Pensando bem
Estudos de sociologia
e antropologia da moral
Organização
Alexandre Werneck
Luís Roberto Cardoso de Oliveira
Pensando bem
Pensando bem
Estudos de sociologia
e antropologia da moral
Organização
Alexandre Werneck
Luís Roberto Cardoso de Oliveira
Copyright © 2014 Alexandre Werneck e Luís Roberto Cardoso de Oliveira
Copyright © 2014 Casa da Palavra
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19.2.1998.
É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora.
Este livro foi revisado segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Copidesque
Clarissa Peixoto
Revisão
tiago ramos
Capa
D29/leanDro Dittz e sílvia Dantas
Apoio:
Debates
Sociologia da moral, agência social e criatividade
alexanDre werneCk ...........................................................................
Concretude simbólica e descrição etnográfica
(sobre a relação entre antropologia e filosofia)
luís roberto CarDoso De oliveira ..................................................
Sociologia da moral, ação coletiva e espaço público
Jussara Freire .....................................................................................
A moral em questão: a conformação de um debate em antropologia
PatriCe sChuCh ....................................................................................
Moralidades possíveis e o sujeito como multiplicidade de práticas:
um campo aberto de questões
leonarDo sá .........................................................................................
Dos códigos aos repertórios: alguns atavismos persistentes
acerca da cultura e uma proposta de reformulação
gabriel D. noel....................................................................................
A W
1 Uma versão anterior deste texto foi publicada como WERNECK, Alexandre. “Socio-
logia da moral como sociologia da agência.” Revista Brasileira de Sociologia da Emoção,
vol.12, n.36, 2013, pp.704-718. Agradeço às amigas Jussara Freire e Patrice Schuch pe-
los comentários àquela versão que contribuíram para a geração desta.
2 Uma boa analogia para dar conta desse enquadramento está em pensar inversamente
o motto de Roman Jákobson – reiterado por BARTHES, Roland. Aula: Aula inaugural da
cadeira de semiologia literária do Colégio de França. São Paulo: Cultrix, 1980 – de que a
língua é fascista, não porque impeça de dizer coisas, mas porque obriga a dizer coi-
sas. Ora, uma outra forma de encarar essa mesma lógica é pensar que, se não é possí-
vel dizer nada fora da linguagem, esta não precisa ser vista como fascista, mas como
libertadora: é apenas ela que permite dizer; ela é nosso único recurso. Bem, pois se
entendemos a vida social como uma instância na qual inevitavelmente observamos
as construções morais dos atores sociais, sua generatividade – isto é,
sua potencialidade criativa/produtiva – e a ideia de agência (descrita
pragmaticamente como actância), uma capacidade de qualquer ser para
determinar as situações em que esteja inserido. Pretendo demonstrar,
então, que uma sociologia da moral é inevitavelmente uma sociologia da
agência e da criatividade sociais.
É praticamente desnecessário apontar a importância da agência para
a sociologia: é simplesmente a mais clássica das questões sociológicas. De
fato, aparece como ponto central em todos os clássicos – mesmo quan-
do surge como questão recusada – e serviu de ponto de apoio para vá-
rios movimentos pendulares (entre o polo do agente e o da estrutura) de
construção de diversos modelos posteriores, definidos justamente pela
posição nesse debate. Além disso, não deixa de ser a base de uma série
de enquadramentos que, desde o final do século XIX e ao longo do sé-
culo XX, se propuseram especialmente a ultrapassar essa dicotomia.3 Da
mesma maneira, apontar a importância e os desdobramentos da questão
da moral na sociologia é tão desnecessário quanto por demais extenso
para os objetivos deste texto.4 Nem mesmo seria preciso lembrar que ela
também alimentou a observação e a imaginação de cada um dos grandes
clássicos e que serviu de elemento-chave para quase todo modelo que a
eles se seguiu. Mas gostaria de retomar aqui rapidamente a validade dessas
duas temáticas para, associando-as respectivamente a duas tradições,
também interligadas, apontar a forma peculiar como elas estão articuladas
e julgamos (valoramos) uns aos outros, ou seja, uma instância o tempo todo moral,
a moral se torna também não nosso limitador, mas a arte mesma de viver essa vida,
nosso ferramental basal de interação/relação.
3 Entre os quais podemos destacar os interacionismos europeu (Simmel) e america-
no (de linhagem pós-Mead), como os mais clássicos, além do (pós-)estruturalismo
construtivista de Bourdieu; o figuracionismo de Norbert Elias; a Teoria da Estruturação
de Anthony Giddens; e, mais recentemente, a morfogenética de Margareth Archer.
Evidentemente, os modelos situacionistas metodológicos também ultrapassam essa
dicotomia. Mas, como demonstrarei aqui, o modelo pragmatista oferece um elemento
a mais para a equação, a possibilidade de considerar que, embora a dicotomia possa
não ser a coisa mais relevante analiticamente, ela pode sê-lo para os atores e pode ser
considerada em termos de sua actância, isto é, dispositivamente.
4 Para um resumo bastante completo, ver ABEND, Gabriel. “What’s New and What’s
Old about the New Sociology of Morality.” In: Hitlin, Steven; Vaisey, Stephen (orgs.).
Handbook of the Sociology of Morality. Nova York: Springer, pp.561-582.
5 CICOUREL, Aaron V. Method and Measurement in Sociology. Nova York: The Free Press,
1964; KNORR-CETINA, Karin. “The Micro-Sociological Change of the Macro-Socio-
logy: Towards a Reconstruction of Social Theory and Methodology.” In: Knorr-Cetina,
Karin; Cicourel, Aaron V. (orgs.). Toward an Integration of Micro- and Macro- Sociologies.
Boston e Londres: Routledge/Keegan Paul, 1981; COLLINS, Randall. “Micro-transla-
tion as a Theory-building Strategy.” In: Knorr-Cetina, Karin; Cicourel, Aaron (orgs.).
Advances in Social Theory and Methodology: Towards an Integration of Micro- and Macro-
-Sociologies. Londres: Routledge/Kegan Paul, 1981, pp.81-108; JOSEPH, Isaac. Erving
Goffman e a microssociologia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.
6 THOMAS, William I.; Thomas, Dorothy Swaine. The Child In America: Behavior Pro-
blems And Programs. Nova York: A. A. Knopf, 1938 [1928].
7 WEBER, Max. “A ‘objetividade’ do conhecimento na ciência social e na ciência polí-
tica.” In: Metodologia das ciências sociais. São Paulo: Cortez, 2001 [1904]; WEBER, Max.
Economia e sociedade, vol.1. Brasília: Editora UnB, 1994 [1910].
Alexandre Werneck ·
de conteúdos que conferem sentido às ações sociais.8 Podemos dizer que,
para Weber, a sociologia é sociologia da moral.
Essas duas vertentes, entrecruzadas em vários pontos, alimentam
uma outra, situacionista e compreensiva, e merecedora do título de arca-
bouço da sociologia da moral, passando pelo trabalho de C. Wright Mills
(especialmente dedicado à associação entre Weber e o pragmatismo),9
pela sociologia fenomenológica de Alfred Schütz, a etnometodologia de
Harold Garfinkel e o novo pragmatismo francês de Michel Callon e Bruno
Latour e Luc Boltanski e Laurent Thévenot, além de seus colegas e se-
guidores.10 E, embora cada um tivesse uma visão particular, todos esses
modelos tomam como pressuposto a afirmação dos atores sociais como – a
expressão de Garfinkel11 é a síntese mais feliz – “agentes competentes”. O
ponto central a unir todos esses enquadramentos é que a agência, neles, é
construída, antes de mais nada, como agência moral: o livre-arbítrio que
os atores possuem é para julgar.
E, já que falamos em agência competente, podemos dizer que essa agên-
cia moral adquire a forma de um operador lógico, a competência – que
ganhará variados nomes em diferentes modelos. Esse operador se distende
entre dois sentidos, como dado cognitivo e como forma operativa. O pri-
meiro significado é aquele que pode ser sintetizado pela etnometodologia:
a partir de uma afirmação que se tornou célebre, praticamente seu car-
tão de visitas, Harold Garfinkel faz uma crítica severa à ideia de que os
atores sociais são determinados por uma estrutura: “Não somos dopados
8 Para uma boa exploração dos limites lógicos dessa operação – que acaba por ratificá-
-la, considerando sua extrema criatividade e efetividade, ver BRUBAKER, Rogers. The
Limits of Rationality: An Essay on the Social and Moral Thought of Max Weber. Londres/
Nova York: Routledge, 1984.
9 Ver WRIGHT MILLS, Charles. “Situated Actions and Vocabularies of Motive.” Ame-
rican Sociological Review, vol.5, n.6, 1940, pp.904-913. Além do artigo, baseado na
problemática dos motivos de Weber, aproximando sua leitura da do pragmatismo, ele
(com H. H. Gerth) ainda organizou e fez a primeira tradução do clássico alemão nos
EUA, em 1946. Sobre a relação direta do americano com o pragmatismo, que foi in-
clusive tema de seu PhD, ver WRIGHT MILLS, Charles. Sociology and Pragmatism: The
Higher Learning in America. Nova York: Galaxy, 1966.
10 Além deles, cabe registrar ainda a contribuição de Isaac Joseph (e, depois dele, Da-
niel Cefaï), mais ligado ao pragmatismo americano original de James, Mead e John De-
wey, e cujo trabalho igualmente municia a sociologia da moral.
11 GARFINKEL, Harold. Studies in Ethnometodology. Englewood Cliffs: The Free Press,
1967.
Alexandre Werneck ·
(bourdieusiana) para uma sociologia da crítica.16 Essa capacidade, que
assume a forma de informação antropológica que a competência assumia
em Garfinkel, é aqui acessada por um tipo mecanístico de competência:
inspirados na linguística generativa de Noam Chomsky, por meio da re-
leitura da mesma pela antropologia da ciência de Latour,17 eles entendem
competência como uma faculdade apresentada pelos atores para a de-
senvoltura em uma determinada lógica de ação; ou, como preferem eles
próprios,18 “uma capacidade de reconhecer a natureza de uma situação
e de pôr em ação o princípio (...) que a ela corresponde”. Ou ainda, como
tenho preferido apresentar, não como traço reconhecido como princípio
cognitivo nas pessoas, e sim como traço demonstrado nas próprias ações
localizadas, apontando para sua alocação em determinada gramática
actancial moral, com desenvoltura em regras que verificam critérios de
efetividade da ação. Em outras palavras, é o critério nela procurado quan-
do se verifica se ela pode ou não ser admitida.
Esses dois exemplos chamam a atenção para como a agência dos atores
ganha operacionalidade forte em enquadramentos situacionistas quando
se trata de falar da moral. Mas quero apontar aqui para outra dimensão
dessa agência. O objetivo deste texto, assim, é propor outro deslocamento
da clássica dicotomia agente-estrutura. Mais que isso, a ideia é pensar
como a sociologia da moral é conversora dessa dicotomia em uma verda-
deira mecânica, segundo a qual esses polos passam a ser não princípios
explicativos nem figuras reificáveis (como nas concepções que conside-
ram “sociedade” e “identidade” como coisas). Em vez disso, a proposta
deste trabalho é mostrar como esses polos podem ser entendidos como
dispositivos, mobilizáveis conforme as situações demandem dos atores
mais ou menos de um ou do outro.
19 WERNECK, op.cit.
20 Para uma síntese desse interesse, ver PEETERS, Hugues; Charlier, Philippe. “Con-
tributions à une théorie du disposif.” Hermés, n.25, 1999.
21 Ver DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano, vol. 1: Artes de fazer. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2000; —————. A invenção do cotidiano, vol. 2: Morar, cozinhar. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1994. Thévenot, Laurent. “Le regime de familiarité: Des choses en personnes.”
Genèses, n.17, 1994, pp.72-101.
22 FOUCAULT, Michel. Dits et écris 1954-1988, Tome III: 1976-1979. Paris: Gallimard, 1994.
Alexandre Werneck ·
de lado uma abordagem baseada nas disposições, traços incorporados,
fixos e definidores dos atores sociais e que se tornam determinadores de
suas ações, privilegiando-se, em vez disso, o situacionismo metodo-
lógico e se falando em uma gestão da vida social por meio de aparatos
situacionalmente operados, como “coisas que funcionam”.23 No prag-
matismo, essa perspectiva se encontra ainda com a ideia de gramática,
que, como a de competência também oriunda da linguística generativa,
apresenta as lógicas contextuais não como normatividades inelutáveis,
regramentos prescritivos, mas como desafios, conjuntos de indicações
restritivas e/ou parcialmente prescritivas que levam os atores a agir es-
trategicamente. Nesse sentido, o dispositivo se torna uma coisa da qual se
pode lançar mão, algo que pode ser mobilizado para lidar com os desafios
gramaticais. É, então, algo que adquire um sentido centrado na agência
dos atores, indivíduos autônomos que fazem escolhas de direcionamento
das ações e da vida social como encontro de indivíduos dotados de agência
competente,24 sem configurar individualismo metodológico ou uma pri-
mazia do interesse. Agir no social, dessa maneira, passa a ser se deparar
com os desafios situacionais e lançar mão competentemente de coisas
do mundo para dar conta das ações/situações. Pois como são dimensões
da agência, da capacidade de decidir por si o curso da ação, aqueles dois
polos genéticos devem ser pensados como dispositivos de uma operação
específica, aquela segundo a qual se define e desenha uma metassituação
formal, de avaliação moral, segundo a qual se torna efetiva a tomada de
um caminho de determinação ou outro para efetivar outra situação, esta
do mundo, que esteja em questão. Eles passam, assim, a ser algo que po-
demos chamar de dispositivos de configuração da agência. Ou, melhor,
como quero construir agora, dispositivos de configuração da actância.
O conceito de actante, por sua vez, ocupa um espaço privilegiado no
modelo semiótico do linguista lituano Algirdas Greimas, em seu quadro
conceitual dedicado a analisar narrativas, a narratologia. Segundo ele, o
actante é aquele ou aquilo que pratica um ato e que faz diferença na nar-
rativa. Trata-se de um ente dotado de capacidade determinadora de suas
Alexandre Werneck ·
efeitos, consequências. A situação, dessa maneira, é um setting ao mesmo
tempo do acontecimento, da experiência, da própria vida social em sua
fenomenologia, e da moral, do aparato de verificação pelos actantes da
efetividade – em termos de bem – do que acontece.
E essa avaliação de efetividade está diretamente ligada à actância, à
capacidade de influir e, nesse sentido, justamente de inseminar conse-
quências – actância e efetividade estão intimamente ligadas. O modelo
da EG é uma ótima demonstração disso: ao se centrar não em entes de-
finidos, mas sim em estados (potencialmente temporários) ocupados
pelos mesmos nas situações – definindo, por exemplo, não pessoas, mas
“estados-pessoas” – e ao reconhecer que os estados são experimentados
na prática pelos atores sociais como posições hierárquicas, o quadro define
as posições ocupadas pelos atores nas situações como grandezas e as si-
tuações efetivas como aquelas nas quais as grandezas são “justificadas”,27
isto é, que podem ser traduzidas em alguma forma ideal de bem comum.
Em um modelo centrado na efetividade, extensivamente, as grandezas
acabam por se provar como formas concentradas da actância, uma vez
que, quando efetivas, provam-se como elementos determinantes da con-
figuração situacional capaz de gerar efeitos, ter influência.
E uma vez que enxerguemos que é o bem o princípio substantivo de
efetivação e que – como já demonstrei em meu trabalho sobre o papel da
desculpa na vida social, no qual modelizo uma geometria pragmatista
de outro grau de abstração em relação ao modelo da EG28 – a questão
do julgamento moral é o direcionamento do bem (que, nesse sentido,
representa a própria grandeza), a sociologia da moral configura-se como
uma verdadeira economia dos recursos de mobilização de actância e a
efetivação, seu fenômeno-chave, sua microeconomia, já que seu mote é
justamente a administração de seu recurso escasso nominal – o bem – por
meio da operacionalização de dispositivos.
Alexandre Werneck ·
crítica ou acusação é uma afirmação de agência mal usada, uma suges-
tão de que o outro tinha controle sobre o que estava acontecendo, as
respostas a elas operam de forma reativa justamente a essa afirmação.
Se não, vejamos: segundo Scott e Lyman, justificações são accounts em
que “alguém aceita a responsabilidade pelo ato em questão, mas renega
a qualificação pejorativa associada a tal ato”;33 desculpas, por sua vez,
aqueles accounts em que “alguém admite que o ato em questão seja ruim,
errado ou inapropriado, mas nega ter plena responsabilidade sobre ele”.34
Assim, na justificação, o ator diz: eu sabia exatamente o que estava fazen-
do, eu era o actante de actância efetiva, e justamente por isso o que eu fiz
estava certo; na desculpa, ele diz: o que fiz foi errado, mas eu não sabia o
que estava fazendo, não tive actância efetiva, porque outra coisa/pessoa
a teve e, por isso, foi mais forte que eu para determinar o desenrolar da
situação. Nesses dois casos, o que temos em mente é uma volta ao pas-
sado, a fim de reescrever o que aconteceu de maneira diferente daquela
descrita pelo crítico/acusador. E essa reescrita é exatamente baseada em
uma “correção” no item referente ao controle sobre o curso dos eventos:
eu tinha controle sobre minhas ações e você estava errado em narrar a situação
me apontando como errado ou eu não tinha controle sobre minhas ações e você
estava errado em narrar a situação me apontando como errado. Os dois tipos
de prestação de contas, de satisfações dadas aos outros, podem ser lidos,
assim, como índices de cada um dos polos agenciais que já descrevemos.
Mas não como demonstrações de que são eles os princípios basais da ori-
gem energética do que foi feito, e sim como aparatos convenientemente
operáveis conforme se recorra aos princípios constitutivos de suas me-
cânicas específicas. Mecânicas, então:
1) Justificação: se é possível “renegar a qualificação pejorativa de um
ato” é porque, no caso, para o criticado/acusado, uma crítica/acusação foi
feita de forma injusta, isto é, baseada em um princípio universal que não
corresponde àquele usado por ele para tornar efetiva sua ação. Pois esta é
a base de uma justificação: a adequação entre um conjunto de dispositi-
vos e algum princípio abstrato universalizável – de maneira situada, mas
Alexandre Werneck ·
a circunstância apontada tem lugar em uma alteração do curso de ação
prevista do ator, de modo que se cria uma partição temporal entre aquele
que o ator sempre é e aquele que ele foi temporariamente quando praticou
a ação – por exemplo, por estar nervoso, bêbado, “fora de si”, ou por não
ser mesmo ele o responsável pelo ocorrido, já que alguém o levou a fazer
o que fez (como Adão no mito bíblico, que afirma ter sido Eva a culpada
por ele ter comido da árvore proibida). No outro tipo, a desculpa do “é
assim mesmo”, a circunstância apontada se manifesta em uma alteração
do curso de ação prevista da própria situação, de modo que se cria uma
partição entre a situação normal e uma normalidade outra, revelada na
desculpa, e segundo a qual o ocorrido é circunstancialmente aceitá-
vel – por exemplo, quando se faz algo que “todo mundo faz” apesar de
“todo mundo” dizer ser errado (como passar por um sinal vermelho “que
ninguém respeita” ou ao se dizer que se chega atrasado porque “nunca
consigo acordar na hora”). Nos dois casos, toda a operação de efetivação
passa por aquele retorno ao passado para reescrevê-lo em outras bases,
mas mantendo o conteúdo substantivo do ocorrido, sua substância: aquele
que não era eu, era eu e teve apenas seu estado alterado; aquilo que ocorre
de determinada maneira imprevista em determinadas circunstâncias o foi
porque é assim mesmo, ou seja, é um estado da realidade que se permite
manifestar circunstancialmente. Em qualquer um dos casos, trata-se de
uma forma que afirma a agência externa a si.
Essas formas chamam, assim, atenção para a flexibilidade segundo a
qual os atores podem lançar mão da agência não a partir do fato de ela ser
uma característica intrínseca deles ou da estrutura, mas sim de acordo
com as condições específicas da situação. Isso não quer dizer que a ac-
countability social corresponda a uma retórica. Ela é antes uma atividade
gramaticalmente orientada pelas demandas situacionais e segundo me-
tafísicas morais que guiem e ofereçam sustentação a diferentes formas de
efetivação, sejam elas justificações ou desculpas. Assim, o livre-arbítrio
e a determinação estrutural erguem-se como recursos de desenvoltura.
Pelo menos duas coisas parecem se confundir nesse termo. Por vezes,
quando se culpa X por fazer A, digamos por quebrar um vaso, é uma
questão simplesmente ou principalmente de minha desaprovação a A,
quebrar o vaso, o que, sem dúvida, X fez: mas o que por vezes ocorre, em
vez disso, é simples e principalmente meu profundo sentimento de que X
é responsável por A, o que inquestionavelmente foi ruim.40
Alexandre Werneck ·
Pois, quando fazem sua definição de desculpa, Scott e Lyman chamam
a atenção, relembremos, para outro operador: a responsabilidade. E esse
operador está ligado a outra prática, distinta da acusação: é justamente a
crítica, tão cara ao modelo da EG. A crítica representa um momento es-
pecial na vida social, um momento, como mostram Boltanski e Thévenot,
de descontinuidade em uma rotina de não questionamento das ações no
entorno. Trata-se de um momento no tempo no qual, segundo eles (1999,
p. 359), “pessoas, envolvidas em relações cotidianas, que estejam fazendo
coisas juntas (...) e que têm de coordenar suas ações, chegam à conclusão
de que algo está errado; de que eles não podem manter-se daquela forma
por mais tempo; de que algo deve mudar”, e a partir do qual a pessoa que
se dá conta de que algo não está funcionando raramente permanece em
silêncio. Ela não guarda seus sentimentos para si. O momento em que se
dá conta de que algo não está funcionando é, na maioria das vezes, aquele
em que percebe não poder mais suportar esse estado das coisas. A pessoa
deve, por essa razão, expressar descontentamento em relação às outras
com quem estivera desempenhando, até então, uma ação conjunta.
Trata-se, então, assim como a acusação, de uma forma de apontar o
dedo para o outro e indicar a relação entre ele e o ocorrido, negativizan-
do-o moralmente. Estamos diante de uma cena na qual tem lugar uma
manifestação forte de discordância, chamando-se a atenção para uma
diferença de posições.
Do ponto de vista operacional, a responsabilidade diz respeito à asso-
ciação direta entre agente e ação, apontando-se o caráter problemático do
feito, de modo que a questão aberta em uma responsabilização recai sobre
o sentido da ação. A responsabilidade – e, portanto, a crítica – pergunta
ao agente que sentido ele dá para uma ação a princípio sem sentido.
Esse sentido, pensado como uma operação mental, abstrata, assume
uma forma linguageira, expressiva, o motivo. Como mostra C. Wright
Mills,42 estamos falando, weberianamente, de “um complexo de signi-
ficado subjetivo que parece ao próprio ator ou ao observador uma sus-
tentação adequada à conduta em questão”, sendo possível, então, fazer
uma sociologia dos “vocabulários de motivos”, um tratamento segundo o
qual se possa pensar diferentes línguas, nas quais os motivos possam ser
Alexandre Werneck ·
uma crítica pode ser mobilizada adotando-se como ponto de partida
uma pretensão de universalidade do princípio moral, do vocabulário de
motivo, usado como base da responsabilidade. Ou seja, trata-se de uma
operação na qual o pluralismo de gramáticas morais compreendido pelos
atores em geral é reduzido a uma unidade lógica por uma reificação de uma
das gramáticas como absoluta, indiscutível, ideal. E é justamente essa a
operação mobilizada na acusação, o que mostra que ela é, na verdade, um
caso particular, uma forma radicalizada, da crítica. Nesse caso, trata-se
de construir um tom acusatorial para a admoestação: ali, pressupõe-se
que tanto o criticado (acusado) quanto aqueles no entorno reconhecem
como legítimo e indiscutível o princípio moral considerado pelo crítico
(acusador) como desrespeitado. É por conta disso, por sua pretensão à
indiscutibilidade, que ela será operacionalizad(ora/a) da/pela culpa, ou
seja, a demanda pelo estabelecimento de um nexo entre a ação e sua
necessária punição (e não apenas sua explicação, como na responsabili-
dade). Evidentemente, o exemplo-limite é a acusação de crime: a lei tem
justamente essa pretensão de universalidade. Dessa maneira, a crítica
feita a alguém que praticou um ato criminalizado está no horizonte dessa
indiscutibilidade da negatividade moral do ato. E, diferentemente do caso
geral da crítica, aqui não estamos diante de um pedido de explicações. A
acusação, em vez disso, procede uma declaração de necessária punição. O
centro da situação de acusação não é a disputa em torno dos elementos
de um acordo. É, em vez disso, a legitimidade – a necessidade mesmo –
da punição. A situação que resulta em uma desculpa, então, segundo a
definição clássica de Austin, parte dessa pretensão acusatorial de que se
investe o ator “ofendido”. Ou seja, parte de um procedimento de reifica-
ção: aquela que busca ocultar o caráter negociável das disputas morais.
43 BOLTANSKI; Thévenot, op.cit., p.42. Tenho falado ainda em uma capacidade me-
tapragmática, compondo a tríade cognitiva da moral. Essa terceira capacidade diz
respeito à faculdade segundo a qual os atores conseguem perceber a distância entre
gramáticas morais gerais e situações específicas e, com isso, conseguem operar ad
hoc com as circunstâncias experimentadas de forma situada. Para mais a respeito, ver
WERNECK, 2012, pp.267-316.
Alexandre Werneck ·
dimensão da questão do livre-arbítrio: no fundo, quase toda teoria da
agência estrutural é uma teoria da agência individual controlada. As
descrições que conferem à estrutura a primazia decisória precisam em
geral partir de um mapeamento dos métodos utilizados pela – e o traba-
lho que dá para a – estrutura a fim de controlar a primazia decisória dos
atores – individuais e/ou coletivos. Por essa leitura, a prioridade estrutural
acaba por ser uma resultante bem-sucedida de uma operação sócio-
-historicamente localizada de dominação. Daí, uma maneira bastante
tradicional de descrever a moral é como dispositivo de contenção, ou seja,
de forma de limitar a agência individual em favor da manutenção (e da
actância) do coletivo. E daí uma vasta tradição tratar a moral como aparato
de contenção e mesmo de controle – narrativas, por exemplo, como as
de Durkheim,44 com sua moral como aparato de coesão social por meio
da doma dos individualismos mais egoístas e em favor da vida comum
centrada nas funções sociais na divisão social do trabalho; Elias,45 com
seu processo civilizador centrado justamente na contenção, no recalque
mesmo; ou Foucault,46 com suas sociedades disciplinares e seus dispo-
sitivos de internalização da vigilância do poder. Nessa tradição, a moral é
lida como um aparato a serviço da estrutura e a ação moral é representada
por duas formas gerais, o dever e o altruísmo: ser bom corresponderia a
ser bem-sucedido em momentos em que seria exigido abrir mão de seu
bem em favor do bem do(s) outro(s) – individual (altruísmo) ou coletivo (o
dever). Em ambos os casos, é de uma forma de potencialização da agência
estrutural a fim de “domar” a agência pessoal de que estamos falando e,
segundo esse raciocínio, a moral seria entendida como aparato de redi-
recionamento da energia social.
Mas, se adotamos o bem como princípio básico e seu direcionamento
como variável analítica determinante da efetivação, chegamos a um mo-
delo47 que contempla um pluralismo de direcionamentos desse bem mais
complexo que aquela dicotomia – contemplando bem de si, bem do outro,
bem comum e bem de todos, além da própria rotina sem questionamento,
44 DURKHEIM, Émille. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1995
[1893]. DURKHEIM, Émille. Ética e sociologia da moral. São Paulo: Landy, 2003.
45 ELIAS, Norbert. O processo civilizador, vol.1. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.
46 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis, RJ: Vozes, 1989.
47 WERNECK, op.cit., pp.267-316.
48 THÉVENOT, op.cit.
49 WERNECK, no prelo.
50 Com isso, absolutamente não pretendo corroborar a tese giddensiana – GIDDENS,
Anthony. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1984 – de uma “estru-
turação” mútua entre agente e estrutura ou a de Archer – ARCHER, Margaret S. Being
Human: The Problem of Agency. Cambridge (RU): Cambridge University Press, 2001;
—————. Structure, Agency and the Internal Conversation. Cambridge (RU): Cambridge
University Press, 2003 – de uma “conversação interna” também em uma mútua de-
terminação entre esses dois polos – nem as negar; não é esta a questão aqui. Estou
apenas dizendo que as metafísicas morais recorrentemente mobilizadas pelos atores,
podendo ser entendidas mesmo como representações, se apresentam na vida social
como formas consolidadas, como aparatos formais e, por isso mesmo, dotados de
(previsível e) considerável actância. Ela, entretanto, evidentemente não é oriunda de
uma energia própria, e sim da memória dos próprios atores e da própria história, que
as tornou reconhecidas e recorrentes. Para mais sobre essa história, ver BOLTANSKI,
op.cit., pp.150-151, com sua discussão sobre utopias.
Alexandre Werneck ·
sociologia da agência (considerando que, temporariamente, retomemos a
distinção entre elas) ajudam a captar um dado central para a compreensão
da vida social: a atuação ativa, competente, seja ela mobilizada por meio
da reivindicação da agência de si seja pela da estrutura, dá trabalho. Como
lembram Callon e Latour,51 o ator “precisa constantemente determinar
quem é quem, quem é superior e quem é inferior, quem lidera o grupo e
quem é seguidor e quem precisa se afastar para que ele passe. E tudo de
que dispõe para ajudá-lo são conjuntos difusos cuja lógica é moldada para
avaliar centenas de elementos”. A rigor, eles estão falando de babuínos.
Mas, como de hábito no trabalho de Latour, não escapamos de um efeito
dramático. Entretanto, na frase anterior, eles dizem que as sociedades
desses primatas, em determinada descrição, lhes impõe uma vida “não
menos difícil que a nossa vida como revelada pelos trabalhos etnometodo-
lógicos”, no que se segue essa descrição, moldada ao modelo de Garfinkel.
Preferi essa apresentação entre tantas outras da linhagem teórica sobre a
qual nos debruçamos porque ela sublinha justamente o caráter trabalhoso
da agência competente dos atores.
Pois o fato de sermos capazes de mobilizar tanto nossa agência quanto
a de um ente muito maior que nós52 informa que a actância é um recur-
so, ele próprio construído – ou pelo menos direcionado –, situacional-
mente. Pensados, então, como dispositivos, e tomados em um sistema
51 CALLON, Michel; Latour, Bruno. “Unscrewing the Big Leviathan: How Actors Ma-
cro-Structure Reality and How Sociologists Help Them to Do so.” In: Knorr-Cetina,
Karin; Cicourel, Aaron V. (orgs.). Toward an Integration of Micro- and Macro- Sociologies.
Boston e Londres: Routledge/Keegan Paul, 1981, pp.202-283.
52 Essa afirmação evidentemente parece partir da aceitação de uma diferença dimen-
sional entre os atores micro e os macro, exatamente aquela problematizada por Callon
e Latour – op.cit. – em sua teoria dos atores-rede, que respeito em sua problematiza-
ção justamente do estatuto dimensional dos agentes (em especial o do empoderamen-
to dos atores macro). Mas o ponto de partida aqui é o fato de que, independentemente
da veracidade dessa partição dimensional e mesmo de seu processo de construção, os
atores sociais tomam essas duas dimensões como representações nas quais depositam
sua crença e sua oposição como um verdadeiro dado problemático da vida – CHA-
TEAURAYNAUD, Francis. La faute professionelle: Une sociologie des conflits de responsa-
bilité. Paris: Métailié, 1991; —————. Argumenter dans un champ de forces: Essai de balisti-
que sociologique. Paris: Pétra, 2011 – com o qual eles se confrontam (gerando toda uma
gramática de confrontação), daí a construção da própria oposição ser um elemento
extremamente relevante e que deve ser levado em consideração.
53 Do ponto de vista lógico, toda comparação valorativa pode ser convertida em uma
dicotomia moral. Uma valoração é uma operação segundo a qual atribuímos uma
“quantidade” (um... valor) de uma determinada substância, constituinte do valor
em questão. Essa quantidade, entretanto, é relativa: existe na comparação com outra
quantidade. Assim, por exemplo, pode-se falar de mais ou menos coragem, mais ou
menos autocontrole, mais ou menos sensibilidade, mais ou menos de qualquer va-
lor. Uma operação de julgamento moral, por sua vez, poderá facilmente tomar o pon-
to superior na escala do valor e o chamar de “positivo” ou simplesmente de “bom.”
Uma vez que o relevante na comparação é a diferença e não os valores absolutos, ter
“menos”, nessa comparação, independentemente de quanto se tenha, significará ter
“nada”, o que levará esse polo a ser o “mau” na comparação – em outras palavras, por
exemplo, em uma avaliação cuja competência é a justiça, o mais justo será o correto e
o menos sensível, o incorreto. Isso indica que a distribuição do bem é ela própria uma
operação de modulação construtiva da actância.
54 ANSCOMBE, Gertrude M. Intention. Cambridge: Harvard University Press, 2000.
Alexandre Werneck ·
Concretude simbólica e descrição
etnográfica (sobre a relação entre
antropologia e filosofia)1
3 DURKHEIM, Émile. Les formes élémentaires de la vie religieuse. Paris: PUF, 1912.
4 MERLEAU-PONTY, Maurice. “De Mauss a Claude Lévi-Strauss.” In: Merleau-Ponty:
Coleção Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980, pp.193-206.
5 LÉVI-STRAUSS, Claude. “Introdução à obra de Marcel Mauss.” In: Sociologia e antro-
pologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p.29.
6 Veja a interessante discussão de Winch sobre a relação de internalidade entre ideias
e relações sociais, na qual demonstra convincentemente a existência de uma inter-
dependência radical entre elas, tornando-as completamente ininteligíveis de forma
isolada. WINCH, Peter. The Idea of a Social Science and its Relation to Philosophy. Londres:
Routledge and Kegan Paul, 1958, pp.121-128.
7 WINCH, Peter. “Understanding a Primitive Society.” American Philosophical Quar-
terly, vol.1, n.4, 1964, pp.307-324.
8 EVANS-PRITCHARD, Edward E. Witchcraft, Oracles and Magic among the Azande. Ox-
ford: The Claredon Press, 1937.
9 As principais intervenções neste debate foram disponibizadas em duas coletâneas:
WILSON, Bryan (org.). Rationality. Worcester: Wiley-Blackwell, 1970; Hollis, Martin e
Lukes, Steven (orgs.). Rationality and Relativism. Cambridge: The MIT Press, 1982.
10 GEERTZ, Clifford. “Thick Description: Toward an Interpretive Theory of Culture.”
In: The Interpretation of Cultures. Nova York: Basic Books, 1973, pp.3-30.
11 Dolgin, Janet L.; Kemnitzer, David S. e Schneider, David M. (orgs.). Symbolic Anth-
ropology: A Reader in the Study of Symbols and Meanings. Nova York: Columbia University
Press, 1977.
12 Ver o interessante livro de Roy Howard (1982) sobre três vertentes interpretativas
na filosofia ocidental: HOWARD, Roy. Three Faces of Hermeneutics. Berkeley: University
of California Press, 1982.
13 Ver também Rabinow, Paul; Sullivan, William (orgs.). Interpretive Social Sciences: A
Reader. Berkeley: University of California Press, 1979.
14 Veja Clifford, James; Marcus, George (orgs.). Writing Culture: The Poetics and Politics
of Ethnography. Berkeley: University of California Press, 1986 e também a crítica de
TRAJANO FILHO, Wilson. “Que barulho é esse, o dos pós-modernos?.” Anuário An-
tropológico, 1986, 1988, pp.133-151. Esta problemática do lugar do autor se coloca de
maneira inteiramente diferente em antropologias como a brasileira ou a mexicana, por
exemplo, que se desenvolveram a partir de pesquisas realizadas dentro das fronteiras
dos respectivos países, e nas quais o esforço de compreensão das sociedades tribais
estudadas não deixava de estar articulado a uma reflexão sobre a sociedade do próprio
pesquisador, na qual conjugava simultaneamente os papéis de intérprete e de ator ou
cidadão (veja, inter alia, CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O índio e o mundo dos bran-
cos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1996 [1964] e BONFIL BATALLA, Guilhermo.
México profundo: Una civilización negada. México: Grijalbo, 1987).
18 FRAZER, James. The Golden Bough: A Study in Magic and Religion. Londres: The Mac-
Millan Press, 1976 [1922].
19 WITTGENSTEIN, Ludwig. Remarks on Frazer’s Golden Bough. Nova Jersey: Open Hu-
manities, 1979. A crítica de Wittgenstein teria sido elaborada nos anos 1930, mas pu-
blicada postumamente, muitos anos depois.
Seria absurdo dizer que o selvagem pensa misticamente e que nós pensa-
mos cientificamente sobre a chuva. Ambos os casos envolvem processos
mentais similares e, além disso, o conteúdo do pensamento é derivado de
forma similar. Mas podemos dizer que o conteúdo social de nosso pen-
samento sobre chuva é científico, ele está em acordo com fatos objetivos,
enquanto o conteúdo social do pensamento selvagem sobre chuva é não
científico, pois não está em acordo com a realidade, e pode ser também
místico quando assume a existência de forças suprassensíveis.21
28 DUMONT, Louis. Homo hierarchicus: Essai sur le système des castes. Paris: Gallimard,
1979.
29 GEERTZ, Clifford. “From the Natives Point of View.” In: Local Knowledge: Further
Essays in Interpretative Anthropology. Nova York: Basic Books, 1983, pp.55-70.
30 DUMONT, op.cit..
31 MALINOWSKI, Bronislaw. A Diary in the Strict Sense of the Term. Redwood City:
Stanford University Press, 1989 [1967].
32 DUMONT, op.cit., p.56.
33 GADAMER, Hans-Georg. Truth and Method. Nova York: The Continuum, 1994
[1960]; —————. “The Universality of the Hermeneutical Problem.” In: Philosophical
Hermeneutics. Berkeley: University of California Press, 1977, pp. 3-17.
34 CARDOSO DE OLIVEIRA, op.cit. (ver o gráfico na p.73).
35 Para uma discussão mais detida da tradição hermenêutica como perspectiva, veja,
além da obra magna de GADAMER, op.cit., as contribuições de RICKMAN, H. P. (org.).
Dilthey: Selected Writings. Londres: Cambridge University Press, 1976; HABERMAS,
Jürgen. “A Review of Gadamer’s Truth and Method.” In: Dallmayr, Fred R.; MacCar-
thy, Thomas A. (orgs.). Understanding and Social Inquiry. Notre Dame: University of
Notre Dame Press, 1977, pp.335-363; BLEICHER, Josef (org.). Contemporary Herme-
neutics: Hermeneutics as Method, Philosophy and Critique. Londres: Routledge & Kegan
Paul, 1980; HOWARD, op.cit.; RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1992; entre outros.
40 FAVRET-SAADA, Jeanne. Les mots, la mort, les sorts. France: Gallimard, 1977.
41 EVANS-PRITCHARD, op.cit., p.242.
42 WINCH, op.cit., p.69.
43 Ibid., pp.15-57.
44 Tanto a ciência (médicos, veterinários) como a religião (o pároco local ou o exor-
cista da diocese) descartam qualquer significado para o caráter serial dos eventos atri-
buídos à bruxaria, não permitindo nenhuma tentativa de elaboração discursiva sobre a
situação vivida pelos atores ou sobre seus conflitos.
47 CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. Direito legal e insulto moral: Dilemas da cida-
dania no Brasil, Quebec e EUA. Rio de Janeiro: Garamond, 2011 [2002].
48 Durante a minha pesquisa, o valor máximo das causas nesses Juizados era de US$
1.500 e, nas causas de menor valor, o requerente tinha que pagar uma taxa de US$ 8,89
para dar entrada no Juizado, mais cerca de US$ 5 para enviar compulsoriamente cartas
de cobrança registradas ao requerido, e outros US$ 5 para pagar o transporte de, pelo
menos, duas visitas ao Juizado. Como nas duas visitas o requerente perderia, pelo me-
nos, cinco horas de trabalho que não seriam remuneradas, levando-se em conta que
o salário mínimo local à época era de US$ 5/hora, poderíamos dizer que em nenhuma
hipótese seria possível gastar menos de US$ 40 para levar a causa até um desfecho no
Juizado.
49 Tort ou delito civil é uma agressão a direitos de caráter não criminal, que não en-
volve tampouco a quebra de um contrato: se um vaso cai do parapeito de minha janela
e danifica o carro do vizinho, isso caracterizaria um tort, e eu seria responsável pela
reparação dos danos causados.
50 CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. “Existe violência sem agressão moral?.”
Revista Brasileira de Ciências Sociais (RBCS), vol.23, n.67, 2008b, pp.135-146.
Tabela Comparativa I
Reclamantes Grupo de
Tipo de Dano
persistentes controle
Prejuízo financeiro 71% 72%
Relações afetadas 25% 18%
Funcionamento físico 15% 5%
Danos ao funcionamento social e econômico 35% 9,5%
Danos à autoestima 40% 14%
Danos à saúde em geral 44% 23%
61 As duas tabelas foram elaboradas por mim a partir de dados e indicadores apresen-
tados no artigo de LESTER et al., op.cit.
J F
Introdução
Jussara Freire ·
público, mas antes, da ordem pública, isto é, das atividades ordinárias
e competências dos atores quando buscam serem ouvidos e suas vozes,
reconhecidas.
O problema que atravessa as diferentes pesquisas das quais tomei
parte em cidades do estado do Rio de Janeiro volta-se para a descrição e
interpretação das dificuldades, senão das francas restrições, encontradas
por certos membros de arenas políticas em suas rotinas quando buscam
publicizar assuntos considerados problemáticos por eles. Ainda que di-
ferentes abordagens sejam mobilizadas em minha proposta, todas se
reúnem em torno de projetos do pragmatismo francês (na continuidade
da filosofia de Paul Ricœur)12 ou do americano (na continuidade de James,
Dewey, Peirce, Mead e a “primeira” Escola de Chicago).13 Destaco ainda
que, na abordagem francesa, alguns autores construíram pontes transa-
tlânticas permitindo apreender os modos de circulação do pragmatismo
francês e americano: Daniel Cefaï e Isaac Joseph,14 Michel De Fornel e
Louis Quéré15 ou, ainda, Bruno Latour.16
17 Para uma análise da relação entre a efetivação e o pragmatismo, ver WERNECK, op.cit.
18 Boltanski e Thévenot – BOLTANSKI, Luc; Thévenot, Laurent. De la justification: Les
économies de grandeur. Paris: Gallimard, 1991; BOLTANSKI, Luc. L’amour et la justice
comme compétences. Paris: Métaillé, 1990; BOLTANSKI, Luc e Chiapello, Ève. Le nouvel
esprit du capitalisme. Paris: Gallimard, 1999; ou ainda THÉVENOT, Laurent. L’action au
pluriel: Sociologie des régimes d’engagement. Paris: La Découverte, 2006 – colocaram no
cerne de suas inquietações a noção de dispositivo para a análise das situações de provas
e de disputas, inspirando-se na obra de Bruno Latour. O dispositivo é um ajuntamento
de objetos, regras e convenções (por exemplo, o direito) orientados na direção da justi-
ça (BOLTANSKI; Chiapello, op.cit.). Por meio dos dispositivos, é possível, de um lado,
enquadrar a situação de prova ou de disputa, pois estes sustentam os princípios de jus-
tiça e, de outro, avaliar os princípios de justiça presentes em uma situação específica.
No entanto, em vez de considerar o dispositivo como genérico e fixo, os autores desta-
caram que ele pode ser universalmente situado. Assim, numa perspectiva situacionis-
ta, os dispositivos são conjuntos heterogêneos de homens e coisas (ou não humanos)
que sempre variam pelo fato de os próprios participantes – seus estados e estatutos
– disporem de equipamentos mentais e físicos também variáveis de uma situação para
outra. Logo, os não humanos são actantes, como os humanos, constantemente pas-
síveis de serem mobilizados, redefinidos e ressignificados. O dispositivo aponta para
uma associação sempre prestes a ser recomposta ou reconfigurada, uma mediação que
redefine constante e reciprocamente a relação entre humanos e não humanos.
Jussara Freire ·
A situação como ponto de partida analítico
Jussara Freire ·
de organização da experiência que torna os acontecimentos inteligíveis
e, então, viabiliza nossa participação em uma situação. Assim, o quadro
estrutura ao mesmo tempo o modo como definimos e interpretamos uma
situação e o nosso envolvimento em um curso de ação.31
Jussara Freire ·
Cada cité é ordenada segundo um bem comum que adquire relevân-
cia em relação aos outros bens comuns das outras cités, considerados
de menor importância. Assim, em um momento de disputa, a crítica se
estabelece em função do bem comum visado em outras ordens e definidor
da relação de equivalência entre seres. Para retomar a expressão dos dois
autores, essa disputa é a que dará a determinadas pessoas (“as grandes”)
sua grandeza e que definirá o princípio superior comum37 – definição que
estabelecerá qual dos bens comuns é prioritário em relação a outros. A
crítica é, portanto, o que vai interrogar, se não desestabilizar, a ordem de
uma cité, os tamanhos dos seres que eram convencionados, com horizonte
constante de uma ameaça de redefinição da hierarquia da cité. Contudo,
os autores notam que os dispositivos e as situações apontam para a relação
tácita que organiza as ordens de grandeza, sem necessidade de lembrar
constantemente quem é grande e quem é pequeno, em uma ordem que se
sustenta por um acordo quanto a um bem comum que rege uma situação,
e que às vezes economiza assim as grandezas e os momentos de disputa.
Esses autores oferecem instrumentos (um modelo, nos seus termos)
para descrever os recursos disponíveis e mobilizados no espaço público,
o que implica um saber-fazer e um “saber-manusear” as ferramentas da
publicização por atores competentes. De certa forma, pode-se afirmar que
abordagens desse tipo privilegiam a compreensão da ideia de um público
como processo decorrente das competências e da exploração do mundo
público. Nos mundos analisados por Boltanski e Thévenot, as operações
críticas e morais se submetem a uma regra de generalização, isto é, a um
horizonte de “ascensão em generalidade”. Nesse sentido, retomando a
denominação dos autores, pode-se considerar essa abordagem uma so-
ciologia da crítica.38 Trata-se de um modelo para descrever a forma como
com o projeto de uma sociologia partindo da ideia de revelar e desvelar as ilusões dos
indivíduos. Boltanski destaca que as atividades científicas do sociólogo crítico são
marcadas pela externalidade em relação à realidade social observada. No limite, o que
é observado são crenças e, logo, o papel da sociologia crítica é de revelar a veracidade
dessa crença, já que ela dispõe de uma autoridade científica que lhe atribui utilidade
social (BOLTANSKI, op.cit., pp.39-44): a compreensão da atividade científica torna-se
uma operação visando descortinar as ilusões sociais como manifestam, por exemplo,
o uso das noções de ideologias, prenoções, representações, crenças, resíduos (Ibid.,
pp.40-41).
39 BOLTANSKI, op.cit.
Jussara Freire ·
publicização em um contexto francês e, mais especificamente, ao jornal
Le Monde, de grande imprensa nacional. Essa normalidade é avaliada
em função de um registro de publicidade e de civismo (com repertórios
republicanos franceses), perceptível por meio do sistema actancial. Para
ser avaliada como “normal”, o denunciante ocupará uma posição mais
próxima do geral. O espaço da denúncia articula posições mais ou menos
homólogas no eixo singular/geral, de um lado, e no eixo proximidade/
alteridade (laço de singularização entre pessoas envolvidas na denúncia/
laço de dessingularização que permite o engrandecimento), de outro.
Essa é a condição para que a explicitação do sentimento de injustiça seja
considerada como “normal” por parte de todos os actantes. Desse ponto
de vista, Boltanski 40 assinala que a normalidade é um mecanismo cog-
nitivo dependente das operações de classificações situadas dos actantes.
Por exemplo, em uma denúncia feita por uma esposa de que seu marido
vai deserdá-la e transferir a herança para sua amante, o denunciante e
a vítima estarão em uma posição do eixo mais próximo do singular. Se
essa denúncia é formulada para uma revista local interessada em publicar
histórias e tragédias de famílias locais, a consideração da “normalidade”
da denúncia dessa suposta publicação fará com que o juiz ocupe uma
posição próxima do singular.
Por esse motivo, a pluralidade de regimes de ação e de formulação
de crítica é sempre situada. Outros pesquisadores, próximos dessa abor-
dagem, trabalharam “o caso” também do ponto de vista de uma forma,
retomando a proposta da sociologia simmeliana, de um recurso político
disponível para publicizar uma crítica abafada que questiona as ordens de
grandezas. A “forma caso” é um recurso disponível para agir no mundo
político: “O caso passa a ser essa configuração que torna visível um não
consenso entre duas partes que se diziam antes únicas e iguais. Uma vez
que se tornou uma forma, o caso é também um recurso político disponível,
doravante suscetível de ser sempre mobilizado e recontextualizado para
tal ou tal situação.”41
40 Ibid., pp.280-285.
41 CLAVERIE, Elisabeth. “La naissance d’une forme politique: L’affaire du Chevalier
de La Barre.” In: Roussin, Philippe (org.). Critique et affaires de blasphème à l’époque des
Lumières. Paris: Honoré Champion, 1998, pp.204-205.
42 GUSFIELD, Joseph R. The Culture of Public Problems: Drinking-Driving and the Symbo-
lic Order. Chicago: The University of Chicago Press, 1981. Gusfield dedica o capítulo 7
desse livro à dimensão dramatúrgica da ação pública. No entanto, vale assinalar que ele
não se inspira conceitualmente apenas nos trabalhos de Goffman e de Burke. O autor
enfatiza três perspectivas da ação pública: do ponto de vista da performance, de sua
encenação e, por fim, da visibilidade de atos, experiências e emoções despertadas em
torno de um evento (p.77).
43 CLAVERIE, op.cit.
44 Fuks – FUKS, Mário. Conflitos ambientais no Rio de Janeiro: Ação e debate nas arenas
públicas. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001 – e Campos – CAMPOS, Marilene de Souza.
A empresa como vocação: O Sebrae e o empreendorismo na cultura da informalidade como
problema público. Rio de Janeiro: Iuperj, 2003, mimeo – examinam o percurso analítico
da construção da categoria sociológica de problemas públicos. Vale apenas relembrar
que essa categoria surge no âmbito de uma perspectiva construtivista, primeiramente
interessada em entender como se elaboram problemas sociais a partir de estudos sobre
Jussara Freire ·
dos problemas públicos com as aptidões cognitivas e morais de um grupo
para denunciar condições avaliadas como injustas ou anormais. Os pro-
tagonistas das arenas públicas são definidores e analisadores de assuntos
considerados por eles problemáticos. Essa perspectiva representa uma
inovação em relação ao anterior modo de analisar um problema público,
abordado a partir da definição de uma condição putativa, nos termos de
Spector e Kitsuse.45
Diferentemente de análises construtivistas, que empregavam in-
distintamente os adjetivos sociais e públicos,46 Gusfield estabelece, por
sua vez, uma diferenciação. O problema social remete a uma condição
reconhecida como problemática por grupo(s) de uma sociedade. Nesse
sentido, o problema social não é obrigatoriamente público pelo fato de que
não se torna necessariamente um assunto que precisará sempre de uma
resposta pública (seja ela em termos de formulação de política pública ou
de inserção em uma agenda pública visando a sua resolução). No entanto,
a distinção entre social e público baseia-se em uma perspectiva insti-
tucional. Ora, alguns autores sugeriram não cercar rigidamente certos
assuntos, não reconhecidos publicamente na esfera da privacidade ou
da intimidade, ou ainda demarcar demasiadamente as fronteiras entre o
íntimo e o político.47 Uma atenção mais fina para a continuidade desses
níveis de problematização é necessária para compreender a elaboração
de um problema público. Determinados assuntos como, por exemplo,
claims makings. Um problema social é analisado como um processo pelo qual grupos
ou membros definem uma condição putativa como sendo problemática (SPECTOR,
Malcolm; Kitsuse, John. “Sociologie des problèmes sociaux: Un modèle d’histoire na-
turelle.” In: Cefaï, Daniel; Terzi, Cédric. L’expérience des problèmes publics, 2012 [1973],
pp.81-107). Coletivos de indivíduos determinam uma condição supostamente proble-
mática e organizam atividades voltadas para uma transformação dessas condições as-
sim definidas em busca de uma resposta. Essa perspectiva se contrapôs às abordagens
anteriores que tratavam do tema dos problemas sociais de forma objetivista, consi-
derando essas condições como “reais”. No entanto, como assinalado por Cefaï – CE-
FAÏ, Daniel. “La construction des problèmes publics: Définitions de situations dans
des arènes publiques.” Réseaux, n.75, 1996, pp.43-66 –, a substituição das condições
objetivas pelas condições putativas gera uma aporia insolúvel que se esquece da plura-
lidade de perspectivas a partir das quais os atores definem uma situação problemática.
45 SPECTOR; Kitsuse, op.cit.
46 Conforme o que foi apontado por CAMPOS, op.cit.
47 BREVIGLIERI, Marc; Trom, Danny. “Troubles et tensions en milieu urbain.” In: Ce-
faï, Daniel; Pasquier, Dominique. Les sens du public: Publics politiques. Paris: Curapp/
PUF, 2003, p.399.
Jussara Freire ·
mobilização coletiva e do engajamento dos atores participantes. A noção de
arena pública permite entender e apreender as práticas políticas concretas
considerando a pluralidade de “regimes de engajamento” nas situações.
As arenas públicas são constituídas dos conjuntos de públicos que
habitam um espaço público concreto. Cefaï50 destacou que a noção de arena
pública se remete a uma forma mais flexível, em movimento, daquela
do espaço público. Ele também assinalou que este último conceito era
fortemente marcado por uma compreensão habermasiana. Retomando
a proposta desse autor, podem-se identificar algumas principais carac-
terísticas de arenas públicas: a dramaturgia (como vimos anteriormente,
os recursos teatralizados, dispositivos e performances mobilizados para o
convencimento ou priorização de um determinado assunto no palco da
vida pública) e representação (teatral); a pluralidade (de atores em uma
mesma arena); os embates (o que pressupõe conflitos e disputas); as ne-
gociações (que terminam ou não em compromissos); as regras de publi-
cidade coercitivas (que os membros de diversas arenas precisam seguir);
e a dispersão (multiplicidade dessas formas, dispersas no espaço público
que ora se encontram, ora competem entre elas, que podem se formar
repentinamente e, com a mesma velocidade, se evaporar em função da
exigência da seleção de assuntos).
A partir dessas abordagens, a noção de ação coletiva torna-se um
instrumento capaz de descrever as atividades de coordenação, a partir
das operações críticas e morais dos atores das arenas públicas. A ordem
pública se refere a uma coordenação com certas modalidades entre hu-
manos, e também, entre humanos e não humanos (retomando a expres-
são de Latour)51. Obviamente, os momentos de provas e de conflitos são
parte integrante da coordenação, uma sequência na qual é questionada
a veracidade de um bem comum. Nesse sentido, a ordem pública é uma
“ordem negociada”.52 Como a negociação nunca é fixada, e tampouco
definitiva, o fundamento da ordem pública é este permanente e infinito
processo de reavaliação, de questionamento e de redefinição de assuntos
problemáticos.
50 CEFAÏ, Daniel. “Qu’estce qu’une arène publique? Quelques pistes pour une ap-
proche Pragmatiste.” In: Cefaï, Daniel; Joseph, Isaac (org.). L’héritage du pragmatisme.
Paris: l’Aube, 2002, pp.5182.
51 LATOUR, op.cit.
52 STRAUSS, Anselm. La trame de la négociation. Paris: L’Harmattan, 1992.
Jussara Freire ·
Pois no que diz respeito a meu próprio trabalho, a partir de diversas
contribuições na sociologia e antropologia da moral, propus levar a sério
as múltiplas tematizações da linguagem da “violência urbana” no con-
texto do estado do Rio de Janeiro e descrever esse mosaico com o intuito
de descrever formas de coordenações nas cidades estudadas. Destaco que
o problema que permeia o conjunto de pesquisas das quais participei e
minhas observações volta-se para os recortes cognitivos realizados pelos
atores quando agem em um horizonte de publicização. Em vez de privi-
legiar a análise dos processos de publicização seguindo rigorosamente
os autores citados anteriormente, preferi deixar minha observação ser
guiada pelos modos segundo os quais os atores buscam captar a atenção
pública nos contextos analisados (e os sentidos que lhe conferem). Em
suma, propus afrouxar o eixo singular/geral de meu recorte analítico,
considerando um contexto marcado pela linguagem da “violência urba-
na” e pela copresença de uma ordem pública e de uma ordem violenta.53
Mais recentemente, analisei a gramática da “violência urbana” a
partir da pluralidade de lógicas que substanciam essa categoria em suas
relações com o repertório dos “direitos humanos”.54 A compreensão da
pluralidade dos repertórios da gramática da “violência urbana” na cidade
me aparecia como uma forma de compreender alguns dos dispositivos
que legitimariam e naturalizariam o recurso e/ou ameaça da força estatal
nos “territórios da pobreza”.55 Desta vez, interessava-me compreender a
continuidade públicos/“violência urbana” a partir de coletivos diferentes
daqueles que havia analisado. Por esse motivo, propus descrever e in-
terpretar os sensos de justiça de camadas médias, advogados defensores
dos direitos humanos, moradores de territórios da pobreza (vítimas de
53 MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio (org.). Vida sob cerco: Violência e rotina nas fa-
velas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Faperj, 2008; —————. “Sociabili-
dade violenta: Por uma interpretação da criminalidade contemporânea no Brasil urba-
no.” In: Ribeiro, Luiz Cesar (org.). Metrópoles: Entre a cooperação e o conflito. São Paulo/
Rio de Janeiro: Perseu Abramo/Fase, 2004; —————. “Criminalidade violenta: Por uma
nova perspectiva de análise.” Revista de Sociologia e Política, n.13, 1999, pp.115-124.
54 FREIRE, Jussara. “‘Violência urbana’ e ‘cidadania’ na cidade do Rio de Janeiro: Ten-
sões e disputas em torno das ‘justas’ atribuições do Estado.” Dilemas: Revista de Estudos
de Conflito e Controle Social, vol.7, n.1, 2014, pp.73-94; ————— (org.). Direitos humanos
e vida cotidiana: Pluralidade lógica e violência urbana. Relatório final de pesquisa, edital
Humanidades, Faperj, 2012.
55 MACHADO DA SILVA, op.cit.
Jussara Freire ·
de “sujeição criminal”58 na cidade do Rio de Janeiro, mas também com
recortes cognitivos constantemente elaborados que consistem em quali-
ficar as diversas “substâncias morais”59 dos moradores da cidade. No caso
em análise, procurei entender os efeitos das qualificações desses atores,
os condôminos, bem como daquelas de advogados e de policiais sobre os
recortes cognitivos de moradores de favelas e as modalidades de tomadas
de voz desses últimos em tal contexto.
Os sensos do injusto dos condôminos analisados eram sempre contra-
postos à fraca legitimidade dos repertórios da linguagem dos direitos. “O
pessoal da comunidade” (categoria acionada por alguns condôminos para
se referir a seus vizinhos, aqueles que moravam na Cidade de Deus) era
ora percebido como contribuinte inadimplente, ora como não contribuinte.
Nessa construção cognitiva, os condôminos relacionavam esses vizinhos
a atividades previamente definidas como informais e criminosas – o que
justificava, segundo eles, o fato de os moradores da Cidade de Deus serem
considerados “cidadãos inadimplentes”. Por isso, a classificação de dife-
rentes escalas de cidadãos da cidade e do bairro adjacente levava a considerar
injustificável qualquer intervenção estatal nos territórios da pobreza e,
nessa qualidade, os moradores da Cidade de Deus eram percebidos como
“aproveitadores” indevidos de serviços públicos.60 No entanto, não se
questionava ou se negava o acesso dos “pobres” à cidadania. Em vez
disso, os moradores do condomínio analisados apontavam para o fato de
não existir uma cidadania ajustada aos sensos de injustiça das “classes
médias”, cuja humanidade é inquestionável e indegradável. Tomando
por base essa operação moral, esses atores estabeleciam “gradações de
cidadania” a partir da elaboração de um complexo eixo moral de maior ou
menor dignidade para os moradores da cidade do Rio de Janeiro serem
considerados como alvos legítimos de medidas estatais.
61 Das, Veena; Poole, Deborah (orgs.). Anthropology in the Margins of the State. Nova
Delhi: Oxford University Press, 2004.
62 WERNECK, op.cit.
63 CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. “Concepções de igualdade e cidadania.”
Contemporânea: Revista de Sociologia da UFSCar, vol.1, n.1, 2011, pp.35-48.
Jussara Freire ·
A moral em questão: a conformação de
um debate em antropologia
P S
Patrice Schuch ·
É o seguinte: eu acho que temos que desvincular o atendimento dele do da
mãe. Estamos atendendo a mãe. Ela tem que assumir o filho. Ela goza com
isso. Ela diz: “O meu filho usou crack na minha frente, na sala. Ele usou
para mim.” Quando ele estava na Fase, quando a lei deu um limite a ele,
que ele estava pedindo, aí ela engravidou. Roberto achou que o filho era do
companheiro da mãe e ele já estava construindo o vínculo da figura do pai.
O que ela, mãe, fez, então? A primeira coisa foi dizer que o filho que espe-
rava na época não era do companheiro. Ela recolocou a questão da figura
do pai em questão. E agora ele está pedindo novamente esse limite da lei.
· A moral em questão
anos.1 A atenção para esse objeto implica levar em conta analiticamente
um conjunto diverso e multifacetado de técnicas, saberes, instrumentos,
dispositivos legais e programas de ação em que a questão do governo é
refletida e praticada.2
É a partir desse interesse particular que a cena introdutória deste
texto busca fazer sentido: em apenas trinta minutos de discussão, a equipe
tanto deu visibilidade a uma problemática a ser enfrentada – processo de
construção dinâmico que ocorria desde os primeiros contatos de Roberto
com o CAPSi –, como também conformou justificativas e sentidos para sua
realização e tentou esboçar os meios ou procedimentos adequados para
sua resolução. A análise da situação suscita interrogações mais amplas
sobre as sensibilidades morais operadas nos interstícios dos domínios
legais, justificando a internação do adolescente em termos mais severos do
que aqueles delimitados pela própria lei. Na constituição da problemática
a ser enfrentada pela equipe para administrar a situação de Roberto, uma
série de princípios avaliativos de diferenciação e valoração do “bem” –
dispositivos morais – foi empregada, mostrando a impossibilidade de
estudar as práticas de governo de indivíduos e populações tendo por
objeto apenas a racionalidade legal das práticas de intervenção, em que
pese sua centralidade nas retóricas dos agentes institucionais que in-
vestem na celebração do ideário dos “direitos”.3 Pois é na busca de uma
maior explicitação da importância da análise da moral/das moralidades
na pesquisa antropológica, na explicitação de algumas das contribuições
da antropologia para o estudo desse objeto, assim como na discussão sobre
1 Sobre isso, ver SCHUCH, Patrice. Práticas de justiça: Antropologia dos modos de governo
da infância e juventude pós-ECA. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009; —————. “Justi-
ce, Culture and Subjectivity.” Vibrant, vol.9, 2012, pp.34-69.
2 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal,
1977; —————. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
3 Para o campo de estudos da antropologia do direito, essa não é uma afirmativa nova
e, no Brasil, vários estudos já apontaram nessa direção. Entre outros, destaco o estudo
de Luís Roberto Cardoso de Oliveira, que se preocupou em compreender etnografica-
mente, a partir de uma perspectiva comparativa entre Brasil, Canadá e Estados Unidos,
o equacionamento entre a dimensão legal (direitos juridicamente estabelecidos) e a
dimensão moral (referente aos valores e identidades) dos direitos. Ver CARDOSO DE
OLIVEIRA, Luís Roberto. Direito legal e insulto moral: Dilemas da cidadania no Brasil,
Quebec e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Nuap/Relume Dumará, 2002.
Patrice Schuch ·
algumas recentes propostas em direção a uma “antropologia da moral/das
moralidades” ou de uma “antropologia moral”, que este texto se justifica.
· A moral em questão
capítulos ou artigos que tratariam a moral como objeto preferencial de
engajamento reflexivo.
Embora este texto não tenha a pretensão de realizar uma análise da
produção brasileira sobre o assunto, é viável destacar que o diagnóstico
elaborado por Baumard e Sperber e referenciado posteriormente por Fassin
e Lézé, além de por Brito, em introdução a um recente dossiê sobre o tema
publicado no Brasil, parece válido também para as pesquisas realizadas
sobre o assunto em nosso país.7 Por sinal, em artigo publicado em 1996,
Roberto Cardoso de Oliveira já apontava que o tema era insuficientemente
tratado por antropólogos.8 Em sua proposta, pioneira para os estudos no
Brasil e forjada no interior da tradição hermenêutica crítica, seria neces-
sário relacionar o domínio da moralidade – que se definiria pela noção de
“bem viver” em seu sentido de vida justa e proba no mundo da vida – com
a noção de eticidade, que envolveria o “dever” como o valor mais alto
de uma pessoa, de um ser social. Com trabalhos valiosos nesta direção,
o autor desenvolveu essa abordagem para refletir sobre a própria tarefa
antropológica e também nos estudos acerca dos contatos interétnicos.
Não obstante o apelo de Cardoso de Oliveira, analisando rapidamente
e não exaustivamente a bibliografia sobre a moral/a moralidade como
objeto de pesquisa antropológica no Brasil, pode-se salientar que duas
características parecem se evidenciar: de um lado, um expressivo número
de trabalhos sobre as moralidades elaboradas por determinado univer-
so, segmento ou grupo social (grupos populares urbanos, campesinato,
famílias pobres, por exemplo).9 Nessa forma de elaboração analítica, a
7 BAUMARD, Nicolas; Sperber, Dan, op.cit.; FASSIN, Didier; Lézé, Daniel, op.cit.; BRI-
TO, Simone Magalhães. “Dossiê Sociologia e Antropologia da Moralidade: Apresenta-
ção.” Revista Brasileira de Sociologia da Emoção (RBSE), vol.12, n.36, 2013, pp.700-702.
8 Ver CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. “Antropologia e moralidade: Etnicidade e as
possibilidades de ética planetária.” In: CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto; Cardoso de
Oliveira, Luís Roberto. Ensaios antropológicos sobre moral e ética. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1996.
9 Entre outros, ver ALVIM, Rosilene; Lopes, José Sérgio. “Famílias operárias, famílias
de operárias.” Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.14, n.5, 1990, pp.7-17; DUARTE,
Luiz Fernando Dias. “Pouca vergonha, muita vergonha: sexo e moralidade entre as
classes trabalhadoras urbanas.” In: Lopes, José Sérgio Leite (org.). Cultura e identidade
operária: Aspectos da classe trabalhadora. Rio de Janeiro: UFRJ/Proed, 1987; GUEDES,
Simoni Lahud. Jogo de corpo: Um estudo da construção social dos trabalhadores. Niterói:
EdUFF, 1997; SARTI, Cynthia Andersen. A família como espelho: Um estudo sobre a moral
Patrice Schuch ·
moralidade – definida como conjunto de normatizações, valores e signi-
ficados – se aproxima do conceito antropológico convencional de cultura,
o que pode justificar a invisibilidade de problematização mais específica
sobre esse objeto.
De outro lado, há vários estudos em que a moral é considerada um
aparato ou dimensão específica contrastado com outro domínio de pro-
blematização, como, por exemplo, o âmbito legal, econômico ou político.
Em geral, tais estudos investigam as influências da moral e suas implica-
ções e/ou efeitos no domínio privilegiado da investigação, isto é, a moral
é chamada à investigação para contribuir na melhor compreensão, por
exemplo, do universo jurídico, das relações econômicas, das instâncias
políticas.10 A moral é apreendida, nessa forma de abordagem, funda-
mentalmente a partir da sua relacionalidade com outros domínios de
problematização e não como um objeto em si.
A potência antropológica
dos pobres. Campinas, SP: Autores Associados, 1996; WOORTMAN, Klaas. “Com pa-
rente não se neguceia. O campesinato como ordem moral.” Anuário Antropológico,
1987, 1990, pp.11-73.
10 Entre outros, ver, por exemplo, BEZERRA, Marcos Otavio. Em nome das bases: Políti-
ca, favor e dependência pessoal. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999; CHAVES, Christi-
ne de Alencar. “Eleições em Buritis: A pessoa política.” In: Palmeira, Moacir; Goldman,
Márcio (orgs.). Antropologia, voto e representação política. Rio de Janeiro: Contracapa,
1996, pp.127-164; COMERFORD, John. Como uma família: Sociabilidade, territórios de
parentesco e sindicalismo rural. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Nuap, 2003; FONSECA,
Claudia. “‘Ordem e progresso’ à brasileira: Lei, ciência e gente na ‘co-produção’ de
novas moralidades familiares.” In: Ferreira, Jaqueline; Schuch, Patrice (orgs.). Direitos
e ajuda humanitária: Perspectivas sobre família, gênero e saúde. Rio de Janeiro: Editora da
Fiocruz, 2010, pp. 151-181; TEIXEIRA, Carla Costa. A honra da política. Rio de Janeiro:
Relume Dumará/Nuap, 1998; VIANNA, Adriana. Limites da menoridade: Tutela, família e
autoridade em julgamento. Tese (doutorado), PPGAS, MN, UFRJ, 2000.
· A moral em questão
privilegiando a variedade dessas possiblidades, em que pese o fato de que,
na singularidade das pesquisas antropológicas, os pesquisadores possam
optar por algumas dessas ênfases analíticas, em detrimento de outras:
a) De forma proeminente, destaca-se a riqueza da pesquisa etnográfica
como balizadora dos engajamentos em torno do objeto. Ao possibilitar ir
além dos discursos e regras de enunciação moral para também abarcar
os fluxos dos comportamentos e práticas em cenários históricos e polí-
ticos situados, as pesquisas etnográficas desestabilizam pretensões de
consideração da moral somente a partir de sua associação ao universo
das regras, tal como proposto na tradição durkheimiana.11 Nas disputas,
tensões e contradições da vida social que as etnografias têm condições de
captar a partir da informalidade e do fluxo de comportamentos, a moral
também pode ser entendida como um elemento produtivo de corrupção
das forças de integração social e não apenas um instrumento que trabalha
para sua estabilidade.
Como assinalam Baumard e Sperber, os valores morais não podem ser
entendidos exclusivamente como guias de comportamento e/ou princípios
normativos do “deve ser”: “Eles são ao mesmo tempo os meios para se re-
presentar e julgar as ações dos outros e para negociar essas representações
e julgamentos.”12 As próprias interrogações em torno da constituição de
categorias e a formação de sujeitos morais, por exemplo, de suas condi-
ções de possibilidade, de seus atributos conformadores e de sua agência
sugerem a abertura de interrogações sobre o caráter produtivo da moral
na constituição de novos cenários político-culturais e não apenas como
um elemento por esses conformado, o que introduz dinamicidade no
estudo do tema.13
Patrice Schuch ·
b) Esses argumentos têm consequências importantes para o estudo
da moral, pois permitem evocar um segundo aspecto da contribuição da
antropologia ao tema, que é a valorização das perspectivas dos atores,
forjadas a partir de práticas e domínios situados política e historicamente.
O foco na variedade e situacionalidade dos sentidos das ações morais pelos
agentes elaborados, nas justificações morais que dão aos seus atos, nos
relacionamentos e práticas que forjam sujeitos e comunidades morais,
tornam-se fundamentais, na medida em que permitem ao pesquisador
compreender o que os próprios atores configuram como o(s) domínio(s)
da moral. Nesse sentido, o próprio recorte do objeto pode ser efetuado a
partir dos pontos de vista daqueles envolvidos nas situações e dinâmicas
pesquisadas e não a partir de qualquer a priori estabelecido pelo analista.
É nesse sentido também que Howell afirma a potência analítica das situa-
ções de conflito, que explicitam o que os próprios atores compreendem
como comportamentos moralmente corretos.14 De toda forma, esse modo
de constituição analítica é uma resposta possível a um dos debates per-
manentes a respeito desse campo de problematização: quais os limites do
domínio da moral na vida social? Ao privilegiar a construção desse objeto
a partir da perspectiva das práticas e sentidos elaborados pelos atores em
seus variados relacionamentos, a categoria moral torna-se uma questão
etnográfica. Essa analítica tanto tem por consequência a valorização das
particularidades das variadas construções da moral quanto insere as
possibilidades de estudos comparativos sobre o tema.
c) Nesta direção, cabe ainda evocar a relevância do projeto compa-
rativo da antropologia, intrínseco ao seu próprio desenvolvimento dis-
ciplinar. As repercussões dessa configuração para o estudo da moral são
vastas, mas sobretudo importa assinalar as possibilidades de combate a
eventuais pretensões normativas em relação ao estudo dessa área temá-
tica – como a descoberta de um fundamento universal da moralidade,
por exemplo. Outra consequência do valor fundamental da comparação
em antropologia diz respeito a seu próprio estatuto epistemológico e suas
condições de possibilidade. A comparação é o empreendimento que per-
mite o estranhamento, o contraste e a produção de uma relação que, nos
27 Idem.
28 Como explica o autor: “Reconhecendo-o ou não, há sempre um posicionamento
moral nos objetos que escolhemos, o lugar que ocupamos no campo, o modo que in-
terpretamos fatos, a forma de escrita que elaboramos.” In: FASSIN, Didier, op.cit., p.6.
L S
1 MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
O objetivo é perscrutar possibilidades imaginativas em torno da ques-
tão da moral como fio condutor da pesquisa sociocultural, a moral como
problema sociológico que se abre para um campo de problematizações
desenvolvidas a partir da pesquisa de campo etnográfica da antropologia
e da sociologia. Talvez, entre seus efeitos, este esforço possa desbloquear
um ou dois problemas para as análises em curso ou vindouras, o que já é
pretensão em demasia para um punhado de páginas.
Como seguirei o mote da retomada de algumas notas realizadas quan-
do fui debatedor de uma das sessões do Grupo de Trabalho Sociologia e
Antropologia da Moral, no encontro anual da Anpocs de 2013, o que dará
ao todo uma dinâmica própria de comentários elaboradores originalmente
no contexto da oralidade, gostaria de ressaltar também que o próprio uso
da expressão “possibilidades imaginativas” é igualmente um mote de
trabalho, desta feita, extraído de Norbert Elias.2 É uma maneira como o
autor propõe que busquemos o caminho de uma questão no ato mesmo
de esboçar comentários teóricos capazes de “desbloquear problemas”, e
que possam assim vir a ser úteis, de um ponto de vista heurístico, para a
constituição do campo de estudos e suas pesquisas. Destarte, é desneces-
sário dizer que não se trata de apresentar um modelo teórico, mas sim-
plesmente comentários, pontos críticos que podem ajudar modelizações
realizadas por outros e em outros lugares. Se as estratégias metodológicas
de colegas puderem se beneficiar dos comentários feitos aqui, tornando
acessíveis certos aspectos do problema da moral para a vida social, o texto
encontrará sua justificativa.
Da violência à moralidade
Leonardo Sá ·
que havia feito, no sentido de mobilizar outras leituras possíveis sobre
a questão da moral, passavam pelas discussões de Marcel Mauss7 sobre
reciprocidade e moralidade nas trocas entre parceiros e de Norbert Elias8
sobre os códigos morais guerreiros conformando o ethos e os sentimentos
sociais da honra e da vingança no espaço social. Debates que me acompa-
nham desde longa data, sem falar da forte influência da teoria da prática
em Pierre Bourdieu9 que recebi por meio das pesquisas de César Barreira,10
meu orientador de tese, que enfatizou nos seus estudos sobre pistolagem a
dimensão moral das relações entre mandantes, pistoleiros e vítimas, com
justificativas construídas em torno do campo da honra, dos conflitos e
dos valores. Todavia, mais recentemente, foram as problematizações de
colegas, principalmente de Alexandre Werneck,11 incluindo nessa troca
intelectual um curso que ministramos juntos, Estratégias Discursivas de
Poder e de Competência, no Programa de Pós-Graduação em Sociologia
da Universidade Federal do Ceará (UFC), no primeiro semestre de 2012,
que mexeram com as ideias sobre a moral no limiar das situações sociais
de acusação e justificação de atitudes próprias na relação com os outros.
Outra porta de entrada passa pelo modo como Luís Roberto Cardoso
de Oliveira 12 pontuou a complexa relação entre direito e vida moral nas
sociedades brasileira, canadense (Quebec) e americana. Os temas socioló-
gicos do reconhecimento e da consideração em quadros de reivindicação
de igualdade jurídica em contextos culturais com orientações distintas do
ponto de vista das práticas do direito permitiram, na chave da discussão
sobre as formas da cidadania, uma retomada do que Roberto Cardoso de
Oliveira havia discutido na chave da eticidade argumentativa. Afinal, foi
em um texto seminal sobre a relação entre antropologia e moralidade13
Leonardo Sá ·
Com os autores até aqui citados, pode-se perceber quão árdua é a
tarefa de problematizar a relação que diversos atores sociais mantêm
com normatividades da vida social diante das definições de situação
que mobilizam simbolismos de cunho moral. E quais simbolismos não
seriam mobilizados nessa fronteira da moralidade? Inclusive, pode-se
igualmente problematizar os modos como normatividades são pensadas,
elaboradas pelas práticas sociais de atores posicionados em lugares díspa-
res da vida social, fornecendo assim um importante direcionamento para
o questionamento das relações entre moralidade, direito, lei, nas tensões
das fronteiras entre o legal e o ilegal que marcam a vida social brasileira.
As pesquisas de Kant de Lima 16 sobre as sensibilidades jurídicas e
suas bases culturais e de Luís Roberto Cardoso de Oliveira 17 sobre as
relações entre direitos, insulto moral e apelos por cidadania para a aná-
lise de conflitos sociais oferecem um repertório considerável de desafios
desenvolvidos por orientandos e parceiros de equipe dos dois autores.
De qualquer modo, esse mapa de leituras é o diagrama de minha
trajetória pessoal, e não pretendo que ele seja tomado como a moldura
de referência para os estudos de sociologia e antropologia da moral, nem
como revisão de literatura, mas apenas como menção de um percurso
concreto que pode ser revisitado por outros colegas de modo proveitoso.
Há muitas outras formas de navegar nesse campo de pesquisa, mo-
bilizando autores tão competentes quanto os que foram citados acima e
configurando os problemas por outras plagas e com outras sensibilida-
des. Entre várias, gostaria de destacar os trabalhos de John Comerford,
inspiradores nesse sentido, que inclusive está fazendo uma interessante
revisão de literatura do problema a partir de sua atividade docente e como
membro da rede de estudos da moralidade. Destaca-se o programa da
disciplina Antropologia das Moralidades, ministrada por ele no segundo
semestre de 2013 no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
(PPGAS) do Museu Nacional (MN) da UFRJ.18
Leonardo Sá ·
Pensar bem o caminho da moral
Leonardo Sá ·
capacidades agentivas na relação com as normatividades vigentes, ou
seja, quando garantidas por guardiões de códigos que operam sobreco-
dificando quaisquer tentativas alternativas de leitura da relação com os
sentidos morais objetivados no direito, na legislação e nos regulamentos.
O controle da dispersão da atividade dos sujeitos no campo das prá-
ticas, da variação contínua da significação moral, é o alvo principal da
ação estatal. São os investimentos dos dispositivos morais estatais sobre
o universo subjetivo dos atores sociais que buscarão imprimir marcas
normativas da associação política ao campo de decisão ou de escolhas com
que os atores sociais operam a qualificação de si próprios como avaliadores
de seus recursos morais, com ferramentas de justificação e de acusação,
funcionando no plano das responsabilizações.
Considerações finais
G D. N
1 Esse texto faz parte do projeto Fronteras Morales, Fronteras Sociales: Las Moralida-
des en el Proceso de Articulación de Identidades, Alteridades y Conflictos en Condiciones de
Fragmentación Social, do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas
(Conicet), e contou com financiamento do projeto Moralidades, Fronteras Sociales y Ac-
ceso Diferencial a Recursos en Condiciones de Fragmentación Social da Universidad Nacio-
nal de San Martín (Unsam), assim como do programa “Naturalización y Legitimación
de las Desigualdades Sociales en la Argentina Reciente”, coordenado pelo professor
Alejandro Grimson junto ao Instituto de Altos Estudios Sociales (Idaes) da Unsam.
Agradeço pelo valioso apoio e por preciosos comentários aos membros do Núcleo de
Estudios Sociales sobre Moralidades do Idaes/Unsam, em particular a José Garriga,
e a meus alunos do seminário de doutorado, na Universidad Nacional de Córdoba e
na Universidad de Buenos Aires, Antropología de las Moralidades: Cuestiones Teóri-
cas, Metodológicas y Éticas, com quem foram discutidas várias das ideias deste texto.
Agradeço também a Morita Carrasco e a Andrea Lombraña pelo convite a particiopar
das II Jornadas de Debate y Actualización en Temas de Antropología Jurídica e a Ana
Lía Kornblit e Gabriela Wald pelo convite para a reunião mensal de discussões da Área
de Salud y Población do Instituto Gino Germani, onde foram discutidas de maneira
sistemática várias das propostas teóricas deste texto. Reservo ainda particular gratidão
a Alexandre Werneck e Luís Roberto Cardoso de Oliveira, organizadores deste livro,
e a Jussara Freire, Luiz Antonio Machado da Silva e os outros participantes do gru-
po Sociologia e Antropologia da Moral. Finalmente, gostaria de agradecer de maneira
especial a Silvia Alucín, Lucía de Abrantes, Luciana Denardi, Andrea Flórez Medina,
María Celeste Godoy, Lorena Narciso e Jimena Ramírez Casas por sua colaboração e
suas leituras atentas.
A persistência de uma visão
8 O argumento que nos compete não se refere ao caso específico de trabalhos situa-
dos na tensão entre as esferas jurídica e moral (como vários neste livro). Referimo-nos
em especial aos textos que mesmo quando colocados fora de uma tradição jurídica
explicitamente codificada, concebem e discutem a ação moral sob o modelo de uma
racionalidade que reproduz em suas linhas substanciais a forma canônica recolhida
dentro e por essa mesma tradição.
9 BROWN, Marvin. Working Ethics: Strategies for Decision Making and Organizational
Responsibility. Oakland, EUA: Regent Press, 2000.
10 Vários dos textos compilados em SYKES, Karen (org.). Ethnographies of Moral Reasoning:
Living Paradoxes of a Global Age. Nova York: Palgrave Macmillan, 2008, em particular os
de Shah – SHAH, Alpa. “Corruption Insights into Combating Corruption in Rural Develop-
ment”, pp.117-138 – e de Gregory – GREGORY, Chris. A. “After Words: From Ethos to Pathos”,
pp.189-202 –, podem ser apresentados como ilustrativos deste tipo de enfoque.
11 BOURDIEU, Pierre. El sentido práctico. Buenos Aires: Siglo XXI, 2007.
“Ter códigos”
24 Op.cit.
25 BOURDIEU, Pierre. Razones prácticas: Sobre la teoría de la acción. Barcelona: Ana-
grama, 1997.
26 MALINOWSKI, Bronislaw. Crimen y costumbre en la sociedad salvaje. Barcelona:
Ariel, 1991.
27 Um texto que ilustra de maneira aguda algumas das consequências e os problemas
de um potencial deslizamento dessa classe é MÍGUEZ, Daniel. Delito y cultura: Los códi-
gos de la ilegalidad en la juventud marginal urbana. Buenos Aires: Biblos, 2008.
O certo, ante a qualquer caso, é que o “código” tem se tornado uma ma-
neira de fazer passar o conceito de “cultura” – nessa acepção clássica que
se tem sedimentado no “sentido comum” das sociedades contemporâneas
– sob o radar. Não pretendemos dizer com isso que a maioria dos antro-
pólogos siga pensando e escrevendo como se nada tivesse acontecido em
matéria de debate nos últimos anos. Apontamos para o fato de que, cada
vez que nossa vigilância epistemológica relaxa, fica livre o caminho para
nossos automatismos intelectuais voltarem a configurar o modo como
pensamos as práticas sociais baseados em uma série de supostos implícitos
de inspiração gramatical ou jurídica que interfere com nossa capacidade
de compreender a vida social de forma consistente com os refinamentos
recentes de nossas disciplinas.
Os “culturalismos do código”, como mencionamos, sobre a base de
uma dupla herança normativa, que se pode indagar à gramática e ao direi-
to, seguem argumentando como se a “cultura” pudesse pensar-se como
uma série de “códigos compartidos” seguidos pelos atores e que estariam
conformados por regras e sistemas de regras capazes de estipular os com-
portamentos socialmente aceitáveis. Contudo, a ideia de “comportamento
sujeito a regras” se mostra devedora tanto de um determinismo estrutu-
ral ao qual provavelmente poucos antropólogos ou sociólogos estariam
dispostos a se alinhar quanto daquele pressuposto de uma racionalidade
fundada no cálculo moral que já discutimos. Portanto, se não tem sentido
afirmar que os atores sociais sejam determinados pelas regras, nem sigam
regras prefixadas e incorporadas quando levam a cabo ações moralmente
conformadas: como poderíamos descrever o que estão fazendo? De que
forma poderíamos caracterizar o papel e o estatuto das categorias morais –
e da “cultura” de que fazem parte – no desdobramento de sua vida social?
Para esses fins, gostaríamos de propor um aparelho conceitual e ter-
minológico para evitar esbarrarmos nesses pressupostos inconsistentes
com a sofisticação atingida pela teoria social contemporânea. Seguindo
o dictum de Latour28 a respeito da necessidade de utilizar uma linguagem
de “regra” tem sido entendido por nós na formulação “modalidades de uso socialmen-
te disponíveis.” Nossa ideia de “repertório” tem paralelos com a de Lahire – LAHIRE,
Bernard. El hombre plural: Los resortes de la acción. Barcelona: Bellaterra, 2004 – ainda
que ele próprio se refira principalmente aos repertórios de práticas dos atores sociais
considerados individualmente. E em menor medida tem paralelos com a de Swidler,
mesmo que consideremos problemática sua ideia de agência, que se apresenta como se
fosse em certo sentido “exterior” à cultura.
34 Classe e gênero constituem, sem nenhuma dúvida, as coordenadas mais visíveis
dessa posição, porém não as únicas: a filiação nacional ou étnica, a longitude da resi-
dência (como apresentam Elias e Scotson – ELIAS, Norbert; Scotson, John L. Os estabe-
lecidos e os outsiders: Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade.
Rio de Janeiro: Zahar, 2000) e muitos outros podem ter um peso comparável.
35 Compete recordar que as trajetórias biográficas dos seres humanos não são monó-
tonas e que, em virtude disso, mesmo uma transformação na estrutura de seus cole-
tivos de referência que seja suficientemente drástica para afetar a todos os contem-
porâneos interpelados por um coletivo determinado não os afetará a todos da mesma
forma. Por exemplo, sem dúvida uma crise de emprego generalizada afetará por igual
uma criança, que está fora do mercado de trabalho, um jovem que esteja por nele in-
gressar, um jovem adulto com um emprego e um aposentado saindo do seu.
36 O emprego do plural indica que não estamos apenas nos referindo à “socialização
primária”: cada vez que um ator ingressa em um novo coletivo de referência, deve ser
– e de fato é – socializado em relação aos recursos e usos socialmente disponíveis dos
mesmos por outros atores neles proficientes. Em virtude de isso continuar, o processo
de socialização de um ator em um cenário novo pode revelar muitos dos recursos cru-
ciais, assim como seus usos socialmente disponíveis.
37 Nossa posição teve como ponto de partida original uma revisão substantiva do es-
quema teórico “estrutura-cultura-biografia” introduzido por Hall e Jefferson – Hall,
Stuart; Jefferson, Tony (orgs). Resistance Through Rituals: Youth Subcultures in Post-war
Britain. Londres: Routledge, 1992 – à luz das críticas realizadas por Stanley Cohen
no prefácio à segunda edição de Folk Devils and Moral Panics e da resposta posterior
daqueles. Para uma versão embrionária de nosso argumento, ver NOEL, Gabriel. La
conflictividad cotidiana en el escenario escolar: Una perspectiva etnográfica. San Martin,
Argentina: Unsam Edita, 2009.
38 Visto que a distinção na maioria dos casos é meramente analítica, caberia melhor
falar das dimensões ou aspectos materiais e simbólicos dos recursos.
42 GRIMSON, op.cit.
43 Poderíamos pensar em um continuum decrescente que teria em um dos seus polos
modalidades com um alto grau de sedimentação – e, por isso, amplamente comparti-
das – como a gramática da linguagem articulada, e, em outro, recursos e modalidades
singulares e efêmeras – como o hit musical das discotecas no último verão.
44 Gostaríamos de deixar claro que essa mobilidade não deve ser entendida como re-
ferida somente a movimentos de “ascenso” ou “descenso” na estrutura social, e nem
sequer a “movimentos transversais”. Referimo-nos ao fato mais banal, mas sociolo-
gicamente significativo, de que as pessoas com frequência aprendem novos idiomas,
viajam, conversam, leem, frequentam várias instituições, fazem cursos, olham páginas
da internet, filmes ou programas de televisão, todos pondo à sua disposição recursos
materiais e/ou simbólicos capazes de serem apropriados como recursos incorporados
ou objetivados pelos mesmos atores, assim como mobilizados nas suas formas habituais
de uso nos contextos locais, ou em formas novas exatamente onde estas não existam.
Considerações finais
Após este tour de force teórico e conceitual, gostaríamos de, para finali-
zar, suavizar os excessos de um argumento deliberadamente polêmico,
para propor uma leitura do mesmo como um triplo convite: em primeiro
lugar, deixar para trás, de uma vez e para sempre, uma série de noções
e usos atávicos como o de “código”, que nos atolam uma e outra vez em
pântanos conceituais dos quais, faz tempo, acreditamos ter saído; em
segundo lugar, pôr à prova nossa proposta terminológica e conceitual do
único modo em que uma proposta desta classe pode existir: em relação
com seu valor heurístico como ferramenta de análises;45 e, em terceiro,
evidentemente, continuar pensando em como refinar nossas ferramentas
analíticas, em um empreendimento do qual este texto não é e nem pode
ser, como é costume, nada mais do que um capítulo provisório.
Malu: Enquanto [o aborto] não for legalizado, as infelizes das mulheres es-
tão nas mãos deles mesmo [médicos em clínicas clandestinas]. Todo mundo
condena, diz que é crime, diz que é pecado, mas, na hora, todo mundo
fecha os olhos porque um dia pode precisar. Isso chama-se hipocrisia.
(...) [S]e é necessário, se é uma coisa inevitável, por que não legalizar? Por
que não tornar menos sórdido, mais civilizado?
2 Este texto resulta de uma pesquisa que já contou com o apoio da Fapesp, do CNPq e
de bolsistas da Universidade de São Paulo (USP).
3 Evidentemente, há várias correntes no feminismo, mas é possível notar uma linha
geral de luta pelos direitos das mulheres.
4 Sobre o feminismo do período, ver, por exemplo: CORRÊA, Mariza. “Do feminismo
aos estudos de gênero no Brasil: Um exemplo pessoal.” Cadernos Pagu, n.16, 2001, pp.
13-30; GREGORI, Maria Filomena: Cenas e queixas: Um estudo sobre mulheres, relações
violentas e a prática feminista. São Paulo: Anpocs/Paz e Terra, 1993; MORAES, Maria
Lygia Quartim. A experiência feminista dos anos setenta. Araraquara, SP: Editora Unesp,
1990; PONTES, Heloisa. Do palco aos bastidores: O SOS Mulher e as práticas feministas
contemporâneas. Dissertação (mestrado), Unicamp, 1986; SARTI, Cynthia. “Feminismo
e contexto: Lições do caso brasileiro.” Cadernos Pagu n.16, 2001, pp.31-48.
5 Explorei mais esses temas gerais de Malu mulher em ALMEIDA, Heloisa Buarque de.
“Gênero e sexualidade na mídia: de ‘Malu’ a ‘Mulher’.” Trabalho apresentado no 31o
Encontro Anual da Anpocs, Caxambu (MG), outubro de 2007; —————. “Trocando em
miúdos: Gênero e sexualidade na TV a partir de ‘Malu mulher’.” Revista Brasileira de
Ciências Sociais (RBCS), vol.27, n.79, 2012, pp.125-137. Autores como Euclydes Mari-
nho e Armando Costa escrevem os episódios mais politizados, e autores como Manoel
Carlos mantêm roteiros mais conservadores. Escreveram também para o seriado Le-
nita Plonczynski e Renata Pallotini, Walter Negrão, Marta Góes, Aguinaldo Silva, Doc
Comparato, João Carlos Motta, Flavio Marinho, Luiz Carlos Maciel e, a convite, Odete
Lara, Leilah Assumpção, Marina Colasanti e Roberto Freire.
6 CORRÊA, op.cit.
7 Essas reuniões lhe forneceram não apenas material para Malu, mas também para
a minissérie Quem ama não mata (1982). Entrevista com o autor em Memória Globo.
Autores: Histórias da teledramaturgia, Vols. 1 e 2. São Paulo: Globo, 2008, pp.338-339.
9 ALMEIDA, Heloisa Buarque de. Telenovela, consumo e gênero: “Muitas mais coisas.”
Bauru/São Paulo: Anpocs/Edusc, 2003; —————. “Gênero e sexualidade na mídia: de
‘Malu’ a ‘Mulher’.” Trabalho apresentado no 31o Encontro Anual da Anpocs, Caxambu
(MG), outubro de 2007; —————. “Trocando em miúdos: Gênero e sexualidade na TV a
partir de ‘Malu mulher’.” Revista Brasileira de Ciências Sociais (RBCS), vol.27, n.79, 2012,
pp.125-137; —————. “Pedagogia feminista no formato da teledramaturgia.” In: Micelli,
Sérgio (org.) Cultura e sociedade (Brasil e Argentina). São Paulo: Edusp, 2014.
10 BROOKS, Peter. The Melodramatic Imagination: Balzac, Henry James, Melodrama, and
the Mode of Excess. New Haven: Yale University Press, 1976; XAVIER, Ismail. O olhar e a
cena. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
Para chegar a este que foi o quarto episódio, vale lembrar o que veio antes,
e como os espectadores foram se acostumando com a performance questio-
nadora e pedagógica da personagem. No primeiro episódio (“Acabou-se o
que era doce”), os espectadores entram em contato com a história de Malu
(Regina Duarte), acompanhando sua tentativa de conversar com o marido,
Pedro Henrique (Dennis Carvalho), para tentar renovar um casamento
que lhe parece ter se tornado uma relação formal e falsa, tendo perdido
seu sentido. Para ele, “casamento é assim mesmo”, mas a protagonista
busca uma relação mais verdadeira. Os conflitos nesse episódio mostram
cenas em que ela tenta conversar e esclarecer, diante do desinteresse do
marido. Uma dessas cenas é recorrente na memória sobre o seriado, como
aquela em que Pedro Henrique joga pela janela do apartamento o texto
datilografado dado a ele poucos minutos antes por Malu. A discussão se
torna cada vez mais acalorada até acabar em uma agressão física, que o
espectador entende, pelos diálogos, não ser a primeira. Mas agora Malu
avisa: é o fim; não quer aturar as agressões, quer se opor a uma dupla moral
sexual que supõe “natural” que seu marido “dê umas transadinhas por
aí”. Ela não acredita mais, esta não é mais uma relação verdadeira, ela
precisa “respirar” e “sobreviver”.
Os dois negociam a separação diante inclusive da influência dos pais
– os dela aconselhando sobre seus direitos, a mãe de Pedro Henrique ten-
tando incluir na discussão a herança de seu falecido marido. Conseguir
o desquite significa para Malu inclusive impor-se diante de sua sogra, ao
vincular o pedido dela à sua vontade de definir formalmente a separação.
Na conversa entre Malu e sua amiga Vilma (Natália do Vale), depois do
acontecido, novamente algumas frases reforçam ideias centrais reiteradas
em todo o seriado:
13 Não cabem nesse formato de artigo descrições mais detalhadas do seriado. Algumas
imagens estão disponíveis na internet em sites como Youtube.
14 Analisei mais longamente este episódio em ALMEIDA, op.cit.
15 A menção aqui é à antropóloga Ruth Cardoso, que foi inclusive consultora para a
produção do seriado.
Pois o quarto episódio da série trata, como já vimos, de uma jovem que
busca o aborto voluntário em uma clínica clandestina, com a ajuda da
protagonista. Como já explorado, essa história parece basear-se na ex-
periência pessoal ou pelo menos de geração e de mesma classe social
dos autores, pois relata uma trajetória bem comum quanto à forma e o
Jô: Não, imagina! É uma amiga minha que está com esse problema.
Malu: É um problema! [Jô baixa a cabeça] Eu conheço ela?
Jô: Não, não conhece ela. É a Alaíde. Nem te falei nunca dela. É lá da facul-
dade. Está desesperada. Coitada. [Jô senta na cama, junto à Malu, cabisbaixa]
18 Idem.
Malu: Eu fui mãe com a tua idade. Eu tinha 19 anos. O que é que é? Você
já está com 18?
Jô: Mas era diferente. Você já estava casada, você queria ter um filho e o
teu marido já estava formado, trabalhava.
Malu: O quê? A Elisa nasceu três semanas antes do Pedro Henrique se
formar. Foi aí que ele começou a vender apartamento.
Jô: E foi também, segundo o que você mesma me contou, que começou
toda a frustração porque ele deixou de batalhar em economia, que era o
que ele curtia, para sustentar a mulher e o filho. Ah, não, muito obrigada.
Sabe o que é, Malu? Eu não posso obrigar Jorginho a abandonar o curso
de arquitetura, que é a paixão da vida dele, para arranjar um emprego e
amanhã ser um cara infeliz. Ah, não, de jeito nenhum.
Malu: Faz sentido, está certo. Faz sentido. De qualquer forma, é tão com-
plicado... Um cafezinho para levantar?
E você pensa que para mim é fácil? Você pensa que eu também não queria
ter o meu canto, ter um cara dividindo a vida comigo? Os meus filhotes
brincando com as galinhas no quintal, tapetinho no banheiro... Só que
Jô: Me larga, me larga, porque eu não sou cachorra. Sou sua filha e o senhor
não é dono de mim. [Se solta com força das mãos dele.] Me larga, me larga!
Moacir: Mas o que foi que ele fez com você?
Jô: O Jorginho não fez nada comigo. Nada que eu não quisesse. Eu não sou
a menininha indefesa que o senhor quer que eu seja, não! Não sou uma pa-
naca que nem minhas irmãs, que o senhor transformou em escravas, não.
Não, senhor! Eu tenho vontade própria. O meu mundo não é seu mundo.
22 O público saberá apenas ao longo dos episódios posteriores que seu Moacir e Jô
reataram.
23 Foi apenas em 2013 que duas novelas (o remake de Saramandaia e a nova produção
Amor à vida) mencionaram o aborto sem considerar a mulher que aborta uma “vilã” do
mal, ou uma mocinha arrependida. No seriado Mulher, exibido entre 1998 e 1999, as
médicas protagonistas socorrem sem julgar mulheres que abortaram, mas se declaram
contra o aborto, e reforçam mensagens de prevenção e anticoncepção, aceitando, no
entanto, os abortos nos termos da lei vigente, como por exemplo, em caso de estupro.
24 TÁVOLA, Artur da. “Maluranda, malurandinha.” O Globo, Cultura, 19 de junho de
1979, p.38, que, no título, faz referência ao seriado Ciranda cirandinha, exibido em 1978.
25 “Malu Mulher provoca polêmica.” Folha de S.Paulo, Ilustrada, 17 de junho de 1979,
p.56.
J C
No início dos anos 1970, o Alto Paranaíba, em Minas Gerais, estava longe
de ser uma região isolada, pois fica próxima ao eixo de transportes ligando
São Paulo a Brasília e Goiânia. Mas também estava longe de ser uma re-
gião pujante. Nunca havia tido grande destaque em termos econômicos.
Caracterizava-se então por cidades pacatas e uma área rural formada por
fazendas que dividiam suas áreas entre as chamadas “terras de cultura”,
mais acidentadas e férteis, nas quais se produzia milho, feijão, mandioca,
criavam-se porcos e galinhas e se concentrava o gado na estação seca; e
as áreas de cerrado, no topo plano das chapadas, pouco férteis, que ser-
viam para coletar frutos, lenha e forneciam pasto para o gado na estação
chuvosa. Nessas fazendas moravam agregados e meeiros, por meio de
acertos com os donos, estabelecendo relações bastante personalizadas
e próximas. Desde os anos 1960, porém, isso já estava mudando, com
1 A pesquisa que deu origem a este texto faz parte do projeto Sociedade e Economia do
Agronegócio, coordenado por Beatriz Heredia, Moacir Palmeira, Sergio Leite e Leonilde
Medeiros, que contou com apoio financeiro da Fundação Ford e do CNPq. Contei tam-
bém com apoio da Faperj. Sobre o projeto, ver HEREDIA, Beatriz; Palmeira, Moacir;
Pereira Leite, Sérgio. “Sociedade e economia do ‘agronegócio’ no Brasil.” Revista Bra-
sileira de Ciências Sociais (RBCS), vol.25, n.74, 2010, pp.159-176.
os fazendeiros pressionando pela saída de meeiros e agregados, e com a
maior especialização das fazendas na pecuária.2
Mas a “grande transformação” veio no início dos anos 1970, com os
projetos de incentivo do governo à agricultura moderna, tecnificada e em
larga escala nas terras até então pouco valorizadas dos cerrados. Planas e
mecanizáveis, porém de baixa fertilidade, essas terras puderam começar a
ser aproveitadas para a agricultura a partir da incorporação de tecnologias
desenvolvidas pela pesquisa agrícola oficial, que viabilizaram a correção
dos problemas de fertilidade e o desenvolvimento de variedades adap-
tadas das principais culturas comerciais. Com esses projetos, gestados e
implementados pela tecnoburocracia dos governos estadual e federal, e
apoiados por acordos internacionais com o Japão, as terras das chapadas
foram vendidas pelos antigos donos de fazendas por um preço bastante
baixo aos novos empreendedores agrícolas atraídos para a região, ou para
a implantação de projetos oficiais de colonização dirigidos a agricultores
considerados “vocacionados” para a agricultura comercial em larga escala.
E houve uma forte injeção de crédito subsidiado para plantar nos cerrados.
Esses agricultores e empreendedores, que em poucos anos derrubaram
o cerrado e o substituíram por imensas plantações, inicialmente de arroz
e soja, depois também de milho, café, trigo, hortaliças, eram, em geral,
do Paraná, do Rio Grande do Sul e de São Paulo. Houve uma considerável
heterogeneidade entre os que foram atraídos para as oportunidades aí
abertas, mas uma importante parcela deles era formada por pequenos
agricultores. Uma parte deles, descendentes dos imigrantes italianos e
alemães dos estados do Sul. Mais numerosos, porém, foram os descenden-
tes de famílias de italianos, espanhóis e japoneses, trazidos para trabalhar
como “colonos” nas grandes fazendas de café de São Paulo, que ao longo
do tempo e das gerações adquiriram pequenas áreas, participando a partir
dos anos 1940 da expansão rumo ao norte do Paraná.3
Outros agentes também se juntaram nesse processo: empresas, gran-
des proprietários rurais mineiros e paulistas, comerciantes e profissionais
liberais locais, agrônomos paulistas e mineiros. Com isso tudo, nos anos
2 LINHART, Ana Maria Galano. “Êxodo rural, fazendas e desagregação.” Estudos Socie-
dade e Agricultura, n.19, 2002.
3 MONBEIG, Pierre. Pioneiros e fazendeiros em São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1984;
CANCIAN, Nadir. Cafeicultura paranaense, 1900-1970. Curitiba: Grafipar, 1981.
4 Nos anos 2000, Patrocínio, município que acabou por se tornar o centro da eco-
nomia cafeeira do Alto Paranaíba, havia se tornado o segundo maior produtor de café
arábica do Brasil (por um momento chegou a ocupar o primeiro lugar) e a região se
tornou a segunda maior região produtora do maior estado produtor de café.
5 NOVAES, Roberta. Gente de fora: Vida e trabalho dos assalariados do café em uma re-
gião de Minas Gerais. Rio de Janeiro: e-Papers, 2011.
6 Cabe observar ainda que, durante a colheita do café, muita gente da própria re-
gião, moradores das cidades ou da roça que ao longo do ano vivem dos mais variados
trabalhos (construção civil, comércio, trabalhos domésticos, estudantes, pequenos
sitiantes etc.), mobilizam-se para trabalhar temporariamente na atividade cafeeira,
aproveitando a oportunidade de uma renda adicional.
Para muitos dos que foram ali reunidos por essa dinâmica, a acelerada
criação e circulação da riqueza marca um forte contraste com uma si-
tuação anterior relativamente mais simples e rústica (ainda que muitos
assinalem a fartura da “vida na roça”). Para quase todos, também, a vida
anteriormente, ali ou nas respectivas regiões de origem, se passava mais
entre conhecidos, vinculados por laços de parentesco e vizinhança re-
lativamente bem estabelecidos. Não que tais laços tenham deixado para
trás sua importância – há muitas evidências do contrário –, mas a atual
situação implica o encontro, de certo modo súbito, de mundos sociais
estranhos, antes apartados geográfica e socialmente. Outro contraste
recorrentemente assinalado é entre os tempos do trabalho braçal na roça
– experiência comum a muitos e geralmente a forma de trabalho mais evo-
cada como qualificativo moral – e a atual mecanização e quimificação das
tarefas agrícolas, que em grande medida dispensam o esforço físico (a não
Ambição ou sossego
Exibição ou simplicidade
Aventura ou prudência
Não é surpresa que as relações familiares sejam uma das áreas mais “in-
vestidas” com significados e polêmicas morais. Em diversas ocasiões
em que conversamos com os cafeicultores, a figura do “pai de família”
foi ressaltada. Muito do que foi dito pelos cafeicultores homens e mes-
mo pelas mulheres destacou a importância do pai como exemplo moral.
Em certo sentido, um pai realizado é aquele que reconhece seu próprio
exemplo nos filhos, e mesmo nos netos. A exemplaridade paterna, entre
os cafeicultores com quem conversei, aponta para aspectos como o gosto
pelo trabalho (em especial agrícola, no caso dos filhos homens), a dose
“certa” (sempre discutível) de espírito de aventura e de prudência, de
ambição e de sossego. E também a exemplaridade enquanto organiza-
dor da cooperação da família, identificando talentos, atribuindo tarefas,
ajudando filhos, filhas e genros de acordo com critérios de merecimento
e direcionando investimentos.
Na perspectiva desses cafeicultores, um pai exemplar terá sempre
uma família exemplarmente unida. A colaboração entre pai, mãe, fi-
lhos/irmãos-irmãs e eventualmente os maridos-cunhados-genros é
invariavelmente enfatizada nas conversas dos cafeicultores. Apontam
Nas cidades da região, ao menos nas mais importantes, não foi difícil iden-
tificar personalidades “conhecidas” por todos, do sorveteiro da esquina
ao taxista, dos políticos aos dirigentes associativos e gerentes de bancos.
São grandes produtores, muito bem-sucedidos, e inseridos com destaque
na alta sociedade local. São homens que foram insistentemente mencio-
nados como exemplos quando a equipe de pesquisa chegou à região. Sobre
eles, circulam muitas narrativas, e todos na cidade dão a impressão de
conhecê-los intimamente. Nas rodas de conversa no clube, nas festas de
aniversário, nas esquinas, no comércio, nas conversas nos restaurantes,
comenta-se às vezes em detalhes a vida desses personagens “públicos”: a
sua última viagem, a sua situação financeira, o desempenho dos filhos, a
sua relação com os trabalhadores, suas rivalidades, simpatias e antipatias,
sua vida privada ou a história de seu enriquecimento.
A impressão geral é de ambiguidade em relação a tais figuras. Nos
casos que tenho em mente, são valorizados como pessoas que vieram de
baixo e ascenderam pelo trabalho e pela inteligência. Mas sempre surgem
rumores de operações financeiras nebulosas, dívidas excessivas que vão
recair sobre os filhos ou comentários sobre o luxo desmedido das casas,
o hábito de andar de avião próprio, os contatos em Brasília, as viagens
dos filhos ao exterior, as rivalidades com outros grandes produtores, sua
ambição desmedida ou sua simplicidade surpreendente (mas seria ver-
dadeira e sincera?). A discussão moral sobre dívidas e os riscos que elas
trazem parecem, em especial, ser um foco de grande interesse público.
As incessantes conversas sobre tais personalidades públicas, nas mais
variadas circunstâncias, são momentos de intenso comentário moral,
um exercício de polêmica, reflexão e elaboração de moralidades. Diante
10 Além das revendas de insumos, outro foco importante nas relações dos cafeicul-
tores com o mundo da tecnologia são as revendas de tratores e máquinas. Ligadas a
grandes empresas do ramo, essas revendas são de propriedade de empresários locais,
do mesmo modo que as revendas de insumos. Como comercializam equipamentos
muito caros, é comum que a compra seja feita a crédito. Talvez por isso mesmo os
vendedores dessas lojas de máquinas parecem ter a fama de estarem sempre muito
atentos às informações que correm a respeito de sua clientela ou clientela potencial.
Um ex-funcionário de uma dessas lojas me explicou que, além das informações oficiais
que constam do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC), sempre sabem muito, por meio
de suas conversas cotidianas, sobre a vida dos clientes e clientes potenciais – sua vida
financeira, a situação de suas propriedades e, ao que parece, muito mais.
Clubes e associações
Introdução
1 Uma versão anterior deste texto foi publicada como “Dilemas morais de amor: Con-
trole, conflitos e negociações em terreiros de umbanda.” Dilemas: Revista de Estudos de
Conflito e Controle Social, vol.6, n.4, 2013, pp.581-602. Nesta versão, desenvolvemos
pontos daquele texto de forma mais aprofundada.
2 Usamos quase sempre o termo “mágico-religioso”, em vez de falar somente de
magia, por questão conceitual e empírica, ao considerar que não “existe religião sem
magia, nem magia que não contenha pelo menos um grão de religião”, conforme já
havia ponderado Lévi-Strauss – ver LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem.
Campinas: Papirus, 1989, p.247.
3 A categoria “trabalho” tem muitos significados na umbanda, mas é como sinôni-
mo daquilo que em antropologia se entende por ato mágico-religioso, que ela é mais
recorrente no cotidiano dos terreiros. É esse também o sentido que mais importa neste
texto.
muitos terreiros de umbanda Brasil afora. Este estudo, entretanto, teve
campo empírico bem preciso, concentrando-se em terreiros situados no
município de Limoeiro do Norte, no interior do Ceará.4
O interesse pela relação entre a prática mágico-religiosa e a dimensão
da moralidade surgiu quando buscávamos compreender, de maneira am-
pla, a dimensão da experiência mágico-religiosa nos terreiros de umbanda
do referido município e, num dado momento, percebemos o quanto as
concepções de moralidade, sua diversidade, conflitos e polêmicas morais
permeavam tal experiência, especialmente quando se tratava da realiza-
ção de ritos que visavam resolver problemas de amor.
Desde os estudos de Roger Bastide a recorrência a ritos mágico-re-
ligiosos com finalidades de cura, amor e dinheiro fora constatada nos
templos das religiões afro-brasileiras. São muitos os estudos que merecem
respeito,5 em diferentes épocas e com diferentes campos empíricos,
que mencionam o fato, nem que seja de maneira passageira. No que diz
respeito ao nosso campo de pesquisa, os trabalhos de amor, juntamente
com os trabalhos de cura, destinados a resolver problemas de saúde, e os
trabalhos de destranca, que visam resolver problemas financeiros, são
indubitavelmente os mais procurados.
Porque, muitas vezes, talvez não seja nem correto, mas a gente quer tanto
uma pessoa que por isso as pessoas recorrem a esses meios na tentativa
de trazer a pessoa para perto da gente. Não sei nem se isso é bom. Não sei
se seria bom influenciar as pessoas usando outros meios; já que a pessoa
não ama, por que a gente usaria métodos, outros métodos, para trazê-la
e para fazer com que essa pessoa fique do meu lado? (Diálogo realizado
em julho de 2005.)
Vemos que Sofia, em sua fala, suscita para si mesma algumas inter-
rogações do tipo bom e mau, quando diz “Não sei nem se isso é bom”, e
certo ou errado, ao dizer que “talvez não seja nem correto”. Essas questões
lhe trouxeram dúvidas que podem ser traduzidas nas perguntas: impe-
dir ou não a liberdade de escolha do outro? Tenho esse direito? É certo
fazer isso? Em que valores posso me basear para tomar essa decisão?
Assim como Sofia, muitas das pessoas que vão ao terreiro sob a mesma
condição, isto é, não se considerando umbandistas e desejando apenas uma
Entrevistador: Alguma hora você chama isso [que ela vinha contando] de
trabalho de amor?
De trabalho…?
Entrevistador: Sim, fazer um trabalho de amor…?
Trabalho? Não digo bem trabaaalho… porque assim, olhe: muita gente já
chegou para mim, algumas pessoas assim próximas, já chegou para mim
12 NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
14 DOUGLAS, op.cit.
15 CARVALHO, José Jorge de. “A religião como sistema simbólico: Uma atualização
teórica.” Série Antropologia, n. 285. Brasília: DAN/UnB, 2000, p. 4. Disponível (on-
-line) em: http://dan.unb.br/images/doc/Serie285empdf.pdf
16 Idem.
A Pombajira, chega uma pessoa aqui: “Eu quero Fulano.” Ela não quer
nem saber se é casado, o que é, o que não é (…). Pombajira não está nem
aí não. Ela quer saber se está ganhando o dela! (Diálogo realizado em
junho de 2005.)
17 NEGRÃO, op.cit.
18 FERRETTI, op.cit.
19 Cambono, cambone ou cambona designa a pessoa que auxilia o pai de santo quan-
do este está inconsciente, sob o transe de possessão.
21 QUEIROZ, Marcos Alexandre de Souza. “Dos saberes das bruxas: Relações entre
feminino e esquerda na jurema.” In: Assunção, Luiz (org.). Da minha folha: Múltiplos
olhares sobre as religiões afro-brasileiras. São Paulo: Arché, 2012, pp.151-189.
22 CHAVES, Kelson Gérison Oliveira. “Umbanda: saberes e tradição mágico-religio-
sa.” In: Assunção, Luiz (org.). Da minha folha: Múltiplos olhares sobre as religiões afro-
-brasileiras. São Paulo: Arché, 2012, pp.109-149.
Esse Zé Malandro é o seguinte: têm pedras [terreiros] por aí, não vou
dizer aqui, mas têm pedras [terreiros] que ele usa realmente o negócio,
está entendendo? Quer dizer, ele é mais esse tipo de coisa assim… Mas
têm terreiros que preservam. Ele chega e pede, é só não dar. Porque fica
ruim, digamos, numa gira uma pessoa consumir drogas, essas coisas.
Quer dizer, está dando má influência. Só que ele vem pedindo, mas é
assim… a forma dele, o jeito dele pedir droga, pedir cocaína, pedir, va-
mos dizer, maconha, essas coisas todas (…). Ele é malandro, assim, ele
é malandro mesmo (…), no sentido assim de malandragem (…). Agora é
o seguinte: de trabalho, ele é pesado no trabalho! (Diálogo realizado em
fevereiro de 2005.)
L M
Introdução
1 Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada anteriormente como paper no
colóquio Race and Citizenship Now and Then, Princeton University, 22 e 23 de feve-
reiro de 2013.
2 Esse projeto foi concebido originalmente por Laura Moutinho, Simone Monteiro,
Cathy Cohen, Omar Ribeiro Thomaz, Rafael Diaz e Elaine Salo. A pesquisa foi desen-
volvida por nove diferentes centros de estudos e pesquisa: Universidade de São Pau-
lo (USP) (São Paulo), Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos
(Clam) do Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (Uerj) (Rio de Janeiro), Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap)
(São Paulo), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) (Rio de Janeiro), Center for Research
on Gender and Sexuality (CGRS) da San Francisco State University (SFSU) (São Fran-
cisco), Center for the Study of Race, Politics and Culture (CSRPC) (Chicago), African
Gender Institute (AGI) da University of Cape Town (UCT) (Cape Town), WITS e OUT
(Joanesburgo). A pesquisa foi realizada por Laura Moutinho (coordenação geral), Si-
mone Monteiro (coordenadora local, Rio de Janeiro), Julio Simões (coordenador local,
São Paulo), Elaine Salo (coordenadora local, Cape Town), Brigitte Bagnol (coordena-
dora local, Joanesburgo), Cathy Cohen (coordenadora local, Chicago) e Jessica Fields
e alunos de diferentes cores/raças, gênero e orientação sexual nos três
diferentes países onde a pesquisa foi realizada, e o projeto individual
de pesquisa intitulado Entre a exclusão, o reconhecimento e a negociação:
(Homos)sexualidade e raça em uma perspectiva comparada no Brasil e África
do Sul.3 São questões importantes, uma vez que informam a natureza di-
ferenciada que orientou as pesquisas realizadas. O projeto multicêntrico
internacional se concentrou nas condições materiais de vida de jovens
entre 18 e 24-26 anos, entendidas na interface entre as ideias de raça/ra-
cismo, sexualidade e gênero. Os cuidados com a saúde eram outro ponto
de fundamental importância e tiveram como foco a prevenção das DSTs/
Aids. A pesquisa foi realizada obedecendo a tempos e dinâmicas diferen-
ciadas entre fins de 2005 e 2009 no Brasil (Rio de Janeiro e São Paulo),
África do Sul (Cape Town e Joanesburgo) e EUA (São Francisco e Chicago).
Em termos metodológicos, foi definido coletivamente que cada equipe
realizaria um trabalho etnográfico em locais de sociabilidade juvenil que
agregassem os diferentes marcadores sociais da diferença componentes da
pesquisa. Em seguida, foram realizadas 24 entrevistas em profundidade
seguindo as histórias de vida de frequentadores dos espaços mapeados
e pesquisados. Por fim, foram aplicados 48 questionários em cada uma
das cidades como forma de acessar informações complementares e criar
parâmetros de controle do corpus de informações colhido na parte mais
etnográfica da pesquisa.
O fato de a coordenação da pesquisa ter sido localizada no Brasil,
bem como os diferenciais acadêmicos, nacionais e locais relativos à com-
preensão das ideias de raça/racismo, gênero, sexualidade, miscigenação,
nação e desigualdade social, foi objeto de uma primeira reflexão anterior.4
Tratou-se, de fato, de uma pesquisa na qual a conexão entre o acadêmico
e o político se mostrou porosa. Essa característica não apenas se expres-
sa nas parcerias estabelecidas com ONGs. A politização desses temas
5 Como dito anteriormente, a coordenação local desta pesquisa foi realizada por
Elaine Salo. Mario Ribas foi coordenador de campo do trabalho. Fizeram parte da equi-
pe de pesquisadores: Blessing Masiyakurima, Cleo de Vos, Dale Choudree, Deborah
Diedericks, Julie Aaboe, Martha Qumba e Phyllida Cok. Pedro Lopes e Marcio Zambo-
ni sistematizaram os dados etnográficos e as entrevistas em profundidade produzidas
pela equipe de Cape Town sob a orientação de Laura Moutinho.
6 Ver MOUTINHO, Laura. Razão, “cor” e desejo: Uma análise comparativa sobre relaciona-
mentos afetivo-sexuais “inter-raciais” no Brasil e África do Sul. São Paulo: Editora Unesp,
2004a; —————. “‘Raça’, sexualidade e gênero na construção da identidade nacional:
Uma comparação entre Brasil e África do Sul.” Cadernos Pagu, n.23, 2004b, pp.55-88.
7 Entre os alunos vinculados a este projeto, tiveram especial destaque as seguintes
pesquisas desenvolvidas: Marcio Zamboni, Homossexualidade e geração em camadas al-
tas da cidade de São Paulo; Valéria Alves de Sousa, Raça, gênero, sexualidade e cultura no
bloco afro Ilú Obá De Min; Pedro Lopes, Negociando deficiências: Sobre identidades, sub-
jetividades e corporalidades entre pessoas com “deficiência intelectual”; Leandro Souza,
10 Ver CORREA, Mariza. “Sobre a invenção da mulata.” Cadernos Pagu, n.6-7, 1996,
pp.35-50; —————. “O mistério dos orixás e das bonecas: Raça e gênero na antropo-
logia brasileira.” Etnográfica, vol.4, n.2, 2000, pp.233-266; MCCLINTOCK, Anne.
Couro imperial: Raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas: Editora Uni-
camp, 2010; BRAH, Avtar. “Diferença, diversidade, diferenciação.” Cadernos Pagu,
n.26, 2006, pp.329-365; CRENSHAW, Kemberle. “Demarginalizing the Intersection
of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist
Theory and Antiracist Politics.” University of Chicago Legal Forum, n.140, 1989, pp.139–
167; —————. “Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence
against Women of Color.” Stanford Law Review, vol.43, n.6, 1991, pp.1241–1279; PISCI-
TELLI, Adriana G. “Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de
migrantes brasileiras.” Sociedade e Cultura, vol.11, n.2, 2008, p.263-274, entre vários
outros; MOUTINHO, op.cit., 2004a e 2004b, entre outros; STOLCKE, Verena. “Sexo
está para gênero assim como raça para etnicidade?.” Estudos Afro-Asiáticos, vol.20,
1991, pp.101-119; FACCHINI, Regina; França, Isadora Lins. “De cores e de matizes: Su-
jeitos, conexões e desafios no Movimento LGBT brasileiro.” Sexualidad, Salud y Socie-
dad, vol.1, 2009, pp.33-53; FRANÇA, Isadora L. Consumindo lugares, consumindo nos lu-
gares: Homossexualidade, consumo e produção de subjetividade na cidade de São Paulo. Tese
(doutorado), IFCH/Unicamp, 2010; SIMÕES, Júlio Assis; França, Isadora Lins; Macedo,
Marcio. “Jeitos de corpo: Cor/raça, gênero, sexualidade e sociabilidade juvenil no cen-
tro de São Paulo.” Cadernos Pagu, n.35, 2010, pp.37-78.
11 PISCITELLI, op.cit.
12 Para uma primeira reflexão a respeito ver MOUTINHO; Carrara, op.cit., 2010a e 2010b.
13 CARRARA, Sergio. Tributo a Vênus: A luta contra a sífilis no Brasil, da passagem do
século aos anos 1940. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1996. Ver também sobre o tema
MOUTINHO; Carrara, 2010a e 2010b.
14 Ver MOUTINHO, op.cit., 2004a e 2004b.
A África do Sul do pós-apartheid traz muitas fraturas, ainda que o país seja
frequentemente citado como o que possui a “mais progressista Consti-
tuição do mundo” – tendo assombrado todos pela forma como conduziu
a reconstituição do tecido social após o regime racista autoritário. Espe-
cialmente, a partir da polêmica experiência com a Comissão de Verdade e
Reconciliação (CVR), que fez com que vítimas e algozes se encontrassem.18
A postura rumo à reconciliação do país, que acompanhou a libertação
de Nelson Mandela, encarcerado por 27 anos na prisão de Robben Island,
Esta noite eu falo com todos os sul-africanos, black e white (...) Um homem
white, cheio de preconceito e ódio, veio ao nosso país e cometeu um ato
tão abominável que agora toda a nossa nação está à beira do desastre.
Uma mulher white, de origem africânder, arriscou sua vida [nos infor-
mando] para que pudéssemos levar este assassino à justiça. (...) Somos
uma nação de luto.19
21 Ver TUTU, Desmond. No Future Without Forgiveness. Nova York: Doubedlay, 1999.
22 OBOE, Annalisa. “The TRC Women’s Hearing as Performance and Protest in the
New South Africa.” Research in Africa Literatures, vol.38, n.3, 2007, pp.60-76.
23 MOUTINHO, Laura. “Sobre danos, dores e reparações: The Moral Regeneration Mo-
vement, controvérsias morais e tensões religiosas na ordem democrática sul-africana.”
In: Trajano Filho, Wilson (org.). Travessias antropológicas: Estudos em contextos africa-
nos. Brasília: ABA, 2012, pp.275-296.
24 ROSS, Fiona. “Speech and Silence: Women’s Testimony in the First Five Weeks of
Public Hearings of the South African Truth and Reconciliation Commission.” In: Das,
Veena; Kleinman, Arthur; Lock, Margareth; Ramphele, Mamphela; Reynolds, Pamela
(orgs.). Remaking a World: Violence, Social Suffering and Recovery. Berkeley: University
of California Press, 2001, pp. 250-279; Ross, Fiona. “La elaboración de uma ‘memoria
nacional’: La Comisión de Verdad y Reconciliación de Sudáfrica.” Cuadernos de Antro-
pología Social, n.24, 2006; OBOE, op.cit.
25 ROSS, Fiona. Bearing Witness: Women and the Truth and Reconciliation Commission in
South Africa. Londres: Pluto, 2003.
26 OBOE, op.cit.
27 Idem.
28 Idem.
29 KROG, Anjie. Country of my Skull. Cape Town: Random House South Africa, 1998.
30 DERRIDA, op.cit.
31 MOSS, Laura. “‘Nice Audible Crying’: Editions, Testimonies, and ‘Country of My
Skull’.” Research in Africa Literatures, vol.37, n.4, 2006, pp.85-104.
32 CRAPANZANO, Vincent. Waiting: The Whites of South Africa. Nova York: Random
House, 1985.
33 Ver RIBEIRO, Fernando Rosa. Apartheid e democracia racial: South Africa and Brazil
in contrast. Tese (doutorado), Universidade de Utrecht, 1995; COETZEE, John M. “The
Mind of Apartheid: Geoffrey Cronjé, 1903.” Social Dynamics, vol. 17, n.1, 1991, pp.1-35.
34 Na África do Sul, townships são áreas urbanas, em geral com serviços básicos pre-
cários, definidas racialmente no período do apartheid como “non-white”, ou seja, a
apesar de não ter problemas com outras raças, eu não teria, por exem-
plo, uma parceira white nem indian, porque detesto falar inglês o tempo
inteiro. Eu adoro a minha língua [xhosa] e meus amigos sabem que eu
tenho limites para falar inglês.
Whites ainda têm mais oportunidade que nós africans, por causa da língua.
Por exemplo, no ano passado eu me inscrevi na UCT [University of Cape
Town], mas não tive êxito porque o meu inglês não estava de acordo com
os padrões. Minha primeira língua é xhosa, e eu amo meu xhosa (...). Eles
não olharam para a performance acadêmica, mas para o inglês. Entende
o que eu quero dizer? Whites têm mais vantagens por causa da língua e
do dinheiro. Eles falam inglês em casa, têm internet nos seus quartos e
recursos. (...) Eles falam inglês dia e noite e, quando vão a uma entrevista,
isso não é um problema. (...) Essas pessoas têm dinheiro, eles podem ir
a hospitais particulares a qualquer hora. Podem estudar no exterior, se
quiserem. (…) Eles têm melhores oportunidades de emprego por causa da
língua e do acesso à informação. São expostos a outras coisas na infância.
37 Essa articulação sem dúvida não é uma exclusividade sul-africana. O escritor Lima
Barreto, que em suas internações desejava negociar sua classificação de cor (branco
ou mulato) e profissão (escritor ou funcionário público), se sentiu “humilhado” quan-
do foi classificado como mulato: “Desses que tantas vezes manifestavam a fraqueza da
loucura mestiça – a psicose dos degenerados”, como afirma SCHWARCZ, Lilia Moritz.
“O homem da ficha antropométrica e do uniforme pandemônio: Lima Barreto e a in-
ternação de 1914.” Sociologia & Antropologia, vol.1, n.1, 2011, p.124.
38 Anne, que como disse anteriormente vem acompanhando minhas pesquisas há
anos, fez a seguinte “observação de campo”: “Nós nos demos muito bem e rimos mui-
to durante a entrevista. Em geral, as entrevistas foram confortáveis e descontraídas.”
Ela realizou três entrevistas em que deveria percorrer a “história de vida” dos entre-
vistados, seguindo um roteiro longo previamente discutido entre todos os participan-
tes deste amplo projeto. Sobre si mesma, ela fez ainda o seguinte registro: “Em termos
de renda eu provavelmente seria classe média (renda de professor de inglês), mas em
termos de histórico familiar ‘branco pobre’.” A categoria “branco pobre” (poor white)
esteve na base da construção do apartheid.
39 RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
40 VELHO, Gilberto. Subjetividade e sociedade: Uma experiência de geração. Rio de Ja-
neiro: Zahar, 1986.
41 Ver SIMÕES; França; Macedo, op.cit. Sobre o tema ver também MOUTINHO, Laura.
“Negociando com a adversidade: Reflexões sobre ‘raça’, (homos)sexualidade e desi-
gualdade social no Rio de Janeiro.” Estudos Feministas, vol.14, n.1, 2006, pp.103-116;
MOUTINHO, Laura; Simões, Julio. “‘Convenções’ de gênero, cor/raça, e idade em lu-
gares de sociabilidade homoerótica em São Paulo.” Trabalho apresentado no XIV Con-
gresso Brasileiro de Sociologia (SBS), Rio de Janeiro, 2009.
46 SALO, Elaine. “Coconuts Do Not Live in Townships: Cosmopolitanism and its Fai-
lures in the Urban Peripheries of Cape Town.” Feminist Africa, vol.13, 2010, pp.11-21.
M C
1 Este texto contém elementos de minha tese de doutorado, defendida sob a orientação
de José Sergio Leite Lopes. Ver CIOCCARI, Marta. Do gosto da mina, do jogo e da revolta: um
estudo antropológico sobre a construção da honra em uma comunidade de mineiros de carvão.
Tese (doutorado), PPGAS, MN, UFRJ, 2010. Agradeço a José Sergio e a Moacir Palmeira,
membros da minha banca, a discussão em torno de aspectos da honra dos trabalhado-
res. Versões distintas do texto, contendo elementos comuns, foram publicadas em pe-
riódicos no Brasil e na Argentina: CIOCCARI, Marta. “Risco, riso e respeito: Notas sobre
a construção da honra entre os trabalhadores nas minas de carvão no Brasil e na Fran-
ça.” Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, vol.3, n.6, 2011, pp.17-27; —————.
“Aspectos da construção da honra entre mineiros de carvão em uma comunidade no sul
do Brasil.” Revista Theomai: Estudios sobre Sociedad y Desarollo, n.24, 2012, pp.141-165.
diferentes “regiões morais”, nos termos de Robert Park,2 estruturam as
relações cotidianas, compondo distintas arenas de disputa simbólica, que
atravessam as diferentes dimensões da vida. Para melhor se compreender
esse universo, é importante lembrar ainda a definição usada pelo mineiro
Jango para falar da atividade exercida nos subterrâneos escavados sob a
cidade: “A mina é uma caixa de segredos, que ninguém consegue assim
descobrir o significado.” Essa fala, um tanto enigmática, sugere uma
mitificação do ofício exercido nas entranhas da terra e igualmente uma
das formas pelas quais a mina é percebida pelos trabalhadores. Logo
ficaria mais evidente para mim que o próprio “encantamento da mina”,
para usar a linguagem de Lucas,3 integra a construção de uma forma de
honra, a “grande honra” da profissão, que ganha novos contornos após o
desaparecimento da mina de subsolo.
Esses aspectos foram emergindo em minha pesquisa de mestrado
(2002-2004), mas especialmente na investigação de doutorado (2005-
2010), quando realizei um estudo etnográfico em Minas do Leão, no Rio
Grande do Sul, e em Creutzwald, na Lorena Francesa. Nos dois contextos,
as minas de subsolo foram fechadas na última década: em 2002, no caso
brasileiro; em 2004, no caso francês. Tratava-se efetivamente da “morte
da mina” e dos relatos envolvendo decepção e nostalgia em torno da de-
saparição desse projeto familiar que atravessou gerações de mineiros. Em
minhas análises, venho sugerindo que uma espécie de “grande honra”
da profissão foi sendo desenhada historicamente, oferecendo sustenta-
ção à imagem de heroísmo que acompanha os mineiros de subsolo em
diferentes lugares do mundo. Misturam-se à “grande honra”, múltiplas
formas de “pequena honra”, ancoradas na identificação com o métier, a
partir do “orgulho” do trabalho bem feito, das “artes” da malandragem,
assim como em pertencimentos políticos, sindicais, familiares, religiosos,
esportivos etc.
15 LEITE LOPES, José Sergio. A tecelagem dos conflitos de classe na cidade das chaminés.
São Paulo/Brasília: Marco Zero/Editora UnB, 1988.
16 O tema das equipes de futebol ligadas às minas de carvão foi explorado em CIOCCA-
RI, Marta. “Mina de jogadores: O futebol operário e a construção da ‘pequena honra’.”
Cadernos Arquivo Edgard Leuenroth, vol.16, n.28, pp.76-115, 2011; —————. “Football in
the Rio Grande do Sul Coal Mines.” In: Fontes, Paulo e Holanda, Bernardo Buarque de
(orgs.). Football, Work and Politics in Brazil. Londres: Hurst, 2014.
17 BAILEY, Frederick George. Gifts and Poison: The Politics of Reputation. Oxford: Basil
Blackwell, 1971, p.21.
18 Para BAILEY, op.cit., p.4, a reputação não é uma qualidade que a pessoa possui,
mas a opinião que as outras pessoas têm dela.
19 GAUTHERON, op.cit.
20 FONSECA, Claudia. Família, fofoca e honra: Etnografia de relações de gênero e violência
em grupos populares. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2000.
21 HERZFELD, Michael. “Honour and Shame: Problems in the Compative Analyses of
Moral Systems.” Man (New Series), vol.15, n.2, 1980, pp.339-351.
22 HERZFELD, 1980, pp.348-349. Atenta a isso, procuro manter as categorias nati-
vas, explicitando os sentidos nos diferentes contextos.
As artimanhas do jogo
32 Sobre a dimensão lúdica, ver HUIZINGA, Johan. Homo ludens: O jogo como elemento
da cultura. São Paulo: Perspectiva, 1971. Acerca do caráter agonístico, ver CALLOIS,
Roger. Les jeux et les hommes. Paris: Gallimard, 1967; COMERFORD, John. Como uma fa-
mília: Sociabilidade, territórios de parentesco e sindicalismo rural. Rio de Janeiro: Relume-
-Dumará, 2003.
33 PALMEIRA, Moacir. Apostas eleitorais: Notas etnográficas. Rio de Janeiro: Museu Na-
cional, UFRJ, mimeo, 2006.
34 Op.cit.
35 Tal como os “artistas” citados por LEITE LOPES, op.cit.
36 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
37 HOGGART, op.cit.
O sagrado e o dom
38 Sobre o aspecto da “vergonha” nas classes populares, ver DUARTE, Luiz Fernando
Dias. “Pouca vergonha, muita vergonha: sexo e moralidade entre as classes trabalha-
doras urbanas.” In: Leite Lopes, José Sérgio (org.). Cultura e identidade operária. Rio de
Janeiro: Marco Zero, 1987.
39 Para um aprofundamento dessa questão, ver CIOCCARI, Marta. “Do ofício, do san-
gue e do sagrado: Uma análise sobre a religiosidade numa comunidade de mineiros
de carvão.” Campos, vol.11, n.2, 2010, pp.35-57; —————. “Intercâmbios entre vivos e
mortos numa cidade industrial.” Habitus, vol.10, 2013, pp.263-82.
42 Op.cit.
43 Homem cuja mulher comete o adultério.
48 PITT-RIVERS, op.cit.
49 Op.cit.
50 Ver FOSTER, George. “The Dyadic Contract: A Model for the Social Structure of a
Mexican Peasant Village.” In: Potter, Jack M.; Diaz, May N.; Foster, George M. (orgs.).
Peasant Society: A Reader. Boston, Little Brown & Company, 1967, pp.213-230; FOSTER,
George. “La sociedad campesina y la imagem del bien limitado.” In: Wagley, Charles;
Bartolomé, Leopoldo José; Gorostiaga, Enrique E. (orgs.). Estudios sobre el campesinato
latinoamericano: La perspectiva de la antropología social. Argentina: Periferia, 1974.
51 Duarte examinou diferenças entre religiosidade por atribuição, de uma confissão her-
dada dos ascendentes, e por aquisição, refletindo escolha ou adesão. Ver DUARTE, Luiz
Fernando Dias. “‘Ethos’ privado e modernidade: O desafio das religiões entre indivíduo,
família e congregação.” In: Duarte, Luiz Fernando Dias; Heilborn, Maria Luiza; Barros, My-
riam Lins de; Peixoto, Clarice (orgs.). Família e religião. Rio de Janeiro: Contracapa, 2006.
53 Ver PALMEIRA, Moacir. “Política e tempo: Uma nota exploratória.” In: Peirano,
Mariza (org.). O dito e o feito: Ensaios de antropologia de rituais. Rio de Janeiro: Relume-
-Dumará, 2001.
54 MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70, 2001.
“Pois toda espécie de feras, aves e répteis se doma e tem sido domada
pelo gênero humano; a língua, porém nenhum dos homens é capaz
de domar; é mal incontido, carregado de veneno mortífero.”
Tiago, 3, 7-8
“Na boca de quem não presta, quem é bom não tem valor.”
Folclore popular, trecho de Lapa, interpretada por Clementina de Jesus
1 DUNBAR, Robin. Grooming, Gossip, and the Evolution of Language. Boston: Harvard
University Press, 1996.
2 WERT, Sarah R.; Salovey, Peter. “A Social Comparison Account of Gossip.” Review of
General Psychology, vol.8, n.2, 2004, pp.122-137.
seleção natural, segundo a qual se trata de uma estratégia comportamen-
tal vencedora, entre outras constitutivas da natureza humana:
3 MCANDREW, Frank T. “A sedução da fofoca.” Mente e Cérebro, Ano XVI, n.194, 2009,
pp.36-43.
6 Quando pertencem ao grupo, aqueles que são os alvos dos mexericos passam a
sofrer retaliações em função de estarem se afastando das normas estabelecidas e, nesse
sentido, as fofocas são o primeiro passo para um processo social que pode levar ao
estigma e mesmo ao seu isolamento dentro do grupo. No caso de se referir àqueles
que não fazem parte do grupo, as fofocas depreciativas funcionavam como forma de
reiterar a identidade dos estabelecidos e confirmar a execração pública dos outsiders.
7 ELIAS, Norbert. O processo civilizador, vol. 2: Formação do Estado e civilização. Rio de
Janeiro: Zahar, 1993, p.213.
8 A ideia de redes de interdependência apresenta uma salutar flexibilidade para des-
crever estes diversos formatos interacionais. Além da noção de posição dinâmica dos
agentes nas redes, elas podem ser pensadas na diacronia e sincronia históricas, consti-
tuídas pelos equilíbrios flutuantes de tensões, que se apresentam mais equilibrados ou
tensionados, de acordo com “o retrato momentâneo” em que se encontram. Com esta
noção, são passíveis de descrição as redes diversas que constituem as mais diferentes
instituições e seus variados processos interacionais, ocorram estes num departamento
de uma empresa, numa sala de aula, numa repartição pública, num bar, numa sala de
estar etc. As fofocas se exprimem e são veiculadas como narrativas do cotidiano que se
12 Ibid., p.124.
13 Ibid., p.125.
14 Ibid., p.124, grifos do original.
15 Ibid., p.122.
16 Ibid., p.125.
18 Pelo que sei, o primeiro sociólogo a esboçar as ideias que constituem tal postulado
foi Weber em seu Economia e sociedade – WEBER, Max. Economia e sociedade, Vols. 1 e 2.
Brasília: Editora UnB, 1994 [1910] –, no entanto, ficou famoso na pena de Merton e foi
utilizado por outros sociólogos, dentre os quais o próprio Elias e também Bourdieu –
ver BOURDIEU, Pierre. Razões práticas. Campinas: Papirus, 1996.
19 THOMAS, William Isaac; Thomas, Dorothy Swaine. The Child in América: Behavior
Problems and Programs. Nova York: Knopf, 1928.
20 MEAD, George Herbert. Mind, Self, and Society. Chicago: The University of Chicago
Press, 1967 [1934].
Vivências interacionais
21 SIMMEL, Georg. On Individuality and Social Forms (Selected Writings). Chicago: The
University of Chicago Press, 1971.
Vários aspectos podem ser indicados para apontar o fato de que os jogos
contêm as estruturas mínimas que constituem as narrativas e que estas
são, em essência, um tipo complexo de jogo que pode incluir em suas
tramas vários outros tipos de jogos. Poderíamos pensar numa escala de
complexidade que vai do jogo à narrativa, passando, neste percurso, pelas
inúmeras tramas que compõem esta última e que se constitui por uma
miríade de possibilidades de jogos.
Trabalho aqui com a ideia segundo a qual a sociabilidade humana
apresenta em essência o formato do jogo ou, ainda, que o elemento lúdico
constitui a forma básica da sociabilidade. Esta ideia é formulada expli-
citamente por Simmel. Dos impulsos eróticos aos interesses práticos,
das questões religiosas aos assuntos referentes ao comércio, à guerra, à
defesa etc. estamos sempre diante de formas de associação entre agen-
tes humanos que se organizam solidariamente e/ou em contraposição a
outros. Os conteúdos podem ser os mais variados possíveis, mas a forma
que a sociabilidade presente nestes processos assume é aquela típica do
jogo, que para mim é apenas um modelo restrito de narrativa. Simmel é
o primeiro sociólogo que destaca a forma da sociabilidade como sendo
tipicamente lúdica. Outros irão segui-lo, ainda que acrescentem a estas
formulações, até então inusitadas, ideias também originais.
Mead nos permite pensar a passagem dos jogos sociais para as tramas
e consequentemente para as narrativas do cotidiano. Nele é possível cons-
tatar, por exemplo, a relação entre processos interacionais e as questões
lúdicas. Para ele, os regimes interacionais que constituem o self de cada
agente são primeiramente ensaiados durante a infância nas diversas brin-
cadeiras em que as crianças assumem diversos papéis sociais diferentes:23
pai, mãe, médico, cavaleiro, monstro, herói etc. Esses papéis são aqueles
adotados pelos diversos actantes que compõem as narrativas sociais e
humanas. As brincadeiras (“play”) transformam-se em jogos (“games”)
23 Apesar de Mead ter enunciado com clareza a noção de papel social bem antes de
Parsons, este último figura como o responsável pela elaboração deste conceito, devido
a dois fatores: em função do fato de ele fazer desta ideia amplo uso em sua caudalo-
sa obra e, é claro, pelo simples desconhecimento por parte dos sociólogos da obra de
Mead. Ver MEAD, op.cit.
Conclusões
4 Margaret Mead, nas etnografias clássicas dos Arapsh e de Samoa, faz uma das pri-
meiras descrições etnográficas de arranjos familiares e residenciais que tendem a apa-
gar o papel de um só casal na criação e educação dos filhos. MEAD, Margaret. Coming of
age in Samoa: a psychological study of primitive youth for western civilization. Nova York:
Morrow Quill Paperback, 1961. Para etnografias sobre fosterage em diversos contex-
tos, consultar: na África Ocidental, GOODY, Esther. Parenthood and Social Reproduction:
Fosterage and Occupational Roles in West Africa. Cambridge: Cambridge University Press,
1982; na Oceania, CARROLL, Vern. Adoption in Eastern Oceania. Honolulu: University
of Hawaii Press, 1970; e entre os esquimós, GUEMPLE, Lee. Inuit Adoption. Ottawa: Na-
tional Museum of Man, Mercury Series, Canadian Ethnology Service, Paper n.47, 1979.
5 A categoria “casa” aparece como “espaço moral”. Utilizo como referência DAMAT-
TA, Roberto. A casa e a rua: Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro:
Rocco, 1985; DUARTE, Luiz Fernando Dias; Gomes, Edilaine de Campos. Três famílias:
Identidades e trajetórias intergeracionais nas classes populares. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2003; CABRAL, João de Pina. O homem na família: Cinco ensaios de antropologia.
Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2003; MARCELIN, Louis. “A linguagem da casa
entre os negros do recôncavo baiano.” Mana: Estudos de Antropologia Social, vol.5, n.2,
1999, pp.31-30.
6 Vale observar que não é apenas na Zona da Mata Mineira que a categoria filho de
criação ganha contornos muito distintos daqueles que caracterizam as modalidades
de fosterage ou circulação de crianças. No estudo sobre os povos ribeirinhos de Parus
na Amazônia, Mark Harris chama atenção para o desconforto que sente em traduzir a
expressão filhos de criação por adopted children: HARRIS, Mark. Life on the Amazon: The
Anthropology of a Brazilian Peaseant Village. Oxford: Oxford University Press, 2000. Ver
também a esse respeito VIEGAS, Suzana de Matos. Terra calada: Os Tupinambá na Mata
Atlântica do Sul da Bahia. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.
7 HEREDIA, Beatriz. Formas de dominação e espaço social: A modernização da agroindústria
canavieira em Alagoas. São Paulo: Marco Zero, 1988, p.116; MOURA, Margarida Maria.
Os deserdados da Terra. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988, pp.81-82; FRANCO, Maria
Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Unesp, 1997.
8 GALANO, Ana Maria. “Êxodo rural, fazendas e desagregação.” Estudos Sociedade e
Agricultura, n.19, 2002, pp.6-39. Ao se dedicar à história de constituição de uma fa-
zenda, a autora destaca: “Além desses trabalhadores [agregados], o casal [proprietário
da fazenda] sempre teve outras pessoas, sob suas ordens, para executarem diferentes
tarefas. Não se trata aqui de participação eventual, sazonal, no processo produtivo na
roça ou em atividades dentro de casa. Através da criação, dos filhos de criação, Dona
Maria Fernanda e o marido sempre tiveram criados (...) A prática de utilizar ‘filhos de
criação’ como força de trabalho certamente apresentou vantagens do ponto de vista
da constituição do patrimônio e da acumulação real do capital. Até uma certa ida-
de, enquanto as crianças não puderam trabalhar, o casal teve de fornecer meios de
vida sem nenhuma contrapartida dos ‘filhos de criação’. Mas, desde que começaram
a trabalhar, aqueles filhos de criação continuaram a ter acesso apenas a meios de vida
necessários para sua reprodução e não à totalidade do valor gerado por eles. Os pais
adotivos guardavam para si e apara os seus filhos biológicos o excedente acumulável
que lhes permitiu não só reproduzir-se como produtores, mas também capitalizar
sua exploração. (...) o padrão de consumo para os criados foi calculado para que se
reproduzissem como trabalhadores sob a continuada dominação da família que os
acolheu. (...) Do ponto de vista dos que cedem terras em parceria a agregados, há
consideráveis vantagens em se ter meeiros que foram filhos de criação. No sistema de
obrigações e direitos, que regem tradicionalmente as relações de dominação pessoal
da morada, as obrigações devidas ao proprietário não se apoiam, neste caso, apenas
na retribuição pelo acesso à terra. O filho de criação deve mais: sua própria sobrevivên-
cia inicial; a comida, a roupa, a escolaridade etc. ao longo de muitos anos. Quantas
vezes não terão escutado o relato aparentemente pitoresco da criancinha alimentada
com leite de cabra? [Em nota de rodapé:] ‘Um dia apareceu aqui uma mulher com uma
criancinha de dez dias que a mãe deu (...) não quis a criança, enjeitou e eu não queria.
Mas eu peguei assim mesmo e criei essa menina com leite de cabra, não foi? Foi na ou-
tra fazenda. Ainda não tinha leite naquela época. Ele arranjou uma cabrita e a menina
criou mamando na cabrita. Eu punha ela em cima da mesa, a cabrita, e trazia a me-
nina embrulhadinha no pano e punha debaixo da cabrita e segurava no pé da cabrita.
Ela mamava. A menina chorava e a cabrita berrava. É assim que eu criei ela. E é uma
menina muito sadia, graças a Deus, até hoje’.” (Grifos da autora, op.cit.: pp.23-27.)
A dádiva da vida11
14 BOURDIEU, Pierre. La distinción: Criterios y bases sociales del gusto. Cidade do Mé-
xico: Taurus, 2002.
15 A própria pesquisa em questão dependeu de minhas relações familiares nas cida-
des. Meus avós maternos, minha mãe e minhas tias são nativos de Bagre Bonito e lá
permanecem, algumas delas em Barão de São João Batista. Foi por intermédio de duas
tias, Neuza e Janice, e de minha mãe que consegui ser recebida “dentro de casa” e
realizar entrevistas de cunho tão íntimo. Aproveito a ocasião para agradecer-lhes. Em
outra pesquisa, em equipe, realizada na Zona da Mata Pernambucana – ver L’estoile,
Benoît de; Sigaud, Lygia (orgs.). Ocupações de terra e transformações sociais. Rio de Ja-
neiro: Editora FGV, 2006, pp.67-76, os coordenadores tocam nesse ponto: “A própria
possibilidade da pesquisa dependia da existência dessas relações pessoais preexisten-
tes [por meio de Lygia Sigaud e de Afrânio Garcia], essa constatação permite colocar em
evidência o quanto a produção de um saber etnográfico passava pela mobilização e o
desenvolvimento de uma rede de relações pessoais com os pesquisados.”
16 Além das relações sociais, o “nome de família” define também as relações políticas
e econômicas. Na política, há gerações duas famílias revezam entre si a administração
municipal, tanto em Barão de São João Batista, quanto em Bagre Bonito. Economica-
mente, o “nome de família” funciona como uma espécie de “crédito.” Sobretudo em
Bagre Bonito, o comércio é condensado pelas populares vendas, espécies de mercearias
que vendem um pouco de tudo e suprem a ausência de lojas especializadas. As relações
de compra e venda nessas vendas são pautadas pelo “crédito familiar”; tudo é vendido
a prazo, sem qualquer garantia formal de pagamento (cheque, cartão de crédito, pro-
missória etc.). O dono da venda anota o que foi comprado num pequeno caderno, popu-
larmente chamado de caderneta, que fica com o próprio comprador. Nem toda família
possui conta na venda e sua respectiva caderneta, apenas aquelas aptas pelo julgamento
dessa “economia moral”. Em Barão de São João Batista, apesar da maior diversificação
comercial, o mesmo fenômeno é observado. As famílias possuem várias cadernetas: da
venda, do açougue, de lojas de roupas etc.
17 Com exceção de dois casos, o de Laura e o de Seu José Mario. Os pais de criação de
Laura não tiveram filhos consanguíneos e antes de “adotar” (esse é o termo que a famí-
lia utiliza) Laura, haviam “adotado” outras duas crianças, “já crescidinhas”, mas que
tão logo entravam na adolescência, iam embora. “Não dá certo adotar criança grande,
já vem com a cabeça formada” e quando crescem “dão na louca de ir embora”, expli-
cou-me sua mãe “adotiva”. Para não repetir com Laura o mesmo destino dos casos
anteriores, seus pais explicaram-me que resolveram duas coisas: “Ter um documento
que não deixa [a pessoa ‘adotada’] fazer o que quer” e “adotar uma criança que não
tem a cabeça formada”. Assim, com quatro meses de idade, Laura foi acolhida e re-
gistrada “no” nome da família, como enfatiza sua mãe “adotiva”: “Ela está no nosso
nome, com papel no nome da gente, não pode fazer o que quer; deve satisfação a nós.”
Com relação ao caso de Seu José Mario, 70 anos, também acolhido com quatro meses,
ele conta que possui “dois registros”: um no nome da “mãe verdadeira” e outro no
nome da família de criação. Este último fora realizado quando ele estava com aproxi-
madamente 10 anos, em função de “uma ajuda que o governo resolveu dar para quem
tivesse sete filhos”. Como a família de criação tinha apenas seis filhos, seu pai de criação
resolveu registrá-lo em seu nome para obter o benefício. Contudo, é o “primeiro regis-
tro” que Seu José Mario utiliza. Além disso, o “segundo registro” não lhe proporcionou
participação na herança deixada pelos pais de criação.
18 MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a dádiva: Forma e razão da troca nas sociedades ar-
caicas.” In: Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
19 CAILLÉ, Alain. “Nem holismo nem individualismo metodológicos: Marcel Mauss e
o paradigma da dádiva.” Revista Brasileira de Ciências Sociais (RBCS), vol.13, n.38, 1998,
pp.5-38.
Ainda que a família afirme não haver diferença entre filho de sangue e
filho de criação, a socialização de um e de outro é bastante diferente. A dá-
diva da vida é lembrada durante todo o processo de “criação”: “Se não fosse
por nós, talvez nem vivo você estaria.” O tratamento dos filhos de criação
acontece de modo desigual porque “é assim mesmo, é filho de criação”.
Os filhos homens [da família de criação] estavam todos casados. Eles [pais
de criação] precisavam de alguém pra fazer companhia para elas [filhas
consanguíneas].
Pesquisadora: O senhor ficava tomando conta delas?
Isso, tomando conta.
Pesquisadora: Como o senhor era tratado?
Como filho! Como filho! Do mesmo jeito, do mesmo jeito. Dormia no
mesmo quarto que as meninas, igual irmão mesmo.
Pesquisadora: Até que série o senhor estudou?
Ah, eu estudei só até a terceira [série, atual quarto ano]. Por causa do ser-
viço. O serviço era muito! Porque a gente tinha que moer cana para fazer
rapadura.
Pesquisadora: E você acha que a sua mãe, quando te adotou, ela já pensava
nisso [se fazia questão que fosse uma menina porque queria uma companheira]?
Isso, isso. Sempre pensou assim, porque, na cabeça dela, ela pensava o
seguinte: como ela já tinha problema [de saúde], se ela arrumasse um
menino a tendência seria ele ajudar no serviço do homem, do pai. Então
ela pensou assim: “Eu vou dançar nessa! [risos] Então eu quero arrumar
uma menina, porque uma menina vai me ajudar.” Entendeu? Ela pensou
nela, você tá entendendo? E nessa o meu pai também entrou... (Laura)
21 BOURDIEU, Pierre. “A economia dos bens simbólicos.” In: Razões práticas. Campi-
nas: Papirus, 1996, p.142.
22 No sentido conferido por Cabral – CABRAL, João de Pina. “A difusão do limiar: Mar-
gens, hegemonias e contradições.” Análise Social, vol.29, n.153, 2000, pp.865-892. Se-
gundo o autor, a contradição diz respeito primordialmente ao embate dinâmico de
princípios que geram conflitos e não à incoerência, no sentido de falta de harmonia ou
de convergência de princípios. Nesse sentido, estamos falando mais de contraposições
do que de “contradições”.
Pesquisadora: Dona Maria, o que a senhora acha que acontece depois que
a gente morre?
Eu não sei...
Pesquisadora: A gente vai para o céu?
Quem merece vai, né? Eles falam que quem não merece vai para o infer-
no, mas eu acho que não é assim... Eu acho que o inferno é aqui mesmo.
Pesquisadora: É? E por que a senhora acha isso?
Eu acho que o inferno é aqui embaixo mesmo. [silêncio] Porque é aqui que
a gente sofre, né? [silêncio] (...)
Vera entra na conversa: Engraçado, eu acho que pelo fato da minha mãe
ser muito amiga da mãe delas, elas não sentiram nenhuma falta da mãe.
Se a Maria sentiu alguma falta, ela não deixou transparecer, né, Maria?
Porque eu nunca notei ela chorando.
Pesquisadora: A senhora chora, dona Maria?
Dona Maria apenas meneia afirmativamente a cabeça. Silêncio. Inter-
rompendo-o, Vera: Quando os meus filhos, os meus netos vão embora,
elas choram muito. (Maria e Vera)
Bom... Muitos falam, né? Céu existe, agora, inferno... eu não sei, não.
(Sebastião)
Acredito. Você pode ter certeza: se você é uma pessoa boa, que ajuda as
outras pessoas, se você faz tudo direitinho, você vai para o céu.
Pesquisadora: Mas e quem é ruim, que não faz tudo direitinho?
Aí vai para o inferno, né? (Dona Fiinha)
Olha, Priscila... Eu acredito, sim, que existe céu. Mas eu acho que inferno
não existe, não. (Alessandro)
É... Eu acredito assim: a gente tem que fazer a nossa parte. Não adianta
achar que Deus vai levar para o céu se a gente não faz a nossa parte.
Pesquisadora: E quem não faz a sua parte?
Ah, esse daí vai voltar até cumprir tudo aqui. (Seu José Mario)
Eu acredito que exista céu, eu não acredito que exista inferno. Você sabe
por quê? Você imagina bem: você morre e vai para o céu. Tem inferno
pior do que esse: você lá no céu e conviver sabendo tudo de errado que
você fez lá na Terra? Você se martiriza. Pra que ir para o inferno? Precisa?
O inferno pior é a consciência. (...)
Pesquisadora: Você já ouviu a frase: “O inferno é aqui”?
Já ouvi muito!
Pesquisadora: Você concorda?
Concordo quando a pessoa tem consciência disso. Porque a maioria das
pessoas que se inferniza ou que inferniza as pessoas, elas não se cons-
cientizam disso.
Pesquisadora: Nos seus momentos difíceis você acha que está vivendo
o “seu” inferno?
Isso. Sempre pensei assim. Quando eu ouvia coisas que me machucava,
eu pensava: “Meu Deus do céu! Não existe inferno pior do que isso, não.
Não precisa existir.” É igual eu tô te falando: eu acho que eu tenho que
ajudar todo mundo, senão eu vou ser castigada. Eu penso assim. Eu penso
nisso o tempo todo. “Meu Deus, e se eu negar ajuda e realmente a pessoa
estiver precisando?” Eu sou assim. Eu acho que isso aí é um martírio!
[risos] É um martírio! (Laura)
23 CAILLÉ, Alain. “Sacrifice, don et utilitarisme: Notes sur la théorie du sacrifice, sui-
vies d’une nouvelle conclusion.” In: Sacrifice(s): Enjeux cliniques. Paris: L’Harmattan,
1997.
24 MAUSS, Marcel; Hubert, Henri. Sobre o sacrifício. São Paulo: Cosac Naify, 2005. p.106.
25 Voltarei a esse ponto quando abordar a questão do reconhecimento.
Submissão e reconhecimento
Eu sou bom com todo mundo, por isso que todo mundo gosta de mim!
(Sebastião)
30 BOURDIEU, op.cit.
31 Tive acesso a dois casos de rompimento com a família. Nos dois, o acolhimento não
havia se dado na primeira infância; a menina tinha 8 anos e o menino, 10. Também nos
dois casos, os filhos de criação se mudaram de cidade após o rompimento.
Na minha cunhada eu vou só uma vez por semana, na minha sogra é que
eu vou todo dia.
Pesquisadora: Então você não consegue ficar parada.
Consigo, não. Ainda tenho a minha casa! Eu chego 3h30 da manhã.
Pesquisadora: Você vem de ônibus?
Os filhos de criação sabem da “missão” que lhes cabe e o quão cara ela
lhes sai para ser cumprida, porém é algo do qual não podem escapar, pois
vai ao encontro daquilo que disposicionalmente valorizam e perseguem. O
discurso autorreferido “todo mundo gosta de mim” ou “os outros pisam,
pisam, pisam, pisam e eu estou sempre feliz” é a reprodução do discurso
social depois da total servidão à família. Esta reprodução consiste na
exaltação máxima de quem logrou atingir o reconhecimento social que
tanto almejava e, consequentemente, a “distinção” que lhe cabe. Por
outro lado, sustentar e manter essa “missão” os faz sofrer enormemente
porque, conscientemente, os limita e aprisiona. Desse modo, ainda que
haja consciência e certo connaissance de soi, não há muita “margem para
manobras”.
Considerações finais
O discurso dos pais de criação “se não fosse por nós, talvez nem vivo você
estaria” é o fio condutor da relação de dominação e servidão (involuntá-
ria) que liga família, filhos de criação e sociedade. Quanto à família, esse
discurso justifica o privilégio de gozar sem culpa da servidão daquele que
lhes deve “a vida”. Quanto aos filhos de criação, explica a constituição do
sentimento de dívida e a origem da servidão. Por fim, quanto à sociedade,
esse discurso cria a expectativa coletiva da retribuição.
A Z
1 Gupta, Akhil; Ferguson, James (orgs.). Culture, Power, Place: Explorations in Critical
Anthropology. Durham e Londres, Duke University Press, 1999.
laço social é criado entre pessoas ou grupos pelo dom em seus três mo-
mentos (dar, aceitar, retribuir), pela obrigação livre de retribuir a dádiva
aceita.2 Esse seria o laço social a acompanhar os seres humanos desde
seus primórdios até hoje, no mundo contemporâneo, constituindo o que
Simmel chamou “sociabilidade”3 ou forma-jogo, na qual o que importa
é a interação, ou seja a conversa, a gentileza e o dom que as acompanha,4
enquanto outros autores, incluindo Habermas, falaram do “mundo da
vida”. Simmel diferencia a sociabilidade das outras formas de interação
(a troca econômica, a dominação, o conflito) e reserva a ela o que resulta
da interação pela interação sem objetivos mercantis ou de poder. É a
própria interação que importa.5 Tais formas sociais se passam no terreno
do implícito, do moralmente aceito como natural. É sociologia de rede
social, constitutiva das sociedades, das arcaicas até as pós-industriais,
mas é também sociologia da ação prática, pois a dádiva e a sociabilidade
não estão no registro da norma escrita. A teoria da reciprocidade e da
sociabilidade são, pois, sociologia da moralidade básica, nem sempre
consciente, das relações humanas, que se aprende no longo processo de
socialização pela fala ou pelo exemplo observado entre pessoas em inte-
ração. Por isso é vida e não sistema.6
São Paulo.” Vibrant, vol.7, 2010; GRILLO, Carolina Christoph. Coisas da vida no crime:
Tráfico e roubo em favelas cariocas. Tese (doutorado), PPGSA, UFRJ, 2013.
11 ZALUAR, Alba. Integração perversa: Pobreza e tráfico de drogas. Rio de Janeiro: Edi-
tora FGV, 2004.
12 CHAMBLISS, William J.; Mankoff, Milton. Whose Law, What Order: A Conflict Ap-
proach to Criminology. Nova York: Wiley, 1976.
13 ZALUAR, op.cit.
16 MATZA, op.cit.; JANKOWSKI, Mártin Sánchez. Islands in the Street: Gangs and Ame-
rican Urban Life. Berkeley: University of California Press, 1991.
17 BURKITT, Ian. Social Selves: Theories of Self and Society. Londres: Sage, 2008.
18 BOURDIEU, Pierre. Esquisse d’une théorie de la pratique. Paris: Droz, 1972, pp.189-
221; —————. “Interest, Habitus and Rationality.” In: BOURDIEU, Pierre; Wacquant,
Loïc. An Invitation to Reflexive Sociology. Chicago: The University of Chicago Press. 1992;
ELIAS, Norbert, O processo civilizador, vol. 2. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
20 Idem.
21 PEREIRA, Luis Fernando A. Meninos e lobos: Trajetórias de saída do tráfico na cidade
do Rio de Janeiro. Tese (doutorado), IMS, Uerj, 2008.
22 WEXLER, Bruce E. Brain and Culture: Neurobiology, Ideology, and Social Change.
Cambridge, EUA: MIT Press, 2006.
23 BEATO FILHO, Cláudio; Alves, Bráulio F.; Tavares, Ricardo. Crime, Police and Urban
Space: Working Paper Number CBS-65-05. Oxford: Centre for Brazilian Studies, University
of Oxford, 2005; ZALUAR, Alba; Ribeiro, Ana Paula A. “Teoria da eficácia coletiva e vio-
lência: o paradoxo do subúrbio carioca.” Novos Estudos Cebrap, n.84, 2009, pp.175-196.
24 CRONE, Eveline A.; Dahl, Ronald E. “Understanding Adolescence as a Period of
Social-Affective Engagement and Goal Flexibility.” Nature, vol.13, n.9, 2012, pp.636-
650.
27 ZALUAR, Alba. “Para não dizer que não falei de samba.” In: Schwarcz, Lilia Moritz
(org.). História da vida privada no Brasil, vol. 4. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
28 HABERMAS, op.cit.
29 ELIAS, op.cit.
30 GRILLO, op.cit.
36 MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a dádiva.” In: Antropologia e sociologia, vol.2. São
Paulo: EPU/Edusp, 1974.
O curso das ações do “debate” que decidiu pela expulsão de Lázaro é muito
instrutivo da operação desse dispositivo. O principal traficante daquele
território, José, que conhecia Ivete há 14 anos, desde que a família havia
chegado à favela, chamou Lázaro imediatamente para uma conversa séria.
Participaram do “debate” apenas José e um de seus subordinados, que
ouvira de um dos policiais a denúncia de que Lázaro era seu informante.
José perguntou diretamente a Lázaro se ele integrava algum esquema de
“caguetagem” da polícia, o que ele negou veementemente (é Ivete quem
me conta isso). A acusação era gravíssima, mas não havia provas. Lázaro
era conhecido desde criança e, embora o desvio merecesse a morte, José
respeitava demais Ivete para ordenar a morte de um de seus filhos sem que
se tivesse certeza. Por isso, José intercedeu diretamente no caso, pedindo
para Anísio levar Lázaro até a rodoviária, para que ele “desaparecesse”
imediatamente. Era uma “chance de vida” que ele lhe dava, sem que o
Dali em diante, eu comecei a comprar armas. Tudo que era arma que apa-
recia eu comprava e, às vezes, quando convidava um pra sair eu falava:
“Pô, cara, vamos dar uma volta até Madureira, Penha, Rocha Miranda pra
arrumar um dinheiro!” A gente era novinho, uns 15 ou 16 anos. Quando
alguém dizia: “Rodei com um fulano aí, perdi um dinheiro, perdi um
revólver!” Eu falava: “Não tem problema, não, eu te empresto outro.”
Hoje em dia é diferente, os caras da PM vão metendo bala. Naquela época,
eles rendiam a gente e assaltavam. Eles davam geral, puxavam o revól-
ver, pegavam o que tava no bolso e mandava se adiantar: “Se adianta, se
adianta.” (...) Hoje, a polícia é arregada, eles entram no plantão e recebem
o arrego. Então, tem uma certa hora, é assim que funciona, que eles falam
que o pessoal da Supervisão ou da Corregedoria vai fazer uma ronda lá,
então avisam: “Hoje não vai ter arrego, não!” Aí os caras não querem saber
de nada. Quando os PM vêm, já vai bala. E, aquele mesmo PM que está
entrando na bala hoje, amanhã está pegando o dinheiro, o arrego dele.
Hoje em dia, é assim que a coisa está funcionando nas favelas. Se hoje ele
não pode pegar dinheiro porque vai ter uma ronda, (...) porque tem uma
supervisão na viatura ou porque vai querer invadir, então o pessoal vai
meter bala... Por exemplo, lá em Jacarepaguá é assim: o arrego tem que
chegar até umas 2h da tarde. Se não, a polícia entra metendo bala... Hoje, o
que funciona mais é o argumento do arrego. Pagar pra não ser incomodado!
Endolava a droga cada dia era em um lugar. Pessoas cediam a casa, en-
tendeu? Levava um dinheiro para liberar a casa para a gente trabalhar.
Até que um dia o Denis viajou para o México, que ele queria atravessar
do México para os Estados Unidos, fazer uns negócios lá... com essa via-
gem do Denis os caras começaram a trair ele com um grupo que estava
fugindo da Ilha Grande... Ele tinha um encontro com uma boliviana que
trazia mercadoria... Foi para vários lugares com os documentos falsos,
entendeu? ... Ele foi e deixou a boca com os caras lá, os dois irmãos,
mas aí os dois irmãos passou a ser dominados pelos caras que chegaram
da Ilha Grande... Os caras querem dar um golpe na boca e os amigos
do Denis que chegavam à Rocinha eles estavam matando. Aí eu já des-
confiado com aquilo fui embora... Então, uma mulher que já foi desse
cara era atualmente mulher do Denis, (...) então a mãe dessa garota ia à
Rocinha pegar dinheiro que o Denis fazia contato com eles dos Estados
Unidos e os caras começaram a rir e eu de longe via aquilo e percebia a
39 Denis foi preso em 1987; Bolado morreu com um tiro na cabeça em 1988, que a
imprensa local chamou “acidental”. Denis apareceu enforcado na sua cela em 2001.
40 ZALUAR, Alba; Conceição, Isabel S. “Favelas sob o controle das milícias no Rio
de Janeiro: Que paz?.” São Paulo em Perspectiva, vol.21, n.2, 2007, pp.89-101; CANO,
Ignacio. “Seis por meia dúzia?.” In: Justiça Global (org.). Segurança, tráfico e milícia no
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2008.
41 ZALUAR, op.cit.;
—————, op.cit.
46 ELIAS, Norbert; Dunning, Eric. Quest for Excitement, Sport and Leisure in the Civili-
zing Process. Oxford: Blackwell, 1993.
47 ZALUAR, op.cit.
Introdução
1 Essa pesquisa resultou em minha tese de doutorado: GRILLO, Carolina Christoph. Coisas
da vida no crime: Tráfico e roubo em favelas cariocas, Tese (doutorado), PPGSA, UFRJ, 2013.
questões relativas ao direito informal articulado sob a influência desta
facção, tomando por referência as práticas, as experiências e os concei-
tos dos próprios sujeitos da “violência urbana”. Defendo a ideia de que
a produção e reprodução do ordenamento a que os bandidos se referem
como mundo do crime ou apenas Crime depende em grande medida da
incorporação de uma ética muito peculiar e do emprego de um idioma
específico em que são conjecturadas as argumentações em negociações
de conflitos. Um entendimento mais aprofundado sobre a deflagração e
resolução de disputas entre bandidos permitirá acessar aspectos impor-
tantes da socialidade peculiar ao Crime.
Ao propor que o chamado Crime ou mundo do crime seja um ordena-
mento, parto do emprego usual destas categorias nativas para designar
um universo de ação e significação particular identificado por criminosos
que se pensam como nele imersos.2 O poder do comando sobre um terri-
tório cria um precedente para a composição de um complexo de práticas
criminais que atravessam a organização do tráfico, envolvendo também o
comércio ilegal de armas (e o seu porte ilegal, evidentemente), roubo, furto,
receptação de mercadorias roubadas, estelionato, homicídio, lesão corporal
dolosa, suborno de autoridades etc. O conjunto de todas essas práticas que se
desenvolvem no contexto da facção constitui o que os bandidos convencio-
naram chamar de mundo do crime ou, tão somente e mais frequentemente,
Crime. Trata-se de um universo experimentado em maior ou menor grau
por pessoas que vivem a chamada vida errada ou vida no crime e dominam
uma determinada linguagem. O Crime é, portanto, uma “forma de vida”.
O foco deste trabalho é o direito informal peculiar ao mundo do crime
em favelas cariocas e, mais especificamente, a sua principal expressão
objetiva: os chamados desenrolos. Disputas de diferentes naturezas de-
sencadeiam processos coletivos de mediação das mesmas, conhecidos
como desenrolos ou desenrolados. São eles procedimentos orais por meio
dos quais os conflitos se deflagram e buscam uma solução – que pode ser
violenta –, amparando-se no poder do tráfico como instância reguladora.3
2 Ver também RAMALHO, José Ricardo. Mundo do crime: A ordem pelo avesso. Rio de
Janeiro: Graal, 1979. Voltarei adiante à definição de Crime.
3 A categoria desenrolo também é frequentemente usada para se referir a outros tipos
de litígio mais ordinários, que não passam pela mediação do tráfico, ou a situações de
acerto com a polícia em casos de flagrante – ver GRILLO, Carolina Christoph; Policarpo,
12 BIONDI, Karina. Junto e misturado: Uma etnografia do PCC. São Paulo: Terceiro Nome,
2010.
13 Op.cit., p.54, nota 36.
14 FELTRAN, Gabriel de Santis. Fronteiras de tensão: Política e violência nas periferias de
São Paulo. São Paulo: Unesp, 2009.
15 Op.cit., p.19.
16 MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. “Criminalidade violenta: Por uma nova pers-
pectiva de análise.” Revista de Sociologia e Política, n.13, 1999, pp.115-124; —————.
“Violência urbana, sociabilidade violenta e ordem agenda pública.” In: Vida sob cerco:
Violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
17 MACHADO DA SILVA, op.cit., p.37.
18 Op.cit. p.42, nota 8.
19 BARBOSA, op.cit., p.425.
21 FARIA, Juliana. “Da asfixia: Reflexões sobre a atuação do tráfico de drogas nas fa-
velas cariocas.” In: Machado da Silva, Luiz Antonio (org.). Vida sob cerco: Violência e
rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
22 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: Nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011,
p.171.
23 DIAS, Camila Caldeira Nunes. “Ocupando as brechas do direito formal: O PCC
como instância alternativa de resolução de conflitos.” Dilemas: Revista de Estudos de
Conflito e Controle Social, vol.2, n.4, 2009.
26 Não será possível desenvolver aqui esta ideia, mas tomo por base os processos da
“sujeição criminal” – ver MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos: A acumu-
lação social da violência no Rio de Janeiro. Tese (doutorado), Iuperj, 1999 – para pensar
na inscrição da criminalidade nos corpos e subjetividades dos chamados bandidos, o
que produziria “corpos indóceis” – em alusão aos “corpos dóceis” de Foucault (ver
FOUCAULT, op.cit.) – que reagem às disciplinas.
27 Sobre o proceder, ver também HIRATA, Daniel Veloso. Sobreviver na adversidade:
Entre o mercado e a vida. Tese (doutorado), PPGS/USP, 2010.
28 MARQUES, Adalton. Crime, proceder e convívio seguro: Um experimento antropológico
a partir das relações entre ladrões. Dissertação (mestrado), PPGS, USP, 2009, p.24.
Taissa: Caraca! Há anos que eu não via essa mulher por aqui! Essa aí é a
famosa “Mulher-Chumbinho”: comeu, morreu. Mas ela era melhorzinha,
né? Quem olha ela agora nem diz que o Tinta morreu por causa dela.
Luciano: Pode crer... é a irmã do falecido Cabrito, meu parceiro. Mas é
mesmo, mó mulher chumbinho... e ela era mais bonita antigamente.
Tinha um corpão, agora olha a perna dela...
Eu: Já ouvi falar que esse Tinta era muito bonito. É verdade?
Luciano: Ele era pintosão mesmo e maneirão. Nós já curtiu várias paradas
juntos, mas ele deu mole, cara. Bateu uma neurose doida e resolveu entrar
Comeu sim. Geral sabe disso. Ela e mais uma outra amiga foram lá pro
[outro lado do morro] e passaram três dias numa casa com ele e o Charles.
O Tinta é que deu mole mesmo. Depois que viu que a mulher era vaga-
bunda, se fosse eu, tinha quebrado as duas pernas dela que ninguém ia
poder falar nada. Aí deixava ela sem andar pra ver se ele ainda ia querer
ela assim. O Thiaguinho ia ficar bolado, mas ia ter que ficar quieto, porque
tava comendo a mulher dos outros. Mas homem apaixonado fica cego e
acaba fazendo besteira. Saiu pegando o Thiaguinho no meio do baile e deu
um socão na cara dele. O desenrolo não foi mole não. Foram várias horas
direto. O que pegou não foi nem o lance dele ter comido ou não a mulher,
porque nisso aí o Tinta já tava errado de saída por não ter desenrolado
antes. O problema é que uma semana antes o Thiaguinho tinha dado
um soco na cara de um moleque por assunto de boca de fumo. Aí ficou
naquela: pode ou não pode dar soco na cara? Como é que uns podem e os
outros vão morrer por causa disso? Não é pra ser todo mundo igual? Foi
depois da morte do Tinta que o soco na cara ficou proibido aqui na boca.
Foi aí que veio esse toque. Quando nós quer pegar alguém, pode amassar
do pescoço pra baixo, mas não se dá soco na cara de sujeito homem.
Ih, não vai pensando que é assim, não... O mundo dá voltas o tempo todo.
Não é assim pra tirar um bandido feito ele da boca, não. Acho bom ela
ficar na linha, porque se ele quiser entrar no caminho dela, não vai ter
essa não. Isso tudo é fase, desentendimento... Daqui a pouco ele resolve
os problemas dele com o Marat e eles ficam numa boa de novo. Quem
tiver tentado se aproveitar da situação, achando que ele tava fraco é que
vai se dar mal. Você não conhece ainda a história do falecido Tinta. Esse
é um que morreu de bobeira numa situação feito essa. Foi por causa de
uma piranha horrorosa com quem ele tava saindo e que começou fazer
intriga de que o Thiaguinho tava dando em cima dela. E tava nada... ela
só queria era ibope com o nome dele. Na mesma época, o Thiaguinho
se desentendeu com os caras da boca e pediu as contas. Ele já era quem
ele é, mas não era ainda o patrão. Aí ele tava no baile, na dele, quando o
Tinta resolveu se crescer, foi lá tirar satisfação e acertou um soco na cara
dele. Achou que ele tava fraco, mas tava era enganado, porque na hora
mesmo o Thiaguinho mexeu os pauzinhos dele e desenrolou pra matar
o Tinta. Não esperaram nem amanhecer e já veio mó bondão pra passar
ele. Foi uma pena... ele era lindo. Você precisava ter conhecido. Ele era
desses bandidos simpáticos que todo mundo gosta e bem galinha. Era
35 Render homenagem ou, simplesmente, ficar rendendo, são gírias análogas a outra
mais popularmente conhecida como puxar saco, isto é, bajular alguém.
Isso aí não é assunto de boca de fumo, não. É assunto pessoal. Ele pegou a
minha moto, a minha propriedade, sem me pedir. Diz aí: se fosse morador,
nós não ia arrebentar na madeira? Então, já que é bandido, eu sou da tese
que ele tem que ser cobrado mais ainda. Peguei ele firme.
38 Cabe assinalar que o uso ilegal de celulares no interior de prisões é essencial para
ampliar a participação de presos nas mediações de litígio dentro e fora das prisões.
Tá vendo essa filha da puta? Foi ela que me entregou pros canas na se-
gunda vez que eu rodei.
Eu: Sério? E por que você não matou ela?
Ah... é foda. A mulher tem três filhos e um deles é até com um amigo
da boca. Na época eu até queria matar ela, mas na verdade eu sei que o
errado fui eu de botar ela na parada. Ela ficou de levar o cara que ia lá
pagar o resgate do carro dele, mas na hora ela apareceu foi com os canas.
Não deu tempo pra nada e não teve papo. Tirei três anos e meio por causa
dessa filha da puta. Mas é foda... eu não tinha que ter botado ela nessa
fita, porque ela não é do crime, não ia chegar e segurar tudo.
Eu: Mas ela foi presa também?
Foi, mas tirou uns meses e ralou fora.
Não se espera de uma pessoa alheia ao Crime que ela tenha a postura de
aceitar uma pena mais dura e resistir à pressão policial para não entregar
seus comparsas. No entanto, se algum bandido tivesse agido do mesmo
modo que esta mulher, seria certamente morto. Não se pode menosprezar
também o fato de ela ter um filho com um bandido, vínculo este que a
isenta de punições mais graves.
Ainda assim, surpreendi-me, ao longo do trabalho de campo, com a
quantidade de mancadas deixadas “impunes”. Não foram poucos os casos
de morte por cobrança que me foram narrados, inclusive por cobranças ditas
injustas. Mas também foram muitas as histórias de roubos a dinheiro da
boca, trapaças diversas e traições femininas que não deram em nada, seja
porque a pessoa acusada tinha relações de parentesco com famílias poli-
ticamente influentes na localidade – o que está condicionado a vínculos
com o tráfico –; seja porque a pessoa lesada – quem propusera a cobrança
– estava desacreditada nas redes do tráfico por outros motivos; ou ainda
porque o assunto simplesmente morreu.
Considerações finais
40 Cito este exemplo com base em dois casos que, de fato, ocorreram. Quanto ao
primeiro, o rapaz que o executou, a mando de seu patrão, disse ser este o único homi-
cídio de que guarda culpa. Já o segundo, refere-se às dívidas contraídas por um bandido
viciado em crack, mas cujo irmão era o responsável da boca em que ele trabalhava.
41 GLUCKMAN, Max. Ideas and Procedures in African Customary Law. Londres: Oxford
University Press, 1969.
42 O mesmo pode ser dito a respeito da convivência no interior das prisões, que co-
loca as pessoas em regime de coabitação por longos anos.
43 BARBOSA, Antônio Rafael. Um abraço para todos os amigos: Algumas considerações
sobre o tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Niterói: EdUFF, 1998, p.98.
44 Op.cit.
45 DA MATTA, Roberto. A casa e a rua: Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio
de Janeiro: Rocco, 1997.
1 Como não se trata de um trabalho composto por um único esforço de pesquisa, a ex-
posição, no corpo do texto, das metodologias utilizadas nos diferentes campos, torna-
-se algo de difícil realização – tendo em vista o espaço de um artigo. A fim de priorizar
a apresentação das hipóteses principais e das principais linhas interpretativas, con-
densarei as informações sobre a produção dos dados empíricos em notas de rodapé na
abertura de cada seção.
2 MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio. Vida sob cerco: Violência e rotina nas favelas do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
o autor chama sociabilidade violenta. A linguagem da “violência urbana”
se estruturaria justamente a partir do reconhecimento desse novo padrão
de sociabilidade.3