ética muito peculiar e do emprego de um idioma
específico em que são conjecturadas as argumentações em negociações
de conflitos. Um entendimento mais aprofundado sobre a deflagração e
resolução de disputas entre bandidos permitirá acessar aspectos impor-
tantes da socialidade peculiar ao Crime.
Ao propor que o chamado Crime ou mundo do crime seja um ordena-
mento, parto do emprego usual destas categorias nativas para designar
um universo de ação e significação particular identificado por criminosos
que se pensam como nele imersos.2 O poder do comando sobre um terri-
tório cria um precedente para a composição de um complexo de práticas
criminais que atravessam a organização do tráfico, envolvendo também o
comércio ilegal de armas (e o seu porte ilegal, evidentemente), roubo, furto,
receptação de mercadorias roubadas, estelionato, homicídio, lesão corporal
dolosa, suborno de autoridades etc. O conjunto de todas essas práticas que se
desenvolvem no contexto da facção constitui o que os bandidos convencio-
naram chamar de mundo do crime ou, tão somente e mais frequentemente,
Crime. Trata-se de um universo experimentado em maior ou menor grau
por pessoas que vivem a chamada vida errada ou vida no crime e dominam
uma determinada linguagem. O Crime é, portanto, uma “forma de vida”.
O foco deste trabalho é o direito informal peculiar ao mundo do crime
em favelas cariocas e, mais especificamente, a sua principal expressão
objetiva: os chamados desenrolos. Disputas de diferentes naturezas de-
sencadeiam processos coletivos de mediação das mesmas, conhecidos
como desenrolos ou desenrolados. São eles procedimentos orais por meio
dos quais os conflitos se deflagram e buscam uma solução – que pode ser
violenta –, amparando-se no poder do tráfico como instância reguladora.3

2 Ver também RAMALHO, José Ricardo. Mundo do crime: A ordem pelo avesso. Rio de
Janeiro: Graal, 1979. Voltarei adiante à definição de Crime.
3 A categoria desenrolo também é frequentemente usada para se referir a outros tipos
de litígio mais ordinários, que não passam pela mediação do tráfico, ou a situações de
acerto com a polícia em casos de flagrante – ver GRILLO, Carolina Christoph; Policarpo,

 · Pelo certo


A decisão pelo emprego da força, nas áreas dominadas pelo tráfico, não
pode ser tomada isoladamente, devendo passar por debates coletivos, em
que as partes do conflito formulam os seus accounts, 4 sendo negociada a
versão consensual dos fatos, bem como o seu encaixe aos mandamentos
gerais da facção. Há uma burocratização da violência, imposta pela firma
– a empresa local do tráfico de drogas –, que depende de processos argu-
mentativos de definição da situação, em que se decide o que aconteceu, o
que é certo e o que é errado, quem está certo e quem está errado. Mas quais
seriam os critérios empregados na avaliação dessas situações? Com base
em qual “senso comum” se produziria o consenso? Até que ponto seriam
mesmo consensuais os desfechos dos desenrolos?
Para Garfinkel,5 o senso comum é produzido nos contextos especí-
ficos, em que os atores competentes compartilham avaliações comuns
sobre as situações, compondo um corpo de decisões práticas. Ele enfatiza
o caráter reflexivo das atividades rotineiras e compreende as estruturas
formais da ordem social como resultantes de ações e accounts formulados
pelos membros da situação. Se acompanhássemos esta lógica na análise
dos desenrolos, diríamos que as regras de avaliação da razoabilidade dos
accounts seriam produzidas no decorrer do debate. De fato, observou-se
uma predominância de releituras argumentativas das situações e uma
forte tendência à atualização circunstancial de regras. Mas de onde viriam
essas “regras” anteriores que se permitem ser reajustadas?
Ou seja, qual é a fonte da regulação das práticas? Já não estariam de
algum modo estruturados os estoques de conhecimento que informam
os membros das situações? Deve ser levada em conta a hierarquia da or-
ganização do varejo de drogas em favelas – respaldada na concentração
dos meios de violência –, o que produz diferentes status de pessoas e
multiplica as assimetrias nas relações. É, portanto, preciso tratar com
cuidado a ideia de produção do consenso, atentando-se para os sistemas
de poder que fomentam os regimes de verdade.6

Frederico; Verissimo, Marcos. “A ‘dura’ e o ‘desenrolo’: Efeitos práticos da nova lei


de drogas no Rio de Janeiro.” Revista de Sociologia e Política, vol.19, n.40, 2011 –, mas
privilegio aqui apenas um dos sentidos atribuídos a esse mesmo termo.
4 SCOTT, Marvin B.; Lyman, Stanford M. “Accounts.” Dilemas: Revista de Estudos de
Conflito e Controle Social, vol.1, n.2, 2008 [1968], pp.139-172.
5 GARFINKEL, Harold. Studies in Ethnomethodology. Oxford: Polity, 1967.
6 FOUCAULT, Michel. A microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2001.

Carolina Christoph Grillo · 


A hierarquia do tráfico é, sobretudo, local, não havendo lideranças
acima dos donos de morro.7 No entanto, as alianças políticas estabelecidas
entre eles constituem as chamadas facções criminosas ou comandos, que
fracionam os espaços de concentração da pobreza urbana, bem como
os espaços prisionais, em áreas sob a influência de uma ou outra facção:
em amigos ou inimigos. Trata-se de redes horizontais de proteção mútua
– originalmente constituídas no interior das prisões – que, mesmo sem
estarem subordinadas a grupos estratégicos do crime organizado, acu-
mularam-se consideravelmente ao longo das últimas décadas.8 O mesmo
formato padrão de firmas locais do tráfico – territorializadas, hierárquicas
e ligadas a uma facção – propagou-se para e reproduziu-se em áreas pobres
de diversas regiões do Estado, principalmente na região metropolitana.
Como argumentei em trabalhos anteriores,9 a relação que se pro-
duz com o território e a dinâmica organizacional do mercado de drogas
sob tais moldes colaboram com o alto volume de violência evidenciado
nessas áreas. O potencial de uso da força – a ser empregada nos frequen-
tes tiroteios com a polícia ou outros traficantes – torna-se a condição
de existência do comércio de drogas; e a posse de armas – sobretudo as
de grande porte – assume um papel central na conformação das rotinas
normais do tráfico.
A violência acaba por não protagonizar apenas a relação entre trafican-
tes e seus inimigos, tornando-se determinante para produção e reprodução
dos arranjos de poder que sustentam uma determinada forma de organi-
zação local deste comércio. Seja latente ou manifesta, a força é a garantia
primordial de cumprimento dos acordos assimétricos de que se compõe o
cotidiano deste mercado; é o principal “economizador de confiança”10 que

7 BARBOSA, Antônio Rafael. Prender e dar fuga: Biopolítica, sistema penitenciário e


tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Tese (doutorado), PPGAS, MN, UFRJ, 2005.
8 MISSE, Michel. “O movimento: A constituição e reprodução das redes do mercado
informal ilegal de drogas a varejo no Rio de Janeiro e seus efeitos de violência.” In: Bap-
tista, Marcos; Cruz, Marcelo Santos; Matias, Regina (orgs.). Drogas e pós-modernidade.
Rio de Janeiro: Eduerj, 2003.
9 GRILLO, Carolina Christoph. Fazendo o doze na pista: Um estudo de caso do mercado
ilegal de drogas na classe média. Dissertação (mestrado), PPGSA, UFRJ, 2008.
10 Tomo de empréstimo a noção empregada por Gambeta, segundo o qual é possível
“economizar confiança” com base nos interesses e nas potenciais retaliações que tor-
nam a traição uma opção custosa. Ver GAMBETTA, Diego. “Can we Trust?.” In: Trust:
Making and Breaking Cooperative Relations. Oxford: Blackwell, 1990.

 · Pelo certo


coopera para o funcionamento regular da firma. A autoridade do dono do
morro está respaldada pelo seu arsenal e homens dispostos a obedecê-lo,
sendo a morte e a agressão física consequências prováveis para atitudes
como a traição, a delação e o não pagamento de dívidas.
A maioria dos conflitos que vão para o desenrolo é interna à organização
local da criminalidade ou promovida pelo próprio tráfico, no intuito de
reprimir determinados comportamentos no interior de seu perímetro de
influência. Mas os líderes da firma local podem ser também chamados
pelos moradores a intervir em situações que não lhes competem direta-
mente – como disputas fundiárias, brigas conjugais ou entre vizinhos e
furtos no interior da favela –, quando uma ou ambas as partes em conflito
vai à boca11 prestar uma queixa. A firma acaba atuando como mediadora
das disputas alheias. Mas em quaisquer dos diferentes “tipos” de desenrolo
há sempre espaço para o exercício do contraditório e as pessoas detém
a prerrogativa de acionar outras que possam argumentar em seu favor.
Para uma análise mais apurada destes processos, é preciso conhecer
as formalidades peculiares à justiça informal dos criminosos e compreen-
der a moralidade que informa a produção dos argumentos e decisões ao
longo dos desenrolos. Compreender também os interesses – velados ou
explícitos – que interagem com os valores para a conformação contex-
tual de posicionamentos e juízos a respeito dos conflitos. Uma atenção
maior à terminologia nativa e à gramaticalidade moral do seu emprego
permitiu-me acessar as lógicas subjacentes aos desenrolos, o que somente
a pesquisa etnográfica pôde proporcionar.
Este trabalho está dividido em duas partes. Na primeira sessão, busco
pontuar algumas questões sobre a natureza da regulação das práticas,
aproveitando alguns ganchos com o que vem sendo produzido sobre o
mesmo tema em São Paulo. Já na segunda sessão, apresento relatos di-
versos obtidos ao longo do trabalho de campo, para reconstituir alguns
casos e as diferentes versões que deles emergem, descrevendo os meca-
nismos de justiça acionados por bandidos, evocando a linguagem em que
os conflitos se apresentam e identificando as variáveis que influem na
negociação política do consenso.

11 Boca é como se chamam os pontos de venda de drogas em favelas, mas também


pode aparece frequentemente, nas falas locais, como sinônimo de firma.

Carolina Christoph Grillo · 


Lei, ordem e disciplina: a ética do certo

Até o momento, referi-me a uma suposta justiça ou direito articulado pelo


tráfico, mas esta é uma proposição problemática e exige que precisemos
alguns pontos. Em primeiro lugar, falta definir a que espaço de vigência
e/ou a que forma de coletividade se remete esta justiça. Às favelas? Às
prisões? À firma? À facção? Ao Crime? Bem, a todas essas coisas, mas não
de maneira homogênea. O morro e a cadeia são realidades completamen-
te distintas, cujas regras de convivência e mecanismos de resolução de
disputas atendem a problemáticas igualmente distintas. No entanto, a
organização do mundo do crime em facções, que coloca em permanente
relação os membros – presos e em liberdade – de diferentes firmas, somada
ao poder da firma sobre o território das favelas e ao poder da facção sobre
as firmas e espaços prisionais produz um continuum moral-legal, capaz de
atravessar os muros das prisões e alcançar onde mais houver bandidos –
ligados a uma facção – em interação. Continuum este que apresenta grandes
variações de qualidade e intensidade, mas toma sempre o Crime como um
referencial coletivo transcendental.
Ao escrever Crime com letra maiúscula e em itálico tomo de emprés-
timo a grafia empregada por Biondi12 para referir-se à mesma categoria
nativa – agregadora de sentidos –, empregada por pessoas ligadas ao Pri-
meiro Comando da Capital – PCC –, em São Paulo. Essa autora define o
Crime como “uma ética e uma conduta prescrita”,13 o que não a impediu
de pensá-lo também como uma entidade abstrata, produto do pensa-
mento transcendente de seus nativos. Para conciliarmos as diferentes
leituras possíveis desse mesmo conceito, recorro à definição de Feltran14
para a noção correlata de mundo do crime, bastante usual nas periferias
de São Paulo, assim como no Rio de Janeiro: “Trata-se de expressão que
designa o conjunto de códigos sociais, sociabilidades, relações objetivas
e discursivas que se estabelecem, prioritariamente, no âmbito local, em
torno dos negócios ilícitos do narcotráfico, dos roubos, assaltos e furtos.”15

12 BIONDI, Karina. Junto e misturado: Uma etnografia do PCC. São Paulo: Terceiro Nome,
2010.
13 Op.cit., p.54, nota 36.
14 FELTRAN, Gabriel de Santis. Fronteiras de tensão: Política e violência nas periferias de
São Paulo. São Paulo: Unesp, 2009.
15 Op.cit., p.19.

 · Pelo certo


Seja no Rio de Janeiro ou em São Paulo, nos deparamos com um con-
junto de práticas criminais referenciadas a uma ética singular, essencial
à produção e reprodução do Crime enquanto um ordenamento. Baseio-me
nas formulações de Machado da Silva,16 ao propor que pensemos o Crime
como um ordenamento. Segundo este autor, a representação da “violência
urbana” e a sua constituição enquanto problema social remete à padroni-
zação do rompimento do fluxo regular das rotinas por ameaças à integri-
dade física e à segurança patrimonial, identificando e expressando uma
ordem social que coexiste com a ordem “institucional-legal” e configura
“um complexo de práticas do qual a força é um princípio de coordena-
ção, responsável por sua articulação e relativa permanência ao longo do
tempo”.17 No entanto, ao passo que este autor parte da percepção gene-
ralizada dos habitantes do Rio de Janeiro, eu parto da conceitualização
nativa compartilhada pelos próprios sujeitos da “violência urbana” para
também identificar um ordenamento criminal: o Crime ou mundo do crime.
Segundo Machado da Silva, tal ordenamento é caracterizado pela
“sociabilidade violenta”, de modo que a força deixa de ser um meio de
obtenção de interesses e transforma-se no princípio de coordenação das
relações sociais. “A sociabilidade violenta é uma noção típica-ideal que
procura captar a especificidade de um complexo de condutas e o respec-
tivo lugar simbólico e político a ele atribuído pela população urbana.”18
A possibilidade de reprodução desta sociabilidade é favorecida pela as-
sociação da “violência urbana” com o tráfico de drogas, que fornece as
bases econômicas para a sua organização e duração.
É bem verdade que a principal diferença entre os “mundos” do Crime
do Rio de Janeiro e de São Paulo é que, no Rio, o tráfico de drogas despon-
tou como a matriz de todas as outras práticas criminais. “É uma atividade
que conseguiu, como nenhuma outra, organizar o campo dos ilegalismos
populares – prendendo em sua órbita as demais, passando a funcionar
como um centro de sobrecodificação das outras atividades criminosas.”19

16 MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. “Criminalidade violenta: Por uma nova pers-
pectiva de análise.” Revista de Sociologia e Política, n.13, 1999, pp.115-124; —————.
“Violência urbana, sociabilidade violenta e ordem agenda pública.” In: Vida sob cerco:
Violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
17 MACHADO DA SILVA, op.cit., p.37.
18 Op.cit. p.42, nota 8.
19 BARBOSA, op.cit., p.425.

Carolina Christoph Grillo · 


Ao falar em sobrecodificação, Barbosa se remete ao conceito formulado
por Deleuze e Guattari para nomear uma codificação de segunda ordem:
um código que se sobrepõe a uma codificação anterior. Assim como o
código penal sobrecodifica fluxos de ação antes já classificados por sa-
beres práticos, também a formação dos Comandos tenta impor um regime
despótico de sobrecodificação do Crime. A dinâmica faccional produz um
dentro e um fora, reterritorializa os corpos, saberes e modos de agir em
um novo mapa.
Por isso, a imagem mais corriqueira da justiça informal do Crime é o
chamado “tribunal do tráfico”. A organização deste mercado nas favelas
do Rio de Janeiro tornou-se central para a conformação das dinâmicas
faccionais que se sobrepõem ao ordenamento criminal. Mas até que pon-
to podemos imaginar a existência de um direito próprio a esta ordem?
Machado da Silva acredita que não há acordo, negociação, contrato, fins
coletivos ou subordinação em tal ordenamento. “Todas as formas de in-
teração constituem-se em técnicas de submissão que eliminam a vontade
e as orientações subjetivas dos demais participantes como elemento sig-
nificativo da situação.”20 Mas como pode um ordenamento reproduzir-se
apenas com base nos princípios de subjugação pela força? Ainda que a
violência seja talvez o traço mais marcante da formação social em ques-
tão, é preciso que ela se articule a dispositivos de coesão e mecanismos
de controle social que, de algum modo, prolonguem a durabilidade das
relações de poder.
A justiça dos criminosos me parece um bom lugar de análise para
refletir sobre os pontos de contato entre o autoritarismo arbitrário e a
produção de coletividade, dentro desta ordem. A alta frequência do re-
curso à violência é um indicador de ilegitimidade da dominação do tráfico
sobre a favela e de uns sobre outros no interior da estrutura hierárquica
da firma. Não obstante, a facção – enquanto um “ente” coletivo ideal –
ratifica a autenticidade do poder dos donos de morro, ao mesmo tempo que
estabelece uma ética peculiar ao Crime e fornece a linguagem em que os
conflitos devem ser formulados.
A regulação das práticas de que se compõe o ordenamento criminal
está permeada por processos de produção de consenso em que as ações

20 MACHADO DA SILVA, 2008, p.42.

 · Pelo certo


são adequadas a orientações de valor, de modo que a formação e reso-
lução das disputas envolvem o acionamento de dispositivos discursivos
expressos no idioma do Crime. Os desenrolos são o contraponto da violência
descontrolada, pois instituem um espaço de diálogo, abrindo brechas
para a moderação do uso da força. É certo que eles estão atravessados por
assimetrias de status e que os seus desfechos podem ser cruelmente arbi-
trários, mas eu pude observar que há sempre um empenho para justificar
os argumentos e decisões com referência a uma moralidade: aos sentidos
do que se entende por certo e errado. Prescrições gerais de comportamento
são evocadas e encaixadas às circunstâncias, produzindo-se algum senso
de justiça.
Mas estaria a ética do Crime cristalizada em um corpo normativo? Ha-
veria um código de conduta próprio à facção, prevendo normas e sanções?
É comum ouvir falar em “lei do tráfico”, “lei do crime”, “lei do morro”,
“dez mandamentos do Comando Vermelho” e demais alusões a um con-
junto de normas impostas pelo Comando e seus representantes locais a
todos que convivem nos espaços de favelas ou prisões. Tais categorias
nativas reforçam uma analogia com o modelo jurídico estatal, no entanto
expressam apenas recomendações de conduta muito gerais, que não dão
conta da amplitude dos comportamentos interditos ou desaconselhá-
veis, segundo a normatividade local. A gramática de sobrecodificação
do ordenamento criminal difere profundamente da legislação oficial e
precisa ser compreendida em suas particularidades, com referência ao
léxico peculiar que ela mobiliza.
Farias,21 ao discorrer sobre a “asfixia” em que vivem os moradores
de favelas, aborda a multiplicação das regras que o tráfico impõe sobre
as pessoas, cuja baixa previsibilidade fomenta o que os jovens favelados
denominam como neurose. No entanto, considero pertinente ressaltar que
a noção de “regras”, assim como a de “leis”, parece também inapropriada
para dar conta do controle social arbitrário exercido pelos traficantes, tal
como ressaltou a autora. Ao imaginarmos regras com punições especifi-
cadas, dá-se a impressão de estarmos diante de um sistema disciplinar do

21 FARIA, Juliana. “Da asfixia: Reflexões sobre a atuação do tráfico de drogas nas fa-
velas cariocas.” In: Machado da Silva, Luiz Antonio (org.). Vida sob cerco: Violência e
rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

Carolina Christoph Grillo · 


Crime, com seu próprio regimento e suas próprias sanções normalizadoras.
Segundo Foucault:22

Na essência de todos os sistemas disciplinares, funciona um pequeno


mecanismo penal. É beneficiado por uma espécie de privilégio de justiça,
com suas leis próprias, seus delitos especificados, suas particularidades
de sanção, suas instâncias de julgamento. As disciplinas estabelecem
uma “infrapenalidade”; quadriculam um espaço deixado vazio pelas leis;
qualificam e reprimem um conjunto de comportamentos que escapa aos
grandes sistemas de castigo por sua relativa indiferença.

É, inclusive, comum a leitura de que as facções criminosas seriam uma


instância reguladora alternativa às instituições formais do direito público,
ocupando as brechas deixadas pelo Estado. É assim, por exemplo, que
Dias23 interpreta a atuação do PCC na mediação de conflitos em prisões e
“quebradas” de São Paulo, assinalando a “centralização da prerrogativa de
impor as normas e as sanções disciplinares nas mãos do grupo denomi-
nado Primeiro Comando da Capital (PCC)”. Evidentemente, a legislação
oficial não poderia se ocupar das cobranças de dívidas do tráfico, divisão
dos proventos de roubos, acusações de delação e traição etc. Tampouco
parece oferecer respostas satisfatórias a conflitos cotidianos como as
brigas entre casais ou vizinhos ou problemas de convivência entre presos.
Entretanto, o ordenamento criminal e sua respectiva “infrapenali-
dade” não chegam a compor estatutos normativos objetivos e também
não mobilizam técnicas para o disciplinamento dos indivíduos. Não há
um conjunto claro de regras a serem seguidas e nem previsões de sanção
para cada tipo de infração, sendo imprecisas e maleáveis as prescrições
normativas que referenciam os comportamentos. Elas seriam mais bem-
-imaginadas como diretrizes borradas, imprecisas e elásticas, até porque
são heterogêneos os princípios que as referenciam.

22 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: Nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011,
p.171.
23 DIAS, Camila Caldeira Nunes. “Ocupando as brechas do direito formal: O PCC
como instância alternativa de resolução de conflitos.” Dilemas: Revista de Estudos de
Conflito e Controle Social, vol.2, n.4, 2009.

 · Pelo certo


A justiça do tráfico zela primordialmente pelos interesses da facção
e dos grupos dominantes locais, preocupando-se prioritariamente em
desvendar e reprimir traições, delações, furtos de bens ou dinheiro da
firma, fraudes em prestações de contas, não pagamento de dívidas à boca,
atitudes que atraiam a repressão policial (como guardar carros roubados
no morro), perda indevida de armas para a polícia, faltas e atrasos dos
funcionários e coisas afins. Até aí está claro o objetivo de resguardar o
lucro e o seu fluxo de concentração dentro de uma estrutura hierárquica
respaldada pela facção.
Mas, para o bom funcionamento da firma e a manutenção da ordem
faccional, são mediadas também as disputas privadas que envolvem os
bandidos, como as dívidas e trapaças entre eles, insultos, fofocas, agres-
sões, desrespeito a seus familiares e infidelidade feminina. Nesses casos,
os interesses particulares das elites dirigentes do tráfico já se fundem com
os princípios de um “bem coletivo”, restrito a um coletivo específico: a
quem é nós, tal como os membros do Comando Vermelho enunciam o seu
pertencimento à facção. O lema da paz entre os criminosos é o principal
fundamento desta e outras facções, desde o seu surgimento, e depende
da promoção do respeito, como valor central a ser evocado nas mediações
de litígio.
No entanto, a reivindicação do monopólio da vingança no perímetro
de atuação do tráfico – o que é característico do seu modelo de gestão
do território – obriga as lideranças da firma a se ocuparem também de
assuntos de outras naturezas envolvendo os moradores, como brigas de
vizinhos, violência contra mulheres, maus-tratos contra crianças, ca-
sos de pedofilia e furtos no interior da favela. Já temos aí uma mistura
entre os interesses particulares dos chefes do tráfico e a sua pretensão
como guardiões do “bem comum”. É dessa fusão que também resultam
as políticas assistencialistas da firma local, visando à legitimidade do seu
poder sobre o território.
As três classes, por mim listadas, dos litígios regulados pelo tráfico
não são pensadas, ao nível local, como atribuições distintas de sua justiça.
Práticas interditas ou desaconselhadas com base em princípios diferentes
encontram-se embaralhadas numa mesma névoa heterogênea de sobre-
codificações. Se buscássemos, dentre as categorias nativas, nomes plau-
síveis para designar diferencialmente os códigos dedicados a cada uma

Carolina Christoph Grillo · 


dessas classes de litígio, poderíamos chamá-los, respectivamente, de “lei
do tráfico”, “lei do crime” e “lei do morro”. Este empreendimento analí-
tico é, contudo, arbitrário, pois a conceitualização nativa não segmenta a
justiça do tráfico em diferentes regimes do direito. Tal indistinção coopera
com a ilegibilidade do corpo normativo vigente, traduzindo demandas de
justiça muito diferenciadas em uma mesma linguagem comum.
Trata-se de uma linguagem do Crime, dominada por poucos e parcial-
mente desconhecida pela maioria das pessoas que vivem sob a vigência
dessa ordem. Ao longo da minha pesquisa, deparei-me com um léxico
muito particular para se falar do direito. Em vez de mencionarem leis ou
regras, afirmavam apenas, com relação a problemas específicos, que isso
pode ou isso não pode, que isso está certo ou isso está errado. No lugar das
infrações ou transgressões – que precisariam remeter a uma referência
nítida –, meus interlocutores designavam falhas de conduta como man-
cadas ou vacilos, sendo estes sempre tão discutíveis e perspectivados. E,
no final das contas, uma atitude classificada como mancada era cobrada
e não punida.
Como também ressaltou Biondi, a respeito dos debates24 em cadeias
sob a influência do PCC, em São Paulo, “diferente da punição, [a cobran-
ça] diz respeito a uma das ‘consequências’ possíveis dos atos de alguém,
na qual se lembra do compromisso de agir de acordo com a ‘disciplina
do Comando’”.25 Segundo esta autora, disciplina do Comando é como se
designa a conduta recomendada aos participantes do PCC, expressão que
também aparece no Comando Vermelho, embora com menos ênfase. Ter
disciplina, ficar na moral, andar na linha, agir pelo certo são expressões que
remetem ao comportamento esperado de bandidos ligados ao CV. Mas o
que vem a ser essa disciplina? Qual é a sua natureza e por quais mecanis-
mos ela ordena o Crime?
Ao contrário do sentido foucaultiano da disciplina, não há no Crime
uma sistematicidade coerente do poder. Tampouco pode a disciplina das
facções ser pensada como uma fórmula geral de dominação, de inscrição do

24 O debate é o correlato paulista para o que os cariocas chamam de desenrolo. Apesar


de haver significativas diferenças entre o PCC e o CV, é possível encontrar uma série
de correspondências e estabelecer analogias entre seus respectivos direitos informais,
sobretudo quanto à terminologia empregada.
25 BIONDI, op.cit., p.238.

 · Pelo certo


poder nos corpos. Os “corpos indóceis”26 dos bandidos se insubordinam
diante das técnicas disciplinares e não há autoridade capaz de ordená-
-los senão a do consenso ou da força. A normalização do Crime não é um
efeito de sua disciplina, mas sim o contrário. A disciplina é a expressão da
normalização resultante das experiências acumuladas de conflito entre
bandidos.
O Comando é o referencial que autentica as palavras de ordem e for-
maliza os procedimentos de manifestação das moralidades conflitantes
e relações de força, mas a disciplina e a ética peculiares ao Crime, assim
como o próprio Comando, são produtos coletivos, mesmo quando atra-
vessados por desigualdades hierárquicas. Para se compreender melhor
a internalização/externalização da disciplina própria à ordem do Crime,
vale recorrer às formulações de Marques a respeito da ideia de proceder27
em cadeias do PCC.

Algo que orienta partes significativas das experiências cotidianas. Me-


lhor dizendo, algumas junções singulares de regras e instruções sobre
condutas, em contínua transformação, verificadas em diferentes redes
sociais, recebem o nome de proceder.28

Marques diferencia os três usos mais comuns do proceder. O mais


incomum é como ação, que designa agir segundo uma recomendação. O
proceder como substantivo remete a uma disposição quanto a um respeito
específico (seguir as regras de decoro e etiqueta); quanto a uma conduta
específica (caminhada, religião, palavra); e quanto a uma atitude específi-
ca (habilidade para mediação de conflitos), tecendo assim uma complexa
relação entre respeito, conduta e atitude. O proceder pode ainda aparecer

26 Não será possível desenvolver aqui esta ideia, mas tomo por base os processos da
“sujeição criminal” – ver MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos: A acumu-
lação social da violência no Rio de Janeiro. Tese (doutorado), Iuperj, 1999 – para pensar
na inscrição da criminalidade nos corpos e subjetividades dos chamados bandidos, o
que produziria “corpos indóceis” – em alusão aos “corpos dóceis” de Foucault (ver
FOUCAULT, op.cit.) – que reagem às disciplinas.
27 Sobre o proceder, ver também HIRATA, Daniel Veloso. Sobreviver na adversidade:
Entre o mercado e a vida. Tese (doutorado), PPGS/USP, 2010.
28 MARQUES, Adalton. Crime, proceder e convívio seguro: Um experimento antropológico
a partir das relações entre ladrões. Dissertação (mestrado), PPGS, USP, 2009, p.24.

Carolina Christoph Grillo · 


como atributo do sujeito, denotando a consonância de um sujeito com o
proceder substantivo.
Não há um equivalente para esta palavra nas redes da criminalidade
carioca. Embora seja, por vezes, empregada, não possui muito destaque.
Isso não quer dizer que este conceito, formulado por outras pessoas em
outros contextos, não possa ser transposto para se pensar o Crime no
Rio de Janeiro. Existe, sobre os bandidos estudados, a expectativa de que
tenham proceder, ainda que não expressado sob este título. Uma série de
categorias nativas que remetem a qualidades positivadas – como o res-
peito, a consideração e a visão – circula em torno do núcleo conceitual do
proceder. No entanto, o que todas elas guardam em comum, assim como a
noção de proceder, é um posicionamento particular com relação ao certo.
As narrativas a seguir acompanharão os tortuosos caminhos do certo
e tornarão mais inteligíveis os meus argumentos.

A “Mulher-Chumbinho” e outras histórias

Eu estava sentada na varanda da casa dos pais de Taissa, esposa de um


dos gerentes da maconha do morro, em companhia dela e de mais dois
rapazes: Luciano, que era ladrão e traficante há muitos anos; e Matheus,
um jovem estudante cujo pai estava preso. Era um sábado de muito calor
e, enquanto eles três fumavam maconha, nós conversávamos sobre a
possibilidade de ir à praia, além de atualizarmos os comentários sobre o
baile da noite anterior. Foi então que parou uma Kombi de transporte
alternativo, da qual desceu uma mulher. Taissa imediatamente comentou:

Taissa: Caraca! Há anos que eu não via essa mulher por aqui! Essa aí é a
famosa “Mulher-Chumbinho”: comeu, morreu. Mas ela era melhorzinha,
né? Quem olha ela agora nem diz que o Tinta morreu por causa dela.
Luciano: Pode crer... é a irmã do falecido Cabrito, meu parceiro. Mas é
mesmo, mó mulher chumbinho... e ela era mais bonita antigamente.
Tinha um corpão, agora olha a perna dela...
Eu: Já ouvi falar que esse Tinta era muito bonito. É verdade?
Luciano: Ele era pintosão mesmo e maneirão. Nós já curtiu várias paradas
juntos, mas ele deu mole, cara. Bateu uma neurose doida e resolveu entrar

 · Pelo certo


no caminho29 de ninguém menos que o Thiaguinho [pseudônimo do atual
responsável do morro]. Veio mó bondão e desceu essa ladeira aqui mesmo
pra pegar ele. Mataram ele bem ali e tiveram até que raspar ele do chão
com a pá, porque tava grudado de tanto tiro que deram. Me contaram,
porque eu não tava na hora não. Ainda bem, porque se eu estivesse, eu
ia ter que apertar30 também.
Taissa: Pô, mas também coitado, né? Imagina o desespero dele em saber
que tava perdendo a mulher pro chefe. O cara nem pensa nessas horas.
Age por impulso.
Luciano: Sei... mas porque ele não foi antes e desenrolou essa parada? Se
ele tivesse chegado e chamado o Thiaguinho pro desenrolo, nada disso
tinha acontecido. Ele perdeu a razão porque quis se aproveitar que o
Thiaguinho tava com uns problemas no morro. Por que não foi lá e deu
um soco na cara dele, enquanto ele ainda era patrão? Por que esperou ele
sair da boca pra ir lá tomar uma atitude? Isso aí é crocodilagem. Ninguém
fecha com31 esse tipo de coisa não.
Taissa: Mas que piranha... Como é que ela ainda tem cara pra aparecer
aqui? Todo mundo sofreu muito quando o Tinta morreu. Todo mundo
gostava dele.
Luciano: Ele não era qualquer um não. Ele já tinha rodado32 defendendo
o morro. Rodou aqui dentro com o fuzil na mão e tirou uns anos.33 Ele
era considerado, mas deu mole legal.

29 Entrar no caminho é um eufemismo comumente utilizado para falar de uma agres-


são física perpetrada contra alguém. No caso, como eu mesma já ouvira ser narrado por
outra pessoa, Tinta teria atingido Thiaguinho com um soco no rosto.
30 Apertar refere-se a “apertar o gatilho da arma”, ou seja, Luciano revelou-se con-
tente de não ter participado da morte de seu amigo, o que ele inevitavelmente teria
feito, caso estivesse presente na situação. O seu comentário denota que, uma vez esta-
belecido o “consenso” sobre uma sentença de morte, por via do desenrolo, é imperativo
que todos os bandidos presentes participem da execução.
31 Fechar com significa dar apoio, pôr-se ao lado de alguém ou firmar uma parceria.
32 Rodar remete a ser capturado pela polícia, seja quando se vai efetivamente preso
ou quando se negocia a liberdade.
33 Tirar uns anos quer dizer cumprir pena em regime fechado, isto é, na prisão, du-
rante mais de um ano. O fato de ele ter sido preso portando um fuzil denota que ele não
desistiu de lutar para se salvar. Isso é fonte de consideração e os bandidos capturados
nesse tipo de circunstância costumam ser beneficiados pela “previdência” do tráfico,
recebendo auxílio financeiro pago pela boca durante o período de reclusão.

Carolina Christoph Grillo · 


A mulher já tinha passado por nós e ido embora quando o diálogo se
arrefeceu, contudo, ainda restara uma dúvida que não me parecera per-
tinente perguntar naquele contexto. Tratando-se de uma história passada
sobre o atual responsável do morro – gerente-geral do tráfico local – preferi
não alimentar polêmicas em meio a uma roda de conversa. Só não sabia
ainda que outra oportunidade surgiria logo adiante. Mais tarde, no mesmo
dia, só tínhamos restado eu e Luciano na rua, quando a mesma mulher
passou e ele apontou para ela novamente, comentando outra vez sobre a
moça estar feia e magra demais. Aproveitei a oportunidade e perguntei:
“Mas fala a verdade, o Thiaguinho comeu ou não comeu ela?” Ele olhou
ao redor, viu que não havia mais ninguém e respondeu em voz baixa:

Comeu sim. Geral sabe disso. Ela e mais uma outra amiga foram lá pro
[outro lado do morro] e passaram três dias numa casa com ele e o Charles.
O Tinta é que deu mole mesmo. Depois que viu que a mulher era vaga-
bunda, se fosse eu, tinha quebrado as duas pernas dela que ninguém ia
poder falar nada. Aí deixava ela sem andar pra ver se ele ainda ia querer
ela assim. O Thiaguinho ia ficar bolado, mas ia ter que ficar quieto, porque
tava comendo a mulher dos outros. Mas homem apaixonado fica cego e
acaba fazendo besteira. Saiu pegando o Thiaguinho no meio do baile e deu
um socão na cara dele. O desenrolo não foi mole não. Foram várias horas
direto. O que pegou não foi nem o lance dele ter comido ou não a mulher,
porque nisso aí o Tinta já tava errado de saída por não ter desenrolado
antes. O problema é que uma semana antes o Thiaguinho tinha dado
um soco na cara de um moleque por assunto de boca de fumo. Aí ficou
naquela: pode ou não pode dar soco na cara? Como é que uns podem e os
outros vão morrer por causa disso? Não é pra ser todo mundo igual? Foi
depois da morte do Tinta que o soco na cara ficou proibido aqui na boca.
Foi aí que veio esse toque. Quando nós quer pegar alguém, pode amassar
do pescoço pra baixo, mas não se dá soco na cara de sujeito homem.

As declarações sobre a veracidade da acusação de traição imputada ao


patrão do morro não podiam ser enunciadas publicamente. Era o tipo de
informação que só poderia ser transmitida num diálogo entre duas pessoas
e jamais numa conversa mais ampla. Por esta razão, Taissa empregara o
eufemismo “perdendo a mulher para o chefe”, sem que se mencionasse

 · Pelo certo


diretamente o fato de ele ter ou não se envolvido com a namorada de Tinta.
Já em outra narrativa que ouvira antes sobre o mesmo caso, Eliane, uma
de minhas principais interlocutoras, apresentara a suposta traição como
uma intriga fictícia criada pela mulher-pivô34 da situação, que almejara
aparecer ou ganhar ibope com uma discórdia masculina.
Ela narrara essa história na ocasião em que eu lhe contara sobre Lu-
ciano ter sido cortado da escala de plantões do tráfico, segundo ordens do
Marat, o gerente da boca em que ele formava. Eu havia especulado que a
ex-mulher de Luciano poderia se aproveitar da situação para ir ao baile
sem que ele a importunasse, mas Eliane discordou e narrou o caso da
morte de Tinta como exemplo:

Ih, não vai pensando que é assim, não... O mundo dá voltas o tempo todo.
Não é assim pra tirar um bandido feito ele da boca, não. Acho bom ela
ficar na linha, porque se ele quiser entrar no caminho dela, não vai ter
essa não. Isso tudo é fase, desentendimento... Daqui a pouco ele resolve
os problemas dele com o Marat e eles ficam numa boa de novo. Quem
tiver tentado se aproveitar da situação, achando que ele tava fraco é que
vai se dar mal. Você não conhece ainda a história do falecido Tinta. Esse
é um que morreu de bobeira numa situação feito essa. Foi por causa de
uma piranha horrorosa com quem ele tava saindo e que começou fazer
intriga de que o Thiaguinho tava dando em cima dela. E tava nada... ela
só queria era ibope com o nome dele. Na mesma época, o Thiaguinho
se desentendeu com os caras da boca e pediu as contas. Ele já era quem
ele é, mas não era ainda o patrão. Aí ele tava no baile, na dele, quando o
Tinta resolveu se crescer, foi lá tirar satisfação e acertou um soco na cara
dele. Achou que ele tava fraco, mas tava era enganado, porque na hora
mesmo o Thiaguinho mexeu os pauzinhos dele e desenrolou pra matar
o Tinta. Não esperaram nem amanhecer e já veio mó bondão pra passar
ele. Foi uma pena... ele era lindo. Você precisava ter conhecido. Ele era
desses bandidos simpáticos que todo mundo gosta e bem galinha. Era

34 Ocorreu uma evidente culpabilização da mulher pelos atos de violência cometidos


por homens. Não será possível desenvolver uma discussão sobre gênero no presente
trabalho, mas como ficará evidente, as tensas relações de gênero em favelas, sobretu-
do quando envolvem bandidos, são frequentemente o estopim de desenrolos e práticas
violentas.

Carolina Christoph Grillo · 


considerado, ele. E nossa... como eu perdia pra aquele homem. Ele podia
ter a mulher que quisesse e foi morrer logo por causa de uma piranha feia.
Depois que ele morreu você precisava ver o desespero que foi.

De fato, os comentários de Eliane provaram ser de grande sabedoria,


pois duas semanas depois, Luciano já estava novamente escalado em
sua mesma equipe do plantão, e, passados dois meses, eu soube que ele
e Marat tinham se abraçado e trocado presentes durante o baile funk de
Natal, realizado na quadra do morro. O mundo realmente dá voltas e a
consideração não acaba assim tão facilmente. Tinta morreu, em parte, por
não saber disso.
A consideração, uma espécie de notoriedade e reconhecimento pú-
blico, é o capital social mais importante que se pode acumular no Crime.
Conquista-se a consideração acumulando-se lutas pelo crime – pela parti-
cipação em guerras e missões, pelos anos de trabalho para o tráfico e pelos
anos de encarceramento; traçando uma trajetória criminal sem mancadas,
sempre do lado certo da vida errada; mas também conquistando o apreço
de lideranças do tráfico no trato pessoal. Apesar de a consideração ser, em
tese, o fruto da conjunção entre a disposição – bravura – e o proceder de
um bandido, mantidos ao longo dos anos, a hierarquia empresarial do
tráfico incide sobre a distribuição desigual do prestígio, redirecionando
os seus fluxos. Bandidos que param do lado de seus patrões e lhes rendem
homenagem35 podem ganhar cargos de gerência no tráfico e tornar-se
considerados, a despeito de sua pouca luta.
No caso de Tinta, embora ele mesmo fosse também considerado,
equivocou-se em avaliar que a repentina ruptura de Thiaguinho com a
firma teria prontamente anulado os seus privilégios legais. Embora sair
com a mulher do próximo seja uma gravíssima falta, segundo a morali-
dade criminal, quem acabou morto foi o bandido traído. Principalmente,
por Tinta não ter seguido os trâmites costumeiros da denunciação de
uma mancada. Ele pulou a importante etapa do desenrolo e partiu para
a agressão antes de buscar um consenso coletivo sobre a definição da
situação.

35 Render homenagem ou, simplesmente, ficar rendendo, são gírias análogas a outra
mais popularmente conhecida como puxar saco, isto é, bajular alguém.

 · Pelo certo


Antes que se decida por cobrar alguém por suas atitudes – especial-
mente em casos considerados mais graves, seja por envolver pessoas
importantes, seja por implicar em mancadas que se cobram com a morte
– existe sempre um desenrolo. Agressões e execuções devem ser acorda-
das por meio de um debate coletivo em que a palavra final é sempre a do
patrão, que, entretanto, não pode desagradar a sua base de sustentação
política, devendo ouvir a opinião de outras pessoas “influentes”.36 Daí a
importância de negociar a versão final dos fatos e produzir um veredito
acordado como justo.
Os desenrolos são dispositivos acionados, em diversos casos, para a
expressão de disputas políticas, que podem aparecer de maneira explícita
ou velada. Um bandido pode tentar desprestigiar outro por meio de quei-
xas contra as suas atitudes, o que desencadeia um conflito desenvolvido
oralmente, sendo a violência o último recurso. De uma maneira geral, os
desenrolos só surgem se houver uma repercussão, se alguém levar o assunto
adiante – ou como em Biondi,37 esticar o chiclete – e tentar botar o outro
na bola, isto é, acusá-lo de alguma forma, tentando convencer os demais
de que a outra parte está errada.
Há sempre a alternativa de se fazer por menos, dar um leme (ou segunda
chance), relevar uma ou outra mancada, o que frequentemente ocorre entre
pessoas que se consideram uma à outra. Mas quando se erra com alguém
– por exemplo, não pagando uma dívida, fazendo uma brincadeira de
mau gosto ou espalhando um boato – dá-se à pessoa uma oportunidade
de lhe prejudicar. A isto eles chamam deixar na reta, assinalando que a
pessoa com quem se errou, encontra-se em condições (na reta) para fazer
repercutir o caso e, dependendo do desenrolo, lhe cobrar. O respeito mútuo

36 Ao mencionar a existência de bases de sustentação política e de pessoas mais ou


menos influentes, refiro-me à descrição da hierarquia local do tráfico de drogas por
mim realizada – ver GRILLO, op.cit. Identifiquei uma centralização do direito de ex-
ploração de territórios para a venda de drogas na figura do dono do morro e um subse-
quente sistema de distribuição de propriedades e responsabilidades sobre pontos de
venda e cargas de drogas em que o patrão doa a posse ou gerência (chamada respon-
sa) de bocas de fumo e preços de droga a bandidos considerados, oferecendo-lhes uma
possibilidade de enriquecimento e ganhando em troca a fidelidade incondicional dos
bandidos presenteados. Não apenas o dono do morro, mas também seus gerentes doam
responsas a outros traficantes, ampliando assim suas bases de apoio político no interior
da firma.
37 BIONDI, op.cit.

Carolina Christoph Grillo · 


é imperativo entre bandidos, seja no espaço prisional ou na rua, mas é nas
situações de erro que aparecem as rivalidades e alianças. Amigos fazem
por menos, argumentam a favor, porque, segundo eles, têm coletividade,
são fechamento; mas os inimigos não podem ser deixados na reta, pois não
hesitam em botar na bola, em reivindicar um aval para cobrar.
Mas tanto a atitude de se tentar botar alguém na bola quanto de de-
senrolar em favor de uma das partes são empreendimentos arriscados.
Como um bandido me explicou: “Quem bota os outros na bola pode aca-
bar virando a bola da vez.” Ao se tentar prejudicar alguém com queixas
contra as suas atitudes, corre-se o risco de ser cobrado em lugar de seu
oponente, caso o desenrolo não lhe seja favorável. Por isso, muitas falhas
e descumprimento de acordos – ou, mesmo, a grande maioria deles – não
chegam à mediação por terceiros. Ao mesmo tempo, é também preciso
cautela antes de se tomar algum partido durante um desenrolo. Sobre
isso, um ex-bandido disse: “Pra se meter num desenrolado em defesa de
um amigo, você tem que ter muita certeza de que o cara tá certo, porque
se ele estiver errado, vai rodar tu e ele. Nego vai achar que tu tá fechando
com a mancada do cara.”
Para que uma situação seja desenrolada, nem sempre é preciso que as
partes estejam presentes ao mesmo tempo. Cada parte tem a oportunida-
de de desenvolver a sua argumentação em face do dono ou responsável do
morro, buscando convencê-lo de seus motivos e, paralelamente, de tentar
mobilizar outros bandidos influentes para argumentarem em seu favor.
Cabe ao patrão aconselhar seus subalternos a deixar isso pra lá; repreender
um deles ou ambos verbal ou fisicamente; optar por expulsá-los da boca ou
do morro; ou, ainda, autorizar uma das partes a agredir ou matar a outra.
A firma local do tráfico reivindica para si o lugar de árbitro das con-
tendas locais e burocratiza o emprego da violência dentro do seu períme-
tro de atuação, principalmente quando ambas as partes em disputa são
bandidos. A boca se reserva o direito de castigar de variadas maneiras as
pessoas que arrumam confusão dentro do morro, sem ter antes prestado uma
queixa e solicitado permissão para usar a força numa resolução de disputa.
Tomar uma atitude por conta própria, ou seja, sem passar pela mediação
do desenrolo, é mais grave quando se trata de um desentendimento entre
bandidos e, ainda mais grave, caso o bandido agredido possua um status
elevado na hierarquia de consideração do Crime.

 · Pelo certo


São frequentes as agressões entre moradores, sobretudo entre mulhe-
res, sem que se submeta um pedido de autorização à boca. A maioria das
querelas cotidianas passa despercebida pelo tráfico, exceto por quando
a vítima busca a proteção de bandidos e, caso convença-os de que foi
injustamente agredida, o agressor, ou agressora, pode ser castigado fi-
sicamente ou ficar proibido de sair de casa por um determinado período
de tempo. Não raro, os patrões do tráfico local ou mesmo a rapaziada da
boca é chamada a interferir – a contragosto, diga-se de passagem – em
contendas domésticas, brigas de vizinho e demais disputas que nada
tenham a ver com o Crime.
No entanto, quando se trata de conflitos em que pelo menos uma
das partes esteja vinculada à firma e, portanto, envolvam pessoas con-
cebidas como diferentes dos moradores comuns da favela, as agressões
transformam-se em questões maiores. Por exemplo, um simples soco no
rosto motivado por um ciúme justificado jamais resultaria em uma execu-
ção sumária caso os protagonistas da situação fossem dois trabalhadores
ordinários. Em verdade, sair com a namorada de um amigo constitui uma
mancada infinitamente maior do que a reação violenta de um namorado
traído contra o amante da moça. Mas, então, por que mataram o Tinta?
Bandidos podem agir errado por diversas vezes sem que isso jamais
comprometa a sua reputação, pois uma mancada só se constitui enquanto
tal após o seu reconhecimento público, que deriva da versão acordada
sobre os fatos. Muitas mancadas, como sair como a mulher do próximo,
roubar dinheiro da boca e caguetar os outros, não ficam provadas mediante
os processos de produção de verdade e, por mais que corram à boca peque-
na, não chegam a abalar a consideração de seus autores. E quanto mais se
é considerado, menor a probabilidade de sair prejudicado de um desenrolo.
É certo que o posicionamento político e a trajetória de vida da vítima
da agressão foram determinantes para se chegar a um veredito tão atroz.
Thiaguinho era, desde criança, o braço direito do verdadeiro dono do morro
e, por mais que não fosse ainda o responsável da favela inteira – como veio a
tornar-se até os dias de hoje –, já assumia importantes cargos de gerência,
despontando como uma das principais lideranças do tráfico na região.
Ele desfrutara sempre da confiança e estima do chefe local; não tinha
nenhuma mancada em seu histórico de atuação no Crime; participara de
uma série de missões – designadas apenas aos bandidos com reconhecida
disposição –; e já cometera homicídios em nome da justiça do tráfico.

Carolina Christoph Grillo · 


Desconheço completamente a natureza dos desentendimentos que
culminaram em seu afastamento temporário com relação à firma, mas
ficou claro que eles não bastaram para afetar a consideração de que gozava
junto aos seus pares. A trajetória de Thiaguinho era irretocável, dentro dos
parâmetros criminais locais de avaliação das condutas e, por mais que ele
estivesse circunstancialmente enfraquecido na política do tráfico – fora
da boca – isso não bastou para apagar a sua história de lutas pelo Crime.
As suas redes de apoio provaram-se ainda estar sólidas e ativas, sendo
mobilizadas para produzir uma versão consensual dos fatos que lhe fosse
favorável, diante da deflagração de um conflito.
A história pessoal do bandido no Crime é um fator de grande impor-
tância para que a sua palavra tenha ou não peso nas ocasiões de desenrolo.
Bandidos que estão há muitos anos nessa vida dispõem também de um
amplo repertório de histórias passadas para serem relembradas, acionando
um espécie de jurisprudência do Crime. Decisões tomadas por homens
“importantes” no passado são referência para as decisões do presente e as
pessoas envolvidas no conflito ou detentoras do poder decisório podem ter
já participado de situações que, ao serem lembradas, modificam o modo
como a situação presente será avaliada. Um bandido exemplificou isso da
seguinte maneira: “Eu falo logo: ‘Agora você diz isso, mas lembra quando
o Fulano fez isso e isso e você agiu assim?’ Coé, cara! Tô há 13 anos nessa
vida. Já vi de tudo acontecer. Pra cada desenrolo eu tenho uma história
pra lembrar. Eu sei falar.”
Eles acumulam estoques de conhecimento com a experiência na vida
do Crime, desenvolvendo faculdades especiais para lidar com as contin-
gências desse mundo. Dentre essas faculdades está o domínio dos prin-
cípios matemáticos elementares da argumentação no Crime. Em primeiro
lugar, “o papo é um só”, o que quer dizer que a versão dos fatos e opiniões
oralmente apresentados pelas pessoas devem ser os mesmos do início ao
fim. Mudanças na história contada ou na tese apresentada são acusadas
como “dar dois papos”, o que imediatamente desacredita o orador. Por
isso, um bandido experiente sabe escutar em silêncio antes de traçar
a sua estratégia discursiva. Em segundo lugar, “o papo é reto”, ou seja,
não pode fazer curvas sem configurar um papo torto, o que é inaceitável.
Deve-se saber ser objetivo, preciso e sincero ao se dar uma ideia em ou se
passar a visão para alguém, pois rodeios retóricos são interpretados como
artimanhas desleais para se contornar a verdade.

 · Pelo certo


Cabeça alta, olhar firme, voz segura e estando sempre virado de frente
para o interlocutor. A arte da oratória é quase tão determinante quando a
consideração e mesmo quase um requisito para ser considerado. Quem sabe
falar e tem história se garante até mesmo em fazer e desenrolar depois. Foi
esse tipo de atitude que Tinta tentou sustentar, mas acabou não conse-
guindo. Outros já são bem-sucedidos ao agir desta forma, como no caso
de um bandido que agrediu outro, sem um desenrolo prévio, após saber que
ele teria usado a sua moto sem autorização. Vale ressaltar que eles já não
se gostavam, o que motivou tal reação. Ao ser indagado sobre esse fato
por um dos responsáveis do morro, o agressor argumentou:

Isso aí não é assunto de boca de fumo, não. É assunto pessoal. Ele pegou a
minha moto, a minha propriedade, sem me pedir. Diz aí: se fosse morador,
nós não ia arrebentar na madeira? Então, já que é bandido, eu sou da tese
que ele tem que ser cobrado mais ainda. Peguei ele firme.

O agressor não foi punido, mas, em resposta, ouviu o seguinte debo-


che: “Quero saber quem tá te dando essa vitamina.” Esse tipo de atitude é
arriscado, pois como já foi dito, é vedado o emprego da força – especial-
mente entre bandidos – sem que se solicite o aval do patrão, seguindo-se
os trâmites convencionais de resolução dos litígios. Se este bandido saiu
ileso após entrar no caminho de outro por conta própria é porque, além de
saber argumentar, ele gozava de mais consideração do que a sua vítima,
apesar de ocuparem o mesmo patamar na hierarquia comercial do tráfico.
Por mais que alguns tentem argumentar que “aqui é todo mundo igual,
só que uns têm mais dinheiro e outros menos”, a verdade é que há, sim,
diferentes status de pessoas, umas mais puníveis do que as outras e umas
mais violáveis do que as outras.
No entanto, a chamada vida errada, ou vida no Crime, transcorre sobre
caminhos estreitos margeados pelo abismo da morte. Mesmo os bandidos
mais influentes, como os frentes ou responsáveis de morros, estão sempre
sujeitos a serem cobrados por suas atitudes. A diferença é que traficantes
muito respeitados, cuja rede de sustentação política seja muito forte, não
podem jamais ser cobrados de forma branda, com apenas uma expulsão
do morro ou uma surra coletiva. Se deixados vivos e indispostos com a
firma, eles representam um risco relevante para a estabilidade dos arranjos

Carolina Christoph Grillo · 


locais de poder, sendo a morte a única cobrança que lhes cabe. Uma ordem
dessa magnitude só pode vir do topo da hierarquia, isto é, do legítimo
dono do morro, o verdadeiro patrão que lhe confiou uma responsa, ou de
um consenso estabelecido entre donos de morro (geralmente presos), o que
se costuma denominar como um toque da cadeia.38
Em se tratando de um bandido muito considerado, é preciso muito mais
do que apenas uma ocorrência desabonadora para que ele seja cobrado, já
que a sua morte desagradaria a seus amigos, também considerados, além
de sensibilizar toda a base da hierarquia do tráfico ou mesmo a população
local. Ele deve representar uma ameaça clara para os interesses da firma,
como estar sob a suspeita de planejar um golpe de Estado em parceria com a
facção inimiga ou de fornecer informações para a polícia; ou deve ser alvo de
uma conspiração articulada por outros grupos internos à firma que almejem
substituir as lideranças vigentes, sem promover uma ruptura com a facção. O
acúmulo de pequenos incidentes que manchem a reputação de um trafican-
te influente colabora com o enfraquecimento da sua consideração, sujando
o seu nome e suscetibilizando-o a ser vítima de uma traição deste tipo.
Existem protocolos a serem seguidos e não se pode dar azo a uma
acusação de deslealdade. Por exemplo, foi usado contra Tinta o argumento
de que ele teria tentado se prevalecer da instabilidade circunstancial da
situação política de Thiaguinho – que não estaria mais fazendo parte da
firma – para agredi-lo diante de todos. Sua leitura da moralidade do Crime
foi falha, de modo que ele tomou uma atitude, sem um desenrolo prévio,
tal como o faria contra algum morador comum, cuja força política fosse
inferior à sua. Também não acredito que Thiaguinho seria cobrado, caso
Tinta tentasse colocá-lo na bola – isto é, acusá-lo publicamente de traição
–, mas sendo este o procedimento correto, Tinta pelo menos não teria sido
morto. Se ficasse comprovada a traição, tal evento consistiria em uma
grave nódoa para a reputação de Thiaguinho, mas tampouco imagino que
tal versão da história seria apresentada como real.
Exemplifico a minha impressão com a história de uma moradora que
conseguiu impedir que o seu irmão fosse morto por traficantes após des-
cobrirem que ele mantinha um caso com a esposa do gerente de uma

38 Cabe assinalar que o uso ilegal de celulares no interior de prisões é essencial para
ampliar a participação de presos nas mediações de litígio dentro e fora das prisões.

 · Pelo certo


importante boca de fumo. Esta moradora não possuía qualquer relação
com o tráfico, mas era amiga de infância do verdadeiro dono do morro, e
foi capaz de acioná-lo por telefone para interceder no desenrolo que, até
então, seria moderado apenas pelo responsável. Ficou decidido que o seu
irmão não sabia que sua amante era casada e, portanto, não tinha culpa.
Tanto ele quanto a mulher infiel, que possui dois filhos com o bandido,
mantiveram-se vivos e morando na mesma favela.
Não apenas a amizade de longa data entre a moradora e o dono do
morro influiu para o desfecho pacífico do litígio, mas este também se
alinha com uma tendência que eu pude observar nas áreas pesquisadas.
Medidas mais duras como o homicídio vêm sendo evitadas, seja para não
atrair a repressão policial – que se intensificou bastante ao longo da última
década –, seja para não criar inimizades com os moradores que detêm a
possibilidade de delação anônima como arma. Durante o meu trabalho
de campo, por exemplo, o dono do morro dissuadiu um bandido de matar
a sua ex-mulher após descobrir que ela lhe fora infiel, argumentando da
seguinte maneira: “Se você matar ela, os parentes dela vão ficar caguetando
tudo aqui no morro.”
A delação é um dos problemas mais complicados para serem resol-
vidos pela justiça do tráfico, pois é difícil reunir provas suficientes para
incriminar alguém e o destino dos chamados X-9 é cruel demais para que
se condene alguém sem certeza absoluta. Por este motivo, cerca de uma
dezena de pessoas já me foram apontadas como sendo possíveis delatores,
mediante o seguinte enunciado: “Dizem que ele/ela é X-9.” A confirma-
ção mais confiável costuma vir dos próprios policiais, que vendem seus
informantes, trocando a revelação de suas identidades por dinheiro.
Ouvi algumas histórias desse tipo, mas em uma delas, sobre a qual
obtive mais detalhes, o policial teve que apresentar uma prova da culpa-
bilidade do X-9 para receber o pagamento. Um ladrão que fora pego duas
vezes por policiais civis, perdendo todas as suas economias no acerto
de sua liberdade, ao efetuar o último pagamento ao policial, recebeu a
proposta de descobrir quem o entregara à polícia, por apenas mais R$ 2
mil além do combinado. O policial levou-o até a garagem do prédio onde
morava um de seus amigos do asfalto e mostrou-lhe, estacionada, a mesma
moto que o ladrão dera como pagamento à polícia. Ainda com dúvida sobre
a validade desta prova, ele não tomou nenhuma atitude, mas, um tempo

Carolina Christoph Grillo · 


depois, seu irmão encontrou o suposto X-9 passando pela rua e matou-o.
Não foi necessário desenrolo, pois o que se faz fora do morro não é assunto
do tráfico, desde que não se traga repressão policial para a favela e que a
vítima não pertença à facção.
Mas há ainda as situações em que delações confirmadas podem ser
atenuadas por outras considerações. Certa vez, por exemplo, um bandido
apontou para uma mulher e disse:

Tá vendo essa filha da puta? Foi ela que me entregou pros canas na se-
gunda vez que eu rodei.
Eu: Sério? E por que você não matou ela?
Ah... é foda. A mulher tem três filhos e um deles é até com um amigo
da boca. Na época eu até queria matar ela, mas na verdade eu sei que o
errado fui eu de botar ela na parada. Ela ficou de levar o cara que ia lá
pagar o resgate do carro dele, mas na hora ela apareceu foi com os canas.
Não deu tempo pra nada e não teve papo. Tirei três anos e meio por causa
dessa filha da puta. Mas é foda... eu não tinha que ter botado ela nessa
fita, porque ela não é do crime, não ia chegar e segurar tudo.
Eu: Mas ela foi presa também?
Foi, mas tirou uns meses e ralou fora.

Não se espera de uma pessoa alheia ao Crime que ela tenha a postura de
aceitar uma pena mais dura e resistir à pressão policial para não entregar
seus comparsas. No entanto, se algum bandido tivesse agido do mesmo
modo que esta mulher, seria certamente morto. Não se pode menosprezar
também o fato de ela ter um filho com um bandido, vínculo este que a
isenta de punições mais graves.
Ainda assim, surpreendi-me, ao longo do trabalho de campo, com a
quantidade de mancadas deixadas “impunes”. Não foram poucos os casos
de morte por cobrança que me foram narrados, inclusive por cobranças ditas
injustas. Mas também foram muitas as histórias de roubos a dinheiro da
boca, trapaças diversas e traições femininas que não deram em nada, seja
porque a pessoa acusada tinha relações de parentesco com famílias poli-
ticamente influentes na localidade – o que está condicionado a vínculos
com o tráfico –; seja porque a pessoa lesada – quem propusera a cobrança
– estava desacreditada nas redes do tráfico por outros motivos; ou ainda
porque o assunto simplesmente morreu.

 · Pelo certo


O direito do desenrolo é um direito privado e depende do empenho
das partes para acontecer. Alguém precisa se empenhar em correr atrás
de cobrar um prejuízo para que o desenrolo aconteça. A analogia semântica
com a cobrança de dívidas – cobrar em vez de punir – denota claramente
esse aspecto.

Considerações finais

Embora não possamos menosprezar a relevância da possibilidade de em-


prego da violência para a configuração dos arranjos locais de poder, é antes
nos dispositivos de moderação do uso da força, do que na sua deflagração
propriamente dita, que a criminalidade se organiza e é, portanto, capaz
de se reproduzir. A violência é, sem dúvida, um dos componentes mais
relevantes para a reprodução das relações de poder no âmbito das facções
do tráfico de drogas, mas o seu emprego não é indiscriminado. Mesmo as
assimetrias de poder e as práticas de subjugação pela força precisam de
algum modo dialogar com a ética do Crime e até as mais cruéis atitudes
podem ser expressas nos termos da moralidade criminal, o que vai sempre
depender do encaixe entre os mandamentos gerais e a situação específica.
Como foi visto, não há um sistema normativo coerente e conhecido por
todos. Embora algumas interdições, como a delação, possam ser menos
subjetivas do que outras, como a falta de respeito, não há objetividade na
aplicação dessas pretensas normas às circunstâncias, pois não há mesmo
positividade nenhuma no direito informal do Crime. Cada caso é tratado
de maneira singular, sendo difícil equacionar a fórmula da “adjudicação”
peculiar à justiça do tráfico, isto é, do ajuste entre as referências abstratas
e os fatos representados judicialmente ou, como quer Geertz, da tradução
“de uma linguagem da imaginação para uma linguagem da decisão”.39
Entretanto, a familiaridade com a “sensibilidade jurídica” local –
como este autor se refere a um senso de justiça determinado – ainda
permite calcular uma função aproximada entre a natureza da ocorrên-
cia, o posicionamento social de cada uma das partes e a qualidade dos

39 GEERTZ, Clifford. O saber local: Novos ensaios em antropologia interpretativa. Petró-


polis, RJ: Vozes, 1997, p.260.

Carolina Christoph Grillo · 


argumentos apresentados, possibilitando imaginar o desenlace dos desen-
rolos. Dentre estas variáveis, a mais determinante parece ser a segunda,
pois é capaz de melhorar a qualidade (e origem) dos argumentos que
podem transformar o que será finalmente entendido como a “natureza”
da ocorrência. Relações de amizade e parentesco e avaliações sobre a tra-
jetória pessoal das partes em conflito atravessam a produção da verdade
e do juízo que vão resultar ou não em castigos. Pode-se morrer por ter
roubado R$ 50 da boca e permanecer vivo e ainda empregado pela firma,
após um derrame (ou desfalque) de R$ 30 mil.40
Gluckman 41 ressalta que tanto as partes em disputa como os árbitros
podem estar envolvidos em “relações multiplex” externas e anteriores à
situação do litígio e que a natureza de tais relações é determinante para o
forma de gestão do conflito. O aspecto “comunitário” das favelas – tam-
bém chamadas comunidades – propicia o interconhecimento e relações
pessoais de longa data que produzem diferentes status de pessoas com
base no histórico de cada um e na extensão e prestígio de suas redes de
apoio.42 Há, por si só, diferenças entre quem é cria do morro e os novos
moradores, mas considera-se também a estima acumulada pelas pessoas,
principalmente junto a outras mais influentes que possam comprar o seu
barulho – argumentar em sua defesa –, podendo se tratar de bandidos ou
mesmo de moradores muito conhecidos e respeitados.

O contexto de determinada pessoa, do mesmo modo, intervém na hora do


julgamento, na hora da punição. Se uma pessoa possui um mal conceito,
um boato pode levá-la à morte. Ao contrário, se é “cria do local”, pode
ter a sua sentença abrandada. Diante disso, não poderíamos pressentir
um mecanismo de que a comunidade se utiliza para se desfazer de seus
elementos indesejáveis?43

40 Cito este exemplo com base em dois casos que, de fato, ocorreram. Quanto ao
primeiro, o rapaz que o executou, a mando de seu patrão, disse ser este o único homi-
cídio de que guarda culpa. Já o segundo, refere-se às dívidas contraídas por um bandido
viciado em crack, mas cujo irmão era o responsável da boca em que ele trabalhava.
41 GLUCKMAN, Max. Ideas and Procedures in African Customary Law. Londres: Oxford
University Press, 1969.
42 O mesmo pode ser dito a respeito da convivência no interior das prisões, que co-
loca as pessoas em regime de coabitação por longos anos.
43 BARBOSA, Antônio Rafael. Um abraço para todos os amigos: Algumas considerações
sobre o tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Niterói: EdUFF, 1998, p.98.

 · Pelo certo


Barbosa 44 evoca as categorias nativas conceito e contexto para desig-
nar, respectivamente, os juízos de valor sobre determinado sujeito e as
suas implicações ao nível relacional. Este autor ressalta a reconhecida
importância de se ter um bom conhecimento, assim como na sociedade
brasileira de um modo geral, conforme identificado nas análises de Da
Matta.45 Este distingue entre o mundo da “casa”, em que prevalecem as
relações hierárquicas e personalizadas, os favores e os privilégios – onde
somos “pessoas”; e o mundo da “rua”, isto é, o mundo hostil das relações
formais, universalizantes e impessoais – onde somos “indivíduos”. Ser
considerado, conceituado, respeitado, ter conhecimento, reconhecimento e
contexto remete à acumulação de capitais sociais, o que transforma “indi-
víduos” em “pessoas”, reserva-os privilégios diversos e faz a sua palavra
ter mais valor.
A vantagem de se ter um bom conhecimento ou contexto – alguém que
possa desenrolar por si – reside também no desconhecimento dos mora-
dores com relação à linguagem do Crime, às suas lógicas subjacentes e às
nuances dessa ética, dificultando a tradução dos argumentos para um
idioma adequado. A economia do ajuste entre o fato e os critérios para a
sua classificação em certo ou errado considera, em seu cálculo, uma série
de variáveis subjetivas e agenciáveis por meio da oratória. Mesmo as pres-
crições aparentemente cristalizadas em enunciados gerais consensuais,
conhecidas como mandamentos, são também elas retoricamente adaptá-
veis às circunstâncias e, principalmente às pessoas a que se aplicam. Mas
esta retórica deve ser formulada na linguagem do Crime, evocando o seu
léxico e conjugando-o segundo uma gramática moral muito peculiar.
Nos debates ou desenrolos, as pessoas ou grupos de pessoas que par-
ticipam – enquanto partes ou mediadores – de um litígio exercitam a
sua capacidade de se firmarem argumentativamente no lado certo da vida
errada. É preciso ter mente e/ou visão – isto é, discernimento e eloquência
dentro da ética e linguagem do Crime – para saber se posicionar adequada-
mente e elaborar uma retórica coerente com o que se entende como certo.
Para traçar uma trajetória de sucesso no crime, adquirindo consideração

44 Op.cit.
45 DA MATTA, Roberto. A casa e a rua: Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio
de Janeiro: Rocco, 1997.

Carolina Christoph Grillo · 


e reconhecimento entre os demais criminosos, é preciso agir sempre pelo
certo o que é diferente do “bem”.
É certo (e mesmo necessário) matar, mas não qualquer um, não
em qualquer data e nem por qualquer motivo. É certo roubar, mas não em
qualquer lugar, não qualquer pessoa, não qualquer coisa e nem em qual-
quer contexto. É certo mentir, mas não sobre determinados assuntos. É
mesmo certo agir errado, desde que não traga consequências nocivas a
outros atores relevantes para essa moralidade, quer dizer, bandidos ami-
gos e seus respectivos entes queridos. O Crime não está preocupado em
desvendar as falhas ocultas dos criminosos. Elas só são importantes na
medida em que repercutem.
O certo é o norte da moralidade criminal, mas não se aprende o que é
certo senão ao longo da experiência com o Crime, pois tal moralidade não
é nada evidente. O ordenamento criminal se baseia em uma disciplina
específica que, apesar de se inscrever nos corpos das pessoas submetidas
a esta ordem, não se organiza por um conjunto de regras e não mobiliza
técnicas disciplinares. É uma disciplina progressivamente internaliza-
da ao longo das experiências de conflito e do contato com boatos sobre
desenrolos e cobranças, pois não há “mecanismos contínuos, reguladores
e corretivos”46 e nem tampouco centros de poder empenhados em “dis-
tribuir os vivos em um domínio de valor e utilidade”.47
Os “corpos indóceis” dos bandidos não se submetem a treinamentos,
separações e coordenações metódicas, mas acabam incorporando uma
certa disciplina no decorrer do contato com outros corpos. Não se olha
demais para um bandido, e não se repara a saia curta de sua respectiva es-
posa; não se vira de costas para o oponente durante uma discussão; não se
usa “a gente” em lugar de “nós” quando se é um desconhecido em área do
Comando Vermelho etc. Há uma etiqueta que precisa ser respeitada, pois,
embora não exista nenhuma certeza de vigilância ou punição, a neurose de
apenas um pode acarretar graves consequências. O Crime não é um sistema
de poder, mas simultaneamente uma ética e uma etiqueta que orienta a
movimentação dos corpos e enunciados através dos sistemas de poder.

46 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade, vol. I: A vontade de saber. Rio de Janeiro:


Graal, 1985, p.135.
47 Op.cit.

 · Pelo certo


O “problema” do bandido: subjetividade
e “violência urbana” no Rio de Janeiro

C P T

E ste texto é o resultado de uma análise sobre os modos como poli-


ciais, evangélicos pentecostais e agentes sociais compreendem e lidam
com os bandidos no Rio de Janeiro, descrevendo e problematizando di-
ferentes “teorias nativas” sobre o bandido e os campos de ação por elas
criados. Com base em um conjunto diverso de pesquisas empíricas, apre-
sentarei algumas hipóteses gerais e farei algumas breves anotações acerca
das relações entre subjetividade e “violência urbana”.1
Parto da ideia proposta por Luiz Antônio Machado da Silva: “violência
urbana” é a representação de uma ordem social. Para ele, essa representação
está diretamente ligada ao surgimento da “criminalidade violenta” – as-
sociada, por sua vez, ao desenvolvimento das dinâmicas de violência entre
quadrilhas de narcotraficantes de favelas cariocas. Esta seria diferente
tanto da “criminalidade comum” quanto da “violência em geral”, pois os
atores engajados nesse tipo de criminalidade acionariam um “complexo
de práticas do qual a força é o princípio de coordenação das ações”.2 A isto

1 Como não se trata de um trabalho composto por um único esforço de pesquisa, a ex-
posição, no corpo do texto, das metodologias utilizadas nos diferentes campos, torna-
-se algo de difícil realização – tendo em vista o espaço de um artigo. A fim de priorizar
a apresentação das hipóteses principais e das principais linhas interpretativas, con-
densarei as informações sobre a produção dos dados empíricos em notas de rodapé na
abertura de cada seção.
2 MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio. Vida sob cerco: Violência e rotina nas favelas do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
o autor chama sociabilidade violenta. A linguagem da “violência urbana”
se estruturaria justamente a partir do reconhecimento desse novo padrão
de sociabilidade.3

No mesmo movimento em que identifica relações de fato, [a represen-


tação da “violência urbana”] aponta aos agentes modelos mais ou menos
obrigatórios de conduta, contendo, portanto, uma dimensão prático-
-normativa institucionalizada, ainda que informalmente, que não pode
ser desconhecida.4

Assim, para explorar a hipótese de Machado da Silva, seria preciso,


dentre outras coisas, estar atento ao modo como a “violência urbana”
produz e reproduz modelos de conduta que orientam interações e que
estruturam situações e relações sociais, organizando parte importante
da sociabilidade urbana no Rio de Janeiro. Para Machado da Silva, não
seria possível pensar a “violência urbana” como representação de uma
ordem social de forma independente do surgimento da sociabilidade
violenta. No entanto, devo argumentar desde já que não pretendo discutir
a existência da sociabilidade violenta enquanto um padrão de sociabi-
lidade de fato, pois não disponho de pesquisa empírica que me permita
adentrar esse ponto. Meu interesse na interpretação de Machado da Silva
reside precisamente na possibilidade de se pensar a “violência urbana”
não apenas como um mero desvio da ordem institucional-legal, e sim
como algo que organiza a experiência urbana no Rio de Janeiro. Assim,
para explorar empiricamente essa hipótese, tenho de me distanciar da
formulação original no que tange àquilo que Machado da Silva reconhece
como o princípio organizador de tal ordenamento. Em vez disso, trago
para a análise o conceito de sujeição criminal, proposto por Michel Misse.5
Para apresentá-lo concisamente, utilizo a esclarecedora distinção en-
tre o processo de sujeição criminal e o processo de criminação-incriminação.

3 MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio. “Violência urbana: Representação de uma or-


dem social.” In: Nascimento, Elimar P.; Barreira, Irlys (orgs.). Brasil urbano: Cenários da
ordem e da desordem. Rio de Janeiro: Notrya, 1993.
4 MACHADO DA SILVA, op.cit., p.37.
5 MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos: A acumulação social da violência
no Rio de Janeiro. Tese (doutorado), Iuperj, 1999.

 · O “problema” do bandido


Neste, em primeiro lugar, nós temos um curso de ação que pode ser enqua-
drado em um código específico, que classifica as ações como criminosas
ou não (criminação). A incriminação consiste, por sua vez, na atribuição
de uma ação criminada a um indivíduo em particular. Aqui o criminoso
é a pessoa que comete uma ação rotulada (juridicamente) como crimi-
nosa. Por sua vez, a sujeição criminal diz respeito à construção social de
uma subjetividade que é reconhecida (e que, algumas vezes, reconhece
a si mesma) como criminosa. Neste caso, o curso de ação classificado
como crime já não é capaz, por si só, de definir o criminoso. Na sujeição,
há um processo de inversão da incriminação: não é o cometimento de um
ato desviante que faz de alguém um criminoso; é uma suposta condição
subjetiva peculiar que explicaria de antemão a ação criminosa cometida.
Aqui, o criminoso é pensado como um sujeito, como alguém que carrega
o crime “dentro de si”, como alguém cuja regularidade comportamental
é baseada no crime.
Em sua tese de doutorado, Misse estudou detalhadamente o desen-
volvimento da sujeição criminal na história do Rio de Janeiro a partir
do período republicano. Ele nos mostra de que modo cada configuração
sócio-histórica produziu tipos distintos de sujeitos criminais. Assim, te-
ríamos o malandro, que foi o grande personagem perigoso da cidade do Rio
de Janeiro no início do século XX e cujo comportamento era associado às
habilidades sociais que usava para viver às margens do mundo do trabalho;
o marginal, de meados do mesmo século, cujo traço distintivo era a prática
de assaltos a bancos e a outros estabelecimentos; e o vagabundo (ou sim-
plesmente, bandido), do final da década de 1970 e início da de 1980, que
está diretamente associado à expansão do tráfico de cocaína nas favelas
cariocas e à difusão da arma de fogo como instrumento indispensável para
o funcionamento do negócio. Assim, a partir do final da década de 1970,
há o processo de construção de uma representação genérica da sujeição
criminal que é feito a partir do modelo do traficante de drogas de áreas
pobres. Porém, o que marca a ideia de sujeição criminal é o fato de que a
categoria bandido – quando utilizada para se referir a criminosos pobres,
sobretudo ao traficante de morro –, descreve algo para além de alguém que
pratica crimes; descreve um sujeito que possuiria um modo supostamente
específico de agir, pensar, sentir e ser.
A articulação das ideias de Machado da Silva e de Misse não pode ser
realizada sem algum prejuízo às formulações gerais de cada um deles.

Cesar Pinheiro Teixeira · 


Neste texto, aproprio-me de parte de suas formulações sem me compro-
meter com todo o esquema teórico, a fim de construir um quadro analí-
tico para os dados empíricos de que disponho. A partir disso, podemos
compreender melhor o emaranhado de interações, situações e de relações
sociais que constituem a “violência urbana”.
Uma vez constituído como o grande personagem perigoso da cidade,
identificado diretamente com a “violência urbana”, o bandido é alvo
de inúmeras ações, realizadas por diferentes coletivos que intencionam
“solucionar” o seu “problema”. No contexto do Rio de Janeiro, é possível
destacar, em primeiro lugar, as ações de policiais – militares e civis. Em
geral, o bandido é visto por eles como um mal a ser combatido com vio-
lência: um personagem da cidade do Rio cuja morte é desejada e bem vista.
Diferentemente, agentes sociais ligados a ONGs e evangélicos pentecostais
(outros coletivos que atuam de forma destacada no contexto fluminense)
se orientam por uma ideia de (re)integração pacífica, atuando por meio
de ações religiosas e projetos sociais. De forma geral, para eles, o bandido
é alguém que deve ser “ressocializado” e “recuperado”.
Neste trabalho, trago justamente alguns desses elementos empíricos.6
O foco da análise está nas expectativas morais em torno da figura do
“bandido” – cuja fonte mais genérica de representação no Rio de Janeiro,
como já adiantamos, é o traficante de drogas que atua em favelas. O ob-
jetivo é mostrar o modo como, a partir das expectativas que se produzem
e se reproduzem em torno do “bandido”, podemos explorar importantes
dimensões da “violência urbana” enquanto representação de uma ordem
social: os diferentes modelos de conduta que ela inspira, isto é, sua di-
mensão prático-normativa.

6 Parte dos dados aqui discutidos foi objeto de um enquadramento bastante distinto
em: TEIXEIRA, Cesar Pinheiro. “’Saindo do crime’: igrejas pentecostais, ONGs e os
significados da ‘essocialização’”. In: Birman, Patrícia; Leite, Márcia; Machado, Carly;
Carneiro, Sandra. Dispositivos urbanos e trama dos viventes: ordens e resistências. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2014.

 · O “problema” do bandido


O problema do bandido e os policiais7

Em uma das conversas que tive com o chefe do Grupo de Investiga-


ção Criminal de uma delegacia da Zona Norte do Rio, observei que ele
realizava um tipo de classificação muito interessante (bastante próxi-
ma da tipologia lombrosiana), que distingue “criminosos ocasionais”
e “criminosos natos”. Este tipo de classificação produz e reproduz ex-
plicitamente a sujeição criminal. Mais que isso: é justamente porque os
policiais operam com base na sujeição criminal que classificações como
esta são possíveis.
Os “criminosos ocasionais”, também chamados pelo policial de “cida-
dãos-de-bem-que-cometeram-um-crime”, agiriam, em geral, sob forte
pressão emocional, sem planejamento, sem a finalidade de obter lucro ou
qualquer vantagem econômica. Os crimes passionais seriam o melhor
exemplo desse tipo de ação criminosa. O policial destacou que todos nós
estamos sujeitos a cometer crimes desse tipo, pois ninguém estaria livre
de uma situação de forte pressão emocional. Em outras ocasiões, dife-
rentes policiais civis ressaltaram que esse tipo de crime conta com maior
compreensão por parte de juízes e jurados e que, além disso, em lei, está
previsto uma redução na pena caso seja provado que o criminoso agiu sob
forte pressão emocional.
Diferentemente, o “criminoso nato”, de acordo com a classificação
que me foi apresentada, agiria de modo inteiramente racional, calculando
cada passo, ajustando meios e fins, maximizando ganhos e minimizando
riscos. Esse tipo de criminoso não é visto como um “cidadão-de-bem”
que “desviou-se ocasionalmente do caminho correto”; é visto como um
criminoso “irrecuperável”, que deve ser morto. Em geral, para os po-
liciais daquela delegacia, o traficante de drogas que atua em favelas, o

7 Esta seção é composta por dois conjuntos de dados diferentes. Os dados sobre a
Polícia Militar foram produzidos no âmbito da pesquisa Violência urbana e pluralidade de
lógicas, coordenada pela professora Jussara Freire. Nessa pesquisa, produzi um conjun-
to de 12 entrevistas semiestruturadas, realizadas durante o ano de 2011, com “praças”
(soldados, cabos e sargentos) que atuam na capital e em cidades da região metropo-
litana do Rio. Os dados sobre a Polícia Civil foram produzidos no âmbito da pesquisa
“Autos de Resistência: uma análise dos homicídios cometidos por policiais no Rio de
Janeiro”, coordenada pelo professor Michel Misse. Nessa pesquisa, realizei trabalho de
campo numa delegacia da Zona Norte do Rio durante o ano de 2010.

Cesar Pinheiro Teixeira · 


“vagabundo”, é o tipo social que representa mais fielmente esse modo
específico de ação criminosa: os bandidos seriam pessoas “diferentes de
nós”, inclinadas ao crime, por natureza ou por socialização em “ambien-
tes danosos”. Nas palavras do chefe do Grupo de Investigação Criminal:

A mente já começa a ser formada naquele sistema. O tribunal (do tráfico)


faz com que o cara tenha que executar alguém. Vai pegando uma defor-
midade mental que não tem retrocesso. O cara não tem ressocialização.
O cara é um deformado socialmente. A sociedade criou esse monstro.
Um preso que a sociedade não vai ressocializar. Só vai trazer prejuízo. O
crime não se organiza na rua, se organiza na cadeia. O problema não é a
violência; é o crime por coisa banal e o cara matar banalmente. Cadeia e
prisão perpétua não assustam. O cara já é criado numa cadeia, abando-
nado na favela; depois começa a passar pelas instituições, Criam [Centro
de Recursos Integrados de Atendimento ao Menor] etc.

Nesse trecho, o policial procura sustentar o esquema classificatório,


argumentando que as condições de vida nas quais os traficantes se en-
contram produziriam “deformidades mentais irreversíveis”. Prendê-los
não seria uma solução eficaz por dois motivos: porque eles não são “res-
socializáveis” e porque o “crime se organiza na cadeia” – e, portanto, lá
eles apenas se tornariam ainda mais perigosos. A cadeia, de acordo com
o policial, mesmo quando se pensa na possibilidade de mantê-los presos
para o resto de suas vidas, não seria capaz de dissuadir os bandidos, já
que haveria uma continuidade entre a experiência prisional e o “mundo
do crime”. Além disso, conforme sugere a fala, pressupõe-se que as prá-
ticas criminais sejam efetuadas desde cedo e que o vagabundo esteja em
contato com instituições socioeducativas, como o Criam, antes mesmo de
se tornar adulto. Isto sugere que não há apenas uma expectativa de que o
“irrecuperável” permaneça indefinidamente cometendo crimes; supõe-se
também que toda a sua vida tenha sido marcada por isso.
As falas dos policiais militares, produzidas em uma pesquisa inte-
ressada no seu ponto de vista sobre direitos humanos, trazem em mais
detalhes as implicações de classificações como a que descrevi acima.
Pude observar que os bandidos também podem ser vistos como entes
que não pertenceriam à mesma humanidade em que as demais pessoas se

 · O “problema” do bandido


encontram inseridas – não comporiam a representação mais genérica de
uma humanidade comum.8 Não surpreende, obviamente, que os policiais
militares tenham se mostrado extremamente críticos em relação aos di-
reitos humanos. Para eles, os bandidos não pertenceriam à categoria que
qualifica os direitos em pauta: não seriam humanos. É bastante comum
observamos, por exemplo, falas como a desse policial militar:

Você tem que dar direitos humanos pra quem é humano cara, entendeu?
Não é só pra você ficar protegendo esse tipo de pessoa e tendo ele só
como um psicopata, só como se a pessoa tem um problema de sanidade
mental. Beleza, vamos cuidar, vamos tratar. Mas, se passar sempre a
mão na cabeça, entendeu?, nunca vai melhorar. Se você pega o histó-
rico da pessoa ali e você realmente vê que a pessoa não tem problema
nenhum com a justiça, nunca teve nada, não deve nada, essa pessoa
talvez possa merecer proteção, possa merecer um dia que tenha um
direito diferenciado. Agora, você pega um cara igual ao que eu já peguei
lá, um cara que tem desacato, desobediência, tráfico de droga, amea-
ça, furto, 157... Pô, tu prende o cara, o cara... porra, tá na rua de novo,
poxa...a liberdade provisória que eles dão, indulto de Natal, esses tipos
de coisa sabe?... eles liberam muito: liberam muito preso, muita gente
perigosa na rua cara. Você cansa de ver o cara que sai, ganha a liberdade
condicional e o cara não volta mais. Se ele puxou o gatilho pra matar
um inocente ele não é humano não cara, ele não tem amor à própria
vida. Como é que ele vai ter amor à vida do próximo? Um cara desse não
tem que ficar na rua. Então, muitas vezes, o policial que a gente vê em
situações de filmagens, o policial executando um traficante, o cara tá
às vezes há cinco anos matando e roubando, o cara foi preso, cumpriu
um terço da pena, aí condicional, liberdade provisória, vai pra rua, aí
o mesmo policial que prendeu esse cara encontra ele na rua e sabe que
ele vai atrás dele. O policial pega, vai lá e mata. Aí depois tá o policial
respondendo, entendeu? Então, cara, enquanto não mudar: direitos
humanos pra quem é humano.

8 FREIRE, Jussara. “Agir no regime de desumanização: Esboço de um modelo para


análise da sociabilidade urbana na cidade do Rio de Janeiro.” Dilemas: Revista de Estudos
de Conflito e Controle Social, vol.3, n.10, 2011, pp.119-142.

Cesar Pinheiro Teixeira · 


Não é difícil encontrarmos comentários como esse, que aludem à ideia
de que bandidos não são humanos. Certamente, não se trata de afirmar,
com isso, que os bandidos sejam animais de outra espécie. Para os poli-
ciais, o bandido ser ou não humano não é uma questão relacionada a ques-
tões biológicas (como o fato do pertencimento à espécie Homo sapiens),
mas, como pudemos observar nesse trecho da entrevista, a humanidade
se refere a certos valores e padrões de comportamento. De modo geral,
pessoas que “matam, roubam e traficam” não são consideradas, pelos
policiais, como pessoas humanas. Na lógica policial, a humanidade aparece
como adjetivo moral de qualificação dos entes biológicos e não como seu
sinônimo. Em suma: embora “ser humano” seja uma categoria ampla-
mente usada para fazer referência a entes biológicos específicos, na lógica
apresentada pelo policial nem todos esses entes devem ser considerados
humanos.
No entanto, isso não quer dizer, como fica evidente no trecho de
entrevista transcrito acima, que pessoas humanas jamais cometam cri-
mes. Alguém que cometeu um crime, mas que não possui um histórico
criminal, poderia ser “protegido” pelos direitos humanos sem que isso
implicasse uma incoerência. De acordo com o entrevistado, tais pessoas
(humanas, embora criminosas – no sentido de que cometeram um ato
infracional previsto em lei) deveriam, por isso, ter acesso a um “direito
diferenciado”. O policial parece compreender os direitos humanos como
uma “proteção” específica às pessoas humanas que cometeram crimes.
Por outro lado, as pessoas que possuem “carreiras criminosas”, como
também fica explícito nesse trecho de entrevista, não poderiam ser con-
sideradas pessoas humanas. Não é por acaso que os policiais se referem aos
bandidos como vagabundos: aqui o sentido da expressão não alude à ideia
de uma pessoa ociosa, de vadio, mas à ideia de uma “pessoa sem valor” ou
“de valor inferior” (como sabemos, dizer que uma coisa é vagabunda pode
signifcar que a coisa não possui valor ou que possui um valor inferior).
Dessa perspectiva, o vagabundo é uma vida sem valor humano. Vejamos a
fala de outro policial militar.

Não só eu como todo polícia: se ele tiver oportunidade de matar o vaga-


bundo ele vai fazer. Ele só não faz quando não tem oportunidade. Eu cos-
tumo dizer o seguinte: no meu pensamento, vagabundo é tão vagabundo,

 · O “problema” do bandido


tão coisa ruim, que não vale a pena você sacrificar sua carreira, arriscar
sua vida por ele. Às vezes, você vai dar um tiro, matar ele, uma porcaria
que não vale nada (aos olhos dos religiosos toda vida é valiosa, mas, na
realidade não é assim, nem toda vida é valiosa), você vai matar uma
porcaria daquela... aí você vai perder o seu emprego, vai perder a sua
profissão – que talvez você gosta – e muitas das vezes vai ser preso ainda,
por conta dele: uma porcaria que não vale nem o tiro que você deu nele.
Quer dizer, você trabalha com isso na cabeça e só faz mesmo quando a
oportunidade... permite. Quando não, você faz o certo, prende. Por isso
que eu não me nego a nenhuma das duas opções. Assim, se a oportunidade
valer a pena: era possível? Tinha a oportunidade de fazer? Faz. Não tem?
Prende. Prendi porque a oportunidade que apareceu não deu para fazer
outra coisa que não fosse prender. (...) Você convive com as barbaridades
que eles fazem, tipo assim, baile funk. Você vê tanta barbaridade que
você passa a ter ódio. Tanto ódio que você começa a achar que nenhum
deles vale a pena. Criminoso é criminoso e a vida dele não vale a pena.
Quando você tem o confronto, que você mata, você não consegue nem
ter pena, ter remorso, porque sabe que... no nosso pensamento aquilo ali
não tem recuperação, não vai mudar nunca, vai ser sempre vagabundo e
aquilo ali não vai mudar.

Assim, como podemos observar, o discurso desses policiais (civis e


militares) é fortemente marcado pela construção do bandido a partir da
ideia de uma diferença ontológica fundamental – que pode ser concebida
até mesmo como não humanidade. Como já destaquei, o bandido ao qual
os policiais se referem em suas falas não é reconhecido apenas como
um indivíduo que descumpriu as leis (um incriminado), mas como um
sujeito criminal, isto é, como alguém cuja subjetividade seria marcada,
“irreversivelmente”, neste caso, pelo crime e pela violência. Dessa forma,
a sujeição criminal orienta diferentes modelos de conduta, organizando
a experiência da “violência urbana”: ela está na base da distinção entre
quais criminosos devem ser tratados por meio dos mecanismos legais do
Estado e quais devem ser tratados com violência. Como vimos, em relação
aos “criminosos ocasionais” e aos “cidadãos-de-bem-que-cometeram-
-um-crime” os policiais agem de forma diferente daquela relativa aos
“vagabundos”.

Cesar Pinheiro Teixeira · 


O problema do bandido e os pentecostais9

A batalha espiritual é uma das noções mais presentes na perspectiva


pentecostal.10 Ela descreve um mundo dividido entre Deus e o Diabo.
Para os pentecostais, o bandido é, antes de qualquer coisa, alguém que
se posiciona do lado considerado errado da batalha espiritual: do lado
do Diabo, obviamente. A ação criminosa do bandido é, assim, explicada
com base na ideia da existência de um pecador que não luta contra o pe-
cado (por desconhecimento do evangelho ou por opção deliberada), que
se entrega à “vida torta” e que, por esse motivo, abre espaço para que o
Diabo atue na sua vida, levando-o a cometer crimes.
Para os pentecostais, os traficantes viveriam suas vidas do lado ma-
ligno da batalha espiritual: usam e vendem drogas, agem violentamente
com as pessoas, matam, vestem-se de modo considerado indecente, es-
cutam músicas que falam sobre drogas, crime e sexo. Os crentes, por sua
vez, para serem reconhecidos como tais, devem usar roupas consideradas
decentes, não devem usar gírias nem palavrões ao se comunicarem com
os demais, não devem utilizar a violência física em seus conflitos do co-
tidiano, são contra o consumo e a venda de drogas e álcool, entre outras
coisas que, desse ponto de vista, caracterizam uma certa distância moral
entre as duas coletividades.11

9 As observações a respeito dos evangélicos estão baseadas em pesquisas anteriores


– TEIXEIRA, Cesar Pinheiro. “O pentecostalismo em contextos de violência: Uma et-
nografia das relações entre evangélicos pentecostais e traficantes de drogas em Magé.”
Ciências Sociais e Religião/Ciencias Sociales y Religión, vol.10, n.10, 2008; —————. A cons-
trução social do ‘ex-bandido’: Um estudo sobre sujeição criminal e pentecostalismo. Rio de
Janeiro: 7Letras, 2011a; —————. “De ‘corações de pedra’ a ‘corações de carne’: Algumas
considerações sobre a conversão de ‘bandidos’ a igrejas evangélicas pentecostais.” Da-
dos: Revista de Ciências Sociais, vol.54, n.3, 2011b – que tratam, respectivamente, do
impacto da presença pentecostal em áreas pobres dominadas pelo narcotráfico e da
conversão religiosa de traficantes de drogas. O material empírico é constituído por:
uma etnografia do cotidiano de uma igreja pentecostal (realizada entre 2004 e 2006)
localizada em Magé, cidade da baixada fluminense; e por um conjunto de dez entre-
vistas em profundidade com ex-bandidos convertidos de diversas cidades da Região
Metropolitana do Rio de Janeiro (realizadas em 2008). Nas entrevistas, eles contam
suas histórias de vida: como “entraram no crime” e como “saíram” dele.
10 MARIZ, Cecília. “A teologia da batalha espiritual: Uma revisão da bibliografia.”
BIB: Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, vol.47, n.1, 1999.
11 Entretanto, essa distância moral não implica algo como o isolamento das duas co-
letividades, isto é, não significa que as pessoas se encerrem em uma moralidade ou

 · O “problema” do bandido


De acordo com os pentecostais, as ações do bandido, além de estarem
relacionadas a uma vida de pecados (ou precisamente por causa disso),
também poderiam ser explicadas com base na ação de seres espirituais.
E é principalmente nas entidades das religiões afro-brasileiras que os
pentecostais encontram os demônios que fariam as pessoas “roubarem,
matarem e traficarem”. Por exemplo, a figura de Zé Pelintra12 é constan-
temente utilizada para explicar casos de crime e de violência.13
Birman 14 faz uma excelente análise da complexa trama de significados
composta por leituras religiosas da experiência da “violência urbana”. A
antropóloga analisa o caso de Alice – ex-candomblecista, moradora de
favela e mãe de uma moça que era namorada de um dos rapazes que inte-
gravam o tráfico de drogas da localidade. Alice faz uma espécie de leitura
pentecostal de sua saída do Candomblé (embora não tenha se convertido
a nenhuma igreja em particular). Certa vez, indignada com o namoro
da filha, Alice pediu auxílio ao seu Exu a fim de que a filha terminasse
a relação com o traficante. Pouco tempo depois, a favela foi tomada por
uma facção rival e o namorado da filha foi morto durante o conflito. Ao

noutra. Um dado interessante é a adoção, por parte de muitos bandidos, de uma cer-
ta gramática pentecostal: leem a bíblia, fazem orações tipicamente pentecostais, não
usam drogas, evitam matar os inimigos etc. Em alguns casos, os bandidos se autode-
nominam “bandidos evangélicos”, indicando que a fricção entre essas moralidades
pode produzir tipos sociais ambíguos. Ver VITAL, Christina. “Traficantes evangélicos:
Novas formas de experimentação do sagrado em favelas cariocas.” Plural, vol.15, 2008,
pp.23-46.
12 Zé Pelintra é uma entidade das religiões de matriz africana associada a um tipo
social muito comum no Rio de Janeiro do início do século XX: o malandro. De acordo
com MISSE, op.cit., o malandro encarna o sujeito criminal dessa configuração sócio-
-histórica. Com o processo de acumulação social da violência, as representações sobre
o sujeito criminal são transformadas e há uma metamorfose que transforma o malandro
em marginal e, posteriormente, em vagabundo ou bandido.
13 Porém, é importante dizer que associação entre crime, mal e práticas religiosas
de matriz africana não é realizada apenas pelos pentecostais. Autores como MAGGIE,
Yvonne. Medo do feitiço: Relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 1992; CONTINS, Márcia. “Os pentecostais e as religiões afro-brasileiras.”
Textos Escolhidos de Cultura e Arte, vol.2, n.2005, pp.37-50; CONTINS, Márcia; Gold-
man, Marcio. “O caso da pomba-gira: Religião e violência: Uma análise do jogo dis-
cursivo entre umbanda e violência.” Religião & Sociedade, vol.11, n.1, 1983, pp.103-132
mostram como alguns órgãos estatais já operaram no sentido de criminalizar práticas
de religiões afro-brasileiras.
14 BIRMAN, Patrícia. “Feitiçaria, territórios e resistências marginais.” Mana: Estudos
de Antropologia Social, vol.15, n.2, 2009, pp.321-348.

Cesar Pinheiro Teixeira · 


sair de casa, logo após o tiroteio, Alice ainda teve tempo de cruzar com o
assassino na rua. Este pisca para ela – que então reconhece nele o seu Exu.
Algum tempo depois sua filha começa a namorar o próprio assassino do
ex-namorado, que também morre violentamente durante um confronto.
Alice o vê morrer e, nesta ocasião, ela reconhece o Exu na tradicional
imagem de Zé Pelintra.
De acordo com Birman,15 “o Exu de Alice adquiriu um perfil que se
assemelha àquele atribuído pelos pentecostais às entidades afro-brasi-
leiras: mostrou-se sob uma face demoníaca, comprometida com o Mal e
responsável por crimes executados por traficantes e polícia, disseminando
o terror e a morte”. Ao realizar uma interpretação pentecostalizada do
modo como recorreu a suas antigas crenças a fim de interferir no namoro
da filha, Alice conclui que elas foram as responsáveis pelas consequências
negativas do episódio, uma vez que o apelo à entidade é percebido por ela
como a causa da morte dos jovens. Conforme a narrativa de Alice, recorrer
ao Exu não só não representou uma solução para aquele caso (o afastamento
da filha do namorado traficante e, consequentemente, da possibilidade de
vê-la envolvida em circuitos de crime e violência), como também poten-
cializou a dinâmica de violência do local. E, ainda segundo a narrativa,
este teria sido o principal motivo que a fizera abandonar o Candomblé.
O contexto no qual costumam ocorrer as conversões de bandidos
também pode ser compreendido a partir do cruzamento de leituras re-
ligiosas com as dinâmicas de violência. Assim como Birman descre-
ve a trajetória de Alice com base na leitura pentecostal de suas antigas
crenças, o contexto no qual costumam ocorrer conversões de traficantes
costuma ser marcado por uma leitura pentecostal da sujeição criminal.
Para explorarmos melhor as relações possíveis entre sujeição criminal e
pentecostalismo, apresentarei o caso de Alex, que também foi explorado
em meus trabalhos anteriores.16
Alex se envolvera com o tráfico desde bastante jovem. Era o filho mais
novo de uma família com cinco irmãos. Todos moravam na parte mais
pobre de uma favela que se localiza no Centro da cidade do Rio. Todos
experimentaram as condições de miséria e todas as limitações que dela
decorrem. Todos tiveram algum tipo de experiência com o uso de drogas.

15 BIRMAN, op.cit., p.329.


16 TEIXEIRA, op.cit.

 · O “problema” do bandido


Porém, de todos os irmãos, Alex fora o único que se envolveu com o tráfico
e que “se tornou” um bandido. Apesar de reconhecer que as condições so-
cioeconômicas tiveram peso na sua trajetória pessoal, ele, com base nisso,
não é capaz de explicar para si mesmo por que seus irmãos não entraram
para o “movimento” – já que também estavam sob as mesmas condições.
É partir desse ponto, aparentemente inexplicável para Alex (do qual ele
mesmo poderia dizer que é fruto do acaso e do caráter contingente da vida
social), que ele utiliza o mito (pentecostal) de origem da sua “subjetividade
criminosa”. Alex nos conta que quando ainda estava no ventre da sua mãe
fora por ela oferecido a Zé Pelintra, durante um ritual realizado para que
ela conseguisse algum dinheiro. Como sua mãe o conseguira, de acordo
com a narrativa, Alex teve então “a sua alma dada à entidade”. Zé Pelintra
se tornou uma espécie de “dono do coração” dele. Para Alex, precisamente
por esse motivo, ele havia se tornado um bandido.
Histórias como esta indicam que o pentecostalismo é capaz de oferecer
os instrumentos simbólicos necessários para que muitos bandidos pos-
sam, simultaneamente, reconhecer e interpretar o processo de sujeição
criminal. A construção da fronteira entre “vida do crime” e “vida fora do
crime” é realizada com base na ideia de que o “mundo do crime” é, antes
de qualquer coisa, um “mundo de pecados” e que isso é o que explicaria
trajetórias singulares como a de Alex. Neste caso, uma vez que o rapaz
acreditava que sua alma tinha sido vendida ao Diabo, a única solução pos-
sível seria a conversão religiosa. Porém, essa possibilidade de interpretação
da sujeição criminal não implica diretamente a opção pela conversão. Isto
deve ser compreendido, assim como no caso de Alice, como o contexto na
qual a conversão religiosa torna-se uma “saída” possível.
A opção pela conversão (isto é, o engajamento no estilo de vida evan-
gélico) implica, evidentemente, uma reforma moral do sujeito. Assim,
ao se converter, a pessoa deve rejeitar a “vida de pecados” e adotar uma
“nova vida”, considerada moralmente digna, pura e limpa, de onde deve
emergir um “novo ser”. Este deve conduzir sua vida de modo bastante
rigoroso para que não venha a ceder ao pecado e às possíveis “tentações
demoníacas”, evitando, dessa forma, abrir-se aos entes espirituais que
lhe conduziriam a práticas criminosas. O controle sobre a “nova vida”
é baseado em restrições como estas: não é permitido frequentar bailes
funk, frequentar bocas de fumo, andar com más companhias – a não
ser que se esteja pregando o evangelho em tais circunstâncias –, falar

Cesar Pinheiro Teixeira · 


palavrões e gírias, usar drogas, envolver-se em situações de violência etc.
Muitas dessas restrições morais não são cumpridas, como observam os
pentecostais, pelos bandidos. Ao contrário, estes levariam uma vida de
pecados e isso explicaria, em grande medida, sua condição supostamente
peculiar (sua sujeição criminal). Após a conversão religiosa, os “deslizes”
podem vir a ser interpretados como a possibilidade de um “retorno” da
sua condição subjetiva anterior. No caso do ex-bandido convertido, ações
como parar em um bar para tomar cerveja com os amigos poderiam ser
consideradas bem mais que meros desvios do “caminho do Senhor”;
poderiam ser compreendidas como uma forte evidência de que a pessoa
não mudou e de que permanece um bandido.
Os pentecostais acreditam que mecanismos como o trabalho e a edu-
cação podem até afastar as pessoas das práticas criminosas, mas a “saída
do crime” só seria garantida ao se “aceitar Jesus” e ao se aderir a uma “vida
santificada”. Aqui, o sucesso da “ressocialização” é pensado em termos de
conversão religiosa. Os ex-bandidos convertidos, evidentemente, vivem
a “saída do crime” como uma passagem do Mal para o Bem, como sendo
a saída de uma vida impura, de pecados, e a entrada em uma vida pura,
santa. Ou seja, a travessia da fronteira entre “vida do crime” e “vida fora
do crime” é experimentada como um processo de ascensão moral, já que
o ex-bandido teria de deixar para trás não apenas as práticas classificadas
como criminosas, mas tudo aquilo que é considerado pelos pentecostais
como pecado. Assim, teria de se engajar em uma “vida nova” (e moralmente
superior à “velha”) – embora sempre sujeita a tentações demoníacas capa-
zes de desviar o crente do caminho do Senhor. De modo geral, o ex-bandido
precisaria o tempo todo atualizar a sua condição de crente, regulando rigo-
rosamente seu comportamento, a fim de se manter no “caminho correto”.
Entretanto, também é preciso dizer que a forma como alguns pen-
tecostais constroem e operam suas leituras da sujeição criminal pode
adquirir nuances importantes. Birman e Machado da Silva 17 destacam que
uma característica importante da reinterpretação pentecostal reside no
modo como eles operam com a ideia de força e de poder. Ao explorarem o
caso do pastor Marcos Pereira, da Assembleia de Deus dos Últimos Dias,

17 BIRMAN, Patrícia; Machado, Carly. “A violência dos justos: Evangélicos, mídia e


periferias da metrópole.” Revista Brasileira de Ciências Sociais (RBCS), vol.27, n.80, 2011,
pp.55-69.

 · O “problema” do bandido


elas constatam que, na conversão ao pentecostalismo, o ex-bandido con-
vertido experimenta a transformação da sua força (física/bélica) em poder
(moral). Trata-se de moralidades que se leem e se interpretam mutuamen-
te e, mais que isso, absorvem-se umas às outras. Na análise das autoras,
a tarefa de redimir os bandidos não necessariamente os destitui de uma
corporalidade associada ao crime e à violência; trata-se de “redirecionar
seus atributos físicos para o sentido moral que, momentaneamente, deles
se ausentou”.18 Desse modo, também é preciso levar em conta que, em
algumas experiências pentecostais, embora a questão da reforma moral
permaneça como ponto crucial da “transformação” esperada, há a possi-
bilidade de que o processo de ascensão moral não rebaixe completamente
a condição anterior a ponto de que tudo nela seja descartado ou visto
como descartável.

O problema do bandido e os agentes sociais19

Nos projetos sociais geridos por algumas ONGs, observei que o bandido
é visto como aquele que vive sob uma “situação de opressão”, que – para
utilizar a terminologia da abordagem mertoniana do desvio20 – suprime
o campo de possibilidades de alcance dos objetivos culturalmente defini-
dos por meio dos meios socialmente legitimados. Para os agentes sociais
ligados às ONGs com as quais trabalhei, o criminoso age do modo que
age porque esta seria a “única opção disponível”. Considerado “vítima

18 BIRMAN; Machado, op.cit., p.61.


19 A pesquisa com as ONGs está organizada da seguinte forma: produção de entrevis-
tas com os idealizadores e operadores de três “projetos de ressocialização” que acon-
tecem na cidade do Rio de Janeiro, bem como com os ex-bandidos que passaram por
tais projetos ou deles fazem parte. Além disso, também realizei um acompanhamento
desses projetos ao longo do ano de 2011. Todos os projetos são de orientação laica. Há
uma série de nuances entre eles que não serão trabalhadas aqui. Para a finalidade deste
texto, interessa mais o que há de comum nesses projetos (e que serve, em larga me-
dida, de contraponto à perspectiva dos policiais e dos pentecostais): a ideia de que a
entrada para a “vida do crime” está ligada à “exclusão”, à “desigualdade” e à “falta de
oportunidades”. Assim, o critério de escolha dessas organizações tem menos a ver com
o fato de serem ONGs que com os pressupostos morais contidos em suas propostas de
“solução” para o problema do bandido.
20 MERTON, Robert K. Sociologia: Teoria e estrutura. São Paulo: Mestre Jou, 1970.

Cesar Pinheiro Teixeira · 


da ausência do Estado”, da “exclusão” e da “falta de oportunidades”, a
ele restaria apenas o “caminho do crime”.
Nessa perspectiva, o “crime” é pensado como um meio de vida, uma
forma de ganhar a vida, de se manter. E o bandido é visto como um pro-
duto da desigualdade, da pobreza, da exclusão social. Não por acaso é
comum vermos diversos pesquisadores se referirem às áreas pobres como
“socialmente vulneráveis” e à situação das pessoas que nelas vivem como
“situação de risco”. Aqui, a pessoa que se torna bandido é compreendida
como um “ser bom e ordeiro por natureza”, mas que é incapaz de realizar-
-se como tal uma vez que seria “vítima” de uma “opressão” (cultural,
social, política, econômica) que a impede de ter acesso aos recursos legí-
timos disponíveis para alcançar seus objetivos. Assim, reivindica-se que o
criminoso tenha acesso a trabalho, cultura e educação. Dessa forma, crê-
-se, é possível ampliar as possibilidades de ação, de modo que o “crime”
já não seja a “única opção disponível”. Aqui, a “ressocialização” é uma
questão de dar oportunidades, ampliar as possibilidades, oferecer novos
caminhos. Desse modo, o bandido é compreendido a partir do discurso
individualista moderno: é o indivíduo que não se realiza, que não é capaz
de descolar seu self das circunstâncias sociais nas quais se encontra. Em
outras palavras, o bandido seria o cidadão privado de sua cidadania, seria
o indivíduo privado de sua liberdade.
A minha hipótese é de que esse tipo de teoria nativa pode caracterizar
outra forma de lidar com a sujeição criminal. Entretanto, ela não apare-
ceria de modo tão explícito no discurso dos agentes sociais. A princípio,
como descrevi, a “ressocialização” seria encarada como algo que depen-
de da mudança de condições “externas” ao bandido. A aposta nativa é
a seguinte: uma vez que as pessoas tenham acesso a oportunidades de
trabalho no mercado formal, elas tenderiam a “sair do crime”. Contudo,
mesmo diante das oportunidades, muitas vezes as pessoas não optam
pelo engajamento nelas. Por exemplo: há pessoas que se apresentam a
um projeto para conseguir emprego e, conseguindo-o, não permanecem
nele por muito tempo; há pessoas que conseguem emprego, mas recla-
mam do salário e das condições de trabalho, e ameaçam abandoná-lo;
há pessoas que se negam a estudar para conseguir um emprego melhor e
também ameaçam voltar ao crime por isso. Enfim, todas essas situações
são descritas por muitos agentes sociais como casos de pessoas que, para
“saírem do crime”, precisariam passar por “transformações internas”.

 · O “problema” do bandido


Alguns chegam a descrevê-las como pessoas com algum tipo de “pro-
blema psicológico”. Ou seja, se a explicação socioeconômica para ação
criminosa do bandido não dá conta de algum caso, a sujeição criminal
logo é explicitada: haveria algo de errado no “interior” daquela pessoa
que possui a oportunidade e que não a aproveita, algo que necessitaria
ser “curado” ou “transformado”.
Na perspectiva dos agentes sociais, a “ressocialização” é uma ques-
tão de saber aproveitar as oportunidades oferecidas e, mais que isso, de
desejar aproveitá-las também. Muitos projetos pretendem ensinar aos
jovens como aproveitar suas oportunidades: instruindo-os, por exemplo,
a respeito de como se portar em uma entrevista de emprego, que tipo de
roupa usar, a linguagem mais adequada para se comunicar etc.21 Assim,
a construção da fronteira entre “crime” e “sociedade” é realizada com
base na ideia de que o “mundo do crime” é aquele composto por atores
que não tiveram acesso a oportunidades ou que não tiveram condições de
agarrar as oportunidades, mesmo que estas tenham surgido.
Em nenhuma das entrevistas que fiz a oportunidade de entrar no
mercado formal de trabalho22 aparece como um objetivo em si mesmo. Os
ex-bandidos costumavam dizer que tornar-se trabalhador seria um modo
de conseguir uma “vida tranquila”, sem os riscos inerentes à atividade
criminosa que praticavam. A atividade no tráfico não é necessariamente
vista como algo imoral (embora seja, evidentemente, percebida pelos
traficantes como algo ilegal), e sim como “uma vida muito arriscada”,23
que já não valeria mais a pena. Para a grande maioria deles o processo de
“ressocialização” é vivido como um processo de mobilidade descendente
e a entrada no mercado formal de trabalho quase sempre requer certa ca-
pacidade de resignação perante as novas condições de vida. Em primeiro
lugar, essa resignação passa certamente por uma questão financeira: para
viver na legalidade, é preciso aprender a viver com menos dinheiro que
antes, em condições financeiras mais difíceis que antes. Como vimos, este

21 ARAÚJO, Emanuelle; Rocha, Lia de Mattos. “Programa Nacional de Estímulo ao


Primeiro Emprego no Rio de Janeiro: Desafios para a inserção no mercado de traba-
lho.” Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais,
Abep, Caxambu (MG), de 29 de setembro a 03 de outubro de 2008.
22 Em geral, as ONGs não oferecem postos de trabalho no mercado informal.
23 FEFFERMANN, Marisa. Vidas arriscadas: Um estudo sobre jovens inscritos no tráfico de
drogas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.

Cesar Pinheiro Teixeira · 


é o foco da solução apresentada nas ONGs: oferecer aos que querem “sair
do crime” os meios socialmente legítimos para alcançar os objetivos cul-
turalmente definidos. Mas, para os ex-bandidos, trata-se de um cálculo
racional: que envolve ter mais dinheiro vivendo uma “vida arriscada” ou
ter menos dinheiro vivendo uma “vida tranquila”.
Entretanto, a resignação de que falo não se restringe a essa possibi-
lidade. A mobilidade descendente pode ir além de questões financeiras.
E este ponto é extremamente importante, uma vez que nos permite per-
ceber como a construção da fronteira entre “vida do crime” e “vida fora
do crime” não consistiria apenas em um cálculo racional envolvendo a
correlação entre ganhos monetários e possibilidades de sofrer violência
física, mas também seria baseada nas moralidades que supostamente
definiriam os limites de um e de outro “mundo”.
De modo diferente da seção dedicada aos evangélicos, a pesquisa
com as ONGs nos permitiu acessar um caso em que a “ressocialização”
é experimentada como uma situação de decadência moral. Para explicar
melhor este ponto, lanço mão de uma situação ocorrida no trabalho de
campo. Eu estava com Júlio, ex-traficante, em uma festa produzida pela
ONG em que trabalha. Estávamos perto de uma mesa de frios, comendo
e bebendo. Júlio dizia, jocosamente, que teria que aproveitar a festa para
comer bastante, pois assim ele precisaria comer menos em casa e econo-
mizaria. Uma das produtoras da festa se aproximou do rapaz e disse, de
modo um tanto ríspido, que não era para começar a comer naquele mo-
mento, pois eles estavam esperando o presidente da ONG chegar para tirar
algumas fotos perto da mesa. Júlio ficou furioso por ter sido repreendido
pela produtora. Paramos de comer e nos afastamos um pouco do local.
Júlio não falava de outra coisa, pois estava muito aborrecido com aquela
situação. Passados alguns instantes, ele observou que algumas pessoas
iam à mesa, pegavam a comida e a bebida, mesmo sob o olhar vigilante
da produtora que o repreendera por isso, e nada acontecia. A mulher não
chamara a atenção de mais ninguém. Júlio comentou comigo que aquelas
eram pessoas importantes na ONG e que ele achava aquilo muito injus-
to, pois aquela ONG dizia que batalhava pela igualdade, que era contra
o preconceito etc. Depois, afastou-se por um tempo. Quando retornou,
disse-me o seguinte: “Deve haver alguma coisa de errado comigo mesmo
e eu sei o que é: isso é resquício do crime; essa coisa de eu achar que tudo
tem que ser certinho, se é pra um é pra todo mundo e tal: isso é resquício

 · O “problema” do bandido


do crime. Eu tenho que mudar isso em mim, não tem jeito.” Após este
comentário, Júlio contou diversos episódios sobre quando era gerente no
tráfico de drogas, nos quais ele sempre tratava todos do modo mais justo
possível. E ele fazia questão de dizer que isso era mais que bondade: era
uma estratégia para ficar vivo, pois os líderes injustos não costumavam
ter vida longa e próspera no crime e geralmente eram mortos por seus
próprios comandados.
Este caso é extremamente interessante, pois mostra com clareza que
a sujeição criminal também pode vir a ser baseada justamente naquilo
que a maioria dos discursos sobre o bandido diz que lhe falta: moral,
ética, respeito às regras. Júlio experimenta a “ressocialização” como um
processo de decadência moral. Tornar-se ex-bandido, neste caso, é ter de
se resignar com uma certa discrepância entre o “discurso igualitário da
ONG” e suas “práticas hierárquicas”; é ter de se resignar com a “hipocrisia
da vida certa”. Júlio dizia que, no “mundo do crime”, que ele reconhece
como o circuito do tráfico de drogas nas favelas cariocas, isso jamais
aconteceria, pois aquele seria um “mundo de sujeito-homem”, onde as
regras são claras e respeitadas: se algo não é para todos, então não o é; se
é, respeita-se o combinado. Este seria um “mundo” em que as pessoas
cumprem com os acordos e com sua palavra, pois desvios ficariam sob
pena de castigos violentos e até mesmo de morte.
Perguntei a Júlio se esse tipo de situação o tentava a retornar ao tráfico.
Ele disse que sim, mas que o tráfico também tinha seus contratempos: “Lá
é muito violento e eu estou velho, preciso de uma vida mais tranquila.”
“Sair do crime”, como esse caso exemplifica, pode significar bem mais do
que deixar de praticar uma atividade ilícita, pode significar um processo
de resignação a uma moralidade considerada inferior, que seria feito em
nome de uma “vida tranquila”.
Certamente, uma boa etnografia do cotidiano de uma quadrilha de
narcotraficantes de uma favela carioca evidenciaria facilmente que o que
Júlio diz a respeito do “mundo do crime” não passa de uma idealização.
Como já ouvi de muitos ex-bandidos, “lá” também há hipocrisia e falta
de respeito às regras – como em qualquer canto da vida social. Inclusive
já ouvi isso de Júlio diversas vezes: casos sobre gerentes que roubavam
seus patrões, vapores que roubavam a boca, soldados que eram benevo-
lentes com estupradores etc. Contudo, o que interessa aqui é justamente
a idealização que Júlio faz do “mundo do crime” em um momento de

Cesar Pinheiro Teixeira · 


constrangimento em sua vida como ex-bandido. Diante da situação des-
crita, ele experimenta certa nostalgia de sua “outra vida” a partir dessa
idealização: não por causa do dinheiro, do poder ou das mulheres (o que
geralmente é experimentado como “tentação” pelos ex-bandidos con-
vertidos), mas por conta da “ética do crime”. É ela que Júlio reconhece
como “resquício interno” que deve ser mudado para que seu processo de
“ressocialização” aconteça.
Se, do ponto de vista das ONGs, a “ressocialização” consiste em criar
as condições para que os bandidos optem por alcançar seus objetivos
trilhando pelo “caminho correto”, da perspectiva dos ex-bandidos há a
possibilidade de se experimentar o processo de “saída do crime” como um
processo não apenas de mobilidade descendente (em termos financeiros),
mas de decadência moral: isto é, podem experimentar a oportunidade (a en-
trada no “caminho correto”) como um processo no qual eles devem abrir
mão daquilo que acham que é “correto” (e que aprenderam “no crime”)
a fim de conseguir viver em um ambiente em que se acredita que o risco
de sofrer violência física é menor. Nesse caso, a sujeição criminal aparece
sob a forma de uma “ética do crime” que é positiva para o ex-bandido,
embora não o ajude em seu processo de “ressocialização”.

Considerações finais

Aposto na ideia de que essas diferentes leituras da sujeição criminal for-


mam parte importante de um complexo quadro de referência capaz de
orientar os atores nas diversas interações, situações e relações sociais que
constituem a “violência urbana”. Proponho pensarmos as perspectivas
apresentadas como três repertórios de significados que se produzem e se
reproduzem em torno da figura do bandido (três importantes repertórios
da “violência urbana”): o repertório da morte, para o inimigo que deve ser
morto; o repertório da conversão, para o pecador que precisa da salvação; e
o repertório da inclusão, para a vítima de uma sociedade injusta e desigual.
Pensar essas três perspectivas do “problema do bandido” como reper-
tórios de significados representa um esforço para descolar, ao menos
analiticamente, as “teorias nativas” sobre o bandido, e as ações que nelas
se baseiam, dos seus coletivos mais óbvios – mostrando como eles criam

 · O “problema” do bandido


certas “regiões morais”24 nas quais se encontram diferentes atores. Tra-
go, rapidamente, dois exemplos que nos ajudam a entender como esses
repertórios podem costurar, dinamizar e complexificar a experiência da
“violência urbana”.
Em pesquisa realizada em duas Unidades de Polícia Pacificadora,25
ouvi muitos policiais narrarem situações e momentos em que proble-
matizavam a “realidade sobre a qual atuavam”. Além do repertório da
morte, passavam a acionar também o repertório da inclusão. Essas nar-
rativas, evidentemente, pontuavam uma mudança na forma como os
policiais viam os “bandidos”: em muitas ocasiões, não mais os percebiam
como “inimigos” que “deviam ser mortos”, mas como jovens que eram
“vítimas” de uma “realidade que os oprimia”. Argumentavam que esta
“virada” tinha a ver com o “trabalho de proximidade” nas favelas. Por tal
razão, alguns deles também decidiam se engajar em “atividades sociais”:
como escolinhas de futebol, aulas de artes marciais etc. Noutros casos,
os policiais argumentavam que a “proximidade” criada pela inserção de
alguns deles em “atividades sociais” é que possibilitava as mudanças na
forma como viam e lidavam com os moradores.
Outro exemplo de como os repertórios podem circular através de di-
ferentes atores tem a ver diretamente com a conversão religiosa de muitos
policiais. Um dos policiais militares com quem conversei contou-me que,
nos primeiros dias em que trabalhou na rua, atuou junto a um policial
evangélico. Ele disse que ficou muito confuso em algumas situações,
pois o parceiro evangélico o surpreendera várias vezes. Em situações de
“dura” a supostos criminosos, ele não só se negava a usar de violência
contra as pessoas que eram abordadas como também fazia questão de
“orar” por elas, dizendo que “Jesus o havia enviado ali” e que “para sair
daquela vida era preciso seguir o caminho do Senhor”. Enquanto meu in-
formante via aquelas pessoas como adversários em potencial (“inimigos”,

24 PARK, Robert E. “A cidade: Sugestões para a investigação do comportamento hu-


mano no meio urbano.” In: Velho, Otávio G. (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro,
Zahar, 1967 [1916].
25 De março a novembro de 2011 participei de uma pesquisa sobre as UPPs, coor-
denada pelo professor Luiz Antônio Machado da Silva. Durante esse período, realizei
trabalho de campo (observação da rotina policial e entrevistas com policiais e mora-
dores) em duas unidades: uma se localizava numa favela do Centro do Rio de Janeiro e
a outra, na Zona Oeste.

Cesar Pinheiro Teixeira · 


“vagabundos”), o seu parceiro evangélico os compreendia como “peca-
dores”, pessoas que estavam “desviadas do caminho do Senhor” e que
necessitavam ser “salvas pela Palavra”. Os dois policiais se orientavam a
partir de repertórios de significados diferentes.
Os repertórios apresentados neste texto formam parte de uma com-
plexa teia de interações, situações e relações sociais que organizam a
experiência da “violência urbana” no Rio de Janeiro. Isto acontece justa-
mente na medida em que oferecem leituras, explicações e soluções para o
“problema do bandido”. Vale retomar a ideia de que, aqui, bandido não é
pensado como um criminoso genérico (uma pessoa que descumpre regras
preestabelecidas pelo código penal), e sim como um sujeito criminal.
Por isso, os repertórios de significado que descrevi não se desenvolvem
em torno de qualquer criminoso ou de qualquer tipo de crime. Eles só
fazem sentido quando pensados em relação aos criminosos que são vistos
como os protagonistas do contexto de “violência urbana”. Não é comum
observarmos nem a ação violenta da polícia, nem a ação “ressocializa-
dora” de agentes sociais e evangélicos pentecostais serem produzidas
em relação a criminosos de outras camadas sociais. Assim, por viverem
em contiguidade territorial com as quadrilhas de narcotraficantes, as
expectativas morais produzidas em relação aos bandidos acabam se esten-
dendo a boa parte da população de favelas. Nesse sentido, os repertórios
de significados aqui descritos ultrapassam a mera condição de “teorias
nativas sobre os bandidos” e podem ser pensados como um complexo de
expectativas morais que organizam parte importante da experiência da
“violência urbana”.
É preciso dizer que este texto inclui de modo muito indireto a perspec-
tiva dos próprios bandidos. O caso de Júlio, explorado na seção anterior,
permite-nos pensar que, embora os bandidos possam vir a se orientar a
partir de qualquer um dos repertórios descritos aqui, há a possibilidade
de que outras leituras da sujeição criminal – e, com elas, outras dimen-
sões da “violência urbana” – possam aparecer no discurso e nas práticas
desses atores. Entretanto, o espaço de que disponho para a construção
deste artigo não me permite adentrar esse ponto. Assim, é importante
ressaltar que os casos empíricos descritos aqui, embora sejam parte im-
portante desse complexo de interações, situações e relações sociais que
constituem a “violência urbana”, certamente não o esgotam.

 · O “problema” do bandido


O círculo da acusação: o linchamento
como processo de indiscutibilidade
da negatividade moral do ato e
cena de punição sem limites

D R

O linchamento é uma prática na qual um grupo de pessoas mata


ou espanca um suposto criminoso sem oferecer a ele possibilidades de
argumentação de defesa. Este artigo1 dá ênfase à análise da construção
social dos linchamentos, seja na percepção desses eventos como “cena”
– dotada de uma visualidade e dramaturgia próprias, na qual podemos
encontrar diferentes atores e cujo centro é o fenômeno da acusação –,
seja no uso das ponderações de indivíduos que praticaram ou presen-
ciaram linchamentos em seus locais de moradia. No que diz respeito
ao primeiro corpus, as considerações foram possíveis a partir do exame
de 42 vídeos de linchamentos brasileiros – de aproximadamente dez
minutos cada – coletados no site YouTube. Esse material proporcionou a
visualização da maneira como os personagens do linchamento (“lincha-
dos”, “linchadores”, “instigadores” e “espectadores”) se portam nesse
evento; a sequência de acusações e denúncias feitas contra o “linchado”;
a forçada submissão deste último, que o impossibilitava de se defender;
e as agressões físicas contra o acusado que davam conta de puni-lo pelo
crime que supostamente havia cometido. E, no que diz respeito ao outro
corpus, foram entrevistadas 13 pessoas, sendo cinco linchadores e oito

1 A pesquisa que deu origem a este texto corresponde à de minha dissertação de mes-
trado. Ver RODRIGUES, Danielle. O círculo da punição: Um estudo sociológico da “cena” acu-
satorial do linchamento e seus “personagens.” Dissertação (mestrado), PPGSA, UFRJ, 2012a.
moradores que estiveram presentes em cenas de linchamento, todos na
Região Metropolitana do Rio de Janeiro: favela Vila Ipiranga, Niterói;
Santíssimo, bairro da Zona Oeste do Rio; Centro de Nilópolis, município
da Baixada Fluminense; e Guadalupe, bairro da Zona Norte do Rio. Esses
relatos foram obtidos a partir de quatro eventos, dois dizendo respeito a
linchamentos de estupradores (Vila Ipiranga e Santíssimo) e dois produtos
de linchamentos de ladrões (Nilópolis e Guadalupe). Seus relatos envolvem
uma série de valorações, tanto dos linchados quanto dos linchadores. Ter
acesso a quem viu de fato o linchamento foi essencial para encaminhar as
análises, todas fundamentadas a partir dos discursos desses entrevista-
dos, que encaminhavam justamente a ideia de luta de “bem” contra “mal”
e seus posicionamentos a respeito de justiça e autoproteção.2
Em todos os vídeos analisados, os linchamentos eram realizados de
maneira surpreendentemente comum, fazendo-me refletir sobre a pos-
sibilidade de haver um “modelo padrão” de como essas ações devem ser
encaminhadas para que atinjam seus objetivos, desde o propósito de “dar
uma lição” até o de “eliminar” determinado indivíduo. Mesmo quando a
solução final dos linchamentos é diferente (espancar ou matar), o início
e desenvolvimento dessas agressões se desenrolam de maneiras tão pa-
recidas que pude vislumbrar um possível “roteiro” de atuação.
Dessa maneira, partindo do princípio de que os linchamentos seguem
um modelo, será usada a estratégia de enumerar as cenas percebidas nos
vídeos. De acordo com Goffman,3 quando os indivíduos se agrupam
em uma cena determinada e específica, eles acabam agindo como atores
em uma peça teatral, na qual o caráter dramatúrgico como eles se apre-
sentam para si e para os outros faz com que sejam capazes de dirigir as
impressões dos outros sobre eles, assim como definem o que pode ou não
ser executado na cena – ou seja, há um modo normativo em ação. Como
um linchamento também é um agrupamento de indivíduos interagindo,
no caso para agredir um acusado, podemos pensar a possibilidade de eles

2 SINHORETTO, Jacqueline. Os justiçadores e sua justiça: Linchamentos, costumes e


conflito. São Paulo: IBCCRIM, 2002; BENEVIDES, Maria Victoria. “Linchamentos: vio-
lência e ‘justiça’ popular.” In: DaMatta, Roberto (org.). A violência brasileira. São Paulo:
Brasiliense, 1982.
3 GOFFMAN, Erving. Ritual de interação: Ensaios sobre o comportamento face a face. Pe-
trópolis, RJ: Vozes, 2011; —————. Comportamento em lugares públicos: Notas sobre a orga-
nização social dos ajuntamentos. Petrópolis: Vozes, 2010.

 · O círculo da acusação


serem vistos como uma representação teatral, no sentido proposto pelo
autor. O caráter normativo se faz presente a partir do momento em que
estão bem definidas as ações permitidas, já que há um consenso a respeito
das atitudes admitidas no interior daquele espaço. Um exemplo disso,
esclarecido por Mauro – um linchador entrevistado em Vila Ipiranga –,
é o fato de ser rejeitada qualquer opinião contrária ao linchamento no
momento em que ele ocorre. Como o próprio disse, qualquer pessoa que
negue o linchamento deve ficar em silêncio durante sua ocorrência, já
que ela poderia também se tornar um alvo.
Goffman argumenta ainda que toda vez que as pessoas entram em pre-
sença imediata de outras produzem padrões e sequências naturais. O obje-
tivo dos estudos sobre a interação teria como propósito descobrir quais são
as “ordens normativas” atuantes em qualquer relacionamento humano e a
“ordem comportamental” presente em todos os lugares povoados dotados de
um ambiente social organizado ou que esteja sob coerções. Compreendendo
essa “ordem comportamental” como o conjunto de atitudes colocadas em
prática pelos indivíduos pertencentes a esses agrupamentos, precisamos
identificar qual é essa sequência nos linchamentos. A observação sistemática
dos vídeos permitiu perceber um padrão de cenas no qual os indivíduos
interagem de maneira a encaminhar as agressões contra um acusado.
Os entrevistados desta pesquisa relataram ser uma frase que acusa
um suspeito de ter cometido um crime, a famosa “Pega ladrão!”, o esto-
pim para o início do linchamento. Os vídeos disponíveis no YouTube têm
início posteriormente a esse momento. O linchamento, apesar de fazer
parte do imaginário popular, possui uma visibilidade restrita, já que sua
ocorrência é presenciada por um número limitado de pessoas – os casos
concentram-se nos centros urbanos e nas regiões mais afastadas desses
centros4 (pelos vídeos, é possível perceber que a aglomeração média gira
em torno de trinta pessoas).
A partir da intensa visualização das quatro dezenas de vídeos de lin-
chamentos disponíveis on-line, em janeiro e maio de 2012, enumero no
quadro abaixo as cenas percebidas na composição de um “linchamento

4 MARTINS, José de Souza. “As condições do estudo sociológico dos linchamentos


no Brasil.” Estudos Avançados, vol.9, n.25, 1995, pp.295-310 e MARTINS, José de Sou-
za. “Linchamento: O lado sombrio da mente conservadora.” Tempo Social, vol.8, n.2,
1996, pp.11- 26.

Danielle Rodrigues · 


completo”. Nem todos os vídeos contêm todas essas cenas, mas, ao ana-
lisá-los sistematicamente, pude perceber uma sequência lógica de ações
que, montadas como em um filme, oferece uma dimensão bastante apro-
ximada do que realmente ocorre quando esses eventos têm lugar. Devido
à saturação dessas cenas na quase totalidade das filmagens, supõe-se que
seja um comportamento padrão nos linchamentos.

Quadro 1 – As cenas do linchamento


Cena 1 A população se aglomera em torno do acusado e é iniciada a
agressão verbal.
Cena 2 Um indivíduo percebido como um instigador inicia a propagação
de palavras de ordem, que tendem a acusar e humilhar o suposto
criminoso, com xingamentos (que duram por todo o linchamento).
Cena 3 O linchado tenta se defender, ao vociferar algumas palavras que
tentam retirar sua culpa; porém, ele não é ouvido pela população.
Cena 4 O acusado é jogado ao chão e é parcialmente imobilizado.
Cena 5 Alguém direciona a primeira agressão – geralmente um chute – no
acusado, dado a distância.
Cena 6 Umas após as outras, as pessoas iniciam a sequência de agressões,
que, após os pontapés, é seguida por socos no corpo (geralmente
costelas e costas) e tapas na face.
Cena 7 As agressões vão ficando mais vigorosas e com menor intervalo de
tempo entre elas.
Cena 8 Os linchadores começam a utilizar objetos, principalmente pedaços
de madeira e pedras.
Cena 9 A população ao redor aumenta. (A maioria não participa do
linchamento, apenas grita durante o evento, sejam palavras ofensivas
contra o acusado, sejam comemorações após cada agressão).
Cena 10 Marcas de sangue começam a ser percebidas.
Cena 11 Geralmente neste momento a polícia intervém no linchamento (em
alguns poucos casos, ela está presente desde o início, mas apenas
observa a situação).
Cena 12 A polícia resgata o linchado e o leva para a delegacia (é aqui que
termina a maioria dos vídeos).
Cena 13 (Quando os vídeos não apresentam a presença da polícia, as
agressões continuam.) O linchado começa a apresentar sinais de
desfalecimento.
Cena 14 A população intensifica as agressões, principalmente aquelas que
lançam mão de objetos como pedaços de madeira.
Cena 15 O linchado morre.
Cena 16 A população percebe a morte e comemora.
Cena 17 Algumas poucas pessoas continuam a dar chutes com intervalos
espaçados no corpo.
Cena 18 A população começa a se dispersar.

 · O círculo da acusação


A observação dos vídeos permitiu perceber ainda reações diferen-
ciadas por parte daqueles presentes no momento do linchamento e que
indivíduos diferentes colocam em prática cada uma dessas ações. A partir
disso, precisamos esclarecer quem são os atores presentes. E, por estarmos
tratando os linchamentos como cenas, recorro também ao apontamento
de personagens para tipificar os indivíduos presentes nesses eventos.5
O primeiro personagem é o linchado, aquele indivíduo acusado pela
população de ter cometido algum crime e atacado com agressões físicas
por parte da população que se aglomera em torno dele. Sua ação no lin-
chamento se refere a tentar se defender das acusações verbais, confron-
tando justificativas que apontem não ser ele aquele de que estão à procura
e arriscar se proteger contra as violações físicas empreendidas durante a
maior parte do evento.
O segundo é o linchador, aquele que usa a agressão física e verbal di-
retamente contra o linchado. Nem sempre os linchadores são os mesmos,
muitas vezes é possível perceber que algumas pessoas direcionam socos
e pontapés e saem da cena sem cometer novamente outra agressão.6 O
linchador pode usar seu próprio corpo como meio para ferir o linchado
– mãos, pés e cotovelos – e objetos, como pedaços de madeiras e metal,
para potencializar a eficiência de seus golpes.
O terceiro é o instigador. Seus principais papéis durante toda a cena
são: 1) dirigir palavras de encorajamento aos linchadores para que eles
batam mais no linchado e 2) comemorar a cada vez que este é agredido.
O instigador não comete agressão física; sua grande força é a palavra,
operada para professar ofensas contra o acusado.

5 Essa redução para cada personagem presente na “cena” se dá por meio da admis-
são de “tipos ideais” – WEBER, Max. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia
compreensiva, vol. 1. Brasília: Editora UnB, 2000; —————. “A ‘objetividade’ do conheci-
mento na ciência social e na ciência política (1904).” In: Metodologia das ciências sociais.
São Paulo: Cortez, 2001 – e, como tal, não define atuações fixas percebidas na realidade
de todos os vídeos, mas sim, a generalização de características comuns passíveis de
serem percebidas por meio das análises. Cada comportamento apontado a seguir trata
de um desses seis personagens distintos.
6 Ser “linchador”, nesta definição, não significa ter praticado agressões durante
todo o linchamento contra o acusado; se alguém, ao menos uma vez, direcionou algum
tipo de ataque físico, é qualificado dessa forma.

Danielle Rodrigues · 


O quarto é o espectador, caracterizado como aquele localizado às mar-
gens do linchamento. Ele não vocifera palavras de incentivo e não agride
o acusado, nem sempre apoia o que ocorre, mas está presente; na prática,
apenas para observar a sequência dos fatos. Trata-se da maioria dos in-
tegrantes da multidão pertencente no linchamento.
O policial é o quinto personagem presente ao linchamento e tipolo-
gicamente definível. É aquele uniformizado e armado que representa o
Estado e, em geral, retira o linchado das mãos da população, levando-o
(em tese) para a delegacia ou ao hospital. Em alguns vídeos, ele está pre-
sente na situação desde o início, tentando dispersar a população, mas,
na maior parte dos casos, aparece quando a agressão já foi iniciada. Sua
interrupção do linchamento é o que deflagra o término das agressões e,
consequentemente, dos vídeos.
O sexto e último personagem dos vídeos é o câmera. Esse persona-
gem evidentemente não está presente em todo linchamento, mas está
obviamente nos filmados e considero importante citá-lo aqui, já que ele
é fundamental para que visualizemos o linchamento pós-ocorrência.
Nos vídeos, o câmera assume o papel de estar o mais próximo possível
do linchado para capturar as agressões deflagradas contra ele. Ele filma
os participantes – oferecendo (ainda que involuntariamente, claro) uma
dimensão do número de presentes –, as reações do linchado e a chegada
da polícia. Ele não agride, não instiga, mas não se coloca na periferia para
ser espectador. Daí estar sempre em movimento durante a ocorrência e
em muitos vídeos ser possível perceber que ele corre, como se fugisse
de ser atingido por alguma agressão acidental, dado que está na maioria
dos casos muito próximo ao linchado. Ele assume a responsabilidade de
capturar e divulgar a ação (entre seus conhecidos ou na internet).
Muitos dos presentes no momento do linchamento podem interpretar
mais de um personagem na mesma cena. O caso mais comum é o instigador
ser também linchador, o espectador virar instigador e o policial ser também
um espectador. Esse movimento de interpretar ora um personagem ora
outro é comum, dado que os papéis estão sendo continuamente trocados
pelos indivíduos em cena. Porém, essa não é uma característica deter-
minante, já que muitos indivíduos interpretam um mesmo personagem
desde o início até o fim do linchamento. O interessante nessa possibili-
dade de troca de personagens é a probabilidade de interagir de maneiras
distintas com o linchado.

 · O círculo da acusação


Como cada um tem um papel dentro na cena do linchamento, os atores
principais são determinados pela atitude por eles empreendida, dado que
aqueles que mais agridem ou agridem mais expressivamente o suposto
criminoso são os que mais se destacam nos vídeos, são mais visados pelo
câmera. Por isso, podemos dizer que o desempenho, no que diz respeito à
força acionada contra o acusado no linchamento, é um fator importante,
qualificado positivamente pela multidão durante e após o evento.
Segundo as entrevistas, essa multidão se aglomera de maneira espon-
tânea e é “chamada” para o linchamento pelo espalhar da notícia de que o
acusado de um determinado crime ocorrido na localidade em que estão7
foi capturado. Os indivíduos, ainda não qualificados como personagens,
interrompem suas ações rotineiras e seguem em direção ao local em que
está o suposto criminoso. Muitos seguem para lá apenas para observar o
acontecimento, que mobiliza a região, outros se dispõem imediatamente
a participar do espancamento e se direcionam já portando objetos (como
pedras e pedaços de madeira). Como informa Rita (entrevistada em San-
tíssimo), no dia em que um suposto estuprador foi morto pela população
por meio de um linchamento, “parecia carnaval”. Segundo seu relato, ela
nunca havia visto tantas pessoas na rua em que morava se reunirem em
tão pouco tempo, o que justifica a comparação com a festa popular, na
qual as vias da cidade são ocupadas por blocos e multidões celebrando.
Além disso, a animação em torno do evento fazia com que as pessoas
comemorassem com gritos de contentamento a captura do suposto es-
tuprador. Moradores de outras partes do bairro também teriam chegado
com muita rapidez à sua rua para participar da punição.
A organização dos personagens se direciona também na forma como
eles se posicionam no espaço. O linchamento geralmente tem um formato
circular, com o núcleo da cena no linchado e cada um dos personagens se
posicionando concentricamente em relação ao acusado. Em volta dele, o
primeiro círculo é composto pelos linchadores, os mais próximos, jus-
tamente por acessarem fisicamente o acusado. No segundo círculo, estão
os instigadores, imediatamente atrás dos linchadores, permitindo que se

7 O “estar” nesta descrição é importante, já que, os personagens do linchamento


podem viver na localidade em que houve esta ocorrência ou mesmo podem “estar pas-
sando” exatamente no momento quando este evento se inicia, como nos casos ocorri-
dos nos grandes centros urbanos.

Danielle Rodrigues · 


processe um movimento de intercâmbio, já que em algumas situações eles
se revezam (linchadores se tornam instigadores e vice-versa). O câmera
geralmente circula entre a primeira e segunda camadas. Os espectadores
estão na parcela mais externa da multidão, em uma última camada, a
mais afastada do linchado. Eles nem sempre mantêm o formato circular
dos dois primeiros, pois é o grupo mais disperso: alguns muito afastados
do linchado, olhando a distância, e outros relativamente próximos, ob-
servando o linchamento nos seus maiores detalhes.
Esse círculo de multidão também muda de tamanho durante o evento.
Seu crescimento é proporcional à duração da ação, já que, tendo maior
visibilidade, os números de observadores e instigadores são os que mais
aumentam. Outro dado é o alargamento do círculo conforme ocorrem as
agressões. Se a multidão percebe que algum linchador direcionará uma
pancada mais forte, ela imediatamente se afasta do linchado, abrindo
o círculo. Essa reação também se repete quando o linchado se levanta
e tenta fugir, fazendo com que o círculo se abra, não permitindo que o
punido escape.
Na totalidade dos vídeos analisados não é percebida qualquer possi-
bilidade de defesa para a vítima do linchamento. Ela, apesar de tentar ar-
gumentar negando sua culpa, é ofendida, inicialmente verbalmente e logo
em seguida fisicamente. Para aquele que acusa, observa-se nas imagens,
não é importante saber se essa acusação é verdadeira, o que determina a
ação em grande medida é a mobilização do estigma8 do acusado, visto
que muitos indivíduos linchados são pegos por possuírem característi-
cas que os colocam como rejeitados em sua comunidade. Nesses casos,
a acusação de crime é uma justificativa para a agressão e mesmo para o
extermínio. Como diz Werneck,9 a acusação, que se realizaria por meio
da mobilização do dispositivo culpa,

procede uma declaração de punibilidade inevitável. O centro da situação


de acusação não é a disputa em torno dos elementos de um acordo. É,
em vez disso, a legitimidade – a necessidade mesmo – de punição. (...)

8 GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada.


Rio de Janeiro: LTC, 2008.
9 WERNECK, Alexandre. A desculpa: As circunstâncias e a manutenção das relações so-
ciais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p.45.

 · O círculo da acusação


[E]la parte de um procedimento de reificação: aquela que busca ocultar
o caráter negociável das disputas morais.

Segundo os acusadores, a violação de um princípio apresentado como


universal, indiscutível, é percebida como algo praticado conscientemen-
te pelo acusado, ou seja, significa que, na situação do “crime”, ele teve
agência, pôde decidir o que fez. Nesse caso, a punição se apresenta não
apenas como algo legítimo, e sim como, mais que isso, algo necessário.
Como aqui a violação é contra a lei, está em pauta a “indiscutibilidade da
negatividade moral do ato”.10 Com isso, temos em mão ferramentas para
dar conta do próprio princípio utilizado para justificar o linchamento:
não é possível realizar qualquer defesa do linchado, já que as agressões
direcionadas a ele estão sustentadas no princípio de indiscutibilidade da
punição contra os crimes que ele cometeu.
Esse momento do linchamento, que proponho chamar de processo de
acusação, se inicia com um grande grupo que se reúne em volta do acusa-
do. Nessa aglomeração estão presentes mulheres e homens, porém estes
últimos são os que mais se manifestam, vociferando acusações criminais
e ameaças contra aquele que será linchado. O que de fato ouvimos na
maioria dos vídeos é o tom das falas – sempre ríspido e repreensivo – e o
gênero dos falantes – em sua maioria são vozes masculinas.11 Algumas
frases recorrentemente vociferadas nesse momento específico são:

Vacilão! Vacilão! Fica no chão, pô! Deita no chão aí, pô.12


Sua piranha! Por que é que você foi fazer isso?13
Tu vai é apanhar!14
Vagabundo, que diacho! Vai apanhar!15

10 Idem, p.40, nota 3.


11 Nem sempre é fácil identificar as exatas frases direcionadas contra o acusado, já
que, pela forma como são filmados (por câmeras fotográficas e de celulares), a qualida-
de dos vídeos faz com que as vozes acabem se sobrepondo umas às outras.
12 “Roubou e se deu mau” – http://www.youtube.com/watch?v=AvqHKcahbhI
13 “menina apanha depois de ter roubado um celular !!!!!!” – http://www.youtube.
com/watch?v=zRD5lWx9KpM
14 “ROUBOU??? APANHOU!!!” – http://www.youtube.com/watch?v=gKGFl7mDpak
15 “Apanhou porque Roubou em Cajazeiras 11” – http://www.youtube.com/watch?
v=9plum4xRvME&feature=related

Danielle Rodrigues · 


Essas falas são acompanhadas de reações positivas ou outras frases de
apoio à agressão. Além da acusação proferida contra o linchado – processo
subjetivo que põe em questionamento a conduta do outro, cumprindo a
função reguladora de vigiar o seu autocontrole –, essas frases se colocam
como uma iniciativa de incriminar16 o agredido, já que elas o acusam,
adequando seu ato como violação à lei – denominando-o por categorias
formais e associadas ao mundo legal, como “estuprador”, “ladrão”, “as-
sassino” etc. Essa infração – e a consequente sujeição criminal 17 – em
diversas ocasiões sustenta as agressões processadas. A incriminação do
linchado se percebe como um argumento eficaz para a sua punição. Apesar
de em alguns vídeos ser possível perceber o linchado lançando algumas
palavras, tentando iniciar algum diálogo com os seus algozes e alegando
não ter cometido o crime do qual é acusado, o mesmo é ignorado e em
algumas ocasiões até repreendido pelo grupo, que não aceita qualquer
argumento e novamente inicia os insultos, recebidos com apoio pela
população no entorno. Essas reações são de diversos tipos, como frases
de encorajamento (“É isso aí!”) e expressões de concordância e mesmo
de torcida.
Não há alguém que possa ser identificado como líder no linchamento.
As ações são sucessivas e parece se construir ali um espaço de respeito
mútuo, já que, quando uma pessoa fala, as outras prestam atenção e, ge-
ralmente, concordam com seus apontamentos. Há uma ligeira percepção
de liderança no que tange ao aprisionamento do acusado: geralmente
apenas um homem se prontifica a essa tarefa. Ele o segura, usando mãos
e pés e, em alguns casos, é possível perceber que a imobilização é rea-
lizada pisoteando-se a cabeça do acusado, com a sola dos pés utilizada
para prender seu corpo, lançado ao chão.
Os xingamentos ocorrem de maneira intensa durante todo o lincha-
mento. Eles são uma forma de manifestar a tensão do momento, tensão
essa que entusiasma os linchadores a encaminharem a agressão de manei-
ra mais direta. Dessa maneira, o xingamento é um elemento colaborador

16 MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos: A acumulação social da violência


no Rio de Janeiro. Tese (doutorado), Iuperj, 1999.
17 MISSE, op.cit.; . “Crime, sujeito e sujeição criminal: Aspectos de uma con-
tribuição analítica sobre a categoria ‘bandido’.” Lua Nova: Revista de Cultura e Política,
n.79, 2010, pp.15-38.

 · O círculo da acusação


para o clima de tensão presente naquele momento. Além disso, ele tam-
bém funciona, nos termos de Cardoso de Oliveira,18 como um “insulto
moral”. Segundo o autor, a dimensão moral das agressões, possuidora de
um caráter simbólico e imaterial, está presente nos atos e eventos que
desrespeitam a cidadania. Desse modo, aos indivíduos considerados não
humanos19 são negados quaisquer direitos. Ao empreender um insulto
moral se pretende desvalorizar ou negar a identidade do outro, afastan-
do qualquer semelhança que este possa ter com aquele que o insulta. A
dimensão dos sentimentos, segundo o autor, sempre está envolvida no
uso do insulto moral, posto que a ofensa tem a intenção de expressar o
ressentimento por parte daquele que se identifica como vítima. Sendo
assim, ao se insultar se expõe a indignação moral e se pretende buscar
algum tipo de reparação.
O linchado, apesar de estar sob os olhares do grupo, tenta de alguma
maneira se defender e se livrar do aprisionamento. Muitas vezes ele grita
algumas frases, solicitando que seja solto ou dizendo que é inocente das
acusações, e faz movimentos que tentam retirá-lo das mãos dos acusado-
res. Quando está deitado, ele sempre tenta se levantar e é imediatamente
jogado ao chão de novo. Estando de pé, tenta correr, mas é segurado com
mais firmeza ou capturado pela população, que o persegue. No instante
em que inicia essa tentativa de fugir, vem o momento em que, geralmente,
se iniciam as agressões contra ele. Na maioria dos casos, o linchamento
começa com um chute nas costas do acusado, já que ele tenta proteger o
rosto se encolhendo e ficando na posição fetal. Por conta disso, as costas
são a parte do corpo mais evidente e na qual há mais possibilidade de o
agressor acertar sua ofensa. Um dado verificado nos vídeos foi a distância
que os agressores mantinham em relação ao linchado, pelo menos no início
dos linchamentos. O chute é um dos mecanismos usados pelos linchadores
para estabelecer esse distanciamento. É formada uma espécie de relação
hierárquica entre linchadores e linchados, posto que os primeiros utilizam
os pés para espancarem, e não as mãos; e também por sempre se colocarem

18 CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. “Direito, insulto e cidadania: Existe vio-


lência sem agressão moral?.” Série Antropologia, n. 371. Brasília: DAN/UnB, 2005.
19 FREIRE, Jussara. “Agir no regime de desumanização: Esboço de um modelo para
análise de sociabilidade urbana a cidade do Rio de Janeiro.” Dilemas: Revista de Estudos
de Conflito e Controle Social, vol.3, n.10, 2010, pp.119-142.

Danielle Rodrigues · 


de pé, enquanto os linchados na maioria das vezes são jogados ao chão. O
uso do pé para tocar o corpo do acusado pode envolver um significado de
desqualificação desse indivíduo: os vídeos mostram que ao usar essa parte
do corpo o linchador se posiciona o mais distante possível daquele consi-
derado por ele como indigno, sendo afetado o menos possível pela “sujeira”
trazida pelo linchado àquele ambiente social. O pé, por ser uma parte
marginal do corpo, é utilizado para o contato primeiro com o impuro,20
percebido como aquele que está fora do lugar e se transfigura como um
elemento de perigo ao grupo coeso. Quando há a noção de impureza, diz
Douglas, há um sistema organizado, pois aí está em processo uma forma
de ordenamento, de repelência de tudo que é visto como inapropriado.
Quanto mais distanciamento físico em relação a esse indivíduo considera-
do sujo, menos contaminação se dá nessa relação social.21 Após essa relação
de distanciamento inicial, o agressor utiliza para infligir ataques contra
o linchado outras partes do corpo, como as mãos, ao direcionar tapas e
socos. Esse traço de distanciamento inicial nos linchamentos verificados
leva a refletir sobre o afastamento espacial, e por que não moral, que o
algoz (linchador) estabelece com a sua vítima (linchado).
Uma a uma, outras pessoas também começam a investir ataques
contra o linchado, que grita e tenta se desvencilhar dos que o aprisio-
nam. Porém, em nenhum dos casos observados, ele consegue fugir. Sua
tentativa de se esquivar dos chutes é em vão, já que eles vêm de diversas
direções. No mesmo momento em que se encolhe para tentar minimizar
a dor de um pontapé em vistas de ocorrer, é surpreendido por outro, que
vem de direção distinta e não pôde prever. Sua surpresa é percebida por
uma expressão desfigurada pela dor que o toma. Seus gritos muitas vezes
são abafados pelas iniciativas dos linchadores que, em muitos casos, não
cessam de disparar ofensivas contra ele. Em algumas ocasiões, aparen-
temente menos dolorosas, os ataques são espaçados, dando tempo para
que o linchado sinta uma a uma cada manifestação de dor de maneira
ímpar. Quando ele parece se aliviar de uma aflição, uma nova pessoa
dispara contra ele uma nova agressão e todo o processo de sentir a dor e

20 DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, 1976.


21 A noção de limpeza, tirar o que é sujo, foi uma categoria usada pelos próprios en-
trevistados desta pesquisa quando se referiam ao que foi realizado em sua comunidade
por meio do linchamento.

 · O círculo da acusação


se aliviar dela, para novamente ser torturado, recomeça. Nos casos em
que os linchadores não dão tempo para que o suspeito sinta cada um dos
momentos de dor, eles são veementes na ação de empreender contra aquele
seguidas aflições. Nenhum linchador se sobrepõe ao outro no momento de
disparar algum ataque. Quando um inicia sua ofensiva, os outros aguar-
dam até que o primeiro termine, para somente então também direcionar
uma pancada. Eles empreendem uma espécie de protocolo ritual, em
que respeitam o roteiro e a ordem de ações sucessivas. As sequências são
longas e contínuas, e o linchado praticamente desaparece do vídeo, de-
vido ao número de pessoas amontoadas sobre ele para direcionar alguma
violência (verbal e/ou física).
Alguns linchadores incentivam outras pessoas, presentes na cena
apenas como espectadoras, a também baterem no acusado. Em um dos
vídeos,22 um grupo apenas de homens de aproximadamente 40 anos
incita uma senhora de mais ou menos 60 a bater no homem imobilizado
pela população. Segundo a descrição do filme, trata-se de uma moradora
de rua, presente no momento do linchamento e que também auxilia os
linchadores a disparar golpes contra o acusado. O que chama a atenção
em sua ação é a maneira como ela direciona suas agressões: um dos lin-
chadores lhe entrega um pedaço de madeira (retirado de um caixote) para
que ela bata no linchado; quando ela inicia a agressão, diferentemente
dos outros, que direcionam os golpes para a cabeça do acusado, ela se
dedica a bater em suas nádegas, remetendo-se às palmadas que algumas
mães dariam em seus filhos quando eles descumprem alguma ordem.
Ela, ajudada pelos linchadores, abaixa a bermuda do suspeito, deixando
seus glúteos à mostra, e inflige ali seus ataques. Outra parte do corpo que
ela privilegia é o pênis. Ajudada pela população, que segura as pernas do
acusado para que elas fiquem abertas, a mulher lança uma madeirada
nessa região, fazendo com que o linchado se contorça de dor e a população
grite em comemoração, manifestando também muitas risadas. Logo após
essa parte, a senhora se afasta e os homens continuam a direcionar socos
e chutes contra o corpo do acusado, bastante ferido. As risadas durante o
linchamento não estão presente apenas nesse vídeo. Em alguns outros po-
demos ver que os linchadores, enquanto agridem o linchado, gargalham.

22 Ibid, nota 6.

Danielle Rodrigues · 


A análise dos vídeos não permite dar conta da motivação para isso, que
pode ser uma reação cômica, de nervosismo ou outra reação não sabida.
Conforme aumenta a quantidade das ofensivas, aumenta também a
visibilidade do linchamento, pois novas pessoas começam a se aglomerar
em torno do suspeito ou aquelas que estavam mais distantes se aproxi-
mam. Nesse momento, também começam a se intensificar as agressões.
Os socos e chutes não raro são incrementados com pedaços de madeira
(o uso mais frequente), barras de ferro e objetos diversos (pedaços de
telhas, pedras e outros não identificados que são jogados contra o acusa-
do). O vigor das pancadas é surpreendente, já que a força que os lincha-
dores empreendem é muitas vezes medida pelo som que estas emitem
em contato com o corpo do linchado. Consequentemente, é nesse mo-
mento que começamos a ver sangue e a imediata desfiguração do corpo
do ofendido: surgem cortes, inchaços e hematomas. O linchado, apesar
de ferido, não cessa em sua tentativa de tentar escapar das agressões, o
que em todos os vídeos é inútil. Quando ele é visto como “rebelde” – ou
seja, tenta descumprir o esperado pela população, que ele fique imóvel
–, intensificam-se os ataques.
Na maioria dos vídeos analisados a polícia estava presente. Sua che-
gada, inicialmente percebida pelas sirenes de viaturas, é uma maneira
de tentar encerrar o linchamento. Em alguns casos, percebe-se que os
policiais, antes de interromperem a ação fisicamente, deixam as sirenes
ligadas até dispersarem a população. É possível que o uso do sinal lumi-
noso e sonoro antes da retirada do linchado das mãos da população seja
uma maneira de os policiais preservarem sua própria segurança, visto
que em muitos casos a população está tão enfurecida que pode direcionar
algum tipo de agressão contra eles. Mas, apesar da presença policial, em
muitas situações o linchamento não cessa. Em um vídeo, é necessário que
o policial dê um tiro para o alto para que os linchadores parem de golpear
o acusado.23 Em outro, mesmo com o suspeito em posse da polícia, a
população não para de atacá-lo, tendo os policiais que o proteger para
que ele não sofra mais ferimentos.24 É possível perceber também que em

23 “Homem Joga Pedra em Ônibus e é Linchado” – http://www.youtube.com/watc


h?v=ChjTFtH7eqY&feature=related
24 “LINCHAMENTO LADRÃO” – http://www.youtube.com/watch?v=JhoFrZ72shc

 · O círculo da acusação


certas ocasiões a polícia está presente durante o linchamento e não se
manifesta, deixando que o povo ataque o linchado. Somente quando os
ferimentos se tornam mais acentuados é que ela se coloca, protegendo-o
e o retirando das mãos da população. Em um desses casos, conseguimos
ver o linchamento que ocorre em frente a uma delegacia, sem que nenhum
policial se prontifique a dispersar os agressores.25
Quando a polícia se manifesta e retira o linchado das mãos da popu-
lação, colocando-o na viatura, é o momento em que terminam a maioria
dos vídeos. Nos casos em que a polícia não está presente, o linchamento
assume uma proporção cada vez mais intensa conforme passa o tempo.
Os ferimentos são avivados e as agressões dos linchadores na cena são
mais acentuadas. A morte daquele indivíduo começa a ser encaminhada
pela verificação da fraqueza física do linchado, na medida em que ele mal
se sustenta de pé e já não arrisca nenhuma tentativa de se defender.26 O
uso de objetos torna-se cada vez mais recorrente e pessoas a distância se
prontificam a direcionar alguma agressão, mesmo que seja uma pedra
jogada de longe.
Não é grande a demora na percepção de que o linchado fatalmente virá
a falecer, sua imobilidade é uma das evidências que atestam essa finali-
zação. Não raro, podemos ver a comemoração de alguns linchadores, que
bradam com contentamento a eliminação do acusado. Apesar de pouco
habitual, conseguimos ver alguns agressores que, mesmo percebendo o
corpo já morto, chutam-no ainda. A maioria dos vídeos em que a polícia
não se faz presente é finalizada neste momento. Naqueles em que o cine-
grafista ainda dedica alguns segundos para que possamos contemplar a
reação da população, conseguimos vê-la dispersando. Algumas poucas
pessoas que permanecem na cena se fixam a observar o linchado e fazem
comentários entre si.
Dessa maneira, vemos que os presentes na cena empreendem uma
série de ações para punir determinado indivíduo, sem que haja regras
limitando suas ações. No linchamento não há restrições, os linchadores

25 “Ladrão linchado em João Pessoa” – http://www.youtube.com/watch?v=


si8SD8wsa4s
26 “Aqui no pinheirinho é assim” – http://www.youtube.com/watch?v=YeQ9RF8L
bTY&feature=related

Danielle Rodrigues · 


podem fazer qualquer coisa com o acusado. Porém, apesar dessa liberdade,
pude notar que ela não é explorada de maneira criativa pelos participantes.
Os vídeos mostram uma série de repetições, tornando os encaminha-
mentos contra o acusado extremamente semelhantes uns aos outros.
No linchamento, assim, tem lugar uma série de ações práticas, porque,
apesar de haver liberdade para se fazer qualquer coisa, os linchadores
empreendem sempre o mesmo rol de agressões.
Nesse contexto de limitação, o interessante é a forma como os parti-
cipantes da cena encaminham e executam o linchamento, dado que um
tipo de movimento é percebido como procedimento padrão nesses even-
tos: atirar pedras ou outros objetos, chutar, socar, bater, dar madeiradas,
cuspir etc. Dessa forma, posso afirmar que há uma série de técnicas ceri-
moniosas encaminhando essas ações, que podem ser chamadas de práticas
ritualísticas do linchamento. Em nenhum vídeo brasileiro e em nenhuma
das entrevistas realizadas tive acesso a atos inovadores e deslocados das
práticas anteriormente descritas.27
Segundo o senso comum – e mesmo algumas descrições acadêmicas
–, determinados casos geram na população uma “rejeição” ou “sensação
de injustiça” tamanha que o linchamento ocorreria para provocar a morte
daquele indivíduo enquadrado como “sem jeito” ou “irressocializável”.
Haveria, assim, em certos linchamentos um propósito de eliminação cuja
fúria dos linchadores se manifestava em pancadas mais árduas, que mais
favoravelmente provocariam a morte do acusado.
Após a análise de diversos casos de linchamentos a que tive acesso
verificando os vídeos no Youtube e em posse das entrevistas realizadas,
pude perceber que o linchamento, em todos os seus sentidos, é uma ação
que não permite previsibilidade. Ela é plenamente construída durante a
interação. Sequer os que estão envolvidos na cena sabem como será o fim
da ação. Ele ocorre de maneira sucessiva, com um a um dos linchadores
empreendendo agressões contra o acusado, sem saber de antemão como
aquele evento se concluirá.

27 Diferentemente de alguns vídeos de outros países da América do Sul a que tive


acesso (Bolívia, Venezuela e Chile), em que é muito comum ver nos vídeos de lincha-
mento pessoas sendo queimadas ou suas partes genitais sendo arrancadas.

 · O círculo da acusação


O crime cometido pelo acusado não tem relação direta com o sen-
timento descrito por um dos entrevistados como presente e dominante
na hora do linchamento, por ele chamado de gana, dando forma a uma
espécie de medida de grandeza da intensidade agressiva do linchamento:
mais ataques, mais gritos, mais agressividade corresponderiam a maior
gana. Mas, já que mortes ocorrem motivadas tanto por estupros cometidos
pelos linchados quanto por roubos a objetos de pouco valor monetário, não
parece de fato haver uma proporcionalidade entre o tipo de delito e essa
intensidade punitiva. No linchamento é difícil prever o que acontecerá com
o linchado: se ele cai de mau jeito no chão ou alguma parte vital do corpo é
acertada, pode morrer com poucas agressões, ao passo que graves ofensas
contra seu corpo podem fazer com que sofra apenas algumas escoriações.
Os entrevistados alegam que linchar é uma necessidade das “pessoas
de bem”, pois dessa maneira elas exercitam sua função de preservação
da paz e da ordem do local em que vivem. O espancamento ou a morte
do acusado reitera essa noção de “bem”, já que, como ele representa/
encarna o “mal”, ao linchá-lo se estaria buscando a retomada da ordem,
rompida por esse “mal”.
Essa denominação moralmente dicotômica corresponde a uma forma
apresentada pelos próprios entrevistados. As “pessoas de bem”28 indicadas
nesta pesquisa, segundo elas mesmas, são aquelas que não têm qualquer
envolvimento com as drogas, a agressão ou as armas e que “trabalham
duro” para sustentar a família – garçons, donas de casa, padeiros, mo-
toboys, entregadores de gás etc. –, pessoas que se percebem como reféns
do “mal” e não possuídas por ele (como ocorreria com os criminosos).
A expressão “pessoas de bem” se propõe a ser um contraponto àquela
que usualmente se refere a pessoas envolvidas com “o mal”. “O mal”
tratado aqui diz respeito ao que Misse29 chamou de “fantasma”, ou seja,
a representação de uma violência disseminada e que se espalha como

28 A pesquisa não deu conta de analisar a fundo quem são essas “pessoas de bem”
caracterizadas aqui. Não nos estranharia saber que, diferentemente do que elas apre-
sentam, algumas poderiam ter um histórico de violência, como o envolvimento com
atividades criminais (furtos, roubo, tráfico etc.). Essa probabilidade surge a partir da
percepção de que nem sempre é fácil para os entrevistados falar sobre os linchamentos.
29 MISSE, Michel. “O fantasma e seu duplo.” In: Crime e violência no Brasil Contempo-
râneo. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006.

Danielle Rodrigues · 


vírus na vida cotidiana e pela qual todos teriam medo de ser afetados.
A “violência” é, nesse contexto, o emprego da força ou da dominação
não legítimas, sem que seja possível resistir a ela ou que haja um motivo
justificado para usá-la. Chamar alguém de violento torna-se, assim, uma
forma de acusação, pois raramente alguém se autodenomina dessa forma
e a aplicação desse adjetivo a alguém acaba por servir de justificativa para
qualquer punição. Trata-se, então, de uma maneira de denunciar um
evento ou um sujeito. O “violento” é aquele capaz de violar a integridade
de um indivíduo e de transformá-lo em objeto, ao permitir (ou fazer com)
que qualquer coisa se faça com ele. Ser violento é também ser poderoso,
mas esse poder não é considerado bom; soa, em vez disso, de maneira
negativa por seu caráter violador.
A partir disso, estar ligado ao “mal”, como violento, é comparável a
estar envolvido com uma força maligna destruidora, quase diabólica, que
igualmente lança mão da violência continuamente em seu cotidiano. Uma
“pessoa do mal” seria aquela (tratável como) violenta, usuária desse arti-
fício como forma de dominação e que não compreende essa ação como má.
Segundo os entrevistados, exemplos de pessoas envolvidas com o “mal”
seriam estupradores, ladrões, assassinos, traficantes e, por vezes, até
policiais, ou seja, pessoas submersas diretamente com a violação de bens
ou do corpo, e estariam “possuídas” por um ente negativo e destruidor.
As “pessoas de bem”, por contraposição, seriam aquelas que se per-
cebem distantes dessa violência, não usariam desse artifício em seu co-
tidiano e negariam a presença desse “mal” em sua vida e em sua família.
Seriam pessoas “pacíficas”, que fazem coisas percebidas como boas para
aqueles que os cercam, e cujos valores, percebidos como “do bem”, seriam
a solidariedade, a amizade, o respeito ao próximo e a preservação da paz.
Os linchadores, assim, estabelecem uma mitologia, a de “luta do bem
contra o mal”, já que percebem sua ação não como criminosa ou violenta,
e sim como uma maneira de preservar a moral do grupo e eliminar aqueles
que desestabilizam valores considerados como essenciais.
Os argumentos apresentados por linchadores complementam aque-
les proferidos por outros moradores das regiões em que ocorreram os
linchamentos. Além de também reiterarem, como os moradores, que
os linchados são pessoas “merecedoras” e que “não teriam solução” por
serem “naturalmente” indivíduos de “má índole”, esses linchadores

 · O círculo da acusação


acrescentaram às suas falas que sua ação também é centrada na ideia de
que “pessoas de bem” devem lutar pela manutenção de uma moralidade
segundo a qual “o bem” prevaleça, mesmo que para isso tenham que
eliminar, com a morte, aqueles que representam “o mal”. As entrevistas
mostram que a percepção do “mal” encarnada na figura dos linchados é
recorrente na referência de necessidade de sofrimento que os faz serem
rejeitados de uma maneira tão intensa que sua eliminação em determi-
nadas situações é vista como a única maneira de afastar ou mesmo vingar
o mal que ele tenha difundido.
Quando se realiza um linchamento, a desqualificação da figura do
linchado acaba promovendo uma ideia centrada na necessidade da pu-
nição como uma forma de reificação da moral daqueles que empreendem
essas práticas. Essa proposta se sustenta na percepção de que, quando se
realiza a punição, está em processo uma crítica radicalizada, uma vez
que o acusado não seguiu determinada moral valorizada e seguida pelo
grupo, e sim seus próprios princípios morais, discordantes daqueles que
o julgam. Nessa perspectiva, apresenta-se apenas um tipo de “bem”, não
se admitem outras formas de “fazer” ou “praticar” o seu “bem” (como,
por exemplo, ao se roubar algo, uma forma de se obter algo em seu pró-
prio favor). Ao ter rompido com essa moral, o linchado precisa ser punido
para que dessa maneira se valide ainda mais aquela moral agredida – e
até certo ponto questionada – pelo linchado. Ao punir, eles demonstram
haver uma ação esperada, e como o linchado, por ser portador de agência,
escolheu pôr em prática uma moral discordante, ele precisa ser culpabi-
lizado. E o linchamento advém como forma física dessa necessidade. O
linchamento, assim, torna-se a expressão máxima da manifestação da
culpa dos acusados.
Mas apesar de haver nos bairros em que ocorreram os linchamentos
certa aceitação da agressão física e do sofrimento como forma de punir
adequadamente determinados indivíduos, somente uma pequena parte
dos moradores transforma de fato essa opinião em atitude, e mesmo esses
o fazem (segundo eles mesmos) sem pertencer a qualquer organização que
classicamente promova eliminações (milícias, polícia mineira, tráfico de
drogas). Os linchadores colocam a violação física como alvo na resolução
de seus conflitos sem estranhá-la, já que mesmo após os acontecimentos,
quando tiveram tempo para refletir sobre o ato que praticaram, continuam

Danielle Rodrigues · 


justificando suas ações e se mostrando prontos a cometê-las novamente,
caso se mostre necessário:

Nós somos cidadãos comuns, normal, pô. A nossa vida é normal, pô.
Aqui não tem nada, mas a gente, podendo ajudar, né cara, a gente ajuda.
[risos] Atrapalhar, jamais! [risos] (Gustavo, linchador de Vila Ipiranga,
Niterói, RJ)

Noventa por cento das pessoas que estavam no ônibus queriam linchar o
cara também. Pô, era um senhor de idade... Depois que a gente linchou, a
gente se sentiu muito bem, né? Contei pra minha avó, minha mãe, tá tudo
bem. Na hora a única coisa que vem é revolta, mas depois... De vez em
quando a gente pega o ônibus e a motorista fala com a gente, pede muito
obrigada. Tava todo mundo apoiando a gente. A gente se sentiu levinho
depois. [risos] (Diogo, linchador de Guadalupe, Zona Norte, Rio de Janeiro)

O linchamento seria, assim, nos argumentos deles, uma defesa contra


o “mal” que os ronda. Segundo um dos entrevistados, não há arrependi-
mento entre os que cometem esse ato, já que só assim é possível “mandar
o capeta de volta pro inferno”, segundo Rita, de Santíssimo. Sendo assim,
é efetivada a corporificação da acusação na forma da punição do linchado.
Essa acusação/punição mobilizada contra o acusado não é realizada apenas
no plano da linguagem, em que se esperariam falas dando conta dessa
operação, mas sim realizada contra o corpo do acusado. As falas dos en-
trevistados dão conta de uma necessidade de punição verificada no corpo,
em que a agressão física – e, se se chegar a ela, a morte – é pensada como
forma de punição sem limites. A acusação, nesse caso, serve para analisar
quais são as ações que “devem” ser desencadeadas. Não é admitido du-
rante a ação um posicionamento que ofereça ao linchado oportunidades
de defensa. Ele, por estar sendo linchado, já é percebido como culpado,
mesmo que não se saiba o crime que supostamente cometeu. A gramática
moral mobilizada é a mobilização da máxima energia física contra alguém
apontado como culpado. A “gana” dos linchadores para punir o linchado
é verificada como medidor do indício de culpa. Dessa maneira, a concre-
tização da acusação, verificada nos vídeos e nas entrevistas, é a realização
de uma punição sem limites por meio do linchamento contra os acusados.

 · O círculo da acusação


Sobre o significado do policiamento
comunitário: uma análise dos accounts
empregados pela Polícia Militar do
Estado do Rio de Janeiro (1980-2000)1

L M L R

A proposta deste texto é analisar as construções discursivas rea-


lizadas pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) quanto
ao significado da categoria policiamento comunitário a partir da descrição
da forma como ela é empregada na vida cotidiana da corporação. Para
tanto, foram revisados exemplares do Boletim de Informação (BI) da ins-
tituição, publicados entre 1o de janeiro de 1980 e 31 de dezembro de 2000,
no intuito de compreender qual era a tônica da política engendrada pela
PMERJ e, nesse contexto, como a categoria policiamento comunitário
era empregada.2
Os BIs são uma espécie de Diário Oficial, resumindo todos os dias a
vida e a rotina da corporação. Para tanto, eles se encontram estruturados

1 Este texto foi desenvolvido no âmbito do projeto Policiamento comunitário: uma


análise sócio-histórica dos projetos desse gênero empreendidos pela Polícia Militar do Es-
tado do Rio de Janeiro no período democrático (1983-2011), financiado pelo Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por meio do auxílio
474393/2011-9, resultante do Edital Universal 14/2011. Participaram como assistentes
de pesquisa da construção da base de dados de BIs Tharcio Elísio, Tarcisio Perdigão e
Isabela Gonçalves, alunos do curso de Ciências Sociais da UFMG. Gostaria de agradecer
aos comentários e à revisão minuciosa do amigo Alexandre Werneck. Sua ajuda foi
essencial para que o argumento se tornasse mais estruturado e também mais maduro
do ponto de vista teórico.
2 Esse recorte temporal corresponde ao dos Boletins de Informação digitalizados
que foram cedidos pelo comando da corporação para a pesquisa.
em quatro seções: 1) Serviços Diários; 2) Instrução; 3) Assuntos Gerais e
Administrativos; e 4) Justiça e Disciplina.3 A importância dessa fonte
de informação diz respeito à sua leitura diária no âmbito dos batalhões e
companhias de Polícia Militar, como forma de repassar à base as instru-
ções da cúpula da corporação para a execução dos distintos programas
de ação.4
O olhar dos pesquisadores se voltou para comunicados sobre pro-
gramas de ação e de formação em policiamento comunitário e matérias que
fizessem menção explícita à palavra comunidade e aos seus correlatos,5
o que poderia envolver a punição ou o elogio de ações policiais. Ao final
foram mapeadas 990 referências, distribuídas anualmente da seguinte
maneira:

3 Como os BIs não recebem qualquer tipo de indexação, foi necessário consultar
cada um individualmente, de maneira a identificar quais faziam menção a “policia-
mento comunitário” direta ou indiretamente e, em seguida, classificá-los de acordo
com as categorias mais aparentes. Como os boletins circulam diariamente, isso signifi-
cou revisar 10.585 documentos, cada qual com uma média de oitenta páginas. Todas as
publicações do BI contando com esses termos foram sistematizadas em uma planilha
de Excel, dividida em quatro colunas principais: data da publicação, forma como apa-
recem a palavra “comunidade” ou a expressão “policiamento comunitário”, localiza-
ção (página e seção) e comentários sobre a publicação.
4 Como se discutirá adiante, é o fato de a leitura dos BIs compor a chamada de ins-
trução diária das companhias e batalhões que converte esse documento em mecanis-
mo de transferência de responsabilidade para a execução de programas de ação da cú-
pula para a base da corporação. Exatamente por isso, os programas de ação anunciados
nos BIs apenas podem se tornar realidade se acompanhados de programas de formação
e treinamento, bem como mecanismos de punição e recompensa. Os BIs apenas pos-
suem essas funções por serem editados pela cúpula da corporação, ou seja, cabe ao
comando geral, que tem um assessor especialmente designado para essa finalidade,
verificar o que entra e o que sai nessa publicação.
5 Conforme se verificará adiante, a palavra comunidade é progressivamente res-
significada e, por isso, com vistas a incluir também esses novos significados, foram
pesquisadas ainda as seguintes categorias: morros, favelas, áreas especiais, áreas confla-
gradas e áreas de risco. Em que pese a inclusão desses outros operativos, a maioria das
referências consideradas apresenta a palavra comunidade ou comunitário de maneira
explícita.

 · Sobre o significado do policiamento comunitário


Gráfico 1 - Quantidade de menções a comunidade e
policiamento comunitário, de acordo com o mapeamento
realizado nos BIs da PMERJ, por ano (1980-2000)

Do ponto de vista quantitativo, como se pode notar, alguns anos con-


tam com uma quantidade substantivamente maior de referências do que
outros. Em parte, isso ocorre porque o período analisado encobre governos
com conotações diferenciadas no que diz respeito ao alinhamento com o
regime (se democrático ou autoritário), ao tipo de política de segurança
pública a ser implementada (se preventiva ou repressiva) e, ainda, no que
se refere ao modelo de policiamento a ser seguido pela Polícia Militar (se
comunitário ou profissional, ou ainda, militar stricto sensu). Essas dife-
renças podem ser apresentadas de maneira sumária a partir do Quadro 1,
que reúne as principais características de cada governo estadual; e, ainda,
a quantidade de publicações dos BIs que faziam menção às categorias
comunidade e policiamento comunitário em cada período.

Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro · 


Quadro 1 – Periodicidade dos governos analisados, de acordo
com as características da política de segurança pública e do
policiamento realizado pela PMERJ, bem como quantidade de
publicações (sobre comunidade e policiamento comunitário)
mapeadas nos BIs (1980-2000)

Quantidade
Modelos de
Modelo de de BIs sobre
Políticas de
Governos Policiamento policiamento
Segurança
preponderante comunitário/
Pública
comunidade
Chagas Freitas
Autoritário/
15 de março de 1979 a Militar/Profissional 42(1)
Repressivo
15 de março de 1983
Leonel Brizola
15 de março de 1983 a Preventivo Comunitário 97
15 de março de 1987
Moreira Franco
15 de março de 1987 a Repressivo Profissional 294
15 de março de 1991
Leonel Brizola
Preventivo/ Profissional/
15 de março de 1991 a 223
Repressivo Comunitário
2 de abril de 1994
Nilo Batista
2 de abril de 1994 a 1º Preventivo Comunitário 37(2)
de janeiro de 1995
Marcello Alencar
1º de janeiro de 1995 a Repressivo Profissional/Militar 175
1º de janeiro de 1999
Anthony Garotinho
Preventivo/ Profissional/
1º de janeiro de 1999 a 122(3)
Repressivo Comunitário
6 de abril de 2002
(1) Exclui 1979, que não foi pesquisado
(2) Vice-governador de Leonel Brizola e, por isso, mantém a continuidade de seu
antecessor em termos de diretrizes da política de segurança e do modelo de policiamento
(3) Exclui 2001 e 2002, que não foram pesquisados

De maneira geral, o Quadro 1 indica certa relação entre o modelo


de policiamento e os modelos de política de segurança pública. O poli-
ciamento militar stricto sensu é caracterizado pela lógica de guerra con-
tra o inimigo da ordem e do regime e, por se tratar de uma modalidade
empreendida em um período de exceção, incita o uso da violência em
contextos cívicos, valorizando o desaparecimento e morte dos opositores
do regime. Trata-se de um modelo autoritário por visar a incapacitação

 · Sobre o significado do policiamento comunitário


permanente do opositor, sem qualquer tipo de repressão reparadora. Foi,
portanto, a lógica que orientou a ação da PMERJ na maioria dos anos do
regime ditatorial e que, por isso, precisou ser transformado em modelo
profissional na passagem do autoritarismo para a democracia.
O policiamento profissional foi desenvolvido ao longo do século XIX
com vistas a reduzir a discricionariedade dos policiais de linha de frente e
detalhar os procedimentos operacionais a serem empregados diariamente
pela tropa, evitando-se casos de abuso do uso da força e de corrupção. Não
raro, o modelo profissional é também chamado de modelo tradicional,
afinal ele foi constituído no processo de institucionalização da polícia
como organização moderna, tendo entre suas principais características
a ação adstrita aos regulamentos normativos na resposta à chamada da
população. Ou seja, nesse modelo, a ação policial acontece após a ocor-
rência do crime, procurando incapacitar provisoriamente aqueles que
cometeram um determinado delito, sendo a prevenção do crime dada
pela dissuasão operada a partir da identificação do infrator e conseguinte
punição. No âmbito da PMERJ, o modelo de policiamento profissional
começa a se constituir nos últimos anos da ditadura militar, como forma
de preparar a organização policial militar stricto sensu para as atividades
de policiamento em um regime democrático.
O modelo de policiamento comunitário pressupõe a institucionaliza-
ção e flexibilização do modelo profissional a partir da descentralização dos
processos de tomada de decisão, que passam para as mãos dos policiais
de linha em vez de ficarem a cargo de seus comandantes; da colaboração
da comunidade no mapeamento dos problemas e na definição das ques-
tões prioritárias a serem atendidas pela ação policial; da participação da
sociedade na definição de estratégias de ação por meio do emprego da
chamada Metodologia de Solução de Problemas. Exatamente por isso, o
policiamento comunitário não pode ser entendido como um programa
ou uma estratégia, e sim como um processo de reforma organizacional
da polícia, visto que envolve mudança em sua estruturação, nos fluxos
dos processos decisórios e, ainda, na natureza dos mecanismos utilizados
para o diagnóstico dos problemas que suscitam intervenção policial. No
âmbito da PMERJ, o modelo de policiamento comunitário é utilizado pela
primeira vez como estratégia de reforma da organização, de maneira a
adequá-la às demandas do regime democrático. Mas, com o passar dos

Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro · 


anos, essa categoria passa a ganhar novas conotações, ora enfatizando
apenas a dimensão de colaboração com a comunidade para recebimento
de informações privilegiadas, ora significando programas de policiamento
em áreas subnormais, o nome técnico dado às áreas de favela, também
chamadas de comunidade.
Os modelos de políticas de segurança pública, por sua vez, dizem
respeito às orientações políticas de cada governador e, por isso, tendem a
ser transformados em interstícios de quatro anos em razão da alternância
verificada nesse cargo. Geralmente, políticas repressivas ligam-se ao mo-
delo de policiamento profissional, destacando a importância da prisão de
criminosos; ao passo que políticas preventivas vinculam-se ao modelo de
policiamento comunitário, enfatizando a não ocorrência de crimes a partir
da solução dos problemas que levam à emergência desse fenômeno.6
No entanto, repressão e prevenção podem se conjugar a partir da
concatenação de princípios do modelo de policiamento tradicional com
práticas do policiamento comunitário, sendo esse um dos modelos de
política de segurança pública adotados por alguns governos do estado
do Rio de Janeiro. Conforme indica o Quadro 1, em boa parte da história
recente da PMERJ, há uma preocupação em circunscrever a discriciona-
riedade dos policiais de maneira bastante explícita (o que ocorre a partir
do emprego das Notas de Instrução,7 típicas do modelo de policiamento
profissional), com forte ênfase na construção de pontes com a comuni-
dade, para acesso a informações sobre crimes e criminosos e solução de
problemas que levem à emergência do delito (estratégias típicas do po-
liciamento comunitário). É por conta dessa combinação de modelos que
mesmo em períodos de repressão e emprego de estratégias de policiamento
profissional podem-se encontrar referências às categorias comunidade e
policiamento comunitário.

6 Para uma análise das agendas de segurança pública no estado do Rio de Janeiro, ver
CARNEIRO, Leandro Piquet. “Mudança de guarda: As agendas da segurança pública
no Rio de Janeiro.” Revista Brasileira de Segurança Pública, Ano 4, n.7, 2010, pp.48-71.
7 Notas de Instrução: instituída em 1983, constitui-se de documento operacional
para a divulgação de assuntos de interesse policial, bem como para a adoção de pro-
cedimentos padronizados por todos os policiais militares empregados na realização de
um determinado serviço.

 · Sobre o significado do policiamento comunitário


Com o intuito de compreender o contexto no qual as categorias “co-
munidade” e “policiamento comunitário” eram empregadas nos BIs da
PMERJ foi realizada uma indexação dessas publicações de acordo com
quatro categorias principais: 1) programa de ação (instalação de postos,
regulamentações do programa, conformação de conselhos comunitários,
ações em favelas); 2) formação e treinamento (cursos, seminários e pales-
tras); 3) disciplina policial (elogios e punições); 4) elogios (agradecimento
da comunidade e homenagens desta ao policiamento comunitário, bem
como menções honrosas da própria corporação ao bom serviço comuni-
tário de determinados policiais).
Essas quatro categorias foram escolhidas como indexadores por es-
tarem eminentemente conectadas com os elementos necessários para a
transformação do modelo policial – de militar stricto sensu para profis-
sional e, em seguida, para comunitário. Nesse processo, primeiramente
os policiais devem ser informados sobre a existência de um novo modelo
de policiamento, que se consubstanciará em um dado programa de ação,
a ser regido de acordo com determinados pressupostos. Em seguida, é
preciso socializar os policiais nessa nova ideologia a partir de um pro-
grama consistente de formação e treinamento, composto por cursos, es-
tágios, seminários e palestras levando à emergência de um novo sistema
de crenças, valores e atitudes em toda a tropa. Esse, contudo, apenas se
institucionalizará se vier acompanhado de um novo código de condu-
ta que passe a reforçar positivamente ações em consonância com tais
dispositivos (elogios) e rechaçar aquelas em desacordo com a filosofia
(disciplina policial).
Portanto, essas quatro categorias podem ser entendidas como tipos
ideais que ajudam a compreender o processo de reforma das organizações
policiais, pela via da institucionalização do modelo de policiamento co-
munitário. Então, após sua definição, os BIs mapeados foram codificados
em cada uma delas e, em seguida, organizados por período, tal como
disposto na Tabela 1:

Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro · 


Tabela 1 – Quantidade de menções que cada categoria
de policiamento comunitário recebeu, por período
governamental em questão, de acordo com o
mapeamento dos BIs da PMERJ (1980-2000)

Natureza da menção
Governador Programas Formação e Justiça e Total
Elogios
de ação treinamento disciplina
Chagas Freitas 18 4 3 17 42
Leonel Brizola 42 27 5 23 97
Moreira Franco 5 147 135 7 294
Leonel Brizola 25 94 103 1 223
Nilo Batista 13 16 4 4 37
Marcello Alencar 29 45 94 7 175
Anthony Garotinho 25 52 39 6 122
Total 157 385 383 65 990

De acordo com a Tabela 1, com exceção dos dois primeiros governos,


as categorias com maior quantidade de menções são as relativas a formação
e treinamento e justiça e disciplina. Esse fato reforça a ideia de que o modelo
de “policiamento comunitário” foi empregado como estratégia de reforma
da corporação, especialmente pela via de transformação da gramática8
mobilizada pelos policiais em sua ação.
Considerando esse cenário, a proposta deste trabalho é compreender
a genealogia do termo “policiamento comunitário” no âmbito da PMERJ a
partir da apreensão dos accounts dados para essa categoria em cada período
governamental. Trata-se de dizer que a mudança de governador implica na
troca do comando da corporação policial militar e, por conseguinte, em
alterações no modelo de política de segurança pública, na aplicabilidade
de programas de policiamento comunitário e, até mesmo, no significado
do termo no âmbito das quatro categorias analisadas.

8 Na forma como Boltanski e Thévenot empregam esse termo. Ver BOLTANSKI, Luc;
Thévenot, Laurent.. “The Sociology of Critical Capacity.” European Journal of Social
Theory, vol.2, n.3, 1999, pp.359-377.

 · Sobre o significado do policiamento comunitário


Sobre accounts, momentos críticos e a necessidade de
justificar determinadas realidades

A ideia de analisar as justificativas empregadas pelos indivíduos para a


forma como eles agem em sociedade é cara, entre outras, à corrente que
se convencionou chamar de etnometodologia. Trata-se de perspectiva
que tem como objeto de análise o discurso de qualquer agente, o qual
traria explicações sobre como e por que os indivíduos agem como agem
e quais são as situações críticas que, por causarem algum tipo de ruptura
com a regularidade, precisam ser objeto de elaboração discursiva para se
evitar uma crise social.9
Nesse cenário, o account emerge como categoria que ajuda a identi-
ficar esses processos e os seus conteúdos. Scott e Lyman 10 definem esse
termo como “uma afirmação feita por um ator social para explicar um
comportamento imprevisto ou impróprio – seja este comportamento
seu ou de outra pessoa, quer o motivo imediato para afirmação parta do
próprio ator ou de alguém mais”. Segundo os autores, os accounts seriam
elementos da linguagem que mereceriam uma maior atenção da análise
sociológica por trazerem em seu conteúdo alguma satisfação de por que os
indivíduos agiram como agiram, em uma espécie de prestação de contas
sobre as motivações e sobre a adequabilidade da ação social. Contudo, para
que esse recurso de linguagem possa funcionar de maneira adequada, no
sentido de viabilizar interações de alguma natureza em detrimento de um
sentimento de embaraço11 de que nos fala Goffman,12 alguns pressupostos
devem ser verificados.

9 Nesse sentido, ver BEATO, Claudio. “Etnometodologia e o senso comum em cena.”


Teoria e Sociedade, vol.1, n.2, 1997.
10 SCOTT, Marvin B.; Lyman, Stanford M. “Accounts.” Dilemas: Revista de Estudos de
Conflito e Controle Social, vol.1, n 2, 2008 [1968], pp.139-172.
11 De acordo com Goffman, o embaraço nada mais é do que o sentimento que deriva
do descompasso entre a projeção social realizada por um indivíduo e eventuais acon-
tecimentos que podem emergir durante o desenrolar de uma interação que a contra-
diz. Nesse sentido, o embaraço gera uma crise do ponto de vista da continuidade da in-
teração social porque coloca em dúvida a reivindicação que o indivíduo elaborou sobre
uma dimensão do seu self, minando os pressupostos que sustentavam uma determina-
da situação e abrindo caminho para um possível descrédito social. Nesse sentido, ver
GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
12 GOFFMAN, op.cit.

Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro · 


Primeiramente, os accounts só podem ser manejados em situações não
rotineiras. Isso significa que cursos de ação e de interação inesperados de-
vem ser objeto de racionalização, de maneira a transformar o excepcional
em uma espécie de regra, tornando-se, dessa forma, algo tolerado. Dito de
outra maneira, esse recurso permite a construção de pontes entre o vão
gerado pela dissonância da ação e da expectativa de ação dentro de uma
dada interação, evitando-se, assim, o surgimento de conflitos.
Essas situações não rotineiras são denominadas por Boltanski e Thé-
venot13 de “momentos críticos”, por se constituírem em circunstâncias
nas quais aquele que age em desacordo com o esperado deve ser capaz de
suportar a crítica dos que agem da maneira esperada e ainda justificar a
inovação. Trata-se, então, de ocasiões nas quais as pessoas envolvidas
encontram-se sujeitas a um imperativo de justificação para que a norma-
lidade da ordem não venha a ser quebrada. Logo, o account apenas pode
ser manejado após a ocorrência de um momento crítico, com vistas a re-
tomar a normalidade da interação, pela apresentação de uma justificativa
plausível para a ação em desacordo com o esperado.
Em segundo lugar, para que o account apresentado pelo ator seja cla-
ramente compreendido por seu interlocutor, é necessário que ambos
estejam socializados nas dimensões acionadas pela justificativa. Isto é,
o account não gerará conflito se os indivíduos envolvidos nessa interação
dominarem os códigos mobilizados, tanto do ponto de vista da termi-
nologia, como do ponto de vista das expectativas derivadas do status de
cada ator. Ou seja, em que pese a finalidade dos accounts em viabilizar
explicações para situações excepcionais, o seu adequado funcionamento
está condicionado ao compartilhamento do mesmo sistema de crenças,
valores e atitudes pelos indivíduos que se encontram vinculados em uma
determinada interação social mediada pelo uso da linguagem.
Em certa medida, os accounts apenas podem se consubstanciar em
explicações válidas se forem capazes de se converterem no que Wright
Mills14 denomina vocabulários de motivos. De acordo com esse autor,
a linguagem, ao ser expressada por alguém diante de outrem, pode ser

13 BOLTANSKI; Thévenot, op.cit.


14 MILLS, C. Wright. “Situated actions and vocabularies of motive.” American Socio-
logical Review, vol.5, n.6 1940, pp.904-913.

 · Sobre o significado do policiamento comunitário


tomada como um indicador de ações futuras, posto que apresenta moti-
vos ou justificativas para uma dada ação. No entanto, essa promessa de
programas de ação apenas pode ser adequadamente compreendida se for
analisada de acordo com os elementos que estruturam o próprio motivo,
quais sejam: 1) as condições gerais sob a imputação de motivos ocorre; 2)
a natureza dos motivos; 3) as justificativas para a verbalização de certos
motivos em detrimento de outros; 4) os mecanismos de ligação entre
vocabulários de motivos e sistemas de ação.
O que Wright Mills15 pretende problematizar é que os motivos são
palavras, mas, ao serem irrompidos em um dado contexto, transformam-
-se em atos ou programas de ação, cuja aderência a comportamentos está
relacionada a sua capacidade de se adequar à situação que suscita o seu
emprego. Trata-se de dizer que, em um contexto de interação social, um
determinado agente emprega o vocabulário de motivo com o objetivo de
suscitar em seu interlocutor a memória de uma série de regras e normas
de ação que poderiam ser empregadas na situação sobre a qual se discursa.
Em última instância, ao suscitar um motivo qualquer, o que o autor do
discurso pretende é que ele seja aceito sem maiores questionamentos, que
se transforme em paradigma de orientação para atos presentes, futuros
e, por conseguinte, passados.
Isso significa dizer que, em distintas situações da vida cotidiana, o
que se pretende com o acionamento do vocabulário de motivos é mudar
o curso de ação rotineiro, a partir da apresentação de uma justificativa
para a inovação. Então, para que esse tipo de motivo possa se converter
em uma ação, o seu interlocutor deve apelar para elementos do discurso
que contemplem de antemão as possíveis críticas que ele pode ensejar,
bem como a participação de outros grupos sociais neste novo programa
de ação. A partir do emprego dessas táticas, o motivo ensejado pode ser
aceito como válido, legitimando-se como um vocabulário de motivos e,
por conseguinte, consubstanciando-se em estratégia de ação. Portanto,
é o jogo de palavras manejado pelo interlocutor que faz com que o motivo
apresentado para a inovação possa se consubstanciar em “instrumentos
sociais, ou seja, dados por meio de cuja modificação o agente será capaz
de influenciar a si mesmo e aos outros”.16 É nessa operação que emerge

15 Idem.
16 Idem.

Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro · 


o vocabulário de motivos, que passa a orientar a ação dos indivíduos de
acordo com as situações em que são manejados.
Logo, o presente estudo procura aplicar a ideia de vocabulário de
motivos para compreender como a categoria policiamento comunitário pas-
sa a se consubstanciar em motivos ordenados que têm como finalidade
orientar e estabilizar o comportamento dos policiais militares em deter-
minados contextos. A grande questão que se coloca nessa pesquisa é o
fato de o policiamento comunitário ser empregado como elemento chave
de um vocabulário de motivo em disputa com outros dois – o centrado no
policiamento militar stricto sensu e o centrado no policiamento tradicional.
A disputa entre essas gramáticas morais, no entender de Wright Mills,
é algo característico das sociedades urbanas, nas quais os “vocabulários
de motivos variados e em competição operam sobrepondo os seus limites
e as situações a que eles são apropriados não são claramente definidas”.17
Ou seja, em uma sociedade em constante mudança, “motivos outrora in-
questionados para situações definidas são agora colocados em questão”.18
Assim, quando motivos antigos são acionados com novas roupagens, cabe
ao agente que discursa convencer seu interlocutor de que o vocabulário
apresentado nesse momento possui maior clareza quanto às situações em
que a ação deve se dar e são mais adequados às características atuais da
estrutura social na qual ele é ensejado.
Logo, no contexto de pesquisa, foram analisados não apenas os con-
textos para emprego da categoria policiamento comunitário, mas também as
justificativas apresentadas para essa nova forma de ação tanto no que diz
respeito à sua maior clareza em termos de programa de ação quanto ainda
o processo de reconstrução de regras e normas, de balizas para a ação, pela
via de recursos de treinamento e formação, justiça e disciplina e elogios.
De certa forma, Scott e Lyman,19 seguindo a inspiração do filósofo
John Austin,20 dão uma roupagem mais clara aos vocabulários de moti-
vos em disputa ao classificarem o account em duas modalidades distintas
dependendo dos fins visados, desculpas ou justificativas: “Justificativas

17 Idem.
18 Idem.
19 SCOTT; Lyman, op.cit.
20 AUSTIN, John L. “A Plea for Excuses.” In: Philosophical Papers. Londres: Oxford
University Press, 1979 [1956-1957].

 · Sobre o significado do policiamento comunitário


são accounts em que alguém aceita a responsabilidade pelo ato em questão,
mas renega a qualificação pejorativa associada a tal ato. (...) Desculpas são
accounts em que alguém admite que o ato em questão seja ruim, errado
ou inapropriado, mas nega ter plena responsabilidade sobre ele.” Dito de
outra maneira, os motivos manejados em um dado discurso podem estar
em disputas com outros e a capacidade em ele ser aceito como uma baliza
válida para a ação é derivada de suas qualidades de justificativa. Quando
essas estão ausentes, o account se converte em uma desculpa e, por isso,
pode ser ignorado pelos interlocutores, por lhe faltar a capacidade de se
consubstanciar em uma estratégia de ação. Então, a inovação apenas
será transformada em uma ação efetiva, se os motivos empregados para
tanto forem entendidos por seus interlocutores como do tipo justificativa.
Por outro lado, quando se trata de uma falha na condução da situação,
o account apresentado é do tipo desculpa e, assim, os interlocutores difi-
cilmente passarão a guiar a sua ação pelo vocabulário de motivos que é
a eles apresentado.21
Os momentos críticos a serem analisados nesta pesquisa são as mu-
danças de governo, que criam o cenário ideal para a alteração dos mo-
delos de policiamento implantados pela PMERJ. Assim, sempre que um
programa de ação policial é apresentado como inovação,22 accounts do
tipo justificativas devem ser mobilizados para que os policiais aceitem a
mudança e passem a agir de acordo com a nova filosofia. Para que esse
processo possa ser realizado sem maiores conflitos, toda a tropa deve ser
socializada nos conceitos que estruturam o conteúdo do modelo de po-
liciamento que se pretende institucionalizar, o que apenas pode ocorrer
com formação e treinamento, bem como reforços positivos (elogios) e
negativos (punições) à nova estratégia de ação.
Nesse ponto, é importante destacar a relevância das dimensões de
formação e treinamento, bem como das punições e elogios para o sucesso
da aceitação do account. Nos termos de Scott e Lyman,23 são essas práticas
que viabilizam a transformação da expressão em justificação, ou seja,

21 Para uma discussão substantiva da distinção entre desculpas e justificações, ver


WERNECK, Alexandre. A desculpa: As circunstâncias e a moral das relações sociais. Rio
de Janeiro, Civilização Brasileira, 2012.
22 No sentido goffmaniano do termo.
23 Idem.

Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro · 


vocabulários que procuram acionar regras e normas de ação condizentes
com a inovação que se pretende institucionalizar. Em última instância,
nos termos dos autores:

as justificações são vocabulários socialmente aprovados que neutralizam


um ato ou suas consequências quando ambos são questionados. (...) justi-
ficar um ato é afirmar o seu valor positivo em face à alegação do contrário.
As justificações reconhecem um sentido geral em que o ato em questão
não é permitido, mas alegam que uma ocasião em particular permite ou
mesmo exige o tal ato.

Assim, as justificações procuram acionar nos indivíduos memórias


sedimentadas culturalmente, com o objetivo de maximizar as chances
de aceitação daquela explicação que é dada e, por conseguinte, garantir
a legitimidade da ação inovadora que se realiza. Essa diferenciação é
importante, nos termos discutidos por Werneck,24 porque é a partir do
momento que os indivíduos acatam o account mobilizado para se justificar
a situação inusitada que essa deixa de ser considerada como elemento de
ruptura para ser considerada como elemento de reforço de determinadas
crenças, valores e atitudes.
Nos termos da análise proposta, entende-se que a cada momento
crítico (mudança de governo) a categoria “policiamento comunitário” é
manejada com um significado diferenciado. Como esse novo sentido do
termo pode causar algum tipo de estranheza e rechaço, o novo conteúdo
é apresentado publicamente à tropa a partir de justificações consolidadas
em um programa de ação voltado para a redução do crime. Para que a cor-
poração possa compreender esse novo sentido e não apresentar críticas
que levem ao seu questionamento, são implantadas políticas de formação e
treinamento específicas para praças (policiais de linha de frente) e oficiais
(policiais de comando). Por fim, para que todos os policiais venham a agir
de acordo com o novo sentido dado à categoria, são engendrados mecanis-
mos de punição (justiça e disciplina) e recompensas (elogios), reforçando
o conteúdo do account empregado na apresentação do novo conceito de
“policiamento comunitário”.

24 WERNECK, op.cit.

 · Sobre o significado do policiamento comunitário


Nesses termos, importa saber qual a acepção doutrinária da categoria
“policiamento comunitário” para, dessa forma, se compreender em que
medida os accounts mobilizados a cada momento crítico se aproximam
ou se distanciam do significado original do termo.

O significado doutrinário de policiamento comunitário

Desde a década de 1990, o policiamento comunitário tem sido apontado


como grande solução para os problemas comumente verificados na pres-
tação do serviço policial; e, por isso, o termo se tornou de uso obrigatório
por qualquer organização policial que se pretende moderna. De acordo
com Skogan,25 podem ser classificadas como policiamento comunitário as
iniciativas estruturadas com base em: 1) descentralização dos processos
de tomada de decisão, os quais passam para as mãos dos policiais de linha
em vez de ficarem a cargo de seus comandantes; 2) colaboração da comu-
nidade no mapeamento dos problemas e na definição das questões prio-
ritárias a serem atendidas pela ação policial; e 3) definição de estratégias
de ação por meio do emprego da Metodologia de Solução de Problemas.
Em que pese a plasticidade que esse conceito terminou por assumir em
razão do próprio processo orientador de sua constituição, do ponto de vista
doutrinário é consenso que ele não pode ser definido pelas atividades,
mas sim em virtude das estratégias assumidas pela organização policial
para adaptar o modelo profissional às características do ambiente em que
a polícia vai atuar. Nesse sentido, o resumo apresentado por Cerqueira
(Quadro 2)26 é bastante ilustrativo no que se refere às diferenças entre o
modelo de policiamento profissional e o comunitário:

25 SKOGAN, Wesley G. “An Overview of Community Policing: Origins, Concepts


and Implementation.” In: Williamson, Tom (org.). The Handbook of Knowledge-Based
Policing: Current Conceptions and Future Directions. Chicago: John Willey & Sons, 2008,
pp.43-57.
26 CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. O futuro de uma ilusão: o sonho de uma polícia
cidadã. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/Fundação Ford/Freitas Bastos,
2001.

Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro · 


Quadro 2 – Comparativo entre a metodologia de trabalho
policial profissional e a comunitária
Quesito Profissional Comunitário
Fonte de A lei e o profissionalismo Além da lei e do
autoridade – os profissionais da profissionalismo, acrescenta
polícia têm como objetivo o aspecto político,
principal a imposição da particularmente o referente
lei. ao apoio comunitário.
Função A principal função da Prioriza a prevenção
polícia é o controle do do crime por meio da
crime. metodologia de resolução de
problemas, sem abandonar o
controle do crime.
Planejamento É centralizado, adotando Utiliza estratégias
operacional as prescrições do modelo descentralizadas, forças-
clássico. tarefa ou modelo matricial e
outras técnicas advindas das
concepções modernas de
administração.
Demandas São oriundas da central São oriundas das análises
de operações e, por isso, dos problemas que afetam as
todas as chamadas devem comunidades.
ser prontamente atendidas.
Relacionamento Impera o relacionamento Imperam as consultas
com o ambiente imparcial, neutro e distante à população; atenção
dos cidadãos. às preocupações da
comunidade, sem desprezar
os valores da lei e do
profissionalismo.
Tática e Policiamento ostensivo Policiamento ostensivo a pé,
tecnologia preventivo pronto para solução de problemas e uso
atender às chamadas da de outras metodologias que
central de operações. possam servir de solução
para a prevenção do crime.
Medição de Dados sobre a prisão de Dados sobre qualidade
resultados criminosos e do controle de vida, sentimento de
de crimes. segurança e satisfação dos
cidadãos.

A questão que se apresenta é que muitas organizações policiais passa-


ram a compreender essas duas metodologias de ação policial como se uma
estivesse em evidente oposição à outra, e não de forma complementar.
Afinal, apenas pode existir modelo de policiamento comunitário nas áreas
em que o modelo de policiamento profissional chegou ao seu esgotamento
e, assim, apesar de produzir ordem, não é capaz de disseminar o senti-
mento de segurança em razão do distanciamento excessivo em relação à

 · Sobre o significado do policiamento comunitário


população policiada. Ou seja, modelo profissional e modelo comunitário
são, na verdade, duas faces da mesma moeda. É necessária uma burocra-
cia estruturada para que a ação policial seja substantivamente previsível,
mas é indispensável certa flexibilidade para a definição de cursos de ação
diferenciados a fim de viabilizar o atendimento às variadas demandas da
comunidade.
No caso do Rio de Janeiro, a especificidade é decorrente do significado
atribuído ao termo policiamento comunitário, que vai sendo progressi-
vamente transformado com o passar dos anos e se distanciando do seu
sentido original. Essa mudança pode ser percebida a partir da análise dos
accounts mobilizados para justificar o emprego da categoria nas publica-
ções dos BIs da PMERJ que fazem menção a programas de ação, planos
de formação e treinamento, processos de justiça e disciplina e elogios à
ação policial.

Os múltiplos significados de policiamento comunitário na


PMERJ (1980-2000)

Este estudo tem como momento crítico inicial a eleição indireta de Chagas
Freitas a governador do estado do Rio de Janeiro para o período 1979-1983,
o que significou um redirecionamento das políticas do estado, com vistas
a preparar a máquina estatal para a mudança de regime prometida pelo
general Figueiredo.27 Assim, em 20 de março de 1979 assume o comando-
-geral da PMERJ o coronel Anibal de Melo Henriques, que, apesar de
suas boas relações com o Exército, começa a preparar a instituição para
o retorno à democracia.

27 Nos termos do Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro (DHBB), “Chagas Freitas to-
mou posse no governo fluminense em 15 de março de 1979, no mesmo dia em que o ge-
neral João Batista Figueiredo assumiu a presidência da República e renovou o compro-
misso de dar prosseguimento à política de abertura inaugurada por seu antecessor.”
In: CPDOC/FGV. “Chagas Freitas (verbete).” Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro
(DHBB). Rio de Janeiro: FGV. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/busca/Busca/
BuscaConsultar.aspx

Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro · 


É nesse momento que se constata a primeira menção à categoria
“comunidade”, empregada como uma ação que deveria ser empreendida
pelos policiais para promover a articulação entre militares e civis, com
vistas a conter a crescente criminalidade (BI n.36, 25/03/1980, p.20).
Como forma de justificar a efetividade desse programa de ação, são pu-
blicadas cartas elogiando as intervenções realizadas nessa lógica e os
resultados alcançados por essa iniciativa (BI n.61, 03/05/1980, p.39).
Nessa situação, não é possível afirmar que o termo fosse empregado
para significar policiamento comunitário, sendo a justificativa para o seu
manejo a necessidade de aumentar a efetividade das ações policiais na
prisão de criminosos e, por conseguinte, na redução da quantidade de
crimes praticados em determinadas áreas pela via da aproximação com
a comunidade.
Em 11 de fevereiro de 1981, com aprovação do alto-comando do Exérci-
to, é empossado no cargo de comandante-geral da PMERJ o coronel Nilton
de Albuquerque Cerqueira.28 No começo de sua administração, é publicada
uma recomendação aos policiais sobre os procedimentos a serem obser-
vados durante as abordagens, as quais deveriam seguir os “princípios de
urbanidade”, ou seja, deveriam “ser feitas de forma enérgica, mas sempre
tratando bem as pessoas revistadas e/ou detidas de forma que não sejam
cometidas arbitrariedades” (BI n.33, 01/04/1981, p.2).
Nas publicações seguintes fica evidente que as palavras de ordem
desse comando eram policiamento profissional, algo que seria institu-
cionalizado a partir da contenção da ação policial pelos ditames legais.
Assim, são publicadas as Normas Gerais de Ação 001, disciplinando os
procedimentos a serem utilizados nos casos de menores abandonados (BI
n.183, 11/11/1981, p.17); as Normas Gerais de Ação 002, que estabelecem a
obrigatoriedade de ação integrada dos diversos escalões de comando da
organização policial (BI n.183, 11/11/1981, p.18); as Normas Gerais de Ação
003, que determinam que todos os comandos façam estudos em suas áreas
de atuação, para aumento do contato entre a PM e as Comunidades (BI
n.186, 16/11/1981, p.2). Esses estudos subsidiariam a implantação de Postos
de Policiamento Comunitário (PPC) em toda a cidade do Rio de Janeiro e,

28 Também secretário de segurança pública no governo Marcelo Allencar.

 · Sobre o significado do policiamento comunitário


dessa forma, dotariam a organização policial de melhores táticas para a
contenção da criminalidade pela via da aproximação com a comunidade,
para recebimento de informações sobre crimes e criminosos. As primei-
ras localidades beneficiadas com os PPCs foram os conjuntos Cesárão e
Urucânia (BI n.198, 02/12/1981, p.2).
Pode-se afirmar, portanto, que é com a instituição dos PPCs que
a categoria policiamento comunitário passa a existir para a organização,
significando um programa de ação com o objetivo de instalar um posto
policial em uma determinada área, como forma de recolher informações
da comunidade sobre crimes e criminosos, aumentando, dessa maneira,
a efetividade das ações policiais repressivas.
Em fevereiro de 1982, ocorre nova troca de comando da PMERJ, que
passa a ser gerida pelo coronel Edgard da Silva Pingarilho Filho, que pro-
curará enfatizar a categoria policiamento comunitário nos mesmos limites
do significado anterior. Logo, são observadas publicações que elogiam
os policiais militares que, em sua atividade prática, procurem atender
às demandas da comunidade por maior policiamento, especialmente,
quando da realização de determinados eventos (BI n.63, 25/05/1982,
p.48).
Nesse ano aparecem ainda menções quanto ao uso do policiamento
comunitário como forma de acesso às informações sobre guardas parti-
culares ilegais (BI n.53, 10/05/1982, p.29) e sobre policiais militares que
agiam em desacordo com as Normas Gerais de Ação e o regulamento
disciplinar da corporação (BI n.72, 07/06/1982, p.51). Era preciso que a
comunidade auxiliasse na identificação dos envolvidos nessas práticas
para que elas pudessem ser coibidas, tal como determinado pelo Estado-
-Maior do Exército.
A preocupação com a institucionalização do policiamento profissio-
nal é evidente. São verificadas publicações determinando que todas as
comunidades sejam abordadas de acordo com os ditames legais, estabe-
lecendo a obrigatoriedade de as diligências policiais ocorrerem em estrita

Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro · 


consonância com o Código de Processo Penal, nos termos dos artigos
240,29 241,30 243,31 245,32 24833 e 24934 (BI n.73, 08/06/1982, p.28).
De maneira geral, as justificações que acompanham o emprego dos
termos comunidade e policiamento comunitário nos BIs publicados ao longo
do governo Chagas Freitas indicam que, nesse período, a preocupação

29 Art. 240 – CPP: “A busca será domiciliar ou pessoal. § 1o Proceder-se-á à busca do-
miciliar, quando fundadas razões a autorizarem, para: a) prender criminosos; b) apreen-
der coisas achadas ou obtidas por meios criminosos; c) apreender instrumentos de fal-
sificação ou de contrafação e objetos falsificados ou contrafeitos; d) apreender armas e
munições, instrumentos utilizados na prática de crime ou destinados a fim delituoso; e)
descobrir objetos necessários à prova de infração ou à defesa do réu; f) apreender cartas,
abertas ou não, destinadas ao acusado ou em seu poder, quando haja suspeita de que o
conhecimento do seu conteúdo possa ser útil à elucidação do fato; g) apreender pessoas
vítimas de crimes; h) colher qualquer elemento de convicção. § 2o Proceder-se-á à bus-
ca pessoal quando houver fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida
ou objetos mencionados nas letras b a f e letra h do parágrafo anterior.”
30 Art. 241 – CPP: “Quando a própria autoridade policial ou judiciária não a realizar
pessoalmente, a busca domiciliar deverá ser precedida da expedição de mandado.”
31 Art. 243 – CPP: “O mandado de busca deverá: I - indicar, o mais precisamente
possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário
ou morador; ou, no caso de busca pessoal, o nome da pessoa que terá de sofrê-la ou os
sinais que a identifiquem; II - mencionar o motivo e os fins da diligência; III - ser subs-
crito pelo escrivão e assinado pela autoridade que o fizer expedir. § 1o Se houver ordem
de prisão, constará do próprio texto do mandado de busca. § 2o Não será permitida a
apreensão de documento em poder do defensor do acusado, salvo quando constituir
elemento do corpo de delito.”
32 Art. 245 – CPP: “As buscas domiciliares serão executadas de dia, salvo se o mora-
dor consentir que se realizem à noite, e, antes de penetrarem na casa, os executores
mostrarão e lerão o mandado ao morador, ou a quem o represente, intimando-o, em
seguida, a abrir a porta. § 1o Se a própria autoridade der a busca, declarará previamente
sua qualidade e o objeto da diligência. § 2o Em caso de desobediência, será arrombada
a porta e forçada a entrada. § 3o Recalcitrando o morador, será permitido o emprego
de força contra coisas existentes no interior da casa, para o descobrimento do que se
procura. § 4o Observar-se-á o disposto nos §§ 2o e 3o, quando ausentes os moradores,
devendo, neste caso, ser intimado a assistir à diligência qualquer vizinho, se houver e
estiver presente. § 5o Se é determinada a pessoa ou coisa que se vai procurar, o mora-
dor será intimado a mostrá-la. § 6o Descoberta a pessoa ou coisa que se procura, será
imediatamente apreendida e posta sob custódia da autoridade ou de seus agentes. § 7o
Finda a diligência, os executores lavrarão auto circunstanciado, assinando-o com duas
testemunhas presenciais, sem prejuízo do disposto no § 4o.”
33 Art. 248 – CPP: “Em casa habitada, a busca será feita de modo que não moleste os
moradores mais do que o indispensável para o êxito da diligência.”
34 Art. 249 – CPP: “A busca em mulher será feita por outra mulher, se não importar
retardamento ou prejuízo da diligência.”

 · Sobre o significado do policiamento comunitário


maior dos comandantes da PMERJ era a de garantir a sobrevivência da
corporação com a mudança de regime. Era preciso, então, transformar
a organização policial militar stricto sensu em uma organização policial
profissional, nos termos apresentados na seção anterior. Esse argumento
ganha substância quando se verifica que, nesse período, foram publicadas
distintas normas gerais visando fazer com que os policiais tivessem como
objetivo a repressão ao crime nos termos previstos pela lei.
A comunidade, contudo, emerge como ator de importância para a
efetividade das ações policiais, especialmente para as que resultavam em
prisão. Afinal, era essa “comunidade” que detinha informações sobre a
dinâmica do crime e as características dos criminosos, e não a polícia.
Para que o intercâmbio de dados pudesse se dar de maneira efetiva, nada
melhor que a instalação de unidades operacionais próximas aos indivíduos
policiados, objetivo alcançado com a implantação dos primeiros PPCs. Es-
tava inaugurada a categoria policiamento comunitário no âmbito da PMERJ.
Por fim, é importante destacar que durante o período Chagas Freitas
não são desenvolvidas iniciativas substantivas de formação e treinamento
policial para socialização da tropa no significado desse termo-chave. Além
disso, poucas foram as publicações na seção Justiça e Disciplina rechaçan-
do a atuação policial em desacordo com os princípios de “policiamento
comunitário”, o que indica que apesar da “inovação” poucos foram os que
puderam compreendê-la em todas as suas dimensões. Portanto, durante
os anos 1979-1983, a expressão não se consubstanciava plenamente em
um account em razão do seu desconhecimento dos policiais militares
sobre o seu significado.
Em março de 1983, Leonel Brizola toma posse no cargo de governador
do estado do Rio de Janeiro, e suas primeiras medidas serão no sentido de
conceder maior autonomia à PMERJ para condução de suas próprias polí-
ticas, sem que essas precisassem ser referendadas pelo Exército, tal como
prescrito nas regras do regime ditatorial. Para viabilizar esse processo
de mudança, o governador recém-empossado realizou certa engenharia
institucional, pois, como o Brasil ainda vivia o período de ditadura mili-
tar (1964-1985), os ocupantes desses cargos deveriam ser aprovados pelo
Exército, tal como previsto pelo decreto-lei n.667 de 1969.
Para escapar dessa regra, Brizola extinguiu a Secretaria de Segurança,
que coordenava a ação da Polícia Militar e da Polícia Civil, dando lugar ao

Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro · 


aparecimento das secretarias de Polícia Civil e Polícia Militar e criando
os cargos de secretário extraordinário da Polícia Judiciária e dos Direitos
Civis e de secretário extraordinário de Polícia Militar (BI n.20, 18/02/1983,
pp.12-13). O efeito mais imediato dessa medida foi a não sujeição do estado
do Rio de Janeiro à aprovação do nome do coronel Cerqueira pelo ministro
do Exército, afinal, não existia mais um Comando-Geral da Polícia Militar
e sim uma Secretaria de Estado.
Do ponto de vista da produção da PMERJ, essa maior autonomia da
corporação para a decisão de sua política é sentida no conteúdo das pu-
blicações no BI. Vários são os elogios às operações que procuram respon-
der aos chamados da população prevenindo a ocorrência de delitos, em
detrimento daquelas visando desarticular grupos de criminosos a partir
de sua prisão (BI n.63, 24/05/1983, p.17). Além disso, tornam-se cada vez
mais frequentes as declarações sobre as medidas tomadas pela corporação
para maior controle da força policial e, por conseguinte, em nome de uma
ação imediata e “exemplar” diante das denúncias de abusos e violências
praticadas por esses agentes da lei (BI n.112, 14/06/1984, p.45).
A categoria policiamento comunitário é empregada, então, para justificar
a necessidade de a PM deixar de ser uma agência do regime para se con-
substanciar em uma agência prestadora de serviços públicos condizentes
com as demandas da população. Para tanto, a ênfase dada pelo comando se
deposita sobre a formação e o treinamento antes mesmo da apresentação
dos programas de ação. Assim, os oficiais foram enviados em “viagens de
estudos” a países diversos e, em todos eles, a tônica era o mapeamento
de iniciativas que pudessem ser replicadas no Rio de Janeiro com vistas
a prevenir o crime a partir da aproximação da PMERJ com a comunidade
(BI n.140, 12/09/1983, p.17).
Em seguida, com o retorno desses policiais, foram estruturados cursos
de formação nessa temática (BI n.93, p.3, de 18/05/1984). Nesse período, a
PMERJ procura também incentivar a execução de experimentos de poli-
ciamento baseados na articulação com lideranças comunitárias em geral
e religiosas em especial, a partir da publicação de elogios aos resultados
que tais ações traziam para a legitimidade da corporação e para a própria
prevenção ao crime, inclusive, o cometido pelos próprios policiais (BI
n.112, p.45, de 14/06/1984).
É nesse momento que se prevê a constituição dos conselhos comunitá-
rios, que se encarregariam de construir e avaliar as ações policiais em cada

 · Sobre o significado do policiamento comunitário


um dos bairros da cidade e municípios do estado (BI n.118, 25/06/1984,
p.37). Para tanto, tais instâncias contariam com representantes da so-
ciedade civil (por meio de associações de moradores, de comerciantes
e de instituições educacionais), da PMERJ (por meio do comandante do
Batalhão) e da delegacia local (na figura do delegado seccional).
Com essa mesma finalidade, a corporação se encarrega de realizar
palestras por meio de seu comandante35 no seminário Rio contra o Crime,
que contou com especialistas em segurança pública de diversas partes do
mundo, acadêmicos nacionais, representantes comunitários e policiais
(BI n.177, 17/09/1984, pp.54-64). A partir dos insumos coletados neste
evento, foi inaugurado o “Ciclo de estudos sobre segurança pública”,
que contou com palestras sobre temas diversos, mas sempre destacando
a importância da participação da comunidade na coprodução do serviço
de polícia, como forma de aumentar a efetividade e eficácia das iniciativas
de prevenção ao crime (BI n.190, 04/10/1984, p.32).
Em todas essas publicações, é evidente a preocupação do comando da
PMERJ com a criação de um novo sistema de crenças, valores e atitudes
a orientar a ação policial. Segundo essa lógica, todos os agentes deve-
riam estar adstritos aos regulamentos legais (policiamento profissional),
mas prestando o serviço de segurança de acordo com as aspirações dos
contribuintes,36 sempre se preocupando em resolver o problema, de tal
forma que o crime não voltasse a ocorrer (policiamento comunitário). O
ponto alto desse processo de reforma é a aprovação do Regimento Interno

35 De acordo com Bruno Marques, “Nazareth Cerqueira foi ‘convidado especial’ do


seminário Rio contra o Crime realizado no auditório das Organizações Globo. A inten-
ção dos promotores do evento era a discussão sobre a segurança pública na cidade.
(...) A participação do coronel nesse seminário resultou em mais uma publicação: Para
uma metodologia do estudo da criminalidade e da violência. No texto, publicado em
1985, Cerqueira problematiza, mais uma vez, a relação entre prevenção e repressão.”
Ver: MARQUES, Bruno. Polícia não é Exército. Ensaio de qualificação (doutorado), FGV,
2014, p.191.
36 É interessante destacar que, no contexto do comando do coronel Cerqueira, a
PMERJ procura lançar as bases para a institucionalização de uma espécie de adminis-
tração empresarial. Nesse quadro, a Polícia Militar seria uma grande empresa, cujo ne-
gócio seria a prevenção do crime e seus clientes, os contribuintes que, a partir de seus
impostos, pagariam pelos serviços policiais. Essa construção da categoria contribuintes
como os clientes da PMERJ é especialmente visível no plano diretor e no relatório de
resultados deste comando.

Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro · 


da Secretaria do Estado de Polícia Militar (BI n.2, 03/01/1985, p.39), que
teve como finalidade designar as novas competências da organização
policial e as funções a serem absorvidas pelos agentes lotados nas uni-
dades de policiamento comunitário (na época, os PPCs inaugurados no
período Chagas Freitas).
Com vistas a aumentar a ressonância do conceito, foi implantado o
Núcleo de Instrutores e Professores Policiais Militares nas Unidades de
Apoio de Ensino (BI, n.5, 08/01/1985, p.5). Essa estratégia se baseava na
constatação de que as ideias que subsidiavam o processo de reforma da
corporação seriam mais bem-recebidas se os instrutores fossem policiais,
e não civis. Nesse mesmo sentido, foram transcritos os expedientes do
Conselho de Justiça, Segurança Pública e Direitos Humanos (CJSPDH) no
qual se retrata a evolução da democracia a partir da aproximação entre
policiais militares e a sociedade civil (BI n.12, 17/01/1985, p.17).
Com policiais militares preparados para o desenvolvimento de pro-
gramas de policiamento comunitário, a ênfase passa a ser a formatação
de programas de ação, algo inaugurado com a retomada do processo de
implantação dos Postos de Policiamento Comunitário, sendo o primeiro
deles do Instituto Comunitário Estadual Jacarepaguá (BI, n.68, 12/04/1985,
p.20), seguido pelo Morro da Providência (BI n.205 p.03, de 25/10/1985).
Novamente, com vistas a aumentar a penetração das ideias sobre
prevenção do crime a partir da articulação policial com lideranças co-
munitárias, foi realizado o seminário Mutirão Contra a Violência. Nessa
ocasião, os policiais deveriam desenhar propostas inovadoras de policia-
mento que resultassem em melhorias: 1) no relacionamento entre polícia
e comunidade; 2) na busca e apreensão de armas ilegais; 3) na proteção
aos usuários de transporte coletivo; 4) no intercâmbio de informações
entre policiais estaduais a fim de obter experiências; e 5) na instalação de
Unidades de Polícia Feminina (BI n.157, 20/08/1985, p.29).
Em seguida, foi realizado o II Ciclo de Estudos sobre Segurança Públi-
ca, que, além dos propósitos de formação e treinamento, possuía dimen-
sões de procedimentos operacionais, como: estabelecer uma estratégia
operacional para corporação; padronizar procedimentos, no que for pos-
sível e recomendável; buscar uma maior profissionalização militar e uma
maior racionalização material e humana para eficácia operacional (BI
n.180, 20/09/1985, p.3). Por fim, teve lugar o Seminário Operacional, no

 · Sobre o significado do policiamento comunitário


qual os participantes deveriam apresentar as propostas construídas no II
Ciclo de Estudos e ainda propor indicadores para avaliação e desempenho
tanto dos policiais como da própria Unidade Operacional (UoP) à qual eles
estavam subordinados (BI n.208, 31/10/1985, p.3).
Nos três casos, ao conectar formação e treinamento com programa
de ação, o comando da PMERJ forçava os policiais a demonstrarem o
conteúdo aprendido na materialização de uma diretriz operacional, ou,
ainda, um projeto piloto a ser implantado em uma dada área do estado
ou da cidade do Rio de Janeiro. Isso significa que os accounts emprega-
dos para justificar as ações inovadoras eram construídos pelos próprios
policiais que se encarregariam da implantação do programa e não pela
cúpula, o que diminuía as possibilidades de resistência à mudança. Em
última instância, é possível afirmar que as publicações no BI referentes
ao policiamento comunitário visam transferir a responsabilidade – isto
é, a obrigação de “responder por” – de uma política macro para os atores
situados na base da corporação.
O ponto alto deste período foi o Policiamento de Bairro, descrito como
“um programa de policiamento comunitário que teria atuação em todo
o estado e seria executado pelo Grupamento Especializado no Policia-
mento do Bairro (GEPB)” e cujo principal objetivo era “fazer com que a
comunidade participe do planejamento das ações policiais, bem como
recolher sugestões e queixas sobre os procedimentos policiais” (BI n.234,
11/12/1986, p.4). Essa iniciativa foi implantada nos bairros de Catumbi,
Estácio, Rio Comprido e Santa Teresa; e também nas áreas de 13o BPM
(Glória, Flamengo e Catete), 15o BPM (Vila Operária, 25 de Agosto, Vila São
Luiz e Itatiaia) e 16o BPM (Inhaúma, Irajá, Vila da Penha e Brás de Pina).
Considerando as publicações mapeadas nos BIs no primeiro gover-
no de Leonel Brizola (1983-1987), é possível afirmar que o policiamento
comunitário assume a forma de um account, utilizado para estruturar o
projeto de reforma da organização policial militar, com vistas a promover
a democratização da própria corporação, transformando-a em prestadora
de serviço público a partir da participação da sociedade na definição das
estratégias de policiamento. Nesse período, o termo policiamento comuni-
tário é empregado especialmente para a formação de um novo sistema de
crenças, valores e atitudes por parte da tropa. No âmbito das modalida-
des de programa de ação, a conotação da categoria guarda consonância

Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro · 


com os seus entendimentos doutrinários, algo se verifica na descrição do
programa de ação do Policiamento de Bairro.
Durante o quadriênio seguinte (1987-1991), o governador do Rio de
Janeiro foi Moreira Franco, que desde o início prometeu uma política
essencialmente repressiva, apta a “acabar com a criminalidade em ape-
nas seis meses”.37 Contudo, no âmbito da PMERJ, as estratégias de ação
prometidas pelo comandante – coronel Manoel Elysio – não diferiram
substantivamente daquelas mobilizadas por seu antecessor, tal como
indica o sumário do Plano Geral de Policiamento publicado no BI n.22,
04/02/1987, p.3. Afinal, a ênfase no conhecimento de outras realidades
como forma de mapear programas de ação que poderiam ser replicados
no Brasil permanece (BI n.17, 07/04/1987, p.45), assim como o destaque
dado a formação e treinamento com o uso de disciplinas que enfatizavam
o policiamento comunitário como mecanismo de efetiva mudança do
modus operandi da ação policial (BI n.25, 22/04/1987, p.18).
Do ponto de vista do uso da categoria policiamento comunitário, des-
taca-se a instalação de uma “nova” modalidade, denominada Patru-
lhamento Especial de Bairro. Este pretendia envolver a sociedade civil
no planejamento e na avaliação das ações policiais, permitindo aos in-
divíduos residentes na área alimentarem os policiais com informações
privilegiadas de maneira a garantir o sucesso das estratégias de repressão.
Com esse programa, os moradores deveriam contribuir com o repasse de
informações sobre locais de “esconderijo” ou “fuga” de criminosos, o que
viabilizaria “a prisão daqueles que temem um embate mais direto com a
polícia” (BI n.35, 07/05/1987, p.3).
O Patrulhamento Especial de Bairro foi executado pelos seguintes bata-
lhões de Polícia Militar: 2o, 6o, 12o, 13o, 18o e 19o. Para tanto, todas essas uni-
dades foram equipadas com viaturas “modernas”, sendo seus comandantes
treinados na metodologia de policiamento comunitário, que estabelecia
uma clara divisão de responsabilidades entre os próprios policiais lotados
na unidade. Assim, o comando-geral da unidade policial seria exercido
pelo policial com maior patente; a linha de frente seria realizada pela tropa,

37 Critérios de busca: Nome: FRANCO, Moreira; Nome Completo: WELLINGTON


MOREIRA FRANCO; Tipo dverbete: BIOGRAFICO. Disponível em: http://www.fgv.
br/cpdoc/busca/Busca/BuscaConsultar.aspx

 · Sobre o significado do policiamento comunitário


composta pelos soldados classe C recém-formados e mais susceptíveis à
absorção dessa nova metodologia de ação, e as atividades de supervisão e
controle seriam desempenhadas por oficiais recém-graduados.
É interessante destacar que o Patrulhamento Especial de Bairro do
coronel Elysio em muito se assemelha ao Posto de Policiamento Comuni-
tário (PPC) do período Chagas Freitas, uma vez que as responsabilidades
policiais estão claramente delimitadas, mas as atribuições comunitárias
sequer aparecem nessa estrutura, o que parece denotar que a acepção co-
munitária estava apenas no nome do projeto. Por isso, torna-se importante
salientar qual foi o account mobilizado para se justificar a viabilidade de
se retomar um programa de policiamento comunitário em um governo
que dizia ser distinto de seus anteriores, dada sua ênfase na dimensão
repressiva. A justificação, neste caso, vem do apontamento das falhas dos
programas anteriores: a ausência da dimensão de supervisão e controle,
fazendo com que os policiais de linha de frente agissem de maneira livre,
sem qualquer tipo de responsabilização imediata por desvios de conduta.
De acordo com os discursos do coronel Elysio publicados nos BIs, a
supervisão e o controle eram indispensáveis para o sucesso da nova ini-
ciativa em razão do excesso de desvios policiais que permaneciam des-
conhecidos e, por isso, impunes. Como a polícia estava vivenciando um
momento de questionamento da legitimidade, em razão do renascimento
do Esquadrão da Morte, era forçoso constituir um arranjo organizacional
apto a coibir abusos e evitar novas denúncias de desvios policiais. Ao
adicionar esse elemento, contudo, o Patrulhamento Especial de Bairro
passa a combinar os objetivos do modelo de policiamento comunitário
com regras e recursos do modelo de policiamento tradicional, fazendo
com que a categoria policiamento comunitário passe a adquirir um sentido
nativo e distante de sua definição doutrinária.
Com vistas a reforçar a novidade do elemento inserido neste programa
de policiamento comunitário, ao longo dos anos 1988-1990, várias são as
publicações fazendo menção aos cursos de formação no tema oferecidos
aos cabos, sargentos e soldados, bem como elogios às ações comunitárias
da PMERJ. Assim, para rechaçar os desvios de conduta, foram publicados
inúmeros processos da Comissão de Revisão Disciplinar, destacando, em
especial, as punições recebidas nos casos de excesso de letalidade, os quais
estariam “causando mau exemplo para a tropa” (BI n.71, 19/04/1988, p.37).

Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro · 


Portanto, durante o governo Moreira Franco, o policiamento comu-
nitário é justificado pela necessidade de aproximação com a comunidade
para maior acesso às informações que pudessem resultar na prisão de
criminosos. A justificativa para o seu emprego em um contexto eminen-
temente repressivo é sua conexão com elementos de policiamento tradi-
cional, tais como uma escala hierárquica mais clara e, por conseguinte,
menor discricionariedade do policial de ponta, que seria prontamente
responsabilizado por seus supervisores sempre que a comunidade apre-
sentasse informações sobre desvios de conduta.
Em 15 de março de 1991, Leonel Brizola assume o governo do Rio de
Janeiro e o coronel Nazareth Cerqueira é novamente nomeado comandan-
te-geral da PMERJ. Esse ato implicaria problemas imediatos do ponto de
vista da legitimidade do novo comando, já que vários eram os policiais
que se encontravam na ativa e esperavam galgar esse posto. Além disso,
a maioria dos oficiais entendia que a regra tácita de progressão funcional
era clara – uma vez comandante, para sempre aposentado da corporação
– e, por isso, deveria ser respeitada. Assim, a nomeação de Cerqueira foi
objeto de ação popular, instrumento que levou para o Judiciário a decisão
acerca da legalidade do ato do recém-empossado governador. Portanto,
foi apenas após uma longa batalha judicial que o coronel tomou posse
como secretário de Estado de Polícia Militar.38
Após esse ato foram publicadas as diretrizes de planejamento que
seriam a ossatura deste comando (BI n.80, 11/07/1991, p.14). Essas desta-
cavam a importância de o Policiamento Ostensivo Complementar (POC)
desenvolver ações que atendessem ao apelo popular, alocando policiais
nos locais e nos horários que as comunidades apontavam como estratégi-
cos. Todas as unidades deveriam primar pelo desenvolvimento de ações
de comunicação comunitária com vistas a desenhar os planos de ação
das unidades operacionais.
Nas publicações seguintes, que detalhavam as diretrizes de plane-
jamento, era evidente a preocupação com o aumento da soberania nos
territórios dominados por “criminosos” e a dotação da polícia de capa-
cidades regulamentares para disciplinar a vida dos moradores de áreas

38 O argumento vencedor foi o de que o cargo era de secretário de Polícia Militar e,


por conseguinte, comandante da PMERJ, mas que a primeira posição tinha ascendên-
cia sobre a segunda e, por isso, não se sujeitava aos regulamentos policiais.

 · Sobre o significado do policiamento comunitário


em que as organizações policiais tradicionalmente não atuam (BI n.138,
01/10/1991, p.74).
No âmbito dos programas de ação, o policiamento comunitário é
novamente eleito como a filosofia direcionadora das ações policiais do
período, algo inaugurado com a reativação do Grupamento Especializado
de Policiamento de Bairros (GEPB), destinado a “promover o policiamento
nos horários e locais em que a população mais se preocupa com a violên-
cia” (BI n.99, 07/08/1991, p.2). A novidade desse momento foi o fato de o
GEPB ser organizado com o efetivo do Batalhão de Choque (BPchoque).
Essa não é uma novidade qualquer, afinal o BPchoque possui uma for-
mação voltada para a “guerra contra o crime e a desordem” e, por isso,
em franco desacordo com os conteúdos presentes nos manuais de polícia
comunitária. Nos BIs não foram encontradas maiores especificações para
essa decisão, além da necessidade de se instalar os GEPBs em áreas com
elevado índice de violência, o que demandaria um treinamento mais
específico do que apenas as capacidades de articulação com as lideranças
comunitárias para a coprodução do serviço de polícia. No entanto, esse
fato parece indicar a mudança de rumo da própria política de segurança
pública do segundo governo Brizola, necessitado que estava de conceder
uma resposta imediata às pressões da opinião pública, que conclamava
por ações repressivas de maior fôlego.
Com esse direcionamento, o policiamento comunitário passa a se
consubstanciar em um programa de ação a ser implantado pelo GEPB.
Na tentativa de rever essa interpretação, o próprio comandante escreve
uma Nota de Instrução, esclarecendo o que era a filosofia de policiamento
comunitário e como ela poderia servir para o aumento da efetividade das
ações policiais, independentemente da unidade operacional (BI n.35,
20/02/1992, p.4). Nesse momento, o account empregado para justificar a
retomada de tal ideia era a necessidade de se aproximar da comunidade
como forma de se chegar aos criminosos e, dessa maneira, reduzir o crime
e a insegurança no Rio de Janeiro.
Contudo, ao se comparar as publicações deste governo Brizola com as
do mandato anterior, é possível constatar certa incongruência na condu-
ção da política. Os cursos de formação do período 1991-1994 destacavam
ora princípios de polícia militar stricto sensu ora princípios de polícia co-
munitária, sem um delineamento claro sobre qual deveria ser a doutrina

Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro · 


materializada nas unidades operacionais. Os processos divulgados na
seção Justiça e Disciplina, a corporação ora punia os policiais pelos exces-
sos cometidos em determinadas comunidades ora os absolvia. Os elogios
ora destacavam as ações policiais construídas a partir da articulação com
lideranças comunitárias ora destacavam a prisão de criminosos, inclusive
com a morte de alguns civis. Nesse cenário, uma pergunta permanece
sem resposta nesse período: afinal, o que significava aproximação com a
comunidade? Prevenção do crime nos termos do regulamento ou repres-
são do crime a qualquer custo?
A incapacidade em apresentar uma resposta direta a essas questões
levou a um crescente questionamento interno e externo da legitimidade
dos programas de policiamento comunitário. Exemplo disso é a própria
notícia de uma operação que deveria resultar em um Posto de Policia-
mento Comunitário (PPC) em uma área de favela e tinha resultado em
diversas mortes e muitos feridos, sem qualquer tipo de punição (BI n.58,
27/03/1992, p.13).
Como os cursos de formação e treinamento apresentavam mensagens
dúbias, o comandante se incumbia de traduzir textos sobre Polícia Co-
munitária, cuja íntegra era publicada nos BIs. Nessas publicações, eram
destacados os problemas de implementação do modelo em países como
Canadá, Reino Unido e EUA, “que muito sofreram com as sabotagens de
quem não aceitava o programa” (BI n.69, 13/04/1992, p.7). Em tais artigos,
fica evidente a necessidade de reafirmar que as dubiedades do conceito
eram introduzidas pelos opositores da política, que também bloqueariam
iniciativas mais efetivas de formação e treinamento, bem como de justiça e
disciplina. Em última instância, nessas ocasiões o coronel Cerqueira vinha
a público para justificar que a Polícia Comunitária deveria ser adotada
como uma doutrina estruturante das ações da PMERJ. Afinal, tratava-se
de uma filosofia que por enfatizar o menor uso da força letal estava em
maior consonância com as aspirações de uma sociedade democrática.
Poucas eram, contudo, as indicações de que essa estratégia se legiti-
mava como account para a adoção do policiamento comunitário. Exemplo
disso foi a Eco-92, evento ambientalista de cunho internacional, para o
qual a solução encontrada foi retomar procedimentos tipicamente auto-
ritários para garantir a segurança dos que visitavam a cidade do Rio de
Janeiro. Nesse contexto,

 · Sobre o significado do policiamento comunitário


Foi traçado um grande esquema de segurança, que contou com cerca de
15 mil soldados e blindados do Exército, numa quantidade não vista desde
o período militar, estacionados nas vias expressas por onde passariam as
comitivas oficiais, alguns com os canhões apontados para as favelas. De
modo geral, parte da população e da mídia apoiou a presença militar nas
ruas, enfatizando a calmaria verificada nelas naquelas semanas, numa
clara comparação com o mau desempenho do governo estadual na área
de segurança pública.39

Ou seja, diante de problemas reais – como as mortes ocasionadas por


indivíduos armados e pelos próprios policiais militares –, a solução encon-
trada pelo governo foi acionar o Exército, passando à população e à pró-
pria PMERJ a mensagem de que soluções de cunho autoritário poderiam
produzir efeitos mais imediatos que aquelas de natureza democrática.
O efeito deletério dessa medida foi fazer com que os policiais militares
passassem a ter duas linhas doutrinárias com as quais se identificar no que
diz respeito à relação com a comunidade: o diálogo sem força, nos termos
dos manuais traduzidos por Cerqueira e publicados nos BIs, e a ocupação
com uso da força para “sufoco” da violência, nos termos implantados
pelo Exército durante a Eco-92. A dupla mensagem passada aos policiais
militares pode ser vislumbrada na explosão de processos de disciplina
por excesso de uso da força no relacionamento com a comunidade nos
meses subsequentes ao evento.
Na tentativa de promover o fortalecimento da filosofia de Policiamento
Comunitário são publicadas as novas diretrizes do programa Policiamen-
to de Bairro (BI n. 171, 14/09/1992, p.46), que detalhavam as funções do
policial, desde a organização da Unidade Operacional ao estabelecimento
de metas para área, com especial ênfase em como se daria a participação
da comunidade para alcance delas. Com vistas a reforçar essa nova linha
de ação, são realizados alguns cursos de atualização de praças e oficiais
na temática (BI n.173, 16/09/1992, p.3 e BI n.182, 29/09/1992, p.4).
Contudo, os resultados alcançados com essas estratégias foram bas-
tante distintos dos esperados: em vez de elogios, a parte que mais crescia

39 CPDOC. “Leonel Brizola (verbete).” Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro (DHBB).


Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/busca/Busca/BuscaConsultar.aspx

Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro · 


no BI era a seção Justiça e Disciplina, em razão dos excessos no uso da
força policial, em especial no processo de instalação e início de funciona-
mento dos Postos Policiais Comunitários (PPC) em áreas de favela. Nesses
casos, eram apontados policiais que haviam agido em franco desrespeito
à lei, disparando em superiores hierárquicos durante a ação (BI n.18,
28/01/1993, p.33) e agredindo moradores da localidade dentro do próprio
PPC (BI n.26, 08/02/1993, p.48).
Como forma de conter esses incidentes, Cerqueira publica uma Nota
de Instrução intitulada “Atuação do Policial Militar”, na qual constava
também a opinião de dois consultores americanos sobre a necessidade
de a ação policial ser guiada pelos princípios da filosofia de policiamento
comunitário como forma de atender às demandas da sociedade na atua-
lidade (BI n.26, 09/02/1993, p.76). Além disso, diversos foram os cursos
e seminários promovidos pela corporação para aumentar a penetração
das ideias desse modelo entre a tropa (BI n.57, 29/03/1993, p.3 e BI n.59,
31/03/1993, p.2) e, dessa forma, conter os episódios de letalidade e pro-
cessos disciplinares por mortes de civis.
Como forma de transformar essas construções doutrinárias em mo-
delos de ação, a estratégia de edição de programas de ação foi novamente
retomada. Assim, no BI n.78, 30/04/1993, p.4 é publicada uma chamada
para alistamento de todos os policiais interessados em participar do Po-
liciamento Comunitário de Quarteirão, que seria implantado nos me-
ses posteriores em alguns bairros. Esse programa era composto pelas
seguintes dimensões: policiamento a pé executado em duplas, com o
objetivo de apresentar os policiais responsáveis pela área à comunidade,
conhecer a dinâmica do quarteirão e, dessa forma, dar aos moradores
maior sensação de segurança; atendimento às chamadas da população
de maneira descentralizada, já que essas deveriam ser encaminhadas
ao telefone do batalhão distribuído pelo policial que andava à pé e não à
central de polícia, com vistas a aumentar a efetividade da pronta resposta
policial; participação dos policiais nos eventos na comunidade, para me-
lhor conhecer os indivíduos que ali residiam; ronda escolar e execução
de programas de atendimento voltados para menores em situação de rua.
Já no BI n.105, 09/06/1993, p.6, é publicada uma Nota de Instrução
sobre a forma de operação do policiamento comunitário em áreas de fave-
la, com vistas a conter os abusos verificados nessas áreas, em especial no

 · Sobre o significado do policiamento comunitário


interior dos próprios PPCs. Já no BI n.183, 29/09/1993, p.29, que apresenta
o programa Centros Comunitários de Defesa da Cidadania, é possível
perceber a tentativa de aplicar a Metodologia de Solução de Problemas
como forma de conter a escalada do crime em áreas de favela. Afinal, essa
iniciativa tinha “a finalidade de executar uma política integrada e siste-
mática de acesso à justiça e defesa da cidadania, oferecendo à população
de baixa renda o acesso gratuito aos serviços públicos de forma integrada,
buscando a inclusão social”.40
Como forma de fortalecer a ação nos termos legais, os meses subse-
quentes a essas Notas de Instrução são marcados por publicações de cursos
cujo conteúdo específico são noções de policiamento comunitário em
favelas (BI n.210, 10/11/1993, p.4). Contudo, a cada ação em desacordo com
esses princípios por parte de policiais que rechaçassem a ideia de policia-
mento comunitário, mais a imagem da PMERJ como agência prestadora
de serviços em moldes republicanos se esvaía (BI n.211, 11/11/1993, p.35).
Nesse contexto, maior era a necessidade de se criar novos accounts que
justificassem para os próprios policiais e para a população a possibilidade
de reversão dessa situação pela via do policiamento comunitário. Como
esse resultado não aparecia, a solução encontrada foi desativar alguns
Postos de Policiamento Comunitário – como o da Vila Cruzeiro (BI n.20,
28/03/1994, p.19).
Em 2 de abril de 1994, Nilo Batista assume o governo do estado, em
razão do afastamento de Leonel Brizola para concorrer às eleições presi-
denciais. No âmbito da PMERJ, não foram verificadas grandes alterações
do ponto de vista administrativo, uma vez que Cerqueira permaneceu
como comandante-geral da instituição. E, do ponto de vista operacional,
foram publicadas novas diretrizes, que reforçavam a filosofia de policia-
mento comunitário como modelo de ação a ser adotado pela corporação
em todas as unidades operacionais.
Nesse contexto, foi divulgada a abertura de estágio no Grupamento
de Aplicação Prática Escolar (Gape) nas comunidades da Mangueira, Pro-
vidência, Borel, Andaraí e Pavão-Pavãozinho (BI n.63, 07/04/1994, p.4).
Nos termos dessa publicação, o Gape seria a unidade na qual os recrutas

40 Informações disponíveis em: http://www.rj.gov.br/web/seasdh/exibeconteudo?


article-id=1525005

Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro · 


aplicariam os princípios de policiamento comunitário, desenhando es-
tratégias de prevenção ao crime a partir das informações repassadas pelos
residentes na área. Dessa forma, eles se preparariam para a realização do
serviço segundo essa lógica em outras unidades operacionais.
Como forma de transformar a doutrina do policiamento comunitário
no único sistema de crenças, valores e atitudes vigente na PMERJ, foram
realizados cursos para os policiais lotados no Policiamento Comunitário
de Quarteirão (BI n.84, 09/05/1994, p.3), palestras sobre a prevenção de
delitos a partir de ações de polícia comunitária (BI n.84, 09/05/1994, p.3)
e a transcrição de textos de acadêmicos sobre os prejuízos apresentados
pelo abuso da força letal para a própria organização policial (BI n.108,
14/06/1994, p.15). O ponto alto dessa política foi o Programa de Instrução
em Serviços Especiais em Aglomerados Urbanos, no qual os manuais de
polícia comunitária eram as principais referências bibliográficas (BI n.126,
08/07/1994, p.2).
Em agosto de 1994, juntamente com a divulgação de processos dis-
ciplinares abertos contra policiais que teriam excedido o uso da força em
áreas de favelas, é apresentado o Movimento Viva Rio: o Rio unido contra
a violência (BI n.145, 04/08/1994, p.20), destacando a necessidade de uma
polícia que atuasse de maneira mais condizente com o regime democrá-
tico. Meses depois, é anunciada uma grande mudança organizacional da
PMERJ, cujo projeto piloto seria a implantação de um programa de policia-
mento comunitário em Copacabana em parceria com o Viva Rio (BI n.186,
04/10/1994, p.33). Nesse mesmo dia, foi publicada ainda a Nota de Ins-
trução que disciplinava o método de uso de força letal (modelo FLETC)41
a ser adotado pela corporação naquele momento (BI n.186, 04/10/1994,
p.36). Com isso, esperava-se restaurar a legitimidade da própria catego-
ria policiamento comunitário como modelo apto a promover a reforma da
organização policial e, ainda, a credibilidade do account empregado para
justificar a sua retomada como estratégia de democratização dos proce-
dimentos policiais empregados pela PMERJ.

41 Modelo de uso progressivo da força concebido pelo Centro de Treinamento da Po-


lícia Federal de Glynco/Geórgia/EUA e aplicado desde 1994 como paradigma de trei-
namento das organizações policiais militares no Brasil. Para maiores informações, ver
XAVIER, Fábio Manhães. “A importância da formação na mudança de paradigmas no
uso da força.” Cadernos Temáticos da Conseg. Brasília: Ministério da Justiça, 2009.

 · Sobre o significado do policiamento comunitário


Nos meses finais do governo Nilo Batista, a preocupação era dissemi-
nar a filosofia de policiamento comunitário de tal maneira que o próximo
governante não fosse capaz de desestruturá-la. Nesse espírito, foi reali-
zado o Primeiro Encontro de Polícia Comunitária de Quarteirão, com o
objetivo divulgar os bons resultados que esse programa estava alcançando
(BI n.214, 16/11/1994, p.25). No mesmo mês, há a publicação de uma série
de cartas elogiando os programas de aproximação com os moradores da
área (BI n.216, 18/11/1994, p.13), legitimando a experiência. Já no início
de dezembro, foram inaugurados os Centros Comunitários de Defesa
da Cidadania nas favelas da Maré e do Casarão (BI n.226, 02/12/1994,
p.40) e reproduzida a carta da associação comunitária de Laranjeiras
elogiando o Policiamento Comunitário de Quarteirão da localidade (BI
n.235, 15/12/1994, p.43). Por fim, ainda na tentativa de destacar os bons
frutos dessa política, tem-se a correspondência de Hubert Willians, de
Washington, sobre a experiência da PMERJ no que diz respeito ao modelo
de policiamento comunitário como uma estratégia de reforma promissora
para essa polícia (BI n.3, 27/12/1994, p.15).
Portanto, as publicações analisadas para o período 1991-1995 indicam
que os accounts para a categoria policiamento comunitário como programa
de ação diziam respeito à necessidade de tornar a ação da PMERJ mais
circunscrita aos ditames de uma ordem democrática, especialmente no
contexto das favelas. Contudo, quando se constata que a maior parte das
publicações mapeadas para esse período se encontra na seção Justiça e
Disciplina, percebe-se que, apesar dos programas de ação e dos diversos
cursos de formação e treinamento, a tônica do período é a tentativa de
conter o aumento do uso da força, especialmente em áreas de favelas. Por
isso, em que pese a implantação de programas de policiamento comuni-
tário em áreas nobres da cidade (como Copacabana e Laranjeiras), o que
se percebe é a preferência nesse período de contextos de favela como os
destinatários das iniciativas de policiamento comunitário, de maneira
a resgatar a imagem da PMERJ como agência prestadora de serviços de
policiamento de forma democrática e não de forma letal. Dessa forma,
esperava-se mostrar a toda a corporação que a reforma da instituição pela
doutrina de policiamento comunitário era viável.
Assim, para que esse account pudesse encontrar aderência em toda a
tropa, foram estruturados cursos que socializavam os policiais militares

Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro · 


nessa filosofia e abertos processos disciplinares em desfavor daqueles que
atuavam de maneira contrária a seus pressupostos, especialmente no que
diz respeito ao uso excessivo da força. Além disso, foram publicadas Notas
de Instrução que procuravam detalhar os procedimentos operacionais
das experiências de policiamento comunitário em curso (GEPB e PPC,
em especial), com vistas a conter a discricionariedade da ação policial,
o que, contudo, vai na contramão da própria lógica de aproximação com
a comunidade, que deve ser essencialmente flexível para dar conta das
especificidades locais.
Com a posse de Marcello Alencar como governador (1995-1999), a
PMERJ deixou de ter o status de Secretaria de Estado para ser subordinada à
Secretaria de Segurança Pública, que passou a ser ocupada por um de seus
antigos comandantes, o general Nilton de Albuquerque Cerqueira. Este
escolheu para comando da Polícia Militar um coronel bastante alinhado
com suas ideias, Dorasil Castilho Corval.
Uma das primeiras providências de Dorasil foi a elaboração de um
programa de estágio em “operações urbanas em áreas com problemas”,
que nada mais eram do que contextos de favela (BI n.20, 02/02/1995, p.25).
A preparação teórica dos policiais que participariam de tal iniciativa foi
realizada por meio do Curso de Preparação para Policiais Comunitários (BI
n.32, 20/02/1995, p.4), reforçando a associação anteriormente verificada
entre policiamento comunitário e policiamento em favelas.
Contudo, em razão da demanda de moradores de áreas “normais” da
cidade, que anteriormente receberam o Policiamento Comunitário de
Quarteirão, essa iniciativa é novamente retomada em tais localidades,
incluindo-se nesse contexto tanto um curso específico para preparação
da tropa empregada nessas unidades (BI n.60, 04/04/1995, p.9) como um
estágio prático em regiões consideradas bem-sucedidas nesse programa
(BI n.100, 05/06/1995, p.4).
Logo, no início desse comando, o policiamento comunitário continua
a ter como accounts as duas acepções que marcaram o fim do período an-
terior do coronel Cerqueira: 1) ocupação de áreas de favela (denominadas
pelo IBGE de “subnormais”), como se constata pela ativação emergencial
de Núcleo de Posto de Policiamento Comunitário no Vilar Carioca, em um
anexo provisório da associação de moradores (BI n.124, 10/07/1995, p.4);
e 2) aproximação dos residentes de áreas normais da cidade, vislumbrada

 · Sobre o significado do policiamento comunitário


na inauguração do Posto de Policiamento Comunitário em Santa Teresa
(BI n.124, 10/07/1995, p.4).
Contudo, a categoria policiamento comunitário ganharia novos con-
tornos com a reedição da premiação por bravura, instituto publicado
originalmente no BI n.114, de 6 de agosto de 1982, com o objetivo de
reconhecer o trabalho daqueles policiais cuja bravura tinha viabilizado a
própria perenidade do regime autoritário. No contexto democrático, esse
dispositivo foi transformado no decreto n.21.753, de novembro de 1995,
que recebeu o nome de Premiação por Pecúnia por Mérito Especial, ao
estabelecer que aqueles policiais que no exercício de sua atividade tives-
sem demonstrado especial bravura receberiam um aumento permanente
de salário de até 150% do soldo inicial.
O problema é que o decreto não estabelecia claramente o que se-
ria considerado “bravura”, sendo o significado desse termo delineado
quando das primeiras promoções, decorrentes das mortes de “peri-
gosos bandidos” no processo de “retomada de territórios” (BI n.228,
08/12/1995, p.21). Tal engenharia institucional fez com que os homicídios
praticados por policiais em áreas de favela passassem a ser objetos de
solenidades de premiação, amplamente divulgadas nos BIs. Exemplo
disso são as publicações de fevereiro de 1996, que destacam a bravura
dos policiais militares ao entrarem em favelas, enfrentando os perigosos
traficantes que ali estavam, matando-os e, por conseguinte, garantindo
a paz e a tranquilidade dos cariocas (BI n.27, 04/02/1996, p.60; BI n.32,
14/02/1996, p.55; e BI n.35, 22/02/1996, p.45). Em última instância,
justificava-se a morte de milhares de indivíduos com o argumento de
que era necessário recuperar a soberania do Estado nas áreas dominadas
por “criminosos”.
É nesse momento que a categoria policiamento comunitário passa a ser
empregada para justificar incursões em “comunidades”, ou seja, fave-
las da cidade do Rio de Janeiro. O problema todo da ressignificação é o
fato de as ações policiais estarem voltadas para a execução sumária dos
delinquentes ali atuando, em detrimento de sua prisão. Assim, passam
a compor a seção Justiça e Disciplina os casos de abordagem nos Postos
de Policiamento Comunitário que tinham resultado em liberação dos
“meliantes” em detrimento de sua incapacitação permanente (BI n.139,
24/07/1996, p.39). Inclusive, em razão de situações como essa, é publicada

Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro · 


uma Nota de Instrução voltada para os policiais comunitários, na qual se
recomendava a manutenção das instruções vigentes no âmbito da PMERJ
também no contexto dos PPC (BI n.160, 22/08/1996, p.8). Meses mais
tarde, é publicada uma nota de louvor ao comandante do PPC da Cidade
de Deus por sua ação em acordo com as diretrizes gerais da PMERJ (BI
n.4, 07/01/1997, p.34).
É interessante destacar ainda que, ao longo de 1997, os PPCs parecem
se consubstanciar em um problema para o comando-geral, uma vez que
são encontradas inúmeras publicações na seção Justiça e Disciplina com
menção à atuação dessas unidades em desacordo com a filosofia vigen-
te, por estarem extorquindo os moradores de distintas favelas (BI n.154,
21/08/1997, p.59; BI n.191, 13/10/1997, p.25; BI n.228, 09/12/1998, p.41),
vendendo-lhes armas de fogo (BI n.180, 26/09/1997, p.26) e ainda prati-
cando sequestros nessas áreas (BI n.228, 09/12/1998, p.40). Era preciso
conter situações como essa, para que a credibilidade da PMERJ enquanto
instituição que garante a ordem fosse mantida.
Assim, a partir da metade do governo Marcello Allencar, a diretriz
passa a ser o policiamento repressivo em sua modalidade essencialmente
militar, posto que orientado para a eliminação do inimigo (neste caso,
“bandidos”42 atuantes em áreas de favela). Nesse contexto, a simples
ressignificação de policiamento comunitário como policiamento em áreas
de favela não era suficiente. Era preciso algo mais. Assim, a categoria
passa a ser empregada para significar ocupação militar em áreas de favela,
tal como denotam as publicações que fazem menção à inauguração dos
PPCs em Vargem Grande (BI n.207, 10/11/1998, p.40) e Nova Friburgo (BI
n.187, 08/10/1998, p.46).
Portanto, no período 1995-1999, os accounts mobilizados para justificar
o emprego do policiamento comunitário estavam relacionados à necessi-
dade de a PMERJ ocupar territórios perigosos que, por isso, demandavam
uma atuação repressiva mais incisiva por parte da organização policial.
Nesse sentido, é possível afirmar que esse é o contexto no qual se verifica
o maior distanciamento de nossa categoria chave de seu sentido original.

42 Para a compreensão dos significados do termo bandido ao longo da história da cidade


do Rio de Janeiro, ver MISSE, Michel. “Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de
uma contribuição analítica sobre a categoria ‘bandido’.” Lua Nova, n.79, 2010, pp.15-38.

 · Sobre o significado do policiamento comunitário


Como explicação para essa mudança, tem-se a consolidação do termo
comunidade como sinônimo de favela. 43
No período subsequente (1999-2003), o governador passa a ser An-
thony Garotinho, e para comandante da PMERJ é nomeado o coronel
Sérgio da Cruz. Nesse primeiro momento, todas as ações empreendidas
pela Secretaria de Segurança Pública e pela PMERJ visavam à contenção
da letalidade da ação policial, já que o aumento exponencial das mortes
de civis pela PM no período anterior havia resultado na ação de diversos
organismos de direitos humanos, que pediam providências imediatas
para a reversão desse cenário.44
Com vistas a engendrar um modelo de policiamento cuja pedra an-
gular fosse o respeito às regras e aos recursos prescritos nos regulamentos
disciplinares, a primeira providência foi a constituição de um novo pro-
grama de ação policial em favela. Para tanto, foi realizada uma espécie de
auditoria nos PPCs dessas áreas (BI n.6, 12/01/1999, p.17) e, em seguida, foi
criada uma estrutura para supervisionar as atividades de tais unidades,
com vistas a inviabilizar transgressões de policiais militares em comu-
nidades, incluindo a cooperação com facções criminosas.
Meses depois foi realizado o I Estágio de Sensibilização da Polícia
Comunitária (BI n.64, 09/04/1999, p.39); um evento destinado a todos os
policiais de linha de frente que atuavam em áreas de favela, com inúmeras
palestras sobre direitos humanos, prevenção de conflitos, relaciona-
mento interpessoal e, em especial, políticas de policiamento que visa-
vam a aproximação da comunidade sem uso de força letal. Essa iniciativa
deu ensejo ao Curso de Sensibilização para Polícia Comunitária (BI n.99,
07/05/1999, p.57), destinado a toda a corporação como forma de promover
uma mudança no sistema de crenças, valores e atitudes de toda a tropa,
tornando-a mais preventiva e menos repressiva.

43 Para compreender como ocorre a resignificação do termo comunidade em favela,


ver ARAÚJO SILVA, Marcella Carvalho de. A transformação da política na favela: Um es-
tudo de caso sobre os agentes comunitários. Dissertação (mestrado), PPGSA, UFRJ, 2013.
44 Para um melhor entendimento da repercussão das mortes da polícia do Rio de Ja-
neiro em âmbito internacional, ver HUMAN RIGHTS WATCH. Brutalidade policial urba-
na no Brasil. Washington: Human Rights Watch, 1997.

Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro · 


Nesse contexto, diversas foram as publicações da seção Justiça e
Disciplina noticiando a abertura de processo disciplinar em desfavor
de policiais que haviam agredido moradores de áreas de favela (BI n.172,
14/09/1999, p.56), vendido armas a traficantes (BI n.167, 06/09/1999, p.33)
e, em especial, gerado algum tipo de ocorrência envolvendo a morte de
civis (BI n.228, 07/12/1999, p.27). Essa parece ser uma estratégia clara do
comando de mostrar à corporação que a filosofia era outra e que, por isso,
era preciso mudar os rumos da ação policial e do tratamento concedido
pela PMERJ aos residentes dessas áreas.
Com vistas a conter a letalidade policial e a criminalidade em geral,
no início de 2000 é publicado um novo sistema de gratificação policial
que, em detrimento da bravura do período anterior, seria orientado pela
redução dos registros de crime na área, entendida como a diminuição
de todos os indicadores de delitos violentos, incluindo-se os homicídios
cometidos pela própria PMERJ (BI n.17, 26/01/2000, p.17).
Em junho do mesmo ano, o comando-geral da PMERJ é assumido
pelo coronel Wilton Soares Ribeiro, cujo primeiro ato são as retomadas
das iniciativas objetivando levar a ação policial para contextos de favela
a partir de programas de policiamento comunitário. Nesse sentido, é
inaugurado o PPC da Vila do João (BI n.112, 15/06/2000, p.22) e iniciado
o programa Reservistas pela Paz (BI n.34, 04/08/2000, p.18). Este último
se constitui em um conjunto de medidas socioeducativas orientadas para
educar jovens excedentes do serviço militar residentes em áreas subnor-
mais, com o objetivo de estimular a integração comunitária, centrada na
relação entre jovem, sociedade e polícia.
Contudo, a iniciativa de policiamento comunitário que marcaria este
período foi o Grupamento de Policiamento em Áreas Especiais (GPAE),
cuja diretriz de implantação foi apresentada no BI n.37, 09/08/2000,
p.52. De acordo com esse documento, o objetivo do GPAE era combater a
violência urbana que tanto afligia determinadas áreas especiais a partir
da filosofia e da estratégia da polícia comunitária.
É interessante destacar que nesse momento a expressão áreas especiais
passa a substituir o termo comunidade, criado em substituição ao termo
favela, em uma tentativa de viabilizar a própria qualificação desse espaço.
Ou seja, o programa de policiamento comunitário deixa de ser a categoria

 · Sobre o significado do policiamento comunitário


empregada para a identificação de uma das modalidades de policiamen-
to ostensivo para a favela para significar a modalidade de policiamento
disponibilizada para favelas com determinadas características especiais,
conforme se depreende do trecho a seguir, escrito pelo próprio idealizador
do GPAE:

Entende-se por áreas especiais (AE) o espaço geográfico de densa ocu-


pação humana onde existam elevados indicadores de violência e cri-
minalidade, combinado com uma destacada deficiência na prestação
de serviços públicos essenciais e onde também se verifica a existência
de condições inadequadas para o desenvolvimento humano e comuni-
tário, propiciando dessa forma um fértil campo para a proliferação de
atividades desordeiras e criminosas, em face da pouca presença, ou até
mesmo da ausência total, da ação do Estado, principalmente em termos
de infraestrutura e serviços.45

Com vistas a promover uma mudança de mentalidade dos policiais que


seriam empregados nesse programa, foram promovidos cursos e estágios
de qualificação para atuação em áreas especiais (BI n.4, 23/08/2000, p.8).
O propósito de tal ação era fazer com que as práticas letais do período an-
terior fossem completamente esquecidas por aqueles profissionais, dando
lugar a uma ação condizente com os princípios de polícia comunitária,
como prevê a acepção doutrinária do termo. Nesse sentido, voltaram a ser
publicados, na seção Justiça e Disciplina, processos noticiando a punição
de policiais que haviam se excedido no uso da força em áreas de favela (BI
n.129, 26/12/2000, p.48).
Então, até a primeira metade do governo Anthony Garotinho, o ac-
count mobilizado para justificar a retomada de programas de policia-
mento comunitário é a ideia de que as áreas especiais demandam um
tipo distinto de articulação entre a polícia e os membros da comunidade
ali residente, como forma de acesso a informações indispensáveis para a

45 CARBALLO BLANCO, Antônio Carlos. Grupamento de Policiamento em Áreas Espe-


ciais: Uma experiência-piloto. Monografia (Graduação), Departamento de Ciências So-
ciais, Uerj, 2002, p.27.

Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro · 


desarticulação do crime e da violência na localidade. No entanto, ao não
contemplar a participação popular no delineamento das estratégias que
seriam implementadas para a solução do problema e, muito menos, no
processo de avaliação da efetividade de tais ações, a forma de constituição
e funcionamento do GPAE, como programa de policiamento comunitário
destinado aos residentes em favelas, muito se assemelha à empregada
quanto da constituição do PPC e do GEPB.
Em todas essas iniciativas, primeiro anuncia-se a estruturação do
programa de ação, em seguida, abrem-se cursos de qualificação para os
policiais a serem lotados nessas unidades e, assim, inicia-se a operação
nessas áreas. Depois, passam a ser publicadas notícias de punição de
policiais que agiram em desacordo com os princípios de legalidade, bem
como elogios encaminhados pelos moradores dessas mesmas localidades
quanto à atuação mais respeitosa da polícia. Com isso, espera-se mostrar
à tropa como o policiamento comunitário apresenta ganhos para toda a
sociedade e, ainda, como o desrespeito de seus princípios leva não apenas
a punições, mas a uma imagem negativa da própria corporação.

Considerações finais

A proposta deste trabalho foi revisar a documentação produzida pela


PMERJ no período compreendido entre os anos de 1980 e 2000 com vistas
a compreender quais são os accounts mobilizados para sustentar o emprego
da expressão policiamento comunitário. Para tanto, foi realizada a revisão
dos significados teóricos do conceito de account e doutrinários da cate-
goria policiamento comunitário. Em seguida, esse framework conceitual foi
cotejado com os BIs publicados em cada um dos sete governos do período,
recobrindo os anos pesquisados. O resultado final pode ser vislumbrado
no Quadro 3, que sumariza as acepções de policiamento comunitário em
cada governo:

 · Sobre o significado do policiamento comunitário


Quadro 3 – Significados assumidos pelo termo
policiamento comunitário em cada período
governamental analisado, por governo (1980-2000)
Período
governamental Significado de policiamento comunitário
Recebimento de informações da comunidade para
Chagas Freitas
maior efetividade da repressão
Transformar a PMERJ em agência prestadora
de serviço público a partir da participação da
Leonel Brizola
sociedade civil na definição das estratégias de
policiamento e na comunicação dos desvios policiais
Recebimento de informações da comunidade sobre
os locais de “esconderijo” ou “fuga” de criminosos
Moreira Franco
nas favelas, o que viabilizaria a prisão daqueles que
temem um embate mais direto com a polícia
Tornar a ação da PMERJ mais circunscrita aos
Leonel Brizola ditames de uma ordem democrática, especialmente
no contexto das favelas
Aproximação com a comunidade para aumento da
Nilo Batista
legitimidade da ação policial militar
Operações policiais urbanas em áreas com
Marcello Alencar
problemas
Combater a violência urbana que aflige
Anthony Garotinho determinadas áreas especiais a partir da filosofia e
da estratégia da Polícia Comunitária

De acordo com o Quadro 3, o verdadeiro account empregado para o


termo policiamento comunitário é a necessidade de contenção da crimina-
lidade em áreas de favela, primeiramente a partir da aproximação com a
população para maior intercâmbio de informações com vistas ao aumento
da efetividade da repressão. Depois, a partir do recebimento de denúncias
de desvios policiais nesse contexto e, por conseguinte, reforço dos limites
do modelo profissional pela ênfase no respeito às diretrizes do regulamen-
to. Já no final do período, combate aos problemas urbanos pela contenção
da violência, que seria característica apenas dessas áreas cidades. A única
exceção a essa regra é o início do primeiro governo Brizola e o governo Nilo
Batista, nos quais o termo é empregado em seu sentido original: reforma
da organização policial, a partir de sua transformação em agência presta-
dora de serviço público, produzido com a participação da sociedade civil,
abrangendo tanto áreas normais como subnormais da cidade e do estado.

Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro · 


Nesse cenário, se os programas de ação conformam o significado da
categoria policiamento comunitário em cada período, as estratégias de for-
mação e treinamento, disciplina policial e elogios engendradas indicam
as especificidades dessa modalidade de ação policial em favelas em cada
época. Afinal, os entendimentos da categoria apenas podem se cristalizar
como esperado se a PMERJ for capaz de promover a socialização de toda
a tropa no significado que a categoria policiamento comunitário passa a
receber, com o respectivo reforço positivo de sua aplicação e rechaçando
estratégias não condizentes com os accounts apresentados nos BIs.
Portanto, na maior parte do período 1980-2000, programas de ação,
formação e treinamento, disciplina e elogios fazendo menções ao poli-
ciamento comunitário são, em verdade, tentativas de disciplinar a ação
policial em áreas de favela nos moldes do policiamento profissional. Com
isso, fica evidente que, de todos os excessos que caracterizam a ação da
PMERJ no contexto democrático, os que suscitam maior atenção da cor-
poração são os que têm lugar nessas áreas especiais.

 · Sobre o significado do policiamento comunitário


Direitos, política e
vida pública
“Ajuda”, “compra de voto”
e reconhecimento: as fronteiras
agonísticas da moral na política1

I A F. B e C B

“O bom candidato é aquele que ajuda a comunidade.” Essa


frase, que pode ser encontrada de forma mais ou menos explícita em falas,
músicas e slogans de campanha eleitoral, ilustra a principal questão nor-
teadora das reflexões presentes neste texto. Para além de uma percepção
do voto como forma de dominação ou reprodução de relações pessoais
de poder, a pesquisa etnográfica 2 apontou o registro de experiências sig-
nificativas indutoras de trocas sociais e valores morais.
A troca de dádivas3 figurada na categoria nativa ajuda e seus limites
temporais agonísticos capazes de atualizar a equação interesse versus

1 Uma versão anterior deste texto foi publicada como BARREIRA, Irlys Alencar F.;
Barreira, César. Horizontes Antropológicos, vol.18, n.37, 2012. Na atual versão, os nomes
de lugares e pessoas são fictícios, tendo em vista a inclusão de informações relevantes
para a pesquisa, sem eventuais prejuízos de ordem ética para os informantes.
2 Pesquisa etnográfica em Maré Forte, antiga aldeia de pescadores cearense, hoje,
com cinco mil habitantes, um distrito do município de Coqueiraz, situado a 12 km da
sede e 45 km da capital do Ceará. A renda básica da população do distrito é proveniente
de atividades ligadas a veraneio, a pesca e comércio. Os proprietários de casas de vera-
neio e visitantes são provenientes, principalmente, de Fortaleza.
3 Análise sobre a dádiva e suas interfaces com o tema do interesse são encontradas
em MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades ar-
caicas.” In: Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2013; BOURDIEU, Pierre.
Razões práticas: sobre a teoria da ação. São Paulo: Papirus, 2013.
desinteresse e os sentidos de pertencimento e equivalência 4 como par-
tes da ideia de representação política fornecem embasamentos teóricos
relevantes explorados ao longo do artigo.
Uma metodologia baseada na observação do cotidiano de moradores,
associada à incorporação do “ponto de vista nativo”, e próxima ao que
é designado como parte da tradição básica da etnografia5 pontuou a
investigação realizada em Maré Forte. Assim, foram registradas muitas
conversas, observação de visitas de candidatos a potenciais eleitores,
reuniões, inaugurações, comícios e tudo que sinalizava a atmosfera dos
agenciamentos eleitorais.
Nossa condição de proprietários de casa de veraneio e frequentadores
usuais da localidade estabeleceu um elo de cumplicidade com os infor-
mantes, tornando relativamente natural a curiosidade dos pesquisado-
res sobre as ocorrências e opiniões circunscritas ao “tempo da política”.
Nesse contexto, a formalidade habitual característica da interação entre
pesquisador e pesquisado foi substituída por conversas e depoimentos,6
geralmente formulados “no calor dos acontecimentos”.7 E o fato de vo-
tarmos em Fortaleza contribuía para dirimir eventuais constrangimentos
ocasionados por diferenças imaginadas entre pesquisador e informantes
na opção por candidaturas.
A abordagem teórico-metodológica utilizada foi consonante à ideia de
pensar as eleições como expressão de um tempo especial,8 não separado
das interações locais e processos sociais mais amplos. Saber efetivamente
como as adesões a candidatos revelavam percepções dos moradores acerca
da política e o modo como elas se inseriam nas práticas sociais cotidianas

4 BOLTANSKI, Luc. L’amour et la justice comme compétences: trois essais de sociologie de


l’action. Paris: Métailié, 1990.
5 Ver a esse respeito GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro:
Guanabara Koogan, 1989.
6 Os depoimentos citados ao longo do texto foram obtidos por meio de conversas
no momento da campanha eleitoral, sendo as entrevistas com os candidatos realizadas
logo após as eleições.
7 Gostaríamos de registrar o incentivo de Moacir Palmeira para que fizéssemos uma
pesquisa sobre as eleições em Maré Forte, aproveitando, enquanto proprietários e ve-
ranistas, da nossa condição de observadores privilegiados. Seu estímulo inicial na pes-
quisa e a leitura posterior do escrito merecem nosso agradecimento.
8 PALMEIRA, Moacir; Heredia, Beatriz. “Os comícios e a política de facções.” Anuá-
rio Antropológico. N.94, 1995.

 · “Ajuda”, “compra de voto” e reconhecimento


associadas a valores morais9 constituiu o ponto de referência amplo que
guiou a investigação.10
Com base nessas observações, foi possível formular algumas hipó-
teses ou guias de investigação, tornando mais complexas e ampliadas as
explicações sobre as adesões eleitorais como constatação exclusiva de
formas tradicionais de poder.11 Assim, foram considerados na situação
analisada um conjunto de trocas e regras sociais com cálculos e afirmações
de valores orquestrados em “campos de ajuda” e “modos de pertenci-
mento” que pontuavam as crenças e rejeições aos postulantes a cargos
de representação.
A categoria nativa ajuda e suas imbricações com o sentido de pertenci-
mento revelaram-se como espécie de “descoberta etnográfica”, servindo
de referência para analisar as avaliações de candidaturas, assim como as
trocas simbólicas estabelecidas entre moradores e candidatos ao parla-
mento municipal.
No percurso das chaves de leitura como supostos da teoria etnográ-
fica 12 foram evitadas explicações sobre as ações de eleitores postas no
âmbito do negativo e, por essa razão, indicadoras exclusivas de ausências
(cidadania, falsa consciência ou reflexo de dominação política). Nessa
perspectiva, fomos menos interessados nos posicionamentos acerca das
polêmicas e mais comprometidos com o registro etnográfico das fronteiras
borradas que se estabelecem em situações especiais, como é o caso das

9 A moral em Durkheim está ligada à obrigação, estando os sentimentos e a razão


internalizados. A obrigação individual é vista como um bem para todos, pois o indiví-
duo tem a sociedade internalizada por meio de representações coletivas, sendo a so-
ciologia dos fatos morais produto da interação entre julgamento, atos e fatos. A moral
deve ser analisada como prática, como justificação e não como princípio filosófico.
Moral associada a uma política da moral que assinala um dever-ser baseado em códigos
da experiência. Ver DURKHEIM, Émile. Lições de sociologia. São Paulo: Martins Fontes,
2002.
10 Trata-se de reflexões que se coadunam com a linha de trabalho do Programa de
Apoio ao Núcleo de Excelência (Pronex) Antropologia da Política: Rituais, Represen-
tações e Violência, que subsidiou um conjunto de pesquisas e coleção de livros, arti-
culado ao Nuap/Museu Nacional, sob coordenação de Moacir Palmeira, Mariza Peirano
e César Barreira.
11 Ver, por exemplo, entre outros, o clássico trabalho de LEAL, Victor Nunes. Corone-
lismo, enxada e voto. São Paulo: Alfa Ômega, 1986.
12 Ver PEIRANO, Mariza G. S. A favor da etnografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
1995.

Irlys Alencar F. Barreira e César Barreira · 


eleições. Em uma abordagem inversa, optamos por navegar no espaço das
significações, reveladoras da indissociável relação entre prática política e
pressupostos morais ou visões de mundo, corroborando com a perspectiva
de Didier Fassin 13 que considera ser a moral um espaço inclusivo de outros
domínios da vida social. Conclui o autor que a antropologia da moral não
deve ser um objeto moralizante, cabendo ao pesquisador tomar as tensões
e debates em torno da moral como parte de seu exercício de investigação.
Os candidatos “do lugar” em oposição a outros “de fora”, assim como
os sentidos de ajuda como requisito considerado legítimo na construção
da representação política instituíram classificações que poderiam ser
designadas, na rota inspiradora de Thompson,14 como economia moral
das trocas eleitorais.
Assim, é possível designar por economia moral das trocas eleitorais a
rede de interações envolvendo eleitores, candidatos e mediadores – que
permeou e realçou, no momento eleitoral, sentidos de ajuda e pertenci-
mento integrantes das práticas sociais locais.

Candidatos de Maré Forte: o discurso do pertencimento

Há vinte anos que ando aqui e tudo é igual. Esta parte daqui não mudou
nada, é a mesma areia nas ruas. Eu tenho um projeto para tornar a duna
que é móvel em fixa, colocando casca de coco e plantando coqueiro. Vou
fazer um lugar na duna para o povo ver o pôr do sol. (Candidato pelo PDT,
Patrício Morais, discurso feito na praça da sede)

Eu sonho alto. Quero transformar [esta] na cidade do coco, para fazer


chegar o turismo. (Candidata pelo PRTB, Karina, de Maré Forte, conversa
com os pesquisadores)

O distrito de Maré Forte tem características semelhantes a outros


povoados litorâneos da região leste do Ceará, mesclando atividades

13 FASSIN, Didier. “Introduction: Towards a Critical Moral Anthropology.” In:. A


Companion to Moral Anthropology. Oxford: Wiley-Blackwell, 2012.
14 Ver THOMPSON, E. P. Economia moral das multidões. Portugal: Antígona, 2008.

 · “Ajuda”, “compra de voto” e reconhecimento


tradicionais de pesca e veraneio com tentativas de incentivo ao turismo.
Do ponto de vista da organização espacial, observa-se um aglomerado
de edificações na parte central, onde se estabeleceu anteriormente a
colônia de pescadores, com lugar de estacionamento dos barcos, pontos
comerciais e casas de moradores. As residências de veranistas, inicial-
mente construídas em torno do povoado, foram gradativamente ocupando
seu centro e espalhando-se em terrenos circunvizinhos, à medida que
a saída de pescadores correspondia à lógica de construção de novos lo-
teamentos promovidos pela especulação imobiliária comum em áreas do
litoral cearense. Com base em contornos de limites tênues, observava-se
uma classificação entre os moradores do local, os moradores de povoados
próximos, os proprietários de residências frequentadas em momentos de
férias e finais de semana e os turistas.
A convivência entre os “de fora” e os “de dentro” ocorria principal-
mente nos finais de semana, férias e feriados, modificando-se, nos últimos
anos, pela presença de alguns moradores ou visitantes estrangeiros, ge-
ralmente aposentados, atraídos pelo estilo de vida litorâneo. A construção
ou aquisição mais recente de moradias por americanos, portugueses e
outros europeus de modo geral redefine os critérios de pertencimento,
tornando antigos proprietários parte de um novo todo que se opõe aos
“estrangeiros”.
Menos caracterizado como um distrito de renda interna independen-
te, Maré Forte deve seu crescimento à pesca e a investimentos externos,
realizados principalmente em zonas litorâneas próximas, provenientes
de projetos turísticos15 da região de Coqueiraz, tais como clubes e redes
de hotéis.
Uma mobilização a favor da emancipação política de Maré Forte do
município de Coqueiraz, encabeçada por alguns moradores, em 2004,
não obteve consenso, sob a contra-argumentação da falta de renda in-
terna capaz de justificar o desmembramento. Os argumentos em prol

15 A gestão da prefeita Vanilza, eleita pelo PDT em 2000, por dois mandatos consecu-
tivos, priorizou o que seria uma “vocação turística natural”, apoiando a construção de
hotéis e melhoria de estradas. De todo modo, a presença de turistas em Maré Forte é
pouco significativa, se comparada com localidades praianas do estado do Ceará, como
Canoa Quebrada e Jericoacoara, nas quais ocorreu uma inversão da condição de colônia
de pescadores para a de “local turístico”.

Irlys Alencar F. Barreira e César Barreira · 


da emancipação fundamentavam-se na demanda por educação, saúde,
segurança e serviços básicos de saneamento, considerados precários em
um distrito “abandonado” pelos poderes públicos.
Discursos eleitorais posteriores a esse período, alusivos a candidatos
“do lugar”, reforçavam a necessidade de serem escolhidos representantes
comprometidos com a realização de benefícios locais, voltados para pro-
mover o desenvolvimento de uma suposta “vocação turística”. O sentido
de pertencimento associado à representação política, construído de forma
restrita, porque referido especificamente ao distrito e não ao município,
funcionava, assim, como uma das condições necessárias ao capital sim-
bólico de candidatos à Câmara de Coqueiraz.
É importante ressaltar que a ideia de pertencimento como requisito
de credibilidade não se restringe a Maré Forte; é comum encontrá-la
em localidades cuja população se sente pouco beneficiada pelos poderes
centralizados.16 A percepção difundida no senso comum da política como
prática distante e exposta a suspeitas emerge aí com nitidez, apontan-
do candidatos “que só aparecem no tempo das eleições”. Ao longo da
pesquisa, não raro encontramos moradores que, de diversos modos, se
expressavam como portadores dessa versão sobre a política, tornando
as candidaturas uma espécie de disputa entre quem era “de dentro” ou
“de fora” do lugar. Esta última condição funcionava, às vezes, como ca-
tegoria acusatória, utilizada para desabonar pretendentes vistos como
“não comprometidos” com os moradores. A condição de pertencimento
invocava, portanto, uma espécie de moeda simbólica acionada no jogo
político, associando-se ainda a um sentido de reputação:17 os “candidatos
do lugar” mereciam maior credibilidade.
Algumas formulações discursivas, invocadoras mais diretas da con-
dição de pertencimento, merecem ser mencionadas.

16 O discurso do pertencimento e das classificações entre os “de fora” e os de “den-


tro” encontra-se também presente em outras localidades que vivenciam tensões com
poderes centrais. Tal é o caso da Córsega em seu processo de luta por autonomia. Ver
BARREIRA, César. “Identidade, honra e conflito na Córsega: breves notas de pesqui-
sa.” In: Miranda, Júlia; Pordeus, JR., Ismael; Laplantine, François (orgs.). Imaginários
sociais em movimento. São Paulo: Pontes, 2006b.
17 Ver BAILEY, Frederick G.. Gifts and Poison: The Politics of Reputation. Oxford: Basil
Blackwell, 1971.

 · “Ajuda”, “compra de voto” e reconhecimento


Os sentidos do pertencimento referiam-se não só à dimensão geo-
gráfica, mas ao trabalho político desenvolvido no local, funcionando
como espécie de passaporte para o vínculo com o distrito. Os comícios
realizados em distritos e povoados próximos reiteravam essa perspectiva,
fazendo constantes referências aos “candidatos do lugar” e suas propostas
à chefia do Executivo Municipal. A exaltação ao distrito, em obediência a
uma lógica de articulação municipal, supunha uma espécie de descentra-
lização simbólica e garantia de que o “lugar não seria esquecido”, porque
protegido permanentemente pelos seus representantes.
O sentido afirmativo do lugar estava presente desde o momento da
apresentação de candidaturas,18 em slogans que acionavam filiação a
moradores conhecidos, ou alusões a localidades em substituição ao so-
brenome de registro de nascimento: Luzia do Vavá, Rita do Franskin,
Louro de Maré Forte, Silvia de Maré Forte etc. Afirmação e denegação,
pois uma das candidatas, embora filha de moradores, utilizando essa
condição em sua propaganda eleitoral, era acusada de “passar muito
tempo fora do distrito”.
O pertencimento, que ia além da localização geográfica, realçava nas
candidaturas o “compromisso com os moradores”, baseando-se também
em outros supostos normativos. Era preciso construir simbolicamente
o “estatuto de morador”, sobretudo entre postulantes residentes não
nativos. Essa foi uma das tarefas do candidato Patrício Morais,19 que se
apresentava como “realizador de trabalhos comunitários há mais de vinte
anos”, incluindo obras ligadas à Igreja. O fato de haver também casado
e batizado seus filhos no local era mencionado em acréscimo. A ideia de
pertencimento modelava a credibilidade de pretendentes, associando-
-se à categoria ajuda como requisito importante capaz de dar sentido e
legitimidade à representação política.

18 Na capital cearense, a mesma estratégia foi encontrada em bairros populares, a exem-


plo da candidatura de Ana do Lagamar. A esse respeito ver BARREIRA, Irlys. Chuva de pa-
péis: Ritos e símbolos de campanha eleitoral no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998.
19 Patrício Morais, casado com a filha de antigo proprietário de casa de veraneio, tor-
nou-se candidato pelo PDT. Construiu seu capital político com apoio da Paróquia local,
na qual ocupava a função de tesoureiro. Além de frequentar semanalmente a missa
cuja vinda do Pároco era garantida por recurso pessoal (o pároco deslocava-se de outro
distrito), participava e organizava reuniões, a exemplo do “Terço dos Homens”, ritual
religioso realizado nas segundas-feiras, reunindo pescadores de Maré Forte.

Irlys Alencar F. Barreira e César Barreira · 


Campos de ajuda

Eu peço que o povo vote no Louro, digo que ele sempre ajudou o pessoal
e, se eleito, vai poder ajudar mais. (Esposa do candidato Louro de Maré
Forte, conversa com os pesquisadores)

Os campos de ajuda acionados durante a campanha eleitoral referi-


ram-se ao atendimento de necessidades pessoais e carências coletivas
tais como emprego, saúde e obras. A intermediação ou ação direta na
realização de benefícios associados a projetos de infraestrutura e equi-
pamentos urbanos foi arrolada como manifestação de compromisso entre
moradores e pretendentes à Câmara de Coqueiraz.
O candidato Louro de Maré Forte era visto por adeptos como defen-
sor dos interesses dos moradores, pois havia feito calçamento, sistema
de esgoto sanitário e reforma de praça próxima a seu local de moradia.
Conforme o seu discurso, essas ações o creditavam a representar a “co-
munidade”, ao contrário de outros candidatos que “só visavam o interesse
pessoal”. Quando passou a morar na rua Beira Mangue, dizia: “Não havia
nada de saneamento; as pessoas defecavam e jogavam dejetos no rio.”
Agora, que havia conseguido verbas para saneamento e instalação de
aparelhos sanitários, sentia-se capaz de se colocar na função de porta-voz
dos interesses de moradores junto ao Legislativo Municipal de Coqueiraz.
“Esse papel de mediador eu já tenho. Eu quero é ampliar essa função.”
A ajuda pressupunha também um diagnóstico acusatório dirigido a
candidatos ou representantes que “não haviam feito nada pela comunida-
de”, ou “teriam realizado benefícios apenas em troca de interesse pessoal”.
A dificuldade no atendimento de demandas comunitárias era men-
cionada por candidatos que mostravam o que haviam feito, isto é, as
ajudas prestadas à comunidade e a impossibilidade de prosseguimento
das mesmas pela falta de mandato municipal.
A ajuda também se aproximava do sentido de caridade, evocando
a natureza pessoal das relações20 no contexto das interações sociais,
que modulavam não só o espaço das trocas cotidianas, mas a esfera da

20 Trata-se de interações de ordem pessoal já identificadas por DAMATTA, Roberto.


Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Guanabara, 1990.

 · “Ajuda”, “compra de voto” e reconhecimento


representação política. Emergia, em tais circunstâncias, a noção de pes-
soa comprometida em apoiar os necessitados com os quais estabeleciam
vínculos e formas de reconhecimento ou consideração21 condizentes com
a identificação entre indivíduos e suas comunidades imediatas.
A prática de ajuda tem sentido em um contexto no qual as relações
pessoais parecem decisivas na condução da vida cotidiana, seja na ob-
tenção de empregos ou em outras mediações requisitadas para obtenção
de serviços básicos. Tais práticas estendiam-se também ao espaço da
política. Nesse sentido, a justificativa para o pedido de votos, feita em
comício e outras falas públicas, referia-se à importância da união entre
moradores na medida em que “eram quase todos parentes e membros de
uma grande família”.
Na mesma perspectiva, uma representação idealizada de caridade
associada ao sentido de ajuda era mencionada em reunião de apoio à
candidatura de Patrício Morais. Na oportunidade, um apoiador de sua
campanha difundia o seguinte episódio: “Um dia uma menina me pediu
uma chinela, dizendo que já faziam três dias que ela andava descalça. Eu
disse que não tinha dinheiro. Patrício Morais ouviu a história e deu uma
sandália para ela. Eu fiquei pensando que, se ele fazia isso, que era tão
pequeno, quando fosse vereador poderia ajudar muito mais.”
O discurso dos candidatos à Câmara baseava-se, principalmente, na
promessa associada a benfeitorias para o local. O vereador realizaria, no
sentido amplo, o que “outros políticos não fazem”. Como representante
próximo aos “seus” representados seria o mediador das demandas junto
à Câmara e defensor de interesses próprios de “seu” distrito.
Ocuparia também o vereador um lugar parecido com o de médi-
co, aquele que a cada situação de aflição deveria socorrer os moradores
necessitados. Trata-se de exemplo recorrente em outras situações. Em
uma pesquisa realizada no município de Canindé, Ceará, baseada em
representações sobre candidatos,22 a população entrevistada identificou

21 A respeito da categoria consideração, ver CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto.


“Direitos republicanos, identidades coletivas e esfera pública no Brasil e no Quebec.”
In: Barreira, César; Palmeira, Moacir (orgs.). Política no Brasil: visões de antropólogos. Rio
de Janeiro: Relume Dumará, 2006.
22 Essa pesquisa foi realizada como prática de trabalho de campo dos alunos de gra-
duação em ciências sociais da UFC, na disciplina Sociologia do Conflito, ministrada por
César Barreira, no segundo semestre de 1999.

Irlys Alencar F. Barreira e César Barreira · 


o “bom político” como aquele que “ajuda o pobre e a população em geral”
e o “mau político” como o que “não tem palavra”. A “palavra dada” com
a promessa de campanha não cumprida era interpretada como falta de
respeito e dignidade.
A condição de representante voltado à resolução de carências locais
em Maré Forte tornava o vereador uma espécie de miniprefeito, sendo per-
cebido mais por funções executivas que legislativas. Contribuía também
para essa concepção o processo de descentralização das verbas federais
que conferiu aos municípios maior autonomia na gestão de recursos. A
aprovação de projetos e a realização de benfeitorias tornaram-se, por-
tanto, mais acessíveis ao “poder local”, potencializando apropriações
pessoais ou disputas por “autorias”. O discurso de campanha de muitos
vereadores candidatos à reeleição reforçava uma espécie de testemunho
de intervenções realizadas durante “sua gestão”, ao mesmo tempo que
denunciava apropriações indevidas de autoria de beneficiamento. Alguns
candidatos afirmavam ter a “prova” de que eles, e não os concorrentes,
eram responsáveis por obras realizadas no distrito.
A vereadora Gildete Gomes, eleita pelo PTB em 2004 e candidata à
reeleição, era considerada por seus adeptos como alguém que ajudava as
pessoas da localidade, com ambulância para transporte de doentes. Esse
feito foi bastante mencionado em sua campanha, sendo revalidado por
meio da vitória eleitoral.
Outro campo de ajuda contabilizado durante a campanha referiu-se
à oferta de emprego para jovens moradores de Maré Forte. Alisson, can-
didato de 21 anos, tornou-se líder do PCdoB quando enfrentou a luta pela
preservação da meia passagem, comandando uma interdição de carros
na entrada do povoado, com manifestações de protesto. Recebeu para a
campanha eleitoral reforço de representantes do partido que ocupavam
cargos executivos, “gente importante”, segundo relato de seu pai, que
conseguiu vagas para jovens desempregados em outras localidades. O
desdobrar dos acontecimentos era, assim, narrado pelo informante, em
depoimento: “Você precisa ver: todos os dias sai o ônibus cheio de gente
para trabalhar. Alguns ganham até R$ 700. Esse pessoal era desemprega-
do e não fazia nada. Agora, sim, tão trabalhando.”23 De fato, foi possível

23 Segundo informação de alguns moradores, sem a devida comprovação oficial, fo-


ram concedidos 160 empregos temporários para jovens residentes naquela localidade.

 · “Ajuda”, “compra de voto” e reconhecimento


constatar na pesquisa a importância do emprego como requisito de cam-
panha, tornando um candidato jovem e estreante na política o primeiro
suplente ao pretendido cargo de vereança à Câmara de Aquiraz que venceu
as eleições no pleito seguinte.
Algumas candidaturas signatárias dos diferentes tipos de ajuda ope-
ravam uma divisão complementar de votos entre familiares:

Na minha família, dois vão votar no Alisson por conta do emprego que
ele arranjou para o primo, quer dizer a tia e o filho. Outros da família
vão votar na Gildete porque ela presta um papel importante de ajuda à
comunidade por meio do transporte. (Moradora, costureira)

Na mesma direção de afirmação do compromisso do voto em troca


da ajuda, o proprietário de restaurante alegou que sua família votaria no
candidato que arranjou emprego para o filho. O beneficiado tinha feito um
curso médio, mas estava desempregado. Alisson havia pedido o currículo
do seu filho e logo depois ele tinha emprego.
Os campos de ajuda estendiam-se também à obtenção de documen-
tos, entre os quais o título de eleitor. A regularização de títulos constituía
uma das maneiras de produzir adesões, funcionando como uma espécie de
auxílio ao eleitor impossibilitado, por diversas razões, de ter os documen-
tos em dia. Ressaltava-se, nessa circunstância, a dimensão performática
do cidadão posto no papel de eleitor.24 Associada à condição de ajuda, a
obtenção ou regularização de títulos tinha um caráter ambíguo, podendo
ser considerado também ato de interesse exclusivo do candidato, porque
realizado no momento das eleições.
Os campos de ajuda remetem a um conjunto de necessidades difíceis
de serem equacionadas no âmbito dos acessos formalmente instituídos,
caracterizando localidades marcadas por dificuldades de recursos e pou-
cas possibilidades de mediação com os poderes públicos.

Nos cálculos de um outro morador, cada emprego poderia ser multiplicado por dez
votos familiares.
24 Sobre a importância dos papéis e os percursos da legalização e obtenção de do-
cumentos, ver PEIRANO, Mariza G. S. “De que serve um documento?” In: Palmeira,
Moacir; Barreira, César (orgs.). Política no Brasil: Visões de antropólogos. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2006.

Irlys Alencar F. Barreira e César Barreira · 


Os mediadores de recursos, geralmente detentores de cargos de re-
presentação, realizam serviços de transporte, empréstimo e benfeitorias
em diferentes situações de precariedade. Não é, portanto, estranho que
o momento eleitoral dê visibilidade a esses campos de ajuda também
modulados por um sentido de tempo.

Tempo da ajuda

Porque se você quer mostrar que faz alguma coisa pelo povo não deve ser
no momento da eleição, mas antes. Aqui tem candidato que se mostra
fazendo benfeitorias só no momento da campanha. (Proprietário de bar
situado na praça da sede, conversa com os pesquisadores)

A ideia de ajuda, em oposição à compra direta do voto, supunha


uma distância temporal entre o voto e as benfeitorias. A noção do tempo
considerado justo para a realização de obras comunitárias modulava a
legitimidade de candidatos e a credibilidade de suas ações de ajuda aos
moradores. Tal como Bourdieu25 observou a respeito da importância do
tempo como denegação da troca, é importante destacar o intervalo entre
o benefício e o voto, funcionando como um dos supostos normativos da
adesão eleitoral.
“Aparecer apenas na época das eleições” e não comprovar o compro-
misso com o distrito, em momentos anteriores, punham o candidato na
condição de suspeito. Nessa perspectiva, eram compreensíveis muitas das
ações e dos discursos dos pretendentes a cargos de representação voltados
para demonstração de “ajuda a uma comunidade carente”. O “currículo
de benfeitorias” dos candidatos deveria, portanto, adequar-se ao tempo
possível de construção da credibilidade, circunscrito a um momento
considerado não próximo ao período eleitoral.

25 Na perspectiva do autor, “o importante na troca de dádivas é que, através do in-


tervalo de tempo interposto, os dois trocadores trabalham, sem sabê-lo e sem estarem
combinados, para mascarar, ou recalcar, a verdade objetiva do que fazem. Verdade que
o sociólogo desvenda, mas correndo o risco de descrever como cálculo cínico” (p.160).
Ver BOURDIEU, Pierre. Razões práticas. São Paulo: Papirus, 2013.

 · “Ajuda”, “compra de voto” e reconhecimento


A candidatura de Patrício Morais tentou, por exemplo, explorar a
fidedignidade dessa equação regulada, entre tempo de ajuda e tempo das
eleições, no modo como apresentava seu trabalho político a potenciais
eleitores. Um vídeo sobre a vida do candidato exibido na praça central,
logo após a missa do sábado, com presença de apoiadores, iniciava com
imagens de suas caminhadas nos arredores da sede distrital. Comenta-
dores de sua trajetória apontavam trabalhos lá realizados, ressaltando
que não era “de agora”, já fazia muitos anos. O candidato reiterava o dito
com inúmeros exemplos. Relatava a realização de vários serviços de sa-
neamento sem o apoio da prefeitura, além de outras iniciativas de bene-
ficiamento que não puderam ser concluídas pela falta do mandato legal.
Narrava também outro fato exemplar de apoio comunitário em momento
anterior à campanha: levantara as paredes de uma casinha que havia de-
sabado, deixando-a só em ponto de alvenaria, não obstante o desejo da
família de concluí-la. Argumentou não haver terminado a obra, pois se
aproximavam as eleições e queria evitar interpretações de que o benefício
familiar deveria ser retribuído em troca de votos. A benfeitoria, segundo
suas palavras, tinha sido feita por “caridade”, motivada pela observação
da situação da moradia precária, em visita feita ao local, com sua sogra.
No cômputo das articulações entre tempo e ajuda, destaca-se o mo-
mento de implementação de benfeitorias, capaz de tornar “quase nativo”
um morador “de fora”; o instante de parar o benefício, retirando o sentido
de interesse suscitado na troca imediata da ajuda pelo voto e a situação
ambígua e paradoxal das trocas na ocasião das eleições.
Os custos da ajuda são também indicativos de formas complexas de
intermediação entre representantes políticos e moradores.

Os custos da ajuda

O povo precisa muito da ajuda. Eu não ajudo porque não sou vereador.
(Proprietária de estabelecimento comercial, conversa com os pesqui-
sadores)

A ajuda circunscrevia-se tanto ao apoio a moradores, dado por meio de


recursos públicos, como pessoais, provenientes de pretendentes políticos

Irlys Alencar F. Barreira e César Barreira · 


estreantes ou postulantes à reeleição. Algumas situações e discursos fo-
ram reveladores dessa perspectiva de não separação entre o que estaria
posto no registro do favor e o que se conformaria ao âmbito da realização
de um serviço público.
Um proprietário de restaurante alegou, por exemplo, que inicialmente
apoiava a vereadora Gildete Gomes, tendo com ela um acordo de fornecer
comida aos policiais. “Eu dava todo dia as refeições dos soldados que
trabalhavam aqui em Maré Forte e gastava R$ 400 por mês. A Gildete,
em um ano, ajudou dando R$ 150, mas depois de três meses disse que
não podia mais. Como é que pode, uma vereadora não poder ajudar?”
O ressentimento do comerciante baseava-se no princípio de que aquela
quantia considerada irrisória deveria ser doada inclusive com recursos
pessoais da vereadora, considerando ainda que ela ganhava, além do sa-
lário, benefícios indiretos como o aluguel do seu transporte à prefeitura.
O sentido da ajuda efetivada com base em recursos pessoais foi tam-
bém mencionado por um pescador aposentado que, em conversa, afirmou
ter o candidato “do sindicato” dos pescadores declarado o propósito de
repartir o salário com os demais integrantes da colônia de sua categoria.
Ganharia R$ 10 mil (salário superestimado pelo candidato e pelo infor-
mante), dos quais deixaria R$ 4 mil para a comunidade. A promessa, na
versão do pescador, era viável e contrária àquela feita por candidatos que
prometiam, mas não efetivavam o pagamento de contas de luz.26
A utilização de recursos pessoais para o atendimento de carências
coletivas era também justificada pelo candidato Patrício Morais. Pro-
metia o pretendente à representação na Câmara de Coqueiraz que, se não
conseguisse, por meio de verba pública, transporte para locomoção de
pacientes funcionando 24 horas por dia, ele próprio o compraria.
Os custos da ajuda constituem uma entrada para a compreensão dos
liames estreitos que articulam relações pessoais e relações políticas. A

26 O vereador João Aldir, por exemplo, havia recolhido as contas de luz dos moradores
durante sua campanha para serem regularizadas após a vitória. Justificou o não cum-
primento da promessa em virtude do preço das dívidas. Sua ação, embora inconclusa,
justificava a opinião corrente, entre a população, de que “era muito bom, pois tratava o
eleitor como uma família”. Avaliação semelhante do político como “boa pessoa” pode
ser encontrada na pesquisa de CHAVES, Ana C. “Eleições em Buritis: A pessoa políti-
ca.” In: Palmeira, Moacir; Goldman, Márcio (orgs.). Antropologia, voto e representação
política. Rio de Janeiro: Contracapa, 1996.

 · “Ajuda”, “compra de voto” e reconhecimento


legitimidade da ajuda demonstra que as adesões eleitorais encontram-se
inseridas no circuito das trocas e nos mecanismos de reconhecimento e
retribuição.

“Ajuda”, reconhecimento e retribuição

Que princípio de equivalência aciona a ajuda? Como relacionar o valor dos


benefícios e o valor das pessoas? A ajuda constitui uma categoria relacional
que remete à reciprocidade. A gratidão do eleitor deve ser demonstrada
na hora do voto, materializando o sentido de reconhecimento. O voto
aparece, portanto, como um bem de troca não equiparável à mercado-
ria. As referências à compra de remédios, serviços médicos e de uso da
ambulância como atos com obrigação de retribuição do voto podem ser
percebidas no discurso de um dos candidatos: “Tenho 25 anos de serviço
prestado. Sou médico formado pela Universidade Federal com apoio do
meu pai, mas também financiado pelo povo. Eu quero a ajuda de vocês para
poder representar seus interesses. Se eu estiver lá, eles poderão me ouvir.
Agora, nem adianta eu falar porque ninguém me ouve. Eu quero defender
os interesses do povo de Aquiraz. Vou conseguir transporte para saúde,
que irá funcionar também durante o fim de semana.” (Dr. Charles, can-
didato pelo PP, discurso feito em reunião com eleitores na praça da sede)
O circuito de ajuda, reconhecimento e retribuição supõe um fluxo de
continuidade na reposição das trocas. O candidato eleito teria também a
obrigação de fazer jus ao voto concedido, por meio da realização de novos
benefícios. No outro polo da reciprocidade, era objeto de crítica “gente
que não reconhecia a ajuda na disposição da ambulância, na doação do
remédio”. Escolher outro candidato e não retribuir a ajuda por meio do
voto traduzia ingratidão ou traição, remetendo esse circuito ao tema
clássico do universo das trocas e dádivas.

Trocas e dádivas

É importante de início considerar que, “na vida cotidiana, as pessoas tro-


cam bens diversos, fato que confirma laços pré-existentes e acionadores

Irlys Alencar F. Barreira e César Barreira · 


de novas relações sociais. Essas trocas supõem uma reciprocidade, segun-
do a qual os que dão também recebem”. Assim se relacionam parentes e
vizinhos, configurando uma troca entre iguais,27 também acompanhadas,
segundo a situação em Maré Forte, de intermediações entre desiguais. Se a
palavra ajuda singulariza troca entre iguais e desiguais, ela pode designar
tanto um favor como uma retribuição afirmadora de hierarquias.
A ajuda, ao ser percebida como um requisito moral, constrói o sentido
da obrigação de retribuir, tornando a ingratidão do “eleitor falso” uma
ameaça ao circuito das trocas. A título de exemplo, em visita realizada na
casa do sogro do candidato Patrício Morais, comentava-se a desconfiança
acerca da retribuição do eleitor, pois “nunca se tinha certeza”, não havia
garantia de fidelidade. Esse era o motivo pelo qual a campanha exigia
do candidato “muito trabalho para evitar o esquecimento”, como o de
visitar permanentemente os eleitores de outros distritos ou povoados
vizinhos.
As possíveis rupturas no circuito das retribuições eram também criti-
cadas por eleitores. O proprietário de uma bodega, por exemplo, criticava
a “falta de reconhecimento” de outro colega de profissão que havia rece-
bido ajuda da vereadora Gildete Gomes para uma ida ao hospital, além de
receber os remédios, mas não iria votar nela.
Os campos de ajuda efetivados com base na vigência de códigos de
retribuição adquiriam visibilidade na apresentação de pequenas obras
inauguradas durante a campanha, sinalizando uma espécie de prova
concreta de continuidade de benefícios para os eleitores.
O circuito das retribuições tornava-se ambíguo, sobretudo quando a
presença direta do dinheiro levantava a suspeita da quebra de vínculos,
sendo considerado a expressão mais radical da “traição” de eleitores a
candidatos.

27 Uma análise sobre as situações hierárquicas ou horizontais das trocas pode ser en-
contrada em HEREDIA, Beatriz. “Política, família e comunidade.” In: Palmeira, Moa-
cir; Goldman, Márcio (orgs.). Antropologia, voto e representação política. Rio de Janeiro:
Contracapa, 1996.

 · “Ajuda”, “compra de voto” e reconhecimento


As fronteiras borradas da “ajuda”, da compra e do
pertencimento

Eu não sou como aqueles que só aparecem no tempo das eleições. Eu estou
sempre presente na vida do povo. Não vendam o voto de vocês, ele não tem
preço. (Dr. Charles, candidato pelo PP, em discurso feito na praça da sede)

A relação negativa entre política e interesse pessoal é bastante di-


fundida no senso comum, soando como alerta e controle sobre a vida
moral de candidatos. O uso indevido do mandato, explicitado por um
garçom de restaurante tradicional, baseava-se no fato de que, para alguns
representantes, a política era “um grande negócio”. O informante, em
uma das conversas sobre eleições locais, pediu licença para falar mais
baixo, ao explicar por que era vantajoso candidatar-se: “Na família da
candidata e vereadora Gildete, seis pessoas se beneficiavam da política;
o marido (secretário de pesca), dois filhos, uma irmã e a cunhada. Já
pensou essa quantidade de salário, só em uma casa?” Criticava também
o garçom a apropriação pessoal do transporte público, argumentando que
todo o “serviço de ambulância” utilizado para levar doentes ao hospital
passava pela casa da vereadora. A explicitação do fato não impediu que
o informante votasse nela, comprovando a supremacia de laços pessoais
sobre a crítica.
No cômputo do uso político de bens pessoais, a distribuição de re-
médios era também objeto de recriminação de moradores, por supor o
monopólio do benefício concedido pelo médico, muitas vezes considerado
uma moeda de troca no estilo “toma lá dá cá”, aproximando-se assim do
dinheiro.
A distribuição de sacas de feijão era, por outro lado, considerada le-
gítima, configurando-se na categoria ajuda. O candidato Patrício Morais
afirmava, por exemplo, que quando doava esse tipo de alimento em suas
visitações era muito bem recebido pela família dos potenciais apoiadores.
Outras nuances apontadas nas práticas de ajuda podem ser percebidas no
seguinte depoimento: “O candidato tem que ajudar o eleitor. No dia das
eleições tem eleitor que não tem dinheiro para comprar uma galinha. Esse
tem que receber ajuda. Não é para o candidato comprar a galinha, mas é
para ajudar a comprar a galinha. O que se precisa mais aqui é energia: o

Irlys Alencar F. Barreira e César Barreira · 


candidato tem que pagar a conta da energia. Eles também querem barro,
areia, tijolo e outras coisas.” (Candidata Cida do Franskin, entrevista
concedida aos pesquisadores)
Outras práticas anteriores contabilizadas na categoria ajuda foram
mencionadas por um morador: “Uma vez falei que a minha filha estava
doente, aí o vereador João Aldir perguntou o que eu queria. Eu disse que
queria levar ela ao médico. Ele só fez pegar uma camisa e me levou e
comprou até os remédios. Ainda tem gente que dizia que ele era ruim.”
O uso do dinheiro como expressão da ajuda também era considerado
legítimo em alguns casos. A esposa do candidato Louro de Maré Forte,
por exemplo, dizia considerar natural que isso ocorresse entre pessoas
muito pobres, não significando compra do voto. Afinal, segundo suas
palavras, “tinha muitas pessoas carentes necessitando de dinheiro até
para comer”, afirmava, em justificativa.
Um candidato do PRTB, com o slogan “Texeirinha, Coqueiraz sem
preconceito”, ilustra bem as fronteiras borradas das transações efetivadas
por meio do voto. O informante, utilizando a palavra agrado, que era uma
espécie de variante da ajuda, estabeleceu conosco o seguinte diálogo:

Informante: A vereadora Gildete ganhou porque as pessoas gostam dela


e também por causa do dinheiro.
Pesquisadores: O que foi mais forte na vitória?

Informante: Foi o dinheiro. Sim, porque tem o agrado e tem a compra. O


agrado é quando você dá uma cesta básica, um arrozinho, um remédio,
paga uma conta de luz. Uma compra de voto é: “Toma aqui R$ 100, R$
200, R$ 300...”

Tudo indica que o agrado entraria no circuito das trocas simbólicas


vigentes no cotidiano da população aparecendo como expressão das ações
dotadas de valor de retribuição com obrigações potenciais de reconhe-
cimento.
Na realidade, é importante constatar que não era apenas o dinheiro
que quebrava o circuito das trocas e retribuições, mas a natureza impes-
soal de seu funcionamento que deslocava as relações de reciprocidade
para o campo indefinido e aleatório da mercadoria. O caráter anônimo

 · “Ajuda”, “compra de voto” e reconhecimento


do dinheiro28 e sua capacidade de deslocar-se do contexto da comuni-
cação entre pessoas poderia ter aí um exemplo significativo e peculiar:
o que estava em jogo era a capacidade da extinção ou continuidade das
interações entre ajudantes e ajudados.
A entrada do dinheiro no circuito da ajuda, sobretudo quando retira a
dimensão personalizada das trocas, sinaliza a compra indevida do voto,
atestando a ruptura de laços de compromissos.29 Percepção semelhante
ocorreu no município de Canindé, localizado na zona norte do sertão cea-
rense, em pesquisa já mencionada. Em questionário aplicado no quadro
de uma investigação sobre percepções do “crime eleitoral”, foi conside-
rado que a compra do voto em dinheiro constituía a prática política mais
criticada, em oposição à distribuição de alimentos, percebida de forma
positiva. A “prestação de serviços à comunidade” feita por representantes
políticos ou candidatos aparecia nessas circunstâncias como uma ação
dúbia e parcialmente aceita. A ideia de ajuda apontava também, naquele
contexto, uma situação ambivalente. Boa parte da população entrevistada
em Canindé afirmava que as eleições representavam um momento de “ti-
rar proveito” e de “viver melhor”, podendo atender algumas necessidades
básicas, tais como: saúde, habitação e educação.
Em síntese, a ideia de ajuda remete a questões do seguinte teor: quando
se deve ajudar, como se ajuda, quem é obrigado a ajudar e quem deve ser
ajudado. A compra do voto representaria, nas circunstâncias explicitadas,
o contraponto ou espécie de ruptura do “valor de uso”, estabelecido na
relação de compromisso entre candidato e eleitor, evocando a dimensão
agonística da troca e as dimensões paradoxais dos campos de ajuda e
reconhecimento.

28 Sobre o tema do dinheiro e seu deslocamento das relações pessoais ver a reflexão
de SIMMEL, Georg. Philosophie de l’argent. Paris: PUF, 1999.
29 O estudo de Foote White sobre Corneville oferece indicações importantes a esse
respeito. Nele o autor analisa as várias formas de adesão a candidatos permeadas por
laços pessoais de fidelidade, incluindo as situações de ruptura. A luta pelo poder é per-
meada por redes de obrigações mútuas e favores e quanto maiores as redes de relações
pessoais menores os custos financeiros. O pagamento em dinheiro costuma ocorrer
onde os vínculos são mais tênues do ponto de vista moral. O favor pago supõe a inexis-
tência de vínculos posteriores, pois a remuneração financeira pode encerrar o círculo
das obrigações mútuas. Ver FOOTE WHYTE, William. Sociedade de esquina. Rio de Ja-
neiro: Zahar, 2005.

Irlys Alencar F. Barreira e César Barreira · 


A compra do voto

Quem ganha eleições são os que têm dinheiro para gastar no dia, porque
na última hora o eleitor troca de voto por causa do dinheiro. (Morador
prestador de serviço, conversa com os pesquisadores)

Os eleitores mais pobres poderiam até receber alguma coisa, mas não
vender a consciência. (Esposa do candidato Louro de Maré Forte, conversa
com os pesquisadores)

A introdução do voto como mercadoria altera o circuito das dádivas,


tornando imprevisíveis e variáveis as relações de compromisso. Em muitas
ocasiões, os candidatos de Maré Forte criticavam a venda de votos, embora
se queixassem da exiguidade de seus recursos pessoais em contraste com
outros postulantes às eleições que, por terem dinheiro, poderiam ganhar
a concorrência.
A posição do eleitor como alguém procurado para doar seu voto in-
verte, por outro lado, imaginariamente, a condição de hierarquia social.
“Vender o voto caro” não significava apenas uma transação comercial,
mas a valorização do eleitor como alguém que tinha o poder de influen-
ciar decisões.
O usufruto de situações, na suposta “compra consciente”, promo-
via a condição estratégica de receber o dinheiro e votar no “candidato
certo”. Trata-se de uma prática disseminada em discursos que supõem
a dificuldade de eliminar a transação, mas não abdicam de conquistar
adesões baseadas no reforço de “candidaturas comprometidas com os
moradores”. Essa perspectiva vem sendo adotada por candidatos de es-
querda, constituindo-se também, hoje, uma espécie de senso comum.
Aconselhava, por exemplo, um dos informantes que quando viesse “um de
fora” pedir voto era melhor receber o dinheiro, mas votar no “candidato
de dentro”, naquele que “fez alguma coisa pelo povo”. Trata-se, como já
foi exposto, de prática difícil de ser implementada por conta de laços de
compromisso estabelecidos.
Uma dádiva recebida por um eleitor e não retribuída no voto o inferio-
riza perante os outros e fere o código de moralidade vigente nas circuns-
tâncias analisadas. Isto pode explicar o insucesso de muitas campanhas

 · “Ajuda”, “compra de voto” e reconhecimento


dos partidos de esquerda, vigentes na década de 1980, que orientavam
os eleitores para que aceitassem donativos dos “outros” partidos e não os
retribuíssem com o voto, ponderando ser o voto secreto. O espanto de um
eleitor retrata bem esta situação: “Mas, como eu não vou votar nele se eu
dei a minha palavra?” (Trabalhador rural, Iguatu, Ceará)30
A compra de candidaturas é também prova da especulação financeira
feita com base no capital simbólico de postulantes a cargos de represen-
tação. A esse respeito, a esposa do candidato Louro de Maré Forte narrava
em depoimento que o marido já tinha recusado proposta de ganhar desde
R$ 25 mil, R$ 35 mil e até R$ 40 mil para desistir da candidatura: “Tem
uns candidatos com muito dinheiro. Eles oferecem dinheiro (R$ 20 mil,
R$ 30 mil e R$ 40 mil) para outro candidato desistir e passar os seus votos.
O Louro não faz isto porque o voto é do povo, o voto não é dele.”
Algumas polêmicas envolvendo a compra de votos se apresentaram
no dia das eleições. Na seção eleitoral situada em povoado próximo ao
distrito, observamos um conflito entre o candidato Zé da Panelada com
um dos cabos eleitorais do concorrente Aureliano Mota. O candidato se
considerava representante legítimo de Areia Grossa, pois morava lá há
vinte anos e havia observado “a compra descarada de voto”. Dizia que
tinha mais de duzentas pessoas no comitê do candidato rival. Solicitando
intervenção da polícia, acusava o candidato Josélio, “que nunca pisava
em Maré Forte”, de contratar pessoas para lhe tirar o voto. “Aqui não
tem nada, nem posto de saúde. Uma pessoa tem que andar isso tudo até
chegar no povoado e quando acaba vem gente que nem pisa aqui tirar o
voto dos outros.” O sentido do não pertencimento associava-se à compra
indevida, ferindo o circuito das retribuições.

30 Ver BARREIRA, César. “Fraudes e corrupções eleitorais: Entre dádivas e contra-


venções.” In: Barreira, César; Palmeira, Moacir (orgs.). Rio de Janeiro: Relume Duma-
rá, 2006. Moacir Palmeira, fazendo referência a este mesmo acontecimento, diz que “a
melhor prova de eficácia desse compromisso são os resultados desastrosos para alguns
partidos ou candidatos de sua orientação de pegar o dinheiro e votar no candidato de
sua consciência. A menos que o autor da consigna tenha um carisma verdadeiramente
extraordinário – que faça com que sua recomendação seja percebida como uma or-
dem tão legítima que possa se sobrepor aos critérios correntes de legitimidade e honra
pessoal embutidos na palavra empenhada – o recebimento de um bem leva o eleitor a
votar naturalmente no seu doador”; PALMEIRA, Moacir. “Política, facções e voto.” In:
Palmeira, Moacir; Goldman, Márcio. Antropologia, voto e representação política. Rio de
Janeiro: Contracapa, 1996.

Irlys Alencar F. Barreira e César Barreira · 


Outra circunstância de compra de voto é narrada por eleitora e mora-
dora de um povoado próximo à Maré Forte. Segundo seu relato, o voto era
vendido por R$ 50. Em uma casa de dez pessoas eram adiantados R$ 250,
sendo o pagamento só concluído se o candidato fosse eleito. O uso de mu-
ros para propaganda de candidatos era também pago e custava R$ 100. Os
candidatos prometiam pintar o muro quando passassem as eleições, mas
nem sempre cumpriam a promessa, acrescentava a informante.

As transações e suas ambiguidades: como pensar em um


estatuto da moral?

A compra do voto, a ajuda e os mecanismos de reconhecimento e retribui-


ção operam de forma simultânea em um contexto de mapas simbólicos e
morais atravessados por diferentes registros.
O deslocamento das trocas pessoais para transações entre candidatos
e eleitores desconhecidos evoca o tema das obrigações e interdições no
“campo das ajudas”. O pertencimento, em tais circunstâncias, passa a
ter papel importante, definindo quem pode ajudar e quem pode ser aju-
dado. A rigor, em uma localidade caracterizada por carências básicas de
consumo de habitação e sobrevivência, é de se esperar que a expectativa
de ajuda tenha consequência sobre a relação entre os “de fora” e os “de
dentro”. As relações estabelecidas entre moradores nativos e proprietários
de casas de veraneio são permeadas por transações referentes ao emprego
doméstico (caseiros), ao uso de profissionais especializados, como bom-
beiros hidráulicos e eletricistas, e outras trocas relativas ao consumo da
produção pesqueira.
Foram identificados os seguintes intercâmbios de bens e favores que
fundamentam o sentido de ajuda:
– Troca entre moradores pertencentes à mesma faixa de renda e
mesmos circuitos de ajuda mútua;
– Troca entre moradores pertencentes a faixas diferentes de renda,
incluindo prestação de serviços e doação de bens materiais;
– Troca entre proprietários e prestação pontual de serviços não
formalizada em trabalho permanente;
– Realização de benefícios materializada em voto.

 · “Ajuda”, “compra de voto” e reconhecimento


A equação trabalho versus ajuda tem nuances, sendo esperado que
em situações aflitivas os “patrões” socorram seus empregados perma-
nentes ou temporários na condição de prestadores de serviços eventuais.
A situação de ex-caseiro31 pode proporcionar uma espécie de contrato
em aberto de dívidas e obrigações, acionadas em momentos especiais
de dificuldade. A pobreza cria, portanto, uma situação de obrigação no
processo de diferenciação e desigualdade.32 Trata-se de um discurso que
circula nas mentes de postulantes a cargos de representação e eleitores,
instituindo uma espécie de “senso comum da moralidade”.
A demanda por ajuda refere-se usualmente a carências cotidianas,
comumente atendidas por moradores do local de maior poder aquisiti-
vo. A ajuda de proprietários de casas de veraneio configura uma relação
esperada, não confundida com a ideia de representação política. Essa é a
razão pela qual Patrício Morais foi criticado por membros de sua assessoria
quando durante um dos seus discursos afirmou ter “ajudado” os pesca-
dores, com a doação de um frigobar, sem interesse eleitoral. A crítica dos
articuladores de sua campanha baseava-se no fato de que os potenciais
eleitores, por já contarem com sua habitual solidariedade, independen-
temente da ocupação do cargo pretendido, não teriam mais motivação
para apoiá-lo por meio do voto.
Dos políticos do “local”, mais especificamente os vereadores, espera-
-se que problemas de saúde e carências financeiras sejam sanados por
meio de ações de vários tipos incluindo o agrado, a remuneração de ser-
viços e a ajuda. Há, nesse sentido, uma troca cotidiana entre “desiguais”,
considerada natural e típica de comunidades pesqueiras com opções
limitadas de emprego e renda.
Se a ajuda integra o circuito dos pertencimentos que vigora na vida
cotidiana, ela é redefinida no período eleitoral. Nesse momento, o espaço

31 Caseiro designa o trabalhador doméstico das casas de veraneio que executa fun-
ções de vigilância e conservação de imóveis, além de prestar serviços diretos aos pro-
prietários no momento de sua estadia.
32 Na perspectiva de Georg Simmel, o direito do necessitado é o fundamento de toda
assistência ao pobre. Aquele que pensa a sua situação de pobreza como injustiça do
mundo cósmico supõe que qualquer um que esteja melhor que ele deve ser solidário. É
possível acrescentar que essa perspectiva não está alheia ao mundo da política, criando
sentidos de obrigação de ajuda, funcionado os representantes políticos como media-
dores de benefícios. Ver SIMMEL, op.cit.

Irlys Alencar F. Barreira e César Barreira · 


geográfico ganha contornos e os “candidatos do lugar” podem transformar
suas práticas de ajuda em reconhecimento por meio do voto. Postulantes
mal inseridos no âmbito do pertencimento, os que “nunca pisam lá”,
são, portanto, motivo de desconfiança, tornando-se vulneráveis a for-
mas acusatórias de “aproveitamento” de situações em prol de “interesses
particulares”.
Se as acusações feitas à candidata vitoriosa, Gildete Gomes, pelo uso
do dinheiro, tiveram pouco efeito negativo em sua reputação, é porque
ela, sendo considerada “de dentro”, tinha prerrogativas positivas para
ajudar seus eleitores da forma que considerasse conveniente, podendo
transitar pelas fronteiras porosas que cerceiam os critérios da legitimidade
da representação.
O pertencimento pode atenuar o sentido da compra, corroborando
com a ideia da impessoalidade associada ao cálculo e interesse. Em prin-
cípio, o “candidato de dentro” tem, de saída, muito mais credibilidade
sobre a reposição do circuito da ajuda que o considerado “de fora”. Este tem
a vulnerabilidade da descrença e a tarefa, em sua campanha, de modular
os custos da ajuda e do pertencimento.
Se é possível pensar na “fidelidade eleitoral”, ou no voto como contra-
-dom, a perspectiva da ajuda, do pertencimento e do reconhecimento
pode ser considerada chave de leitura para interpretar o que designamos
como economia moral das trocas eleitorais.

Reunindo fios: uma economia moral das trocas eleitorais

A ideia de ajuda pode ser pensada sob o prisma do suposto de equivalên-


cia33 nas relações sociais baseando-se em uma economia das grandezas
capaz de apontar quem ajuda, quem é ajudado e quem tem a obrigação de
ajudar. O suposto da equivalência remete ao caráter justo ou injusto das re-
lações estabelecidas entre uns e outros, qualificando a forma de grandeza
a qual as pessoas podem aceder possibilitando o estabelecimento de uma
ordem que não seja arbitrária e que possa ser qualificada de justa. A ajuda

33 Ver a esse respeito a reflexão de Luc Boltanski sobre o sentido de equivalência


como base das relações sociais em BOLTANSKI, Luc. op.cit., p.88.

 · “Ajuda”, “compra de voto” e reconhecimento


nesse sentido supõe um lenitivo para a assimetria capaz de compensar, ao
menos temporariamente, a desigualdade nas relações sociais e políticas.
Pensando a questão para um contexto mais abrangente, a pobreza
suscita uma reflexão sobre a moral, traduzindo em seu bojo reflexões
sobre a filantropia, a obrigação34 e a expectativa de programas políticos
contra a desigualdade.
Um mapa simbólico não explicitado, constituído de avaliações sobre
candidatos e candidaturas permite entender a variedade de situações
que modula a dinâmica das representações de moradores de Maré Forte:
os campos variados de construção da ajuda, o tempo de sua elaboração e
as formas agonísticas que vão da transação entre eleitores e candidatos,
envolvendo dinheiro, até a considerada compra efetiva do voto. O realce
emprestado a essas práticas no momento eleitoral não deve omitir o fato
de sua precedência. De fato, a ajuda entre moradores integra o circuito
das relações cotidianas, assim como as transações hierárquicas entre
pescadores, prestadores de serviços e proprietários veranistas precedem o
momento das eleições. As obrigações de ajudar, a categoria dos que devem
ser ajudados e as formas mais ou menos implícitas de apoios que circun-
dam o sentido de “comunidade” são apropriadas no “tempo da política”,
realçando a dimensão hierárquica das trocas entre candidatos e eleitores.
Se os benefícios são contabilizados e alocados no âmbito da ajuda,
é a sua materialidade explicitada em dinheiro que faz emergir o sentido
forte e denegado do interesse associado ao voto. Na realidade, o caráter
negativo do dinheiro aparece menos em sua materialidade intrínseca e
mais na possibilidade de retirar os compromissos e os laços estabelecidos,
entre candidatos a representantes e moradores, do âmbito da dádiva. E
aqui seria importante enunciar mais uma vez Marcel Mauss quando afirma
que “a sanção da obrigação de retribuir é a obrigação por dívida”.35 É a
relação entre participantes de um contrato simbólico não formalizado que
desencadeia a continuidade do vínculo, não posto no domínio da troca

34 Ver ENGLANE, Harry. “Poverty.” In: Fassin, Didier (org.). A Companion to Moral
Anthropology. Oxford: Wiley-Blackwell, 2012, pp.283-301. O autor analisa a obrigação
de ajudar afirmando que o importante é não apenas ver como os pobres classificam a
pobreza, mas como incorporam a noção de obrigação remetendo a questão à comple-
xidade dos predicados morais.
35 MAUSS, op.cit., p.112.

Irlys Alencar F. Barreira e César Barreira · 


imediata, mas nas transações realizadas ao longo do tempo. O sentido
“generoso e desinteressado” da ação corrobora, na mesma direção, a
concepção de Bourdieu36 sobre a economia das trocas simbólicas baseadas
na valorização do altruísmo em contraponto ao interesse.
A troca desinteressada ou o sentido de generosidade desaparecem
quando a dádiva se submete ao interesse, desfazendo a illusio, no sentido
formulado por Bourdieu,37 e afirmando o calculismo na interpretação
mais otimista sobre a permanência das dádivas na sociedade moderna
formulada por Godbout.38 Este considera que no sentido mais profundo
da troca não existe a perda, na medida em que esta “só pode ser uma
maneira de se deixar enganar num negócio, ou então uma maneira de se
deixar explorar”. A dádiva, sendo necessariamente a noção de crédito de
uma dívida social não quitável é, por esse motivo, acionadora do fluxo
da continuidade.39
A “evitação do calculismo” na situação pesquisada em Maré For-
te aponta as fronteiras porosas que separam o universo valorativo dos
campos de ajuda e reconhecimento. O tempo da ajuda, os custos da aju-
da, a ajuda como símbolo de pertencimento, de reconhecimento e a sua
formulação no espaço da dádiva (sem interesse) apontam um mapa de
moralidade baseado em um conjunto de ações e representações não re-
gistradas no contexto das normas legais.
A ação de ajudar se inscreve, portanto, menos no vocabulário do
direito que no cômputo das dádivas, retribuições e reconhecimentos,
estando registrada no âmbito daquilo que Honneth 40 designaria como

36 BOURDIEU, op.cit., p.154.


37 Idem.
38 GODBOUT, Jacques T. O espírito da dádiva. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999, p.254.
39 As polêmicas sobre a dádiva estabelecidas com base na interpretação dos escritos
de Mauss, seja na interpretação crítica de Lévi-Strauss, seja na apropriação também
crítica de Bourdieu, são interessantes no sentido de considerarem as regras básicas e
estruturantes da comunicação social baseadas nas ações de dar, receber e retribuir.
Sem entrar no universo das polêmicas estabelecidas entre Bourdieu e Godbout, in-
teressa registrar algumas das possibilidades dos usos nativos das dádivas e suas obri-
gações no momento das campanhas eleitorais. Uma reflexão aprofundada sobre essa
problemática pode ser encontrada em SYGAUD, Lígia. “As vicissitudes do ‘Ensaio so-
bre o dom’.” Mana: Estudos de Antropologia Social, vol.5, n.2, 1999.
40 Ver HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais.
São Paulo: 34, 2003. O autor considera as lutas pelo reconhecimento referenciadas no

 · “Ajuda”, “compra de voto” e reconhecimento


fazendo parte das relações primárias, a exemplo do amor e da amizade.
Nosso propósito neste artigo foi o de pensar sobre esse conjunto de práticas
comumente catalogadas como “ausências” de cidadania, de “consciência
política” e de moralidade para alocá-las no contexto das representações
culturais e práticas sociais vigentes na situação analisada.
É importante frisar que a pesquisa realizada em Maré Forte não re-
presenta apenas um singular estudo de caso. Coaduna-se com outra in-
vestigação realizada por César Barreira,41 abordando as práticas políticas
designadas na área jurídica como “crimes eleitorais”.42 A investigação efe-
tivada naquele momento, muito embora informada pela nomenclatura dos
“crimes eleitorais” e sua relação com as formas tradicionais de dominação,
já verificava a ambiguidade de situações classificadas pela Justiça Eleitoral
como criminosas, em rota dissonante com as ações elaboradas no universo
sociopolítico do eleitor. Em tais circunstâncias, as práticas ilegais, não
necessariamente consideradas incorretas pela população, apontavam a
necessidade de entender os códigos de reciprocidade associados a várias
formas de mediação. Códigos que do ponto de vista histórico se contrapu-
nham à tentativa da justiça de regular os processos arcaicos de imposição
do voto, efetivados no tempo do chamado coronelismo.43
Com o surgimento da Justiça Eleitoral, em 1932, as relações entre
postulantes a cargos de representação política e eleitores realçaram a
mediação do campo jurídico como regulador do voto secreto, tentando

amor, no direito e na estima indissociáveis da força moral. Recorrendo a conhecimen-


tos de psicologia, antropologia e sociologia, verifica o autor os conflitos inseridos não
só na distribuição de bens materiais, mas na luta pela dignidade humana que implica
reconhecimento da diversidade e valorização das multiplicidades culturais.
41 BARREIRA, op.cit.
42 O art. 299 do Código Eleitoral define como crime eleitoral: “Dar, oferecer, pro-
meter, solicitar ou receber, para si ou para outrem, dinheiro, dádiva ou qualquer outra
vantagem, para obter ou dar voto e para conseguir ou prometer abstenção, ainda que
a oferta não seja aceita.”
43 Do ponto de vista histórico, as práticas eleitorais podem ser divididas em dois
grandes períodos. O primeiro, predominante no século XVIII e início do século XIX,
caracterizava-se pela coação política por meio de ameaça física aos eleitores. A falta
de liberdade dos eleitores, a possibilidade potencial de uso da violência e a alteração
de resultados eleitorais caracterizavam o voto como imposição do poder oligárquico.
Neste período, não havia a barganha do eleitor pelo simples fato de não existirem “par-
tes livres.”

Irlys Alencar F. Barreira e César Barreira · 


impedir práticas de intimidação e barganha que controlavam o “crime
eleitoral”, incluindo, entre elas, o que eram consideradas dádivas.
A categoria dádiva, na acepção jurídica, não condizente com a asserti-
va de Mauss, tampouco com a categoria ajuda formulada por moradores de
Maré Forte, tornou-se o conceito genérico, utilizado pelos “profissionais
do direito”, para designar tudo aquilo que é oferecido pelo postulante a
cargo eletivo, tendo em vista a obtenção do voto. Ela passou a materializar
os “crimes eleitorais”, definidos precisamente como a ação política de
aliciamento e influência na prática política do eleitor.
A pesquisa em Maré Forte revelou, no entanto, um modelo complexo
de operações e de classificações também passível de referência a outras
situações que subsidiam representações e práticas políticas de eleitores.
Apontou também a situação analisada, a importância de uma “sociologia
ou antropologia da moral”, voltada para a percepção de ações sociais no
contexto eleitoral, pautadas por códigos culturais não imediatamente
decodificados no contexto das instituições formais. Noções de direito e
dever aí apareceram como notas marginais, tecladas fora do registro das
instituições jurídicas.
Sem negar a vigência dos mecanismos de ajuda como espaço de do-
minação simbólica e sem desconhecer a existência de modos de transfor-
mação do voto em mercadoria, evidenciou a existência de um conjunto de
percepções e ações complexas que se interpõem no âmbito das adesões
e escolhas de candidaturas, evidenciando as fronteiras agonísticas da
moral e da política.

 · “Ajuda”, “compra de voto” e reconhecimento


Os limites da “identidade”: uma
etnografia das demandas de
reconhecimento na França e no Brasil

F R M

A partir de pesquisa empírica de caráter etnográfico realizada no


Brasil e na França, pude identificar as diferenças entre as moralidades
conformadoras das ações dos atores nessas duas arquiteturas de vida em
comum. As críticas formuladas no espaço público francês, fundadas por
um princípio de “solidariedade cívica”, fundamentam uma demanda por
reconhecimento vinculado a uma moral “igualitária universalista”. Já no
caso brasileiro, a dimensão hierárquica/desigual, associada a uma lógica
igualitária/individualista, permite a constituição de uma demanda cujo
reconhecimento da “pessoa” é central à produção dos mecanismos de visi-
bilidade (ou invisibilidade) no espaço público. Enquanto no primeiro caso
há uma tendência a uma forte recusa dos vínculos e diacríticos (culturais,
raciais, etc.) dos sujeitos para a promoção da justiça, no segundo tem lugar
uma valorização desses laços, de uma cultura tradicional ou de uma etnia
diferenciada, para a aquisição e distribuição dos bens simbólicos da justiça.
Ao analisar os dispositivos jurídicos e discursivos e os vocabulários
empregados pelos atores em suas reivindicações de direitos e reconhe-
cimento em torno de “identidades diferenciadas” no Brasil e na França,
pretendo fazer emergir as distinções entre as duas gramáticas políticas
sem cair nas armadilhas do “essencialismo cultural”.1 Minha intenção

1 SAID, Edward W. Orientalismo. Lisboa: Cotovia, 2004.


era realçar, por meio da pesquisa antropológica, as diversas formas como
os atores operam suas ações e críticas em situações diversas.
Determinados elementos fundamentais à constituição de algumas ver-
sões do denominado sujeito moderno, como a “africanidade”, a “tradicio-
nalidade”, a “quilombolice”, a “cor da pele”, o pertencimento a uma casta
ou a um determinado grupo étnico, têm sido um importante dispositivo na
luta pelo reconhecimento2 e um elemento relevante para a conformação do
vocabulário das mobilizações políticas contemporâneas. Mas, ainda que
detenham uma amplitude global, esses repertórios discursivos se manifes-
tam de acordo com as gramáticas e cosmologias locais e são apropriados,
lidos e incorporados pelos atores no espaço público de modo plural.
Portanto, em lugar de pensar estes vocabulários e as práticas a eles as-
sociadas como categorias estáveis ou estáticas, buscamos contextualizá-
-las, inscrevendo-as nas ações dramatúrgicas cotidianas dos agentes. Os
mesmos são detentores de uma capacidade crítica que lhes permite lançar
mão de diferentes papéis sociais, ou, como proponho nesse trabalho, de
distintos regimes de envolvimento3 diante das controvérsias públicas.
A proclamação do direito de existência de um self das “culturas par-
ticulares” e “autênticas” tem sido terreno fértil para a emergência das
reivindicações do reconhecimento das autenticidades e diferença.4 Tais
reivindicações e “definições identitárias” não são independentes dos
investissements de forme5 que guiam as ações e os julgamentos dos atores
sociais. Nesse sentido, a abordagem adotada por Laurent Thévenot, bem
como pelos colaboradores de seu grupo de pesquisa,6 distingue-se daque-
las que entendem a forma como uma construção social. Ora, esforçamo-
-nos para nos resguardar do nominalismo das teorias do construtivismo

2 HONNETH, Axel. La lutte pour la reconnasissance. Paris: Cerf, 2000.


3 THÉVENOT, Laurent. L’action au pluriel. Sociologie des régimes d’engagement. Paris:
Découverte, 2006.
4 TAYLOR, Charles. Argumentos filosóficos. São Paulo: Loyola, 2000; KYMLICKA,
Will. Ciudadania multicultural. Barcelona: Paidós, 1995.
5 THÉVENOT, op.cit. Os investissements de forme, elaborados em um artigo de 1986
– THÉVENOT, Laurent. “Les investissements de forme.” In: Conventions économiques.
Paris: PUF, 1986, pp.21-71 – visam chamar atenção para o papel dos objetos nos proce-
dimentos de construção e representação dos atores em suas ações práticas e do estado
problemático, fluido e incerto das interações.
6 Trata-se do Groupe de Sociologie Politique et Moral (GSPM), da École des Hautes
Études en Sciences Sociales (EHESS), de Paris, França.

 · Os limites da “identidade”


social, ou seja, aquelas que concebem, por exemplo, a emergência da
categoria quilombo como uma construção social.7 Não nos interessam aqui
as abstrações conceituais preparadas para “desvelar” suas origens con-
vencionais, ou as concepções teóricas que não consideram a capacidade
crítica dos atores. Pressuponho, em vez disso, que essa noção permite
vislumbrar o caráter de incerteza, fluidez e instabilidade das ações sociais,
diante das operações críticas que permitem múltiplas leituras sobre as
categorias sociais e múltiplos usos das mesmas pelos atores nas situações
de conflito e controvérsia. É por isso que não podemos reduzir as cate-
gorias sociais a simples construções sociais, sob pena de restringirmos o
caráter dinâmico e crítico das relações.
Desse modo, busco consagrar uma análise mais pormenorizada sobre
as normas e formas conformadoras da constituição das referidas catego-
rias. Pretendo me debruçar sob as situações de prova (épreuve) às quais
os agentes sociais são submetidos nas controvérsias e nos conflitos e o
modo como eles se apropriam de determinadas categorias identitárias
dentro de um quadro fluido, no qual as oscilações de um mundo a outro
se vinculam às dinâmicas das provas às quais os atores estão submetidos.
A noção de regime de envolvimento permite pensar as relações sociais
para além das expressões identitárias ou étnicas, pois a preocupação se
dirige para a compreensão sobre as diferentes maneiras de ser do agente,
dos poderes e das modalidades de dependência. É porque os regimes são
comumente reconhecidos como os que servem a todos, e cada um pode
discernir as condutas de maneira congruente. Os julgamentos, as ações e
as formas de coordenação das ações intra e interpessoais estão fundados
na ordem de uma avaliação no quadro dos regimes de justificação, reve-
lando que os atores, quando apresentam as suas justificações em situações
de conflito, não se escondem por debaixo de interesses manifestos, ou
latentes, que encobrem correlações de força, escamoteadas pelas ideo-
logias que as dissimulam,8 mas são resultados das épreuves às quais os
mesmos estão sujeitos nestas disputas.9

7 Sobre uma crítica aos limites do construtivismo, ver LATOUR, Bruno. “The pro-
mises of constructivism.” In: Ihde, Don (org.). Chasing Technology: Matrix of Materia-
lity. Bloomington: Indiana University Press, 2003, pp.27-46.
8 BOLTANSKI, Luc. L’amour et la justice comme compétences. Paris: Metaillé, 1990.
9 BOLTANSKI, Luc; Thévenot, Laurent. De la justification: Les économies de la gran-
deur. Paris: Gallimard, 1991.

Fabio Reis Mota · 


Esses regimes comportam uma compreensão instável e fluida das
relações, fruto da inquietude da ação desses diferentes atores, pois a ação
humana, mais do que fruto de uma comunicação, de um habitus, de um
conjunto de representações, de diferenças de papéis, é um deslocamento
constante em que os atores fazem usos diversos de regimes de envolvi-
mento que podem ser públicos, íntimos, cívicos, mercantis, industriais
etc., criando uma multiplicidade de condutas e de arquiteturas que as
convencionam em um quadro da ação situada.10
Nesse caso, a abordagem processual, plural e pragmática nos auxilia
a considerar a multiplicidade de engajamentos possíveis nas interações
sociais envolvendo populações tradicionais e quilombolas, no Brasil, e
antilhanos, imigrantes, na França. Um morador da Marambaia, no Brasil,
pode lançar mão em uma interação de distintos figurinos: o de negro,
pescador artesanal, quilombola, descendente de escravos etc. O mesmo
se passa quando nos deparamos com franceses provenientes das Antilhas,
que ora interagem fazendo uso dos “códigos gauleses”, ora utilizando os
“códigos antilhanos”, créole.

Os antilhanos na França

Atores não organizados, associações, sindicatos, partidos políticos, in-


telectuais, acadêmicos têm protagonizado debates e embates na arena
pública francesa contemporânea acerca das políticas destinadas às “mi-
norias visíveis”. A emergência da luta contra a discriminação na França e
suas implicações políticas e jurídicas não constituem somente novas ações
contra as desigualdades, mas também uma nova forma de compreensão
das relações sociais e o advento de uma problemática e de modalidades de
ações coletivas pouco familiares à tradição filosófica e política francesa,
pautada pelo princípio da integração e assimilação ao corpus republicano
e ao corpo nacional. Como salienta Simon,11 esses dispositivos e temáticas
desenvolvidos atualmente em muitas sociedades europeias, em parte

10 THÉVENOT, Laurent, op.cit.


11 SIMON, Patrick. “Qu’est-ce qu’une politique contre les discriminations?.” Tra-
balho apresentado no Congrès FORS-Recherche Sociale, colloque n.35. Paris, 2003.

 · Os limites da “identidade”


forjados nos EUA em torno do trabalho ou da gestão de uma sociedade
“multicultural”, têm posto à prova a política de integração ao corpus re-
publicano francês.
Uma das consequências desse princípio republicano é que todo tra-
tamento diferenciado é visto sob suspeita, por atingir os laços cívicos,
que devem superar os vínculos e pertencimentos particulares, sejam
eles étnicos, culturais, raciais ou religiosos. De acordo com o ponto de
vista nativo, as demandas de acesso às políticas diferenciadas estão as-
sociadas às reivindicações de acesso particularizado aos bens supos-
tamente universais: são lidas como formas comunitárias de expressão
do interesse particular. O “comunitarismo”, no sentido atribuído pelos
nativos, possui uma carga negativa, pois corresponde a uma tentativa de
“isolamento comunitário” em detrimento dos laços cívicos da République;
são argumentos concebidos como indigestos, pois fragmentam o corpus
republicano e afetam o princípio do bem comum e da universalidade da
justiça e da cidadania.
No caso dos denominados antilhanos que moram em Paris, a cate-
goria comunitarismo impõe alguns processos complexos de tradução da
demanda desses grupos no espaço público francês. Por um lado, eles
podem formular uma denúncia às desigualdades, às discriminações vi-
venciadas; mas, por outro lado, suas críticas se enquadram em uma ótica
republicana igualitária, já que compartilham um sentimento de per-
tencimento ao corpus republicano. Como dizia um colega da Martinica,
“minha crítica está baseada no fato de que o modelo francês é desigual e
funda a desigualdade numa hipócrita igualdade e liberdade. Mas eu não
quero discutir esse lance de minoria, porque eu não sou minoria, minoria
é cocô de cachorro!”. Seu ponto de vista acerca do tratamento destinado
às “minorias” na França corresponde a sua “visão republicana” de que o
problema do racismo, da desigualdade entre brancos e negros, deve ser
solucionado dentro dos preceitos universalistas-igualitários.
Diferentemente, por exemplo, do princípio liberal americano do “to-
dos juntos, porém separados”, que visa afirmar as identidades particulares
de cada grupo étnico componente da nação americana (dos hyphenated
americans), o republicanismo francês vem revelar dois tipos de deman-
das por parte dos antilhanos em Paris. Em uma direção, uma pautada
no princípio da universalidade existente entre os cidadãos franceses,

Fabio Reis Mota · 


independentemente de seus laços religiosos, étnicos, familiares e terri-
toriais. De acordo com um interlocutor, é necessário “que se esqueçam
da minha cor de pele, esqueçam meu local de nascimento e se atenham
a minhas capacidades intelectuais de fazer as coisas como qualquer ou-
tro cidadão francês”. Essa demanda de reconhecimento se assenta no
que podemos denominar do princípio da igualdade cívica, cujo peso é
a igualdade substantiva entre iguais e semelhantes no espaço público.
Em outra direção, podemos identificar um tipo de demanda de reco-
nhecimento que se aproxima em determinada medida daquilo que Luís
Roberto Cardoso de Oliveira 12 intitulou, tratando dos conflitos presentes
no Canadá, de demandas de consideração e respeito às dignas identidades
públicas: demanda de reconhecimento da relevância da cultura e história
dos negros franceses na composição da nação francesa, por exemplo. Afi-
nal, o processo de incorporação dos habitantes do Outre-Mer fundou-se
nos marcos de uma “galicização” dos negros antilhanos,13 na formula-
ção do tipo ideal francês, representado como a figura do branco, gaulês.
“Quando se fala da França, se pensa no negro?”, questiona um de meus
interlocutores em uma conversa sobre os antilhanos em Paris.
O modo como esses atores demandam o reconhecimento público para
suas identidades gera um mal-estar nutrido pelo princípio de que são
franceses à part entière e, segundo a fórmula de Aimé Césaire, franceses
entièrement à part. Ora, no caso dos chamados antilhanos, há a convivência
dos dois princípios: o da integração e da demanda de reconhecimento à
igualdade, pois não são imigrantes. Como franceses, possuem os mes-
mos direitos, o acesso aos mesmos bens – a princípio – e são livres para
associar-se, fazer concurso público etc. Portanto, estão aptos a se integrar
ao corpus republicano, incorporando e normalizando suas condutas à la
française. Por outro lado, por serem provenientes das Antilhas, devido à
sua cor de pele, às marcas do passado escravista, essa inserção à sociedade
francesa não implica, necessariamente, a valorização das particularidades
das identidades tidas como meutrières que devem ser subsumidas em prol

12 CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. Direito legal e insulto moral: Dilemas da ci-
dadania no Brasil, Quebec e EUA. Rio de Janeiro: Nuap/Relume Dumará, 2002.
13 CLEAVER, Ana Julieta Teodoro. Ni vue, ni connue: A construção da Nação na Guiana
Francesa. Dissertação (mestrado), PPGAS, UnB, 2005.

 · Os limites da “identidade”


do bem comum.14 O corpus antilhano não é necessariamente compatível
com o corpus republicano.
No caso da população antilhana, a assimilação rendeu benefícios,
propiciando essa passagem do lugar do negro-escravo-antilhano, mas
também trouxe com ela um processo de “mortificação” dos pertenci-
mentos, das particularidades concernentes à identidade antilhana. Essa
“gaulicização”15 da forma antilhana de ser, por meio desse processo de
assimilação dos escravos em sua transformação em cidadãos, fez com
que o corpus republicano prevalecesse sobre a “pele negra”, no sentido
não apenas de sua cor, mas da corporeidade a ela subjacente. Cumpre
salientar, por exemplo, o papel do Bureau pour le Développement des
Migrations dans les Départements d’Outre-Mer (Bumidom) no processo
de gaulicização por meio das mulheres provenientes das Antilhas, como
bem demonstra Pourette:

As estratégias de recrutamento do Bumidom visam igualmente “instruir”


as mulheres com a finalidade de que elas se adaptem ao modo de vida
metropolitano. Assim, em uma formação de “especialização doméstica”,
uma pré-formação intitulada “adaptação à comida e ao modo de vida
metropolitano” é ensinada. Esse tipo de formação consiste em ensinar
às mulheres como cozinhar, fazer a limpeza, se vestir... de maneira cor-
reta segundo as normas metropolitanas. Não se trata, então, de ajudar
essas mulheres a se inserirem na sociedade francesa. O bem-estar dos
imigrantes não faz parte das preocupações das políticas migratórias. A
finalidade dessas políticas reside no fato de que os imigrantes devem se
adaptar ao modo de vida metropolitano para que o reproduzam correta-
mente e que elas o transmitam às suas crianças. Essas mulheres devem,
portanto, contribuir para a reprodução da sociedade francesa, segundo
suas próprias normas, se vigiando para não introduzir elementos culturais
exteriores com a finalidade de preservar a identidade nacional.16

14 MAALOUF, Amin. Les identités meurtrières. Paris: Grasset/Fasquelle, 1988.


15 CLEAVER, op.cit.
16 POURETTE, Dolorès. Des guadeloupéens en Île-de-France: Identité, sexualité, santé.
Paris: Karthala 2006, p.17.

Fabio Reis Mota · 


Esta estratégia francesa de afirmar a igualdade pela indiferença às
identidades étnicas, culturais e religiosas – dentro do princípio de que
para obter a igualdade é necessário impor semelhança, nivelar, e não dife-
renciar os públicos – propiciou a constituição de grupos “médios”. Ainda
que o passado colonial francês tenha sido umas das matrizes de produção
da desigualdade entre os metropolitanos e os indigènes – via o Code Noir – e
seja um dos elementos que sustentam as discriminações cotidianas na
França metropolitana, o princípio do “esquecimento em prol da unidade
nacional” tornou-se durante muito tempo um dos mecanismos funda-
dores das relações no espaço público francês. Mesmo para os partidários
do reconhecimento dessas desigualdades, a fórmula para a superação
desse passado colonial e de suas consequências atuais é a constituição
de uma política de indiferenciação. No caso dos antilhanos, essa busca
pela igualdade social e política propiciou aquilo que Édouard Glissant
denominou de “pulsion mimétique” relacionada à figura do branco francês.
O jovem antilhano que migra para a França metropolitana é chamado
a todo tempo a viver com seus “compatriotas brancos”, a se “europeizar”
e, com isso, é convidado a perder seus laços com as Antilhas, suas famí-
lias, seu modo de vida, suas expressões obrigatórias dos sentimentos. Por
outro lado, a condição da cor da pele propicia um tipo de sensibilidade por
parte dos antilhanos no que concerne a seu lugar na sociedade francesa.
Sua cor é o sinal da convivência de um signo de mal-estar, o mal-estar
da escravidão, que, em prol da harmonização social, foi esquecido. Essa
situação paradoxal fortalece o sentimento de inferioridade e de invisibi-
lidade desse grupo na arena pública francesa. Sua própria categorização
recente como uma “minoria visível” vem definir esse lugar ambíguo que
o antilhano ocupa na arena pública francesa, no reconhecimento de sua
cidadania francesa de ser negro/francês e ser francês/negro.17
Ora, a dispersão e a inserção dos antilhanos na metrópole fazem parte
desse processo de sua assimilação em Paris. A République exige o esqueci-
mento ao mesmo tempo das especificidades regionais e da sua cor da pele,
de seu vínculo com a história da escravidão. No entanto, a cor da pele,
como buscamos ressaltar, ainda assim permanece, paradoxalmente, como

17 UDINO, Moïse. Peau noire et corps républicain: Le paradoxe antillais. Dissertação


(Master 1), FCP3, Université de Paris III Sorbonne Nouvelle, 2008.

 · Os limites da “identidade”


símbolo de diferenciação, distinção e de discriminação. Ao mesmo tempo
que lhe é exigido esquecer esse traço, ele continua a ser um diacrítico,
a resultar na lembrança frequente de que, embora os antilhanos sejam
français à part entière, as relações cotidianas reafirmam que são, simul-
taneamente, français entièrement à part. Isso propicia que eles constituam
uma identidade particular no seio da République. Como ressalta Pourette:18

a problemática identitária dos antilhanos que migraram para a metró-


pole vem à luz no momento em que eles tomam consciência do revés da
assimilação, quando é explicitado para eles que são somente franceses
de status. Assim, a questão da identidade coloca-se de maneira mais
crucial para os antilhanos na metrópole do que para os antilhanos que
permaneceram nas Antilhas. Trata-se, para eles, de saber quem eles são,
pois é evidente que eles não são franceses como os outros.

Uma particularidade assentada nos múltiplos sentidos adquiridos


pela cor da pele no espaço público francês. O fato de os bretões serem
brancos, mas reivindicarem suas particularidades no que concerne a sua
língua, por exemplo, não os distingue “a olho nu” do “típico” francês, ao
passo que a cor da pele, como um sinal visível, é um fator distintivo entre
o francês negro e o francês branco. Como dizia uma guianesa moradora
de Paris há mais de vinte anos, “é na rua que sabemos que somos negros;
no trato cotidiano, no trato com a polícia, no comércio etc”. O “negro na
rua” tanto faz ser antilhano ou africano. O que os distinguirá serão outros
sinais, como o domínio da língua, dos códigos corporais, dos símbolos e
mitos partilhados do “être français”. Na rua, tanto o negro francês quanto
o não francês é um estrangeiro. Na compreensão nativa, “ser negro é ser
estrangeiro”.
Por outro lado, ainda que haja similitudes no que concerne ao lugar
dos antilhanos e dos demais “imigrantes”, como os africanos, no interior
da sociedade francesa, no que diz respeito ao acesso ao trabalho, mora-
dia e às discriminações cotidianos, os antilhanos se percebem de modo
distinto dos outros “imigrantes”.

18 POURETTE, op.cit, p.36.

Fabio Reis Mota · 


Deste modo, o modelo político e jurídico francês da assimilação e
integração conduziu os antilhanos a uma condição híbrida, entre as refe-
rências republicanas e as comunitárias, na metrópole, em uma condição
complexa de adaptação ao corpus republicano. Por um lado, a pele negra
representa um símbolo de afirmação do “soi”, pois ela remete à condição
específica dos antilhanos na constituição da nação francesa, mas ela
também demonstra a dificuldade de sua identificação com a sociedade de
acolhimento, pois rompe com determinados laços na metrópole.
Desse ponto de vista, há um duplo desafio para os antilhanos na Île-
-de-France. O primeiro é superar as dificuldades implícitas impostas
pela condição de ser negro. Outro é o fato de ser negro-francês, inscrito,
portanto, em uma lógica hegemônica fundada no mito da unidade da
nação que nega as reivindicações às diferenças, o direito a uma identidade
singular e legítima na esfera e no espaço público. Mas, por outro lado, essa
condição de ser negro-francês e francês negro permite aos antilhanos
na Île-de-France o uso de múltiplas estratégias de inserção. Como bem
salienta ainda Pourette:19

Diferentemente dos imigrantes de origem estrangeira, os antilhanos têm


a possibilidade de fazer malabarismo com os valores, representações,
normas e códigos relevantes nos dois registros: o registro metropolitano
e o registro martiniquense ou guadalupense. Na verdade, mesmo que os
migrantes tenham sido socializados e tenham vivido grande parte de suas
vidas nas Antilhas, diferentemente dos estrangeiros e notadamente por
intermédio do sistema educativo francês, um certo número de chaves
lhes permite compreender o funcionamento da sociedade francesa e
de se adaptar a ela. Por outro lado, os antilhanos mostram uma grande
capacidade de se adaptar às situações nas quais eles se encontram e mo-
bilizar os elementos de um sistema de referência ou de outro segundo a
circunstância.

O fato de serem franceses à part entière permite a eles, embora sob


signos muitas vezes estigmatizantes, lançar mão de múltiplos registros e
de plurais regimes de envolvimento diante de uma situação de interação

19 POURETTE, op.cit., p.40.

 · Os limites da “identidade”


e controvérsia pública. A heterogeneidade da composição dessa antillanité
permite também a heterogeneidade de estratégias e ações políticas.
Do mesmo modo, o modelo assimilacionista e integrador republicano
teve consequências diretas no modo como os antilhanos organizam seus
espaços de convivialidade, seus ritos de sociabilidade e suas relações com
os espaços da cidade. Não há propriamente em Paris lugares da cidade or-
ganizados como “comunitários”; não há propriamente uma “comunidade
antilhana” na Île-de-France pela dispersão geográfica e cultural. Enquan-
to uns adotam a estratégia de inserção plena à sociedade francesa, outros
optam pela permanência e frequência em poucos lugares em que se pode
vivenciar a vida das Antilhas, sobretudo com a música, em espaços em
que se toca o Zouk, mas não são necessariamente frequentados somente
por antilhanos, ou por meio da culinária, em restaurantes especializados
em pratos das Antilhas, distribuídos pela cidade; já outros adotam uma
estratégia mista: de uma relativa assimilação, tomando emprestado os
códigos e normas francesas, mas afirmando em parte sua identidade
cultural específica. Ou seja, operando nos registros antilhano e francês.

Outros movimentos

O caso brasileiro é interessante para ser comparado com a situação fran-


cesa. No Brasil, as demandas por reconhecimento têm se pautado pelas
reivindicações de grupos e movimentos sociais organizados em torno de
bandeiras étnicas, raciais e culturais. A pauta desses grupos é diversificada
e plural: a reparação histórica das desigualdades raciais em decorrência
da escravidão, por meio de políticas de cotas nas universidades ou de
ações afirmativas no mercado; o direito ao acesso às terras tradicionais
ocupadas por “comunidades remanescentes de quilombos”; a garantia do
acesso aos recursos naturais e aos territórios tradicionais indígenas etc.
Essas demandas marcam a distintividade desses grupos de um ponto de
vista de suas diferenças culturais ou étnicas face à sociedade nacional.
Essas políticas do reconhecimento das identidades diferenciadas vêm
se contrapor, de forma contumaz, ao modelo republicano instaurado no
Brasil nas primeiras décadas do século XX, que veio forjar a construção
da identidade nacional brasileira assentada no mito da “fábula das três

Fabio Reis Mota · 


raças”;20 como ideologia inscrita nas classes cultivadas e no senso comum,
ensejou a constituição de uma visão hierárquica e complementar entre as
unidades raciais, étnicas e religiosas componentes da sociedade brasileira.
A ideia da existência de uma raça superior, a branca, resultou na produção
de uma compreensão verticalizada e piramidal relativa ao mundo públi-
co – no topo, os valores europeizados e o estilo do branco colonizador,
em contraposição à cor negra e ao indígena e seus estilos supostamente
inferiores de existência –, destinando direitos e garantias particulariza-
das a esses grupos, ora reconhecendo-os de forma desigual como parte
constitutiva da identidade nacional, ora os recusando, criminalizando-os
ou os assimilando na esfera pública e no espaço público.
Do mesmo modo, essa concepção hierárquica e desigual a respeito da
construção de um espaço público composto por três raças permitiu que
no Brasil se constituísse uma arena pública em que as regras de acesso aos
bens disponíveis pelo Estado não fossem gerenciadas de forma universa-
lista e igualitária para todos os grupos reconhecidos pelo Estado-nação.
Tal situação gerou uma espécie de dissonância entre as regras impes-
soais e universais impostas pela esfera pública e os princípios hierárqui-
cos, desiguais e personalistas presentes no espaço público brasileiro. De
fato, a inexistência de um princípio universalista e de tratamento igual
e uniforme, que abranja todos os grupos componentes do Estado-nação,
inviabilizou o pleno reconhecimento dos direitos de determinados movi-
mentos culturais ou religiosos, permitindo, por exemplo, a criminalização
das práticas religiosas, como o candomblé, e da prática cultural, como o
samba, no Brasil da década de 1930.
No entanto, o processo de redemocratização vivenciado pela socieda-
de brasileira dos anos 1980 trouxe mudanças consideráveis nos cenários
político, jurídico, moral e simbólico com a introdução de princípios novos
à democracia brasileira: no lugar da afirmação do mito da fábula das três
raças, o reconhecimento da diversidade cultural, racial e étnica; o mito da
democracia racial brasileira vem paulatinamente concedendo lugar a uma
forte crítica às desigualdades de cunho racial, ensejando um complexo
processo de visibilidade das demandas de direitos diferenciados. Esse é
o caso da categoria quilombos.

20 DAMATTA, Roberto. “Digressão: A fábula das três raças, ou o problema do racismo


à brasileira.” In: Relativizando. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

 · Os limites da “identidade”


Trata-se de uma categoria polissêmica e controversa. Ainda que ela
tenha adquirido uma expressão pública nas últimas duas décadas, em
decorrência da sua introdução na Constituição Federal de 1988, sua consti-
tuição social e legal remete-se ao período colonial brasileiro. Seja do ponto
de vista normativo, seja do ponto de vista dos efeitos sociais ocasionados
pela promulgação da Constituição, podemos asseverar que a emergência
de uma categoria legal, o quilombo, explicitou determinados conflitos,
reconfigurando certas controvérsias públicas em torno desse termo le-
gal e político, controvérsias marcadas pela multiplicidade semântica do
termo, seja no seu nível legal, na esfera pública, ou mesmo nas interações
cotidianas do espaço público, pois tal categoria está investida de múltiplos
sentidos e entendimentos.
Do ponto de vista histórico, a primeira conceituação sobre os qui-
lombos foi formulada em 1740. Nesse período, eles eram definidos como
“toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despo-
voada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões
neles”, segundo documento do Conselho Ultramarino, em resposta ao
rei de Portugal.21 Como salienta Moura, “de acordo com esta definição
da metrópole, o Brasil se converteu praticamente em um conjunto de
quilombos, uns maiores, outros menores”.22
No início do século XX, o quilombo passa a ser apropriado pelos mo-
vimentos sociais organizados a partir de uma complexa releitura sobre o
lendário Quilombo dos Palmares. Tornar-se-á um veículo importante de
condução da crítica a ideologia da “democracia racial”, exaltando a ne-
cessidade de reconhecimento do papel do negro na construção da nação,
imprimindo uma centralidade ao papel dos negros na história brasileira.23
Essa conjuntura permitiu a introdução de um novo viés no debate a res-
peito do papel do negro no Brasil e, posteriormente, das comunidades negras
rurais. Aos poucos, a partir da década de 1980, com a organização política

21 Apud ALMEIDA, Alfredo Wagner. “Os quilombos e as novas etnias.” In: Odwyer,
Eliane Cantarino (org.). Quilombos: Identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro:
FGV, 2002, p.46.
22 MOURA, Clóvis. Os quilombos e a rebelião negra. São Paulo: Brasiliense, 1983, p.16.
23 GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. “Resistência e revolta nos 1960: Abdias do
Nascimento.” Texto apresentado no seminário Brazil: Race and Politics in the Améri-
cas, University of Texas at Austin, 16/09/2005.

Fabio Reis Mota · 


do movimento negro, teve lugar uma visibilidade jurídica e política das
reivindicações territoriais dos denominados remanescentes de quilombo.
Com a Constituinte de 1988, o debate sobre o racismo, a desigualdade
racial, os direitos das terras das comunidades negras rurais ganhou for-
ça, tanto a partir das emendas parlamentares quanto das mobilizações
populares, como foi o caso do Centro de Cultura Negra do Maranhão, que
encaminhou propositura e defendeu, nos encontros nacionais do movi-
mento negro, o reconhecimento de direito à propriedade nos domínios
territoriais ocupados por comunidades negras rurais.
Esse processo de visibilidade dos direitos das “minorias” no Brasil
veio culminar na organização e mobilização de demandas coletivas em
torno da categoria jurídica quilombo. As reivindicações da categoria legal
tomaram o cenário nacional com a emergência de diferentes demandas
Brasil afora. Pouco a pouco, esses novos sujeitos de direitos começaram
a mobilizar seus esforços na busca do reconhecimento de seus direitos
territoriais sob o abrigo do art. 68.
Da passagem de um imaginário geral à sua inscrição nos ordenamen-
tos legais, o quilombo sofreu mutações significativas, na medida em que
houve uma tradução e reorientação conceitual do texto legal que teve
implicações na ação coletiva e na mobilização. O quilombo se tornou
um ator importante na cena política, estabelecendo uma agenda pública
e política no domínio da ciência, das organizações do estado, de ONGs,
igreja, movimentos sociais etc., reconfigurando as relações sociais.
Nesse momento, alguns processos de demandas de reconhecimento
passam a adquirir sentido público a partir da vindicação dos direitos qui-
lombolas, como é o caso da Família Pinto, mais conhecida como Família
Sacopã, cuja moradia está localizada em um dos bairros mais nobres da
cidade do Rio de Janeiro, a Lagoa. A família se estabeleceu no local atual-
mente ocupado por ela na década de 1930. O patriarca, seu Manoel Pinto,
chegou ao bairro nas primeiras décadas do século XX com o propósito de
trabalhar nas obras de abertura da rua Sacopã. Era o início da “chegada
da cidade” nessa área ainda quase desabitada, vindo a se tornar um dos
bairros com o m2 mais caro do Brasil. No mesmo período, seu Manoel
tomou a decisão de trazer pouco a pouco sua família para estabelecer
residência nas proximidades daquilo que viria a ser a rua Sacopã. Com
a vinda de sua mulher, Dona Eva, o núcleo familiar vai se definindo e
se estabelecendo afetiva e fisicamente no lugar. Há a posse pacífica, de

 · Os limites da “identidade”


acordo com relatos dos mais antigos da Família Pinto, até meados dos
anos 1960. Todavia, quando o “mangue e o mato passam a virar cidade e
se valorizar”, assim como alguns relataram, há significativas mudanças
no cenário local. A política pública de remoção das denominadas favelas
do entorno da Lagoa, levadas a cabo pelo governo à época (a chamada
Política de Remoção das Favelas), desencadeou uma mudança na morfo-
logia social do bairro. Essa política, que tinha como propósito “sanear” e
“moralizar” as moradias da região, propiciou o deslocamento das famílias
de descendentes de ex-escravos, de imigrantes portugueses etc., em
direção aos recantos da cidade (Jacarepaguá, Paciência, Vila Kennedy
etc.). Na ocasião, há um boom do mercado imobiliário com a construção
de moradias de luxo destinadas aos mais abastados da cidade. As famílias
não atingidas pelas políticas de remoção desse período são compelidas,
paulatinamente, a vender suas residências a preços módicos para o setor
imobiliário ou para os novos proprietários que começavam a se instalar
no bairro. Nesse sentido, há uma reconfiguração dos laços e das redes
de proximidade com a mudança da morfologia da cidade e o advento de
conflitos de ordem fundiária e de vizinhança.
Diante da pressão imobiliária e a explicitação de conflitos com al-
guns “vizinhos poderosos”, grande parte das famílias tradicionalmente
ocupantes dessa região cede suas terras ou as vende. Todavia, a Família
Pinto, sobretudo a partir da decisão dos filhos mais velhos de seu Manoel,
permanece, malgrado os esforços de retirá-los da propriedade.

Começaram a chegar os bacanas aqui na época. Papai [Seu Manoel] tra-


balhava numa empresa chamada Dark, que na época era supostamente a
dona desses terrenos. Papai ganhou aqui um pedaço e construiu a nossa
casa. Aos poucos veio vindo a família e se estabelecendo aqui. Vivemos e
crescemos aqui na mata, correndo nessas ruas... Pouco a pouco a ambição
veio e queria nossas terras. Veio essa coisa de remoção das famílias. Mas a
gente resistiu, pois mamãe tinha trabalhado na casa do governador, que
morava aqui perto. Tinha ainda um general que era muito amigo de nossa
família e interveio em diversas circunstâncias em que a prefeitura ou go-
verno do estado encostava o caminhão para nos tirar daqui. Mesmo depois,
a pressão era muita. Era gente vindo com mala de dinheiro para comprar
nosso terreno, ameaça de fulano, de sicrano, invasão de nossa área com a
construção dos condomínios de luxo daqui e dali. Foi aí que resolvemos

Fabio Reis Mota · 


então entrar com uma ação na Justiça de usucapião na década de [19]70.
Mas como íamos fazer com papai? Meu pai achava que isso aqui era um
dom dos brancos e dizia “não vamos brigar com os brancos”. Mas nós, que
já tínhamos outra cabeça, resolvemos ir atrás de nosso direito. Dissemos
para papai que íamos entrar com o pedido de aposentadoria dele e pegamos
a assinatura para entrarmos com a ação na Justiça. Ele morreu sem saber
que tínhamos colocado os brancos na Justiça para garantir nossa terra.

Esse denso relato de um dos filhos de seu Manoel, Luís “Sacopã”, mos-
tra como as relações de pessoalidade e proximidade com pessoas influen-
tes foram determinantes na disputa pela terra e viabilizavam, em certa
medida, a permanência da Família Pinto em seu território. Os espaços de
sociabilidade, como a rua, os lugares de convívio, como o trabalho na casa,
tornaram-se fundamentais para a definição de laços de afinidade e de
aliança. Por outro lado, essa não proximidade, por não compartilharem os
mesmos códigos, os mesmos hábitos culturais e sociais, o pertencimento
a uma camada social representada como inferior, a cor da pele e outras
características, veio reforçar as ações de alguns vizinhos que apoiavam o
deslocamento da família para fora dessa “zona nobre” da cidade.

Uma vez teve uma inspeção do Ibama por conta de uma denúncia de des-
matamento. Veja isso tudo aqui e onde há desmatamento? Mas olhe alguns
prédios ali e veja a diferença... Vieram os fiscais e chegaram dizendo que
tinham recebido uma denúncia de que a gente tava derrubando árvore. Aí
o fiscal viu isso aqui tudo com árvore centenária, mico, cobra e tudo mais.
Viu que era uma puta sacanagem contra nós e disse que ia depois trazer
uma cópia do laudo atestando que não havia desmatamento nenhum,
mas, ao contrário, que a gente preservava. Passado algumas semanas
trouxe o laudo. Aí, conversa vai, conversa vem, ele me disse que um dos
moradores tinha procurado ele. Ele reafirmou a inexistência de qualquer
dano ambiental. Aí o morador mandou essa: “Não, mas o senhor tem que
reparar bem é de fato na poluição visual do local.” É claro que não preciso
dizer mais nada, né? Só porque somos pretos...

Essa visibilidade negativa e a “impureza” que incidia sobre a Família


Pinto foi contornada, ou ao menos houve um esforço por parte da famí-
lia, com a consolidação de um espaço de integração e de sociabilidade

 · Os limites da “identidade”


reunindo alguns vizinhos e moradores dos arredores da Zona Sul. Na
década de 1980, Luís Sacopã e a Tia Neném, irmã de Luís, deram início a
uma das atividades mais promissoras da família, outrora restrita ao ciclo
de amigos próximos: a feijoada e o samba. O Samba do Sacopã, na época,
como é possível verificar a partir das leituras de jornais do período e dos
relatos de antigos frequentadores do lugar, figurava como um dos mais
importantes redutos da manifestação da cultura carioca do samba na Zona
Sul da cidade do Rio de Janeiro. Era um reduto de “bambas” do samba, de
admiradores desse estilo musical, de artistas, políticos, militantes do mo-
vimento negro, entre outros. Era também um mecanismo que viabilizava
a integração da vizinhança em torno da luta da família pela manutenção
em suas terras. No entanto, alguns condomínios vizinhos conseguiram
obter uma liminar para coibir o tradicional samba e a feijoada, além de
sua oficina mecânica, ou seja, as atividades que compunham o mosaico
econômico, social e cultural da Família Pinto.
No quadro de mudanças vivenciadas pela sociedade brasileira, no
final da década de 1990, essa controvérsia adquire novos contornos. A
Constituição de 1988 permitiu a emergência de um novo ator na cena
pública: as denominadas comunidades remanescentes de quilombos,
cujos direitos passam a figurar no art. 68 do Ato das Disposições Consti-
tucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal. Diante dos laços
entre alguns membros da Família Pinto com o movimento negro cario-
ca, a questão quilombola começa a se colocar como uma problemática
obrigatória para seus membros, tornando-se uma outra via de acesso à
justiça e outro mecanismo de luta e resistência pela permanência em suas
terras. Logo, no final dos anos 1990, a Família Pinto entra com o pedido
de reconhecimento de seu território como uma área “remanescente de
quilombos”, de acordo com a Constituição Federal.
Paralelamente, tramitava na Justiça a ação de reintegração de pos-
se impetrada pela família, como mencionado no relato acima, desde a
década de 1970. A ação foi julgada procedente em primeira instância.
Na segunda instância, o tribunal julgou que a família detinha a posse,
porém não detinha o animus e dominus, ou seja, não tinham a intenção
de serem donos, porque eles teriam se instalado no local para trabalhar e
não para morar, no livre entendimento dos desembargadores. Entretanto,
o vínculo cultural e histórico com a tradição negra, em especial aquela
dos ancestrais escravos, propiciou à família no início de 2002 a obtenção

Fabio Reis Mota · 


do reconhecimento do Estado brasileiro para sua especificidade cultural.
A Fundação Cultural Palmares, órgão responsável pelo reconhecimento
e titulação das comunidades remanescentes de quilombos, destinou-
-lhes o certificado de identificação de “remanescente de quilombos”, de
acordo com o dispositivo constitucional o art. 68 dos ADTC. Isso permitiu
posteriormente a intervenção do Incra, atualmente o órgão responsável
pelo reconhecimento, demarcação e titulação dos territórios ocupados por
remanescentes de quilombos, transferindo a competência de julgamento
do conflito à esfera federal.
Nesse caso, o status de negro se torna um importante instrumento
de visibilidade do grupo pela manutenção de seu território, permitindo
que as múltiplas formas de produção do “eu”, ao acionarem esses múl-
tiplos regimes (ser negro, o samba, a tradicionalidade etc.), sigam em
um contínuo fluxo e movimento. Embora nesse caso a negritude porte
um sinal negativo por um lado, em outras circunstâncias ela se tornou
um dispositivo moral e político importante para a fundamentação da
demanda de justiça, alicerçando a reivindicação de acesso ao território
tradicional da Família Pinto.
Assim, se o paradoxo francês está assentado na busca de uma equali-
zação entre a concepção igualitária (ou “republicana”), em contraposição
ao comunitarismo e aos particularismos, o paradoxo brasileiro se relaciona
com a dificuldade de pensar a igualdade na diferença, pois a semelhança
na desigualdade impede o reconhecimento do diferente na medida em
que, para obter reconhecimento, o ator deve portar sinais diacríticos que
validem o reconhecimento de sua “substância moral digna”24 (mesmo
que situacionalmente ela possa portar elementos estigmatizantes). No
caso francês, a igualdade implica que a sociedade seja una e, sobretudo,
que o Estado intervenha de maneira universalista para fortalecer sua
unidade e garantir, então, a consolidação do bem comum. A intervenção
do Estado em um sentido não universalista pode comprometer a unidade
e a legitimidade da vontade geral. No caso brasileiro, a equidade sem a
igualdade de direitos permite que as ações de compensação sejam dirigi-
das às situações particulares, não possibilitando que os princípios sejam
universalizáveis para o conjunto de atores diferentes no espaço público.

24 CARDOSO DE OLIVEIRA, op.cit.

 · Os limites da “identidade”


Funcionalismo público e política local:
contextualizando e discutindo “mérito”
e “competência”

G  L C

O s grupos políticos que administram as estruturas burocráticas


estatais apresentam-se sob a forma de governos, aqui entendidos como
cadeias de compromissos em constante reconfiguração. Além dos ocu-
pantes temporários de cargos no Legislativo e no Executivo – especial-
mente nas secretarias –, figura como parte dessa rede política um corpo
de funcionários concursados e não concursados a movimentar e pôr em
funcionamento o Estado. Os períodos pós-eleitorais são momentos em que
essas reconfigurações se aprofundam, já que mudam os políticos, pessoas
a princípio detentoras de acesso a cargos na administração pública.1 A
partir desses atores, funções de maior confiança como secretariado, as-
sessorias, direções hospitalares e direções escolares são alteradas e, com
isso, as posições de cada funcionário no jogo político.
No âmbito de um governo municipal como o de Magé, município da
Região Metropolitana do Rio de Janeiro, lócus da pesquisa apresentada
neste trabalho, observa-se uma menor distância social entre os funcio-
nários de carreira e os políticos. Sendo a rede mais curta, as mudanças
ocasionadas pela troca de gestão não atinge de uma mesma maneira todos
os servidores: elas têm “cara”, são pessoalizadas. É possível identifi-
car sem dificuldade, por exemplo, quais as redes mobilizadas para que

1 KUSCHNIR, Karina. O cotidiano da política. Rio de Janeiro. Zahar, 2000. p.88.


determinada pessoa ocupe um cargo de prestígio ou para que mudem
seus colegas de trabalho. O reposicionamento periódico do funcionário
na cadeia constitutiva do serviço público é condicionante de seu destino
durante os governos. Seu capital social – definido pela extensão da rede
de ligações que pode mobilizar e pelo acúmulo de capitais distintos dos
seus contatos2 – é o que definirá, a princípio, esse reposicionamento. No
caso de um servidor concursado, a “rotina estável” associada ao exercício
de um cargo público acessado por intermédio de processo seletivo formal
pode ser comprometida de diversas maneiras (ou mesmo ser muito pouco
comprometida), tendo em vista sua posição em uma rede governamental
pouco extensa, se comparada às esferas estadual e federal.
Nesse contexto em que cotidianos de trabalho são afetados – e, por
vezes, se entrelaçam – de maneiras diferenciadas por acordos e lutas polí-
ticas que permeiam as administrações municipais, emergem situações nas
e sobre as quais são proferidos discursos carregando concepções acerca do
que seja considerado uma investidura “correta” no serviço público e o que
dela se espera, assim como os tipos de condutas “ideais” de um funcioná-
rio do Estado. O comprometimento de premissas associadas ao exercício
de um cargo público (sustentadas por parte, principalmente, do setor
concursado) pelo jogo político local e a movimentação dos contratados na
conquista e manutenção de seus cargos mobilizam, conforme veremos,
construções discursivas capazes de colocar em evidência moralidades por
vezes conflitantes sobre as atuações no serviço público.
Esses posicionamentos, por sua vez, ajudam a identificar de que modo
categorias como mérito e competência são entendidas e operacionalizadas
pelos atores no exercício de seus cargos, situação na qual a oposição nativa
entre “política” e “técnica” é acionada com frequência.

A pesquisa

Este trabalho, então, é resultado de pesquisa realizada em Magé. Meu


contato próximo com o serviço público municipal e com certas práticas

2 BOURDIEU, Pierre. “Le capital social.” Actes de la Recherche en Sciences Sociales,


vol.31, 1980, pp.2-3.

 · Funcionalismo público e política local


a ela associadas – por meio da experiência breve, porém significativa,
como agente de saúde em um Posto de Saúde da Família3 – e a pesquisa
monográfica em um fórum virtual de discussões sobre a movimentação
política local – cujo núcleo de debate era a postura adotada pelo governo
Núbia Cozzolino4 com relação ao funcionalismo público – alimentaram o
interesse em fazer do funcionalismo público e sua relação com a política
municipal o tema de minha dissertação de mestrado. Pretendia investigar
as maneiras pelas quais servidores públicos tinham suas rotinas de tra-
balho afetadas pelas dinâmicas de cada governo. Lembro-me da conversa
com uma colega de trabalho,5 da rede estadual de ensino, quando ela afir-
mou não desejar ser concursada da prefeitura, pois teria sua estabilidade
afetada pela “politicagem” envolvendo as gestões municipais. A postura
da professora sinalizava a ideia de que o emprego público na prefeitura era
atravessado por contratempos de natureza política comprometedores da
estabilidade oriunda do concurso. Assim, pretendi investigar quais seriam
esses contratempos a partir de experiências de servidores do município.
Magé possui uma situação de desemprego que funciona como po-
tencializador de trocas políticas envolvendo cargos na administração
municipal. O processo de urbanização da cidade, ocorrido no início do
século XX, foi vinculado à atividade industrial têxtil, responsável pela
criação de uma infraestrutura contando com postos de saúde, escolas
primárias, creches, clubes desportivos e cinemas, além de vilas operá-
rias. A crise econômica a atingir as regiões metropolitanas no início da

3 Unidades de saúde dispostas de uma equipe de profissionais (médicos, enfermei-


ros, auxiliares de enfermagem, dentistas e agentes de saúde) destinada ao acompa-
nhamento médico de famílias de uma região delimitada.
4 Ex-prefeita de Magé. Exerceu dois mandatos consecutivos como deputada esta-
dual (1995-1998 e 1999-2002). Renunciou durante seu terceiro mandato, iniciado em
2003, para concorrer às eleições municipais de 2004, na qual foi eleita. Núbia Cozzoli-
no governou durante um mandato (2005-2008), sendo reeleita em 2008 e afastada do
cargo em setembro de 2009 pelo Tribunal de Justiça por improbidade administrativa.
Em seu lugar, assumiu o vice Rozan Gomes. Sua administração foi marcada por ações
de governo que afetaram de maneira profunda a rotina do servidor público, como a
suspensão de benefícios e gratificações, a anulação de um concurso seguida da con-
tratação massiva de cabos eleitorais e pessoas com proximidade ao grupo político e a
perseguição a funcionários que se mobilizavam publicamente contra o governo.
5 A pesquisadora leciona a disciplina de Sociologia na rede estadual de ensino, no
município de Magé.

Gabriela de Lima Cuervo · 


década de 1980 desarticulou os setores industriais mais tradicionais,
resultando no fechamento das indústrias têxteis em Magé. Com a saída
desse empresariado, o município passou a viver uma situação de “desam-
paro”, sobretudo por não contar mais com um grande empregador capaz
de absorver a quantidade de mão de obra disponível e perder o principal
financiador de atividades desportivas e culturais. A estrutura urbana da
cidade remete a memórias de um passado operário ainda presente no
imaginário dos moradores, que com frequência exprimem a baixa estima
com que concebem a localidade em declarações como “Magé, terra do já
teve tudo e hoje não tem nada” – referindo-se, principalmente, àquela
escassez de oportunidades de emprego e de opções culturais.6 O uso da
categorização negativa “cidade-dormitório” é recorrente, tendo em vista
o grande fluxo diário de moradores para as metrópoles como rotina de
trabalho e estudo universitário. O trânsito para outros centros urbanos
também responde à carência de lazer na região, que não possui cinemas,
teatros, museus ou shoppings.
A oferta de empregos concentra-se no setor de serviços e comércio,
representado por empresas de pequeno porte.7 São dois os estabelecimen-
tos privados que podemos classificar como “grandes empregadores”: uma
indústria de bebidas, localizada no sexto distrito, Inhomirim, e uma rede
de lojas de departamentos. Segundo reportagem da revista Veja,8 Magé foi
a cidade brasileira que menos criou empregos entre as com mais de 200
mil habitantes. Enquanto no restante da Região Metropolitana do Rio a
taxa de emprego cresceu 14,3% durante os 12 meses anteriores à matéria,
o índice no município foi de 1,5%. A maior parcela do contingente de mão
de obra de Magé migra para empresas situadas em outras cidades, em
especial a Refinaria de Duque de Caxias (Reduc) e, mais recentemente, o
Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), em Itaboraí.

6 A referência saudosa aos “grandes carnavais” proporcionados pelos diversos blo-


cos carnavalescos, à vinda de artistas famosos na região e à intensa atividade dos clubes
desportivos se faz presente mesmo entre gerações que não viveram o período de mais
forte atuação das indústrias têxteis na cidade, entre a década de 1930 e 1970 – MELLO,
Juçara da Silva Barbosa de. “Identidade, memória e história em Santo Aleixo: Aspectos
do cotidiano operário na construção de uma cultura fabril.” Dissertação (mestrado),
FFP, Uerj/São Gonçalo, 2008.
7 Sebrae: Informações Socioeconômicas do Município de Magé, 2011.
8 “As campeãs de riqueza e bem estar.” Veja Especial Cidades. 02/11/2011.

 · Funcionalismo público e política local


Frente à fraca atividade econômica da cidade, a prefeitura acaba fi-
gurando como o maior empregador, totalizando hoje uma faixa de nove
mil funcionários, em sua maioria contratados temporariamente.9 Nesse
sentido, o jogo político com a baixa empregabilidade é comum nas ad-
ministrações municipais, o que interfere na rotina de trabalho dos ser-
vidores. O material de pesquisa contempla entrevistas em profundidade
(realizadas entre setembro de 2012 e janeiro de 2013) com servidores
públicos municipais, mais especificamente com professores, com roteiros
privilegiando suas formas de ingresso na prefeitura e as mudanças em sua
rotina de trabalho ocorridas ao longo do tempo.10
A administração Núbia Cozzolino teve entre suas peculiaridades a
exploração intensa da estrutura escolar para fins políticos, por meio da
contratação de diretores de “confiança” e da vigilância por vezes agressiva
de seus funcionários, em especial os professores. O capital simbólico geral-
mente associado à figura do professor torna-o potencialmente detentor
de uma espécie de “liderança” em um bairro. Nesse sentido, há também
um “cuidado” no trato com esses profissionais: supostas perseguições
políticas sofridas por professores merecedores da aprovação dos pais dos

9 Informação não oficial cedida por uma funcionária da Secretaria Municipal de Ad-
ministração. É importante frisar a dificuldade encontrada pela autora em obter estes
números, tendo em vista o ambiente fortemente politizado que permeia a administra-
ção pública de Magé.
10 O primeiro critério de escolha foi o tempo de serviço do funcionário na prefeitu-
ra, a fim de examinar as mudanças e contratempos enfrentados em sua trajetória nas
sucessivas administrações municipais. Foram entrevistados funcionários concursados
e contratados com o objetivo de investigar seus posicionamentos frente aos gover-
nos tendo em vista suas naturezas de convocação. No que diz respeito aos professo-
res, conversas informais com esses profissionais no início da pesquisa indicavam for-
te incidência dos governos nas escolas, já que são estruturas fixas mantendo contato
constante com os moradores de determinada localidade por meio dos alunos. A ob-
servação dos tópicos de discussão do fórum virtual estudado em minha monografia de
graduação também sinalizava intensa participação de professores nos debates, tendo
em vista as perseguições que afirmavam sofrer por suas posturas de oposição política
ao governo Cozzolino. Antes de entrar em contato com funcionários para as entrevis-
tas, entrevistei pela primeira vez a atual dirigente do Sindicato dos Servidores Públicos
de Magé (Sisma), que me informou que o maior número de filiações ao sindicato era de
professores. Sendo assim, a associação da representação do professor como categoria
mais politizada e seu contato direto e contínuo com os alunos – e, portanto, com o
eleitorado de todo um bairro – eram fatores que alimentaram a hipótese de que a inci-
dência dos governos em suas rotinas era mais intensa.

Gabriela de Lima Cuervo · 


alunos poderiam comprometer a imagem do grupo político em deter-
minada região.
Ainda que a condição de professor garanta automaticamente ao pro-
fissional o desfrute de um capital de notoriedade,11 importa ressaltar
que nem sempre isso basta para que ele figure como “liderança”. Além
do peso simbólico da categoria profissional, entram em pauta outros
aspectos, como o capital de relações mobilizado pelo funcionário (que
pode abranger esferas sociais como redes familiares e grupos religio-
sos) ou mesmo destreza para alguma atividade específica. É com base na
percepção do exercício de certa “liderança” de alguns professores, por
exemplo, que surgem oportunidades para estes ocuparem funções de
prestígio e confiança como os cargos de direção escolar. Em administra-
ções municipais como a de Magé, a direção escolar representa um cargo
de extrema confiança política, que inclui responsabilidades diversas com
a agenda governamental. O professor no exercício de uma direção é o ator
no espaço escolar mantido mais próximo à luta faccional12 desenrolada com
mais intensidade durante o período eleitoral e necessariamente sofre as
consequências dessas disputas políticas em seu cotidiano de trabalho.

Concursados e contratados: problematizando posições no jogo


político

De acordo com Antonádia Borges,13

o governo ou os governos de fato nada mais são do que o Estado funcio-


nando, em movimento. Se o Estado, nesses casos, ao caminhar deixa
pegadas governamentais e não governamentais por onde passa, se em
seus quadros há funcionários públicos concursados, também existem
os empregados políticos; o que implica dizer que o mesmo cumprimento

11 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012, p.191.
12 PALMEIRA, Moacir. “Política, facções e voto.” In: Palmeira, Moacir; Goldman,
Marcio (orgs.). Antropologia, voto e representação política. Rio de Janeiro: Contracapa,
1996, pp.41-56.
13 BORGES, Antonádia. “O emprego na política e suas implicações teóricas para uma
antropologia da política.” Anuário Antropológico 2005, 2006, pp.91-125.

 · Funcionalismo público e política local


de uma tarefa técnica na aparência exclusivamente burocrática não se dá
sem uma ação politizada (...) da mesma intensidade.

A autora, ao criticar concepções normativas a respeito do funciona-


mento ideal do Estado moderno, aponta o aspecto governamental como
indissociável dessa realidade. Tomando o funcionalismo como elemen-
to importante em uma administração pública, indica que nesse espaço
articulam-se ações técnicas com ações politizadas, associadas respec-
tivamente aos funcionários concursados e aos “empregados políticos”.
Seguindo esse raciocínio, os contratos temporários figurariam como um
instrumento importante nas táticas governamentais, já que o recruta-
mento seria realizado tendo em vista a rede de compromisso formada
a partir do Executivo e do Legislativo. No entanto, duas problemáticas
precisam ser colocadas:
1) A identificação automática do grupo de funcionários concursados
como a face “técnica” de uma administração, assim como o grupo de
contratados temporariamente como a face “política”. A posse de funções
de confiança por servidores concursados, por exemplo, indica a articu-
lação de um conhecimento técnico com a agenda governamental de de-
terminada gestão – a exemplo de professores concursados que assumem
direções escolares. Por outro lado, há contratados que prezam pela isenção
no cumprimento de suas funções, mesmo que na maioria dos casos esses
cargos tenham sido conquistados menos por competência técnica do que
pela mobilização de suas redes de relações pessoais. Assim, o esforço
de compreensão da complexa articulação entre elementos burocráticos
e governamentais no funcionalismo que compõe uma administração
mostra-se mais válido do que simplesmente identificar espaços ou grupos
concentradores do exercício desses elementos.
2) A ideia de uma completa dependência dos aspirantes a cargos pú-
blicos com relação aos “mediadores de acesso” aos empregos na prefeitura
(como os vereadores), gerando interpretações tomando os funcionários
contratados como atores passivos e completamente “dominados” pelos
interesses do grupo político. A concepção rasa de “dominação” do em-
pregador sobre o empregado reside no pressuposto de que a conquista de
um cargo na administração pública é sempre vista pelo contratado como
um favor concedido por uma pessoa de estrato social superior. Ainda que

Gabriela de Lima Cuervo · 


haja desigualdade nas possibilidades de ação desses atores, seu cálculo
necessariamente leva em consideração uma série de compromissos mo-
rais por vezes duradouros de ambas as partes.14 Assim como todo grupo
político precisa se esforçar para articular ações de governo com estruturas
burocráticas previamente definidas – no interior das quais estão incluídos
o contingente de funcionários estatutários, leis que limitam a contrata-
ção de partidários e os sindicatos –, ele também necessita de articulação
com uma rede interpessoal de compromisso composta, sobretudo, por
cabos eleitorais, parentes e amigos. Vale observar ainda que a própria
competência técnica e outros atributos pessoais como “liderança” tam-
bém figuram como critérios de contratação e manutenção do cargo de
um não concursado. Assim, a importância ou prestígio do cargo ocupado
por determinado funcionário diz respeito à articulação de seu capital de
relações pessoais com atributos particulares (títulos escolares, destreza
para determinadas atividades etc.).

O funcionário concursado frente às premissas envolvendo o


serviço público

Os discursos permeando os relatos de carreiras de servidores concursados


indicam determinadas premissas e condutas associadas ao exercício de
seus cargos. Entre essas premissas, está a “estabilidade”, a valorização do
título escolar, a valorização do tempo de serviço e, sobretudo, a valoriza-
ção da marca que os diferencia dos contratados: a investidura burocrática
no serviço público por meio de concurso. E, entre as condutas, o cum-
primento de tarefas com isenção, identificada em construções discursi-
vas procurando distanciar o exercício de seus cargos dos acordos e lutas
políticas locais. Pelo exame das trajetórias profissionais de professores na
prefeitura, observamos que tais preceitos por vezes são comprometidos
pelas dinâmicas específicas de cada governo, gerando uma espécie de

14 BEZERRA, Marcos Otávio. Em nome das “bases”: Política, favor e dependência pessoal.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999; BORGES, op.cit.

 · Funcionalismo público e política local


ressentimento pela não realização da estima social15 associada à investidura
no serviço público.16
Com a análise das carreiras de funcionários na prefeitura, observa-
mos que suas “rotinas estáveis” foram alteradas especialmente no go-
verno Núbia Cozzolino. Esse período foi marcado – do ponto de vista do
funcionalismo público – em especial pela substituição de um concurso
pelo grande número de contratos temporários, pela relação conflituosa
e pouco dialógica com os sindicatos locais e pela perseguição política a
funcionários publicamente mobilizados contra a prefeita. A junção dessas
ações de governo que afrontavam claramente princípios institucionais (e,
com isso, preceitos do serviço público burocrático) resultou em reações
dramáticas – principalmente do setor concursado – à administração mu-
nicipal em questão.17

15 WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: Editora UnB, 2009, pp.201.


16 A realidade histórica do Estado moderno tem como um de seus aspectos, de acor-
do com Max Weber, a presença do exercício de um quadro administrativo burocrático
que toca seu funcionamento, composto por funcionários remunerados e que possuem
competência técnica necessária à função exercida. Sendo o cargo uma profissão, já que
exige uma formação fixamente prescrita, o acesso à função se dá por meio de processos
seletivos formais. Uma vez obtido este acesso, são assegurados direitos como salário
fixo, vitaliciedade e assistência à velhice. A remuneração não é calculada de acordo
com o rendimento do funcionário, mas com a natureza fixa de suas atribuições e seu
tempo de serviço – WEBER, op.cit., pp.200-204. Analisando depoimentos de funcio-
nários públicos de Magé, observamos que a lógica impessoal e meritocrática do fun-
cionalismo público moderno, construída como tipo ideal por Weber ao traçar aspectos
da dominação racional típica das administrações burocráticas ocidentais, figura como
ideal no imaginário do setor concursado do funcionalismo, em especial. Observamos
que o serviço público representa uma recompensa a investimentos em estudos, os
quais, seguindo esta lógica, se converteriam em estabilidade e na estima social advinda
do exercício de um cargo cuja posse teve como condicionante uma formação profissio-
nal à qual, a princípio, poucos têm acesso.
17 O início do governo Núbia Cozzolino, em 2005, foi marcado pela anulação de um
concurso público realizado no ano anterior, ainda na gestão da prefeita Narriman Zito,
sob alegação de irregularidades no edital. As manifestações de indignação destaca-
vam-se por embates discursivos – sobretudo por parte dos aprovados no processo se-
letivo e dos funcionários concursados – que enfatizavam a não devolução do dinheiro
da inscrição e, principalmente, a contratação massiva de pessoas sem instrução formal
necessária ao preenchimento do cargo, incluindo cabos eleitorais e demais pessoas en-
volvidas na teia de relações que compunha a campanha política de Núbia. Outro fator
que reforçou o descontentamento foi a pouca quantidade de processos seletivos até
então realizados no município (um em 1996 e outro em 2000), razão pela qual o fun-
cionalismo ainda seja composto majoritariamente por contratos temporários. Logo,

Gabriela de Lima Cuervo · 


O envolvimento voluntário de Fabiana,18 professora concursada, na
política local por meio da ocupação de funções de confiança (ela exerceu
os cargos de coordenadora de Arte do município e, posteriormente, de
diretora escolar) e da mudança de “lado” político acarretou mudanças
em sua rotina como professora quando, primeiramente, passou a exercer
funções de prestígio e, mais adiante, quando sofreu perseguições polí-
ticas por conta do apoio político ao primo Nestor Vidal, da oposição aos
Cozzolino. Tais perseguições se operaram por meio das transferências
repentinas e injustificadas de local de trabalho e da forte vigilância de
sua atuação nas escolas.
O engajamento em mobilizações públicas contra a prefeita Núbia, em
2005, resultou em retaliações e no reforço da vigilância dos trabalhos
de Bento, Gilda e Helena, professores concursados. O envolvimento do
primeiro em atividades sindicais – e, com isso, a associação de sua figu-
ra a uma liderança nas redondezas – reforçava o controle operado pelos
colegas contratados na escola em que leciona. Segundo o entrevistado,
sua atuação como testemunha em um processo contra a prefeita resultou
em sua exoneração – revertida, entretanto, após oito dias. O engajamento
de Gilda nas manifestações, somado ao parentesco com um vereador de
oposição ao grupo político Cozzolino, resultou em sua transferência não

o concurso era um evento muito esperado, sobretudo por moradores que desejavam
um emprego estável e no qual não precisassem se locomover todos os dias para outras
cidades. A anulação de um concurso, neste caso, foi um marco simbólico de ruptura
pública com a institucionalidade, já que é entendido como o meio legal de recruta-
mento de funcionários públicos, por meio do qual qualquer pessoa deve se sujeitar
ao pretender um cargo na administração. O rompimento com preceitos fundamentais
(como a universalidade e a competência técnica) de uma administração burocrática
tornava-se ainda mais claro quando a prefeita justificava a anulação por meio de dis-
curso que destacava o fato dela ter “gerado empregos a mageenses”, – fazendo refe-
rência à gestão anterior, na qual muitos contratos foram preenchidos por moradores
de Duque de Caxias, município de origem da ex-prefeita Narriman Zito, e também à
possibilidade de serem aprovadas no concurso pessoas oriundas de outras cidades. Tal
discurso parte de uma lógica segundo a qual a universalidade do concurso seria um fa-
tor de impedimento ao acesso da grande maioria dos moradores de Magé aos cargos na
prefeitura, tendo em vista o fato de poucos possuírem instrução formal ou condições
de se prepararem para os processos seletivos.
18 Os nomes dos entrevistados são fictícios.

 · Funcionalismo público e política local


consentida de local de trabalho e em seu desvio de função,19 quando foi
retirada estrategicamente do contato direto com os alunos do bairro em
que foi criada e teve sua gratificação relativa à regência de classe suspensa.
Após também envolver-se nas manifestações contra as ações do governo,
Helena e suas colegas viveram momentos de tensão na escola em que
lecionavam, em especial por, em um primeiro momento, a direção ser
exercida por uma colega concursada. O compromisso firmado com o go-
verno por meio da posse de um cargo de confiança levou a diretora a tomar
posturas de não apoio e mesmo de hostilidade às ex-colegas professoras.
O ressentimento pela baixa valorização do título escolar e do tempo de
serviço se faz presente nos discursos de alguns entrevistados, em especial
quando lamentam o não cumprimento do plano de carreira aprovado
em 2004. Durante reunião do então candidato a prefeito Nestor Vidal,
em 2011, com os professores do município, Bento afirmou ter solicitado
a criação de uma gratificação por tempo de serviço aos funcionários e o
cumprimento do plano de carreira já criado. Gilda disse ter cursado fa-
culdade e pós-graduação com o objetivo de ser recompensada pelo plano
de carreira, que vigorou de fato apenas até o fim do mandato de Narriman
Zito, em 2004. As críticas feitas por Isabel, professora concursada, e por
Gilda acerca da falta de titulação de alguns diretores escolares e do fato
de ocuparem o cargo por intermédio de indicações políticas ilustram
o incômodo pela possibilidade de se verem “geridas” por pessoas com
menos instrução ou que foram alçadas aos cargos mais por intermédio
de capitais de relações do que por mérito técnico, o que desclassifica
simbolicamente seus investimentos em estudos.

Pela lei, pra ser diretor, a pessoa precisa ter Pedagogia e pós em Gestão e
Supervisão Escolar, pelo regimento da prefeitura é obrigado. A maioria
não tem, a maioria das diretoras só tem o Ensino Normal. Os outros dizem
que as pessoas com estudo não quer dizer nada... quer dizer tudo! Eu acho
que se eles começarem a botar diretor com faculdade, com pós, já é outro
nível, outra cabeça, outra mentalidade pra tratar com as pessoas, não é

19 Gilda foi transferida de uma escola próxima a sua residência, na qual lecionava há
cerca de vinte anos, para outra em um bairro distante e marginalizado, na função de
auxiliar de secretaria.

Gabriela de Lima Cuervo · 


verdade isso? Se você põe uma pessoa que só tem o Normal de quarenta
anos atrás... a maioria é, entendeu? Você acha que essa pessoa vai ter a
mesma cabeça? (Gilda)

Tem muito diretor sem capacitação, não tem conhecimento de gestão.


Não há processo seletivo pra direção, todo mundo que está ali é indicado
político. (Isabel)

No trecho a seguir, Isabel elogia as ações do governo Narriman Zito


com relação aos professores e lamenta a não observância do Plano de
Cargos e Salários aprovado no último ano de mandato da ex-prefeita:

Quando Narriman entrou, o que ela valorizou mais foi a Educação, só


tinha professor concursado, não tinha contratado. Nós éramos efetivos e
era oferecida dobra pra gente. A Narriman tinha uma excelente secretária
de Educação. Foi quando foi feito o plano de cargos e salários, em 2004,
e que estamos lutando até hoje pra que ele vigore, junto com o sindicato.
Não sou enquadrada com faculdade e pós-graduação até hoje, e estou
nessa luta. (Isabel)

Esse trecho aponta para outro desconforto também verbalizado por


outros entrevistados: a valorização da investidura no serviço público
por meio de concurso. Por conta da jogada política das administrações
municipais com a empregabilidade e da pouca quantidade de concursos
já realizados na cidade, tem lugar uma grande reserva para contratos
temporários que ultrapassa o número de estatutários. Assim, alguns con-
cursados criticam o fato de exercerem as mesmas funções ou mesmo, em
alguns momentos, se verem em cargos de prestígio mais baixo que aqueles
ocupados por contratados. Um exemplo comum são professores concursa-
dos trabalhando em escolas dirigidas por professores contratados. Isabel
avalia de maneira positiva o pequeno número ou mesmo a ausência de
contratados na educação durante o governo Narriman, quando as vagas
remanescentes eram oferecidas aos professores estatutários em regime
de “dobra”.
Gilda, ao criticar o “aproveitamento”, por parte da diretora, de uma
colega que foi aprovada no concurso para o cargo de auxiliar de serviços

 · Funcionalismo público e política local


gerais da escola mas que exerce o cargo de professora, demonstra insatis-
fação por a nova funcionária não exercer a função para a qual foi aprovada:

Vamos supor: eu sou nomeada a serviços gerais. Aí a diretora vai com a


minha cara e diz que vai me tirar e botar em outra coisa, entendeu? É
errado. Se você é nomeado pra um setor, você tem que fazer aquilo pro
que você foi nomeado. É igual agora, tem uma menina da minha escola
que ela fez concurso para serviços gerais. Ela está lá como professora. Ela
tem formação de professora, está até na faculdade, mas fez concurso pra
serviços gerais. Esse último agora, do Nestor. Aí a diretora que está na
minha escola disse assim: “Ah, se Fulano vai vir pra cá, ela não vai ser
pro serviços gerais, não, eu vou botar ela pra trabalhar na biblioteca.”
Eu disse assim: “Vem cá, está errado. Se ela fez concurso pra faxineira,
ela tem que ser faxineira. Se você for dar prêmio a alguém, tem que dar
a alguém que está há trinta anos na prefeitura.” (Gilda)

Essa postura indica a defesa da entrevistada pela monopolização do


exercício de um cargo apenas por aqueles que foram aprovados para a
função, mesmo que estes possuam titulação necessária. Convém observar
que, ao relatar este episódio, Gilda também valoriza discursivamente a
importância do tempo de serviço (a princípio, não valorizado no funcio-
nalismo público municipal com o descumprimento do plano de carreira),
quando sugere que este tipo de “prêmio” – o “aproveitamento” de uma
funcionária em um cargo de mais prestígio do que aquele para o qual foi
aprovada – deveria ser concedido a quem estivesse há mais tempo na
prefeitura.
Bento também se posiciona a favor da preferência a concursados na
administração pública ao criticar a demora na convocação dos aprovados
no último processo seletivo, realizado em 2012, com o seguinte relato:

O candidato aprovado não pode ficar em casa aguardando, e o outro que


não fez o concurso estar lá ganhando. Isso não é oferta pública! Isso é
oferta pra amigo, pra cabo eleitoral. (Bento)

Com um discurso evocando preceitos de universalidade e impessoa-


lidade que permeiam o serviço público burocrático, Bento sugere que a

Gabriela de Lima Cuervo · 


morosidade nos processos de convocação responde ao interesse gover-
namental na reserva de cargos a cabos eleitorais e integrantes da rede de
compromissos dos ocupantes das posições de mando na prefeitura.
Em resumo, por meio das construções reflexivas dos entrevistados
concursados, observamos certa frustração pelo comprometimento da
eficácia simbólica que geralmente se espera do concurso pelos elementos
governamentais da administração pública. O processo seletivo formal,
como rito de instituição,20 a princípio responsável pela consolidação da
diferença entre concursados e contratados, portanto, nem sempre se
impõe da maneira como essas pessoas gostariam.
O entranhamento do elemento governamental nas administrações
municipais de Magé, agravado durante o governo Núbia Cozzolino, abran-
da o efeito simbólico carregado, a princípio, pelo concurso como rito
institucional. Ainda assim, o reconhecimento da diferença incide nas
condutas dos servidores concursados no exercício de seus cargos e, tam-
bém, nas representações concebidas tanto por concursados quanto por
contratados acerca de suas trajetórias na prefeitura.
Falemos primeiro dessas condutas. Discursos presentes nos relatos
dos entrevistados indicam que, além das premissas associadas à inves-
tidura em um cargo público por intermédio de concurso, esse exercício
também supõe determinadas posturas. Uma delas, talvez a principal, é a
realização de tarefas com isenção, na tentativa de afastar o elemento po-
lítico da natureza burocrática de seus cargos. Esses comportamentos são
envoltos por uma representação negando o envolvimento do concursado
com política, associada à ideia de dependência e atraso. Essa representação
pode ser identificada na resistência demonstrada por alguns entrevistados
concursados em aceitar cargos de direção.

[J]á até me convidaram nesse governo mesmo. Eu não vou pra uma escola
pra administrá-la, pra quando fizer algo devido alguém me meter o dedo
na cara. Eu peço exoneração na mesma hora e vou embora. Falta ao diretor
autonomia pra dirigir a escola. Geralmente o diretor é indicado por um
vereador ou por alguém que exige dele determinadas coisas, ou que junta

20 BOURDIEU, Pierre. “Os ritos de instituição.” In: A economia das trocas linguísticas.
São Paulo: Edusp, 2008.

 · Funcionalismo público e política local


pra ele aquele pessoal que é dele: “Ah, aqui está o meu diretor, eu quero
botar o vigia, o porteiro e não sei o quê.” Fica assim, um penduricalho
de coisa ruim em cada escola. E a escola não funciona. Eu estou vendo
vereador hoje com direção de dezessete escolas. Direção de escola é ques-
tão administrativa. Eu vejo diretora comissionada boa, diretora efetiva
boa, mas vejo a maioria sem condição de administrar coisa nenhuma. É
algo que a gente tem que fazer sem o coração na hora de indicar diretor.
Outra coisa é o seguinte: passar o tempo todo na escola a troco de R$ 1
mil, eu prefiro ficar em casa sem o dinheiro. (Bento)

Já me ofereceram cargo de direção várias vezes e eu nunca quis. É uma


coisa que você não vai ter vida própria. Você fica caminhando com políti-
co, fica fazendo campanha, mentindo para as pessoas... eu não sou disso.
Ficar ali, paparicando, puxando o saco, eu não gosto disso, não. Agora
mesmo, meu primo que é vereador me ofereceu escola. Eu não quero, pra
quê? Vou ter que fazer campanha pra prefeito, campanha pra vereador,
pra você ficar na mão de político? Prefiro eu mesma ir lá, trabalhar, dar
a minha aula. (Gilda)

Não quis ser diretora porque você tem que ficar muitas horas fora, depen-
dendo do governo que esteja lá, você tem que ler a cartilha deles... Por
exemplo, no governo passado, o de Núbia, quem era diretor tinha que estar
fazendo reunião, tinha que estar atrás de voto, e isso não é pra mim. (Isabel)

Como a posse em um cargo de confiança representa o compromisso


com determinada agenda governamental, a possibilidade de seu exercí-
cio basear-se unicamente no preceito de impessoalidade técnica – uma
das bases do serviço público burocrático – torna-se impossível. Sendo
o comprometimento com a agenda de determinados governos avaliado
como uma contradição à natureza burocrática de seus cargos, colegas de
trabalho concursados ocupantes de funções de confiança por vezes se
tornam alvo de crítica.
No entanto, experiências como a de Fabiana na prefeitura indicam o
perigo da associação automática da postura de distanciamento da política
ao servidor concursado. O exercício de cargos de confiança como a coorde-
nação de Arte e a direção escolar, assim como a militância na candidatura

Gabriela de Lima Cuervo · 


da irmã de Núbia Cozzolino, a deputada estadual, e, posteriormente, nas
candidaturas do primo, Nestor Vidal, reafirmam o entranhamento do
elemento governamental na natureza burocrática de seu cargo de pro-
fessora primária. Quanto maior o envolvimento do concursado com esse
elemento da administração pública, menos “estável” se torna sua rotina,
dada a natureza transitória dos governos.
Importa ressaltar que, mesmo de maneira involuntária, o funcionário
concursado por vezes é levado a praticar ações politizadas – que podem
pender para um dos “lados políticos” delineados no município – em seu
cotidiano de trabalho. Tal incidência se deve principalmente a dois fatores
articulados: a pequena distância social entre posições de mando na pre-
feitura e os cargos de carreira e a grande reserva a contratos temporários
na administração municipal. Desse modo, na reconfiguração periódica
do funcionalismo municipal, o servidor consegue identificar sem difi-
culdade as redes mobilizadas para que determinadas pessoas ocupem
cargos específicos, assim como ele mesmo pode ter sua rotina alterada de
maneira mais ou menos profunda com a mudança de posição ou mesmo
a entrada de novos colegas de trabalho.

O funcionário contratado e a busca por reconhecimento


profissional frente à falta da marca diferenciadora do concurso

Com os relatos da diretora escolar contratada Telma e da professora tam-


bém contratada Antônia, observamos que o funcionário contratado in-
ternaliza sua diferença – institucionalizada pelo concurso – em relação
ao concursado, por meio de posturas defensivas de esforço em demons-
trar seus valores como profissional, tanto no exercício de seus cargos na
prefeitura como discursivamente frente à pesquisadora. Essas posturas
configuram uma resposta ao senso comum que toma o funcionário con-
tratado como alguém completamente dependente do político na conquista
e manutenção de seus cargos e que carrega, desse modo, um estigma de
“incompetente”, verbalizado em declarações como “só está ali porque é
amigo de Fulano”. Esse tipo de discurso nativo se fazia presente, inclu-
sive, nos fóruns de discussão da comunidade virtual estudada, a Magé
Discussão Política.

 · Funcionalismo público e política local


Na tentativa de obter seu primeiro contrato na prefeitura, Telma de
início preferiu não revelar ao prefeito que era filha de uma velha amiga,
pois desejava ser contratada por seu mérito individual, e não como pa-
rente ou amiga de algum político. Não desejava, portanto, vincular seu
futuro emprego a uma dívida pessoal com o prefeito, mas ao título escolar
necessário a seu cargo.

Eu ia pra prefeitura de manhã, ficava em pé na porta do prefeito até de


noite. Ele fechava e abria a porta e não perguntava nunca o que eu queria,
e eu não queria atrapalhar. Eu ficava esperando pra poder falar com ele que
eu precisava trabalhar. (...) Aí durante trinta dias eu fiz isso. Um dia ele
abriu e falou: “Você quer falar comigo?” E eu disse: “Há muito tempo. Eu já
estou aqui todos os dias.” Só que ele era muito amigo da minha mãe, mas
eu não queria usar isso. Ele frequentava a minha casa, a da minha mãe.
Tomava banho, minha mãe fazia comida, ele comia, usava o banheiro...
Só que eu não queria usar isso como uma forma de eu trabalhar. Eu queria
que fosse pela minha capacidade, pela minha vontade, pela minha ne-
cessidade. Eu poderia ter falado que a filha de Lourdes estava ali e queria
falar com ele, mas eu não quis usar esse argumento, entendeu? (Telma)

A entrevistada também sugere que os convites surgidos em vários go-


vernos para exercer cargos de responsabilidade nas escolas, como diretora
e coordenadora pedagógica, foram fruto de sua competência técnica para
essas funções – distanciando-se de uma dependência/incompetência
em geral associadas ao contratado. No trecho a seguir, Telma critica a
contratação por intermédio de concurso, tomando a vitaliciedade como
potencializador do descompromisso associado por ela ao funcionário
estatutário, e elogia, por outro lado, a postura “compromissada” e “orga-
nizada” de alguns contratados, igualando discursivamente contratados
e concursados no quesito da competência profissional:

Não sei se estou errada, mas não concordo com concurso. Eu acho que
deveria ser contrato de carteira assinada. Sabe por quê? Porque você tra-
balha muito bem com contratado. Com efetivo, você tem mais problema,
porque ele tem garantias e ele quer fazer o que ele quer. Ele falta, não
tem muito compromisso, você está me entendendo? Não deveria existir

Gabriela de Lima Cuervo · 


concurso para educação. Isso é um pensamento meu, porque, como eu
já trabalhei como diretora e estou até hoje, a gente vê muito dificuldade
nisso, não só eu. Você às vezes tem vontade de ver um professor longe,
mas ele é concursado, e às vezes você tem um contratado maravilhoso,
compromissado, organizado. Por que eu penso assim? Você tendo carteira
assinada, se aquele funcionário não é bom pra você, tu manda embora,
tu põe outro. Eu não concordo por esse motivo. Porque a gente pega cada
coisa... Tem pessoas sem educação, sem amor ao próximo, e está ali por-
que é concursado. Isso me irrita, sabe? Falta aquele comprometimento,
aquela coisa. (Telma)

Telma põe em xeque uma das premissas do serviço público: a es-


tabilidade. A entrevistada, partindo da posição de diretora, afirma que
a garantia de vitaliciedade no cargo gera descompromisso de alguns
funcionários concursados e, com isso, o comprometimento do funcio-
namento da escola. Interessante notar como ela desconstrói o princípio
da estabilidade como elemento essencial à eficiência do funcionalismo
burocrático,21 por meio de uma gramática generalizante também ba-
seada na eficiência como princípio moral.22 Nesse sentido, sugere haver
incompatibilidade entre o concurso público – por conta da garantia de
estabilidade por ele oferecida – e a eficiência dos serviços nas escolas,
discurso presente no senso comum que toma o funcionário público como
“preguiçoso”.
A falta de uma marca diferenciadora – a investidura no serviço público
por concurso – reforça a mobilização do funcionário não concursado em

21 WEBER, op.cit., p.208.


22 Segundo Boltanski – BOLTANSKI, Luc. El amor y la justicia como competências: Tres
ensayos de sociología de la acción. Buenos Aires: Amorrortu, 2000, p.59 –, qualquer ator
possui capacidade de construir argumentos aceitáveis perante os demais com vistas
a sustentar uma pretensão de inteligibilidade e, sobretudo, universalidade. A fim de
que sua construção discursiva seja aceita no contexto de disputa em que está inserido,
o ator deve mobilizar uma espécie de gramática geral ou metafísica comum. Assim,
Boltanski e Thévenot – ver BOLTANSKI, Luc; Thévenot, Laurent. “A sociologia da ca-
pacidade crítica.” Antropolítica, n.23, 2009, p.20 –, partindo da ideia de que as pessoas
não operam discursos de maneira caótica, propõem modelos generalizantes de juízo
moral. Dentre estes modelos, está o do mundo industrial, baseado na obra O sistema in-
dustrial, de Saint-Simon, cujo princípio de equivalência universalizante é a eficiência.

 · Funcionalismo público e política local


busca de uma autovalorização profissional, por meio do esforço em ter
reconhecidos atributos justificadores da necessidade de seu trabalho na
prefeitura, e não sua necessidade com relação à prefeitura.
Mesmo que em outros momentos seus cargos tenham sido conquis-
tados por intermédio de vereadores, Antônia tenta distanciar-se discur-
sivamente da ideia de dependência com relação aos políticos ao associar
seu longo tempo de exercício da função de professora na prefeitura a sua
competência profissional – ao fato de ser “boa professora” – e da liderança
que afirma possuir. Além disso, critica o que afirma ter sido o principal
critério de contratação no governo Núbia Cozzolino (o comprometimento
político, ou “ser parceiro”) e adota uma postura de distância desse tipo
de prática, associada por ela à maioria dos contratados. Nesse sentido,
também se mobiliza na recuperação de uma valorização de seu trabalho
na prefeitura por meio da autoafirmação de atributos individuais.

Na época de Núbia era horrível, porque o funcionário tinha que fazer


campanha pra ela. Eu já ouvi falar muito assim: “Eu não quero pessoas
capacitadas pra trabalhar, eu quero parceiras.” É muito difícil ser “parcei-
ra” no meu caso, porque eu tenho a personalidade muito forte, então não
aceito qualquer coisa. Tinha diretora que falava: “Hoje tem inauguração,
se você não for, vai ser mandado embora”, então a gente vivia naquela
balança, hoje podia estar empregado e amanhã não estar. Não adiantava
você ser boa professora, porque eu me considero muito boa professora, eu
acho que nunca saí por causa disso também. Eu posso não ter sido uma
boa política, mas eu sempre fui uma boa professora, então as diretoras
viam essa qualidade em mim, então elas também me seguravam. E tinha
as mães dos meus alunos também, eu tinha esse domínio a meu favor.
Como eles iam me mandar embora se eu tinha os pais a meu favor? E,
quando você trabalha direitinho, você tem o respaldo dos pais. E isso
pro político faz diferença. Todo mundo fala que eu exerço uma liderança
muito boa, então o político tem medo de perder uma pessoa que tem uma
certa liderança. Você pode até não ajudar eles, mas fica neutralizado, você
não vai ficar falando mal: pode até não gostar, mas fica preso a não falar.
E, se eles mandam você embora, o que você faz? Se você tem uma certa
liderança, você espalha aquilo. (Antônia)

Gabriela de Lima Cuervo · 


A construção de uma carreira na prefeitura para um funcionário não
concursado, conforme vimos, é atravessada por contratempos e compro-
missos políticos e, em alguns casos, por uma constante reafirmação de
seu valor como profissional tendo em vista a não garantia de estabilidade
do concursado. O peso do concurso como marca simbólica atestadora
da competência técnica do funcionário, neste caso, é discursivamente
minimizado por alguns contratados, como pudemos observar na fala de
Telma e no trecho abaixo:

Acho ótimo que tenha concurso, é uma oportunidade pra muita gente sem
garantia se efetivar. Mas nem sempre o estudo quer dizer que o funcionário
seja melhor. Não tem aquela frase: “Deus não escolhe os capacitados, mas
capacita os escolhidos?” (Laura, auxiliar de creche contratada)

Laura admite a importância da realização de concursos como chance


de estabilização do funcionário, mas questiona se a instrução formal –
critério de avaliação em processos seletivos – é de fato garantia para uma
pessoa se tornar um “bom funcionário”. Por meio do discurso religioso,
afirma que, dada a oportunidade, a prática seria uma maneira de instruir
alguém a princípio sem instrução. Essa ideia era frequentemente reforçada
por uma parcela do setor contratado durante o governo Cozzolino, quando
defendiam a oferta de empregos pela prefeita a pessoas que não teriam
chance de aprovação em um processo seletivo. Esses discursos envol-
vendo as condições para o acesso aos cargos guardam duas concepções
de igualdade defendidas no Brasil, que seriam, segundo a formulação
de Roberto Cardoso de Oliveira: “1) a concepção que define igualdade
como tratamento uniforme, dominante em nossa Carta Constitucional
em 1988, bem expressada no princípio de isonomia jurídica; e 2) a con-
cepção que define a igualdade como tratamento diferenciado, a qual seria
dominante em nossas instituições públicas e no espaço compartilhado
pelos cidadãos.”23 A ideia de igualdade cívica e impessoalidade contida

23 CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. “Concepções de igualdade e (des)igualda-


des no Brasil.” In: Kant de Lima, Roberto; Eilbaum, Lucía; Pires, Lenin (orgs.). Confli-
tos, direitos e moralidades em perspectiva comparada, vol. 1. Rio de Janeiro: Garamond,
2010, pp.19-33; —————. “Concepções de igualdade e cidadania.” Contemporânea: Re-
vista de Sociologia da UFSCar, vol.1, n.1, 2011, pp.35-48.

 · Funcionalismo público e política local


no concurso como processo seletivo “legítimo” de funcionários públicos
se articula e também esbarra com concepções defensoras do tratamento
diferenciado a quem fica à margem de seleções baseadas no critério do
“mérito” e da instrução formal, concepções estas reforçadas por uma
parcela do setor contratado do funcionalismo de Magé.
No entanto, os discursos dos entrevistados indicam o desejo de terem
seus trabalhos moralmente aceitos no serviço público, além do simples
acesso ao emprego. É neste sentido que tentam dissociar suas contratações
da dependência com relação a políticos e as relacionar com seus “méritos”
individuais – que nem sempre significam a posse de uma instrução formal
exigida no concurso. São estes “méritos” que, segundo essas pessoas, as
fazem permanecer no serviço público municipal por vários governos.
A necessidade de autoafirmação por parte de um servidor concursado
é significativamente reduzida, já que este carrega a marca diferencia-
dora da investidura no serviço público por concurso, atestadora simbo-
licamente de sua competência necessária ao cargo. A mobilização pelo
reconhecimento de uma autovalorização profissional, no entanto, se faz
presente em situações nas quais esses funcionários assumem funções de
confiança. Na tentativa de dissociar o exercício desses cargos ao elemento
político contrariador dos preceitos burocráticos de sua natureza de con-
vocação, a posse de uma função de confiança é ligada discursivamente
a uma competência técnica, um título escolar ou atributo individual.
Desse modo, Fabiana justifica os convites para assumir a coordenação
de artes e a direção de unidades de ensino na gestão Núbia Cozzolino
pela visibilidade conquistada em torno de sua destreza e capacidade de
mobilização com projetos artísticos.

Considerações finais

A interpretação das experiências de cada entrevistado na prefeitura nos


leva para além do exercício fácil de pensar concursados e contratados
como dois grupos estanques no funcionalismo municipal, aos quais asso-
ciaríamos práticas e posturas reflexivas específicas. Mesmo que exercendo
seus cargos por meio de investiduras distintas no serviço público, esses
funcionários habitam o mesmo universo moral, que toma como princípios

Gabriela de Lima Cuervo · 


normativos ideais modernos de universalidade e impessoalidade. A po-
sição de cada funcionário no jogo político é o que indica a maneira pela
qual esses ideais são pensados por esses atores e operacionalizados em
seus cotidianos de trabalho.
A proximidade entre ocupantes temporários do Executivo, do Legisla-
tivo e das secretarias e os funcionários públicos de carreira é determinante
para que os acordos e lutas políticas locais interfiram no funcionamento
do serviço público – em especial nas contratações – e sejam sentidas de
maneiras diferenciadas na teia de relações que compõe a administração
municipal. Nesse sentido, onde o que normativamente é pensado como
uma esfera na qual a impessoalidade e a técnica deveriam prevalecer,
entram em cena os contratos temporários e uma série de trocas políticas
que colocam em xeque premissas que geralmente são associadas ao fun-
cionalismo público, conforme analisamos nos discursos de funcionários
concursados. Estes se deparam com o comprometimento de prerrogativas
que sustentam o aspecto burocrático de seu cargo, como a estabilidade,
a valorização do título escolar e a observância de determinadas condutas
como a tentativa de “despolitização” do exercício de suas funções. Essa
conduta corresponde à concepção de que a natureza técnica e impessoal
de seu cargo deve ser distanciada da “política”, esfera que geralmente é
associada à ideia de dependência e atraso.
O funcionário contratado sente o peso de não possuir a marca que
a princípio atesta simbolicamente a competência necessária ao cargo
que exerce: a investidura por meio de concurso. Assim, o esforço pelo
reconhecimento de sua competência se faz no sentido de dissociar sua
contratação e sua manutenção no cargo à dependência com relação a polí-
ticos. De modo geral, funcionários de ambos os setores do funcionalismo
esperam reconhecimento de seus “méritos” individuais, procurando
com isso distanciar-se da esfera da dependência e do favor. O contratado,
conforme observado, necessita de um esforço maior tanto no sentido de
sentir-se moralmente aceito no serviço público quanto no aspecto prático
de manter o seu emprego na prefeitura.

 · Funcionalismo público e política local


Hipossuficiência: mapeamento
dos sentidos da categoria no campo
jurídico brasileiro

L E F e R L T M

E ste trabalho tem por objetivo apresentar os resultados de pesquisa


exploratória acerca dos sentidos da categoria hipossuficiência no atual
discurso jurídico brasileiro.1 Nesse primeiro momento, privilegiaremos,
por meio de pesquisa qualitativa, o mapeamento dessa categoria no con-
texto dos discursos dos atores judiciários (juízes, advogados, membros
do Ministério Público), assim como nos discursos dos manuais de direito
do trabalho e da legislação trabalhista vigente, já que o “princípio da
proteção” é categoria nativa desse campo e sugere que a interpretação e
o julgamento dos conflitos trabalhistas deve ter em conta que o traba-
lhador é a parte “mais fraca” no litígio. A noção de hipossuficiência, na
sensibilidade jurídica brasileira,2 encontra-se na base das justificativas de
estabelecimento de tutela estatal para determinados segmentos sociais.
Nesse sentido, a hipossuficiência constitui-se como categoria central à
compreensão das distinções de tratamento produzidas na esfera da pro-
dução legislativa e de sua interpretação e implementação na esfera das
práticas judiciárias (entre outras).

1 GEERTZ, Clifford. “Uma descrição densa.” In: A interpretação das culturas. Rio de
Janeiro: Guanabara, 1989, pp.13-41.
2 GEERTZ, Clifford. O saber local. Petrópolis, RJ: Vozes, 1989.
O percurso de reflexão condutor à categoria hipossuficiência

Nossas trajetórias são marcadas pela constante preocupação em identificar


as peculiaridades do campo jurídico brasileiro, o que o torna específico e
singular, especialmente porque, de maneira geral, essas peculiaridades
são invisíveis – para os atores do campo, bem como para a cidadania
brasileira de forma geral. É muito comum os textos de doutrina jurídica
naturalizarem as categorias próprias do campo e não se ocuparem de sua
descrição ou sentido, o que torna a linguagem jurídica praticamente her-
mética para quem não é um iniciado no direito. É também muito comum
que categorias nativas desse campo não tenham estabilidade semântica
nem mesmo entre os iniciados, como já foi demonstrado por pesquisas
empíricas anteriormente. Assim, a categoria prova, por exemplo, central
no processo judicial, não goza de mesma significação entre os operadores
de um mesmo tribunal.3 Dessa forma, a pesquisa empírica, tanto no que
concerne ao discurso doutrinário como ao discurso dos operadores, é um
precioso instrumento para conhecer os significados e sentidos adquiridos
por uma categoria jurídica em sua atualização na prática dos tribunais,
uma vez que raramente essa significação é única e compartilhada por
todos.
Desde que tomamos como objeto de reflexão a forma peculiar pela qual
o mundo jurídico brasileiro atualiza o princípio de igualdade formal, que
diz que todos são iguais perante a lei – invenção do Estado liberal burguês
e que aparece no ideário constitucional dos Estados contemporâneos ao
redor do planeta –, temos voltado nossas atenções para algumas mani-
festações do campo jurídico brasileiro que nos ajudam a compreender a
maneira como esse princípio, visto como universal pelos juristas brasilei-
ros, se atualiza de forma peculiar em nossa sensibilidade jurídica, assim
como nas sensibilidades jurídicas diversas da nossa.4

3 FIGUEIRA, Luiz Eduardo. O ritual judiciário do tribunal do júri. Porto Alegre: Sérgio
Antonio Fabris, 2008.
4 MENDES, Regina Lúcia Teixeira. “Igualdade à brasileira: Cidadania como instituto
jurídico no Brasil.” In: Amorim, Maria Stella de; Kant de Lima, Roberto; Mendes, Regi-
na Lúcia Teixeira (orgs.). Ensaios sobre a igualdade jurídica: Acesso à justiça criminal e aos
direitos de cidadania no Brasil. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005.

 · Hipossuficiência
Buscamos ainda compreender e explicitar as justificativas usadas pelo
campo do direito brasileiro5 para atribuir ao Estado a tutela dos direitos
fundamentais garantidos a todos os brasileiros pela Constituição de 1988,
direitos vistos por nossa doutrina como indisponíveis, o que tira do cida-
dão brasileiro a possibilidade de usar ou não o direito fundamental do qual
é titular. Essa característica aponta para um aspecto tutorial do Estado
brasileiro, tornando-o detentor da “missão de proteger” seus cidadãos.
As expressões “tutelar direitos” e “normas protetivas” são familiares
aos estudantes de direito, bem como aos nativos do campo jurídico de
forma geral. No entanto, a tutela de direitos, no Brasil, se transforma em
tutela de pessoas, não capazes aos olhos dos operadores de decidir sobre
seus próprios direitos ou de resolver o que é melhor para suas vidas e para
suas famílias. A doutrina jurídica costuma se referir à tutela de direitos
pela lei e consequentemente sua garantia pela força do Estado. Tutelados
pela lei são os direitos e, por isto, garantidos pelo Estado. Cidadãos – for-
tes ou fracos – são seus titulares e por isto devem tê-los garantidos pelo
Estado. Entre nós, todavia, essas noções se atualizam com base na nossa
forma peculiar de ver a igualdade jurídica, segundo a qual o Estado deve
tratar desigualmente os desiguais.6 Assim, os cidadãos ditos “mais
fracos” são vistos pelo mundo jurídico como seres tuteláveis, incapazes,
a terem suas vontades minimizadas e substituídas pela vontade do agente
do Estado, daí a ideia de hipossuficiência. Essas concepções são difun-
didas pela imprensa escrita e falada, o que as torna ainda mais naturais.
As concepções descritas acima estão diretamente ligadas ao sentido
adquirido pela ideia de igualdade jurídica na sensibilidade jurídica bra-
sileira.7 Aqui, o conceito não tem o sentido de garantia de tratamen-
to jurídico uniforme dispensado pelo Estado a todos aqueles ligados a
ele pelo vínculo da cidadania, como poderia sugerir a exegese literal do
texto constitucional que diz que todos são iguais perante a lei.8 Entre

5 BOURDIEU, Pierre. “A força do direito: Elementos para uma sociologia do campo


jurídico.” In: O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 2009.
6 BARBOSA, Ruy. Oração aos moços: Edição popular anotada por Adriano da Gama Kury.
Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 1999.
7 GEERTZ, op.cit., pp.249-356.
8 Art. 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garan-
tindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direi-
to à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.”

Luiz Eduardo Figueira e Regina Lúcia Teixeira Mendes · 


nós, igualdade é, como dissemos anteriormente, tratar desigualmente
os desiguais, o que implica na “desigualação” jurídica do conteúdo da
cidadania.9
Retomando ideias importantes para essa discussão já exploradas em
trabalhos anteriores afirmamos que “a igualdade jurídica universal nas
sociedades igualitárias é a ideia que torna possível a convivência isonô-
mica das diferenças nas sociedades de mercado e permite a formação de
subgrupos em torno de características fáticas semelhantes”.10 É a ideia
de isonomia formal, introduzida no pensamento jurídico ocidental con-
temporâneo pelas revoluções liberais, o que torna possível a concepção
de cidadania universal e, por paradoxal que pareça, é a concepção de
isonomia jurídica formal que possibilita o aparecimento da ideia do di-
reito à diferença, oriunda do direito americano. Sendo assim, o modelo
individualista não apresenta uma tendência homogeneizadora, uma vez
que possibilita a inclusão dos “diferentes” no sistema social, já que estes
podem e devem defender os seus direitos, valendo-se da igualdade jurí-
dica atribuída a todos, do tratamento paritário oferecido pelo sistema.11
Nessa lógica, presume-se que todos aqueles vinculados a determinado
Estado devem ter a possibilidade igualitária de defender seus interesses
perante os tribunais, baseados na lei. E nesse âmbito surge o Estado liberal
burguês como espaço de administração de conflitos entre os indivíduos
que, apesar de diferentes em suas particularidades, são detentores do
direito de serem tratados de forma isonômica pelo ordenamento jurídico
e pelos tribunais na solução dos conflitos dos quais fazem parte, assim
como no acesso e no gozo dos direitos inerentes à cidadania.12

9 MENDES, Regina Lúcia Teixeira. “Brasileiros: Nacionais ou cidadãos? Estudo acer-


ca dos direitos de cidadania no Brasil numa perspectiva comparada.” In: Cadernos de
Direitos Humanos 1, Direitos negados: Questões para uma política de direitos humanos. Rio
de Janeiro: Centro de documentação da Secretaria de Direitos Humanos do Estado do
Rio de Janeiro/Booklink, 2004.
10 KANT DE LIMA, Roberto. “Saber jurídico e direito à diferença no Brasil: Questões
de teoria e método em uma perspectiva comparada.” In: Ensaios de antropologia e de
direito. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2009, pp.89-126.
11 KANT DE LIMA, Roberto. “Sensibilidades jurídicas, saber e poder: bases culturais
de alguns aspectos do direito brasileiro em uma perspectiva comparada.” In: Anuário
Antropológico 2009, n.2, 2010, pp.25-51.
12 MENDES, op.cit., 2005.

 · Hipossuficiência
No entanto, como já demonstramos, é a naturalização da desigualdade
entre nós que confere a atualidade da regra da igualdade de Ruy Barbosa,
cuja leitura peculiar faz uma espécie de jus naturalismo às avessas, uma
vez que essa escola justifica a igualdade entre os homens por sua natureza,
isto é, todos são iguais porque a natureza os fez homens. Ruy Barbosa, na
“Oração aos moços”, faz o raciocínio contrário, fundamentando a desi-
gualdade social observada entre os homens nas variações da natureza. O
autor vincula a ideia de desigualdade jurídica à ideia de diferença e preco-
niza que a desigualdade jurídica é o resultado da “natureza” das coisas.13
A naturalização da forma brasileira de atualizar a igualdade jurídica
fica completamente relativizada pela reflexão de Luís Roberto Cardoso
de Oliveira, que afirma que

pelo menos desde o trabalho clássico de Marshall (...) a ideia moderna de


cidadania vem sendo caracterizada pela instituição de um status igualitá-
rio entre os cidadãos, que desfrutariam dos mesmos direitos no âmbito do
que poderíamos chamar de mundo cívico, delimitando o universo onde
o princípio do tratamento uniforme teria precedência. Seja na tradição
do republicanismo francês, marcada pela ênfase na indivisibilidade da
nação e dos direitos (todos devem ser cidadãos com os mesmos direitos),
ou na do liberalismo anglo-saxão, orientada pela importância atribuída
à universalização de direitos entre os cidadãos.14

Segundo o mesmo autor, apesar de guardarem diferenças importantes


entre si, as duas vertentes teriam como denominador comum a ênfase nos
direitos individuais e uma visão radical sobre a igualdade de direitos entre
os cidadãos.15 Cardoso de Oliveira prossegue, afirmando que Holston
contrasta essas duas tradições com o caso brasileiro. Por um lado, como
ele argumenta, na França, o princípio da indivisibilidade de direitos foi
confrontado no final do século XVIII com o debate sobre a exclusão/

13 MENDES, op.cit., 2004.


14 CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. “Concepções de igualdade e desigualda-
des no Brasil (uma proposta de pesquisa).” In: Kant de Lima, Roberto; Eilbaum, Lucía;
Pires, Lenin (orgs.). Conflitos, direitos e moralidades em perspectiva comparada, Vol 1. Rio
de Janeiro: Garamond, 2010, pp.19-33.
15 Idem.

Luiz Eduardo Figueira e Regina Lúcia Teixeira Mendes · 


inclusão dos judeus no campo da cidadania, e nos EUA o princípio da
universalização de direitos prevalecia com restrições, excluindo negros
e indígenas em certa medida até meados do século XX. Por outro lado, no
Brasil pós-escravidão, a cidadania teria tido sempre um status inclusivo,
não deixando ninguém de fora, embora os direitos fossem distribuídos
de forma diferenciada.16
Aprofundando a reflexão acerca das atualizações concretas do princí-
pio da igualdade jurídica no Brasil, elegemos a categoria da hipossuficiên-
cia, que nos parece bastante rica de conteúdos, cujo esclarecimento pode
ajudar a avançar na discussão. Elegemos o campo do direito do trabalho,
para, neste primeiro momento, investigarmos a contextualização e as
justificativas do conteúdo da hipossuficiência, já que este é, sabidamente,
um ramo do direito brasileiro protetivo por excelência e por definição,
isto é, a matéria trabalhista, no Brasil, admite explicitamente tratamento
desigual entre as partes, sob o argumento de que os trabalhadores são
mais “fracos” do que os empregadores e, por isto, devem ser protegidos
pelo poder jurisdicional do Estado.

A construção do pensamento do direito do trabalho no Brasil


em uma perspectiva histórica: a obra de Evaristo de Moraes

O discurso da doutrina do jurista Evaristo de Moraes, um dos precursores


da doutrina do direito do trabalho brasileiro é um significativo exemplo
daquilo que pretendemos demonstrar. Em sua obra Apontamentos de direito
operário, publicada em 1905, o autor afirma que

os economistas clássicos mantêm, contra a evidência dos fatos, no in-


teresse do capitalismo moderno, a crença nas virtudes da liberdade de
trabalho, não admitindo regras, nem normas legais, que fixem as bases
do contrato entre empregador e empregado, ou (como se diz na linguagem
jurídica brasileira) entre o locatário e o locador de serviços. O homem é li-
vre – argumentam; tem o direito de vender o seu trabalho pelo preço e nas
condições que quiser. Mas, na vida industrial moderna, essa liberdade de

16 CARDOSO DE OLIVEIRA, op.cit.

 · Hipossuficiência
trabalho só tem gerado a opressão e a miséria, a exploração do operariado
e seu rebaixamento progressivo. Hoje, já ninguém contesta quanto influi
a inexorável lei da concorrência na remuneração do trabalho operário – e
isso basta para desfazer o encanto ilusório da “liberdade de trabalho”.
Recentemente, continua o autor Paul Bureau, lente da Faculdade Livre
de Direito de Paris, deixou fora de dúvida – numa excelente monografia
acerca do contrato de trabalho – que “a remuneração de todos os traba-
lhadores manuais, que por qualquer forma e em qualquer proporção de
esforço se empregam na produção de uma mercadoria determinada, está
sujeita à lei da concorrência”.17

Continua afirmando que

essa lei dos salários não pode ser desprezada por qualquer industrial, sem
consequências ruinosas. A filantropia, em casos tais, quer dizer falência
certa. Demais, o trabalho – como todas as mercadorias – superabunda no
mercado. Daí resulta que, indo o oferecimento além da procura, impõe-se
a lei da concorrência pelo preço menor. O que se passa entre os comer-
ciantes dá-se com os operários: eles se sujeitam a condições rígidas, até
onde podem suportar o peso do trabalho que lhes é exigido pelo menor
salário possível. O grande organizador do socialismo científico, Karl
Marx, já havia dito que, não obstante parecer que o trabalhador vende
livremente seu trabalho, bem se percebe, afinal, que ele não é um agente
livre; que o tempo pelo qual ele empenha seu esforço lhe é imposto pelas
circunstâncias; e o capitalismo devorador não abandona a presa enquanto
tem a sugar uns restos de sangue e de músculo!18

O doutrinador continua o argumento nos seguintes termos:

Essas consequências iniludíveis e tremendas da liberdade de trabalho


indicam a necessidade de regular-se, no interesse do trabalhador e sem
prejuízo do industrial, as condições em que aquele venderá a este seu

17 MORAES, Evaristo. Apontamentos de direito operário. Rio de Janeiro: Imprensa Na-


cional, 1905, pp.9-10.
18 Idem.

Luiz Eduardo Figueira e Regina Lúcia Teixeira Mendes · 


esforço consciente. É preciso admitir e legalizar, até as maiores minucio-
sidades, conforme as indústrias e as circunstâncias do lugar, o contrato de
trabalho, fixando as três condições: preço do trabalho ou taxa do salário,
duração do trabalho e qualidade do trabalho.19

Afirma, ainda, que

A livre concorrência é tão prejudicial ao homem assalariado como favorá-


vel ao capitalista. A única força com que o operário entra em luta industrial
é a dos seus braços. Deixado entregue à suposta liberdade de trabalho,
ele se vê, afinal, coagido, pela férrea lei dos salários, a vender seu esforço
pelo pagamento ínfimo que lhe querem dar os potentados da indústria, os
detentores do capital individualizado. Como evitar (...) esses efeitos desas-
trosos do regime capitalista vigente? Com a intervenção legislativa, que só
ela pode assegurar realmente a liberdade dos que realizam o contrato do
trabalho, pondo-os em iguais condições, socialmente falando (...). Só a
intervenção enérgica do Estado, mediante providências legislativas, pode
estabelecer justas condições para o contrato de trabalho.20

Como se vê, o doutrinador justifica e preconiza a interferência do Es-


tado pela via legislativa para, desigualando juridicamente, igualar social-
mente, em um mecanismo claramente compensatório das desigualdades
materiais próprias das economias de mercado, que não se coaduna com
uma concepção de igualdade jurídica entre cidadãos iguais perante a lei,
sejam eles quem forem. E adiante, na mesma obra, ele afirma que “a ação
do Estado (...) não é de simples tutela, é de integração e organização das
várias classes sociais. A lei intervém como meio de proteção direta, como
recurso eminentemente social de equilíbrio de forças”. E ainda que “foi a
vida industrial moderna, com suas exigências brutais, com suas inexorá-
veis injustiças, que fez surgir esse corpo de doutrinas sociais-econômicas,
que dão satisfação a umas tantas aspirações dos trabalhadores, e que
devem ser traduzidas em leis”.21

19 Ibid., p.11.
20 Ibid., p.19.
21 Ibid., p.20.

 · Hipossuficiência
Evaristo de Moraes conclui seu argumento, afirmando que

a burla do trabalho livre, unida a desenfreada concorrência industrial,


criou, para o operariado moderno, situações novas de desespero e de
sofrimento, despertou nele ânsias tremendas, levantou problemas cada
vez mais pungentes, e que, por toda parte, reclamam solução pronta.
O espetáculo dessa luta de classes é muito do nosso tempo, não se lhe
encontra similar em outra época da vida coletiva do homem; resulta
dessa famosa expansão fabril e manufatureira, que faz o encanto dos
economistas clássicos e que, entretanto, exige do trabalhador o supremo
sacrifício do seu último esforço, o depauperamento de todo o sangue, a
destruição de todo o músculo, para dar-lhe, em troca, o direito de viver
mal – apenas viver, mantido pelo salário-mínimo!22

O princípio da proteção na doutrina jurídica brasileira e seus


críticos

A Principiologia do direito do trabalho é uma das obras de referência espe-


cíficas sobre o assunto no direito brasileiro, escrita pelo professor Luiz de
Pinho Pedreira Silva, integrante da escola baiana de direito do trabalho. Na
esteira de Plá Rodriguez, o autor sustenta que “a proteção ao trabalhador
é ‘fundadora’ desse direito” e que todos os princípios derivam do mais
relevante: o da proteção.23 Para esse doutrinador, “a proteção do traba-
lhador é causa e fim do direito do trabalho, como revela a história deste”.
Nessa obra, o jurista define o princípio da proteção “como aquele em vir-
tude do qual o direito do trabalho, reconhecendo a desigualdade de fato
entre os sujeitos da relação jurídica de trabalho, promove a atenuação da
inferioridade econômica, hierárquica e intelectual dos trabalhadores”.24
Para Pinho Pedreira Silva, a subordinação jurídica, a superiorida-
de hierárquica do empregador, a dependência econômica do emprega-
do, o comprometimento da pessoa do próprio trabalhador na relação de

22 MORAES, op.cit., pp.24-25.


23 SILVA, Luiz de Pinho Pedreira. Principiologia do direito do trabalho. São Paulo: LTR,
1999, p.27.
24 SILVA, op.cit., p.26-29.

Luiz Eduardo Figueira e Regina Lúcia Teixeira Mendes · 


emprego e a ignorância dos direitos constituem as principais razões para
a adoção de um princípio da proteção. Segundo ele, a intervenção do
Estado, a negociação coletiva e a autotutela são meios distintos de que se
vale o direito do trabalho para alcançar a proteção.
Na 22ª edição de seu Instituições de direito do trabalho, Arnaldo Süs-
sekind sustenta que o princípio da proteção do trabalhador é resultante
da imperatividade do direito laboral, pois a intervenção do Estado nas
relações de trabalho estabelece uma ordem pública limitadora da auto-
nomia de vontade. E a “necessidade de proteção social aos trabalhadores
constitui a raiz sociológica do direito do trabalho e é imanente a todo o seu
sistema jurídico”. Dos fundamentos jurídico-políticos e sociológicos do
princípio protetor, para o autor, decorreriam os princípios: a) do in dubio
pro operario;25 b) da norma mais favorável; c) da condição mais benéfica;
d) da primazia da realidade e; e) da integralidade e da intangibilidade do
salário.26 A Constituição de 1988 não teria revelado princípios confor-
madores do direito do trabalho, mas entre os princípios constitucionais
deduzidos entre as regras trabalhistas estariam os princípios da proteção,
da não discriminação e o da continuidade da relação de emprego e da
irredutibilidade salarial.27
A admissão do princípio in dubio pro operario é feita com muitas limi-
tações, como ademais boa parte da doutrina brasileira. Admite-o apenas
quando houver duas ou mais interpretações viáveis e que não afrontem
matéria probatória ou a “nítida manifestação do legislador”. Há ampla
reserva entre os tratadistas a admitir esse princípio no processo. Entre nós,

25 Na feliz definição de Pinho Pedreira Silva, na obra citada, “O princípio pro operario,
forma abreviada de in dubio pro operario e modernizada de in dubio pro misero, é um dos
que, no direito do trabalho, são fundamentais e peculiares. É derivado do mais geral
de proteção e difere de dois outros, o de norma mais favorável e o de condição mais
benéfica, porque tem como pressuposto uma única norma, suscetível de interpreta-
ções diversas, suscitando dúvida, que deve ser dirimida em benefício do empregado,
enquanto aqueles exigem, como fato antecedente, uma pluralidade de normas.”
26 SÜSSEKIND, Arnaldo. Instituições de direito do trabalho. São Paulo: LTR, 2005,
p.144.
27 Não obstante vários autores reconhecerem o princípio da proteção como norma
expressada na Constituição Federal, nos termos do art. 1o e do caput do art. 7o da
Constituição de 1988, quando prescreve “além de outros que visem à melhoria de sua
condição social”. Outros deduzem a regra da norma mais favorável como implícita no
caput do art. 7o da Constituição.

 · Hipossuficiência
Arnaldo Süssekind e Délio Maranhão o excluem quando se está diante de
matéria probatória e Evaristo de Moraes Filho afirma que, com cautelas,
deve ser aplicada a máxima de que, “em caso de dúvida, o juiz decidirá em
favor do empregado”. Pinho Pedreira e Victor Mozart Russomano adotam,
tendo constado inclusive na proposta de Código Judiciário do Trabalho,
elaborada pelo tratadista de São Paulo.
Evaristo, por sua vez, adota a expressão princípio do favor para o empre-
gado, um dos fins ao qual a lei se dirige. Apareceriam como finalidade ou
princípios “a irrenunciabilidade dos benefícios, rendimento, conciliação
(paz social), progressão racional, igualdade, tutela do trabalhador e or-
ganização do trabalho”. Diante da interpretação em favor do empregado,
Moraes Filho e Flores de Moraes adotam a posição de que “muitas vezes
encontram-se também em jogo relevantes interesses patronais legítimos,
que não podem ser abandonados”, embora subsista o princípio.
“O princípio da proteção: de Cesarino Júnior a Arion Romita” foi o
título do n.33 da revista distribuída pelo Instituto Brasileiro de Direito
Social Cesarino Júnior aos advogados e professores de direito dele asso-
ciados em 2009. Não obstante ser à época presidente da entidade, o título
escolhido faz jus ao propósito anunciado, uma vez que o jurista Arion
Sayão Romita sempre colocou como absurda a existência do princípio da
proteção. Desse modo, um inventário sobre o princípio da proteção na
cultura jurídica brasileira não pode prescindir de uma seção sobre seu
posicionamento. Segundo o autor, o direito do trabalho do século XXI
não pode ser aquele oriundo de um regime autoritário e corporativis-
ta. Em suas palavras, “não teria sentido falar em princípio da proteção.
Seria uma sandice dizer que outras áreas do direito protegem algo”. À
questão se “o direito ‘protege’?”, afirma não constituir função do direito
“de qualquer dos ramos do direito – proteger algum dos sujeitos de dada
relação social”. Segundo Romita, o único princípio que funda a disciplina
jurídica do direito do trabalho seria o da liberdade de trabalho. Assim, ele
afirma que para exercer sua função social o direito do trabalho promove
o equilíbrio das posições econômicas dos sujeitos por meio de garantias
para atenuar a desigualdade, igualar as posições e, com isso, realizar um
ideal de justiça, e não proteger o empregado . Segundo o autor, “o direito
do trabalho, como ramo do direito que é, não pode ‘proteger’ o empre-
gado. Deve – isto sim – regular a relação de trabalho para realizar o ideal

Luiz Eduardo Figueira e Regina Lúcia Teixeira Mendes · 


de justiça mediante a previsão de garantias que compensem a inicial
desigualdade social e econômica entre os sujeitos da relação”.28 E pros-
segue em seu discurso, denunciando o que denomina função da ideologia
da proteção. Essa ideologia perpetuaria a posição social de submissão e
só interessaria ao protegido quando fundamenta decisões judiciais pela
procedência de pleitos de trabalhadores:

A ideologia da proteção desempenha uma função. Quem fala em proteção


admite com antecedência a existência de dois atores sociais: o protetor e o
protegido. Se o trabalhador – sujeito mais fraco na relação – é o protegido,
sua posição de submissão se perpetua com a consequente exaltação da
posição social do protetor. Talvez por isto se decante, no Brasil, a proteção
proporcionada (na realidade dos fatos, autêntico mito) ao trabalhador
brasileiro: perpetuada a posição social de submissão em que se encontra
o protegido, resguarda-se a posição social do protetor. Afinal, a “prote-
ção”, no caso em estudo, interessa não ao protegido, mas sim ao protetor.
Ao protegido só interessa – em ínfima parcela – a proteção quando ela
fundamenta (quase sempre de forma não explícita) a decisão judicial pela
procedência do pedido formulado pelo trabalhador. Triste consolo, triste
participação nas migalhas caídas da mesa do banquete!29

A proteção seria a causa de muitas mazelas sociais e econômicas do


Brasil. Como resultados práticos do sistema, o autor afirma que o Brasil
se caracteriza por fortes desigualdades sociais, em que as turbulências
“empurram os agentes econômicos para o setor informal, até mesmo para
a delinquência”. Os salários são baixos, o desemprego é alto, a informa-
lidade cresce, a pobreza aumenta e nada muda. Em tal cenário, indaga:
“Para que proteção?” Afirma que a proteção desprotege o protegido e
protege o protetor.30 E sugere a necessidade de romper com as concepções
anteriores de proteção e adotar uma visão realista. Essa “visão realista”,

28 ROMITA, Arião Sayão. O princípio da proteção em xeque e outros ensaios. São Paulo:
LTR, 2003.
29 ROMITA, op.cit., p.35.
30 É eloquente o discurso de ROMITA, op.cit.: “Que proteção é essa que na realidade
desprotege? É a proteção do amigo urso, presente de grego, abraço de tamanduá... É a
proteção que fortalece o protetor e debilita o protegido!.”

 · Hipossuficiência
para prevalecer no país, exigiria “uma reforma não só de mentalidades
como também da Constituição”,31 principalmente para suplantar o “an-
tagonismo ou oposição entre o negociado e o legislado”.32
De acordo com o mapeamento doutrinário feito por Sayonara Grillo
Silva,33 especialista em direito do trabalho brasileiro, a fundamentação
da proteção ao trabalhador nessa área apresenta, segundo o discurso
doutrinário, as seguintes bases: a) proteger em razão dignidade do traba-
lhador e como forma de inclusão social; b) forma de realização da “justiça
social”; c) retificação jurídica das desigualdades.
Ora, se segundo o discurso jurídico o trabalhador é aquele que precisa,
no âmbito das relações de trabalho, ser protegido, essa proteção histo-
ricamente será conferida por meio da intervenção do Estado (protetor),
seja no plano da política legislativa (normas de direito do trabalho), seja
no âmbito de um ethos institucional de proteção constitutivo do próprio
exercício jurisdicional da Justiça do Trabalho.34
O discurso jurídico da hipossuficiência aparece, nesse contexto, como
justificador da necessidade de proteção ao trabalhador por parte do Esta-
do, em razão da assimetria de poder nas relações entre empregados e em-
pregadores. A igualdade jurídica, tal como é atualizada na cultura jurídica
brasileira, deve ser interpretada e aplicada pelos agentes do Estado tutelar
como uma função compensatória das desigualdades econômicas e sociais.

31 ROMITA, op.cit. “As mudanças devem perseguir os seguintes objetivos: 1o – eli-


minar o entulho autoritário e corporativista; 2o – compatibilizar a regulação das re-
lações de trabalho com a norma fundamental contida no art. 1o da Constituição; 3o
– podar os excessos de normatividade, reduzindo o luxo de minúcias ao essencial.”
32 Como consequência lógica, o autor se posicionava a favor da proposta de reforma
trabalhista apresentada em 2001 pelo Executivo federal: “Existiria apenas o negocia-
do, pois o legislador se limitaria a promover as condições em que o negociado poderia
expandir-se. O Estado, como nume tutelar do interesse maior da coletividade, atuaria
como mediador e arbitraria os conflitos. O tratamento do tema conduz ao exame do
projeto de lei do Poder Executivo (projeto de lei da Câmara n.134, de 2001), ora em tra-
mitação no Senado, segundo o qual a lei só regulará as relações de trabalho na ausência
de acordo ou convenção.” – ROMITA, op.cit.
33 SILVA, Sayonara Grillo; Figueira, Luiz Eduardo. “A proteção na cultura jurídi-
ca trabalhista: revisão conceitual.” Direitos Fundamentais e Democracia, vol.12, 2012,
pp.302-325.
34 MENDES, Regina Lúcia Teixeira. Do princípio do livre convencimento motivado: Le-
gislação, doutrina e interpretação de juízes brasileiros. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2012.

Luiz Eduardo Figueira e Regina Lúcia Teixeira Mendes · 


ORGANIZADORES

Alexandre Werneck é professor do Departamento de Sociologia da


Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenador efetivo de
pesquisa do Núcleo de Estudos de Cidadania, Conflito e Violência Urbana
(Necvu) e editor de Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social.
Fez pós-doutorado no Departamento de Sociologia da UFRJ e tem dou-
torado em sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia (PPGSA) da UFRJ (2009), com estágio doutoral na École des
Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS, França). É autor de A desculpa:
As circunstâncias e a moral das relações sociais (Civilização Brasileira, 2012)
e organizador (com Michel Misse) de Conflitos de (grande) interesse: Estudos
sobre crimes, violências e outras disputas conflituosas (Garamond, 2012).

Luís Roberto Cardoso de Oliveira é professor titular do Departamento


de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB), subcoordenador do
Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) Instituto de Estudos
Comparados em Administração Institucional de Conflitos (InEAC) e coe-
ditor do Anuário Antropológico. Possui graduação em ciências sociais pela
UnB, mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
(PPGAS), do Museu Nacional (MN), da UFRJ, mestrado e doutorado em
antropologia pela Harvard University. Foi presidente da Associação Bra-
sileira de Antropologia (2006-2008) e pesquisador visitante na Université
de Montréal (Canadá), na Maison des Sciences de l’Homme (França) e
professor convidado na Université Diderot Paris 7, Sorbonne Paris Cité. É
autor de Direito legal e insulto moral: Dilemas da cidadania no Brasil, Quebec
e EUA (Garamond, 2011) e de (com Roberto Cardoso de Oliveira) Ensaios
antropológicos sobre moral e ética (Tempo Brasileiro, 1996).
AUTORES

Alba Maria Zaluar é professora visitante no Instituto de Estudos Sociais


e Políticos (Iesp) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e apo-
sentada como professora titular de Antropologia do Instituto de Medicina
Social (IMS), também da Uerj. Tem livre-docência pela Universidade Esta-
dual de Campinas (Unicamp), é doutora pelo Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade de São Paulo (USP),
mestre pelo PPGAS/MN/UFRJ e tem graduação em ciências sociais pela
UFRJ. Fundou em 1997 o Núcleo de Pesquisa em Violências (Nupevi) da
Uerj e o coordenou por vários anos. É autora, entre outros, de A máquina
e a revolta: As organizações populares e o significado da pobreza (Brasiliense,
2002) e Integração perversa: Pobreza e tráfico de drogas (Editora FGV, 2004).

Carolina Christoph Grillo é pesquisadora de pós-doutorado (PNPD/


Capes) no Programa de Pós-Graduação em História Política e Bens Cul-
turais (PPHPBC) do Centro de Pesquisa e Documentação em História
Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e
pesquisadora associada do Necvu. É doutora em antropologia pelo PPGSA/
UFRJ, com estágio doutoral na Université Lille 1 – Sciences et Technolo-
gies. Publicou, em coautoria com Michel Misse, Natasha Elbas Neri e César
Pinheiro Teixeira, Quando a polícia mata: Autos de resistência na cidade do
Rio de Janeiro (2001-2011) (Booklink, 2013).

César Barreira é professor titular do Programa de Pós-Graduação em


Sociologia (PPGS) da Universidade Federal do Ceará (UFC) e coordena-
dor do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da UFC. É doutor pelo
Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da USP e fez pós-dou-
torado na EHESS e no Instituto de Ciências Sociais (ICS, Lisboa). É autor
de Trilhas e atalhos do poder: Conflitos sociais no sertão (Rio Fundo, 1992),
Crimes por encomenda: A pistolagem no cenário brasileiro (Relume Dumará,
1998) e Cotidiano despedaçado: Cenas de uma violência difusa (Pontes, 2008).
Cesar Pinheiro Teixeira é pesquisador de pós-doutorado do Necvu e
do Coletivo de Estudos sobre Violência e Sociabilidade (Cevis) do Iesp/
Uerj. É doutor em sociologia pelo PPGSA/UFRJ. É autor de A construção
social do ex-bandido: Um estudo sobre sujeição criminal e pentecostalismo
(7Letras, 2011).

Danielle Rodrigues é professora de sociologia da Secretaria Estadual


de Educação do Rio de Janeiro (Seeduc-RJ) e no Colégio Pedro II e pes-
quisadora associada do Necvu. É mestre pelo PPGSA da UFRJ.

Fabio Reis Mota é professor do Departamento de Antropologia da


Universidade Federal Fluminense (UFF) e do Programa de Pós-Graduação
em Antropologia (PPGA) da UFF e coordenador no Núcleo Fluminense de
Estudos e Pesquisa (Nufep) da UFF. É doutor e mestre pelo PPGA da UFF e
tem graduação em ciências sociais pela mesma casa. É organizador (com
Kátia Sento Sé Mello e Jacqueline Sinhoretto) de Sensibilidades jurídicas
e sentidos de justiça na contemporaneidade: Interlocução entre antropologia e
direito (EdUFF, 2013) e (com Daniel Cefaï, Marco Antonio da Silva Mello
e Felipe Berocan Veiga) de Arenas públicas: Por uma etnografia da vida as-
sociativa (EdUFF, 2011).

Gabriel David Noel é professor de graduação e pós-graduação do Ins-


tituto de Altos Estudos Sociais (Idaes) da Universidad Nacional de San
Martín (Unsam) e da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais
(Flacso) Argentina sediado na Universidad Nacional de Córdoba (UNC) e
secretário de pesquisa do Idaes e secretário de assuntos acadêmicos do
Colegio de Graduados em Antropología de la República Argentina. É dou-
tor em ciências sociais pela Universidade Nacional de General Sarmiento
(UNGS) e tem graduação em antropologia pela Universidade Nacional
de La Plata (UNLP). É autor de La conflictividad cotidiana en el escenario
escolar: Una perspectiva etnográfica (Unsam Edita, 2009) e organizador
(com Alejandro Grimson e Silvina Merenson) de Antropología ahora (Siglo
XXI, 2011).

Gabriela de Lima Cuervo é professora de sociologia da Seeduc-RJ e


mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da UFF.

 · Autores
Heloisa Buarque de Almeida é professora do Departamento de Antro-
pologia da USP, pesquisadora do Núcleo de Estudos dos Marcadores Sociais
da Diferença (Numas) e diretora da Associação Brasileira de Antropologia
(ABA) na gestão 2013-2014. É doutora pelo Programa de Doutorado em
Ciências Sociais da Unicamp e mestre pelo PPGAS/USP. Foi editora da
Revista de Antropologia. É autora de Telenovela, consumo e gênero (Edusc,
2003) e co-organizou (com José Szwako) as coletâneas didáticas Diferen-
ças, igualdade e Local, global (Berlendis, 2009).

Irlys Alencar F. Barreira é professora titular do PPGS/UFC e coordena-


dora do Laboratório de Pesquisa em Cultura e Política (Lepec). É doutora
pelo PPGS/USP e fez pós-doutorado na EHESS e no ICS. É autora de O
reverso das vitrines: Conflitos urbanos e cultura política (Rio Fundo, 1992),
Chuva de papéis: Ritos e símbolos de campanha eleitoral no Brasil (Relume
Dumará, 1998), Imagens ritualizadas: Apresentação de mulheres em cenários
políticos (Pontes, 2008) e Cidades narradas: Memória, representações e prá-
ticas de turismo (Pontes, 2012).

John Comerford é professor do PPGAS/MN/UFRJ, mesma casa em que


fez doutorado e mestrado, e tem graduação em agronomia pela USP. É
colaborador da Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade (CPDA) da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (UFRRJ) e autor de Fazendo a luta: Sociabilidade, falas e rituais na
construção de organizações camponesas (Relume Dumará, 1999).

Jussara Freire é professora da UFF, polo de Campos dos Goytacazes,


pesquisadora do Cevis e coordenadora do Grupo de Pesquisa Cidades,
Espaços Públicos e Periferias na UFF/Campos. É doutora em sociologia
pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), com
estágio doutoral na EHESS, e graduada e mestre em sociologia pela Uni-
versité Paris X-Nanterre.

Kelson Gérison Oliveira Chaves é doutorando em antropologia do


Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) da Universi-
dade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), onde é membro do Grupo
de Estudo Sobre Culturas Populares. É autor de Os trabalhos de amor e

Autores · 
outras mandingas: A experiência mágico-religiosa em terreiros de umbanda
(Premius, 2011).

Laura Moutinho é professora de graduação e pós-graduação do De-


partamento de Antropologia da USP. É doutora e mestre em antropologia
pelo PPGSA/UFRJ e tem graduação em ciências sociais pela mesma casa.

Leonardo Sá é professor do Departamento de Ciências Sociais e do


PPGS da UFC e pesquisador do LEV. É doutor e mestre pelo PPGS/UFC
e tem graduação em ciências sociais pela mesma universidade. É autor
de Os filhos do Estado: Auto-imagem e disciplina na formação dos oficiais da
Polícia Militar do Ceará (Relume Dumará, 2002).

Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro é professora do Departamento de


Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisa-
dora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp),
da UFMG. Tem doutorado em sociologia pelo Iuperj, mestrado em ad-
ministração pública pela Fundação João Pinheiro (FJP) e graduação em
direito pela UFMG e em administração pública pela FJP.

Luiz Eduardo Figueira é professor da graduação e do mestrado da Fa-


culdade Nacional de Direito (FND) da UFRJ. Possui graduação em direito
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), é mestre
e doutor do PPGA/UFF. É autor de A produção da verdade nas práticas judi-
ciárias criminais brasileiras (Lumen Juris/EdUFF, 2005) e O ritual judiciário
do tribunal do júri (Antonio Fabris, 2008).

Marcos Alexandre de Souza Queiroz é professor de artes visuais do


município de Natal (RN) e membro do Grupo de Estudo Sobre Culturas
Populares da UFRN. É mestre em antropologia social pelo PPGCS/UFRN.
É autor de Em casa de Catiço: Etnografia dos exus na Jurema (Editora da
UFRN, 2013).

Marta Cioccari é docente-pesquisadora Prodoc/Capes no PPGAS/MN/


UFRJ e coordena, com José Sergio Leite Lopes, o Núcleo de Antropolo-
gia do Trabalho, Estudos Biográficos e de Trajetórias (NuAT) na mesma

 · Autores
instituição. É doutora pelo PPGAS/MN/UFRJ, com estágio doutoral na
EHESS. É coautora (com Ana Carneiro) de Retrato da repressão política no
campo: Camponeses torturados, mortos e desaparecidos (MDA, 2011), orga-
nizadora da coleção Camponeses e o Regime Militar (MDA) e (com José
Sergio Leite Lopes) do livro Narrativas da desigualdade: Memórias, trajetórias
e conflitos (Mauad, 2013).

Patrice Schuch é professora do Departamento de Antropologia e do


Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisadora do Núcleo de
Antropologia e Cidadania (NACi) da UFRGS. É autora de Práticas de Justiça:
Antropologia dos modos de governo da infância e juventude no contexto pós-ECA
(Editora da UFRGS, 2009) e organizadora (com Jaqueline Ferreira) de Di-
reitos e ajuda humanitária: Perspectivas sobre gênero, família e saúde (Editora
da Fiocruz, 2010) e (com Soraya Fleischer) de Ética e regulamentação na
pesquisa antropológica (Letras Livres/Editora da UnB, 2010).

Pedro Paulo Martins de Oliveira é professor do Departamento de So-


ciologia da UFRJ. É doutor pelo PPGS/USP e tem graduação em ciências
sociais pela mesma casa (1990).

Priscila Gomes de Azevedo é doutoranda pelo Programa de Dou-


torado em Ciências Sociais na Unicamp, com estágio doutoral na École
Normale Supérieure de Lyon. É mestre pelo Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e tem
bacharelado e licenciatura em ciências sociais pela mesma universidade.

Regina Lúcia Teixeira Mendes é pesquisadora do INCT InEAC na UFF.


É doutora em direito pela Universidade Gama Filho (UGF), e fez pós-
-doutorado no Departamento de Antropologia da UnB. É coordenadora
da coleção Direitos, Conflitos e Culturas da editora Lumen Juris e autora
de Do princípio do livre convencimento motivado (Lumen Juris, 2012).

Autores · 
1ª impressão Outubro de 2014
papel de miolo Lux Cream 70g/m2
papel de capa Cartão Supremo 250g/m2
tipografia Leitura Roman
Este livro é o resultado de três
anos de debates de um grupo
de estudiosos interessados em
entender o modo como diferentes
dimensões da vida podem ser
lidas sob a perspectiva da moral.
Afinal, embora este tenha sido
sempre um tema essencial para
as ciências sociais, raros têm sido
os esforços brasileiros para a
realização de pesquisas empíricas
nessa área. Em 22 artigos, os
autores de Pensando bem
percorrem diferentes abordagens
tanto da sociologia quanto da
antropologia e uma vasta gama
de objetos empíricos, tomando a
moral e a moralidade como focos
privilegiados de análise das formas
como o homem se defronta com os
desafios propostos pelo cotidiano.

leya.com.br www.casadapalavra.com.br ISBN 978-85-7734-271-6

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