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O CREPÚSCULO

DA LIBERDADE
DE EXPRESSÃO
Investigação sobre uma liberdade ameaçada

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Índice

INTRODUÇÃO - Uma liberdade que nunca existiu . . . . . . . . . . . . . 5

Liberdade ameaçada, liberdade ameaçada . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

Liberdade de expressão, um Frankenstein do Século das Luzes? . . 11

Liberdade de expressão, uma prisão de ouro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12

A liberdade impossível . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

Diz-me onde vives, eu digo-te o que dizes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

Uma ameaça permanente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

Repensar «viver juntos» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18

Um presente (quase) envenenado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20

O Criador (conflito) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20

Uma liberdade diminuída . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22

Correcção política: a liberdade é opressão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24

Uma estrada para o inferno pavimentada com boas intenções . . . 24

Poupa uns para matar outros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25

O circo da mídia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26

Permita-me que o ofenda... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

Blasfêmia: De volta ao futuro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28

Eu sou o Charlie que não desenha desenhos animados . . . . . . . . . . 29

E acima de tudo, sem ondas! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30

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O adeus de um homem branco cisgênero . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32

O novo Dom Quixote . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33

Cancelar a cultura: canceladores de todos os países, unir! . . . . . . . . 35

Vamos limpar a lousa! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35

Fraqueza da virtude . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36

De #Metoo a #AllVictims . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37

Acusado, cala-te! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38

Açaimando o incorreto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39

A ditadura da opinião pública . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40

Recuperando a liberdade de expressão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42

Entre os Droogies e os Care Bears . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42

A coragem da nuance . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43

A escravidão das massas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44

Ficar calado: o novo luxo dos «oprimidos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46

Os fortes e os fracos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47

Falando alto: um privilégio meritocrático? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48

Lidar com o crescente comunitarismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50

A verdadeira liberdade: o direito de cometer erros . . . . . . . . . . . . . . 51

Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52

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INTRODUÇÃO -
Uma liberdade que nunca existiu
Os ataques de Charlie Hebdo em 2015 foram sem dúvida o catalisador de
uma pergunta agora incómoda: podemos dizer tudo em nome da liberdade
de expressão? Estes desenhos animados não atravessaram a linha verme-
lha? Desde então, o debate sobre esta questão tem continuado a ganhar
terreno. Se houve um tempo em que ainda era possível, como Mark Twain
escreveu, «descampar para o Ocidente» para escapar a uma certa ortodo-
xia, são agora as próprias democracias ocidentais que estão sob um desafio
a um dos seus princípios fundadores.

Em outras palavras, «descampar para o Ocidente» não é mais suficiente.


Eu nasci e vivi na URSS e este fenómeno é, para mim, particularmente des-
concertante, porque é tão paradoxal. O propósito das minhas observações
aqui não é colocar as democracias ocidentais a julgamento. Afinal, eu não
sou um político e muito menos um Pai de Moralidade. Mas eu sou forçado
a notar uma coisa. Os debates e controvérsias que a liberdade de expressão
provoca me deram uma cura rejuvenescedora que eu poderia ter feito sem,
tão forte é a impressão de que estou de volta à União Soviética da minha
juventude.

Na verdade, mais do que chocada, a erosão da liberdade de expressão é


ainda mais escandalosa. A razão para isto é, a meu ver, bastante óbvia e
decorre de uma dura confusão. Esquecemos que é porque a liberdade de
expressão foi conquistada que ela nunca é um direito adquirido.

Não, você não leu mal. O que é tomado como certo, isto é, a liberdade de
expressão, traz em si a semente essencial de um questionamento perpétuo.
Nunca há nada de definitivo nas conquistas, e o erro, em minha opinião, está
na certeza de que a liberdade de expressão deve necessariamente triunfar.

Parece, no entanto, que a liberdade de expressão está agora a actuar como


uma ameaça à desintegração das nossas sociedades, dando origem a in-
dignação e incompreensão. Se a liberdade de expressão gera paradoxos e
conflitos, é precisamente porque não é natural, porque não é imanente a

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todo ser humano. Você realmente acha que o caçador-colector do período
Paleolítico se perguntava o que lhe era permitido dizer ou não? A liberdade
de expressão não era um direito nem um valor. Era portanto necessário
que os seres humanos se domesticassem e se organizassem numa socieda-
de real para que o problema da liberdade de expressão surgisse. Em outras
palavras, a liberdade de expressão requer códigos, requer um certo savoir-
-vivre e mesmo um certo know-how, e impõe tolerância e responsabili-
dade. Em suma, a liberdade de expressão deve ser aprendida, domada e
mantida uma e outra vez, porque é mais do que natural, é sobretudo um
facto da sociedade que tivemos de conquistar e que é precisamente nossa
responsabilidade perpetuar.

Na verdade, nunca houve uma liberdade de expressão absoluta e universal.


Seja em termos da sua emergência ou do significado que lhe foi dado, a
liberdade de expressão é apenas relativa e, por vezes, ainda tímida. Pelo
menos de dois pontos de vista. Por um lado, a liberdade de expressão é, an-
tes de tudo, o resultado de uma revolução na mente dos homens, liderada
pelo Iluminismo no século XVIII. Primeiro foi necessário emancipar-se do
obscurantismo religioso para aprender a pensar fora do quadro estabele-
cido até então e, consequentemente, para expressar a sua opinião. D’Alem-
bert declarou no seu «Discurso Preliminar» à Enciclopédia: «Tudo deve ser
examinado, tudo deve ser agitado sem excepção e sem misericórdia». Além
disso, desde o seu início, a liberdade de expressão tem tido um aspecto
agonístico: é também e sobretudo uma luta por si mesma e por si mesma.
Por outro lado, a liberdade de expressão nunca teve um significado absolu-
tamente uniforme entre culturas, costumes e civilizações. Originalmente,
e mesmo depois do Iluminismo, a liberdade de expressão ainda era uma
prerrogativa de poucos, que muitas vezes eram bem nascidos. Ou, para
tomar outro exemplo: hoje, nos Estados Unidos, o discurso do ódio está
constitucionalmente consagrado e, portanto, não pode ser considerado ile-
gal. Na França, por outro lado, o discurso do ódio é mais uma salvaguarda
da liberdade de expressão, sendo, portanto, punível por lei. Mas, em todos
os casos, a liberdade de expressão tem sido uma conquista, um direito que
as mentes esclarecidas têm tirado da religião e da moralidade.

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Liberdade paradoxal, disse eu. A prova disso é que todos exigem poder ex-
pressar livremente a sua opinião, mas ao fazê-lo, todos assumem também
o direito de se oporem a qualquer forma de ofensa. É porque somos livres
de dizer qualquer coisa que somos, como resultado, responsáveis pelo que
dizemos. Até agora, este é um preceito que eu não refuto. Sim, excepto isso.
Enquanto os ocidentais afirmam a sua liberdade de expressão, estão simul-
taneamente a ajudar a pô-la em causa, correndo o risco de esvaziá-la da
sua substância e, por conseguinte, de aniquilá-la. É como se um confronto
frontal entre a sede de liberdade, por um lado, e a postura de vítima firme-
mente ancorada no neomoralismo, por outro, fosse inescapável.

Nada é mais intrigante para mim, um russo, do que a frieza com que a
liberdade de expressão é supostamente santificada hoje em dia. Quando eu
ainda vivia na URSS, a liberdade de expressão era, por turnos, impossível
e invejável. A União Soviética dos anos 70 e 80 ainda se agarrava aos seus
velhos costumes e não hesitava em ostracizar os «desviados». Ideias discor-
dantes nunca podiam sair dos confins da sala dos fundos e só podiam levar
a revoluções de poltrona. Pior ainda, a uniformização de mentalidades e
ideias tinha reforçado a auto-censura devastadora dos russos, aniquilando
a própria ideia de liberdade até às profundezas da sua consciência. Evi-
dência anedótica, mas não menos reveladora: meus pais nunca puderam
entender que eu queria ‘fazer negócios’, já que eu estava escolhendo não me
encaixar no molde da moralidade já feita.

Para os países ocidentais, a era pós Segunda Guerra Mundial foi o ponto de
viragem. O colapso das hierarquias sociais que prevaleceram até então foi
logo para dar lugar à emergência de uma classe média, uma padronização
das condições de vida, e com elas uma convergência de novas lutas. Este foi
o desafio da «sociedade aberta» de Karl Popper, ou seja, uma sociedade que
defendia a liberdade contra ideias totalitárias e ideais sociais. Um modelo
de sociedade que pretende fazer uma tabula rasa e virar a página sobre as
atrocidades do século XX de uma vez por todas. Mas defender uma socie-
dade livre significa acima de tudo defender a livre expressão de opiniões e
convicções, um princípio democrático por excelência. Em resumo, a fala
deve agora ser tanto libertadora como libertadora. E as redes sociais, em
breve, serão o adjuvante disto. Devemos, portanto, estar tranquilos, pois o
seu nome foi santificado e o seu reinado chegou.

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É claro que poderíamos ter ficado encantados com esta libertação da fala,
se ela não se tivesse transformado numa batalha de inteligência. Para os
justos, o fim justifica os meios. Hoje em dia, é nas redes sociais que os sen-
sibilizadores estão activos. O movimento «acordou» - cujos instigadores
parecem estar acordados apenas no nome - é emblemático a este respeito.
Depois de se enraizar nos Estados Unidos, o movimento espalhou-se com
alarmante ferocidade para além dos países anglo-saxónicos. As redes so-
ciais tornaram-se o teatro de um ódio crescente, cujos métodos orwellia-
nos de linchamento e cancelamento são arrepiantes. Afinal de contas, por
que alguém iria querer descampar para o Ocidente quando o mundo in-
teiro se tornou uma Disneylândia? Mas ainda ninguém tem os poderes de
Tinkerbell neste mundo Peter Pan.

A retenção das redes sociais funciona como uma revelação: a liberdade de


expressão não se volta contra a própria liberdade de expressão? E se, no
final, a liberdade de expressão se tivesse tornado um pote de rosas que
justificasse a violência? Não há mais nenhuma contagem das polêmicas
deletérias e devastadoras que agitam o Twitter. Não se tornaram as redes
sociais o reino destas Torquemadas de neo-moralismo «militante» que, em
nome do Bem e do politicamente correto, são como o atirador no telhado?
Eles localizam e depois expulsam o contraditório arbitrariamente conside-
rado como «imoral», que logo será «cancelado» após ser linchado. É assim
que os julgamentos no tribunal digital vão a partir de agora. Mas podemos
realmente falar sobre liberdade de expressão e debate democrático? A so-
ciedade está realmente «aberta» como o Popper pediu?

Perante este fenómeno, lembro-me do famoso «não existe tal coisa como
a sociedade» de Margaret Thatcher numa entrevista de 1987 para a revis-
ta Woman’s Own. Como os lobos sempre caçam em matilhas, as lutas só
podem ser comuns. Por exemplo, contra o chamado patriarcado branco,
contra o homem dominante, diretamente de um filme de Truffaut, ou seja,
um homem de uma época que não pode mais ser visto, ou contra a vio-
lência policial ou contra o chamado racismo estatal. Mas, no final, por trás
de todas essas lutas supostamente comuns, não há apenas um agregado
disperso de pessoas com direito a falar? Estas lutas, se é que são alguma
coisa, não são apenas um pretexto em virtude do qual cada vítima exige o

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seu direito à reparação? Contudo, as lutas e os indivíduos não se misturam.
Além disso, o «poder» não se tornou um lugar vazio, um receptáculo e um
catalisador para controvérsias que às vezes são tão aquecidas quanto de
curta duração?

Por trás de todas as questões inerentes à liberdade de expressão, e o lugar


central que esta questão ocupa cada vez mais nos debates públicos, encon-
tra-se, na minha opinião, a própria questão de «como fazer sociedade». A
minha liberdade de expressão deve parar onde começa a do Outro? O que
posso dizer? Posso dizer tudo? Tenho de ouvir tudo? Para decidir a ques-
tão, é sempre possível praticar um duplo padrão, como o «despertado».
Como os girassóis, eles se voltam para trás e para trás, procurando a única
luz da moralidade. Portanto, eles estão prontos para ouvir que as carica-
turas podem ofender, mas negam aos cépticos qualquer possibilidade de
questionar o que eles chamam de «racismo sistémico».

O absurdo deste preconceito poderia ser risível se não fosse pela própria
coesão das nossas sociedades. Na verdade, é a livre expressão que garante
que as nossas sociedades democráticas não sejam simplesmente exércitos
de Robinsons. Cícero escreveu no Tratado de Deveres: «É ensinando uns
aos outros, comunicando seus pensamentos, discutindo, fazendo julgamen-
tos, que os homens se aproximam e formam uma certa sociedade natural.
Em outras palavras, o «comércio da razão e da fala» seria esse direito na-
tural, permitindo uma sociedade natural. Assim seja. Mas será que os dias
em que a livre comunicação de opiniões ainda não tornou possível a for-
mação da sociedade?

Há uma linha ténue e uma confusão persistente entre direitos conquista-


dos e adquiridos. Na minha opinião, os ocidentais estão iludidos. Eles fin-
gem acreditar que o Iluminismo ainda brilha e brilhará para sempre com
o mesmo vigor. Isto porque a miragem deste triunfo definitivo postula que
o quadro legal e jurídico define perfeitamente o que é permitido e o que
é proibido. Acredito que agora corremos o risco da chama ser consumi-
da, enquanto a obrigação de passar a tocha intacta está se tornando cada
vez mais urgente. A liberdade ainda deve guiar o povo. Mas as circuns-
tâncias actuais e os acontecimentos recentes testemunham de forma im-
pressionante que a liberdade de expressão, tão fundamental para as nossas

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democracias, constitui um problema. Mas para responder a isto, temos de
fazer as perguntas certas. Isto é o que vou tentar fazer aqui, com toda a
humildade. Diante da ameaça ao nosso direito à livre expressão, a primeira
tarefa que temos é redefinir o conceito, traçar seus contornos precisos e, es-
peremos, reconquistá-lo. Isto porque a liberdade de expressão no Ocidente
deve continuar a ser invejável.

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Liberdade ameaçada,
liberdade ameaçada
Quem se desafia a definir com precisão a liberdade e a traçar os seus con-
tornos, logo se encontrará em apuros. Tenho de admitir que sou um deles.
E porquê? Provavelmente porque, como Henri Bergson escreveu em Os
Dados Imediatos da Consciência, «a liberdade é um facto» e, consequente-
mente, não pode receber nem provas nem explicações. Em suma, a liber-
dade pode, no máximo, ser experimentada, sentida, mas não explicada.

Liberdade de expressão, um Frankenstein do


Século das Luzes?
A liberdade como sentimento é eminentemente singular, mas todos podem
vivê-la da mesma forma que o seu padeiro, o seu irmão ou o seu colega.
Sim, você sente, como eu sinto, que a principal dificuldade está à frente... A
liberdade é contraditória, ou pelo menos paradoxal.

O que hoje nos parece uma conquista a ser preservada só foi realmente
alcançada no século XVIII. O Homo erectus estava a lutar pela sua sobre-
vivência, não pelas suas ideias. A menos que ele estivesse falando com um
feto - e ele obviamente não estava em risco - a liberdade de expressão era,
para os nossos antepassados pré-históricos, um não-questionário.

A liberdade de expressão apareceu como tal nos escritos de Kant, Voltaire


e Locke. Todo o propósito do Iluminismo está na máxima de Kant: «Sapere
aude! (literalmente: «Tenha a coragem de usar a sua própria compreen-
são»). Em suma, as consciências devem ser guiadas. A liberdade de formar
a própria opinião, e consequentemente de expressá-la, parece ser, assim, a
primeira e mais fundamental liberdade. Durante muito tempo, porém, a
liberdade de se expressar estava estritamente correlacionada com a posição
social. Mesmo que, em breve, aparecesse um verdadeiro espaço público
que já não estivesse confinado aos salões aristocráticos do século XVII,
que eram então propícios à «discussão» (conversa), e consequentemente à
crítica. O processo de democratização, a partir do século XVIII, transferiu

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os salões para a rua, o que foi possível com o surgimento dos cafés e a di-
fusão da educação. É por isso que o poder que até então era abertamente
incontestado - embora já contestado - foi gradualmente profanado por in-
vectivas e risos. O sarcástico estilo Voltairiano, que muitas vezes custou ao
seu autor o exílio ou a Bastilha, é testemunho disso.

Em suma, a liberdade de expressão é, acima de tudo, o resultado da in-


terpretação. Esse princípio fundamental não é uma construção etérea,
fantasmagórica, do nada. A liberdade de expressão não é a caridade de
uma alma benevolente, mas antes de tudo o produto de uma história, de
uma filosofia própria de uma cultura; em suma, de uma interpretação. Ou,
dito de outra forma, a liberdade de expressão já está sempre ancorada num
contexto pré-existente. Numa inspecção mais atenta, o espaço de debate
público está implicitamente bem definido, e é colocado contra um pano de
fundo normativo que logo estabelece a fronteira entre o que é permitido e
o que é proibido.

Liberdade de expressão, uma prisão de ouro


Se a liberdade de expressão pareceu muito rapidamente preciosa e ameaça-
dora, é porque ela levanta três questões espinhosas desde o início.

Primeiro, uma questão antropológica, a da conciliação paradoxal entre, por


um lado, a liberdade como fenómeno singular e íntimo e, por outro, uma
liberdade que é universalmente partilhada porque é universalmente vivida.
Dito de outra forma, se é verdade que sou um ser essencialmente livre, en-
tão não há nada que impeça os meus semelhantes de serem livres também.

Uma segunda questão ética é acrescentada à primeira: o reconhecimento


da liberdade de expressão conduz necessariamente a uma guerra de to-
dos contra todos? Parece-me, olhando para o estado da nossa liberdade
de expressão de hoje, que o Iluminismo apenas criou uma ilusão de liber-
tação. Esquecemos que na realidade ainda estamos fechados numa pri-
são: quando entramos na sociedade, já não somos verdadeiramente livres.
Além disso, hoje, certos temas, em si mesmos, causam muita tensão, como
os debates sobre imigração, sobre igualdade de oportunidades ou sobre

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o lugar das mulheres em nossas sociedades. E qualquer violação das barreiras
desta prisão traz consigo a ameaça de morte, agora social. Como qualquer
presente, a liberdade de expressão não pode ser recusada, mas o presente
pode rapidamente revelar-se envenenado para aqueles que «escorregam».

Consequentemente, a última questão que se segue e com a qual estamos


confrontados é política, e é a que ocupará em grande parte o tema deste
pequeno livro. A questão é: a consagração da liberdade de expressão como
um direito inalienável de todo ser humano não constitui uma ameaça à
coesão das sociedades? Ou, inversamente, é a sociedade que representa
uma ameaça à liberdade de expressão? Diante da veemência com que o
moralismo está voltando - o que é muito cuidadosamente chamado de
«politicamente correto» - a questão é colocada com mais vigor.

A liberdade impossível
Vou, portanto, abordar a primeira destas três questões, ou seja, a questão
antropológica com a qual a liberdade de expressão nos confronta. Antes
de mais nada, devemos reconhecer que o sentimento íntimo que o homem
tem da sua liberdade não é apenas uma ilusão. Pelo contrário, este senti-
mento referese a uma realidade. Por mais íntimo e profundo que seja, é
importante notar a sua universalidade.

Se sou livre de pensar o que penso, e consequentemente de o expressar, não


posso negar ao meu interlocutor esta mesma propensão para a liberdade,
correndo o risco de destruir a própria existência da liberdade de expressão.
Mas então, não posso impor a minha tristeza, a minha revolta ou o meu
prazer a alguém que, legitimamente, poderia permanecer impassível com
isto ou aquilo. Para parodiar a máxima cartesiana, poder-se-ia dizer: eu
sou, portanto sou livre. Parece tudo muito excitante, mas... Para quê ex-
pressarmonos se ninguém nos ouve?

Portanto, a liberdade de expressão implica necessariamente a presença de


um Outro à minha frente. Consequentemente, esta liberdade é inconci-
liável com o estado da natureza, que foi o ponto de partida do raciocínio
e segundo o qual a vida do homem foi reduzida à satisfação das suas

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necessidades fisiológicas. Portanto, não havia necessidade de se expressar,
muito menos de debater!

No estado de natureza, o homem é certamente livre, no sentido de que


não depende de ninguém e não tem que responder a ninguém, mas nun-
ca pode realmente expressar-se porque está isolado, recluso dentro de si
mesmo. Basicamente, sempre se fala um pouco sozinho por acidente. Em
outras palavras, somente a transição de um estado de natureza para um
estado social - isto é, assim que a vida humana é organizada dentro de uma
sociedade, uma comunidade - permite que o indivíduo se expresse, para
atualizar essa liberdade essencial.

Mas será que a possibilidade de cada pessoa dizer alto e claro o que pensa,
sem qualquer consideração pelo seu interlocutor, não corre o risco de que-
brar a coesão necessária para a sociedade? Como disse Rousseau: «A ordem
social não vem da natureza, ela é fundada em convenções. A liberdade de
expressão, portanto, só pode ser total e completa na hipótese do estado da
natureza, em que, estando só, o homem não corre o risco de ferir ninguém
por suas palavras. Eu posso gritar que tanto e tanto é um idiota, mas se eu
estou sozinho, minhas palavras ainda são apenas vinculativas para mim.

Contudo, este Outro, que se revela necessário, também põe um fim a esta
liberdade inicialmente total, que queremos obstinadamente que seja ab-
soluta. Todos, penso eu, ouviram o ditado: a minha liberdade pára onde
começa a liberdade dos outros...

Em suma, como terão compreendido, a liberdade de expressão implica


convenções que agem, pode-se dizer, como códigos que delimitam o bom
e o mau comportamento. Mas, então, uma liberdade restrita ainda é uma
liberdade? Em qualquer caso, é confrontando o Outro que o homem se
torna verdadeiramente ele próprio, ou seja, um homem livre. Como escre-
veu Hannah Arendt, «Para ser confirmada na minha identidade, dependo
inteiramente dos outros».

Em qualquer caso, este é o conceito que emergiu da Revolução France-


sa e está consagrado no artigo 11 da Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão de 1789: «A livre comunicação de pensamentos e opiniões é um

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dos direitos mais preciosos do Homem». Trata-se, portanto, de reconhecer
a natureza humana em si mesma, reconhecendo o direito do homem de
se expressar como quiser e de dizer o que pensa. Basicamente, reconhecer
esse direito é consagrar o homem como homem; e silenciar um homem já
é impedi-lo de existir.

Consagrar a humanidade do homem e, para usar a expressão de Pierre


Hadot, dar lugar de orgulho a esta «cidadela interior», trazendo assim a
própria natureza de volta à sociedade, tal é o projeto do Iluminismo. Assim
seja. Pode ser refutado ou admitido. Em qualquer caso, o significado dado
a esta noção de liberdade de expressão está, por si só, aberto ao debate.

Diz-me onde vives, eu digo-te o que dizes.


Longe de ter um significado uniforme e definitivo, a liberdade de expressão
tem um alcance e uma dimensão diferentes, dependendo da cultura e da
história do país em que é aplicada. Algumas civilizações não o reconhecem
ou consagram (por exemplo, países muçulmanos); outras consideram-no
um direito natural inalienável (por exemplo, a França); e outras conside-
ram a liberdade de expressão um direito que foi conquistado antes de ter
sido adquirido (por exemplo, os Estados Unidos). A Constituição dos EUA
estabelece a defesa do povo e a liberdade de expressão de cada indivíduo
como um pré-requisito que o Congresso deve reconhecer. O desafio é im-
pedir o Parlamento de aprovar leis que restrinjam a liberdade de expressão.

É sem dúvida por isso que, ao contrário da França, a liberdade de expres-


são não é restringida nos Estados Unidos. O discurso do ódio é protegido
pela constituição e não pode ser censurado. Em outras palavras, o discurso
racista, anti-semita ou homofóbico é absolutamente legal. Como tal, em
1977, a Suprema Corte dos EUA não podia proibir o Partido Nacional So-
cialista da América de marchar por um subúrbio predominantemente ju-
deu de Chicago em uniformes nazistas e com suásticas. O Tribunal decidiu
que tal discurso foi «protegido pela Primeira Emenda da Constituição».

Por outro lado, na França, quando Jean-Marie Le Pen declarou que «as câ-
maras de gás são um detalhe da história», foi condenado por negacionismo

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e revisionismo e condenado a pagar danos às onze associações que tinham
apresentado queixa. No entanto, nem a negação do Holocausto nem o revi-
sionismo têm os seus homólogos no direito penal americano. Na verdade,
apenas os atos de violência física são excluídos da definição de liberdade
de expressão pela Suprema Corte dos EUA. No entanto, a fala em sentido
estrito é constitucionalmente protegida.

Os americanos promovem uma liberdade de expressão baseada em três


princípios principais. Em primeiro lugar, há a ideia de que a verdade só
pode surgir através da participação de todos, através do intercâmbio e da
emulação intelectual (mercado de ideias). Em segundo lugar, a liberdade de
expressão levanta a questão do desenvolvimento pessoal dos indivíduos,
e cada pessoa é livre de jurar fidelidade às crenças que deseja (teoria da
auto-realização). Por exemplo, nas escolas americanas, o ensino do criacio-
nismo não só é possível como também é constitucionalmente protegido. A
Suprema Corte, em uma decisão de 1968, decidiu que uma lei proibindo
um professor escolar de ensinar a teoria da evolução violaria a Cláusula de
Estabelecimento, a cláusula incorporada à constituição que proíbe o Estado
de promover uma determinada religião ou crença. Finalmente, o último
princípio é que essa liberdade parece ser permitida apenas em virtude da
cidadania do indivíduo (teoria do autogoverno).

Se nos Estados Unidos os indivíduos têm o direito de dizer qualquer coisa,


a distinção a ser feita entre discursos não é responsabilidade do Estado,
mas de cada indivíduo e, portanto, de todos. Em França, por outro lado,
cabe à autoridade pública estabelecer distinções e limites, não sobre o que
se deve acreditar, mas sobre o que é conhecimento, em oposição ao que é
crença. Ou, para colocar com Espinoza: «A salvaguarda da liberdade de
pensamento - e portanto de expressão - requer uma completa laicidade do
Estado».

Na realidade, a questão é menos de escolher uma ou outra concepção de


liberdade de expressão do que de pensar e estabelecer bases jurídicas que
permitam preservar a liberdade do indivíduo e, ao mesmo tempo, con-
frontá-lo com a sua responsabilidade. De facto, em qualquer dos casos, é
sempre uma questão de responsabilidade.

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Uma ameaça permanente
Uma liberdade de expressão institucionalizada e enquadrada pela lei equi-
vale a enquadrar, da mesma forma, as relações que os indivíduos têm uns
com os outros. O limite do que é aceitável para dizer é o mesmo limite que
determina o que é aceitável para ouvir. Contudo, o facto de uma lei definir
os contornos da liberdade de expressão não impede que a própria essência
dessa liberdade resida inteiramente na aceitação de um risco.

Provavelmente até há um risco duplo. Em primeiro lugar, a lei, apesar da san-


ção que ela prevê, pode ser transgredida. Em segundo lugar, a institucionali-
zação, e com ela a possível judicialização, do princípio essencial da liberdade
de expressão, coloca a sociedade em risco de desintegração. Paradoxal? É
verdade que, intuitivamente, podese pensar que quanto mais precisamente a
liberdade de expressão é enquadrada, mais o risco de conflito diminui. Todos
sabem, portanto, até onde podem ir na expressão das suas ideias.

Mas acho que cabe a nós olharmos para esta questão da perspectiva des-
tacada por Hannah Arendt. De facto, todo o conteúdo do risco de que
aqui falamos está na linha da crista, nesta tensão permanente imposta pela
liberdade de expressão. Em outras palavras, pela sua continuidade, a liber-
dade de expressão é a história, constantemente renovada, da ameaça que
ela representa para si mesma.

Com Arendt, devemos entender a liberdade de expressão como uma sepa-


ração que nos aproxima. E é precisamente - e paradoxalmente - esta sepa-
ração necessária e inevitável que nos permite evitar a ruptura. A liberdade
de expressão é, por sua vez, o que liga as pessoas umas às outras enquanto
as separa.

Em outras palavras, só porque a liberdade de expressão separa os indi-


víduos é que, consequentemente, os aproxima. Para Hannah Arendt, o
mundo não é comum porque todos partilhamos os mesmos princípios ou
porque é o produto de semelhanças de pensamento em todos os seres, mas
porque há em cada um de nós um desejo comum de um mundo menos
unificado, ou seja, um mundo plural.

17
Repensar «viver juntos».
Falamnos constantemente sobre a questão interminável de «viver juntos».
Um refrão que surge em todos os debates públicos de hoje. Na realidade,
a questão de «viver juntos» não é nem mais nem menos do que a ideia de
uma sociedade já presente e teorizada nos escritos de Hannah Arendt no
século XX. Basicamente, o que torna possível fazer do mundo um mundo
comum é precisamente a recusa de um único pensamento ao qual a liber-
dade de expressão estaria sujeita.

O pensamento do Arendt é incrivelmente actual. Em última análise, o que


ela nos ensina é a idéia de que, no final, a uniformidade de opinião é peri-
gosa e, sem dúvida, ainda a marca do despotismo. A pluralidade é, enquan-
to tal, uma condição absolutamente necessária para a possibilidade dada a
cada ser humano de se expressar livremente.

Kant, antes de Arendt, tinha feito a seguinte pergunta: o que é pensar por
si mesmo? A priori diferente, esta questão está no entanto intimamente
ligada à da liberdade de expressão. Pensar por si mesmo», escreveu Kant,
«é antes de tudo aventurar-se por caminhos que ainda não foram traçados
e confrontar-se com os limites das próprias certezas ou, no mínimo, das
próprias opiniões». No entanto, o caminho tomado pelo pensamento livre
não é totalmente arbitrário nem totalmente acidental. Em outras palavras,
o pensamento tem seus princípios. O que seria de um pensamento sem a
possibilidade de ser comunicado? A resposta do filósofo de Königsberg à
questão do que constitui o livre pensamento é «fazer uso livre e público da
própria razão». Portanto, pensar por si mesmo e ser livre para se expressar
são uma e a mesma coisa.

É arrancandose das próprias convicções, das próprias certezas, em suma, é


arrancandose de si mesmo e consentindo com a própria dúvida que o ho-
mem consegue entrar na sociedade. Estar na sociedade é, portanto, acima
de tudo, trocar opiniões, mesmo que eu nem sempre obtenha o acordo dos
meus interlocutores, nem eles o meu. É procurando convencer o Outro que
o homem, depois de ter entrado na sociedade, participa desta sociedade e
da sua coesão.

18
Em As Origens do Totalitarismo, Arendt escreveu a este respeito que «a
principal característica do homem de massa não é a brutalidade ou o re-
tardamento mental, mas o isolamento e a falta de relações sociais». Este é o
paradoxo de um movimento como os Coletes Amarelos. Sendo as grandes
lutas de classe uma era passada, cada pessoa podia legitimamente acreditar
que era a única esquecida pela sociedade, a única abandonada à sua preca-
riedade e relegada para áreas rurais desertas. Era, portanto, necessário que
a união fosse forte. É portanto sobre esta anomia e sobre a dolorosa cons-
ciência de um hiper-individualismo deletério que o movimento foi capaz
de formar e depois prosperar.

Por que, então, há tanto debate hoje em dia sobre a liberdade de expressão?
Por que ouvimos em toda parte que a liberdade de expressão está amea-
çada, mesmo que este mundo globalizado nunca tenha permitido tanto
intercâmbio entre as pessoas? Não entendemos o que Arendt tinha a dizer?
Ou é a teoria dela que já não se aplica nas nossas democracias de hoje?

A questão da liberdade de expressão está, contrariamente a todas as ex-


pectativas, a tornar-se cada vez mais importante face ao perigo do «mun-
do globalizado». Na realidade, o «mundo comum» proposto por Hannah
Arendt é a antítese do mundo globalizado de que estamos a falar hoje. A
globalização é, pelo contrário, uma máquina para produzir o mesmo, o
semelhante. À medida que as mentalidades se normalizam - da mesma
forma que a sacrossanta mercadoria de um mundo que é primeiro capita-
lista antes de ser global - a própria troca torna-se difícil, se não impossível.

Na verdade, quando todos pensam da mesma maneira, e a fortiori para


pensar a mesma coisa, as trocas secam e, com elas, a própria coesão das
sociedades democráticas. Para o homem - este zoon politikon, o «animal
político» de Aristóteles - a política é a sua casa.

Na medida em que a globalização uniformiza os estilos de vida e, con-


sequentemente, as formas de pensar, as diferenças permanecem. Embora
ambos tenham contas no Facebook e smartphones, o executivo graduado
que trabalha na La Défense não tem, a priori, nada em comum com o tra-
balhador da Bridgestone em Bethune. Em outras palavras, ainda é possível
comunicar sem necessariamente nos entendermos um ao outro.

19
Um presente (quase) envenenado
É também por isso que a liberdade de expressão, embora a priori benéfica,
é, no entanto, uma fonte eminente de conflito. Há uma linha ténue entre o
presente e o fardo. Dizer o que eu penso é também correr o risco de desa-
cordo com o meu interlocutor e o de um banimento moralista. E eu acho
que você vai concordar que isso nunca foi tão verdadeiro hoje.

Na realidade, a liberdade de expressão, por grande que seja um princípio,


consiste mais em fazer do que em querer. A livre expressão não pode ser
reduzida à mera vontade de uma boa consciência da qual emanam belas fór-
mulas. É antes o poder de investir no campo da política, o do debate público,
onde as pessoas se reúnem através do intercâmbio. É no agora que tudo é jo-
gado. A partir daí, nada pode rebaixar a liberdade de expressão sem destruí-
-la totalmente. E Albert Camus escreveu: «A liberdade deve ser para todos ou
para ninguém». Esta é a única fórmula da democracia que vale o sacrifício.

Além de não poder ser negada a ninguém, a liberdade de expressão não


pode ser reprimida pela moralidade ou estritamente circunscrita por ela.
A liberdade ainda é absoluta ou não é. O sacrifício que Camus evocou está
no fato de que a liberdade, e com ela o dano potencial da discordância, é o
preço que nossas sociedades têm que pagar para preservar a democracia.
Como tal, cabe-nos a nós fazer escolhas que, idealmente, não devem mais
sofrer de qualquer ambiguidade. Qual deve ser a prioridade no relaciona-
mento que os indivíduos têm uns com os outros na sociedade? Para dizer
o que eles pensam ou para dizer o que os outros querem ouvir? Seremos
realmente capazes de pôr de lado as nossas sensibilidades e as nossas dores
para preservar os nossos ganhos democráticos?

O Criador (conflito)
Estas questões são ainda mais agudas hoje em dia, uma vez que as socieda-
des democráticas estão a viver um surto no reinado da moralidade. Para o
que é considerado indecoroso, qualquer um pode ser ostracizado por um
tribunal popular que tem a certeza de manter a verdade, ou seja, a certeza
de fazer o bem. Por outras palavras, já não é apenas nas relações entre

20
cidadãos que o problema surge, mas ainda mais - e isto é provavelmente
mais perigoso - no que deveria ser entendido pela «esfera pública», ou seja,
pela «política».

Isto é demonstrado pelos debates sobre a questão da liberdade de expres-


são e seus limites. Já não é tanto nas palavras livremente trocadas que surge
o conflito, mas precisamente no quadro delimitado e investido pelo debate.

Pois é precisamente porque já não podemos dizer tudo. A política adoptou


agora o seu próprio código de conduta, independentemente da liberdade
de expressão e sem dúvida em seu detrimento.

Hoje existe um padrão arbitrário chamado «politicamente correto». É a


norma que delimita o quadro da esfera pública e dos debates e determina,
com a mão de um mestre, o que se pode e o que não se pode dizer. Voltarei
a este ponto em detalhe no resto do meu discurso.

A liberdade de expressão já não é o direito ou o meio em virtude do qual os


indivíduos ainda podiam pensar contra si próprios, ou seja, erguer-se, pro-
gredir, abrir-se. Este é sem dúvida o auge das sociedades abertas e globa-
lizadas! Por outras palavras, a violência inerente à liberdade de expressão,
aos desacordos e à dor que estes podem causar, é absolutamente necessária
para a política.

A liberdade de expressão funciona dialecticamente, talvez possamos dizer,


com o economista Joseph Schumpeter, que ela é o motor da «destruição
criativa». É porque todos trocam opiniões, confrontam os outros e, con-
sequentemente, eles próprios, que o debate permanece construtivo. Em
outras palavras, é preciso sem dúvida destruir as certezas para aprender a
pensar e a ser verdadeiramente livre. A liberdade de expressão deve, por-
tanto, ser defendida em nome da própria democracia.

O exemplo russo da Perestroika no final da década de 1980 é particular-


mente revelador a este respeito. A emulação intelectual e cultural foi o re-
sultado direto do crescente espaço dado à liberdade de expressão. Gerou
uma onda de otimismo em todos os estratos da sociedade russa. A partir
daí, intelectuais e cientistas participaram de debates políticos, como o físi-

21
co Sakharov; foram publicados samizdat anteriormente desconhecidos, e
as revistas literárias e políticas se multiplicaram e, sobretudo, se tornaram
mais democráticas.

No final, é na liberdade de expressão que residem as forças criativas da


sociedade. Portanto, nunca é uma questão de ostracizar, como por um re-
flexo pavloviano, aqueles que poderiam ser apressadamente acusados de
serem subversivos. Aqueles que agora são chamados de «guerreiros da jus-
tiça social» acabam optando por uma forma de discurso que é livre porque
é independente do quadro politicamente estabelecido, à sua margem. E
fazem-no precisamente porque estão convencidos de que o quadro institu-
cional e estatal é incapaz de proporcionar uma solução para as injustiças e
desigualdades. Além disso, os denunciantes nunca falam a uma só voz, mas
ainda são capazes de criar um movimento.

A era SJW é sobretudo uma era em que mesmo os mais poderosos são cha-
mados a prestar muita atenção às preocupações contemporâneas. Seja na
área do bem-estar animal, da luta contra o desperdício como consequência
de um consumo excessivo insano ou contra todas as formas de opressão,
todos são levados a rever constantemente as suas posições, modificá-las e
dobrá-las à luz do escrutínio destas sentinelas 2.0. E todas estas são oportu-
nidades de intercâmbio, debate e confronto necessário. Em suma, estes no-
vos vigilantes, apesar das críticas que lhes poderiam ser feitas, sem dúvida
nos convidam a todos a refletir. Mesmo que, por vezes, a sua preocupação
com a equidade e a justiça possa ter as suas costas...

Uma liberdade diminuída


Não considero, portanto, um epílogo irrefutável o facto de que os criadores
de consciência, estes «guerreiros da justiça social», tenham todos optado por
uma sedição fanática e fútil. Alguns, parece-me, pretendem abrir caminho
a outras considerações através de um mecanismo que é sem dúvida benéfi-
co para o debate democrático. Mais uma vez, pode-se não concordar com
o seu discurso, mas não se pode negar-lhes o direito de falar. Parece-me
inteligente dizer com Laure Murat que «revisionismo não é revisionismo».
Olhar criticamente para o próprio tempo, exortando à mudança, não impli-

22
ca necessariamente, e mesmo aos olhos dos seus instigadores, limpar a ar-
dósia do passado e varrer uma cultura e civilização milenar com uma onda
paternalista da mão. Mais uma vez, permaneço fiel ao preceito camusiano
de que a liberdade de expressão deve ser para todos ou para ninguém.

Além disso, parece-me que numa era de certeza desenfreada sobre as teo-
rias da conspiração, há uma necessidade cada vez mais premente de rea-
firmar a liberdade de expressão. A liberdade de expressão é um baluarte
contra as autoridades políticas ou religiosas, das quais, parece-me, a des-
confiança vem aumentando. Aqui novamente me refiro ao que Kant disse
em O que é o Iluminismo? É seguro permitir que os seus sujeitos façam uso
público da sua própria razão e expor publicamente ao mundo as suas ideias
sobre uma melhor redacção da referida legislação, mesmo que sejam acom-
panhados de uma crítica franca à legislação existente.

Sabemos agora que uma liberdade que foi anexada ou reduzida a um míni-
mo já não é uma liberdade. Mas este é todo o problema imposto pela tran-
sição de um estado de natureza para um estado social em que o indivíduo
é forçado a lidar com os seus pares. Isto porque a liberdade de expressão
enquanto tal contém as sementes do conflito e tende, por definição, a di-
vidir. Isto é demonstrado pelos desenhos animados que são considerados
subversivos e ameaçam a paz social.

Pode haver, apesar de tudo, uma conciliação entre os dois? O homem é


obrigado a escolher entre a marginalidade para preservar a sua liberdade,
ou a censura em nome da coesão social? Em suma, a liberdade de expres-
são pode ser absoluta?

23
Correcção política:
a liberdade é opressão
Até agora, o meu objectivo tem sido demonstrar a natureza imprecisa e flu-
tuante do conceito de liberdade de expressão. Mas é precisamente isto que
a era actual nos obriga a fazer. Isto pode parecer contraditório à primeira
vista, mas a liberdade de expressão tal como é exercida hoje nas democra-
cias modernas exige que definamos o seu perímetro.

Uma estrada para o inferno


pavimentada com boas intenções
É como se a durabilidade da liberdade de expressão, o princípio fundador
da nossa República, estivesse neste recinto protector, fora do qual a liber-
dade virtuosa se tornaria um abuso e até uma ofensa.

Mas como seria uma democracia se já tivesse escolhido os sujeitos au-


torizados e o que lhe era permitido, mantendo ao mesmo tempo fora os
sujeitos auxiliares que tinham sido decretados como proibidos? Mas esta
é a missão do politicamente correto: colocar três camadas do verniz da
aceitabilidade seria, portanto, o preço a pagar pela discussão. Só que isto
está longe do objectivo inicial do politicamente correcto, que é permitir o
consenso entre opiniões divergentes, a fim de evitar uma guerra de todos
contra todos. O politicamente correcto, concebido a priori como pelo me-
nos uma tentativa, na melhor das hipóteses como garante da paz social, foi
transformado numa máquina de exclusão.

Tenho, portanto, a sensação de que, para além de não conseguir responder


ao seu desafio, o politicamente correcto está a levar-nos àquela «estupidez
gregária» de que Nietzsche já falava em O Crepúsculo dos Ídolos: pensar
como toda a gente, ou parar de pensar.

Eu noto imediatamente um enésimo paradoxo. Por um lado, todos nós,


parece-me, temos a sensação de sermos esmagados num espartilho men-
tal que sufoca o pensamento através de uma deformação e perversão da

24
linguagem. Por outro lado, eu acrescentaria que, por tudo isso, estamos
agora testemunhando uma verdadeira libertação de vozes, particularmen-
te através das redes sociais. Todos são, a priori, capazes de dizer o que pen-
sam, quando o pensam, como o pensam. Até penso que, na Internet, a
temperança parece ter desaparecido de vez.

No entanto, recuso-me a sucumbir ao canto simplista da sereia de dizer


que tudo isso é culpa das redes sociais. Este não é obviamente o caso, ou
melhor, parece-me que é um pouco mais complicado do que isso.

Poupa uns para matar outros.


Todo o problema da liberdade de expressão reside precisamente na simul-
taneidade entre a secagem e a profusão. Como compreender que as redes
sociais organizam, por vezes, verdadeiras lutas virtuais em que todos são
levados a satisfazer a sua sede de vingança e, ao mesmo tempo, o reinado
do politicamente correcto alarga cada vez mais o seu alcance? Qual é a
lógica por trás de poupar uns para matar outros? Como podemos com-
preender o facto de o politicamente correcto, ele próprio sensível a todas
as sensibilidades, se ter tornado ainda mais intolerante do que aqueles e o
que ele afirma combater? Hoje tenho a desagradável sensação de que, ao
procurar moderação, a liberdade de expressão se tornou um pretexto para
a deriva da arrogância popular.

Originalmente, a liberdade de expressão é a forma civilizada de colocar


as opiniões, ou seja, as contradições, sobre a mesa, a fim de trazer a ver-
dade. Agora, porém, não é mais pela busca da verdade que eu posso me
expressar, mas por causa de uma verdade arbitrária, irrefutável e severa,
que foi colocada ali com antecedência. Observo, no final, que a liberdade
de expressão está inevitavelmente associada a um dever de conformidade,
ou seja, de aceitabilidade, que já é sempre liberticida.

Eu estava dizendo que a liberdade de expressão se tornou um pretexto para


a deriva. Em seu nome, ou seja, em nome da tolerância, a intolerância é
agora permitida. Mais do que isso, tenho a sensação de que a intolerância é
agora necessária. Entre o desejo de justiça e a sede de vingança, a linha está
se tornando cada vez mais tênue.

25
Entre estes dois extremos, obviamente, não há nem uma zona cinzenta
nem uma via intermédia. Tudo acontece, na verdade, como se as pessoas
fossem obrigadas a não dizer nada ou a dizer tudo, de tal forma que essa
força libertadora parece transmutar-se definitivamente numa praga balbu-
ciante e estéril. É sem dúvida uma doce utopia, então, acreditar que a livre
expressão ainda pode permitir o debate e a troca de opiniões.

O circo da mídia
De facto, a este respeito, deve também ser mencionado que a proliferação
de discursos é acompanhada, simultaneamente, por uma proliferação de
canais de notícias 24 horas por dia que atingem as suas mais altas classifi-
cações graças aos debates televisivos. Mídias como FoxNews ou MSNBC,
ou o jornal francês Mediapart, fazem parte dessas acrobacias, ou devo di-
zer, facadas. São o lugar por excelência desta delirante logorreia onde tudo
deve ser dito sem reservas, e muitas vezes sem reflexão... e que às vezes me
dá a sensação de estar diante de um episódio de «A Marselhesa versus o
Resto do Mundo»!

Mas outros meios de comunicação, que podem ser vistos com mais serie-
dade, sucumbiram em grande parte à tentação do debate. O canal CNews,
por exemplo, consegue reunir um milhão de franceses em torno do seu
programa Face à l’Info em certos serões.

Por isso, pergunto-me sinceramente: a abundância do debate de ideias não


é, em equilíbrio, uma ameaça ao próprio debate público e, portanto, à li-
berdade de expressão?

Tudo isto me leva a crer que, em vez de permitir um debate inteligente, a


extensão do espaço público e sua abertura aos meios de comunicação histé-
ricos e às redes sociais acaba por destruir a livre expressão em favor de um
refrão moralista e hipócrita. E tudo isto em nome da moralidade. E por falar
em moral, o fenômeno está infundindo até mesmo os níveis mais altos onde
reina uma moralidade verdadeiramente dominante. Parece-me que os nos-
sos líderes preferem muitas vezes optar pelo conforto e optam por seguir o
caminho dos novos ideólogos. O mantra tem um nome: «Não faças ondas»...

26
A este respeito, lembro-me de uma frase escrita por Jonathan Turley no
Washington Post que, devo admitir, me fez rir: «O que ameaça a liberdade
de expressão em França não é o terrorismo, são os franceses.

Permita-me que o ofenda...


No entanto, como muitos, eu me pergunto. Se a liberdade de expressão é
o direito absoluto de que as democracias se orgulham, pode ser restringi-
da? Ou, dito de forma mais directa, uma liberdade amputada ainda é uma
liberdade? O que chamamos de «sociedade» é, antes de mais nada, a soma
dos indivíduos que a compõem. Podemos, em nome de um princípio tão
fundamental como é, desconsiderar os indivíduos e a humanidade no ho-
mem, a sua sensibilidade? Pela minha parte, e com toda a humildade, não
contesto o facto de que a paz e a coesão social requerem certas concessões.
Quando sabemos que os soldados da jihad encontram conversão em sites
da Internet que promovem o terrorismo... isso levanta questões reais.

Mas uma vez feita esta primeira pergunta, surge outra, ainda mais colossal:
que limites devem ser colocados à liberdade de expressão? Até que ponto
podem ser feitos compromissos sem correr o risco de ficar comprometido?

Sobre este ponto, parece-me que a posição de Ruwen Ogien é esclarecedo-


ra. Em seu livro La liberté d’offenser, o filósofo propõe distinguir entre dano
e ofensa. Dano refere-se à integridade física dos indivíduos e, mais am-
plamente, aos seus direitos fundamentais, enquanto que ofensa é o ataque
a coisas abstractas ou simbólicas. Em suma, o primeiro ataca o homem,
enquanto o segundo denuncia as ideias. Portanto, como Ruwen Ogien, eu
acho que só uma lesão, ou seja, um ataque à carne, deve constituir uma
salvaguarda para a liberdade de expressão.

Os ataques a símbolos, divindades ou crenças, embora possam ofender


certas sensibilidades, não devem ser proibidos. A liberdade total de ex-
pressão é então defensável e possível se e só se não causar quaisquer con-
sequências negativas concretas, reais e materiais, ou seja, consequências
físicas nas pessoas. Isto nos leva de volta ao antigo debate sobre se devemos
dar prioridade à segurança em detrimento da liberdade ou vice-versa. Na
minha opinião, a liberdade de expressão não pode ser alcançada a qualquer
preço, e certamente não à custa da vida humana.

27
Blasfêmia: De volta ao futuro
Deste ponto de vista, a liberdade de expressão é um verdadeiro desafio
para a lei, e o quadro legal não é apenas uma necessidade, mas também
uma salvaguarda.

Na minha opinião, é precisamente porque a linha entre as ideias e as pes-


soas está cada vez mais confusa que a liberdade de expressão está a ser
empurrada entre dois extremos: a sacralidade e o espezinhamento. Por
exemplo, a lei francesa protege os fiéis da fala de ódio por causa de suas
crenças, enquanto as idéias não são protegidas. Em outras palavras, é per-
feitamente permissível e, portanto, legal odiar uma religião, uma idéia ou
uma opinião. A noção de liberdade de expressão está sempre nesta colina.

Vou tomar aqui um exemplo que me parece particularmente evocativo:


o caso Mila. Fiquei espantado que a própria noção de blasfémia tivesse
ressurgido, depois de ter pensado que tinha sido limpa com pó e enterra-
da para sempre. Mas a questão foi seriamente colocada: poderia Mila, em
nome do seu direito à liberdade de expressão, «insultar» o profeta?

Na verdade, não é apenas a lei que restringe a liberdade de expressão. Cer-


tas «regras», ou melhor, certos códigos informais, também contribuem
para limitar a liberdade de expressão. Este é um exemplo claro da con-
tradição, ou pelo menos do problema, de interpretar um direito que de
outra forma é considerado absoluto como sendo sempre relativo. No caso
da religião muçulmana, por exemplo, o sagrado é propriamente intocável
e não toleraria nenhuma blasfêmia. Se os desenhos animados se tornam
o porta-estandarte da liberdade de expressão, ou seja, a provocação final,
é precisamente porque são vistos pelos islamistas como sendo capazes de
justificar um ataque à integridade física do blasfemador.

Para além do quadro legislativo, a liberdade de expressão já está, portanto,


confrontada com a religião, mas também com a moralidade. Com isto que-
ro dizer que as restrições impostas pela moralidade têm sido satisfeitas com
a própria moralidade. Salman Rushdie, o autor do controverso Satanic Ver-
ses, tem sido frequentemente convidado a falar sobre o tema da liberdade
de expressão, e pronunciou-se contra as críticas ao slogan ‘Je suis Charlie’.

28
O verdadeiro problema, segundo o autor, é certamente o obscurantismo
religioso, mas neste caso é também e sobretudo que mesmo pessoas não-
-religiosas às vezes preferem renunciar à sua liberdade fundamental para
se expressarem. Grosseiramente falando, eles compram a paz social. Uma
coisa é não gostar do espírito de Charlie Hebdo, outra é reconhecer o seu
direito de se expressarem. Basicamente, não há liberdade absoluta que seja,
ao mesmo tempo, de geometria variável. A liberdade de expressão deve, de
facto, aplicar-se também àqueles de quem não gostamos, àquilo que ofende a
nossa sensibilidade e os nossos valores, àquilo que nos magoa ou nos revolta.

Eu sou o Charlie que não desenha


desenhos animados.
Neste aspecto, a controvérsia em torno das caricaturas não acabou de criar
confusão. Na verdade, algumas pessoas afirmam que em nenhuma cir-
cunstância a liberdade de expressão deve ser desprezada, enquanto outras
sentem que a linha vermelha talvez tenha sido ultrapassada. Então eu faço
a pergunta de frente: devemos optar pelo conforto do silêncio? Na realida-
de, estou convencido de que é nossa responsabilidade assumir a liberdade
de expressão, mesmo que isso signifique carregar o fardo.

Sim, eu repito o que escrevi no meu ensaio La Marche à Rebours. Secularis-


mo no fundo do abismo: vamos fazer como o Iluminismo fez no seu tempo,
vamos fazer troça das religiões, vamos banalizá-las e vamos nos livrar de
qualquer indulgência que possamos ter para com elas. O verdadeiro pro-
blema, na minha opinião, é a timidez com que os nossos princípios secula-
res enfrentam o retorno da religião. Estamos, com efeito, escolhendo privi-
legiar o «respeito» pelas religiões em detrimento da liberdade para todos.

É precisamente por isso que defendo um forte secularismo e que a liberda-


de de expressão republicana não se pode deixar obcecar pelo Islão. De fato,
não podemos nos permitir gozar de um princípio que gostaria de ser es-
sencial, mas que na realidade funciona a duas velocidades. Jogar este jogo é
perder com antecedência. A omnipresença da questão religiosa como pano
de fundo para o problema da liberdade de expressão significa optar por ba-

29
nir o humor e o escárnio das nossas sociedades. Ou melhor, é para sugerir
que o humor é uma ameaça.

Também nos dias que se seguiram ao bárbaro assassinato do professor de


história-geografia Samuel Paty, o filósofo Edgar Morin deu uma entrevista
ao jornal Le Monde na qual afirmou que «os desenhos animados dinamar-
queses se tornaram patrimônio nacional francês». Eu não posso, de boa fé,
concordar com ele. Reduzir um problema a uma imagem não representa
um grande risco para as democracias seculares? Em particular, não leva a
um foco desordenado na religião? Se os desenhos animados estão lá sobre-
tudo para fazer rir as pessoas, não lhes pode ser dado um lugar que elas não
deveriam ter, ou seja, o de representar sozinhas toda a gama de problemas
ligados à liberdade de expressão.

A questão permanece: estamos prontos para ir para a guerra civil? Estamos


prontos para assumir a responsabilidade que vem com esta ofensa à comuni-
dade muçulmana? Lembremonos que o ummah - isto é, todos os muçulmanos
de onde quer que venham - vê isto como uma ofensa pessoal, uma provocação
final. A nível pessoal, penso que é possível apoiar a liberdade destacada por
Charlie Hebdo e a posição que ela encarna, sem fazer dos desenhos animados
um ídolo a ser defendido a todo o custo. Estes desenhos animados são abso-
lutamente necessários para defender a liberdade de expressão que é nossa?

Basicamente, o que está implícito na questão da liberdade de expressão


é também e acima de tudo a possibilidade de criar um conflito insolúvel.
E é precisamente este conflito que petrifica. É, portanto, a montante que é
considerado apropriado operar a partir de agora. As democracias parecem
ter tomado o seu lado: prevenir é melhor do que remediar.

E acima de tudo, sem ondas!


À primeira vista, este é o papel que os seguidores do politicamente correto
atribuíram a si mesmos. Não ofender é a sua palavra de ordem, ou devo di-
zer, o seu imperativo categórico. O recente surgimento de leitores sensíveis
para rastrear o menor desvio potencialmente inconveniente na linguagem
dos textos é um caso em questão.

30
Parece-me, porém, que o que se chama «politicamente correto» é, na ver-
dade, um subterfúgio bastante hipócrita que pretende alcançar a concilia-
ção. Mas a conciliação ainda não é reconciliação. Contudo, não acredito
que os defensores do politicamente correto sejam todos hipócritas hor-
ríveis cujo único objetivo é tecer uma coroa de louros para si mesmos.
Na verdade, a intenção inicial é mais do que louvável: mitigar os conflitos
abertos e ameaçadores que uma linguagem desequilibrada poderia trazer à
paz social e, com ela, à própria coesão da sociedade.

Mas, por mais louvável que seja o objectivo principal, os efeitos concretos
parecem-me largamente abertos à crítica e contrários à intenção. Observo,
portanto, com pesar, que na prática, o politicamente correto não faz ne-
nhuma tentativa de suavizar os limites do discurso para permitir a todos
a liberdade de se expressarem sem correr o risco de ofender o outro. Não!
Pelo contrário, acho que o politicamente correcto distribui as cartas. Algu-
mas pessoas são encorajadas a se expressar enquanto outras são condena-
das ao silêncio. O politicamente correto circunscreve o perímetro de forma
ainda mais severa do que a própria lei.

Na França, Frédérique Vidal, Ministra do Ensino Superior do governo


Castex, pagou recentemente o preço. Ela teve o descaramento de falar so-
bre a ameaça «islamo-lefista» às universidades francesas. Depois de provo-
car uma controvérsia, foi-lhe pedido para se explicar. Estas observações,
que, concordarão, não são de modo algum condenáveis do ponto de vista
da lei, mas ainda mais do ponto de vista da moral...

Em outras palavras, foi estabelecido um axioma que não deve ser transgre-
dido em nenhuma circunstância. As verdades já aconteceram, agora cabe-
-nos a nós confirmá-las. É assim que as sociedades funcionam sob a égide
do politicamente correto. É estranho como a liberdade de expressão caiu
de Charybdis para Scylla. É em nome da preservação do princípio demo-
crático da liberdade de expressão que ela está a ser confiscada.

Lembro-me do maravilhoso romance de Ayn Rand, Hino, no qual os co-


letivistas conseguem estabelecer uma espécie de sociedade centralizada e
perfeitamente homogênea. Para conseguir isso, eles optam por destruir

31
tudo o que possa impedir a sua uniformidade; livros, cidades, tudo. O seu
desejo de igualizar as condições é certamente alcançado, mas agora todos
estão limitados no que podem dizer, fazer ou pensar. O narrador intitula-
do Equality 7-2521 declama: ‘É pecado pensar palavras que ninguém mais
pensa’; ou ainda: ‘E sabemos bem que não há transgressão mais negra do que
fazer ou pensar sozinho’.

Outro princípio democrático, na verdade, é o triunfo da maioria. Mas tam-


bém é sempre a lei dos números que tende a distorcer os dados. Em outras
palavras, o que é dominante nem sempre é o que está em maioria. E a
liberdade de expressão oferece um exemplo significativo disso. Na realida-
de, a profusão de posições e discursos não levou a uma partilha de ideias,
mas sim a uma ideia partilhada: a crença tenaz numa ortodoxia, uma leal-
dade intelectual a um núcleo ideológico comum. A grande maioria que
se expressa frequentemente segue a mesma direcção, em detrimento de
uma verdadeira pluralidade de debates. A partir de agora, o tratamento
cuidadoso das sensibilidades e o cuidado com a escolha das palavras mui-
tas vezes beira o ridículo.

Na minha opinião, a fábrica de consenso é, de facto, uma máquina de


formatação maciça. É então toda a relação com a verdade que decorre da
liberdade de expressão, ou seja, o próprio edifício do Iluminismo, que é
minado. Como devemos nos comportar diante de um discurso que, por
afirmar ser a «verdade moral», se recusa a ouvir a opinião do outro lado,
o que então equivaleria a endossar o «mal»? Podemos nós, numa democra-
cia, fazer sem dúvida porque acreditamos que estamos a defender o bem?

O adeus de um homem branco cisgênero


Por um lado, a metalinguagem do «despertado»; por outro, as palavras ultra-
violentas de pseudo gladiadores que vêem uma arena em cada sala de estar.

Eu uso o termo ‘Care Bears’ deliberadamente. Não apoiar um aumento da


violência - mesmo que seja apenas verbal - a outra alternativa proposta é
limitar-se ao debate por eufemismo ou perífrase. Isto não significa que as
trocas sejam pacíficas ou plácidas.

32
Como todas as ideologias, o movimento acordado reestruturou de facto
a linguagem e até tem uma vida própria. Portanto, você nunca ouvirá um
«guerreiro da justiça social» falar em «cancelar a cultura», um termo con-
siderado demasiado pejorativo. Em vez de empatia, o acordado preferirá o
termo «outroing»; falará de «mansplaining», «sizeplaining» ou «cisplaining»
para descrever a suposta condescendência demonstrada pelos «privilegia-
dos», dependendo se ele é um homem, tem um corpo «normalizado», ou
sente que pertence à sua atribuição biológica a um ou outro dos sexos.

Recentemente, a monomania dos fariseus do progressivismo voltou a ata-


car! Eles se encarregaram de renomear obras literárias mais antigas do que
elas, mas cujos títulos foram considerados demasiado aviltantes. E em pou-
co tempo, Agatha Christie’s Ten Little Negroes tornou-se «They Were Ten».
Desapareceu é a palavra preto. As mesmas pessoas que mal podem esperar
para ver a sua escrita sacrossanta e inclusiva consagrada. Já que o masculi-
no não deve mais prevalecer sobre o feminino.

O novo Dom Quixote


Como Robert Hughes escreveu em Culture of Complaint, em 1993: a es-
querda não tem o monopólio da modesta subavaliação.

E a certeza de manter a verdade, de estar no campo do Bem, não é uma


prerrogativa de uma esquerda resolutamente moralista. A vaidade humana
não tem território próprio. Existe, creio eu, um politicamente correto que
se poderia dizer que está enraizado no direito e tão dominante que chamá-
-lo politicamente correto se torna politicamente incorreto. Aqui estamos
nós, apanhados nas binaridades de um debate que se tornou estéril, onde
o campo do Bem abraça, por sua vez, os progressistas e os conservadores.

Ainda estou muito céptico em relação a este empobrecimento do debate


público. Na realidade, tudo acontece como se os cidadãos não tivessem
outra escolha senão subscrever uma ou outra versão. Nuance e modera-
ção são imediatamente acusadas de «jogarem nas mãos» desta ou daquela
pessoa. A eufemística da linguagem só contribui, na minha opinião, para
o endurecimento de posições opostas que só fazem sentido em virtude

33
destes termos: ilusão versus caricatura.

O título dado aos chamados «150 Intelectuais» é, neste sentido, particu-


larmente evocativo. Publicada a 7 de Julho de 2020 na Harper’s Magazine,
os seus instigadores decidiram intitulá-la: «A nossa resistência a Donald
Trump não deve levar ao dogmatismo ou à coerção». Diz tudo.

Mas aqui novamente há um paradoxo. O debate é ao mesmo tempo mar-


cado por uma binaridade radical, ao mesmo tempo em que é irrigado por
um relativismo absurdo que sucumbiu às sirenes do «tudo é igual». Em
The Untraceable Village, Leszek Kolakowki escreve: «Ao ponto de ignorar a
diferença entre universalismo e exclusivismo, entre tolerância e intolerância,
entre si mesmo e a barbárie.

Este é um paroxismo de niilismo com consequências devastadoras para a


tarefa da liberdade de expressão. Na verdade, tanto na radicalização como
no relativismo, tendo-se tornado inacessível a nuance, a busca da verdade
e da justiça nasce imóvel.

Mitigar conflitos, des-radicalizar debates... Investida pelo politicamente


correcto, esta nobre missão nunca esteve tão perto de ser derrotada. Pode-
mos portanto afirmar, desta vez com certeza, que a restrição da liberdade
de expressão, pelo menos a sentida, vem da vontade de apagar a conflic-
tualidade aberta que ameaça as relações de poder estabelecidas no espaço
público.

34
Cancelar a cultura: canceladores
de todos os países, unir!
Que o discurso público é formatado parece-me estar fora de qualquer dú-
vida. O que é ainda mais grave é que a formatação do discurso é, na ver-
dade, uma formatação da mente. O politicamente correto tem agido defi-
nitivamente como o prisma através do qual toda a realidade deve ser vista.
Qualquer um que saia da linha corre agora o risco de ser «cancelado» sem
qualquer possibilidade de resgate.

Vamos limpar a lousa!


Os relativistas, por mais que sejam, os adoradores do discurso sanitizado
não tiram as luvas para martelar o que consideram ser uma verdade ab-
soluta: as nossas sociedades são os herdeiros repugnantes de um mundo
patriarcal, colonialista, imperialista, racista... nada mais! Em suma, tudo
tem de ser revisto, tudo tem de ser refeito; por outras palavras, temos de
desconstruir tudo.

Em seu livro French Theory: Foucault, Deleuze, Derrida & Cie. Les mu-
tations de la vie intellectuelle aux États-Unis, François Cusset relata a re-
cepção do movimento desconstrutivista importado da França através do
Atlântico. Inicialmente confinado ao mundo académico, o conceito de
«desconstrução» trazido à luz pelo filósofo Jacques Derrida ultrapassou,
de facto, as suas próprias fronteiras. Suas epígonos mais zelosos viram nela
a possibilidade de uma transformação estrutural de nossas sociedades de-
mocráticas. Muito rapidamente, era uma questão de fingir que era capaz
de se livrar de um pronto a pensar considerado estéril e mortificante, o da
política no trabalho nos anos 70 e 80.

A teoria de Derridean apareceu então como uma promessa a cada cidadão


de poder pensar por si mesmo, fora do quadro estabelecido, e consequen-
temente poder expressar a sua própria opinião. Como é que isto pode ser
feito? Ao postular que por trás de cada texto ou de cada discurso havia uma
dúvida que tinha de ser esclarecida. Foi criada uma cultura de suspeita que

35
englobava toda a lógica ocidental, ou seja, a cultura alegadamente racista e
patriarcal. Como forma de os extra-lúcidos afirmarem: «Nós não fazemos
isso». Mas os auto-religiosos, como os ciclopes, são pessoas de um só olho
que pensam ter compreendido tudo depois de terem visto tudo. Mas eles
ainda só estão a ver com um olho. De facto, apesar de todos os aspectos
«problemáticos» das suas personalidades, Foucault e Derrida nunca serão
«cancelados».

Fraqueza da virtude
Em si mesmo, não nego que uma tal transformação de modos de pen-
sar poderia ter tornado possível dar um passo à parte e romper os velhos
grilhões. Mas os seguidores do desconstrutivismo provavelmente não pre-
viam que tal método seria adotado em breve pelo próprio poder político.
Em suma, um agregado de elétrons livres, provavelmente já uma ideologia.
A moda democrática não é mais para a maioria, mas para os militantes, ou
seja, ruidosos, minoritários.

Muito rapidamente, as universidades americanas tomaram conta da revo-


lução cultural emergente e a consagraram. A partir daí, foi possível fazer
cursos contra o imperialismo ocidental, o etnocentrismo europeu, o sexis-
mo, o machismo... Um belo e vasto programa!

E voltou como um bumerangue. As universidades europeias, por uma mí-


mica que eu acho difícil de entender, também estão imbuídas disso. E há
incontáveis ‘Coleman Silks’, como retratado por Philip Roth em seu ro-
mance A Mancha, daqueles que não podem mais ser vistos. Stéphane Do-
rin, um pesquisador de sociologia, foi expulso do seu grupo de trabalho na
faculdade de Limoges por se opor às teorias descoloniais. Philippe Soual,
professor de filosofia há mais de trinta anos na Universidade de Toulouse,
foi obrigado a abandonar o seu curso de agressão em Hegel por ter partici-
pado, como investigador, numa universidade de Verão do Manif pour tous.
O professor de biologia da Universidade Evergreen, Bret Weinstein, foi or-
denado a deixar o seu posto depois de denunciar o «racismo anti-branco»
no campus. A questão foi a sua denúncia da implementação de um Dia de
Ausência, que exige que os alunos brancos fiquem fora do campus por um
dia. Como pode imaginar, esta não é uma lista exaustiva.

36
De #Metoo a #AllVictims
E a inversão teve de ocorrer, mesmo à custa de contradições gritantes. Fran-
çois Cusset escreve: «esta mudança (...) torna-se, dentro das paredes da uni-
versidade, um ponto tão central que as minorias são encorajadas a afirmar-
-se como tal por vários meios e a cultivar piedosamente aquilo a que Freud
chamou «o narcisismo das diferenças menores»». Isto porque, em nome dos
outros, é uma questão de defender a sua própria causa. Portanto, todos de-
vem ser vistos como a suposta vítima de uma possível agressão. A liberdade
de expressão não é mais a liberdade de falar, mas a obrigação de denunciar
e condenar. A esfera pública, o tribunal moral perante o qual se faz justiça.

Basicamente, com o politicamente correto, uma completa mudança de


paradigma está em ação. Do cuidado tomado para não ferir os outros, a
importância agora é dada a não se ferir a si mesmo. Mas o politicamente
correto age como uma prisão domiciliar, aprisionando o indivíduo em sua
vitimização, tornando-o simultaneamente viúvo e órfão. E como o politica-
mente correto deve defender o Bem, ele está sempre do lado da vítima. Em
outras palavras, para que ele reine supremo, deve designar verdugos. Se so-
mos todos vítimas, temos pelo menos a certeza de que somos todos iguais...

Na sua Genealogia da Moral, porém, Nietzsche já nos havia advertido con-


tra a transfiguração da fraqueza em virtude na democracia. «Os valores
dos fracos são preponderantes porque os líderes os adotaram e os usam para
liderar os outros». De facto, é mais fácil confiar nos bons sentimentos das
massas para ordenar o seu assentimento. O coração nunca está errado...

Cuidado com aqueles que se aventuram a opor-se à natureza subjectiva e


pessoal do sofrimento face ao direito absoluto à liberdade de expressão. De
facto, e isto é, na minha opinião, um grande perigo: o sofrimento tornou-se
um diploma, um certificado de objectividade que garante a sua sacrali-
dade. As nossas sociedades democráticas dão uma importância capital, e
penso que desproporcionada, aos sentimentos dos «interessados», o que
constitui, portanto, uma razão legítima suficiente para restringir o âmbito
da liberdade de expressão.

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Aqui novamente, os campi americanos oferecem um exemplo impressio-
nante. Eles se tornaram verdadeiros laboratórios de «politicamente correto»
desde os anos 90, com códigos de fala para regular a liberdade de expressão.
Todo um arsenal de medidas semânticas e proto-conceptuais foi assim im-
plementado por estas novas hermenêuticas. Parece-me que a língua fran-
cesa é a primeira vítima...

Fala-se de «microagressões», ou seja, ofender alguém, «avisos de disparo»,


nos quais os alunos devem ser avisados do uso de palavras ou documentos
que possam ofendê-los, e de «espaços seguros» nos quais certas minorias
são convidadas a se encontrar.

Em A Tentação da Inocência, o filósofo Pascal Bruckner considera que o


homem ocidental se concebe hoje como uma criança eterna, ou seja, um
ser imutavelmente vulnerável, combinando, como uma condenação con-
sensual, «infantilidade e jeremiad». E como todas as vítimas, ele ainda exi-
ge o seu direito à reparação.

Acusado, cala-te!
Em nome da tolerância, então, a afronta tornou-se resolutamente intolerá-
vel. Primeiro, em nome da moralidade; segundo, porque é a razão de ser da
mente auto-retrata, em virtude da qual a liberdade de expressão deve ser
atrofiada. E toda a resistência se torna kamikaze. Como explica o linguista
John McWhorther: «Qualquer antropólogo que andasse pelos Estados Uni-
dos de 2020 descobriria que ser acordado é a religião dos graduados brancos.
Acordaram... Estes indivíduos, por sua vez iluminados e esclarecedores,
dispensadores de lucidez, justiça e discernimento... Na realidade, a corrida
pelo certificado de boa consciência está longe de ser uma prerrogativa ape-
nas das «minorias», e opera particularmente ferozmente entre as gerações
mais jovens, especialmente as que foram formatadas nos campi.

Como a colunista do New York Times Jamelle Bouie nos lembra, «As cha-
madas1 começaram como um ideal utópico, uma forma de extrair justiça e
de fazer mudanças sem policiais ou tribunais. Mas depois veio a internet.

1 Este é um processo de «questionamento público».

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O caminho para o inferno está pavimentado com boas intenções e, em seu
nome, a twittosfera tornou-se impiedosa. Se as interpelações públicas (ou
chamadas de saída) ainda permitirem que o acusado faça valer o seu direito
de falar, a cultura do cancelamento pretende largar a faca após julgamentos
indefesos. A cultura do cancelamento não só sanciona, mas também açaimes.

O chamado caso «Ligue du LOL» é testemunha disso. David Doucet, antigo


editor-chefe de Les Inrockuptibles e autor de La Haine en ligne, explica que
sua vida foi destruída no espaço de um fim de semana por causa de sua infeliz
participação - mesmo que eu duvide que tenha sido censurável em si - em
um grupo privado do Facebook apresentado como um «clube masculino»
que se vangloriava da humilhação. Para os «guerreiros da justiça social», a
boa justiça é a lei de Talion, se um olho vale um dente. O carrasco, agora
vítima, explica que «de repente, as pessoas se afastaram [dele]» e que ele tinha
se tornado «radioativo». Em resumo, o tribunal digital não deixa espaço para
redenção. A sentença é sempre a mesma: cancelamento, ou seja, morte social.

Açaimando o incorreto
O terror despertado pelo «cancelamento», como eu disse anteriormente,
causa um verdadeiro amordaçamento de opinião. É melhor ficar calado do
que correr o risco de ter a sua reputação destruída e a sua vida arruinada.
Não é preciso muito para que uma matilha de lobos famintos leve a melhor
sobre as suas presas. A justiça é dividida em confrontos, e o julgamento é
muitas vezes final. O filósofo e acadêmico Alain Finkielkraut, convidado
em LCI para falar sobre o caso Duhamel, pagou recentemente o preço.

Este último explicou que, para além de ter sido saqueado por causa de
um extracto do seu discurso, descontextualizado e expulso no Twitter, não
teve sequer oportunidade de se explicar nos jornais. Quase todos eles - o
filósofo finalmente conseguiu se expressar nas colunas de Le Point - se re-
cusaram a publicar seu direito de resposta. Já para não falar do número de
defensores da liberdade de expressão, supostamente firmes e temerários
que, por tudo isso, não se apressaram a chegar à porta quando se tratou de
concordar em debater com Éric Zemmour, depois da controvérsia que o
exigia para ser retirado dos programas de televisão... Que oximoro!

39
Quase tenho a impressão de que os jornalistas conseguem sempre convidar
aquele que vai criar um burburinho. Escorregamento sagrado! Mas a ironia
é que não é do interesse deles pedir um boicote, e estou pensando em parti-
cular em personalidades como Alain Finkielkraut ou Éric Zemmour. Não
se poderia honestamente querê-los mortos sem desistir da proliferação de
palavras atrevidas. A moralidade deve então dar lugar ao espectáculo. Pa-
rece que não sou o único a pensar assim. De acordo com uma pesquisa de
opinião, 87% dos franceses também sentem que os meios de comunicação
social estão mais interessados na luta de galos do que no debate cívico.

O caso do Twitter é, mais do que qualquer outro, eloquente sobre esta forma
contemporânea de censura. Marylin Maeso explica em seu livro, Os Cons-
piradores do Silêncio, como os métodos da cultura do cancelamento que pre-
sidem a web impedem que a contradição democrática exista plenamente.

Quando li este livro, pensei imediatamente no artigo escrito em 1948 por


Albert Camus, intitulado «Le siècle de la peur». Este artigo tem agora mais
de setenta anos e ainda não envelheceu um pouco. Nele, Camus fala sobre a
impossibilidade de debater ou contar certas verdades. No seu tempo, era uma
questão de fazer vista grossa à censura em acção na URSS, para não compro-
meter a ideologia comunista. Hoje, o comunismo já não é mais, mas a censu-
ra permanece. No Twitter, na verdade, não se trata mais de diálogo, mas de
polêmica, ou seja, de substituir a lógica da contradição pela do julgamento.

A ditadura da opinião pública


Isto porque a política da instância é um poderoso galvanizador de multi-
dões, que, confiando em um só homem, quase esquece que o que a liber-
dade de expressão torna possível denunciar não é a idéia que se tem de um
determinado indivíduo, mas as idéias desse indivíduo. «Acuso este homem
de ter enterrado a sua mãe com o coração de um criminoso. Em outras pala-
vras, algumas pessoas já estão, como Meursault em O Estranho de Camus,
condenadas porque dizem o que pensam, não por causa do que pensam.

Mas o que vale um debate democrático sem contradições radicais, e mes-


mo sem a possibilidade de tomar uma posição? Qual é o valor de um

40
debate democrático no qual a maioria coloca as mentes para dormir e faz
com que as pessoas interiorizem o medo de sair do campo do Bem, cujas
fronteiras estão se tornando cada vez mais estreitas?

O fato é que o cancelamento da cultura não está mais confinado à esfera


digital, mas está invadindo o campo político e midiático como um todo.
A este respeito, os comentários feitos pelo filósofo Geoffroy de Lagasnerie
sobre a France Inter realmente me aterrorizaram. Ele declarou: «Você tem
que saber que existem paradigmas irreconciliáveis». Eu sou contra o para-
digma do debate, contra o paradigma da discussão. Para compreender: ele
pretende banir e excomungar todos aqueles que, por infelicidade, não con-
cordariam com ele.

Portanto, e isto é sem dúvida o que constitui uma diferença entre o «século
do medo» camusiano e o nosso século de terror: a censura mudou a sua
face. Já não é tanto o poder político que é liberticida, mas sim os paragões
deste tribunal popular, inteiramente sujeito à opinião pública. Alexis de
Tocqueville, já no século XIX, considerava que a opinião pública represen-
tava uma formidável ameaça à liberdade de expressão.

Ele escreveu que «assim que a maioria fala, todos se calam». A promessa
democrática, e com ela a liberdade de expressão, foi em grande parte des-
viada de sua ambição original.

Tocqueville escreveu novamente em Sobre a Democracia na América: «Os


povos democráticos têm um gosto natural pela igualdade. Eles querem-no em
liberdade e, se não o conseguem obter, ainda o querem na escravatura». Mas
em breve, ele também, sem dúvida, será desmascarado.

41
Recuperando a liberdade
de expressão
Em On Liberty, John Stuart Mill faz o mesmo comentário que Tocqueville
sobre a liberdade de expressão. Deve ser absoluta, porque a liberdade de ex-
pressão é uma liberdade individual que é, portanto, inalienável. No entanto,
Mill, como Tocqueville, acredita que a opinião pública é uma formidável
ameaça à liberdade de expressão na era democrática. Uma vez sujeito ao
poder absoluto, o indivíduo não está livre de todo o controlo. Pelo contrário,
ele é agora confrontado com o conformismo e a mediocridade da maioria.

Stuart Mill escreveu: «Há uma diferença extrema entre presumir que uma
opinião é verdadeira, que sobreviveu a todas as refutações, e presumir a sua
verdade para não permitir que ela seja refutada». Como podemos ver, o ris-
co é o de uma opinião apresentada como um axioma irrefutável, uma visão
segundo a qual qualquer coisa que se desvie do dogma arbitrariamente
aceite seria vista como um erro, ou pior, como uma falha.

Entre os Droogies e os Care Bears


A fim de superar a ideologia e seus princípios evidentes, seria, portanto,
melhor permitir que todas as opiniões fossem expressas, ou seja, também
aquelas que estão fora do quadro peremptório. É um insulto à razão hu-
mana forçar as pessoas a passar sem reflexão. Além disso, uma opinião
não é imediatamente falsa porque está na minoria. Pois mesmo antes de a
Inquisição o condenar à estaca, Galileu murmurou: «E ainda assim vira! E
mesmo assim, sozinho contra todos, ele estava certo.

Em suma, a liberdade de expressão implica sempre uma luta, um regresso


inelutável ao conflito. Por mais que o confronto de opiniões seja necessário,
a veemência das expressões continua a ser um arsénico.

A este respeito, existem agora inúmeras contas no Twitter que foram sus-
pensas por causa de comentários considerados demasiado violentos ou
legalmente repreensíveis. O «Team Patriot», um grupo privado de quase

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duzentos utilizadores da Internet, agora reunido em Telegramas - depois
de ter sido censurado no WhatsApp - não poupa palavras quando fala so-
bre os problemas que as nossas sociedades enfrentam. É «por meio de um
estado militar para pôr fim aos bobos progressistas» que os seus membros
afirmam querer superar as dificuldades. Um deles escreveu: «para ter uma
arma de fogo, já». E isso é tudo...

O que me horroriza no final é que hoje tudo acontece como se a escolha só


fosse possível entre os «Droogies» de Clockwork Orange ou o mundo dos
Care Bears. Neste último caso, referimo-nos àqueles que imperiosamente
se arrogam a si mesmos uma superioridade moral. No caso de esquecer-
mos que só eles fazem o bem...

A coragem da nuance
No entanto, não creio que o politicamente correto possa ser combatido
com o politicamente incorreto. Não se pode, de boa fé, opor-se à invectiva
e ao insulto ao pensamento correcto. E permita-me jogar com as palavras
aqui, mas o adversário não é um inimigo. No entanto, tudo sugere que se
não estás do lado da Génération Identitaire, estás necessariamente do lado
do Place Publique. Como podemos sair deste maniqueísmo ruinoso? Não
é mais possível entrar em diálogo sem ser categoricamente rotulado e cor-
rer o risco, em defesa própria, de colocar o outro em uma caixinha?

Penso que todos nós tivemos a experiência daquele famoso jantar de famí-
lia onde, embora prometemos não iniciar um debate zangado, alguém o fez
por nós. No entanto, apesar dos desentendimentos (há sempre desenten-
dimentos políticos nos jantares familiares!), ninguém de repente deixava a
mesa e atirava anátemas ao seu adversário.

No entanto, não creio que tenhamos de nos esconder atrás das muralhas
da micro-sociedade familiar para podermos realizar uma troca. Correndo
o risco de ser rotulado de utópico feliz, eu quero acreditar que a sagacidade
ainda é possível. Como Roland Barthes disse: «Eu quero viver pela nuance».
O autor de Mitologias, mais do que ninguém, tem enfatizado a importância
da linguagem na discussão.

43
Como tal, ele irá defender esta categoria, que ele conceitualmente chama
de «Neutra». O neutro, ou seja, o lugar onde se defende de escolher um
termo contra outro, onde se recusa a adotar uma postura arrogante. Bar-
thes escreve: «Eu recolho sob o nome de arrogância todos os ‘gestos’ (de fala)
que constituem discursos de intimidação, subjugação, dominação, afirmação
e soberba. Para combater a arrogância, devemos, com Barthes, aprender a
considerar-nos como um «sujeito incerto».

Esta polaridade do debate público é ainda mais estéril e deletério porque,


tudo considerado, logo se torna claro que no final dos dois pólos, é a mes-
ma obsessão que emerge. O cume sobre o qual se ergue o acordar é basica-
mente o mesmo que o dos identificadores.

O esboço do comediante Ryan Long é, a este respeito, tão engraçado quan-


to relevante. A história é que dois amigos, Brad e Chad, um «acordado» e o
outro «racista», quebram fileiras em questões políticas, mas logo percebem
que, apesar de suas posições aparentemente antagônicas, acabam sempre
concordando. E cantam em uníssono: ‘A tua identidade racial é a coisa mais
importante, tudo deve ser visto através da lente da raça’2.

O movimento «Boogaloo», por exemplo, que está muito presente nas ma-
nifestações anti-racistas nos Estados Unidos, reúne tanto libertários como
neonazis. O que eles têm em comum é que todos os «Boogaloo boys» de-
fendem tumultos e revolução, e defendem o direito de portar armas de
fogo com unhas e dentes. Devemos provavelmente ver isto como uma es-
pécie de «bloco negro» ao estilo americano que, sob o pretexto de serem os
vigilantes de um mundo considerado profundamente iníquo, são motiva-
dos apenas pela própria subversão.

A escravidão das massas


Os «Boogaloo Boys», assim como os «blocos negros» ou as milícias de ex-
trema esquerda, são na verdade uma resposta à emulação coletiva. E são
precisamente esses movimentos de multidão que entorpecem a consciência

2 «Sua identidade racial é a coisa mais importante, tudo tem que ser visto através do prisma
da raça.

44
e rebaixam a capacidade de discernimento dos indivíduos antes da liberda-
de de expressão. Portanto, a liberdade de expressão está fadada a morrer se
ela só responder a uma agitação gregária.

Mas é isso que está em jogo. Como os lutadores cantaram em 1792, é «li-
berdade ou morte». É a isto que se resume, e o que eu temo: seremos ca-
pazes de continuar a nos expressar, isto é, de continuar a afirmar o que
somos, isto é, seres livres? Na situação actual, nada me pode tranquilizar.
Especialmente porque, ao contrário dos combatentes de 1792, os novos
guerreiros já não têm de pôr as suas vidas em risco para se expressarem
livremente. Em outras palavras, não há mais salvaguardas para conter os
seus impulsos bélicos.

Este fenómeno é ainda menos tranquilizador porque, como Gustave Le


Bon demonstra na sua Psychologie des foules, o efeito de massa aniquila
qualquer sentido de responsabilidade em indivíduos que agora se sentem
completamente desinibidos e invencíveis. O psicólogo também escreve:
«Este nivelamento emocional e intelectual anestesia toda a vontade pessoal
e anula todas as aptidões individuais que naturalmente distinguem elemen-
tos heterogéneos: um filósofo na multidão não é mais inteligente do que um
analfabeto» (mas aqui novamente, para «analfabeto», ele provavelmente
deveria ter substituído «indivíduo a quem as palavras irritaram»!)

À luz do que Eric Hoffer escreve em The True Believer, «Toda grande causa
começa como um movimento, torna-se um negócio, e eventualmente degene-
ra em uma raquete», não seria mais sábio e construtivo confiar na inteli-
gência de uns poucos para tirar as massas de seu atordoamento? Acho que
não. «A multidão é, portanto, hermética a qualquer forma de argumentação
inteligente e não conhece nem a dúvida nem a incerteza. Roland Barthes
seria, portanto, apenas um utópico...

Mas, por mais perigoso que seja, recuso-me a acreditar que o enterro das
massas é um fenómeno irreprimível. A partir daí, a questão não é tanto o
que pode ser dito, mas sim quem o pode dizer?

45
Ficar calado: o novo luxo dos «oprimidos
Não posso deixar de achar esta ideia de que o povo, ou seja, a massa dos
oprimidos, seria definitivamente excluído da esfera pública, risível. Risos,
de facto, porque na realidade é um bom pretexto para os adeptos do pro-
gressivismo justificarem as suas pretensões ilusórias. Em resumo, as pes-
soas pobres têm um bom costas! É de facto em nome da defesa dos oprimi-
dos que a verdadeira discriminação tem lugar.

Onde está essa «violência simbólica» que deve ser combatida para devolver
ao povo soberano o seu poder? Não tenho a certeza de que o reformado ou
o trabalhador da linha de montagem do extremo sul do país francês ou in-
glês possa compreender uma palavra dos neologismos conceptuais que os
acordados usam. Sinto que estou a apanhá-los no acto de condescendência,
de econoplainamento e talvez até mesmo de branqueamento de capitais. E
isso já está a começar a ser muito...

Claramente, penso que é urgente acabar com esta visão demagógica da de-
mocracia de que todas as opiniões são iguais. Quando confrontado com
uma doença, a opinião do seu vizinho do lado ou do seu padeiro conta tanto
quanto a do seu médico? A resposta parece tão óbvia que é de senso comum.

E ainda, durante este período de pandemia relacionada com a crise da


COVID-19, vimos professores de medicina e epidemiologistas de distin-
ção serem criticados por milhares de leigos em redes sociais por verem a
campanha de vacinação como uma conspiração gigantesca. Para além do
conteúdo do que alguns deles dizem, eu até questiono a relevância de sim-
plesmente falar. Por vezes, o princípio da responsabilidade também reside
na abstenção.

No final, não podemos ter a humildade de admitir que a recuperação da


nossa liberdade de expressão só pode ser feita com a ajuda dos melhores
indivíduos intelectualmente armados?

46
Os fortes e os fracos
Mais uma vez, parece haver uma contradição em acreditar que a liberdade
de expressão deve ser total, negando ao mesmo tempo o crédito às opiniões
de alguns. Em outras palavras, este paradoxo nos leva a repensar em pro-
fundidade a própria noção de liberdade de expressão e seu alcance. A ques-
tão que se coloca aqui é basicamente se as nossas democracias modernas
são realmente compatíveis com o exercício de uma liberdade de expressão
que é, como a maioria gostaria, absoluta?

Esta legitimidade concedida às opiniões de uns, negando-as a outros, equi-


vale a colocar a liberdade de expressão não como uma liberdade no sentido
estrito, mas como um direito. A priori, esta ideia não deve desagradar aos
defensores mais fervorosos da democracia. No entanto, dizer isto compro-
mete-nos, consequentemente, a um nível moral. Dar a algumas pessoas o
poder de tomar decisões leva-nos inevitavelmente a apreender e a ques-
tionar os seus motivos mais profundos? E é precisamente sobre este ponto
que reside o problema. Basicamente, é legítimo perguntar: porquê estes ho-
mens às custas dos outros?

Sobre este ponto, parece-me que a visão de um filósofo como Nietzsche


é esclarecedora. A moralidade nietzschiana - que algumas pessoas consi-
deram perfeitamente imoral - é rapidamente descartada como uma vaga
idéia camuflada no maniqueísmo estéril. Mas é precisamente na subtileza
que reside a relevância desta concepção. O facto de haver os fortes de um
lado e os fracos do outro não significa que haja opressores de um lado e
oprimidos do outro.

Pelo contrário, Nietzsche acredita que os «fracos» são de fato mais inte-
ligentes que os próprios fortes, pois são mais capazes de se organizar e,
portanto, sabem como travar uma «guerra da mente», para usar as palavras
de Patrick Wotling3. Nietzsche então afirmou: «Por estranho que pareça, os
fortes devem estar sempre armados contra os fracos», ou seja, os mais fortes
devem ser poupados das explosões dos mais fracos. E a fraqueza reside
precisamente nesta explosão, como um eco do nosso tempo...

3 Patrick Wotling é um especialista em filosofia Nietzschean.

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O que Nietzsche chama de «fraco» é basicamente nada mais do que o en-
terro de uma massa que está a desabafar. Exemplos: o ódio no trabalho em
redes sociais, movimentos como a Black Lives Matter, os Blocos Negros,
etc. Diante disso, parece-me mais sábio e construtivo considerar que so-
mente aqueles indivíduos capazes de autocontrole e, portanto, de reprimir
seus próprios impulsos são também os mesmos a quem é dada legitimida-
de para se expressar. Em outras palavras, ser capaz de suspender a própria
reação é ser capaz de reflexão. E só esta última é necessária.

Falando alto: um privilégio meritocrático?


Na realidade, esta visão da liberdade de expressão como um privilégio re-
servado a uma elite intelectual ofende profundamente o homo democrati-
cus, que tem sido alimentado mais pela igualdade do que pela liberdade.
Isto é evidenciado pelos fenómenos de multidão que acabei de mencionar.
Uma vez que, no fundo, os indivíduos preferem trocar a sua liberdade pelo
lado da maioria, onde certamente serão poupados ao ostracismo para po-
derem existir na massa.

Correndo o risco de fazer algumas pessoas saltarem, penso que recuperar


a nossa liberdade de expressão só é possível se aceitarmos a ideia de que
nem todas as pessoas são iguais. Tanto mais que, por uma feliz teimosia
pelo igualitarismo - cada vez mais semelhante a um culto -, parece-me que
estamos a perder tanto a igualdade como a liberdade. Contudo, creio que
é possível conciliar os dois: partir da premissa de que a igualdade perfeita
não existe a priori não é ainda refutar a igualdade como objectivo a atingir
ou pensar que se trata de uma doce utopia.

Sou um pouco fervoroso defensor da meritocracia, e é precisamente por


ter renunciado à ideia de que havia a priori uma igualdade pura e perfei-
ta entre os homens, que esta ideia de meritocracia é, na minha opinião,
totalmente relevante. É porque sabemos que não somos todos iguais que
estamos teimosamente a tentar reduzir as diferenças desde o início. Os in-
quéritos sociológicos são claros e existem inúmeras medidas implementa-
das para colmatar as lacunas. Estou a pensar, em particular, em todos os

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programas criados nas escolas secundárias em zonas educativas prioritá-
rias para permitir a entrada de jovens de meios desfavorecidos nas escolas
de prestígio (que os franceses adoram!). Sciences Po pode se gabar de ter
30% de bolsistas (entenda: 30% de anomalia sociológica).

Um facto que alguns considerariam anedótico, mas não menos revelador.


Assim que ele foi eleito, a mídia não deixou de assinalar que embora o
presidente Sarkozy tivesse estado no Sciences Po, ele não tinha se formado.
Isso ainda não significa que Nicolas Sarkozy seja estúpido, mas que, no
imaginário coletivo, um presidente - e até mesmo, a montante, um candi-
dato presidencial - deve coletar todas as credenciações que a função exi-
ge. Em outras palavras, queremos uma pessoa superqualificada à frente
do Estado, porque seria sem dúvida perigoso na mente de todos que o
cidadão comum fosse um. E a imprensa zombeteira noticia esta anedota:
enquanto recebia a Chanceler Angela Merkel no Palácio do Eliseu, o Presi-
dente Sarkozy, querendo pedir desculpas pelo terrível tempo daquele dia,
diz-se-lhe: «Desculpe pelo tempo».

Por outro lado, quando Emmanuel Macron foi eleito, as manchetes logo o
chamaram de «filósofo-rei». Isto porque nas nossas democracias moder-
nas, fundadas na transferência de soberania do povo para os seus repre-
sentantes, a legitimidade é agora procurada do lado da ciência. Só a perícia
do cientista é que ganha a votação. De facto, existem inúmeras comissões
e comissões especializadas neste ou naquele domínio e encarregadas de
emitir pareceres sobre esta ou aquela questão.

Esta «República dos estudiosos» levanta uma verdadeira questão para as


democracias. Podemos realmente nos perguntar qual do cientista ou do
político é o verdadeiro depositário da legitimidade democrática? A ques-
tão é ainda mais relevante no caso de questões sociais. Quem deve ser con-
siderado como um especialista e, portanto, como legítimo para falar no
caso de debates sobre eutanásia, crianças transgênero ou islamo-leftismo
no trabalho nas universidades?

Além disso, é precisamente porque estes assuntos potencialmente dizem


respeito a todos e a cada um de nós que a linha entre perito e neófito per-
manece confusa. Esta é também a razão pela qual o recurso à perícia de

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algumas pessoas encontra alguns limites, já que se baseia na subtracção da
consulta democrática, ou seja, trata-se de ignorar pura e simplesmente a
opinião do maior número. Em outras palavras, ainda está alimentando os
«fracos» de acordo com Nietzsche. Na verdade, ignorar deliberadamente
a opinião das massas é dar-lhes todas as razões para não se manifestarem,
mas para se vangloriarem.

Em suma, significa nunca se poder livrar do potencial subversivo e, por-


tanto, deletério que a liberdade de expressão tem na sociedade. Dito pro-
saicamente: gritar já não é mais se expressar. Consequentemente, significa
concordar em permanecer nas categorias de verdugos e vítimas, opressores
e oprimidos, de uma elite que despreza as demos.

Mais uma vez, exprimir-se não é um direito e, portanto, se quisermos recu-


perar a verdadeira liberdade de expressão, parece-me necessário considerar
que é necessário saber ignorar a opinião dos «mais fracos» e antes considerar
que cabe às democracias dar a estes últimos os meios para poderem formar
uma opinião iluminada para a exprimir. Este é um pré-requisito essencial.

Lidar com o crescente comunitarismo


Além disso, é precisamente a realidade das demos que devemos entender.
A verdadeira liberdade de expressão é realmente possível em sociedades
multiculturais que são cada vez mais comunitárias? Parece-me que o tem-
po da nação, tal como Renan o previa, ou seja, como tendo «feito grandes
coisas juntos no passado e querendo fazer mais no futuro», acabou.

E eu me pergunto: os cidadãos ainda querem essa liberdade de expressão


para o futuro, o que, tudo considerado, parece um pouco embaraçoso? O
problema não reside tanto nas diferenças de opinião e valores, mas sim na
própria ideia do papel que a liberdade de expressão deve desempenhar nas
nossas sociedades. Alguns o vêem como um princípio essencial, enquanto
outros o vêem como uma espécie de brincadeira que pode ser comprometida.

De acordo com uma pesquisa da IFOP realizada em 2020, 74% dos mu-
çulmanos franceses com menos de 25 anos afirmam colocar suas crenças

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religiosas à frente das leis da República, 61% deles acreditam que o Islã é
«a única religião verdadeira» e 45% consideram que «o Islã é incompatível
com os valores da sociedade francesa».

A liberdade de expressão foi posta de lado? Espero que não, mas tenho a
desagradável sensação de que os nossos anciãos estavam mais apegados a
ela do que nós e as gerações vindouras! Por um lado, temos uma geração
mais jovem na qual uma minoria sempre crescente considera a liberdade
de expressão um obstáculo; por outro lado, temos indivíduos que, por uma
questão de conforto, parecem dispostos a renunciar a uma liberdade de
expressão que se tornou perigosa.

A verdadeira liberdade:
o direito de cometer erros
Se a expressão de todas as opiniões é a condição necessária para um debate
público construtivo, e se só por ela podemos reivindicar a produção de
verdades, o facto é que a verdade se tornou em grande parte corrompida
pela moralidade. O que é verdade é agora o que está na maioria, mas talvez
tenhamos atravessado um limiar inexorável.

Na minha opinião, a verdade já não está tanto do lado da maioria como do


lado dos rugidos de indivíduos que nunca se cansam de se ouvir a si pró-
prios e, acima de tudo, de falar a mesma língua. Mas os mais barulhentos
nem sempre são a maioria.

Basicamente, seria uma questão de todos compreenderem de uma vez por


todas que ter uma opinião ainda não é conhecimento. Ninguém é detentor
de uma verdade absoluta e, na verdade, nunca é totalmente legítimo impor
a sua opinião. Da mesma forma, àqueles que pregam boas palavras, eu res-
ponderia que ter o direito de se expressar não significa ter o dever de dizer
tudo, e especialmente de dizer coisas moralmente aceitáveis.

Cancelar a cultura deixa um gosto particularmente amargo na minha boca,


porque me parece que este movimento tem prosperado com um mau uso
da nossa liberdade de expressão. A liberdade de expressão não consiste em
estabelecer apenas o que é «verdadeiro», «certo» ou «bom». Ser livre para

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se expressar também é ser livre para estar errado ou para dizer coisas va-
zias. Essa é a sua força. Como disse o escritor do absurdo, Samuel Beckett:
«Sempre tente, sempre falhe, não importa». Tenta outra vez, falha outra vez,
falha melhor.

Conclusão
Recuperar a liberdade de expressão exige, na minha opinião, o abandono
desta candura ingénua com que oscilamos entre a moralidade e os ideais.
Sim, a liberdade de expressão é, em essência, uma guerra permanente de
todos contra todos, e só esta guerra pode assegurar o progresso social e
permitir a exaltação intelectual. E certamente a igualdade deve ser vista
como uma condição de liberdade e não como um «Bem» em si mesmo.
Infelizmente, nenhum compromisso baseado em «respeito» ou «valores
morais» pode ser eficaz.

Podemos defender a liberdade absoluta de expressão, considerando que


nem tudo pode ser dito? Podemos realmente admitir que a opinião de to-
dos tem a mesma relevância e legitimidade? Embora paradoxal, a liberdade
de expressão não pode estar sujeita a um padrão duplo. Será que realmente
concordamos em jurar fidelidade à religião do «cancelamento» e à efusão
do ódio nas redes sociais em nome de «temos o direito de dizer qualquer
coisa»? Expressar-se é uma liberdade, não um direito! E se eu escolher me
expressar, tenho que assumir a responsabilidade por isso. Basicamente, a
pessoa tem o direito de ser racista, de ser politicamente correta, de odiar
ou amar. Ou nenhuma das anteriores. Também se pode querer dormir em
paz e viver a vida em silêncio...

Mas é sempre assumindo o resgate da própria liberdade, ou seja, da própria


responsabilidade, que se pode defender esta liberdade de expressão que
nos é tão querida e desatar verdadeiramente as línguas. Caso contrário,
todos estes debates não passam de verborreia.

Em outras palavras, para aqueles que afirmam que a liberdade de expressão


é um totem ou um ideal, eu diria que a liberdade de expressão não é um
dogma, mas um caminho. E que, portanto, é também aceite que a liberdade
de expressão é um caminho que não leva a lado nenhum.

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