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Antropologia das emoções

Livros publicados pela Coleção FGV de Bolso

(01) A História na América Latina – ensaio de crítica historiográfica (2009)


de Jurandir Malerba. 146p.
Série ‘História’
(02) Os Brics e a Ordem Global (2009)
de Andrew Hurrell, Neil MacFarlane, Rosemary Foot e Amrita Narlikar.
168p.
Série ‘Entenda o Mundo’
(03) Brasil-Estados Unidos: desencontros e afinidades (2009)
de Monica Hirst, com ensaio analítico de Andrew Hurrell. 244p.
Série ‘Entenda o Mundo’
(04) Gringo na laje – Produção, circulação e consumo da favela turística
(2009) de Bianca Freire-Medeiros. 164p.
Série ‘Turismo’
(05) Pensando com a Sociologia (2009)
de João Marcelo Ehlert Maia e Luiz Fernando Almeida Pereira. 132p.
Série ‘Sociedade & Cultura’
(06) Políticas culturais no Brasil: dos anos 1930 ao século XXI (2009)
de Lia Calabre. 144p.
Série ‘Sociedade & Cultura’
(07) Política externa e poder militar no Brasil: universos paralelos (2009)
de João Paulo Soares Alsina Júnior. 160p.
Série ‘Entenda o Mundo’
(08) A Mundialização (2009)
de Jean-Pierre Paulet. 164p.
Série ‘Economia & Gestão’
(09) Geopolítica da África (2009)
de Philippe Hugon. 172p.
Série ‘Entenda o Mundo’
(10) Pequena Introdução à Filosofia (2009)
de Françoise Raffin. 208p.
Série ‘Filosofia’
(11) Indústria Cultural – uma introdução (2010)
de Rodrigo Duarte. 132p.
Série ‘Filosofia’
(12) Antropologia das emoções(2010)
de Claudia Barcellos Rezende e Maria Claudia Coelho. 136p.
Série ‘Sociedade & Cultura’
Copyright © 2010 Cláudia Barcellos Rezende

1a edição — 2010

Todos os direitos reservados à EDITORA FGV. A reprodução não autorizada desta


publicação, no todo ou em parte, constitui violação do copyright (Lei n o 9.610/98).

Os conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade do autor.

Este livro foi editado segundo as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa,
aprovado pelo Decreto Legislativo n o 54, de 18 de abril de 1995, e promulgado pelo
Decreto n o 6.583, de 29 de setembro de 2008.

COORDENADORES DA COLEÇÃO : Marieta de Moraes Ferreira e Renato Franco


PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS : Mariflor Rocha
REVISÃO : Fátima Caroni, Adriana Alves Ferreira, Aleidis de Beltran
DIAGRAMAÇÃO : FA Editoração
PROJETO GRÁFICO E CAPA : Dudesign

Ficha catalográfica elaborada


pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV

Rezende, Claudia Barcellos, 1965-


Antropologia das emoções / Claudia Barcellos Rezende, Maria Claudia Coelho.
- Rio de Janeiro : Editora FGV, 2010.
136 p. (Coleção FGV de bolso. Série Sociedade & Cultura)

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-225-0995-9

1. Antropologia social. 2. Emoções. 3. Comportamento humano. I. Coelho,


Maria Claudia. II. Fundação Getulio Vargas. III. Título. IV. Série.

CDD – 301.2

Editora FGV
Rua Jornalista Orlando Dantas, 37
22231-010 ​ Rio de Janeiro, RJ ​ Brasil
Tels.: 0800-021-7777 ​ 21-3799-4427
Fax: 21-3799-4430
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www.fgv.br/editora
Aos nossos alunos
Sumário

Introdução

Capítulo 1
Emoções: biológicas ou culturais?
As emoções e o corpo humano
O olhar das ciências sociais
O medo
A raiva

Capítulo 2
Emoções: individuais ou sociais?
O lugar da emoção nas ciências sociais: formulações clássicas
As gramáticas dos sentimentos

Capítulo 3
A micropolítica das emoções
A perspectiva contextualista: um mapeamento do campo da antropologia
das emoções
A micropolítica das emoções: estudos de caso
Dádiva, hierarquia e emoção: as trocas de presentes entre patroas e
empregadas domésticas

Capítulo 4
As emoções nas sociedades ocidentais modernas
A tensão entre sentir e expressar
O controle das emoções
A ênfase hedonista no fazer
Controle e prazer combinados: dois exemplos
Autenticidade, prazer e controle: amor nos tempos modernos

Conclusão

Referências bibliográficas
Introdução

Em um texto em que explora o tema da natureza universal das grandes


tragédias, a antropóloga norte-americana Laura Bohannan narra e comenta
uma experiência muito particular: contar a história de Hamlet para uma tribo
africana. Sua convicção inicial, discutida em Oxford com um amigo inglês, é
de que as grandes tragédias falam da condição humana, podendo, portanto,
ser universalmente compreendidas da mesma maneira.
A situação surge de forma inesperada. Durante uma estação chuvosa,
Laura vê-se isolada na habitação de uma família, encarapitada no alto de uma
colina, à qual poucos têm acesso. Impossibilitados de realizar seus afazeres
cotidianos, os membros da família dedicam-se todos os dias, meses a fio, a
beber cerveja e contar histórias. Um dia, Laura é instada a explicar o que faz
ao contemplar incessantemente seus “papéis”; neste momento, pedem-lhe que
conte uma história da sua terra. Recordando a conversa com seu amigo
inglês, Laura vê aí uma chance ímpar de “testar” a universalidade da
compreensão de Hamlet. E decide contar ao grupo a tragédia de Shakespeare.
Ao longo da narrativa, uma profusão de mal-entendidos e interrupções se
sucedem. A primeira delas é a incredulidade dos africanos diante da natureza
da aparição do fantasma do pai a Hamlet: o que é um “fantasma”? Afinal,
pessoas mortas não falam, não têm materialidade. À ideia de “fantasma”, os
nativos contrapõem a possibilidade de um “agouro”, enviado por um
feiticeiro, ou de um “zumbi”. E ridicularizam Hamlet por acreditar estar
diante de seu pai.
Outras dificuldades surgem para o entendimento da história: por que o
sucessor do chefe é seu filho, e não seu irmão? Por que o chefe morto tinha
uma única esposa — quem iria alimentar seus convidados? Por que Polônio
não permitia que Hamlet cortejasse sua filha — ele não percebia que um
chefe o compensaria por isso? Por que Polônio não se identificara atrás da
cortina ao ser ameaçado por Hamlet — qualquer criança se apresentaria para
não ser morta! Por que Hamlet não recorrera aos anciãos para vingar-se de
Cláudio — todos sabem que não se pode erguer a mão contra os mais velhos!
E que dizer da exiguidade da família de Ofélia — como assim seus únicos
parentes masculinos eram o pai e o irmão? Deveria haver muito mais!
Um leitor minimamente familiarizado com questões canônicas da
antropologia reconhece, por trás desses mal-entendidos, problemas
tradicionais das teorias do parentesco e da dádiva — construção de
descendência, dádiva e poder, concepções de família (extensa versus nuclear)
etc. Essas questões entrelaçam-se com a emergência dos afetos, também eles
suscetíveis de variações provocadas pelo ambiente sociocultural em que se
encontram. A experiência de Laura Bohannan traz um momento de
fertilidade ímpar para a apresentação da relação entre cultura, sociedade e
emoções.
O núcleo da tragédia de Hamlet é a traição que seu pai sofre da parte de
sua esposa, Gertrudes, com seu irmão Cláudio. É este o responsável por seu
envenenamento, com a anuência de Gertrudes. Pouco após a morte do rei,
Gertrudes e Cláudio se casam e este assume o trono. A tragédia tem início
com a aparição do fantasma do rei a seu filho, denunciando a traição.
Elemento nodal da tragédia é a revolta de Hamlet quanto à decisão de sua
mãe em casar-se novamente, desrespeitando o período ritual de dois anos de
luto.
Por essa revolta, Hamlet é unanimemente considerado um bobo pelos
africanos: que besteira é essa de esperar dois anos — quem iria cuidar da
fazenda de seu irmão, se a viúva esperasse tanto assim para casar-se
novamente? E então ele não sabe que é dever do irmão mais novo casar-se
com a viúva de seu irmão? Quem cuidaria melhor de seus filhos e de seus
bens?
A regra do levirato é um evidente obstáculo à “compreensão universal”
da tragédia de Hamlet. A prescrição matrimonial que define como
preferencial o casamento com a viúva de seu irmão impede a compreensão da
vivência desse casamento como uma traição, e torna absurdo o ciúme de
Hamlet. Afinal, por que ter ciúme, se sua mãe fizera exatamente o que
mandava o costume, agindo no melhor de seu interesse e de seu filho? E por
que ter raiva do irmão do pai, se este apenas cumprira seu papel?
Essa pequena fábula antropológica tem uma “moral”: os sentimentos são
tributários das relações sociais e do contexto cultural em que emergem. O
ciúme de Hamlet faz sentido à luz das teorias do parentesco ocidental, mas é
absurdo se levarmos em conta outros sistemas de parentesco, com suas
prescrições e interdições próprias. O ciúme não é, assim, um sentimento
universal, decorrência espontânea de exigências de exclusividade sobre
aqueles a quem amamos; ao contrário, sua eclosão é pautada por “regras de
relacionamento”, que o tornam legítimo e esperado em relações governadas
por expectativas prescritas de reciprocidade e exclusividade, mas que o
condenam em outros modelos de relacionamento nos quais a “regra” é o
compartilhar do outro, a exemplo dos modelos poligâmicos.
A convicção de que os sentimentos têm uma natureza universal faz parte
do senso comum ocidental, que os considera um aspecto da natureza humana
marcado pelas ideias de “essência” — no sentido de uma universalidade
invariável — e de “singularidade” — como algo que provém
espontaneamente do íntimo de cada um. Fazer uma “antropologia das
emoções” é colocar em xeque essas convicções, tratando-as como
“representações” de uma dada sociedade; construir as emoções como um
objeto das ciências sociais é inseri-las no rol daquelas dimensões da
experiência humana as quais, apesar de concebidas pelo senso comum como
“naturais” e “individuais” — a exemplo da sexualidade, do corpo, da saúde e
da doença etc. —, estão muito longe de serem refratárias à ação da sociedade
e da cultura.

O processo de construção das emoções como objeto das ciências sociais é


longo, podendo remontar aos esforços pioneiros de fundação das ciências
sociais como campo de saber autônomo. Embora o tema das emoções figure
nos trabalhos de muitos antropólogos e outros cientistas sociais, sua aparição
se dá com frequência de forma secundária. A presença dos afetos foi sempre
notada como parte da dinâmica da vida social, sem que contudo a eles se
dedicasse atenção como objeto autônomo de investigação. Por trás disso
estava o status dúbio das emoções: embora se tornassem elementos da
interação social, eram vistas como fatos “naturais”, realidades
psicobiológicas que já eram dadas a priori e modificadas até certo ponto pela
socialização em uma cultura específica. Mais ainda, eram consideradas
também fenômenos subjetivos, individuais e particulares, mesmo que as
sociedades regulassem sua expressão. Mantinham-se, portanto, assunto
prioritariamente da psicologia.
Sociólogos clássicos como Émile Durkheim e Georg Simmel fizeram
contribuições significativas no sentido de mudar essa perspectiva. Embora
em seus textos programáticos ambos tratem as emoções como estados
subjetivos e não sociais, por caminhos distintos, eles mostram como há
sentimentos que são produzidos socialmente — nas relações sociais — e que
têm efeitos significativos para as interações e a coletividade de modo amplo.
Seus estudos são, portanto, elaborações importantes na direção de tomar as
emoções como elementos sociais.
Contudo, a ambivalência em torno do estatuto das emoções perdurou por
muito tempo no desenvolvimento das diversas escolas antropológicas. Esse
quadro de atribuição aos sentimentos de um espaço menor na teoria social,
por conta de sua representação como elementos de natureza psicobiológica
(cuja marca social residiria apenas na regulação de sua expressão por regras
sociais) persiste por várias décadas. Al-guns pensadores das escolas britânica,
americana e francesa de antropologia, como A. R. Radcliffe-Brown, Ruth
Benedict e Marcel Mauss, respectivamente, detiveram-se nas regras e formas
coletivas de expressão dos sentimentos, ora explorando seu papel ou função
social, ora comparando padronizações culturais distintas das emoções. Ainda
percebemos nesses autores, com exceção de Mauss, uma visão ambígua da
emoção, que ora é pensada como um estado interno, subjetivo e não social,
ora resultaria de situações sociais, sendo assim de ordem social.
O estudo das emoções ganhou força na antropologia com o
desenvolvimento da abordagem interpretativa na década de 1970 nos Estados
Unidos. Nessa perspectiva, a noção de cultura como padrões de
comportamento habituais e tradicionais foi repensada e redefinida em termos
de teias de significados, transmitidas por símbolos e interpretadas de maneira
específica de sociedade para sociedade. Essa mudança produziu muitos
estudos em torno da construção cultural dos significados nas mais variadas
esferas da vida social, em particular os conceitos de pessoa e self, bem como
das emoções. Esses trabalhos também enfatizavam a articulação entre
emoção e concepções de pessoa com as esferas da moralidade, da estrutura
social e das relações de poder.
Nos Estados Unidos, a tônica dos estudos antropológicos em torno das
emoções na década de 1980 partia de uma perspectiva relativista que tratava
os sentimentos como conceitos culturais que mediam e produzem a
experiência afetiva. Assim, a separação antes feita entre estados subjetivos e
sentimentos sociais foi problematizada, uma vez que as próprias ideias de
pessoa e de subjetividade passam a ser vistas como construções culturais.
Além disso, como propõe Catherine Lutz (1988), uma das expoentes deste
campo, os conceitos de emoção implicam negociações sobre a definição da
situação e sobre vários aspectos da vida social, devendo ser vistos como
elementos de práticas ideológicas locais. Com isso, as emoções passam a ser
tomadas como um idioma que define e negocia as relações sociais entre uma
pessoa e as outras (Lutz e White, 1986). Resulta dessa orientação uma série
de etnografias (entre outras, Abu-Lughod, 1986; Lutz, 1988; Rosaldo, 1980),
que formam o chamado campo da antropologia das emoções (Lutz e White,
1986).
Recentemente, o estudo antropológico das emoções passou a enfatizar o
elemento do contexto em que se manifestam os conceitos emotivos, buscando
ir além das relativizações para analisar sob um ponto de vista pragmático as
situações sociais específicas em que eles são expressos (Abu-Lughod e Lutz,
1990). A preocupação dessa abordagem contextualista aqui é dupla: mostrar
como o próprio significado das emoções varia dentro de um mesmo grupo
social dependendo das circunstâncias em que se manifestam, e atentar para as
consequências da expressão dos sentimentos nas relações sociais e de poder.
Assim, o campo da antropologia das emoções estruturouse não apenas
com uma variedade de estudos etnográficos, mas também com um conjunto
de questões teórico-metodológicas que buscavam fornecer instrumentos para
a comparação. Das relativizações iniciais passou-se para um esforço maior
em mostrar a dimensão micropolítica das emoções, revelando como são
mobilizadas em contextos sempre marcados por relações e negociações de
poder em vários níveis.
Como em outros lugares, no Brasil as emoções também aparecem
ocasionalmente em estudos das ciências sociais há muito tempo. Como
mostra Koury (2005a), é uma temática que ocupou pensadores da década de
1930, como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, que discutiram as
emoções em suas preocupações relacionadas à constituição de uma
identidade nacional brasileira.
Já na década de 1980, encontramos uma maior atenção a esses
fenômenos, ainda que o foco das análises estivesse nas variações do conceito
de pessoa e nas emoções em contextos e segmentos sociais distintos. Roberto
DaMatta (1997) analisa como as formas de expressão das emoções, entre
outros comportamentos, se ajustam às diferenças entre espaços públicos e
privados. Velho (1981 e 1986), Dauster (1986) e Salem (2007), entre outros,
examinam como a emoção e sua expressão vêm a ser um componente central
na construção de projetos de pessoas das camadas médias urbanas, marcados
pela tensão entre a individualização e o pertencimento. Duarte (1986), por
sua vez, busca compreender a centralidade da categoria emotiva “nervoso”
nas concepções específicas de pessoa entre classes trabalhadoras urbanas,
mais holistas em sua orientação.
Como foco de estudos que forma um campo próprio, o interesse nas
emoções vem gradualmente ganhando espaço entre as ciências sociais
brasileiras desde a década de 1990. Há não apenas movimentos em direção a
uma institucionalização do campo, mas também uma diversidade de
temáticas estudadas. Entre as iniciativas institucionais pioneiras, podemos
destacar a criação, em 2002, da Revista Brasileira de Sociologia das
Emoções, revista virtual editada por Mauro Koury (Universidade Federal da
Paraíba — UFPB). Outras formas de institucionalização são a realização de
grupos de trabalho nas principais reuniões científicas, entre elas a Reunião de
Antropologia do Mercosul (RAM) e a Associação Nacional dos Programas
de Pós-graduação em Ciências Sociais (Anpocs), e a criação de núcleos de
pesquisa como o Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Emoção (Grem) da
UFPB, e o Núcleo de Antropologia das Emoções (Nante), na Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Entre os autores que vêm contribuindo para o desenvolvimento do
campo, Mauro Koury, na UFPB, já pesquisou as emoções do luto e a dor nas
cidades (2003) e examina o sentimento de medo nas relações entre indivíduos
no meio urbano (2005b). Na Uerj, Maria Claudia Coelho trabalha com a
temática das emoções em torno de questões distintas: os sentimentos
expressos por fãs na idolatria (1999), a dádiva nas trocas materiais (2006a) e
as experiências de vitimização em assaltos a residências (2006b). Também na
Uerj, Claudia Barcellos Rezende fez uma análise comparativa sobre amizade
em Londres e no Rio de Janeiro, discutindo essa relação que também é vista
como sentimento (2002), e recentemente pesquisou a elaboração subjetiva da
identidade brasileira entre pessoas que fizeram pós-graduação no exterior,
ressaltando a dinâmica dos elementos emotivos dessa construção (2009).1
Este livro está estruturado em torno de alguns temas principais do estudo
das emoções nas ciências sociais. Os dois primeiros capítulos discutem as
questões que fundam o campo. No primeiro está o debate em torno da
natureza das emoções: são elas biológicas ou culturais? O segundo capítulo
analisa o outro problema fundamental dessa área: a emoção é um estado
individual ou social?
O terceiro capítulo apresenta a perspectiva que vincula as emoções à
estrutura social, enfatizando em particular seu potencial micropolítico, ou
seja, de expor e afetar as relações de poder e hierarquia de um modo amplo.
O quarto capítulo trata das emoções nas sociedades ocidentais modernas e as
questões que marcam a experiência emotiva neste contexto.
Capítulo 1

Emoções: biológicas ou culturais?

Seria o amor um sentimento que contribui para a manutenção da espécie


humana? Esta é a ideia apresentada em uma reportagem do jornal O Globo,
na edição de 29 de junho de 2008, segundo a qual as emoções “seriam
forjadas pela seleção natural”. Como outras características físicas, os
sentimentos teriam sido fundamentais na evolução da espécie, garantindo a
ela vantagens reprodutivas. Assim, o amor seria importante para a reprodução
da espécie, pois une os seres humanos para reproduzir e proteger a prole, já
que o filhote humano precisa de tempo para poder viver de forma
independente. O medo ajudaria na sobrevivência, evitando, por exemplo, que
uma pessoa passe na frente de um leão tranquilamente e corra o risco de
morrer. A raiva é outra emoção que incitaria a defesa pessoal, contribuindo
assim para a sobrevivência.
Nesse artigo de jornal, encontramos uma ideia muito constante no
pensamento das sociedades ocidentais modernas: as emoções são fenômenos
comuns e naturais a todos os seres humanos. A capacidade de sentir emoções
resultaria do equipamento biológico e psicológico inerente à espécie humana
e seria, portanto, universal. Seriam assim invariáveis no tempo e no espaço,
de modo que as pessoas poderiam se identificar com outras em sociedades
distintas ou em épocas passadas em função de sentirem emoções como amor,
tristeza, raiva, medo etc. Nesse modo de pensar, as emoções trariam poucas
ou nenhuma marca das culturas nas quais as pessoas vivem. Essa visão está
presente no senso comum, na mídia e também em algumas áreas
disciplinares.
Neste capítulo, vamos primeiramente analisar essa visão das emoções,
que compõe uma etnopsicologia ocidental moderna. A noção de
etnopsicologia, discutida por Lutz (1988), se refere ao sistema de
conhecimentos que define e explica o que é a pessoa — seus atributos, suas
reações, seu modo de se relacionar com os outros — que permite que ela
monitore a si própria e aos outros, possibilitando assim alguma antecipação
dos comportamentos. É principalmente um campo de conhecimento que varia
de sociedade para sociedade, bem como ao longo da história. Na
etnopsicologia ocidental moderna, encontramos dois pressupostos
fundamentais no modo de pensar a pessoa e suas emoções que serão
discutidos aqui: a percepção de que as emoções estão ancoradas à dimensão
psicobiológica do indivíduo e a noção consequente de que as emoções são
constantes e universais. Exploraremos em seguida o modo como as ciências
sociais problematizam esses argumentos, colocando o debate sobre o caráter
biológico ou cultural das emoções em outras bases. Nossa preocupação é
distinguir as visões de mundo ocidentais modernas das posturas teóricas para
o estudo das emoções. Ao final, apresentamos alguns estudos que relativizam
emoções consideradas básicas, como o medo e a raiva, para ilustrar esta
discussão.
As emoções e o corpo humano
Um dos pressupostos fundamentais da etnopsicologia ocidental moderna,
na visão de Lutz (1988), é a noção de que a pessoa é constituída por um
dualismo fundamental: a oposição entre corpo e mente. Embora estejam
articuladas na pessoa, são dimensões pensadas separadamente uma da outra,
produzindo por isso campos de conhecimento distintos para lidar ora com o
corpo, ora com a mente. Os fenômenos associados a esta última instância são
também divididos em dois: as emoções e a razão. Esta segunda dicotomia
está relacionada com a primeira, na medida em que as emoções estão
geralmente associadas ao corpo, enquanto a razão seria um fenômeno
basicamente da mente. Na associação entre emoção e corpo, encontramos
tanto as causas quanto as manifestações dos sentimentos, que teriam também
certas qualidades comuns às reações corporais.
Nessa visão de mundo, as emoções são pensadas como tendo, muitas
vezes, origem no funcionamento do corpo. Dois exemplos desta ideia são as
concepções dos hormônios e do funcionamento neurológico do cérebro como
causadores e/ou reguladores das emoções. Os hormônios ditos masculinos e
femininos — respectivamente a testosterona e o binômio estrogênio e
progesterona — explicariam muitas características emotivas dos gêneros. Os
homens seriam mais agressivos do que as mulheres em função da maior
presença da testosterona no seu organismo. Já as mulheres teriam várias
reações emotivas atribuídas aos hormônios, que marcariam as várias etapas
de seu ciclo de vida. Haveria uma maior instabilidade emotiva nos dias
anteriores à menstruação, o que, junto a aspectos físicos, configuraria a
síndrome da tensão pré-menstrual (TPM). Como mostra Juer (2007) em sua
análise da visão biomédica dos hormônios, o desejo de ter filhos é às vezes
explicado pela forte presença do estrogênio após a menarca. A gravidez é
considerada também um período no qual a mulher teria uma instabilidade
emocional, além da forte presença do medo e da ansiedade, em muito
associada às alterações hormonais na gestação. A menopausa é outro
momento na vida das mulheres no qual a diminuição do estrogênio e da
progesterona afetaria as emoções.
O funcionamento do cérebro, em particular as reações químicas que lá
acontecem, é apontado como outra fonte responsável por algumas
manifestações emotivas. Os jornais já escreveram sobre o amor como
resultado de certas reações químicas do cérebro, e como mulheres e homens
apresentariam características cerebrais distintas teriam também experiências
diferentes do sentimento. Nessa perspectiva, também a ansiedade e os estados
emotivos que conformam a depressão resultariam principalmente de reações
químicas desequilibradas, sendo muitas vezes tratadas por meio da química
de ansiolíticos e antidepressivos.
Considera-se também que os sentimentos produzam reações corporais.
Assim, a tristeza vem muitas vezes acompanhada de lágrimas e soluços,
reações que também podem vir da alegria e da felicidade. O medo provocaria
arrepios, palpitações e até mesmo enfartes cardíacos, dando sentido literal à
expressão popular “morrer de medo”. A ansiedade e a angústia podem ter
variadas manifestações, como falta de ar, insônia, sensação de aperto no
estômago. Há inclusive no senso comum e na medicina a visão de que
mulheres muito ansiosas têm dificuldade de engravidar.
Encontramos também a atribuição do surgimento de algumas doenças à
presença de alguns estados emotivos. Em um estudo clássico, Sontag (1984)
analisa como, no século XIX, a tuberculose era considerada uma doença da
paixão, que acometeria pessoas melancólicas e apaixonadas, enquanto, no
século XX, o câncer seria mais comum entre pessoas contidas, tensas e
estressadas.
Nessa etnopsicologia, as emoções teriam vários atributos em comum com
os fenômenos corporais. Por exemplo, apresentariam muitas vezes o mesmo
caráter involuntário e espontâneo que muitas reações corporais. Explicações
como aquelas que veem hormônios e reações neurológicas como produtores
de emoções reforçam a ideia de que elas aconteceriam de maneira
independente da vontade do sujeito. Diz-se também que a paixão e o amor
são sentimentos que não escolhem seu objeto. Em outros momentos acredita-
se que a raiva sentida surja de maneira incontrolável, sendo também difícil de
ser manifestada de modo contido. As lágrimas de tristeza exemplificariam
uma reação emotiva e ao mesmo tempo corporal vista como involuntária, a
tal ponto que chorar em cena seria um aprendizado difícil para atores.
Outra qualidade compartilhada é a ideia de que, assim como existe uma
unidade biológica entre os seres humanos, há também uma unidade psíquica
entre eles. Entretanto, se a razão seria uma capacidade cujo desenvolvimento
depende de vários fatores externos à pessoa, sendo, portanto, variável entre
grupos e sociedades, as emoções, como fenômenos mais próximos ao corpo,
estariam menos sujeitas também ao controle externo, sendo assim menos
variáveis e mais constantes através das culturas. Por esse motivo, as emoções
são consideradas qualidades essenciais dos seres humanos, no sentido de
caracterizar um núcleo essencial do indivíduo que se manteria relativamente
intacto apesar da intervenção da sociedade. Neste sentido, encontramos uma
tensão entre a visão da emoção como emanando de uma natureza interior e
não social do indivíduo, e a concepção que a toma como qualidade universal
de todos os seres humanos. Passaríamos assim do plano da singularidade
individual para o universal sem qualquer mediação da sociedade ou cultura.
Por outro lado, embora nessa etnopsicologia as emoções tenham uma
dimensão psicobiológica, admite-se que a sociedade influencie o modo de
expressar os sentimentos. Assim, reconhece-se a existência de regras de
expressão que afetam a manifestação dos sentimentos não apenas de acordo
com os contextos sociais, como também entre sociedades diferentes. Há, por
exemplo, normas para a expressão das emoções em uma situação de luto, que
independem do indivíduo sentir tristeza ou pesar pela morte de uma pessoa.
O luto, por sua vez, varia de sociedade para sociedade, de modo que em
certos lugares pode-se chorar copiosamente enquanto, em outros, pede-se
expressões mais contidas de pesar e tristeza. Nessa ótica, faz-se uma
distinção entre o sentimento, entendido como individual e não cultural, e sua
expressão, vista como regrada por prescrições sociais.
Outra característica vista como social é a linguagem verbal e corporal
para expressar as emoções. A manifestação de afeto por uma pessoa pode ou
não envolver gestos, como beijos e abraços, que implicam o toque no corpo
do outro. O vocabulário emotivo de uma sociedade é reconhecido como
distinto do de outra, dificultando, por exemplo, o exercício de tradução de
categorias emotivas de uma língua para outra. No entanto, as palavras nem
sempre são vistas como expressando “de fato” o que o sujeito sente,
reforçando novamente a distinção entre uma forma de expressão de ordem
social e o sentimento de natureza individual. Nessa perspectiva, abrese a
possibilidade para que as pessoas sintam uma emoção mesmo que em sua
sociedade não exista um termo de linguagem para expressá-la, como por
exemplo sentir “saudade” em culturas que não possuem essa categoria.
Assim, as emoções são consideradas fenômenos que acontecem no corpo,
tanto em função de sua origem quanto também de suas manifestações. Como
já afirmamos, essa estreita relação entre emoção e corpo estaria em contraste
com a associação entre razão e mente. Essa oposição mostra como estas
noções estão vinculadas e como recebem valores distintos, questão que Lutz
(1988) analisa com atenção. Em muitos contextos, considera-se a mente
superior ao corpo, e do mesmo modo a razão em relação à emoção. A razão
como característica da mente permitiria o conhecimento, o planejamento, o
progresso, o domínio sobre o mundo natural, do qual o corpo, e também as
emoções, fariam parte. O corpo e a emoção podem ser controlados pela
mente e pela razão, mas seriam a priori mais imprevisíveis, mais
involuntários e mais incontroláveis. Enquanto a razão e a mente colocariam o
ser humano em um plano distinto e acima hierarquicamente de outras
espécies animais, as emoções e as necessidades corporais o igualariam a elas.
Assim, o caráter mais incontrolável das emoções daria à pessoa mais emotiva
uma vulnerabilidade e ao mesmo tempo uma aura perigosa que a pessoa mais
racional não teria.
Por outro lado, nem sempre a emoção é menos valorizada que a razão.
Em alguns contextos os termos se invertem e a emoção torna-se uma força
positiva, criadora, natural e autêntica. Constituiria também a dimensão mais
verdadeira da subjetividade individual. Em contraste, a razão representaria,
nessa visão, o pensamento consciente tomado como artificial. Afinada com
esses sentidos, encontramos também a ideia de que a emoção é sinal de
acolhimento e humanidade, tanto em relação à frieza e distanciamento do
racional, quanto à fisicalidade dos instintos nos animais. Nessa ótica, então, a
pessoa mais emotiva seria mais comprometida, mais envolvida, mais
humana, em oposição à alienação e frieza da pessoa mais racional.
Nesse modo de pensar ocidental moderno, alguns grupos de pessoas são
considerados mais emotivos do que outros, qualidade que implica os atributos
positivos e negativos já discutidos. As crianças são vistas como mais
emotivas, pois ainda não desenvolveram seu domínio da razão. Lutz (1988)
também chama a atenção de que, durante muito tempo, para os segmentos
médios e altos das sociedades euroamericanas, pessoas negras e pobres em
geral, bem como os povos tidos como primitivos, eram também pensadas
como tendo menos controle sobre suas emoções, sendo mais vulneráveis e ao
mesmo tempo perigosas. Entretanto, o grupo que ainda hoje é fortemente
associado às emoções são as mulheres. Com seus comportamentos tidos pelo
senso comum e pela medicina como estreitamente regulados pelos
hormônios, as mulheres seriam mais instáveis emocionalmente e, portanto,
menos racionais. Se essa caracterização é negativa em várias situações,
principalmente no mercado de trabalho, em outros contextos é positiva e
valoriza as mulheres como mais acolhedoras e cuidadosas nas relações do
que os homens. De um modo geral, a qualificação de pessoas como mais
emotivas revela-se elemento de relações de poder nas quais se justifica a
subjugação da parte mais fraca em virtude de seu menor controle das
emoções, demonstrando a dimensão micropolítica dos sentimentos que
discutiremos mais detidamente no capítulo 3.
O olhar das ciências sociais
Quando tratamos esse conjunto de ideias como uma etnopsicologia,
apontamos para o fato de que tal sistema de conhecimento é relativo no
tempo e no espaço, problematizando assim o pressuposto fundamental das
emoções como essências constantes e presentes em todos os seres humanos.
Para embasar essa afirmação, é preciso repassar os elementos dessa visão de
mundo apresentados antes e analisá-los.
O primeiro ponto em questão é a relação entre as emoções e o corpo. A
ideia de que certos processos corporais, como a produção de hormônios,
causam ou afetam as emoções é problemática em função das mudanças no
próprio conhecimento da medicina. Como Juer (2007) discute, a noção de
hormônio como substância secretada em certas partes do corpo só surge ao
longo do século XX. A forma de pensar a distinção entre corpos femininos e
masculinos que estaria por trás de parte da discussão sobre hormônios já
variou ao longo da história, como demonstra Laqueur (1990). Na Grécia
antiga, o corpo feminino era pensado como a imagem invertida do corpo
masculino, de tal maneira que a diferença entre eles era de graus e não de
substância, como vem a ser a partir do século XIX. Assim, atribuir tal ou qual
característica emotiva às mulheres em função dos hormônios mais presentes
em seus corpos é uma visão que não existia nas sociedades ocidentais um
século atrás.
Pode-se argumentar que essas visões não são novas leituras e sim
“descobertas” de “fatos científicos” até então desconhecidos. Mas, como
Foucault (1977), Bourdieu (1983) e muitos outros já demonstraram, a ciência
não é um campo neutro, pois os cientistas são, antes de tudo, pessoas que
vivem em sociedades e momentos históricos específicos. O conhecimento
produzido pela ciência é atravessado por relações de poder que disputam o
que é legítimo, verdadeiro ou não. Neste sentido, o corpo, na análise de
Foucault (1977), torna-se, a partir do século XVIII, objeto de escrutínio, tanto
em termos de sua utilização quanto de sua explicação, e alvo de novas formas
de poder que o disciplinam sob todos os aspectos. Os cuidados do corpo,
através de dietas, exercícios, medicamentos preventivos etc., revelam não
apenas as preocupações em torno dele, mas também um controle estrito e
detalhado de tudo o que acontece com ele. Foucault discute como em torno
do corpo desenvolvem-se saberes — médicos, psicológicos, jurídicos,
demográficos — que atravessam vários campos de poder, pensando-o não
apenas como controle e repressão, mas também como produtor de práticas e
interesses. A medicina em particular implica um campo de conhecimento que
segmenta o corpo em partes como forma de construção de saber para então
articulá-lo e regulá-lo, para torná-lo cada vez mais produtor e eficiente.
Assim, a medicalização do corpo implica não apenas um tipo de
conhecimento que reflete as relações de poder de sua sociedade e sua época,
mas também uma forma de cuidar dele marcada por um extenso
detalhamento que objetiva discipliná-lo.
Como exemplo da relativização do discurso médico, Martin (1997), em
sua análise de manuais de medicina, observa que a linguagem descritiva da
concepção humana espelha noções culturais encontradas nas sociedades
ocidentais modernas sobre homens e mulheres. Assim, na reprodução, o
óvulo foi durante muito tempo pensado como um elemento passivo a ser
penetrado pelo espermatozoide, a parte ativa no processo, reproduzindo assim
ideias sobre os papéis das mulheres como passivas e os homens como ativos
nos encontros amorosos. Mesmo quando na década de 1980 surgiu uma visão
mais interativa e o óvulo passou a ser visto também como participante ativo
da concepção, os termos usados para descrever essa participação — tal como
o óvulo “prende” o espermatozoide — refletem uma visão da mulher como
ameaçadora e perigosa e mantêm ainda o gameta masculino no papel
principal da fertilização.
A questão principal aqui é que o modo como entendemos e vivenciamos
o corpo é sempre mediado pelas formas de pensar cultural e historicamente
construídas. Assim, torna-se difícil separar o que seria um fato biológico de
um fato cultural. Embora seja inegável que na espécie humana o corpo possui
uma mesma estrutura orgânica, a percepção da morfologia e da fisiologia
corporal varia muito. Para citar um exemplo clássico na antropologia, em sua
análise sobre as ilhas Trobriand, Malinowski (1986) mostrou como os
trobriandeses pensavam a concepção e a gravidez excluindo a participação
biológica dos homens. Sua percepção da fisiologia humana atribuía aos rins a
produção de fluido seminal, enquanto os testículos eram vistos como adornos
para tornar o pênis apresentável. Para eles, o fluido seminal masculino não
contribuía para a concepção, que ficava ao encargo dos espíritos dos
antepassados da mulher. Na argumentação de Malinowski, essa representação
era congruente com a organização social dos trobriandeses, baseada na
matrilinearidade, um sistema de parentesco no qual a descendência é traçada
do irmão ou outros parentes masculinos da mãe para seu filho. Assim, tanto a
transmissão de direitos e deveres quanto o reconhecimento de descendência
entre gerações excluíam a figura do pai, explicando portanto sua ausência nos
processos de concepção e gravidez. Mas este mantinha sua importância social
para a unidade doméstica, devendo cuidar tanto da mulher quanto da criança.
Uma vez que as ideias sobre como o corpo funciona são diversas, assim
serão também as formas de relacioná-lo às emoções. Dessa maneira, o modo
como explicamos as emoções tendo origem em certos processos corporais
torna-se parte de uma visão culturalmente específica sobre o corpo, mas não é
uma associação universalmente feita. Faz parte da nossa etnopsicologia, mas
não de outras. Isso implica problematizar a qualidade de universalidade das
emoções em função de uma unidade biológica e psíquica dos seres humanos.
Novamente, se esse aparato biológico e psíquico é uniforme, as percepções
sobre ele não o são, o que conduz também a experiências corporais e
psicológicas muito variadas, posto que são sempre mediadas pela linguagem
que é um elemento da cultura.
Isso não quer dizer, entretanto, que não podemos propor uma visão
teórica sobre a relação entre o corpo e as emoções. Alguns autores (Abu-
Lughod e Lutz, 1990; Fajans, 2006) argumentam que as emoções são
fenômenos incorporados, situados no corpo, sem que isso signifique afirmar
que sejam “naturais”. Fajans (2006) defende que, embora as emoções possam
surgir inicialmente em um bebê como reações biológicas a estímulos
externos, elas são lembradas desde cedo como parte de um contexto de
interação social, e não são pensadas de forma isolada. As emoções tornam-se
então parte de esquemas ou padrões de ação aprendidos em interação com o
ambiente social e cultural, que são internalizados no início da infância e
acionados de acordo com cada contexto. Assim, como ressaltam Abu-Lughod
e Lutz, o aprendizado de como, quando e por quem certo sentimento deve ser
manifestado inclui a aquisição também de um conjunto de técnicas corporais
que incluem expressões faciais, gestos e posturas (1990:12).
Essa visão da relação entre corpo e emoção problematiza várias ideias já
discutidas. Primeiro, temos a noção de que, embora seja possível reconhecer
a variedade cultural de for-mas de expressar as emoções, o sentimento em si
seria da ordem de uma essência humana e, portanto, mais invariável.
Contudo, se a lembrança das reações emotivas está sempre associada ao
contexto de interação que as produziu, já temos o fato de que o sentimento
não é sentido de forma abstrata nem independente de interações sociais
específicas. Além disso, desde muito cedo o aprendizado da linguagem passa
a mediar a experiência, de modo que se torna difícil separar o sentimento de
sua percepção e expressão, mesmo que esta aconteça apenas para o próprio
indivíduo. Assim, a distinção entre sentir e expressar tem relevância teórica
nessa etnopsicologia ocidental moderna, que parte de uma visão específica de
sujeito cujos sentimentos localizam-se em uma interioridade que nem sempre
é manifestada publicamente. Integra, portanto, uma visão de mundo
particular. Torna-se, entretanto, teoricamente problemático para estudos
comparativos feitos em outras sociedades.
Outra ideia questionada pelas ciências sociais é a que atribui às emoções
um caráter impulsivo, de reações que, como os fenômenos corporais, até
certo ponto fogem ao controle da pessoa. Porém, se levarmos em conta que
desde cedo na infância se aprende como, quando e com quem expressar os
sentimentos, torna-se difícil encontrar um estado inicial no qual as emoções
seriam vivenciadas em estado puro, de forma espontânea e sem controle
algum. O que vemos é um aprendizado emocional que, por ser internalizado
muito cedo, deixa de ser percebido como uma forma controlada de viver os
sentimentos. Isso não anula o fato de que as pessoas em certas situações
percebem regras explícitas de como expressar suas emoções, sentindo-se
assim obrigadas a se manifestar de uma dada maneira, enquanto, em outros
momentos, nos quais as normas não são evidentes, acreditam na
espontaneidade de suas expressões, conforme veremos no próximo capítulo.
Há, portanto, entre as sociedades formas distintas de lidar com o controle
emotivo, com conjuntos variados de re-gras que também apresentam graus
diversos de explicitação. Como veremos com mais profundidade no capítulo
4, o estudo clássico de Elias (1993) mostra as várias formas de controle
emotivo ao longo do processo civilizador nas sociedades ocidentais. Se, nos
últimos séculos, surgiu a necessidade de autocontrole sobre o corpo e as
emoções a ser mantido pelo sujeito em todas as situações, antes, o controle
era exercido em alguns contextos, mas não em todos, e era monitorado de
fora para dentro, ou seja, pelos outros principalmente. A questão é que
atualmente, em muitas situações, esse autocontrole é percebido como a forma
natural de o sujeito se expressar, embora esse modo também tenha sido
aprendido e regrado.
Este último ponto vai problematizar também a oposição feita entre
emoção e razão, fonte de outras associações e valorações, como explicamos
na seção anterior. O aprendizado das emoções na infância tem
necessariamente uma dimensão cognitiva, qualidade geralmente pensada
como racional. Além disso, se as emoções são desde sempre regradas, a ideia
de uma pulsão que existe à parte de um controle exercido pela razão deixa de
fazer sentido nessa perspectiva. Michelle Rosaldo (1984) desenvolve bem
esta questão quando diz que a emoção recebe sua forma do pensamento e o
pensamento é sempre carregado de emoção. A diferenciação entre eles, que
ela denomina uma cognição “quente” e outra “fria”, não seria de substância,
mas sim em termos do envolvimento do sujeito. Assim, ela define que “as
emoções são pensamentos de alguma maneira ‘sentidos’ em rubores,
pulsações, movimentos do fígado, mente, coração, estômago, pele. São
pensamentos incorporados, pensamentos permeados pela percepção de que
‘estou envolvido’ (1984:143, tradução nossa).
A distinção entre emoção e pensamento é exemplificada, pela autora,
através da diferença entre escutar e sentir o choro de uma criança, como
quando se percebe que há algum perigo ou que a criança que chora é seu
filho.
Portanto, as emoções, embora situadas no corpo, têm com este uma
relação que é permeada sempre por significados culturalmente e
historicamente construídos. A visão de que as emoções são fenômenos
universalmente compartilhados, posto que fruto de uma unidade biológica e
psicológica do ser humano, é problematizada pelas ciências sociais, que a
toma como elemento da etnopsicologia ocidental moderna. Ilustraremos, na
seção a seguir, o caráter cultural das emoções com a análise de dois
sentimentos específicos: o medo e a raiva, emoções frequentemente
atribuídas a uma essência humana universal.
O medo
O medo é um sentimento que ocupa lugar de destaque em alentadas
análises das transformações por que passou a sociedade ocidental moderna,
como é o caso das obras de Norbert Elias e Jean Delumeau. Suas perspectivas
compartilham um traço fundamental: a afirmação da universalidade da
experiência do medo, entendida como inerente à espécie humana, em
combinação com uma perspectiva historicista que atenta para as várias
configurações que este potencial humano pode receber.
Em seu estudo sobre a natureza do processo civilizador, Elias (1993)
atribui ao estudo do medo um lugar estratégico na compreensão das formas
do controle social. Para Elias, o medo é um canal de transmissão das
estruturas sociais à estrutura psicológica individual. Incutir medo — seja
através de punições ou ameaças explícitas ou de mecanismos velados de
negação da aprovação social — está entre as estratégias de socialização pelas
quais valores e normas são transmitidos de geração para geração, passando a
ser “adotados” pelo indivíduo como objetivos “seus”, os quais, se não
atingidos, poderão gerar sentimentos de fracasso, perda de autoestima etc. O
medo está assim entre os sentimentos com os quais o indivíduo exerce o
autocontrole, em um aprendizado que, conforme veremos mais adiante, está
para Elias no cerne do processo civilizador.
O potencial de sentir medo, em sua visão, faz parte da natureza humana.
Entretanto, as formas pelas quais cada grupo dará vida a essa capacidade são
fruto de circunstâncias históricas e culturais. É neste sentido que Elias
inventaria, entre os medos modernos, o temor de perder o emprego ou de cair
na miséria, entre os grupos sociais de menor poder aquisitivo; ou, entre as
camadas médias e altas, o receio da degradação social ou da perda de
prestígio.
Os medos mudam ainda em função de outras variáveis, tais como o
“medo de sobrar” identificado por Novaes (2006) entre jovens brasileiros
quando falam de suas expectativas em relação ao mercado de trabalho; ou o
“medo de mostrar medo”, analisado por Gay (1995) em seu estudo sobre os
duelos travados por jovens universitários alemães.
Essa perspectiva, em que o medo é visto como um potencial universal
que se realiza de formas particulares a cada contexto histórico e social, é
adotada também por Delumeau (1989). Nessa obra, ele propõe fazer uma
história social do medo na sociedade ocidental entre os séculos XIV e XIX.
Seu argumento é que a necessidade de segurança desempenhou um papel
significativo na história das sociedades humanas, que entretanto foi pouco
compreendido em função da vergonha de admitir o medo. Com a valorização
nos séculos XIV e XVI da coragem, principalmente entre os nobres e os
cavaleiros, o medo figurava pouco nas crônicas da época, aparecendo
basicamente como característica do povo, da massa, e portanto razão de sua
sujeição. Com a Revolução Francesa, houve um discurso semelhante mas
invertido, no qual o medo era também camuflado para “exaltar o heroísmo
dos humildes” (1989:15). Aos poucos, durante o século XIX, a literatura
passou a se preocupar abertamente com o medo.
O autor apresenta uma visão do medo que, embora remeta a qualidades
essencialistas, adquire configurações sociais distintas ao longo da história.
Para ele, o medo decorre de uma necessidade de segurança que “está na base
da afetividade e da moral humanas” (1989:19). Entretanto, a própria
afetividade está mergulhada na “natureza social do homem”, de forma que
tanto indivíduos quanto coletividades constroem sua segurança e seus
temores em função de laços sociais significativos — com a mãe, no caso das
crianças, ou com o grupo dominante, no caso de minorias. Assim, ele
argumenta, um grupo dominante que recusa a relação com dominados
engendra neles medo e ódio. Exemplificando, relata como os vagabundos do
Antigo Regime, na França, provocaram em 1789 o “Grande Medo” dos
proprietários e a ruína dos privilégios jurídicos sobre os quais a monarquia se
assentava.
Ele distingue entre tipos de medos — espontâneos e refletidos, cíclicos e
permanentes — que ora afligiam amplos segmentos da população, ora alguns
setores específicos. Os medos espontâneos podiam ser permanentes,
associados a certo nível técnico (por exemplo, medo do mar ou de
fantasmas), ou cíclicos, como medo das pestes ou dos aumentos dos
impostos. Como exemplo dos medos refletidos, Delumeau analisa o papel da
Igreja em construir adversários para os homens — como turcos, judeus,
heréticos e as mulheres (especialmente as feiticeiras).
Em ambos os estudos, vemos que o sentimento do medo surge associado
a noções de perigo e risco que ameaçam o indivíduo — seja sua integridade
física, sua autoimagem ou sua posição social — ou um determinado grupo
social. É importante frisar que essas noções são construídas histórica e
socialmente, como mostram Delumeau e Elias, e o medo tor-na-se também
uma resposta socialmente regrada a situações percebidas como ameaçadoras.
Assim, a universalidade da experiência do medo, que eles atribuem a uma
essência inerente aos seres humanos, pode ser relacionada ao fato de que
todas as sociedades e os indivíduos que as compõem lidam com ameaças a
uma estrutura física e social que é construída, não sendo portanto garantida
nem certa.
A raiva
Essa mesma perspectiva — um potencial universal realizado sob formas
histórica e culturalmente variáveis — pode ser encontrada na análise do ódio
feita por Gay (1995) com base na experiência, já mencionada, dos duelos
universitários entre jovens alemães.
O Mensur é um duelo de sabres popular entre jovens pertencentes às
fraternidades que povoavam o mundo universitário alemão no século XIX.
Seu objetivo principal era infligir e, paradoxalmente, obter cicatrizes,
preferencialmente no rosto. A sutura dos ferimentos, realizada pelos
estudantes de medicina, era muitas vezes feita de maneira propositadamente
tosca, com o objetivo de produzir uma cicatriz nítida — insígnia corporal da
coragem. Expor-se em um combate capaz de produzir, diante de uma plateia
entusiasmada, ferimentos deste tipo era motivo de grande ansiedade entre os
jovens estudantes, produzindo, entre outras manifestações subjetivas, aquele
medo comentado acima — o medo de demonstrar medo. Inúmeras podiam
ser as razões para duelar, muito embora o duelo fosse com frequência um fim
em si — duelava-se para provar aos outros, e portanto a si mesmo, que se
podia fazê-lo, e com isso afirmar sua própria honra. Assim, muitas vezes não
era uma ofensa que provocava o duelo, mas o contrário: buscava-se uma
ofensa capaz de justificar um duelo. Como exemplo extremo dessa
motivação, podemos citar o caso narrado por Gay em que a clássica
associação entre honra masculina e duelos aparece quase invertida: a história
do estudante que, apesar de apavorado, lutou até ser golpeado no rosto de
forma a deixar uma cicatriz, afirmando fazê-lo “por amor”, mas não porque
outro homem tivesse assediado sua noiva — ao contrário, ela mesma assim
lhe pedira que fizesse, para obter “uma bela cicatriz”…
A que necessidade atende, então, o Mensur? Para Gay, a agressividade é
um impulso inato do ser humano, e a explicação para fenômenos como esse
tipo de duelo está no duplo sentido do termo “cultivo”. Ao forjarem razões
para se agredir, os rapazes estariam ao mesmo tempo dando vazão a um
impulso primário e moldando-o segundo normas sociais, incentivando-o e
controlando-o. O Mensur seria assim um exercício em que se combinariam
dois aspectos fundamentais da natureza humana: o impulso para agredir
(“ódio” ou “raiva”) e a necessidade, exigência da convivência com o outro,
de conter esse impulso. Fazer correr por canais socialmente aprovados o
fluxo da agressividade é assim simultaneamente uma maneira de cultivá-la,
fazendo-a florescer, e de cultivála, domesticando-a.
Sob outra perspectiva, que prioriza sua dimensão sociocultural, o
sentimento da raiva recebeu também bastante atenção no campo da
antropologia das emoções por ser uma emoção que põe em questão as
relações sociais em jogo. Escolhemos mostrar como o sentimento é
experimentado em sociedades distintas, contrastando a análise de Katz (1988)
sobre raiva nos Estados Unidos com a etnografia de Lutz (1988) sobre os
Ifaluk, na Micronésia.
Katz (1988), em seu estudo sobre as seduções do crime, detém-se nas
motivações de pessoas que matam por questões que consideram legítimas.
Ele abre sua análise com o caso de um pai que espanca seu bebê de cinco
semanas até a morte, porque a criança não parava de chorar. O autor aponta
que, nesse assassinato “justificável” (righteous slaughter), a interpretação da
cena não difere muito de eventos cotidianos em que pais demandam respeito
e reagem a desafios e provocações com castigos físicos. A questão em jogo
naquele episódio específico teria sido uma interpretação do choro da criança
como desafiador e desrespeitoso, e o uso da violência como forma de
restabelecer a autoridade paterna.
Com uma abordagem interacionista e comparando dados de diversos
processos judiciais, o autor destaca que esse tipo de interpretação é comum
em várias cenas de interação anteriores a essa modalidade de crime que
produzem um processo emotivo específico, exigindo assim uma organização
de comportamento particular. Katz destaca então três aspectos que marcam a
experiência do assassino: o ato de matar torna-se uma forma de defender
valores coletivos; o ataque é conduzido sem premeditação, à base da raiva e
da ira; e a vítima é marcada por meio de xingamentos de modo que o
assassino possa restituir o bem. A vítima é interpretada como alguém que
desafia o assassino moralmente, de maneira que o assassinato torna-se então
a última instância de defesa da respeitabilidade.
Nessa análise, Katz dedica-se aos sentimentos de humilhação e de raiva
como parte da engrenagem da ação. Embora a análise da humilhação seja
aprofundada no capítulo 3, queremos mostrar aqui como essa emoção
transforma-se na raiva. O sentimento de humilhação surge quando o
indivíduo experimenta ser um objeto pressionado por forças fora de seu
controle. Neste caso, o sujeito acredita na intenção dos outros de degradarem
a sua pessoa. A humilhação pode se transformar em raiva e ódio quando,
segundo Katz, a pessoa acredita que o único modo de resolver esse
sentimento é inverter a estrutura que o originou — o movimento de
inferiorização ou degradação percebido no outro. Nessas situações, quando a
imagem pública da pessoa é manchada, como nos casos de infidelidade
conjugal que muitas vezes levam aos assassinatos “justificáveis” que Katz
examina, perde-se o domínio sobre a identidade e produz-se a ira. Assim, a
raiva e o ódio são tingidos de consciência da humilhação, havendo uma
percepção de dominação moral que toma conta fisicamente da pessoa. Neste
sentido, a raiva do outro é sempre uma confirmação da humilhação, cuja
superação e transcendência passam por ações movidas pela ira.
É importante destacar alguns pontos na análise de Katz sobre a raiva e o
ódio. A articulação da raiva com a humilhação põe em relevo a identidade da
pessoa que é afetada pelo evento que produz esses sentimentos. Como o
respeito pela imagem pública de uma pessoa é um valor importante nessa
sociedade, há portanto um forte componente moral na raiva, para além de um
sentimento que o indivíduo sinta privadamente. Está em questão assim não
apenas a pessoa que sente a raiva mas também o conjunto de relações sociais
ao seu redor — como os outros irão vê-lo e se relacionar com ele.
A etnografia de Lutz (1988) sobre os Ifaluk oferece um contraste
interessante e revelador sobre o sentimento da raiva. A categoria song, que
ela traduz como “raiva justificada”, é um dos principais conceitos usados para
expressar julgamentos morais nessa sociedade. Ao contrário da noção
americana de raiva, que fala de eventos que frustram desejos individuais, a
raiva justificável dos Ifaluk manifesta-se para condenar socialmente certos
acontecimentos e assim conduzir aos comportamentos valorizados
coletivamente.
Ela explica que os Ifaluk reconhecem vários tipos de raiva, como a
irritação que vem com uma doença ou a raiva frustrada com infortúnios ou
eventos que fogem ao controle da pessoa. Mas todas essas formas
distinguem-se do sentimento da raiva justificável e são alvo de crítica e
reprovação. A emoção song é tratada como a sensibilidade moral que toda
pessoa deve ter e é por isso aceita como legítima.
O cenário de interação que produz o sentimento da raiva é aquele em que
há uma violação de regras ou valores que é apontada por uma pessoa que
abertamente condena o ato. O responsável pelo ato então reage com medo
dessa raiva, temendo que a pessoa zangada se torne violenta, e corrige assim
seu comportamento. Lutz apresenta alguns contextos mais comuns nos quais
a emoção song é expressa. Quando jovens rapazes que haviam bebido
voltaram à noite para a aldeia, agindo ruidosamente e contrariando assim o
estilo calmo e pacífico dos Ifaluk, muitas pessoas temeram a raiva justificável
dos chefes, os líderes morais considerados os responsáveis pelo bem-estar da
ilha e seu povo. Outro contexto comum em que se manifestava o sentimento
era quando uma pessoa deixava de cumprir com a obrigação de dividir com
os outros. Compartilhar tudo — desde comida, trabalho e até as crianças —
era um dos principais valores dessa sociedade e em torno dele surgiam
conflitos cotidianos. Assim, quando alguém achava que o outro não estava
dividindo como esperado, declarava sua raiva justificável como forma de
afirmar uma determinada interpretação dos acontecimentos, o que às vezes
era contestado pela pessoa acusada. Com frequência, a possibilidade de que
alguém viesse a expressar esse sentimento tornava-se uma razão explícita
para dividir com o outro. Na educação das crianças também recorria-se
muitas vezes à emoção song para sinalizar que algum valor não estava sendo
observado e que a criança estava apresentando um mau comportamento.
Há também um componente ideológico no acionamento dessa categoria
emotiva, que contribuía para a manutenção das relações de poder. Como
explica Lutz, através das manifestações de raiva justificável era possível
delinear a hierarquia social dos Ifaluk. Assim, chefes sentiam raiva dos
membros da comunidade, adultos das crianças, mulheres mais velhas das
mulheres mais novas, e irmãos de suas irmãs mais novas. A direção em que a
raiva justificável seguia era sempre para baixo na escala social. Em alguns
casos, esse sentimento era usado para tentar alterar as relações de poder,
como entre irmãos ou entre as mulheres e seus maridos, mas nunca entre o
povo e seus chefes.
De um modo geral, portanto, a expressão da raiva justificável servia para
estimular comportamentos adequados aos valores sociais, tanto em crianças
quanto em adultos. Ela sintetiza que “o conceito de song é particularmente
útil na organização do desvio social e na proteção dos interesses pessoais que
são afetados por tal desvio. Simultaneamente, [os roteiros de interação
gerados a partir desta emoção] promovem a reprodução de relações
interpessoais gentis que caracterizam a ilha” (1988:176).
Lutz destaca alguns elementos dessa concepção Ifaluk de raiva
justificável que contrastam com a visão norte-americana de raiva. Esta
implica sentimentos de ofensa, injúria ou frustração que impediriam a pessoa
de agir da maneira desejada. Neste sentido, a raiva seria uma resposta a essa
contenção pessoal que é sentida como uma violação do princípio moral da
liberdade individual. Aqui, estaria em questão uma visão do indivíduo como
um centro de direitos, distinta da concepção Ifaluk que toma a pessoa como
componente de relações. Além disso, apesar de ressaltar um valor moral
importante para os americanos, a raiva é considerada um sentimento
antissocial, que pode gerar comportamento agressivo. Por outro lado, a
retenção da raiva também não é bem-vista, em função da ideia de uma
emoção que precisa ser expressa para não “explodir” de forma violenta.
Em comum nas duas sociedades — e aqui acrescentamos pontos
colocados por Katz —, encontramos que a expressão dos sentimentos de
raiva fala da violação de valores culturais importantes, seja o controle de si e
de sua identidade ou o compartilhamento de bens e pessoas. Daí que, nas
situações em que a raiva está em questão, há sempre um julgamento moral do
responsável pelo ato que produz essa emoção. Assim, em ambas as
sociedades os modos de lidar com a raiva funcionam como formas de
controle social. Lutz aponta também que as semelhanças entre a raiva e song
surgem do fato universal de que há divergências entre os mundos ideal e real
e delas resultam conflitos. Neste sentido, ambos os conceitos são usados para
dar sentido e lidar com a discrepância moral e o conflito interpessoal. Como
ela sintetiza, “o que difere é a interpretação que cada um faz do que são
mundos reais e ideais e o quão vigorosamente, coletivamente, verbalmente ou
não verbalmente se resolve o problema ou a ofensa” (1988:181).
Capítulo 2

Emoções: individuais ou sociais?

As ciências sociais têm no par indivíduo-sociedade uma oposição


fundadora. Entre os clàssicos, Émile Durkheim e Georg Simmel a elegeram
como eixo em torno do qual formularam seus projetos teóricos para a recém-
criada disciplina. Naquele momento, esses esforços iniciais de fundação da
sociologia eram voltados para a demarcação de um campo próprio de atuação
intelectual, em larga medida tomando a ciência da psicologia como “outro”
diante do qual delimitar uma abordagem particular do ser humano.
Deriva daí uma dificuldade histórica para a possibilidade de construção
da emoção como um objeto das ciências sociais. Associada, como vimos no
capítulo anterior, na etnopsicologia ocidental ao domínio da psicologia
individual, a emoção é entendida, no senso comum das sociedades modernas
complexas ocidentais, como algo que diz respeito à singularidade psicológica
do sujeito, o que a tornaria portanto refratària a condicionamentos de natureza
sociocultural. A emoção “autêntica” seria aquela que emana do íntimo de
cada um, tendo raízes nas histórias de vida particulares, no que a sociedade e
a cultura não teriam qualquer participação.
O exercício que propomos neste capítulo é uma desconstrução dessa
visão da emoção como um aspecto da experiência humana que seria, por sua
natureza individual, refratária a uma abordagem socioantropológica. Para
isso, retomaremos na primeira seção as formulações de Durkheim e Simmel
em seus textos programáticos, contrastando-as com a maior sutileza de outros
trabalhos em que os autores se voltaram para o estudo de emoções ou estados
emocionais específicos, quando podemos entrever então um esforço de
encompassamento da emoção como um objeto de estudo possível. Em
seguida, exporemos a maneira como Marcel Mauss fez avançar a
compreensão dessa tensão indivíduo-sociedade no estudo das emoções, com
uma exploração do modo como o obrigatório e o espontâneo entrelaçam-se
na experiência emocional individual. Na segunda seção, analisaremos alguns
sentimentos selecionados explicitamente pelo seu potencial para a
compreensão dessa tensão individual-social na experiência das emoções.
O lugar da emoção nas ciências sociais: formulações
clássicas

Georg Simmel e a oposição forma-motivação


Em “O problema da sociologia”, cuja publicação original data de 1908, o
sociólogo alemão Georg Simmel esboçou um projeto teórico no qual buscou
definir o objeto da sociologia. Sua proposta baseia-se em uma concepção da
sociedade como formada pela interação entre indivíduos. Para Simmel,
interagir é “relacionar sua condição com a do outro”, ou seja, levar em conta,
na forma de agir, a presença ou existência de um outro. Toda interação é
composta por uma “forma” e uma “motivação”. A “motivação” é o conteúdo,
o interesse ou objetivo do indivíduo que se engaja em uma interação; a
“forma” é o modo, um formato por meio do qual aquele conteúdo passa a
existir.
Forma e motivação, contudo, não constituem pares fixos. Há um sem-fim
de motivações, que podem ser eróticas, associativas, cooperativas,
competitivas, agressivas, religiosas etc.; há também incontáveis formas
através das quais essas motivações ganham realidade, tais como jogos,
guerras, casamentos, grupos de ajuda mútua, igrejas, partidos, clubes ou
sindicatos. Os elos entre formas e motivações são também fluidos, no sentido
de que tanto uma mesma motivação pode assumir formas diversas — o
impulso erótico pode, por exemplo, levar ao casamento (monogâmico ou
poligâmico), ao adultério, ao “ficar com” etc. — quanto uma mesma forma
pode ser gerada por motivações distintas — o casamento pode ser motivado
pelo amor, pela atração sexual, pela necessidade/desejo de estabelecer uma
relação de aliança, por interesses pecuniários etc.
Do ponto de vista empírico, forma e motivação são indissociáveis:
nenhuma forma de sociação é imotivada, nenhuma motivação é amorfa. Toda
e qualquer motivação só pode ganhar realidade sob uma forma socialmente
estabelecida, do mesmo modo como toda forma precisa de uma motivação
para existir. Entretanto, do ponto de vista conceitual, Simmel as separa de
maneira a propor uma definição da “unidade de análise” da sociologia: a
forma. Usando o exemplo do ódio entre ex-companheiros, ele afirma que,
como ocorrência, trata-se inegavelmente de um fenômeno psicológico. A
pergunta “sociológica”, contudo, seria dirigida às categorias de “união” e
“discórdia”. O autor é enfático ao afirmar que os dados da sociologia são
processos psicológicos, os quais contudo estariam fora do escopo analítico da
sociologia, sendo preciso deles abstrair a “realidade objetiva da sociação”.
Contudo, essa nitidez com que ele separa o psicológico do sociológico
em um texto de natureza programática fica esmaecida quando volta sua
atenção para a análise de sentimentos. Um exemplo seria o texto “Fidelidade
e gratidão”, em que discute sua contribuição essencial para a estabilidade e
coesão da vida social. A fidelidade é descrita como um sentimento
“sociologicamente orientado”, ou seja, em vez de gerar novas relações, ela
decorreria da antiguidade de uma relação. Já a gratidão seria o sentimento
que motivaria a reciprocidade, mesmo na ausência de coerções externas. O
ponto fundamental aqui é a atenção que Simmel dá, ao examinar o problema
da coesão social, à dimensão afetiva da estabilidade das formas sociais,
permitindo-nos assim entrever uma concepção da relação forma-motivação
mais nuançada do que aquela esboçada em seu texto programático.

Émile Durkheim e o “fato social”


Em 1895, Émile Durkheim (1984) formula seu projeto teórico-
metodológico para a nova disciplina da sociologia em um texto que integra
hoje o cânone das ciências sociais. Neste pequeno livro, postula como
unidade de análise o “fato social”. Este é definido como algo que “existe fora
das consciências individuais”, sendo capaz de exercer uma ação coercitiva
sobre a vontade individual.
Esse poder de coerção, contudo, é algo além de uma característica, entre
outras, do fato social: é uma espécie de “prova dos nove” para estabelecer a
natureza social de um fato. Para Durkheim, é ao ser capaz de coagir a vontade
individual que um fenômeno estabelece sua condição de “social”, uma vez
que atesta assim a externalidade, em relação à consciência individual, de sua
existência. Essa coerção pode ser exercida de diversas formas, como por
exemplo constituições, códigos penais, condenação pela opinião pública ou
costumes.
Essa importância atribuída à existência externa ao indivíduo como
“atestado” da natureza social de um fato é expressão do esforço feito pelo
autor para encontrar um lugar em meio às ciências que, no cenário intelectual
em que atuava, estudavam o homem: a filosofia, a biologia e a psicologia.
Elas tinham, cada qual, sua dimensão própria do humano para perscrutar: sua
transcendência, sua fisiologia, seu psiquismo. Ele sugere a existência de uma
quarta dimensão — a social —, cuja especificidade e independência em
relação às demais se empenha em demarcar como forma de criação de um
espaço de atuação intelectual que legitime falar em uma “nova disciplina”.
Reencontramos assim um movimento intelectual que compartilha com o
programa de Simmel ao menos esse traço fundamental: a eleição da
psicologia como “outro disciplinar”, com a exclusão de tudo aquilo que é
associado ao psicológico do escopo da sociologia. Entretanto, também na
sociologia durkheimiana a oposição indivíduo-sociedade (ou psicológico-
sociológico) se complexifica em outros momentos. Um bom exemplo é a
noção de “efervescência”, discutida por Durkheim ao analisar ritos e crenças
religiosas. A “efervescência” é um estado alterado da atividade psíquica
individual, que somente se produz quando o sujeito está imerso em meio a
uma coletividade, cuja marca é a intensidade. A participação em uma
coletividade desse tipo pode ainda, segundo ele, provocar a posteriori uma
impressão de não reconhecimento de si.
Essa possibilidade — a existência de fenômenos coletivos capazes de
alterar o estado de consciência individual —, se, por um lado, atesta a
natureza coercitiva do fato social, por outro introduz ao mesmo tempo um
matiz nessa concepção da relação indivíduo-sociedade como uma oposição,
sugerindo que o social pode estar também dentro do indivíduo, nuan çando
assim a formulação programática do fato social como aquilo que existe “fora
da consciência individual”.

Marcel Mauss e a expressão dos sentimentos como linguagem


É nessa direção que Marcel Mauss faz avançar a reflexão em torno do par
indivíduo-sociedade. Em um pequeno artigo no qual examina ritos funerários
australianos, “A expressão obrigatória dos sentimentos”, mostra o caráter
ritualizado da expressão dos sentimentos, que se acentua ou recua segundo
momentos socialmente demarcados na sequência ritual, obedecendo além
disso a uma estética comum. Gritos, lamentações ou lágrimas não seriam
apenas expressões externas de sentimentos oriundos do íntimo de cada um,
mas, ao contrário, seriam pautados por uma gramática comum.
Entretanto, Mauss complexifica o problema central da sociologia
durkheimiana — da qual é herdeiro e continuador — referente à natureza
coercitiva do fato social. Se, por um lado, a reflexão sobre o modo como o
obrigatório e o espontâneo relacionam-se na experiência individual continua
central, por outro nos oferece um quadro mais nuançado dessa relação. Para
ele, a natureza ritualizada e coletiva da expressão dos sentimentos é prova
cabal de seu caráter de “fato social”; isto, contudo, não impede que os
sentimentos sejam espontâneos, por serem assim vivenciados por quem os
expressa. Para ele, a expressão dos sentimentos é uma linguagem, em que o
indivíduo comunica aos outros aquilo que sente em um código comum, nesse
movimento comunicando também a si mesmo suas emoções.
Surge assim um modelo teórico para se pensar as emoções como objeto
das ciências sociais cuja contribuição maior está na porta que abre para
construirmos, como objeto de nossa reflexão, a percepção ocidental moderna
das emoções como provenientes do íntimo de cada um, em vez de deixarmos
que esta representação tolde a possibilidade de reconhecermos a experiência
emocional como algo histórica, social e culturalmente configurado. Esta
tensão é o eixo que orienta a análise dos sentimentos que examinaremos a
seguir.
As gramáticas dos sentimentos
Estar só ou estar com o outro pode ser entendido como uma clivagem
fundamental da experiência humana, que recebe, nas várias maneiras que o
ser humano inventou para conviver, um sem-fim de configurações distintas.
Escolhemos para discutir dois sentimentos que podem ser entendidos como
esforços emocionais de fusão com o outro (o amor e a admiração); dois
sentimentos suscitados pela ausência do outro (a solidão e a saudade); e um
tipo de relação engendrado pelo desejo de estar com o outro (a amizade).
De todas as maneiras que há de amar: a concepção
moderna de amor
Entre os sentimentos aos quais as ciências sociais já devotaram sua
atenção, o amor tem certamente um lugar de destaque, com sua natureza
tendo sido objeto das reflexões, entre outros, de Simmel (1993) e Luhmann
(1991). As transformações produzidas nas relações amorosas também vêm
merecendo a atenção dos teóricos da modernidade, como atestam as reflexões
de Bauman (2004) sobre o “amor líquido” ou de Giddens (2002) sobre as
“relações puras”.
O campo das reflexões sobre a comunicação de massa é outro espaço
pródigo em análises sobre o amor. O foco principal é a forma como esse
sentimento é representado nas produções discursivas midiáticas, tal como na
obra clássica de Morin (1984), em que o amor é incluído no rol das temáticas
centrais da indústria cultural. No Brasil, alguns autores também envidaram
esforços de reflexão sistemática sobre o sentimento amoroso, como Lázaro
(1996, 1997).
Em um artigo publicado em uma coletânea dedicada à antropologia da
arte, Benzaquen de Araújo e Viveiros de Castro (1977) realizaram uma
análise da concepção de amor presente na tragédia shakespeariana Romeu e
Julieta, sugerindo ser uma espécie de “mito de origem” da noção moderna de
amor. O argumento apresentado pelos autores é uma excelente “porta de
entrada” para a compreensão da natureza histórica e culturalmente construída
desse sentimento, razão pela qual o escolhemos, em meio à pluralidade de
trabalhos sobre o amor, para expor de modo mais detalhado.
Os autores ancoram sua análise na concepção de mito de Lévi-Strauss
(1975): uma narrativa em que as sociedades discutem a si mesmas, suas
tensões e contradições. O mito não teria assim um autor individual, sua
“autoria” sendo sempre coletiva. O ponto central aqui é que, ainda que o mito
possa ter recebido uma versão literária consagrada — como no caso do mito
de Édipo em Édipo-Rei, de Sófocles, ou no caso aqui discutido de Romeu e
Julieta —, a história contada fala de tensões e conflitos que dizem respeito a
um grupo social que nela se espelha, residindo aí a razão principal de sua
perenidade. É essa concepção de mito que nos autoriza a “ler” nessa narrativa
algo mais do que a visão de seu autor, permitindo-nos aí entrever uma forma
de representar e vivenciar o amor comum a toda uma coletividade que se
reconhece nessa narrativa.
Benzaquen de Araújo e Viveiros de Castro tomam a oposição entre
holismo e individualismo, proposta por Dumont (1992), como eixo principal
para a análise da concepção de amor presente na história de Romeu e Julieta.
A partir de um exame da lógica que orienta o sistema de castas na Índia,
Dumont formula sua clássica oposição entre holismo e individualismo: duas
ideologias distintas acerca da posição do indivíduo em relação à sociedade.
No holismo, o indivíduo é concebido como parte de um todo, com seu lugar
no mundo sendo definido a partir de seu “lugar” de nascimento, ou seja, sua
identidade é conferida a partir de seu pertencimento a um grupo familiar e do
lugar deste no todo social. O nascimento em um dado grupo define assim,
entre outras possibilidades, direitos e deveres políticos, profissões ou
parceiros possíveis para casamento. O individualismo, por sua vez, é uma
ideologia que entende o indivíduo como valor supremo ao qual a sociedade
estaria subordinada, sendo esta concebida como uma “associação” de
indivíduos cuja existência lhe seria anterior e que se agrupariam por vontade
própria. Nessa ideologia, a identidade é entendida como uma construção de
dentro para fora, ou seja, a singularidade individual, combinada aos
princípios da igualdade e liberdade no mundo público, seria a fonte da
construção do lugar do indivíduo na sociedade.
O holismo seria uma ideologia típica das sociedades tribais e de algumas
outras formas complexas de organização social, como a sociedade de castas
da Índia; o individualismo, por sua vez, seria a ideologia predominante no
Ocidente moderno. Entretanto, o Ocidente nem sempre teria sido
individualista, tendo conhecido um período holista na Idade Média, com a
transição de uma ideologia para outra se dando, na interpretação de Dumont,
durante o Renascimento.
Ora, é exatamente nesse momento que se dá a consagração da história de
Romeu e Julieta sob a forma de tragédia por Shakespeare. É bom lembrar que
a história, em suas linhas gerais, não é uma criação original de Shakespeare,
já circulando em poemas e outras formas narrativas anteriores a sua versão
teatral. O que sua retomada durante o Renascimento e seu “sucesso”
estrondoso — expresso na perenidade de seu tema — nos dizem sobre a
representação moderna do sentimento amoroso?
Benzaquen de Araújo e Viveiros de Castro realizam uma análise
estrutural da tragédia, identificando três pares de opostos que estruturam a
narrativa: amor/família, corpo/ nome, alma-coração/corpo. A primeira delas é
dada pelo próprio cerne da trama: o amor que une Romeu e Julieta encontra
em suas famílias de origem um ferrenho opositor, contra o qual o casal se
insurge ao casar-se em segredo.
A segunda oposição — corpo/nome — surge na famosa cena do balcão,
em um diálogo citado pelos autores, em que Julieta apela a Romeu para que
renegue seu nome, alegando ser o nome irrelevante em sua identidade, algo
que “não faz parte dele”:

Julieta — Romeu, Romeu! Por que razão tu és Romeu? Renega teu pai e
abandona esse nome! Ou se não queres jura então que me amarás, e eu
deixarei de ser Julieta Capuleto!
Em ti, só o teu nome é que é meu inimigo! Tu não és Montecchio, mas tu
mesmo! Afinal, o que é um Montecchio? Não é um pé, nem a mão, nem um
braço, nem um rosto. Nada do que compõe um corpo humano. Toma outro
nome! Um nome! Mas, que é um nome? Se outro nome tivesse a rosa, em vez
de rosa, deixaria por isso de ser perfumosa? Assim também, Romeu, se não
fosses Romeu, terias, com outro nome, esses mesmos encantos, tão queridos
por mim! Romeu, deixa esse nome, e, em troca dele, que não faz parte de ti,
toma-me a mim, que já sou toda tua!

A resposta de Romeu confirma essa cisão entre nome e identidade, em


que o sobrenome — atestado de pertencimento a um grupo familiar — é
prontamente deixado de lado como um entrave à vivência do amor:

Romeu — Farei o teu desejo de bom grado! Por ti, trocarei seja o que for!
Por ti, serei de novo batizado! Não me chames Romeu… mas sim o Amor!
Não, minha bela, nem Montecchio nem Romeu! Já que meu nome não te
agrada, eu não sou eu!
Citado por Benzaquen de Araújo e Viveiros de Castro
(1977:150)

A terceira oposição — alma-coração/corpo — surge na peça por ocasião


do exílio imposto a Romeu pelo Príncipe, por ter desobedecido à proibição de
duelar e, em um embate, ter matado Teobaldo (parente de Julieta) ao sair em
defesa de seu amigo Mercúcio (morto também na mesma ocasião).
Fisicamente afastados, contudo, Romeu e Julieta continuam espiritualmente
ligados pelo amor: é possível afastar seus corpos, mas não romper a união
entre suas almas, metaforizadas pelo “coração”.
Essas três oposições podem ser sintetizadas em uma única: a oposição
entre um eu individual (amor, corpo, alma-coração) e um eu social (família,
nome, corpo). Ao melhor estilo das análises estruturalistas, vemos que os
elementos deslocam-se, seu sentido estando na relação que estabelecem com
os demais elementos — é assim que “corpo”, quando oposto a “nome”,
significa o eu individual, mas quando oposto a “alma”, representa o eu social.
Esta oposição, entre uma dimensão individual do sujeito e uma dimensão
social, estrutura a interpretação proposta pelos autores para esta tragédia.
Para Benzaquen de Araújo e Viveiros de Castro, Romeu e Julieta pode
ser entendido como um “mito de origem” do amor moderno, exatamente por
situar-se na passagem de uma ordem holista para uma ordem individualista. É
a convivência entre esses dois códigos que engendra a tragédia, com o
apaziguamento eventual do conflito entre as duas ideologias destruindo as
condições de possibilidade da trama.
Se não, vejamos: em uma ordem holista, Romeu e Julieta não se
amariam, plenamente reconhecidos que estariam em suas identidades dadas
pelo pertencimento a suas famílias de origem. Ou ainda, poderiam até se
amar, mas certamente não veriam nisso um motivo para casar-se, uma vez
que o amor como motivação para o casamento é invenção recente. Tragédia
desfeita, uma vez que a mola propulsora da tragédia — o casamento em
segredo, à revelia das famílias — não ocorreria.
Por outro lado, em uma ordem individualista, Romeu e Julieta poderiam
(ao menos no plano ideal) amar a quem quisessem, e escolher seu cônjuge
por questões de foro íntimo, sem preocupações com o estabelecimento de
relações de aliança (motivação para o casamento típica das sociedades
tradicionais e holistas). Suas famílias poderiam não aprovar suas escolhas,
poderiam se opor, mas dificilmente um casal moderno, se tomado de paixão
tão avassaladora, se submeteria a esses ditames. Tragédia desfeita, uma vez
que a mola propulsora da tragédia — o casamento em segredo, à revelia das
famílias — não ocorreria.
É portanto essa convivência entre códigos contraditórios, o holismo e o
individualismo, típica das fases de transição, que engendra a tragédia de
Romeu e Julieta. Tomada como mito, ela nos mostra a emergência de uma
noção de amor em que um sentimento proveniente do íntimo do sujeito o faz
voltar-se contra o social, a ele impondo sua vontade — é um sentimento
embebido pela ideologia individualista.
Esse sujeito determinado de dentro, contudo, e livre em relação à
sociedade, está amarrado a ditames de outra ordem. Esse amor todo-
poderoso, que o faz enfrentar qualquer obstáculo, não é escolha sua: é de
natureza cósmica, estando ele destinado a amar aquela pessoa. Romeu e
Julieta se apaixonam em um baile de máscaras, sem que um tenha noção de
quem é o outro. A determinação cósmica desse sentimento surge aí com toda
a nitidez: livre para agir em nome do amor, o indivíduo moderno não é,
contudo, livre para não amar, ou mesmo para escolher a quem amar. O amor
é assim concebido como algo que se abate sobre o indivíduo: ou será que
alguém acharia que, tendo em vista o desenlace, Romeu e Julieta escolheriam
se apaixonar um pelo outro, caso lhes fosse dada essa chance?
Vemos assim o surgimento de uma concepção de amor em que o
indivíduo é tomado por um sentimento de origem sobredeterminada, em
nome do qual insurge-se contra qualquer determinação de ordem social que
se oponha à vivência plena desse sentimento. Mas esta é uma maneira de
amar que, embora tendo em Romeu e Julieta seu mito de origem, o
transcende em muito, podendo esta narrativa ser tomada como uma “matriz”
para inúmeras outras produções discursivas contemporâneas, que lotam o
universo da comunicação de massa. São filmes, poemas, romances, letras de
música, peças de teatro, todas elas tematizando o “amor impossível”, aquele
que arrebata o sujeito e em nome do qual ele move montanhas, encontrando
em tantas versões o mesmo destino trágico de Romeu e Julieta. Os obstáculos
enfrentados, contudo, variam, ampliando o leque dos “antagonistas”, que já
não se restringem à família, podendo ser guerras, morte, tempo ou mesmo a
natureza. É assim em Love story ou Ghost (a morte); em Doutor Jivago,
Casablanca ou E o vento levou (guerras e revoluções); em Em algum lugar
do passado (o tempo); e em Splash ou Xanadu (a natureza).
Nessa lista de produções cinematográficas há um pouco de tudo, entre
dramas e comédias, filmes clássicos e produções mais recentes de orientação
marcadamente comercial. Entre os clássicos, contudo, há uma constante: os
protagonistas terminam separados. Mas não será exatamente por isso que são
clássicos, no sentido de se eternizarem na memória do público? Se o amor
está entre os temas centrais da indústria cultural e se o happy end, conforme
afirmou Morin (1984), é um compromisso desse tipo de produção cultural,
não faria sentido então aventar a hipótese de que o lugar tão central desses
filmes no imaginário romântico popular do Ocidente contemporâneo estaria
justamente ligado a esses finais, que, justamente por não serem “felizes”, não
seriam propriamente “finais”? Será que, por não permitirem a seus
protagonistas viverem seu amor, esses filmes permaneceriam inacabados na
imaginação de seu público, à maneira de um “gancho” de telenovela? Ou
quem, entre os aficcionados por esses filmes, nunca sonhou com a volta de
Rhett para Scarlett, ou nunca refez a cena final de Dr. Jivago, fazendo com
que Lara se voltasse e o visse agonizando na calçada?
Os temas de Romeu e Julieta, assim, ecoam até hoje em um sem-fim de
produções discursivas contemporâneas, atuando como uma “matriz” para
esse imaginário do amor romântico. Em muitas dessas narrativas,
reconhecemos essencialmente seu núcleo temático do amor impossível; em
outras, um con-junto maior dos traços apontados por Benzaquen de Araújo e
Viveiros de Castro em sua exposição sobre as características da noção
moderna de amor. É o caso de Exagerado, composição de autoria de Cazuza,
que tomamos aqui para ilustrar este lugar “matricial” do amor de Romeu e
Julieta. Diz a letra:

Amor da minha vida


Daqui até a eternidade
Nossos destinos foram traçados
Na maternidade
(…)
Eu nunca mais vou respirar
Se você não me notar
Eu posso até morrer de fome
Se você não me amar
E por você eu largo tudo
Vou mendigar, roubar, matar
Até nas coisas mais banais
Pra mim é tudo ou nunca mais
(…)1

O “apaixonado” de Cazuza é um sujeito que, como Romeu, afronta a


sociedade, em versão ainda mais exagerada, em nome de seu amor: ele
mendiga, rouba e mata. Aqui, a sociedade não é o único antagonista, com sua
própria natureza humana sendo também alvo de enfrentamento: ele deixa de
respirar, morre de fome. Entretanto, heroico em sua determinação de viver
seu amor, este sujeito apaixonado é submisso diante do destino: sua vida
inteira é determinada por uma instância cósmica, da maternidade até a
eternidade.
Em uma letra da música pop brasileira dos anos 1980, vemos assim
reproduzida, em pinceladas gerais, a concepção do amor moderno
identificada por Benzaquen de Araújo e Viveiros de Castro na tragédia
renascentista “Romeu e Julieta”, sugerindo assim a acuidade de sua
interpretação deste texto como um “mito de origem” deste amor. Esta análise,
ao sugerir a relação entre este sentimento e a ideologia individualista, é um
excelente exemplo da perspectiva que entende as emoções como construções
históricas, a exemplo desta maneira de amar típica da modernidade ocidental.

Uma outra maneira de amar: o fã e a experiência do fascínio


O amor moderno tem, entre suas características centrais, o poder de
singularizar, ou seja, de fazer o indivíduo sentirse especial. O sujeito
enamorado vive sua paixão como algo único, que nunca alguém sentiu igual;
ora, se este traço é recorrente nas experiências da paixão, então ao menos isso
todos os apaixonados têm em comum: a convicção de que nunca alguém
sentiu algo parecido antes.
Este paradoxo — igualar-se na percepção de ser diferente — é típico da
experiência moderna, consistindo em uma configuração historicamente
particular daquela tensão que Simmel (2006) já apontava como constitutiva
da condição humana: a tensão entre compartilhar, saber-se igual, e
diferenciar-se, saber-se singular. Este dilema acentua-se, evidentemente, na
sociedade de massas, com seu apelo indiferenciado à singularização. Nesta
seção, queremos acompanhar o modo como este drama é vivenciado em uma
experiência indissociável da sociedade de massas: a condição de fã e as
emoções a ela associadas, a saber, o amor e a fascinação.
Em trabalho voltado para a compreensão da experiência da fama, Coelho
(1999) analisou um conjunto de cartas endereçadas por fãs a seus ídolos
televisivos, um ator e uma atriz de grande projeção no meio televisivo
brasileiro, sendo ambos protagonistas de novelas no horário nobre da Rede
Globo de Televisão. Lidas em conjunto, estas cartas chamam a atenção por
trazerem um esforço recorrente da parte dos fãs em diferenciar-se perante
seus ídolos, justificando a expectativa de uma resposta. Este esforço é
baseado em uma certeza, mais ou menos explícita, mais ou menos nuançada,
da própria singularidade, de ser único em meio a muitos, certeza essa que
surge sob duas formas principais: o recurso frequente à expressão “fã número
1”, utilizada por muitos para reivindicar do ídolo o reconhecimento da
natureza diferenciada da admiração que lhe dedicam, e a utilização recorrente
do discurso amoroso para expressar a natureza de seus sentimentos.
O conjunto de cartas analisado é composto por cerca de 280 cartas, sendo
80 para o ator e as demais para a atriz. O tom é sempre afetuoso, com
manifestações de apreço e admiração, independentemente das variações de
gênero – tanto do fã quanto do ídolo. O escopo deste afeto é amplo, podendo
ir de elogios respeitosos até eloquentes declarações de amor.
Morin (1980), discutindo o universo das estrelas de cinema
hollywoodianas, afirma que nas cartas de fãs “a lingua-gem do amor (…) se
mistura com a da adoração” (p. 58). É para a análise desta “mistura” que
Coelho volta sua atenção, sugerindo uma interpretação para o porquê do
recurso, pelos fãs, ao discurso amoroso para expressar seus sentimentos.
Sua interpretação baseia-se em uma estranheza inicial: se o modelo da
relação amorosa ideal é diádico e baseado na reciprocidade e na
exclusividade, por que os fãs a ele recorrem para falar do que sentem por seus
ídolos? Não seria flagrante a distância entre a relação amorosa ideal e uma
relação entre líder carismático-seguidor (típica das relações de idolatria)?
Não é esta, ao contrário, definida por um modelo “centrípeto” – muitos
devotando seu afeto a um único, o qual, por definição, não o retribui em
natureza ou intensidade, além de reparti-lo por um grupo, não sendo jamais
exclusivo?
A autora recorre à comparação realizada por Lindholm (1993) entre as
experiências do amor e do carisma para sugerir uma interpretação para o
porquê do recurso ao discurso amoroso pelos fãs. Com base na noção
freudiana de “identificação”, Lindholm discute as formas possíveis de
satisfação do desejo humano de “escapar aos limites do eu”, elencando, ao
lado da terapia, do consumo e da adesão a ideais de nação, o pertencimento a
grupos carismáticos e o amor romântico.
Estas experiências compartilhariam a capacidade de propiciar ao sujeito a
vivência de um “estado fusional”, um perder-se no outro que compensaria as
incertezas do eu, permitindo a eclosão de uma sensação de êxtase. Amor e
carisma teriam assim em comum a capacidade de provocar no indivíduo
enamorado/fascinado uma sensação de conforto gerada pela “fusão” com o
outro. Por esta mesma razão, seriam mutuamente excludentes, ou seja,
impossíveis de serem vivenciados simultaneamente, mas nem tanto porque o
sujeito não possa; é mais porque não precisa, uma vez que o desejo fusional
pode ser atendido tanto por um quanto pelo outro, sendo uma impossibilidade
de sua natureza uma vivência parcial, que permitisse ou exigisse
“complementações” de qualquer espécie.
Entretanto, ainda segundo Lindholm, haveria uma diferença fundamental
entre o amor e o carisma: sua valoração social. Para ele, o amor romântico
seria uma experiência socialmente valorizada na modernidade ocidental;
basta lembrarmos, em favor de seu argumento, a profusão de discursos
ficcionais que giram em torno da experiência do enamoramento, (quase que)
invariavelmente descrita como desejável. Não é o sujeito apaixonado um dos
principais protagonistas dos enredos matriciais da comunicação de massa?
O carisma, por sua vez, seria objeto de uma desvalorização social, com a
adoração carismática sendo alvo de sentimentos de hostilidade e menosprezo
nesta mesma modernidade ocidental, e com frequência associada a formas
várias de patologia mental. A comunicação de massa novamente é uma boa
fonte de argumentos a favor da postulação de Lindholm; conforme demonstra
Coelho neste mesmo trabalho, os filmes que tematizam a relação fã-ídolo
invariavelmente descrevem o primeiro como um sujeito adoecido, solitário e
descontrolado, a quem as narrativas reservam sempre um “unhappy end”: o
abandono ou a morte, jamais a relação desejada com o ídolo.
Temos assim duas experiências emocionais capazes de produzir no
sujeito um mesmo efeito: a satisfação de um desejo de fusão com o outro.
Estas duas experiências, contudo, são objeto de valorações sociais distintas,
sendo o amor recomendável e o carisma execrável. Se, contudo, a experiência
do fã pertence tão evidentemente ao elenco dos eventos carismáticos, por que
o fã fala de amor? Por que não fala de adoração ou fascínio?
Coelho recorre à combinação de duas ideias para propor uma
interpretação para esta estratégia típica das cartas de fãs: a noção de Morin
(1984) de que a indústria cultural seria uma “escola de interpretação da
experiência” e a concepção de Mauss (1981), discutida acima, de que a
expressão dos sentimentos seria uma “linguagem”. Para Morin, a indústria
cultural ofereceria um conjunto de modelos para a conduta privada, seria um
espaço de produção de mitos e discursos que os indivíduos tomariam como
guias para a compreensão e condução de suas vidas privadas, a vivência
afetiva aí incluída. Em sendo assim, os consumidores das narrativas
midiáticas aprenderiam a valorizar a experiência do amor, ao mesmo tempo
em que se veriam diante de uma produção discursiva que maciçamente
condena o sentimento do fascínio como algo patológico e desqualificante.
Ou seja: ser fã é algo a ser evitado. Dizer-se fascinado é um risco para a
autoimagem. O fã vê-se assim diante de um dilema, imprensado pela
necessidade de expressar o que sente e a percepção, mais ou menos clara,
mais ou menos difusa, da natureza socialmente desvalorizada deste afeto.
Mauss, conforme vimos, entende a expressão dos sentimentos como uma
linguagem. Aqui, interessa destacar a natureza de “mão-dupla” desta
linguagem: o indivíduo, ao falar do que sente, comunica-se consigo mesmo
através da comunicação com os outros, compreendendo, por meio desta
expressão, aquilo que sente.
Coelho toma esta concepção de Mauss da expressão dos sentimentos
como uma forma do sujeito compreender o que sente como alicerce teórico
para sugerir uma interpretação de por que o fã fala de amor para seu ídolo,
apesar de todas as inadequações aparentes desta escolha. É porque,
confrontado com uma imagem socialmente desvalorizada de sua experiência
emocional, e tendo diante de si uma experiência de natureza vizinha porém,
ao contrário, objeto de valorização social, o fã “traduziria” o fascínio em
amor, neste movimento resgatando, para o outro e para si, uma imagem
favorável de seus sentimentos.
E mais: dizer-se fascinado é inserir-se em uma multidão, é aceitar ser um
em meio a muitos. Dizer-se apaixonado é resgatar a dimensão singular de sua
identidade, colocando-se no lugar daquele herói apaixonado convicto da
originalidade e força de seus sentimentos. O fã que fala de amor para seu
ídolo reencontra assim aquele paradoxo com que abrimos esta seção: igualar-
se no movimento mesmo de demarcação da própria singularidade.

“Estou só e não resisto”: as gramáticas da solidão


Sentir-se único e especial, contudo, nem sempre é apenas fonte de
satisfação. A ênfase na própria singularidade pode tornar difícil a
comunicação com o outro, um compartilhar de experiências que é parte
integrante da compreensão da própria vivência, sensações e emoções. O
encapsulamento no próprio mundo interno pode criar uma percepção
distorcida e exagerada da própria “originalidade”, trazendo consigo um
sentimento de incompreensão pelo outro. Este sentimento é uma forma
possível da solidão — mas não a única.
Simmel (1964b), ao discutir o isolamento individual, já assinalava que
mesmo aí há um traço da sociedade, uma vez que não se trata exatamente da
ausência do social, mas de uma existência imaginada e em seguida rejeitada
da sociedade. Esta visão da sociedade como algo presente na experiência do
isolamento abre a porta para realizarmos com a solidão mais um exercício de
questionamento do senso comum, que nela enxerga um sentimento que diz
respeito somente ao íntimo. Este é o ponto abordado por Wood (1986), que
descreve a solidão como marcada pelo paradoxo de ser experimentada pelo
sujeito como um sentimento de separação do outro, ao mesmo tempo em que
é possível encontrar “gramáticas” sociais para a emergência deste tipo de
sentimento. Em outras palavras: há “regras” socialmente definidas para que o
sujeito possa sentir-se só.
Sábados à noite, por exemplo, nos grandes centros urbanos são ocasiões
de sociabilidade prescrita; estar sozinho, sem companhia para alguma forma
de lazer, suscita comumente um forte sentimento de solidão, conhecido e
“validado” pelo grupo social como uma reação emocional legítima diante da
situação concreta. Esta “regra”, contudo, não apenas “valida” este sentimento
nestas circunstâncias; ela praticamente o prescreve como uma reação
emocional que atesta a “normalidade” do indivíduo. Alguém que se sinta bem
estando sozinho em um sábado à noite seria, em muitos grupos urbanos, visto
como “esquisito” e “antissocial”. Por outro lado, sentirse sozinho em uma
segunda-feira pela manhã também não é lá muito “normal”: é que esta
“gramática” da solidão é regida por uma temporalidade marcada pelas
oposições noite/dia, lazer/trabalho. O tempo da solidão, neste exemplo, pode
ser caracterizado como noturno e de lazer, ou seja, momentos para os quais
há uma sociabilidade prescrita/desejada que não se concretiza.
Esta “gramática”, contudo, além de evidentemente não ser universal, não
é também de aplicação homogênea em meio a um mesmo grupo social. Sua
força é muito mais acentuada entre os jovens, para quem a experiência de
estar só em um sábado à noite pode ser muito penosa; por outro lado, a
sociabilidade de pessoas idosas ocorre com frequência mais cedo, muitas
vezes em dias úteis, não havendo nada de “antissocial” em sentir-se bem
sozinho em casa às oito da noite de um sábado, após uma sessão vespertina
de cinema, por exemplo.
Há assim muitas formas de sentir-se só. Há formas mais cotidianas de
solidão, como estas regidas pela lógica da sociabilidade; há aquelas de
orientação religiosa/espiritual, como na realização de “retiros”; e há também
formas-limite, que em sua dramaticidade nos ajudam a entender algo sobre a
natureza eminentemente social do ser humano. Este é o caso da solidão dos
moribundos discutida por Elias (2001).
Em sua análise, Elias discute a atitude moderna diante da morte, partindo
da constatação de que no Ocidente contemporâneo os indivíduos teriam
enorme dificuldade em identificarse com os moribundos, devido ao
desconforto trazido pela lembrança da própria morte. A morte seria
duplamente recalcada: pelo indivíduo (como uma forma de proteção contra o
terror provocada pela evocação de sua mortalidade) e pela sociedade, que
“traduziria” este terror em medidas de afastamento dos moribundos do
convívio social, com seu confinamento a espaços destinados a gerir a morte,
tais como os hospitais.
Esta atitude de afastamento diante da morte expressaria, para Elias, uma
forma de negar a finitude da vida individual. Negá-la seria um imperativo
diante da forma como o sujeito moderno concebe a própria vida: como algo
isolado, sem a dimensão das cadeias de interdependência que conectam cada
existência individual a uma rede social. Para o autor, esta incapacidade de
ver-se como um elo em uma rede de relações seria responsável por uma
forma de sofrimento típica da modernidade: a percepção da vida como
absurda e destituída de sentido. Em sua visão, o sentido da vida está na
importância que temos para os outros; do momento em que deixamos de
valorizar, como fonte de sentido para a existência individual, o lugar que
ocupamos na vida dos outros, nossa própria existência se torna de fato vazia e
absurda, uma vez que não haveria qualquer outro sentido além do que somos
para os outros. Vem daí o terror diante da própria morte, imaginada, diante
desta desvalorização do laço com o outro, como a dissolução absoluta de tudo
aquilo que importa.
O medo inspirado pelos moribundos e seu consequente afastamento para
os espaços ocultos de gestão da morte geraria então uma experiência
emocional de muita dramaticidade. Para Elias, em toda sociedade morre-se
do mesmo jeito como se vive. A percepção da vida como absurda, ao gerar
um sentimento de solidão proveniente da desvalorização do pertencimento a
uma rede de interdependência, impõe sobre os moribundos um ônus
adicional: a percepção, ainda em vida, de não ter mais sentido para os outros,
de saber-se excluído antes mesmo de morrer, em uma forma extrema de
solidão.
“Saudades, só portugueses…”: emoção e temporalidade
É possível, assim, estar só de muitas maneiras. Mas a solidão não é a
única forma de experiência emocional que fala da percepção de uma falta, de
uma ausência. Há outros sentimentos que são também suscitados pela relação
com algo que não está acessível ao sujeito, como a saudade.
No Brasil gostamos de dizer, com orgulho, que “saudade é uma palavra
que só existe em português”, como se isso nos fizesse detentores exclusivos
de uma possibilidade afetiva incomum de experimentar um sentimento
especial e valorizado. Podemos, neste nosso “bordão”, entrever temáticas
caras ao estudo das emoções, como por exemplo a relação entre experiência
emocional e identidade coletiva (aqui colocada de forma um tanto paradoxal,
porque, ao nos orgulharmos de nossa “exclusividade” sobre a saudade, parece
que nos esquecemos de que, antes de ser “brasileira”, a “saudade” é
“portuguesa”, aparecendo em muitos discursos nacionais portugueses como
um traço distintivo de sua identidade).
Um segundo ponto importante levantado pela análise do sentimento da
saudade é que este é um sentimento que fala de uma forma de relacionar-se
com o passado. Dois autores, o ensaísta português Eduardo Lourenço (1999)
e o antropólogo brasileiro Roberto DaMatta (1993), exploraram em textos
sobre a saudade essa sua característica de ser uma maneira de sentir e de
refletir sobre o passado. Este passado, contudo, não é pensado como etapa de
um tempo concebido cronologicamente, como algo que “passa”
inelutavelmente em um ritmo regrado e constante, mas sim como algo que,
do ponto de vista subjetivo, pode ser recuperado, revivido, por meio da ação
da memória. Sentir saudade seria “subtrair-se à passagem inexorável do
tempo”, ou, nos termos de Lourenço, recusar a “ordem do tempo”.
Em uma busca por aprofundar a compreensão da particularidade desta
relação que o indivíduo saudoso mantém com o passado, Lourenço estabelece
uma comparação entre os sentimentos da saudade, da nostalgia e da
melancolia, entendidos como três modalidades de relação com o passado.
Estes sentimentos estabeleceriam com o tempo diferentes “jogos de
memória”, “inventando-o como ficção”. Para Lourenço, enquanto na
melancolia o passado seria vivenciado como “definitivamente passado” e, na
nostalgia, estaria fora do alcance mas seria imaginado como “recuperável”,
na saudade o sujeito se furtaria à ordem do tempo, reapropriando-se
emocionalmente de algo passado.
Entretanto, não é somente com o passado que os sentimentos estabelecem
formas de relação. As conexões entre experiências afetivas e temporalidade
abarcam também o futuro e o presente. É assim que poderíamos, por
exemplo, pensar na ansiedade e na esperança como formas de relação com o
futuro, a primeira falando de uma “ânsia” pelo porvir, a segunda remetendo a
uma sensação — pertencente, ela mesma, ao momento presente de quem
sente — de otimismo. Também como parte de seu esforço por compreender a
natureza do vínculo com o passado estabelecido pela saudade, Lourenço
contrasta-o com as temporalidades de outros sentimentos ligados ao presente,
tais como a angústia e o tédio. Para ele, na angústia não há futuro, havendo
somente um “presente sem dimensões”; já no tédio, o tempo “roda em torno
de si mesmo”, com o indivíduo sendo esmagado por um excesso de realidade.
O universo da música pop brasileira novamente pode nos oferecer um
exemplo das vivências afetivas contemporâneas. Esta percepção do tédio
como um sentimento cuja característica central está em uma forma de relação
com o tempo em que este é subjetivamente vivenciado como imóvel, em um
descompasso com seu ritmo externo, pode ser encontrada em Tédio, da banda
carioca Biquini Cavadão. Diz a letra:

Sabe esses dias em que horas dizem nada


E você nem troca o pijama, preferia estar na cama
O dia, a monotonia tomou conta de mim
É o tédio, cortando os meus programas, esperando o meu fim

Sentado no meu quarto


O tempo voa
Lá fora a vida passa
E eu aqui à toa
Eu já tentei de tudo
Mas não tenho remédio
Pra livrar-me deste tédio

Vejo um programa que não me satisfaz


Leio o jornal que é de ontem, pois pra mim, tanto faz
(…)2

O ponto principal que podemos reconhecer aqui é a defasagem entre a


passagem do tempo cronológico e sua vivência subjetiva pelo indivíduo. Ele
sabe que o tempo está passando, sob a forma de dias ou horas, mas sua
experiência interna é percebida como “descolada”, obedecendo a um tempo
“psicológico” cuja marca é a imobilidade, acentuada pela percepção racional
de que as horas passam (mas “não dizem nada”) e os dias também (mas o
jornal pode ser de ontem, “tanto faz”).
Saudade, tédio e esperança, assim, entre outros sentimentos, expressam
uma maneira de o indivíduo relacionar-se com a temporalidade, reanimando
um passado, debatendo-se com o presente, apostando no futuro. Esta
perspectiva mostra o quanto estes sentimentos, embora possam ser
vivenciados por sujeitos específicos como gerados por momentos particulares
de suas histórias de vida pessoais, são ainda assim tributários de gramáticas
compartilhadas de natureza sociocultural. Este exercício intelectual —
encontrar a sociedade e a cultura em meio à experiência emocional — tem na
amizade ainda mais um terreno de fértil exploração.

“Amigo é coisa pra se guardar”: escolhas e normas da amizade


Chegamos assim ao último sentimento que gostaríamos de examinar à luz
desta clivagem indivíduo-sociedade: a amizade. Ao mesmo tempo um
sentimento e um tipo de relação, a amizade foi, durante muito tempo, pouco
estudada pelas ciências sociais, pois era considerada uma relação muito
subjetiva, voluntarista e pouco estruturada por regras sociais, contrastando
assim com o domínio do parentesco, tema consagrado na antropologia.
Somente na década de 1980, com trabalhos exclusivamente voltados ao
assunto, esta visão pas-sou a ser relativizada e tomada como parte de uma
visão de mundo das sociedades ocidentais modernas, sujeita também a
variações internas, como mostraremos através dos estudos de Papataxiarchis
(1991) feito na Grécia e de Rezende (2002) sobre a Inglaterra e o Brasil.
No estudo de Papataxiarchis sobre amizade entre homens na aldeia grega
Mouria, a relação constrói-se em nítida oposição à família e ao mundo
doméstico. Este é essencialmente um espaço de identidade feminina. Para as
mulheres, o foco de suas relações e lealdades se concentra nos parentes
consanguíneos, uma vez que fora destes há muito receio de fofoca e conflitos.
São poucas as possibilidades de amizade entre mulheres, que surgem nos
interstícios das relações de parentesco e são expressas nestes termos.
Entre os homens, as amizades são extremamente valorizadas por seu
distanciamento da esfera doméstica e também das relações de trabalho. Em
contraste com estas, que são marcadas pela obrigação, as tensões da
hierarquia e a preocupação com status, as amizades são pautadas na
reciprocidade e na espontaneidade das trocas emotivas. Os amigos se
relacionam no espaço da cafeteria, onde o ato de beberem juntos torna-se
fundamental na aproximação e desenvolvimento da amizade. O convite ao
drinque deve ser retribuído e é a companhia constante com troca de bebidas
que permite comportamentos mais relaxados, espontâneos e mais emotivos.
Na medida em que a relação se desenvolve, a preocupação com a
reciprocidade diminui e os aspectos instrumentais da amizade são
desvalorizados em função da qualidade emocional da relação. A experiência
da amizade torna-se então fundamentalmente um compartilhar das
experiências e emoções entre homens, constitutiva do processo de construção
da identidade masculina.
Neste contexto, as amizades são vividas como exemplos de voluntarismo
e escolha individual. Isto não significa que a escolha seja irrestrita. A
igualdade normativa é enfatizada e os amigos tendem a ter idade, origem
familiar, classe social, ocupação e estado civil semelhantes. Guardadas estas
condições, os amigos são escolhidos livremente a partir da dinâmica de
sociabilidade nas cafeterias. A dimensão do voluntarismo se destaca
principalmente no fato de a amizade se constituir como antítese do trabalho e
da domesticidade, espaços marcados por relações assimétricas e obrigatórias.
Esta antítese desaparece no estudo de Rezende (2002) sobre amizade no
Rio de Janeiro. Entre os cariocas de camadas médias entrevistados, a amizade
pode surgir entre colegas de trabalho e também nas relações de família. O
elemento da hierarquia presente nestes espaços não é visto como impeditivo,
pois a amizade é baseada na afinidade, na intimidade, na confiança e na
doação ao outro. Na família, a amizade torna-se mais um modelo de relação a
inspirar as relações familiares, transmitida pelo uso frequente da expressão
“pai amigo”, “mãe amiga”. A confiança e a doação ao outro são aspectos em
geral presentes, mas a afinidade e a intimidade muitas vezes não existem, o
que é explicado pela falta de escolha sobre os parentes. No meio de trabalho,
é possível encontrar colegas que reúnam qualidades para transformá-los em
amigos. O quesito mais difícil de assegurar nestas relações é a confiança no
bem-querer e na doação ao outro, pois a competição e outros interesses
profissionais podem falsear as intenções na aproximação de um amigo em
potencial.
Ao falarem sobre as interações no espaço de trabalho e no público em
geral, era comum ouvir dos entrevistados a referência a muitas pessoas por
quem se “tinha” amizade, relações estruturadas em outros critérios que
continham, porém, o sentimento de amizade. Era uma percepção de amizade
bastante inclusiva e, em geral, abarcava relações entre pessoas com
características sociais, como origens de classe, raça, orientação sexual e
religião, mais distintas entre si. Nelas, o afeto da amizade parecia fornecer o
solo comum de bem-querer e de “humanidade” que diminuía a percepção da
diferença que podia afastá-los. Por isso as pessoas estudadas repetiam tanto
que era possível fazer amizade com qualquer um, atravessando as barreiras
sociais.
Ficava claro, entretanto, que estes amigos, às vezes referidos mais pelo
termo adjetivo (“uma pessoa amiga”) do que pelo substantivo, eram
diferentes dos amigos próximos, em número tão reduzido que “se podia
contar nos dedos”. Estes vinham de condições sociais bastante próximas e
tinham se conhecido no colégio, na faculdade ou na vizinhança, meios sociais
relativamente homogêneos. O tempo era um fator importante na relação, pois
permitia que os amigos provassem sua confiabilidade e sua doação ao outro,
elementos importantes nas amizades próximas.
Para os ingleses de camadas médias estudados por Rezende (2002) em
Londres, o tempo e a confiança também eram valorizados na amizade. No
entanto, na comparação feita com os cariocas, destaca-se que a noção de
amizade como um sentimento, que poderia até estar presente em outras
formas de relação, não figurava para estes londrinos. Ao contrário, as
relações de amizade pertenciam unicamente à esfera privada, junto com as
relações de parentesco. No espaço de trabalho, era difícil desenvolver
amizade pois, mais do que a hierarquia e a competitividade, era preciso ter
um comportamento eficiente, produtivo e polido, contrário ao relaxamento
que marcava a relação entre amigos.
Os amigos eram vistos como pessoas com quem era possível se expor
sem reservas e ter seu verdadeiro eu aceito. Como eles diziam, o amigo é
alguém com quem “eu posso ser ‘eu mesmo’”. No início da relação, a
afinidade é importante sobretudo nos interesses de lazer e no senso de humor.
Com o tempo, desenvolve-se a confiança necessária para se expor, processo
este que deve ser recíproco e sincronizado. Como cada um prezava sua
privacidade e tempo para si, não gostando de imposições indevidas, ter
confiança em que o amigo aceitaria compartilhar emoções era fundamental
para a relação.
Por isso, era difícil estabelecer amizade no trabalho ou em outros espaços
marcados pela diversidade social. No trabalho, prevalecia a ênfase na
contenção emotiva em função da eficiência e produtividade, antitética à
amizade. Com pessoas de origem de classe distintas, em particular as que
vinham da classe trabalhadora, havia a percepção de que as noções de
privacidade eram distintas, de forma que se tornava difícil sincronizar os
processos de autorrevelação. Como as pessoas de classe trabalhadora eram
vistas como mais espontâneas e pouco polidas, a preservação do espaço
pessoal era ameaçada.
Deste modo, as relações de amizade se estabeleciam entre pessoas de
origens sociais muito semelhantes, com trajetórias também similares.
Contrastando com a diversidade étnica e social de pessoas em Londres, os
ingleses estudados formavam redes muito homogêneas nas quais
encontravam as qualidades de amizade desejada. Como a polidez e sua
contenção emotiva eram o modus operandi no espaço público, era com os
amigos que eles podiam relaxar e ser espontâneos. Se na família havia a
confiança do apoio quando necessário, faltava a eles a percepção de afinidade
que permitia o tipo de exposição de si que acontecia entre amigos. A amizade
tornava-se mesmo um ideal para as relações familiares.
Estes três exemplos mostram como a amizade é uma relação afetiva que
contém algum grau de escolha individual, que, entretanto, se dá dentro de um
campo de possibilidades. Embora vivida como uma opção subjetiva, a
amizade é concebida e praticada com significados, normas e valores
culturalmente definidos. Estas definições não valem apenas para unidades
culturais mais amplas, como no contraste entre os contextos grego, brasileiro
e inglês, mas também para segmentações mais finas, como nas diferenças de
gênero em Mouria ou as de origem de classe em Londres. Assim, a amizade
como uma relação afetiva exemplifica, como o amor, a admiração, a solidão e
a saudade, experiências emocionais que são a um só tempo subjetivas e
sociais.
Capítulo 3

A micropolítica das emoções

Entre os diversos temas envolvidos na gramática sociocultural que rege


as relações de amizade está, como vimos, a oposição hierarquia-igualdade. A
criação de vínculos de amizade pode ser assim favorecida ou interditada por
relações hierárquicas ou igualitárias em função do modo como cada grupo
entende sua natureza, define as expectativas afetivas, de sociabilidade, de
reciprocidade etc.
A relação entre um sentimento, tão associado no senso comum ocidental
à espontaneidade da escolha individual, e as formas de estratificação social
nos conduz à dimensão da experiência emocional que gostaríamos de
explorar neste capítulo: a capacidade micropolítica das emoções, ou seja, seu
potencial para dramatizar/alterar/reforçar a dimensão macrossocial em que as
emoções são suscitadas e vivenciadas. É com essa dimensão que o estudo das
emoções pode contribuir para a compreensão de temas “consagrados” da
agenda de pesquisa das ciências sociais, como por exemplo as dinâmicas de
inclusão/exclusão que regem as relações entre os grupos sociais — o nojo, o
desprezo, a indiferença — ou as fontes da inconsistência dos laços sociais —
a fidelidade, a gratidão, a compaixão.
Para explorar este aspecto da experiência emocional, exporemos a seguir
a perspectiva teórica proposta por Abu-Lughod e Lutz (1990) para a análise
das emoções — o “contextualismo” —, buscando situá-la em meio a outras
perspectivas possíveis, acompanhando o mapeamento do campo da
antropologia das emoções feito pelas autoras. Em seguida, discutiremos o
modo como a capacidade micropolítica das emoções surge nas análises
empreendidas por alguns autores sobre sentimentos específicos: a compaixão,
o nojo, o desprezo, a humilhação e a gratidão. A última seção do capítulo é
dedicada a uma exploração da fecundidade dessa perspectiva para a
compreensão de aspectos da cultura brasileira, com base no estudo de caso
realizado por Coelho (2006a) sobre as trocas de presentes entre patroas e
empregadas domésticas.
A perspectiva contextualista: um mapeamento do
campo da antropologia das emoções
Em texto introdutório ao campo da antropologia das emoções, as
antropólogas norte-americanas Catherine Lutz e Lila Abu-Lughod realizaram
um mapeamento das principais vertentes teóricas que fizeram da emoção um
objeto de pesquisa. Nesse mapeamento, elas sugerem a existência de três
correntes: o “essencialismo”, o “historicismo” e o “relativismo”. A elas, Lutz
e Abu-Lughod irão opor uma quarta perspectiva alternativa: o
“contextualismo”.
O essencialismo é descrito pelas autoras como o viés predominante nos
estudos psicológicos e psicanalíticos, apoiados na premissa de que as
emoções teriam um substrato universal e natural, sendo, em seu núcleo, as
mesmas por toda parte. Entre as perspectivas mencionadas como
representativas dessa abordagem, as autoras incluem a psicanálise freudiana,
com sua concepção das energias pulsionais como algo a ser “modelado” ou
“canalizado” pelas forças civilizatórias. Para Lutz e Abu-Lughod, o problema
maior dessa perspectiva seria uma espécie de “reificação” das emoções, tidas
como preexistentes ao social, que com elas deveria “lidar”, “expressandoas”
ou “reprimindo-as” ou ainda “ritualizando-as”.
O historicismo e o relativismo compartilhariam um pontochave que os
oporia ao essencialismo: a crença na “construção cultural das emoções”, que
seriam fenômenos histórica e socialmente circunscritos. Uma estratégia
central desses estudos seria a comparação entre contextos socioculturais
distintos, capaz de colocar em xeque a suposição dos essencialistas de que as
emoções teriam substratos universais. O eixo eleito para comparação
diferenciaria essas vertentes: enquanto o historicismo recorreria a um
escrutínio temporal, o relativismo se valeria de comparações entre culturas
contemporâneas entre si.
Essas vertentes, contudo, nem sempre aparecem em “estado puro”. Se por
um lado é possível identificarmos trabalhos de inspiração claramente
historicista (como a análise já comentada da concepção moderna de amor em
Romeu e Julieta realizada por Benzaquen de Araújo e Viveiros de Castro,
1977; ou a “história das lágrimas” feita por Vincent-Buffault, 1988) e textos
marcadamente relativistas (como o exame da “etnopsicologia” ocidental feito
pela própria Catherine Lutz, 1988), por outro há também estudos que
mesclam traços essencialistas com matizes historicistas e/ou relativistas,
como por exemplo os estudos já mencionados de Peter Gay (1995) sobre o
ódio ou de Jean Delumeau (1989) sobre o medo.
A inovação do contextualismo está em sua inspiração na noção
foucaultiana de “discurso”. Essa proposta teórica baseia-se na concepção de
discurso como uma fala que mantém com a realidade uma relação não de
referência, mas sim de formação. Ou seja, nela o real não preexiste ao que é
dito sobre ele, mas, ao contrário, é formado por aquilo que se diz sobre ele.
Para as autoras, a emoção não seria apenas um construto histórico-cultural; a
emoção seria algo que existiria somente em contexto, emergindo da relação
entre os interlocutores e a ela sempre referida. É nesse sentido que se pode
falar de uma “micropolítica da emoção”, ou seja, de sua capacidade para
dramatizar, reforçar ou alterar as macrorrelações sociais que emolduram as
relações interpessoais nas quais emerge a experiência emocional individual. É
assim, então, que as emoções surgem perpassadas por relações de poder,
estruturas hierárquicas ou igualitárias, concepções de moralidade e
demarcações de fronteiras entre os grupos sociais, conforme veremos a seguir
na análise de alguns sentimentos específicos.
A micropolítica das emoções: estudos de caso
Em sua obra clássica intitulada Teoria dos sentimentos morais, Adam
Smith empreende uma alentada análise da “simpatia”, por ele definida como
a solidariedade do ser humano em relação às paixões vivenciadas pelos
outros. Ela, contudo, variaria em grau (podendo mesmo ser inexistente) de
acordo com a natureza da paixão. As paixões “insociáveis” — o ódio e o
ressentimento — suscitariam pouca ou nenhuma simpatia; as paixões “do
corpo” seriam também de difícil compartilhamento, devido à sua natureza
“incomunicável” porque de difícil imaginação. Há ainda as paixões
“egoístas” — a dor e a alegria — e as paixões “sociáveis”, entre as quais
relaciona a generosidade, a humanidade, a bondade, a amizade, a estima
recíproca e a compaixão.
O ponto fundamental da obra de Smith é o desvendar de uma “lógica da
simpatia”: em que situações estaria o ser humano mais propenso a identificar-
se com o sentimento alheio — na desgraça ou no sucesso?
Discutindo um conjunto de situações, entre as quais o sucesso repentino,
o autor aborda o problema da inveja, descrevendo-a como um sentimento
capaz de emergir diante do rompimento de uma igualdade original. Dois
temas entrelaçam-se assim em sua obra: a relação entre sentimentos e
posições relativas entre os sujeitos e a articulação entre a vivência vicária da
experiência alheia e a emergência da simpatia.
Os sentimentos “morais” seriam assim aqueles que falam de uma relação
estabelecida no íntimo do sujeito com a alteridade: o que o sofrimento ou a
alegria do “outro” suscitam? Qual a lógica que rege essa dinâmica
emocional?
Diversos são os critérios envolvidos nessa regulagem dos sentimentos
diante do outro: o sofrimento alheio pode suscitar compaixão, indiferença ou
até mesmo regozijo, dependendo das macrorrelações a que uma dada
interação se reporte. Em meio a esses critérios, podemos destacar a fronteira
nós-outros, ou seja, os sentimentos morais fariam um trabalho de
inclusão/exclusão social, sendo suscitados por “mapas de navegação
emocional” ao mesmo tempo em que reforçariam os seus traçados.
Compaixão, nojo, desprezo, gratidão, humilhação seriam assim, todos eles,
sentimentos capazes de realizar o trabalho micropolítico de dramatização,
reforço e, por que não, alteração das macrorrelações sociais.
Compaixão: a responsabilidade pelo infortúnio
Uma comparação entre a gramática da compaixão em dois contextos
histórico-sociais distintos pode nos servir como porta de entrada para a
exploração dessa capacidade micropolítica da emoção: o trabalho de Lindsay
French (1994) sobre a hostilidade de que são alvo as vítimas de amputações
por minas terrestres em um campo de refugiados no Camboja e o estudo de
Candace Clark (1997) sobre a lógica que rege o dar e receber da compaixão
nos Estados Unidos contemporâneos.
French realizou uma etnografia em um campo de refugiados cambojanos
em 1989-91. Ela relata a onipresença de pessoas que haviam sofrido algum
tipo de mutilação por minas terrestres. As perguntas iniciais de sua pesquisa
dizem respeito à natureza da experiência corporal da amputação e ao efeito
sobre a população do campo dessa “hiperexposição” às mutilações corporais.
Sua hipótese inicial é a de que a presença cotidiana dos amputados consistiria
em uma lembrança recorrente da guerra e de que seu infortúnio seria alvo de
compaixão.
Seus dados etnográficos, contudo, revelam algo bastante distinto da
compaixão esperada. Os refugiados cambojanos têm duas reações emocionais
principais diante dos amputados: medo e desprezo. O medo é suscitado pela
reputação dos amputados de serem pessoas violentas, agressivas e desonestas,
afeitas à extorsão e ao roubo. Já o desprezo viria de sua representação como
pessoas “diminuídas” pela mutilação corporal, e portanto incapazes de agir
como um ser humano íntegro (no duplo sentido do termo). Paradoxalmente, o
maior efeito da amputação sobre as virtudes morais do sujeito atingido seria
sobre sua capacidade de compadecer-se, da qual a amputação o teria
destituído.
Para o amputado, a mutilação representaria uma violenta alteração de seu
lugar no mundo social. A proteção de que gozava, como soldado, da parte de
seu comandante lhe é radicalmente retirada quando de sua “inutilização” para
o combate; o apoio de sua esposa e família é também ameaçado, pois sua
capacidade de desempenhar suas funções de protetor e provedor é abalada
pela mutilação. O amputado vê assim seu lugar no mundo ser devastado pela
mutilação, e com isso seu “valor moral” ser também diminuído. A
experiência emocional do amputado é de degradação e abandono, sendo
encompassada por um sentimento geral de incapacidade e desvalorização no
mundo.
French vai buscar na doutrina budista sobre karma e reencarnação uma
explicação para esses contornos emocionais da experiência da amputação.
Segundo ela, o karma seria acionado no budismo como forma de
compreender aquilo que não se pode controlar ou para o qual se busca
consolo; o futuro, contudo, estaria aberto à influência de ações meritórias no
presente. O budismo traria ainda, associada a essas noções, uma hierarquia do
mérito e da virtude, à luz da qual a amputação seria um infortúnio que
atestaria um “valor diminuído” do sujeito, caracterizando sua proximidade
como um “risco” para os demais.
A autora coloca assim essa experiência corporal em relação com uma
dinâmica emocional que, ao associar uma mutilação física a uma diminuição
da capacidade humana de compadecer-se, evidenciaria sua relação com um
contexto religioso, cultural e político mais amplo, em que a gramática da
compaixão seria orientada por uma hierarquia engendrada pelas condições de
vida nos campos de refugiados. Essa “negociação da compaixão” encontrada
em sua etnografia, contudo, aparece como uma surpresa, contrariando sua
hipótese inicial de que a amputação geraria no outro uma reação emocional
compassiva. Por que French entra em campo com essa expectativa? Haveria
outra “gramática da compaixão” possível que nortearia sua hipótese inicial?
A análise de Clark (1997) sobre a compaixão nos Estados Unidos
contemporâneos fornece uma pista para entendermos essa “surpresa” de
French. A autora mapeia as regras que governam o dar e receber da
compaixão, mostrando a centralidade do critério da responsabilidade pelo
infortúnio. Quando o sujeito é percebido pelo outro como tendo cometido
atos, adotado comportamentos ou mesmo meramente sendo de uma
determinada forma capaz de, em alguma medida, provocar o ocorrido, seu
status como merecedor de compaixão é diminuído; quando, ao contrário, seu
infortúnio é atribuído ao acaso ou a outrem, facultando assim sua
representação como vítima de algo alheio à sua vontade ou possibilidade de
intervenção, suas chances de suscitar compaixão no outro aumentam
sensivelmente.
Entretanto, o problema da responsabilidade do sujeito pelo que lhe ocorre
não é simples, apresentando enorme diversidade social, cultural e histórica.
Clark sugere que a ampla divulgação do olhar das ciências humanas e sociais
teria levado a um alargamento do campo dos “atenuantes”. É assim que um
agressor pode ser “desculpado” por seus atos se for representado como
“produto” de circunstâncias socioeconômicas desfavoráveis, responsáveis
pela criação de um ambiente social que não deixaria alternativas ao sujeito;
ou que uma pessoa pode ser isentada de responsabilidade por uma derrocada
em sua vida se o comportamento adotado — o alcoolismo, por exemplo —
for concebido não mais como um vício moral, mas como uma doença que o
sujeito sofre. A compaixão criaria assim “fronteiras morais”, separando
aqueles representados como merecedores de compaixão — porque isentos de
culpa ou responsabilidade pelo que lhes acontece — e aqueles a quem se
destina uma reação de impiedade, uma vez que são percebidos como
responsáveis por suas desventuras.
Essa análise de Clark da gramática da compaixão norteamericana nos
aponta o caminho para a compreensão da discrepância entre a hipótese
original de French para a experiência cambojana e sua surpresa diante
daquilo que encontra em sua etnografia. A suposição de que os amputados
suscitariam compaixão no ambiente ao seu redor é evidentemente tributária
da etnopsicologia ocidental que os considera merecedores desse sentimento
porque vítimas de um acidente de natureza inteiramente aleatória, “algo que
poderia acontecer com qualquer um”. Nessa concepção, o abandono de que
são alvo é uma nova forma de vitimização, que espantaria a um ocidental pela
aparente “impiedade”. A investigação etnográfica, contudo, demonstra estar
em ação outra “gramática emocional”, a qual, através do recurso a uma
doutrina religiosa, insere a experiência da amputação em uma lógica de
“responsabilidade”. A comparação entre essas duas for-mas de dar/receber
compaixão ilustra assim a dimensão micropolítica do sentimento, capaz de
demarcar e reforçar microhierarquias articuladas a contextos culturais e
históricos mais amplos.

Nojo e desprezo: afetos, hierarquia e moral


Em seu livro, Miller (1997) narra um episódio ocorrido entre ele e um
pedreiro que contratara para um serviço em sua casa. O pedreiro é forte, de
compleição avantajada e tem o corpo coberto por tatuagens. Enquanto
trabalha, suas calças escorregam de sua cintura, deixando parte das nádegas à
mostra. Um dia, quando o autor saía de casa de mochila nas costas,
pedalando sua bicicleta, o pedreiro voltou-se para sua esposa e indagou: “Ele
é professor?”, em um tom que poderia significar algo como “isso aí é um
professor?”.
Miller faz dessa história uma pequena fábula sobre o desprezo.
Explorando-a em minúcias, transforma a si mesmo e suas reações subjetivas
em um campo para observação da dinâmica emocional das relações sociais.
Seu ponto principal é a comparação entre o desprezo que sente pelo pedreiro
e o desprezo que este sente por ele. Do seu ponto de vista, o desprezo é
suscitado por questões ligadas à fisicalidade — as tatuagens (por Miller
entendidas como uma forma de vulgaridade), a exposição das nádegas, a
exibição de força física. Por outro lado, sua suposição é de que o desprezo do
pedreiro está ligado a uma atribuição de fraqueza física a ele, o intelectual.
Nessa pequena fábula, está em questão a natureza recíproca dos
desprezos devotados entre o intelectual e o pedreiro, girando em torno de um
atributo central em tantas construções de identidades masculinas: a força
física. Entretanto, Miller aponta para uma diferença fundamental: o desprezo
do pedreiro é desinibido; ele não parece sentir-se culpado ou envergonhado
por nutrir esse tipo de sentimento. Já ele, um intelectual liberal, envergonha-
se por reconhecer em si um sentimento condenado pelas teorias políticas que
estuda e pelas quais procura pautar sua vida, não apenas como intelectual,
mas também em seu cotidiano como cidadão. O conflito emocional
deflagrado pelo desprezo ocorre devido à contradição entre a crença na
igualdade fundamental de todos os seres humanos e a emergência de um
sentimento que é em si mesmo um atestado de existência e/ou reivindicação
de hierarquia.
A reciprocidade desse sentimento, contudo, traz ainda novas nuances.
Tradicionalmente, o desprezo é um sentimento que emerge em relações
hierárquicas, sendo devotado por quem ocupa as posições superiores àqueles
em situação inferiorizada — a essa modalidade Miller refere-se como
“desprezo para baixo”. Nas sociedades tradicionais, essa parece ser a única
modalidade do desprezo, ou ao menos a única que adentra a cena pública. As
sociedades modernas democráticas criam a possibilidade de outra modalidade
de desprezo: o “desprezo para cima”, devotado, como no exemplo da história
acima, por aqueles que ocupam posições socialmente desvalorizadas (os
trabalhadores manuais) àqueles detentores de status mais elevado (os
intelectuais). Surge assim outra função micropolítica do desprezo: a
contestação da hierarquia em sua versão “para cima”, e não mais somente seu
reforço/ demarcação, como no desprezo “para baixo”. É assim que Miller
sugere, então, de forma um tanto irônica, que esta parece ser uma conquista
fundamental dos regimes democráticos: a instauração da possibilidade dos
desprezos mútuos, em uma espécie de “socioeconomia” emocional da
igualdade.
Na análise de Miller, o nojo figura ao lado do desprezo como uma
“emoção de demarcação de status”. Recorrendo a Adam Smith e sua
discussão sobre empatia e moralidade, Miller arrola o nojo entre os
“sentimentos morais”, capaz de demarcar, com sua eclosão, as fronteiras
entre os “iguais” e os “diferentes”.
Nesse esforço de demonstrar a capacidade micropolítica das emoções,
interessa destacar a associação entre nojo e moralidade. Comumente
associado a experiências físicas, o nojo pode ser descrito como aquilo que
fere as categorias discriminadas em sistemas de classificação, transitando de
forma agramatical por áreas que deveriam ser mantidas apartadas. É assim
que Rodrigues (1975), com base em um conjunto de depoimentos sobre
experiências descritas como “nojentas” por seus entrevistados, identifica uma
“gramática” que permite descrever o nojo como uma reação fisiológica
suscitada pela transgressão de uma regra inconsciente relacionada à
demarcação interior/exterior do corpo humano. A quase totalidade dos
depoimentos descreve situações de contato sensorial (visual, tátil, olfativo)
com secreções do corpo humano; seria a violação dessa fronteira
interior/exterior que suscitaria uma reação fisiológica de horror à
transgressão. O interesse maior desse elo transgressão-nojo seria a ponte
criada entre o sensorial e o intelectual, uma vez que o desrespeito ao sistema
de classificação seria capaz de provocar uma reação fisiológica, atestando
assim a importância, para o conforto do sujeito, daquela ordenação do
mundo.
Miller, contudo, vai mais longe em sua análise ao definir o escopo de
situações capazes de suscitar nojo. O nojo, em si mesmo uma reação
percebida no corpo, não teria suas motivações restritas ao corpo em si, sob a
forma de características ou secreções, podendo também ser suscitado por
traços que agrediriam convicções morais, como por exemplo a cupidez ou a
hipocrisia. Entre as atividades capazes de suscitar nojo nos Estados Unidos
contemporâneos, Miller menciona a advocacia e a política. O nojo surge
como um “idioma” para a expressão de “julgamentos morais”, como quando
dizemos, a respeito de, por exemplo, uma atitude de desrespeito a direitos
consagrados do outro com vistas ao atendimento de interesses próprios
considerados venais, que “isso me revira o estômago”; ou quando
presenciamos a manipulação de ideias e princípios a serviço da consecução
de objetivos interessados e reagimos dizendo ter “vontade de vomitar”.
O nojo é, assim, uma reação fisiológica possível à transgressão de normas
morais, permitindo, conforme afirma Miller, atestar a força dessas regras,
uma vez que elas, literalmente, nos retorcem as entranhas ao mero
pensamento de sua violação.
Nojo e desprezo, assim, realizam um trabalho semelhante de vinculação
entre os níveis micro da experiência pessoal e macro da organização social,
costurando hierarquias e nor-mas morais aos afetos e sentimentos. Outras
emoções realizam trabalhos semelhantes, a exemplo da humilhação.

Humilhação: princípios morais e identidade


Em sua análise sobre crimes hediondos, Katz (1988) dis-cute, conforme
já comentamos no primeiro capítulo deste livro, as motivações das pessoas
que cometem crimes marcados por uma enorme desproporção aparente entre
as atitudes das vítimas e as agressões de que são alvo (um pai que mata seu
bebê por não parar de chorar ou um morador que mata seu vizinho por
obstruir a entrada de sua garagem). O foco de sua análise é a dinâmica
emocional desse tipo de agressão, cujo cerne estaria na emergência de uma
“ira santa”, capaz de autorizar um massacre aos olhos do agressor. Para este,
a vítima desafia, com suas atitudes, princípios fundamentais na visão de
mundo do agressor: a autoridade paterna desrespeitada pelo bebê que não
atende às ordens sucessivas para parar de chorar; o direito feminino ao
trabalho, afrontado pelo marido que põe fogo nos livros da esposa; o direito à
propriedade, infringido pelo vizinho que estaciona seu carro diante da
garagem do outro.
Esse não é, contudo, um processo racional e consciente (ainda que
precariamente dimensionado) da parte do agressor: há uma dinâmica
emocional que principia pela humilhação e que deslancha um processo cujo
ápice é a agressão. A humilhação decorre, para Katz, da tentativa de evitar a
raiva provocada pelas atitudes da vítima; a raiva é, em um primeiro momento,
percebida pelo futuro agressor como uma “concessão”, como um “igualar-se”
que estaria implícito no reconhecimento da ofensa; a indiferença
representaria assim uma “elevação” do agressor diante da vítima. A
constatação, contudo, por parte do próprio sujeito de que essa indiferença é
“fingida”, não mais do que uma estratégia para simular uma superioridade
que não existe — uma vez que a “provocação” atinge o alvo ao ponto de
exigir essa estratégia — pode ser, por si mesma, humilhante. Quem não
reconhece a irritação que uma provocação do tipo “olha só, ele está fingindo
que não liga”, em meio a um conflito, pode causar?
O sentimento de humilhação apresentaria assim cinco características. A
primeira é sua dimensão pública, ou seja, sentimo-nos humilhados diante de
um outro (ainda que esse outro possa não estar presente na cena física
imediata, bastando muitas vezes a consciência de sua existência); essa
humilhação parece, no calor das circunstâncias, ser eterna, ou seja, algo de
que o sujeito nunca se poderá livrar, e que por isso parece-lhe insuportável; o
sentimento vem de fora para dentro, é algo que “toma conta” do sujeito, que
se vê como objeto de uma experiência emocional; a humilhação é “holística”,
ou seja, ela envolve todo o corpo; e, finalmente, ela acarreta uma perda de
controle da identidade. Na humilhação, não sou mais quem eu pensava ser,
mas alguém inferiorizado diante de todos, e pior, alguém que tentou disfarçar
essa inferioridade simulando uma indiferença, em estratégia óbvia aos olhos
de todos. É em defesa desse núcleo de quem é que o sujeito agride aquele
que, a seus olhos, o ameaça em um plano tão fundamental de sua existência.
Princípios morais e experiência subjetiva entrelaçam-se aqui novamente,
dessa feita atingindo a própria identidade individual pela emergência do
sentimento da humilhação. Mas nem só de mal-estares e agressões é feito
esse entrelaçamento, como veremos a seguir no caso da gratidão.

Gratidão: a “memória moral da humanidade”


“Memória moral” é uma expressão utilizada por Simmel (1964a) para
falar do trabalho feito pelo sentimento da gratidão em favor da solidez dos
laços sociais. Discutindo a emergência da gratidão no contexto das dádivas
materiais, ele afirma ser este afeto que impulsiona a reciprocidade, condição
sine qua non da vida social. A gratidão seria assim aquilo que impele à
retribuição mesmo na ausência da coerção externa, desempenhando portanto
um papel fundamental na coesão dos vínculos sociais.
Simmel analisa as dimensões de liberdade e coerção presentes no
universo da dádiva, afirmando ser o primeiro presente o único realmente
espontâneo, uma vez que nele não há qualquer obrigação. Toda e qualquer
retribuição, por sua vez, comportaria já uma dimensão coercitiva, sendo a
gratidão a consciência de haver entrado em uma relação infinita, pois a
decisão da primeira oferta comporta uma liberdade que retribuição alguma
poderia conter, com o eventual desejo autêntico de retribuir sendo sempre,
em alguma medida, turvado pela sua obrigação.
La Rochefoucauld afirmava que “a pressa em retribuir é uma forma de
ingratidão”. É como se a aceitação do primeiro presente e do adiamento da
retribuição equivalesse a uma aceitação do estado de dívida, do qual a
gratidão seria uma expressão emocional. Ora, estar em dívida é também estar
em relação, mas em uma posição inferiorizada, em que reconheço que o outro
tem/pode mais, uma vez que me deu algo que não pude retribuir, nesse
movimento me “inferiorizando”. Apressar-se em retribuir é então um esforço
para sair desse lugar, para “quitar” a oferta inicial, recusando assim o senti-do
último do presentear: o estabelecimento de uma parceria.
O sentimento da gratidão seria a expressão afetiva da aceitação desse
lugar de dívida, que é, em última instância, a aceitação de uma relação
marcada por uma hierarquia, em que o sujeito entra em relação com alguém
que pode mais: daí a afirmação de que a gratidão teria “um gosto de
servidão”. Sua emergência obedece, portanto, a regras morais, em uma
“gramática” que define o valor moral do sujeito em função de sua capacidade
de sentir-se grato àquele que o beneficia, ainda que à custa de uma
diminuição de seu status pela incapacidade de retribuir. É talvez esse o
sentido último daquela fórmula linguística do agradecer, já tão desgastada
pelo uso que não nos apercebemos de seu sentido último: “obrigado”.
A gratidão faria assim um trabalho de coesão e estabilização dos laços
sociais. Entretanto, isso é feito obedecendo a re-gras que são tributárias das
macrorrelações sociais em meio às quais os indivíduos se movem em suas
relações interpessoais. A análise de um tipo particular de dádiva — aquela
realizada entre patroas e empregadas domésticas — nos servirá como
exemplo para o aprofundamento da compreensão dessa capacidade
micropolítica das emoções.
Dádiva, hierarquia e emoção: as trocas de presentes
entre patroas e empregadas domésticas
As trocas de presentes são um tema consagrado da antropologia desde as
obras seminais de Malinowski (1976) e Mauss (1974), atravessando a história
da disciplina em sucessivas formulações teóricas. Originalmente baseadas em
dados etnográficos de sociedades tribais, as teorias da dádiva acompanham o
movimento da antropologia de voltar-se para o estudo das sociedades
complexas, tendo engendrado também estudos sobre os sistemas de troca de
aldeias (Yan, 1996), cidades (Cheal, 1988) ou mesmo países (Hendry, 1995;
Miller, 1993; Yang, 1994).
Nos estudos voltados para a dádiva em ambiente urbano, sua associação
com a expressão emocional é frequente. Seguindo essa linha, Coelho (2006a)
empreendeu uma análise da dádiva junto a segmentos de camadas médias da
Zona Sul do Rio de Janeiro, procurando perceber de que forma as trocas de
objetos materiais são aí utilizadas como meio para que os sujeitos falem de si,
de quem são e do que sentem. Retomando a clássica formulação de Mauss de
que a dádiva dramatiza o vínculo existente entre doador-receptor, a autora
identificou a existência de uma elaborada gramática que regula, entre outros
aspectos da troca, a escolha dos objetos e as expectativas de retribuição.
Os dados utilizados foram um conjunto de seis entrevistas realizadas com
mulheres de um mesmo grupo profissional (professoras de línguas
estrangeiras), com idades variando aproximadamente entre 50 e 70 anos,
residentes na Zona Sul do Rio de Janeiro (à exceção de uma moradora da
Barra da Tijuca). Nesses depoimentos, as entrevistadas falaram dos presentes
que davam e recebiam, das ocasiões do presentear, dos critérios que
utilizavam para escolher os presentes que dariam. Contaram também diversas
histórias sobre presentes marcantes que haviam dado ou recebido. Em meio a
esses relatos, falaram sobre os presentes que davam a suas empregadas
domésticas, em trocas regidas por critérios bastante diversos daqueles
utilizados no presentear de amigos, filhos, maridos e parentes. Esses
depoimentos foram em seguida contrastados com a “fala” das empregadas
domésticas a respeito dos presentes recebidos de suas patroas. Essa “fala” foi
obtida pela autora através de relatos recolhidos por uma babá e a ela
transmitidos e por uma entrevista concedida por uma acompanhante que
trabalhava para um senhor idoso.
Nessas trocas, um tema emergia com enorme clareza: a importância
atribuída pelas patroas à demonstração, pelas empregadas, de gratidão pelo
objeto recebido, e que entrava em flagrante contraste com a recusa destas em
sentir-se gratas. Algumas histórias ilustram bem esse “embate emocional”
entre patroas e empregadas.
A primeira história foi narrada por uma patroa como exemplo de uma
pessoa a quem não gostava de dar presentes porque, segundo ela, a
empregada “não sabia receber presentes”. Ela havia comprado para a
empregada um descascador de abacaxi idêntico ao que comprara para si
mesma, e a empregada reagira com desagrado ao presente, como costumava
fazer sempre que a patroa lhe dava um presente. Na avaliação da patroa, a
moça era “amarga”, “se supervalorizava”, “não compreendia”.
A segunda história nos mostra o outro lado da moeda: a satisfação da
patroa com a evidente alegria da empregada com o presente recebido — uma
tampa plástica para microondas. A história é narrada pela patroa como
exemplo de um presente que ela havia gostado especialmente de dar, porque
a faxineira (ao contrário da personagem da história anterior) ficava “tão
agradecida com as coisas que a gente dá”.
Fica clara, assim, a importância da gratidão para as patroas nesse tipo de
dádiva. Esse sentimento, contudo, não é um “suplemento” da troca, um
aspecto entre outros. Ele parece ser a própria retribuição, uma vez que as
patroas não esperam receber de suas empregadas qualquer objeto material e
mesmo, no limite, não querem receber nada, dizendo-se “constrangidas” ou
com “pena” diante da ideia de que a retribuição viesse sob uma forma
também material.
O modelo ideal dessa forma de troca parece ser assim, para as patroas,
um objeto material em troca de um sentimento — a gratidão. A “boa
empregada” é aquela que demonstra estar agradecida sem fazer qualquer
esforço para retribuir no plano material. Ora, essa “gramática” parece
contrariar o modelo da troca esboçado por Mauss, em que a retribuição é não
só desejada como obrigatória. Qual o sentido subjacente a essa forma que a
dádiva assume entre patroas e empregadas?
Vimos, com Simmel, que a gratidão tem um “gosto de servidão”. Para
ele, sentir-se grato seria a expressão emocional da aceitação de uma
impossibilidade de retribuir, o que colocaria o receptor em uma posição de
inferioridade hierárquica. Receber um presente sem esforçar-se por retribuir
e, além disso, demonstrar-se grata, seria assim aquilo que, aos olhos das
patroas, dramatizaria a aceitação pela empregada de seu lugar de submissão
em uma relação marcada pela hierarquia.
Mas e se invertermos o ponto de vista e olharmos para essas trocas pelo
ângulo das empregadas? Qual imagem dessa patroa que se autorrepresenta
como “generosa” surgiria daí?
Hobbes afirma que:

Receber de alguém, a quem nos consideramos iguais, benefícios maiores


do que poderíamos esperar retribuir, dispõe a um amor contrafeito, que em
verdade é ódio secreto. Isto coloca um homem no estado de um devedor
desesperado, que, ao evitar ver seu credor, silenciosamente deseja que ele
esteja onde nunca mais possa vê-lo. Porque os benefícios criam obrigações, e
as obrigações são uma servidão, e as obrigações que não podemos quitar,
estas são uma servidão perpétua, o que, para um igual, é odioso.
Citado por Miller (1993:15, tradução nossa)

Temos aqui um nuançar da experiência afetiva da gratidão, em que, em


vez de uma resignação tranquila à ocupação de um lugar de dívida que
expressaria uma inferioridade hierárquica, esse sentimento aparece mesclado
ao ódio por ver-se relegado a essa posição. Duas histórias, contadas pela
acompanhante entrevistada, permitem compreender melhor a dinâmica
afetiva.
Na casa em que trabalha como acompanhante de um senhor idoso, há
duas outras empregadas: a cozinheira, que está na casa há muitos anos, e a
acompanhante com a qual reveza. Esta colega dera à patroa, como presente
de aniversário, uma cafeteira, a qual comprara a prestações devido ao preço,
muito alto em comparação com seu poder aquisitivo. A patroa, contudo, em
vez de apreciar o sacrifício embutido no presente, ficara irritada e não usara a
cafeteira, sequer “colocando-a sobre a cama” ao lado dos demais presentes
(forma implícita de recusa), tendo mais tarde comentado com a cozinheira
que a moça era “muito metida” por dar um presente daquele valor.
A segunda história é sobre um presente de Natal dado por essa patroa à
entrevistada: uma lata de biscoitos. A entrevistada fala sobre esse presente de
forma irritada e ressentida, mencionando duas razões para seu desagrado: o
baixo valor (“a gente trabalha o ano inteiro pra no final ganhar uma lata de
biscoitos?”) e a desatenção quanto a sua maneira de ser (“então ela não vê
que eu vivo de dieta?”).
Nessas duas histórias há de saída três elementos importantes para
entendermos a “negociação” em que se engajam patroas e empregadas por
meio dessas dádivas. O primeiro deles é que receber um presente material de
sua empregada, em particular se for caro, ofende a patroa, em vez de
agradála; à luz de sua expectativa de ser “paga” com gratidão, essa oferta
pode ser entendida como uma reivindicação de igualdade, ferindo a regra
implícita de dramatização do vínculo hierárquico que as une (aos olhos da
patroa). O segundo é a recusa da empregada, por sua vez, a receber um
presente: a lata de biscoitos, ao desagradar por seu baixo valor, é equiparada
ao salário, como se fosse remuneração por um trabalho, e não uma dádiva. O
terceiro elemento é a reivindicação, da parte da acompanhante, de ser vista
como sujeito singular que tem gostos e idiossincrasias, em vez de ser
encarada como ocupante de um papel: a lata de biscoitos, ao desconsiderar
sua preocupação com dietas, seria um presente de uma patroa para uma
empregada, ou seja, uma troca entre papéis sociais, e não entre sujeitos
individualizados.
Se acrescentarmos ao quadro o relato da acompanhante sobre os
presentes que dá à sua patroa, poderemos ver com mais nitidez o modo como
essa relação trabalhista que emoldura o relacionamento entre ambas é
negociada no plano afetivo. Seus presentes para a patroa são sempre os
mesmos: “meias de três reais”. Isso é dito com certo desprezo tingido de
raiva, porque essas meias são aceitas e “colocadas sobre a cama”, apesar da
desvalorização de que são alvo pela própria doadora.
Ao escolher assim seu presente, essa acompanhante realiza um
movimento ambivalente: conforma-se à sua posição de “inferioridade” ao
aceitar entrar na relação como aquele que pode dar menos, nesse movimento
alcançando, paradoxalmente, certa igualdade ao ser recebida como “parceira”
de trocas, pois seu presente é “exposto na cama” e usado (ao contrário da
cafeteira). Ao receber a lata de biscoitos, contudo, essa resignação desaparece
e surge em seu lugar uma agência expressa no plano emocional: a
acompanhante não fica grata, e as “meias de três reais” não são assim
exatamente uma retribuição, mas antes um revide à lata de biscoitos.
A gratidão desejada pelas patroas surge assim como um sentimento capaz
de atuar no reforço dos vínculos hierárquicos, quando expresso docilmente
pelas empregadas em resposta às dádivas materiais recebidas e não
retribuídas. Por sua vez, essa mesma gratidão, quando negada pelas
empregadas e substituída por indiferença e/ou ressentimento, é a tradução
emocional da recusa em ocupar o lugar que aquela dádiva, ao não poder ser
retribuída no plano material, insiste em colocá-las. Essa “ingratidão” teria
assim um “gosto de insubordinação”, realizando um trabalho micropolítico
de contestação das hierarquias sociais.
Capítulo 4

As emoções nas sociedades ocidentais


modernas

Até o momento, falamos das emoções nas sociedades ocidentais como


uma etnopsicologia que precisa ser relativizada quando pensamos as relações
entre o indivíduo e a sociedade ou entre a biologia e a cultura. Colocamos em
questão nos capítulos anteriores a necessidade de separar visões nativas
dessas sociedades de um instrumental teórico para estudar as emoções nas
ciências sociais. Neste último capítulo, restringimos o foco da discussão para
tomar agora essa etnopsicologia não mais como problema, mas como visão
de mundo que orienta e organiza a experiência emotiva das pessoas nas
sociedades ocidentais modernas.
Quando pensamos a vida em uma sociedade ocidental moderna, é comum
vir à mente a imagem de massas de pessoas transitando pelas ruas de uma
grande metrópole, ao lado de muitas outras desconhecidas. Nesse quadro, há
frequentemente certa pressa no ar bem como a sugestão de relativo
isolamento entre as pessoas, apesar da proximidade dos corpos na rua.
Programas jornalísticos de televisão recorrem sempre a imagens assim ao
tratar sobre temas variados que dizem respeito à vida nas sociedades
ocidentais modernas. No cinema, os muitos filmes de Woody Allen rodados
em Nova York tor-naram-se exemplos clássicos com seu tratamento
constante das angústias e dificuldades na construção das relações pessoais, e
das amorosas em particular, naquele contexto. O que gostaríamos de ressaltar
é que essas imagens e sentimentos são tão frequentemente apresentados na
televisão e em filmes porque mostram questões significativas da experiência
subjetiva em uma grande metrópole ocidental moderna.
Assim, pretendemos aqui analisar em maior profundidade alguns aspectos
em torno da vivência das emoções nessas sociedades, tomando como base a
obra de alguns autores. A partir de Sennett, examinaremos a tensão entre a
expressão dos sentimentos e sua autenticidade, uma vez que o ato de
expressá-los é visto como afetando sua qualidade. Discutiremos também a
preocupação com o controle das emoções, referindo-nos para tanto aos
estudos de Elias sobre o processo civilizatório e de Simmel sobre a vida na
metrópole moderna. Como contraponto dessa questão, analisaremos o valor
dado também ao hedonismo, pensando com os trabalhos de Duarte e de
Campbell a associação entre consumo e busca de prazer. Ilustraremos a
presença desses valores com a discussão da felicidade na mídia, do risco nos
esportes radicais e da vivência do amor nas sociedades ocidentais modernas.
A tensão entre sentir e expressar
Já apontamos no primeiro capítulo que, na etnopsicologia ocidental
moderna, a expressão dos sentimentos é vista como um domínio sujeito às
regras sociais que regulam quando, como e para quem manifestar emoções.
Em contrapartida, o sentimento em si seria uma reação da ordem do natural
ou mesmo do biológico que pode ser distinguida das normas sociais. Seria,
portanto, um fenômeno ao mesmo tempo individual, no sentido de particular
a cada um, e comum a todos como seres humanos.
Fundamental nessa visão é a concepção de que a pessoa possui uma
dimensão interna e privada, que se distingue de sua apresentação pública. As
emoções localizam-se assim nessa interioridade, surgindo daí a ideia de uma
distinção entre o sentimento sentido e o sentimento expresso. Essa
diferenciação reproduz então aquela entre as esferas privada e pública, que,
no caso das emoções, ganha uma valoração específica: o que é sentido e
pensado no privado é verdadeiro enquanto o que é apresentado em público
pode ser falso. Cria-se, portanto, uma tensão entre sentir e expressar os
sentimentos, questão bem explorada no estudo de Sennett (1988) sobre o
declínio do homem público.
Ele busca compreender o surgimento de uma desvalorização da vida
pública, propondo também uma análise de seus efeitos sobre a subjetividade
do indivíduo. O autor traça as origens desse quadro à queda do Antigo
Regime na França e de processos instaurados com a formação de uma nova
cultura capitalista, urbana e secular. Até então, o domínio público significava
basicamente uma região da vida social separada da esfera da família e dos
amigos, povoada por conhecidos e estranhos de origens sociais diversas. O
foco da vida pública era a capital e era cosmopolita a pessoa que se
movimentava confortavelmente nessa diversidade social. A distinção
fundamental no século XVIII entre público e privado dava-se pela separação
entre as demandas da civilidade, expressas no comportamento público e
cosmopolita, e as demandas da natureza, satisfeitas pela família. Apesar de
conflitantes, eram exigências que podiam se equilibrar. Nessa perspectiva, era
possível interagir com estranhos de forma emocionalmente satisfatória,
mantendo-se ao mesmo tempo indiferente a eles, e esse era o modo como o
ser humano se transformava em um ser social. A capacidade para estar com a
família e os amigos era vista como uma potencialidade natural. Assim,
relacionarse com o mundo público era uma questão de cultivo social, do
aprendizado de regras de convívio, enquanto no mundo privado realizava-se
o que seria da natureza do indivíduo.
Sennett identifica três fatores principais que levaram a uma mudança
nesses significados em torno do público e do privado. Primeiramente, o
desenvolvimento do capitalismo industrial gerou uma pressão para uma
maior privatização, que transformou a família não apenas em um refúgio
idealizado como também em um padrão moral com o qual avaliar a esfera
pública, que passou a ser vista como moralmente inferior. A qualidade
material da vida pública também foi afetada pela produção em massa de
roupas, de tal modo que os marcadores de classe social pela vestimenta se
tornaram a princípio confusos e a diversidade de pessoas foi adquirindo uma
aparência mais homogênea no mundo público. Com isso, os estranhos
passaram a ser mais misteriosos e a vida pública mais incerta, contrastando
então com o aconchego oferecido pela família.
Em segundo lugar, aponta para uma mudança na subjetividade em função
de uma nova forma de secularização. Todas as sensações experimentadas
passaram a ter estatuto de fato. Portanto, nada que provocasse sensações
devia ser excluído da esfera privada de uma pessoa, tendo assim uma
qualidade importante a ser descoberta. Tornou-se plausível considerar as
emoções fatos em si, compreendendo-as a partir das situações em que eram
manifestadas. Essa mudança teve como efeito sobre a vida pública o
esmaecimento das fronteiras entre o que era tido como pessoal e como
impessoal, uma vez que todas as experiências contam igualmente. As
aparências apresentadas na esfera pública deixaram de ter um significado
próprio e passaram a ser vistas como pistas de uma essência interior a ser
descoberta.
Por último, o autor destaca a força da sobrevivência da vida pública nos
moldes do Antigo Regime, no qual aquele era o espaço de possíveis
transgressões morais. Em contraste com os ideais de comportamento
esperados no mundo da família, em público as pessoas experimentavam
sensações distintas de outros contextos, havendo tolerância à quebra das
regras de respeitabilidade. Sennett observa que essa relação com o público
era distinta para homens e para mulheres, que corriam um risco moral mais
significativo. Mesmo assim, a experiência de vida entre estranhos, que já era
fundamental para o exercício da civilidade e para a construção da ordem
social, continuou considerada importante, mas com um novo sentido. Agora,
o foco era não mais o coletivo e o público, mas sim o individual e o privado
— a formação da personalidade, que precisaria do contato com estranhos
para se desenvolver.
Da atuação dessas três forças resultou, na visão de Sennett, uma
sociedade intimista que passou a subjugar a experiência da vida em público
ao seu significado subjetivo para o indivíduo. Assim, a expressão de si na
vida pública tornou-se um problema. Antes do século XIX e das mudanças
discutidas acima, expressar-se em público significava apresentar estados
emotivos através de formas já estabelecidas e padronizadas,
independentemente de quem os estivesse apresentando. No presente, espera-
se que a expressão seja absolutamente pessoal e idiossincrática, como parte
de uma busca constante do eu. Sennett ressalta que não se trata de uma
distinção entre o expressivo e o inexpressivo, mas entre formas distintas de
transação emocional. Antes, os modos convencionais de expressar uma
emoção permitiam que ela pudesse ser manifestada várias vezes, por pessoas
diversas. Agora, o foco da interação deixa de ser o outro e passa a ser um
trabalho incessante para descobrir o que cada um sente. As formas
ritualizadas e convencionais de se comportar tornam-se alvo de desconfiança
por não serem vistas como autênticas, além de cercearem o mergulho na
descoberta de razões e impulsos internos.
Por sua vez, as expressões autênticas dessa interioridade são valorizadas,
principalmente quando acontecem em público. Como a personalidade passa a
ser vista cada vez mais como algo que não é controlável, mas que tem
existência e força próprias, as emoções são vistas igualmente como reações
nem sempre controláveis. As expressões de sentimentos em público são
consideradas então sinal de autenticidade, principalmente entre figuras
públicas como políticos e artistas, que estariam sempre representando. Com
isso, a separação entre comportamentos públicos e privados deixa de ser vista
como algo controlável pelo sujeito e a linha entre o sentimento privado e sua
apresentação pública torna-se fluida. Produz-se assim uma supervalorização
do mundo privado e a erosão do mundo público.
Essa crise na distinção entre os domínios da vida social gera, segundo
Sennett, desordens de “caráter” provocadas pela emergência do narcisismo
como configuração subjetiva predominante. A autoabsorção que o narcisismo
promove, longe de ser fonte de gratificação, fere o eu, pois nada de novo o
atinge. Como as interações passam a não ter o outro como foco e sim um
processo de descoberta de si, surgem sensações de falta de conexão e de
vazio. As relações impessoais deixam de ter qualquer significado, pois não
são autênticas. Nesse quadro, a busca pelas motivações e intenções do outro
na interação conta mais do que suas ações. Cria-se então uma cultura pautada
no sentimento de intimidade como medida de significado de realidade.
A valorização da intenção sobre a ação pode ser bem ilustrada no filme
norte-americano Denise está chamando (1995), do diretor Hall Sawen. Trata-
se de um grupo de amigos que moram em Nova York que está
constantemente em contato por telefone (ainda é uma época sem as
tecnologias de comunicação da internet), mas que têm dificuldades de se
encontrar face a face. O filme começa com os amigos se perguntando se vão
à festa de uma das personagens e, embora todos digam que sim, ninguém
aparece no encontro. Todos justificam que quiseram ir, mas, no último
momento, não puderam comparecer. O mesmo acontece com o enterro de
uma das amigas, que morre em um acidente de carro causado por estar
dirigindo e falando ao telefone ao mesmo tempo. Todos manifestam sua
intenção de ir, mas não vão. Em seguida, outra personagem inicia um
relacionamento amoroso com um homem que se dá apenas por telefone.
Após algum tempo o namoro começa a esfriar porque um passa a desconfiar
dos verdadeiros sentimentos do outro, em função da mudança do tom da voz
ao telefone. O filme termina com uma festa de ano-novo, organizada por um
dos personagens, para a qual todos se dirigem, mas acabam passando direto
pela porta do edifício, sem tocar a campainha. Quando Denise, que vai à festa
para também conhecer o pai do filho que ela concebeu por inseminação
artificial, aperta o interfone, não é atendida.
Embora o filme possa ser pensado sob vários aspectos, em particular o
paradoxo de relações que são alimentadas pelo fio do telefone, mas não pela
presença física diante do outro, o que vale a pena destacar aqui é a aceitação
da intenção — e não de sua concretização — de estar junto como força
motora das relações. Todas as ausências nos encontros são aceitas e não
vemos no filme nenhuma reação de raiva ou desapontamento em relação aos
outros. Mais do que agir pelo e com o outro — ir à festa que ele prepara,
compartilhar a dor de sua perda com outros, e significativamente conceber
um filho com o outro — importa fundamentalmente a intenção de estar com
ele. A intenção é entendida como autêntica, como reveladora dos verdadeiros
sentimentos que uma pessoa tem, ilustrando assim a ênfase intimista que
Sennett identifica nas sociedades ocidentais modernas.
O controle das emoções
A segunda questão que se coloca para a experiência das emoções nessas
sociedades é a ideia de que o sujeito deve ter um autocontrole emotivo.
Podemos exemplificar esse valor com a discussão sobre as emoções presentes
durante a gravidez nas matérias da Revista da Gestante, publicação da editora
Online, veiculadas nos números de 2007 (Rezende, 2008). Se a ansiedade e o
medo são considerados sentimentos normais às mulheres que estão na
primeira gestação, há por outro lado uma recomendação constante de que se
deve bus-car um “equilíbrio” emocional. Através das dicas e conselhos da
revista, o objetivo é controlar assim a intensidade da ansiedade e do medo
para que se mantenham dentro de níveis “normais” e para que a gestante se
sinta tranquila.
A noção de que um equilíbrio das emoções é o ideal a ser atingido e
mantido foi analisada no estudo clássico de Elias (1993) sobre o processo
civilizatório na Europa. Pela leitura dos manuais de etiqueta e bons costumes
do final da Idade Média até o início do século XX, Elias examina as
mudanças nas regras em relação ao corpo e às emoções que promoveram uma
padronização do “aparato psicológico”, como ele denomina, articulando-as a
transformações mais amplas na organização social. São duas as principais
forças atuando na formação da configuração social presente nas primeiras
décadas do século XX: a diferenciação cada vez maior de funções sociais e o
monopólio pelo Estado do controle da violência.
A crescente diferenciação das funções sociais gerou uma maior
interdependência entre as pessoas. Como consequência, o comportamento de
cada indivíduo passou a ser ajustado em relação ao dos outros, criando assim
a necessidade de um controle de si mais uniforme, mais estável e mais amplo.
A preocupação com a consequência de cada ato tornou-se elemento constante
das interações, reforçando, portanto, as exigências de manter o autocontrole.
Embora o processo de desenvolvimento desse controle afete diferentemente
pessoas com funções distintas, ele se dissemina por todos os setores da
sociedade. Se, nos séculos anteriores, a fonte de controle do comportamento
vinha principalmente de fora, de pessoas geralmente em situação social
superior ou equivalente, que avalizavam ou recriminavam as ações,
gradualmente desenvolveu-se um autocontrole internalizado e automatizado.
Por sua vez, o monopólio da força física pelo Estado, bem como a
estabilidade de suas instituições centrais, favoreceu também a contenção
emocional como traço psicológico significativo. Se nos séculos anteriores as
disputas eram resolvidas de forma mais individualizada, o uso da violência
torna-se restrito aos aparatos de força do Estado, criando a necessidade na
pessoa de reprimir impulsos de agressão ao outro. As ameaças físicas ao
indivíduo foram gradativamente tornadas impessoais, de modo que, segundo
Elias, a vida tornou-se menos perigosa.
O resultado dessas forças sobre o indivíduo é um autocontrole constante
que leva a uma moderação dos afetos. A estrutura psicológica passa a estar
dividida em uma parte consciente e controladora e outra inconsciente e
impulsiva. Com a contenção dos impulsos passionais, as emoções ficam
menos intensas. A percepção das pessoas e das coisas tornase mais neutra em
termos afetivos, determinada menos por medos ou desejos e mais pela
observação direta do comportamento humano.
O uso da observação de si e do outro integra dois processos destacados
por Elias: a racionalização e a psicologização dos comportamentos. A
contenção emotiva e a necessidade de ajustar a conduta em função dos outros
e de suas possíveis consequências produz uma forma cada vez mais
racionalizada de agir. Nela, a dimensão de planejamento e cálculo se destaca
não apenas no modo como o sujeito se comporta, mas também na maneira
como ele lida com a conduta dos outros. Desenvolve-se uma visão
psicologizada dos indivíduos, que contribui também para a previsão de
comportamentos. Do mesmo modo que a pessoa adquire consciência de seus
impulsos e motivações no processo de controlá-los, passa também a perceber
o outro de modo similar, com nuances mais ricas. Assim, Elias afirma que a
reflexão contínua, a capacidade de prever e calcular, a regulação precisa de
sua própria conduta, bem como o conhecimento de todo o contexto de ação
tornam-se condições indispensáveis de sucesso na vida social.
O controle dos outros tem sua contrapartida interna. Se a racionalização é
uma forma de observar e monitorar o comportamento do outro surgida com o
processo civilizatório, os sentimentos do medo (discutido no capítulo 1) e da
vergonha tornam-se meios de incutir a autorregulação. De um modo geral,
essa emoção remete a uma preocupação com a transgressão de normas que
pode levar a uma degradação social diante de outros. Ao longo do período
que Elias analisa, o limiar de vergonha se expandiu muito e mudaram as
regras às quais o sentimento se refere. Segundo ele, o sentimento de vergonha
está estreitamente articulado à estrutura social. Tomando o exemplo das
atitudes diante das funções naturais do corpo, Elias mostra como a exposição
do corpo em público foi passando por um processo de isolamento crescente,
acompanhado igualmente por mudanças na arquitetura das residências que
adquiriram um espaço reservado para os cuidados corporais. Se no século
XVI a vergonha da exposição do corpo surgia apenas na companhia de
algumas pessoas de posição social igual ou superior, as funções naturais do
corpo vieram a ser no século XX objeto de controle constante diante de todos
e de vergonha a ponto de não se falar sobre o assunto.
Assim como o corpo, as emoções passam a ser foco de um controle
estrito regulado pela possibilidade da vergonha. Esse sentimento agora se
vincula a uma ansiedade e um medo de que o indivíduo perca o controle dos
impulsos e emoções que devem ser contidos. Se antes a fonte de repressão
dos impulsos era externa — pessoas e manuais de etiqueta —, agora é
interna. Essa divisão da personalidade em uma parte controladora e outra
impulsiva produz uma tensão interna e é dela que surge a vergonha, que se
reporta menos à opinião social concreta do que à sua internalização. É a
possibilidade de uma crítica ou repreensão, e não seu acontecimento de fato,
que aciona a vergonha. Assim, é em função desse conflito interno que o
indivíduo se reconhece como inferior e indefeso diante dos gestos dos outros.
Todos esses processos psíquicos e afetivos contribuem para a formação
de uma estrutura psicológica particular, na qual Elias identifica alguns
problemas. A educação das crianças no presente passou a ter que incutir
desde cedo e em poucos anos um controle sobre o corpo e sobre os afetos que
os indivíduos desenvolveram em vários séculos. O grau de tolerância aos
“maus comportamentos”, principalmente em relação à etiqueta em torno do
corpo, diminui muito, de forma que eles tendem a desaparecer muito cedo. A
criança que não atinge o nível de controle emocional esperado é vista como
“doente”, “anormal”, “impossível”, marcando o tipo de vida que poderá ter.
Além disso, como o impulso de sentir prazer com certas funções
corporais deve desaparecer da consciência do adulto, o prazer torna-se mais
secreto e privado. A própria fruição de certas emoções é deslocada para o
plano da fantasia e para o consumo de livros e filmes (aspecto que será
discutido mais adiante com o trabalho de Colin Campbell). Esses conflitos
internos em torno do controle dos impulsos e sentimentos produzem, na
opinião de Elias, uma dificuldade de vivência afetiva, que por sua vez gera
distúrbios de comportamento, compulsões e excentricidades. Se a vida torna-
se menos perigosa, torna-se também menos prazerosa e essa é uma das
cicatrizes deixadas pelo processo civilizatório na visão de Elias.
A vida em uma metrópole revelaria de forma ainda mais aguda algumas
dessas tensões na subjetividade do indivíduo. Em sua análise seminal,
Simmel (1987) examina os traços mentais que compõem um morador de uma
metrópole no início do século XX, com aspectos que se aproximam da leitura
de Elias sobre as sociedades ocidentais modernas. Ele destaca que a base
psicológica da individualidade metropolitana assenta-se na intensificação da
demanda colocada sobre a vida emotiva em função da mudança contínua de
estímulos externos. Como consequência, os indivíduos desenvolvem mais as
reações racionais, como uma forma de proteção interna à diversidade e
descontinuidade externas. Já nas cidades pequenas, o ritmo de vida é mais
lento e uniforme, permitindo relações mais pautadas na afetividade.
A predominância do racional na metrópole é também alimentada por duas
características sociais que Simmel considera marcantes da metrópole
moderna: ser sede da economia monetária e possuir uma alta divisão de
trabalho. O primeiro fator estimula um comportamento mais calculista,
dominado pelo intelecto. Há também necessidade de precisão e pontualidade
nas interações, de maneira a permitir a boa integração da diversidade de
atividades decorrente da divisão do trabalho. Tal precisão, por sua vez, exige
a contenção dos impulsos irracionais. Além disso, o poder nivelador do
dinheiro valoriza o que é comum a todos, sendo, portanto, indiferente às
individualidades. Decorre então uma forma de interagir altamente impessoal
que lida com os outros de modo uniforme e distanciado.
Outro aspecto relacionado a essas características e particularmente típico
da metrópole é a atitude blasé. Esta se desenvolve como uma dificuldade de
reagir emocionalmente à rapidez nas mudanças dos estímulos externos. Sua
essência é uma indiferença às distinções entre as coisas, que têm para o
indivíduo uma aparência homogênea e superficial, sem densidade. Nesse
sentido, Simmel associa a atitude blasé também ao poder nivelador do
dinheiro, que reduziria tudo a um denominador comum.
De forma semelhante à atitude blasé, encontra-se nos habitantes da
metrópole uma atitude de reserva diante dos contatos com as pessoas. É
também uma reação de autopreservação diante da quantidade de estímulos
externos, evitando um estado de “atomização interna”. A experiência
subjetiva da reserva seria não apenas indiferença aos outros, mas até mesmo
certo estranhamento e aversão a eles, que em alguns casos pode acarretar
ódio e conflito. Está também associada ao sentimento de solidão, que
contrasta com a proximidade dos corpos na metrópole.
Por outro lado, essa reserva promove um sentimento de liberdade
individual. Este traço, como argumenta Simmel, é uma forte tendência na
evolução da vida social na medida em que as sociedades crescem, perdem a
coesão estreita dos pequenos grupos e desenvolvem uma divisão
especializada do trabalho. Com um controle social mais relaxado e com o
desenvolvimento das necessidades da vida pública, a vida subjetiva é mais
desenvolvida no sentido de acentuar as singularidades de cada um. Há
também esforços contínuos de se diferenciar e chamar atenção sobre a
individualidade que podem produzir excentricidades e extravagâncias, típicas
das grandes cidades.
Assim como Elias, Simmel também identifica problemas no surgimento
dessas formas mentais e das relações sociais que elas engendram. Por um
lado a metrópole permite observar os dois tipos de individualismo
desenvolvidos nos séculos XVIII e XIX, que enfatizam, respectivamente, os
valores da liberdade e igualdade entre os indivíduos, bem como a valorização
da diferenciação e da singularidade de cada um. Por outro lado, há nela um
forte descompasso entre as realidades subjetiva e objetiva. A vida subjetiva
não consegue se desenvolver no mesmo ritmo da objetiva, levando às
características mentais da impessoalidade, da atitude blasé e da reserva diante
da profusão de estímulos externos. A cultura objetiva, com toda a sua
diversidade, acaba sendo desvalorizada por atitudes que a captam somente
em função de seus denominadores comuns.
Portanto, a tônica da formação subjetiva típica nas sociedades ocidentais
modernas é, segundo esses autores, uma contenção constante dos impulsos e
das emoções. Embora ambos considerem os sentimentos pulsões naturais,
que todos os seres humanos possuiriam, sua expressão é certamente regulada
pela sociedade e pela época em que vivem. Assim, em função de
transformações sociais mais amplas, como a crescente divisão social do
trabalho, a economia monetária e o monopólio da força pelo Estado, surgiu a
necessidade de ações coordenadas que implicariam reações mais racionais,
pouco afetivas. A metrópole condensa e aguça esse traço de controle
emotivo, criando atitudes particulares como a reserva e a postura blasé nas
interações sociais.
A ênfase hedonista no prazer
O hedonismo é outro valor também presente nas sociedades ocidentais
modernas, existindo em tensão com a tônica da contenção emotiva. A
valorização do prazer assume for-mas diversas nas sociedades ocidentais
modernas e se revela com nitidez em práticas de consumo, como as
atividades esportivas, de lazer e a relação com a mídia. Para entender essa
ênfase na vivência do prazer, apresentamos o ensaio de Duarte (1999), que
recupera alguns aspectos de sua origem romântica e introduz algumas de suas
feições contemporâneas, fazendo uma ponte com o estudo de Campbell
(2001), ao qual recorremos para analisar a articulação entre hedonismo e
consumo.
Duarte argumenta que há, nas sociedades ocidentais modernas, uma forte
valorização dos sentidos. Associado a uma concepção de sujeito particular a
essas sociedades, existe um “dispositivo da sensibilidade” que teria se
desenvolvido entre os séculos XVII e XVIII. Ele é pautado em três ideias
fundamentais e articuladas em torno do sujeito e de sua relação com o
mundo: a perfectibilidade, a experiência e o fisicalismo.
A perfectibilidade se traduz na ideia iluminista de que a espécie humana
possui a capacidade de se aperfeiçoar constante e indefinidamente. O
pressuposto desse argumento é a noção de que o ser humano é um ser de
razão, portador de uma “verdade” situada em seu “interior” e esteio de sua
“vontade”.
Para que se desenvolva a perfectibilidade, é preciso estar em relação com
o mundo exterior. A experiência do mundo com os “sentidos” torna-se assim
o meio de aperfeiçoar a razão humana. Nessa proposição, a ideia de “sentido”
é crucial, pois ela está tanto na raiz da razão quanto da emoção. Os “sentidos”
são tomados como “veículo de instrução das atividades da mente” e também
“de articulação das relações humanas” (1999:25). A experiência é então ao
mesmo tempo um fato cognitivo e emocional.
O fisicalismo, terceiro tema discutido por Duarte, está também implicado
nos outros dois. Trata-se de uma concepção de sujeito que surge da separação
entre corpo e espírito e que vê na corporalidade uma lógica própria. Assim,
buscase descobrir essa lógica para compreender suas implicações para a
condição humana. Com novas formas de pensar o funcionamento do corpo
desenvolvidas no século XIX, em particular do sistema nervoso, surge a
noção de uma sensibilidade que é ao mesmo tempo “fisiológica” e também
“sentimental”. Como esta última conotação é mais englobante, supõe-se que
“as afecções do espírito são ao mesmo tempo dependentes e autônomas do
‘substrato’ nervoso” (p. 26).
Estruturando, portanto, esse “dispositivo de sensibilidade” estão os três
temas articulados, que produziram na visão de Duarte uma exploração
sistemática do corpo humano como foco de uma busca incessante de
exacerbação da sensibilidade e de intensificação do prazer. Desse processo de
valorização de novas experiências sensoriais desenvolveramse estratégias de
maximização da vida, como nas várias especialidades da medicina, e de
otimização do corpo, como o consumo de drogas legais e ilegais. Com elas,
revela-se uma tensão entre dois conjuntos de valores: o investimento na
duração e preservação da vida, para o qual a contenção emotiva é elemento
importante, e a aposta na vivência da intensidade em curto prazo, marca da
ênfase hedonista.
Essa ênfase vai adquirir matizes específicos no século XX, na leitura de
Campbell (2001), se em comparação com outras épocas. A forma
“autoilusiva” característica do presente, que se deve em muito ao papel da
mídia na estimulação do con-sumo, diferencia-se do hedonismo de outras
épocas, que ele chama de tradicional. Em ambas as formas, há em comum o
elemento de desejo e antecipação de um acontecimento que produz prazer.
No modo tradicional, esse desejo vem das imagens da memória de uma
experiência já vivida como prazerosa. No hedonismo moderno e autoilusivo,
o desejo surge de uma qualidade antecipada de prazer de uma experiência que
ainda não foi vivida. Se na primeira forma a novidade pode ser vista com
desconfiança, na atual ela é motor do desejo.
No hedonismo autoilusivo, os indivíduos consomem principalmente
imagens mentais pelo prazer que elas proporcionam. Campbell distingue três
formas de imaginação. A fantasia é a imagem que se cria sem ajustes em
relação ao real e que se permite pelo prazer oferecido. Do lado oposto está a
antecipação, a imagem que se conforma estreitamente à experiência. Como
meio-termo, temos o devaneio, foco de análise do autor, que se pauta em
imagens de acontecimentos futuros ajustadas ao real, mas que se permitem
ser agradáveis. Have-ria assim nesse hedonismo uma tensão entre os prazeres
da perfeição que vêm da fantasia e aqueles da realidade potencial que o
devaneio proporciona.
Campbell (2001:126) argumenta que o devaneio se coloca como um hiato
entre o desejo e sua consumação. É um “estado de desconforto desfrutável”.
Por isso, o devaneio acaba se tornando uma experiência mais prazerosa do
que o consumo de fato, que desencanta ao colocar diante do sujeito um objeto
real com características não imaginadas no sonho. O ato de devanear
constantemente produz um afastamento contínuo da realidade, uma vez que
os devaneios levam sempre a novos objetos de desejos, que por sua vez, ao
serem consumidos, serão novamente decepcionantes por distinguirem-se da
imagem sonhada. O anseio como um desejo sem foco, que não tem um objeto
que possa realizá-lo, e a insatisfação tornam-se estados emocionais
permanentes.
Por outro lado, são esses estados emotivos que motivam o consumo.
Novos produtos acenam com o prazer idealizado no devaneio, que não pode
mais ser esperado dos produtos já conhecidos e consumidos. A apresentação
de um produto como “novo” permite ao consumidor em potencial projetar
nele um pouco do prazer imaginado, oferecendo assim a possibilidade de que
esse desejo se concretize. Por isso Campbell (2001:132) afirma que o espírito
do consumismo moderno não é materialista, pois é calcado na ideia de que “a
ilusão é sempre melhor do que a realidade”.
Em função disso, o autor propõe, os produtos são menos importantes do
que sua representação. A capacidade de fantasiar se pauta mais no consumo
de imagens do que dos objetos em si. É por isso que a propaganda se torna
tão imprescindível para o consumo, já que é ela que se dirige ao devaneio
associando o produto a certos sonhos e assim despertando o desejo. Revistas,
catálogos comerciais, anúncios e cartazes são importantes, pois oferecem
imagens que podem ser “desfrutadas”, assim como um romance ou um filme.
Campbell argumenta inclusive que a satisfação sensorial obtida com filmes,
peças, programas de televisão e de rádio, discos e quadros não é tão
importante quanto o que eles podem oferecer em termos de imagens para a
elaboração dos devaneios.
Em resumo, Campbell (2001:115) destaca que o hedonista moderno é um
“artista do sonho” que tem capacidade de obter prazer das emoções
despertadas por estas imagens. Sua qualidade é “a aptidão de criar uma ilusão
que se sabe falsa, mas se sente verdadeira”. Os indivíduos reagem
subjetivamente a essas imagens e devaneios como se fossem reais. Porém,
como se afastam de fato do real, com necessidades e desejos que não são
satisfeitos, sentem-se permanentemente frustrados.
Baseados em Duarte e Campbell, podemos dizer, portanto, que a busca
do prazer é um valor que orienta o comportamento nas sociedades ocidentais
modernas. A exploração dos sentidos como meio de experimentar o mundo é
o alicerce de diversas práticas como apontou Duarte. É, em particular, a mola
propulsora do consumo, na visão de Campbell, que, entretanto, adverte para a
insatisfação permanente que ele produz ao desencantar o devaneio. A
valorização do prazer torna-se então um eixo que estrutura a experiência
emotiva nessas sociedades, coexistindo com a ênfase na contenção emotiva já
discutida.
Controle e prazer combinados: dois exemplos
Muitas vezes o valor dado ao controle das emoções entra em choque com
a busca do prazer, que tende a estar associado à intensidade das sensações.
Mas encontramos também situações nas quais se pretende alcançar o prazer e
a satisfação através de medidas de controle de si e de planejamento.
Ilustramos essa combinação com dois exemplos de esferas distintas: o foco
dado à felicidade na mídia e a vivência do risco nos esportes radicais.
A felicidade tornou-se um sentimento a ser alcançado sempre, nas
sociedades ocidentais modernas. De acordo com Bruckner (2002:58), há
mesmo um imperativo da felicidade, que deixa de ser apenas um direito para
se tornar um valor moral. Nesse contexto, “prazer, saúde, salvação se
tornaram sinônimos, pois o corpo passou a ser o horizonte inexcedível, mas,
sobretudo, se tornou suspeito não se sentir radiante”. Para conquistar esse
estado, desenvolve-se uma forte indústria que coloca ao alcance dos
indivíduos receitas de várias ordens com o objetivo de chegar à felicidade.
Em todas elas, o pressuposto é a noção de que este fim pode ser atingido por
todos por meio de um “condicionamento positivo”, de disciplina pessoal.
A constituição de um imaginário sobre a felicidade nas sociedades
ocidentais modernas está estreitamente relacionada à mídia, como argumenta
Condé (2007). Por um lado, o consumo dos meios de comunicação de massa
oferece não apenas alimento para a elaboração de devaneios, nos termos de
Campbell, como também pode ser em si uma experiência prazerosa. Além
disso, os próprios produtos da mídia também colaboram para a construção da
noção de felicidade. Vários o fazem, como a tradição de filmes com final
feliz, já mencionada no capítulo 2. Gostaríamos aqui de discutir outra
produção discursiva de massa: a “imprensa conselheira” analisada por Condé
(2008).
A “imprensa conselheira” é constituída por uma diversidade de materiais
jornalísticos que oferecem “conselhos”, “receitas” e “dicas” para uma
variedade de questões práticas da vida. Condé argumenta que, nesse tipo de
discurso, a felicidade é, de um modo geral, um tema presente como a
orientação dominante das prescrições apresentadas. Mesmo que nem sempre
de forma explícita, o foco na felicidade se apresenta nas receitas para a
satisfação de necessidades materiais, bem como para a conquista de um
estado subjetivo de bem-estar.
O ponto interessante dessa análise é que o meio de atingir a satisfação e o
prazer que levam à felicidade implica atitudes pautadas no valor do controle
das emoções. Recorrendo às reportagens de uma revista desse gênero de
imprensa, Condé apresenta como uma das formas de se alcançar a felicidade
aí proposta o contato com emoções consideradas “negativas” — medo, raiva,
tédio —, aliado à sua compreensão para que, uma vez conhecidas, possam ser
controladas. Há também a ideia de que para conquistar “realização pessoal” é
preciso planejamento e moderação. O que sobressai dessas matérias é uma
concepção “pacificada” de felicidade, como Condé a denomina, pautada no
equilíbrio das emoções, na experiência comedida longe da plenitude e do
prazer intenso de momentos passageiros.
Outro caso que ilustra bem a combinação da busca do prazer e da
intensidade com alguma medida de controle é a vivência de risco presente
nos esportes radicais. Rocha (2008) discute o modo como a própria noção de
risco é definida de modo diferente por sociedades e épocas distintas. Correr
risco é uma escolha individual pautada por valores e significados culturais
sobre o que é arriscado e provoca medo e o que não é. O risco refere-se a
uma norma específica que está posta em questão, pondo em evidência valores
centrais à constituição da sociedade. Assim, Rocha argumenta que a mesma
sociedade que produz a segurança como um bem coletivo tende a conceber o
risco como escolha puramente individual, quando de fato está operando com
significados culturais.
No caso dos praticantes da modalidade esportiva estudada por Rocha — o
base jump —, buscar o risco envolve uma opção por um estilo de vida
pautado na “emoção”. Os base jumpers saltam de estruturas fixas construídas
(edifícios e pontes) e naturais (montanhas e penhascos) e acionam o
paraquedas após certo período de queda livre. São várias as emoções sentidas
no processo de saltar: o medo que antecede o salto, a liberdade de planar e a
alegria de pousar. O risco e o medo são considerados experiências positivas,
pois permitem mostrar a superação de desafios, a coragem e a capacitação
dos praticantes. Para eles, a proximidade com a morte em cada salto constitui
uma oportunidade de exaltar e transformar a vida.
Neste sentido, o risco envolvido no esporte tem ressignificado os termos
de uma acepção negativa mais corrente no senso comum, para adquirir um
sentido positivo, como mostra Rocha. Possibilita assim um afastamento da
“morte em vida”, que caracteriza, para esses praticantes, o cotidiano da vida
“comum”. Este é percebido como tedioso, sem emoções, sem vida. Praticar o
base jump seria, portanto, uma forma de se afastar da morte simbólica, ainda
que se aproxime da morte natural. Com a preparação técnica para o salto e a
presença de coragem e audácia, há a possibilidade de vivenciar o risco de
maneira mais controlada em busca da excitação e do prazer associados a uma
visão romântica do sujeito e da vida.
Autenticidade, prazer e controle: amor nos tempos
modernos
Os valores do controle emotivo e da busca do prazer podem estar também
articulados à ênfase na autenticidade. Essa articulação é encontrada na forma
como são vividas as relações amorosas nas sociedades ocidentais modernas.
Já abordamos o tema no capítulo 2, ressaltando como a experiência amorosa
coloca em questão a relação entre indivíduo e sociedade. Destacamos, a partir
de alguns textos, como a ideologia individualista, com sua ênfase na
autonomia individual perante grupos sociais mais inclusivos, marca a noção
moderna de amor, sentimento que paradoxalmente é visto como tendo uma
origem sobredeterminada, cósmica. Nesta seção, vamos redirecionar o olhar
para o modo como os valores discutidos até agora informam a subjetividade e
a vivência das relações amorosas, recorrendo principalmente aos estudos de
Bauman (2004) e Giddens (2002).
Bauman (2004) discute como as relações amorosas na modernidade são
tratadas como um investimento. Segundo ele, o relacionamento ganha ares de
um “negócio”, no qual cada pessoa entra com tempo e esforço e espera o
“lucro”, que seriam a gratificação e a segurança. Porém, a necessidade de
estar sempre monitorando a relação produz também uma incerteza
permanente. Se o relacionamento pode diminuir a insegurança que vem da
solidão, cria também novas incertezas. Comprometer-se, portanto, se torna
uma “faca de dois gumes”. Como consequência, manter ou acabar o
“investimento” passa a ser uma questão de cálculo e decisão.
Bauman identifica nas relações amorosas a mesma ambivalência que
encontra de forma ampla no que ele chama de “modernidade líquida”. Há o
desejo de segurança que vem com os compromissos com os laços sociais, ao
mesmo tempo em que há a vontade de ser livre e independente para fazer
escolhas. Nas relações amorosas, o compromisso atrai por oferecer confiança
e segurança, mas assusta e inquieta por comprometer a liberdade individual.
Diante das ambivalências em torno destes vínculos, Bauman chama também
o amor de “líquido”.
Por isso, os relacionamentos amorosos tendem a ser reduzidos ao modo
“consumista”, que exige satisfação imediata e no qual “o valor exclusivo, a
única ‘utilidade’, dos objetos é a sua capacidade de proporcionar satisfação”
(2005:70). Uma vez interrompida a satisfação, não há por que manter a
relação. Nesse contexto, muitos preferem as “relações de bolso”, discutidas
por Bauman. Por serem relações de curta duração, instantâneas e disponíveis,
permitem que a pessoa esteja no controle da situação. Para que elas
funcionem, deve-se entrar na relação de forma consciente e “sóbria”,
evitando deixar-se arrebatar por fortes emoções. Nelas, a emoção do amor
não deve estar presente, pois, como diz Bauman, esse sentimento implica
abertura ao destino e a liberdade que se incorpora no outro. Em sociedades
consumistas, que favorecem produtos prontos, satisfação instantânea e
garantida e poucos esforços, as “relações de bolso” destacam-se por sua
conveniência.
Com tom mais positivo, Giddens (2002) apresenta uma análise detalhada
da relação amorosa a partir de sua discussão da “relação pura”, um tipo ideal
que marca as relações pautadas na intimidade sexual e as amizades. O
principal traço distintivo da “relação pura” é o fato de ser escolhida a partir
de uma diversidade de possibilidades. Embora as condições de vida limitem o
grau de liberdade de escolha, a pluralidade de possibilidades existente
permite que o indivíduo se afaste de modelos tradicionais de relação e
constitua laços nos moldes da “relação pura”.
Na modernidade tardia, como Giddens denomina, esse tipo de relação
torna-se extremamente significativo para o projeto reflexivo do eu. Ou seja, o
eu é visto como um projeto pelo qual o indivíduo é responsável e em função
do qual age reflexivamente. No processo de construção dessa autoidentidade,
busca-se manter uma trajetória coerente em termos de passado, presente e
futuro, auxiliada pela elaboração de uma narrativa explícita sobre o eu. O
corpo é um elemento importante desse projeto identitário, que integra um
sistema de ação e de monitoramento consciente das sensações e disposições
corporais. O fio condutor do projeto de autoidentidade passa a ser o valor
moral da autenticidade, que exige a distinção entre o falso e o verdadeiro eu.
Nesse quadro, portanto, as relações puras tornam-se escolhas realizadas por
um indivíduo que age reflexivamente, buscando ser coerente e verdadeiro
consigo mesmo.
Giddens discute alguns traços que caracterizam a “relação pura”. Em
contraste com os laços pessoais em contextos tradicionais, a “relação pura”
não é ancorada nas condições externas da vida social e econômica. Ao
contrário, é iniciada e mantida pela satisfação emocional que oferece. É
justamente a motivação pautada no que a relação pode prover que a torna
“pura”, uma vez que nenhum critério externo a ela a sustenta.
Como substituto das âncoras externas, ele argumenta que o compromisso
de ambas as partes com a relação passa a ter um papel fundamental na sua
sustentação. Embora o sentimento do amor possa alimentar o compromisso, é
a decisão de cada um de se comprometer que conta fundamentalmente. A
pessoa comprometida está preparada para aceitar os riscos envolvidos na
escolha por aquela relação específica, em detrimento de outras. Nesse
sentido, a reciprocidade e a sintonia mútua em termos do compromisso são
imprescindíveis à “relação pura”.
A intimidade e a confiança são também elementos centrais desse tipo de
relação. O foco dado à intimidade contrasta com a predominância das formas
impessoais de interação na esfera pública. Desse modo, a intimidade, como
um equilíbrio entre a autonomia individual e o compartilhamento de emoções
e experiências, torna-se valorizada e medida de estabilidade da relação em
longo prazo. Para criar intimidade, é preciso ter confiança para se expor ao
outro, de forma que cada um passe a conhecer o outro verdadeiramente. A
autenticidade retorna aqui como valor moral, no qual se baseia a conquista da
confiança e o desenvolvimento de intimidade entre as partes de uma “relação
pura”.
Além dos elementos citados, a dinâmica de manutenção da “relação pura”
é calcada em um questionamento reflexivo e contínuo, tendo como eixo a
indagação “está tudo bem?”. Tal questionamento constitui parte central da
própria relação, podendo também gerar tensões ao buscar o equilíbrio e a
reciprocidade entre ambas as partes. No processo de escrutinizar em cada um
os sentimentos diante da relação, são examinadas e negociadas também as
autoidentidades de ambas as partes. O movimento de monitoração constante
de si e da relação tem como objetivo buscar sempre o que é autêntico para
cada um, o que no caso da “relação pura” está associado à satisfação
emocional.
Tanto Bauman quanto Giddens ressaltam a força dos elementos da
escolha e da busca da satisfação pessoal nas relações amorosas. Ambos estão
baseados na ideia de que o indivíduo constrói relações que são “verdadeiras”,
pois permitem expressar sua interioridade de modo autêntico. Para que sejam
verdadeiras, prazerosas e satisfatórias, é necessário um controle e
monitoramento sistemático de cada um na relação. A vivência das relações
amorosas nesses moldes ilustra a articulação dos valores da autenticidade da
expressão de si, do controle emotivo e da ênfase no prazer e na satisfação
característicos das experiências emotivas nas sociedades ocidentais
modernas.
Conclusão

A paciência é difícil, pois meu coração ainda está tão ferido…


Imaginei, oh querida, que a distância
Seria a cura mas só fez piorar…

Esses poemas de amor foram recitados por um jovem beduíno, Fathalla,


que havia se apaixonado por sua prima e desejava se casar com ela. Os pais
dos jovens concordaram a princípio com o casamento, mas depois entraram
em discussão, de forma que o pai da moça se recusou a dar a mão da filha ao
rapaz. Como forma de esquecê-la, Fathalla partiu para a Líbia, enquanto a
jovem teve seu casamento arranjado com outro rapaz. Quando Fathalla soube
da notícia, compôs e gravou os poemas e enviou a fita cassete para sua
amada. Já casada, ela ouviu a fita e, quando terminou, desmaiou e morreu.
À primeira vista, essa história contada por Abu-Lughod (1990) parece
sugerir que o amor é um sentimento universal, algo que todos podem sentir
como seres humanos. Ao mesmo tempo, parece ser também uma experiência
absolutamente individual e singular, distinta daquilo que outros sentem e com
tamanha intensidade que pode mesmo matar, como nesse caso do amor
frustrado entre jovens beduínos e também na tragédia de Romeu e Julieta que
discutimos no capítulo 2.
Contudo, Abu-Lughod nos conduz a outras conclusões. Sim, a poesia de
Fathalla expressa o sentimento de amor, que curiosamente, porém, não está
presente nas conversas cotidianas sobre relações amorosas. Ao contrário, a
distância marca as relações entre homens e mulheres nessa sociedade e casais
demonstram pouco o cuidado ou a atenção um com o outro. No cotidiano,
predominam os sentimentos de modéstia e vergonha — visíveis na forma de
vestir e na postura corporal que implicam uma negação da sexualidade —
que uma pessoa correta e boa deve sempre apresentar. A deferência aos
outros que a modéstia expressa é um valor moral fundamental, alicerce das
relações de poder entre homem e mulher e entre os mais velhos e os jovens.
O amor como base da união entre um homem e uma mulher é claramente
preterido em função dos casamentos preferenciais entre primos, que reforçam
os elos de parentesco do grupo patrilinear que estrutura a sociedade beduína.
É em função dessa estratégia de reprodução que o sentimento de modéstia é
tão valorizado, pois nega o interesse sexual e afirma a deferência à autoridade
dos patriarcas. Neste sentido, o sentimento de amor é considerado sem
modéstia e desafiador, pois pode ir contra os interesses e a ordem
estabelecidos.
Como então entender a poesia de amor? Seria um sentimento reprimido e
subversivo? Abu-Lughod diz que não. As poesias amorosas fazem parte de
um gênero — as ghinnawa — muito apreciado e recitado em ocasiões
festivas e também em conversas corriqueiras com pessoas próximas. São
particularmente contadas e cantadas por mulheres e jovens, mas
ocasionalmente também por homens mais velhos. Essas poe sias falam de
sentimentos que expressam um conjunto de valores igualmente importante
para um grupo tribal que já foi nômade, como os beduínos: a autonomia e a
liberdade, que, entretanto, existem em contradição com a deferência dada à
autoridade masculina tradicional. Neste sentido, Abu-Lughod argumenta que
as poesias amorosas tornam-se um discurso de desafio e resistência aos ideais
da vida social beduína, e são valorizadas como tal. Por isso a história de
Fathalla emocionava, pois mostrava o que o abuso de poder pode acarretar.
Assim, o amor na sociedade beduína é expresso segundo um tipo
particular de discurso: as poesias amorosas. Nesse contexto, a expressão do
sentimento é valorizada não apenas por falar do desejo de união entre duas
pessoas, mas também por declarar a importância da autonomia dos
indivíduos. Com as mudanças econômicas no Egito que, desde a década de
1980, vêm afetando o estilo nômade dos beduínos, os jovens rapazes têm
estado cada vez mais sob autoridade dos patriarcas, fazendo com que
recorram mais às poesias amorosas, agora gravadas em fitas cassetes, como
forma de protesto. Assim, muitas vezes a poesia era recitada por mulheres
casadas que tinham sua liberdade tolhida, bem como por jovens que queriam
reclamar do poder econômico e político de seus pais e tios. Ou até mesmo
pelo anfitrião da pesquisadora, que tocou para ela a fita do poema ao levá-la
ao aeroporto para se queixar do fato de que ela os deixava ao retornar aos
Estados Unidos. Em outros momentos, contudo, manifestavam-se a modéstia
e o recato, negando-se qualquer sentimento de interesse ou atenção pelo
outro.
No final, descobrimos que a prima amada de Fathalla não morreu de
amor e vive casada com seu marido. O que Abu-Lughod sugere é que, mais
do que tomar o poema como uma expressão de um sentimento de amor não
realizado, frustrado, sua apresentação em um contexto particular revela as
tensões relativas às pessoas e relações específicas presentes naquela situação.
Ou seja, mais do que expressar estados internos que se mantêm
indiferentemente do contexto de interação, o poema de amor é um discurso
emotivo que, ao ser colocado para um grupo de pessoas, pode dramatizar ou
alterar o estado das relações em questão, demonstrando assim o potencial
micropolítico das emoções que discutimos no capítulo 3.
Nessa história podemos reencontrar os principais pontos abordados ao
longo do livro. A tensão entre a universalidade de sentimentos ditos
“naturais” e sua susceptibilidade aos contextos culturais pode ser reconhecida
em uma espécie de “dupla moral” desta história: mesmo que o amor seja
encontrado em todos os lugares, não se ama ou expressa esse sentimento
sempre da mesma forma, e, principalmente, não se dá a ele sempre o mesmo
lugar na constituição dos vínculos sociais, evidenciando a particularidade
histórica e cultural dessa estreita associação que o Ocidente moderno realizou
entre amor e casamento.
A segunda tensão que apontamos como constitutiva do campo da
antropologia das emoções é evidente aqui também, mostrando como as
experiências subjetivas estão atreladas a gramáticas culturais. Desvendar
esses códigos ilustra um problema central de toda teoria social: como dar
conta do hiato entre as percepções “nativas” e a visão do observador. Esse
dilema é expresso aqui sob a forma de um “drama” típico engendrado pela
ideologia individualista ocidental: a afirmação da singularidade das
experiências afetivas, contradita por sua evidente recorrência sob a forma de
padrões claramente identificáveis.
Em meio a esses padrões, a “codificação” das formas afetivas não se
restringe aos afetos sentidos, mas também à sua expressão. Se falar de amor
parece ser hoje um imperativo moral, com o apaixonar-se livremente sendo
uma experiência idealizada em inúmeras produções discursivas
contemporâneas, dos livros de autoajuda às narrativas cinematográficas, essa
pequena fábula antropológica mostra a particularidade histórica e cultural
dessa “compulsão” em falar de amor. Entre os beduínos, falar de amor sob
outra forma que não as ghinnawa é imodéstia, falta moral grave, e não sinal
de saúde mental, de “liberação” dos afetos, como em tantos discursos
contemporâneos que equacionam o bem-estar psíquico à possibilidade de
expressão dos sentimentos.
Finalmente, a história de Fathalla serve também para mostrar a natureza
micropolítica dos sentimentos, com a atribuição de um caráter perigoso e
subversivo ao amor, por sua possibilidade de desafiar hierarquias vigentes
que encontram nas regras matrimoniais um campo fecundo de atuação. Serve
ainda para mostrar o uso que os discursos sobre as emoções podem ter em
contextos específicos. Nessa história, não interessa apenas o que Fathalla
sentia por sua noiva ou o lugar dessa história no imaginário beduíno, mas
também o que aquele que a narra está dizendo para seu interlocutor ao
escolher contar-lhe a história. É também para essa dimensão dos discursos
sobre a emoção que aponta a perspectiva “contextualista” da antropologia das
emoções.
Nossa estranheza diante da história de amor de Fathalla encontra talvez
equivalente no espanto africano diante da história de ciúme de Hamlet. É que
os tributos pagos pelas experiências emocionais às teias socioculturais em
que se enredam tornam difícil, para um espectador de fora, entender essas
motivações afetivas, sua gênese, suas articulações.
Amor e ciúme formam um complexo de aparência indissociável para as
subjetividades ocidentais modernas. Essa maneira moderna de amar, ao
atrelar o sentimento amoroso ao casamento monogâmico, autoriza a
imposição ao parceiro de uma exigência de reciprocidade e exclusividade,
legitimando assim o ciúme, que, respeitados certos limites, pode mesmo ser
considerado “prova de amor”.
Esse “complexo” amor-ciúme, contudo, pode ser matizado. Nas histórias
que narra sobre a experiência da poligamia entre os beduínos, Abu-Lughod
(1993) mostra os ciúmes e rivalidades que perpassam as relações entre as três
esposas de seu anfitrião Haj. Mas o ciúme assim como o amor são
sentimentos que denotam falta de modéstia, e portanto têm um lugar e um
meio específicos para ser expressos. Assim, se à primeira vista, as esposas de
Haj sentem ciúmes dele, de um modo que não parece tão distante assim dos
ciúmes que uma mulher ocidental sentiria diante do envolvimento de seu
marido com outra, essas experiências subjetivas diferenciam-se em um ponto
fundamental: o ciúme das beduínas é ilegítimo do ponto de vista ideológico.
Elas estão erradas, aos olhos de muitos, em atormentar seu esposo com as
rixas e rivalidades. Já a indiferença de uma ocidental ao envolvimento de seu
marido com outra é sinal de desinteresse amoroso — ela está “errada” em não
sentir ciúmes. Essa imbricação entre experiência afetiva, ideologia e
organização social é assim mais uma fonte de matizes para a vivência dos
afetos, legitimando o ciúme ocidental, culpabilizando o ciúme beduíno.
Para além de discussões voltadas para a análise de emoções isoladas, a
antropologia das emoções permite assim pensarmos também na configuração
e dinâmica de “complexos” emocionais, tais como os pares amor-ciúme ou
humilhaçãoraiva, abrindo mais um leque de objetos de reflexão. Os
sentimentos, tantas vezes definidos como o oposto da racionalidade, podem
ser muito, muito bons para pensar.
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1 Esses projetos de pesquisa desenvolvidos pelas autoras constituíram os campos de
investigação que formam a base da concepção deste livro. Todos os projetos, a partir de
outubro de 1997, foram desenvolvidos no âmbito do Programa de Incentivo à Produção
Científica, Técnica e Artística (Prociência) da Sub-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa da
Uerj.

1 Letra obtida junto ao site http://cazuza.musicas.mus.br/letras/43861/. Acesso em: 29


set. 2008.
2 Letra obtida junto ao site
http://biquini.com.br/index.cfm/home/musica/detalhes/tedio. Acesso em: 04 nov. 2008.

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