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O método biográfico interpretativo na O método biográfico

interpretativo na
compreensão de

compreensão de experiências e expressões experiências e


expressões de
gestantes usuárias

de gestantes usuárias de um serviço de saúde* de um serviço


de saúde

THE INTERPRETATIVE AND BIOGRAPHICAL METHOD FOR UNDERSTANDING THE EXPERIENCES AND
THE EXPRESSIONS RELATED BY PREGNANT WOMEN PATIENTS OF A HEALTH CARE SERVICE

EL MÉTODO BIOGRÁFICO INTERPRETATIVO EN LA COMPRENSIÓN DE EXPERIENCIAS Y


EXPRESIONES DE MUJERES EMBARAZADAS DE UN SERVICIO DE SALUD

Marta Maria Melleiro1, Dulce Maria Rosa Gualda2

RESUMO ABSTRACT RESUMEN * Extraído da Tese de


Este trabalho fotoetnográfico This objective of this study Este trabajo fotoetnográfico Doutorado
“Experiências e
teve por objetivo based on pictorial tuvo por objetivo comprender Expressões de
compreender a experiência da ethnography is to understand la experiencia de la mujer Gestantes na Interação
mulher no seu contato com o the experience of women in en su contacto con el sistema com o Sistema de
Saúde: um enfoque
sistema de saúde, por ocasião their contact with the health de salud, con motivo del fotoetnográfico”, Escola
do parto. Os dados foram system during pregnancy. The parto. Los datos fueron de Enfermagem da
data were presented by USP (EEUSP), 2003.
apresentados na forma de presentados en forma de 1 Professor Doutor do
narrativa e a sua análise se narrative and their analysis narrativa y su análisis por Departamento de
deu através do Método was done based on the medio del Método Biográfico Orientação Profissional
da EEUSP.
Biográfico Interpretativo. Interpretative and Interpretativo. Fueron melleiro@usp.br
Das narrativas foram Biographical Method. From extraídas ocho categorías 2 Professor Associado do
extraídas oito categorias, das the interviews eight cultural de las que emergieron tres Departamento de
Enfermagem Materno
quais emergiram três temas categories were taken, from temas culturales: Infantil e Psiquiátrica da
culturais: “Classificando as which emerged three cultural “Clasificando las experiencias EEUSP.
experiências vividas,” themes: “Classification of life vividas,” “Anticipando el drgualda@usp.br
“Vislumbrando o processo de experiences,” “Advancement proceso del nacimiento” y
nascimento” e “Fotografando of the birth process” and “Fotografiando los eventos
os eventos significativos.” “Taking pictures of significant significativos.” Los hallazgos
Os achados deste estudo events.” The findings allowed de este estudio permitieron
permitiram ter uma visão for a comprehensive vision of una visión comprensiva del
compreensiva do the particpants’ cultural conocimiento cultural de las
conhecimento cultural das knowledge related to their colaboradoras en relación a
colaboradoras com relação à interaction with the health su interacción con el sistema
sua interação com o sistema system, as well as their de salud, asi como de sus
de saúde, bem como de suas expectations of the puerperal expectativas en el ciclo
expectativas no ciclo gravid cycle. gravídico-puerperal.
gravídico-puerperal.

PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS PALABRAS CLAVE


Sistema de saúde. Health system. Sistema de salud.
Parto. Parturition. Parto.
Saúde da mulher. Women’s health. Salud de las mujeres.

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Rev Esc Enferm USP
2003; 37(4):69-76.
INTRODUÇÃO Assim, cientes da relevância da integração
Marta Maria Melleiro
Dulce Maria Rosa Gualda dos diferentes níveis de complexidade dos
No âmbito do Sistema Único de Saúde serviços de saúde e da necessidade do co-
(SUS), o Programa de Assistência Integral à nhecimento das inquietações e expectativas
Saúde da Mulher (PAISM), elaborado em 1983, das usuárias desses serviços, é que nos dis-
define uma política especial de atenção a ser pusemos a analisar as narrativas de gestan-
oferecida à população feminina, propondo tes usuárias do HU-USP, com o objetivo de
que os serviços de saúde prestem assistên- compreender a experiência da mulher, no seu
cia às mulheres em todas as fases de suas contato com o sistema de saúde, por ocasião
vidas, de acordo com a especificidade de cada do parto.
fase.
A CONSTRUÇÃO DAS NARRATIVAS:
A concretização desse programa de as- PERCURSO METODOLÓGICO
sistência global à saúde da mulher passa pelo
conceito de integralidade, um dos princípios
A narrativa é utilizada para entender
do SUS, que prevê a integração interins-
eventos concretos, para relatar o mundo in-
titucional e pela efetiva participação dos usu-
terior e o mundo exterior de ações observáveis
ários no sistema de saúde.
e acontecimentos; o relato de experiências
No ciclo gravídico-puerperal, apesar da de pessoas, na forma de narrativa, é conside-
proposta de descentralização e das medidas rado valioso na clarificação e na interpreta-
preconizadas pelo PAISM, observa-se que as ção do fenômeno estudado. Quando os indi-
mulheres continuam enfrentando sérias difi- víduos falam de suas experiências, eles utili-
culdades na busca de assistência qualificada zam a memória autobiográfica, que pode ser
própria para esse período. compreendida não como reprodução de even-
tos passados, mas como reconstruções
Atuando na Divisão de Enfermagem Ma- congruentes à compreensão atual; o presen-
terno-Infantil do Departamento de Enferma- te é explicado, tendo como referência o pas-
gem do Hospital Universitário da Universi- sado reconstruído e ambos são utilizados para
dade de São Paulo (HU-USP), por quase duas gerar expectativas sobre o futuro (1).
décadas, a princípio desenvolvendo ativida-
des assistenciais com gestantes, puérperas e O processo de reconstrução que a narra-
seus neonatos e, posteriormente, assumindo tiva desencadeia coloca os colaboradores do
o gerenciamento dessa divisão, pudemos estudo na posição de autores e intérpretes
perceber o quanto a dificuldade de integração de sua história, de suas emoções e de suas
existente entre os diferentes níveis de com- decisões (2).
plexidade dos serviços de saúde, tornava es-
tanque o aproveitamento dos recursos dis- As narrativas, portanto, não são limita-
poníveis em cada serviço. das para a reconstrução do passado, mas são
usadas para expressar a compreensão de um
Especificamente no que se refere à assis- momento atual da vida de alguém e possivel-
tência à mulher no ciclo gravídico-puerperal, mente para antecipar o futuro. Fornece, ain-
essa falta de integração entre os serviços de da, um forte meio para comunicar e dar signi-
saúde, além de levar à ruptura das ações ini- ficado à experiência.
ciadas nas Unidades Básicas de Saúde (UBS),
durante o pré-natal, tornava a procura pela As etnografias tradicionais que incorpo-
instituição hospitalar, por ocasião do parto, ram relatos na primeira pessoa são entendi-
fonte de ansiedade e risco, com repercussões das como descrições realísticas, diferindo
negativas para o processo de nascimento. somente no formato das outras descrições
científicas. Embora a retórica da maneira de
Essa evidência levou-nos a refletir e a que como se escreve possa variar, a história
questionar sobre o real significado que essas escrita é o evento, e não a história que os
usuárias atribuíam aos serviços de saúde. informantes criam sobre ele (3).
Quais são as percepções dessas gestantes

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acerca da assistência ao ciclo gravídico-
puerperal? Como se inserem nesse contexto
e como o vivenciam? Que avaliação fazem do
A partir de histórias gravadas, um pes-
quisador recorta das falas aquilo que se en-
caixa no conteúdo de um texto. Há decisões
2003; 37(4): 69-76 acesso aos serviços de saúde? sobre a forma, ordem e estilo de apresenta-
ção e de como os fragmentos da vida têm que d) O berçário: uma extensão do hábitat intra-
O método biográfico
ser obtidos das entrevistas que serão descri- uterino; interpretativo na
tas. A resposta antecipada ao trabalho, ine- compreensão de
e) O alojamento conjunto e a sensação de experiências e
vitavelmente, molda o que é incluído ou ex- estar livre de riscos; expressões de
cluído. No final, o pesquisador elabora uma gestantes usuárias
f) A repercussão da visita ao HU-USP; de um serviço
pós-história, apontando o significado das de saúde
narrativas, editando e reconstruindo o que g) Resgatando o valor da visita e da assis-
foi dito (4). tência recebida e
h) a Fotografia como instrumento de coleta e
Neste estudo, após a aprovação da pes- de análise dos dados.
quisa e anuência para a coleta de dados pelo
Comitê de Ética do HU-USP, as narrativas Dessas oito categorias emergiram três te-
foram construídas a partir de entrevistas rea- mas culturais
lizadas em duas etapas, com seis gestantes
usuárias do referido hospital, no período de a)Classificando as experiências vividas;
julho a setembro de 2002. Essas entrevistas b) Vislumbrando o processo de nascimento e
se deram durante o pré-natal e no pós-parto, c) Fotografando os eventos significativos,
sendo que durante o pré-natal as gestantes
tiveram a oportunidade de fotografar o cita- referentes às experiências pessoais e às ex-
do hospital, durante uma visita a todos os pectativas que as usuárias tinham, em rela-
setores que teriam contato por ocasião da ção à sua interação com o sistema de saúde.
internação para o parto. Para a análise desses temas culturais adotou-
se o Método Biográfico Interpretativo, que
As fotografias realizadas pelas gestantes tem Norman Denzin como um de seus maio-
subsidiaram as entrevistas e representaram res expoentes.
uma transcrição livre e fragmentária de uma
realidade a partir de uma deliberação extre- O MÉTODO BIOGRÁFICO
mamente pessoal, algo singelo ou corriquei- INTERPRETATIVO:
ro que, resgatado de sua banalidade, adqui- DESCRIÇÃO E ANÁLISE
riu uma nova significação e pode, eventual-
mente, tornar-se uma síntese indicativa de
O Método Biográfico Interpretativo en-
uma realidade infinita mais complexa. Assim,
volve o uso e a coleta de documentos da his-
o olhar fotográfico foi utilizado como um há-
tória de vida e de narrativas. O foco desse
bito visual seletivo, animado por uma per-
método reside nas experiências de vida, que
cepção sensibilizada por motivações de di-
alteram ou formam o significado de si mes-
versas origens – filosóficas, ideológicas, cul-
mos e que tem como pressuposto básico a
turais e afetivas (5).
importância da interpretação e da compreen-
Nesse contexto, a produção fotográfica são como a chave que forma a vida social.
das gestantes deste estudo, cujos nomes fic-
A adoção desse método ocorreu, também,
tícios adotados foram Ametista, Pérola, Cris-
após se constatar que as colaboradoras des-
tal, Safira, Coral e Jade, permitiu aliar o ato de
te estudo recorriam à sua memória autobio-
fazer fotografias com o que emergiu de suas
gráfica para elaborar a experiência presente,
emoções e de seus interesses. Assim, esse
ou seja, os fatos vivenciados no passado eram
material fotográfico foi constituído por ima-
trazidos e explicitados com base na sua com-
gens da área física, de equipamentos, de usu-
preensão atual. Nessa perspectiva é que nos
ários e de profissionais do HU-USP.
dispusemos a compreender a experiência das
A partir dessas entrevistas foram colaboradoras na sua interação com o siste-
construídas as narrativas, das quais foram ma de saúde.
extraídas oito categorias culturais, a saber: A palavra método deve ser entendida
a)O começo da vida: uma trajetória de even- como um caminho de conhecimento do mun-
tos significativos; do, podendo resultar dos embasamentos

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b) O pré-parto: esperando o momento do nas- subjetivos, objetivos e intersubjetivos (6).
cimento; O conhecimento subjetivo envolve a des-
c) Os sentimentos gerados pela sala de parto; crição da experiência pessoal ou da experiência Rev Esc Enferm USP
2003; 37(4):69-76.
de outras pessoas na compreensão de um fe- para escrever sobre ela. Os textos biográfi-
Marta Maria Melleiro
Dulce Maria Rosa Gualda nômeno particular; o conhecimento objetivo cos têm o mesmo pressuposto, onde o autor
assume que alguém que esteja fora da experiên- descreve sobre a vida de alguém, desde que
cia, possa entendê-la independente de ter conheça profundamente a vida desse alguém;
experenciado o fenômeno e o conhecimento 6) Marcas objetivas: refletem os pontos cha-
intersubjetivo baseia-se na troca de experiênci- ves e críticos da vida das pessoas;
as ou na aquisição de conhecimento por meio
7) A pessoa real: quando o biógrafo sugere
da participação em uma experiência comum.
detalhes objetivos da vida real de um indiví-
O Método Biográfico Interpretativo se duo, ele está na verdade somente “criando”
apóia nos conhecimentos subjetivos e aquele sujeito no texto que está sendo escri-
intersubjetivos adquiridos e no entendimen- to. Os métodos autobiográfico e biográfico
to da experiência de vida dos indivíduos. Sob baseiam-se na existência de um indivíduo e
essa ótica, as colaboradoras deste estudo que se pode escrever sobre ele;
estariam descrevendo não só a sua experiên- 8) Experiências marcantes: certos momen-
cia pessoal, como, também, possibilitando o tos deixam marcas permanentes. A vida esta-
mapeamento e a interpretação dos aspectos rá dividida em duas partes heterogêneas: an-
comuns da mesma, refletindo a experiência tes e após o acontecimento. O conceito de
do grupo cultural do qual fazem parte. que a vida gira ao redor de eventos significa-
tivos é chamado de epifania. Dessa forma, os
As autobiografias e biografias são expres-
textos autobiográficos e biográficos são
sões narrativas da experiência de vida. Essas
estruturados pelos momentos significantes
convenções servem para definir a experiên-
e pelas experiências marcantes da vida desse
cia de vida das pessoas e, embora sejam uni-
indivíduo;
versais, podem ser diferenciadas ou ter a sua
forma modificada dependendo de quem a es- 9) Verdade: a vida tem objetivos e caracterís-
creve, do local em que é escrita e do momento ticas documentárias.
histórico (6). Esses pressupostos estão implícitos nas
As expressões narrativas da experiência de narrativas das gestantes, uma vez que re-
vida envolvem os seguintes pressupostos: fletem as crenças, os valores e as idéias
preconcebidas dessas mulheres com rela-
1) A existência do outro: a visão do outro inter- ção ao ciclo gravídico-puerperal. Traduzem,
fere na visão do autor. Os textos são escritos ainda, momentos marcantes de suas vidas,
sob duas perspectivas a do autor e a do outro. dividindo-as em duas partes: antes e após
O olhar do outro direciona o olhar do autor; a interpretação que fazem do processo de
2) Gênero e classe: as produções refletem nascimento.
valores e preconceitos e são, normalmente, Pérola descreve em sua narrativa uma si-
representadas e defendidas pela perspectiva tuação vivenciada por ela, que reflete essa
do autor; condição.
3) Antecedentes familiares: as autobiografias e
O meu primeiro parto foi há cinco anos e
as biografias são baseadas na história da famí-
tudo correu bem durante o pré-natal, mas
lia. É como se todo autor de uma biografia ou passou da hora da nenê nascer e então ela
autobiografia precisasse encontrar a origem [o teve insuficiência respiratória... E ela ficou
marco zero] da vida que está sendo descrita; internada por mais de uma semana no hos-
4) Momentos marcantes textuais: por ser uma pital, por um problema que poderia ter sido
autobiografia ou um texto biográfico supõe- evitado... Então sempre que entro em um
se que essa vida tenha um ponto de partida. hospital isso me vem à cabeça... (Pérola)
Os estilos de autobiografia e biografia estão Interpretar é o ato de dar sentido a algo,
estruturados na crença de que a vida tem iní- de criar condições para compreender, de ser
cio na história da família; capaz de entender os significados e de en-
5) Cumplicidade do autor: os textos supõem tender uma experiência interpretada por um
a presença de um autor ou de um observador outro indivíduo. Sendo assim, os estudos

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Rev Esc Enferm USP
externo, que pode registrar e dar sentido à
biografia. Se o texto é autobiográfico enten-
de-se que o próprio autor conhece o teor de
biográficos supõem que a vida pode ser es-
tudada, construída, reconstruída e escrita.
Nesse contexto, a vida engloba dois fenôme-
2003; 37(4): 69-76 sua vida e, portanto, está na melhor posição nos: a pessoa e a experiência de vida(6).
A consciência do indivíduo é simultanea- Você não imagina o que é ter alta e deixar
O método biográfico
mente direcionada para o mundo interior de seu filho internado no berçário(...) Ele pre- interpretativo na
pensamentos e experiências e para o mundo cisou ficar internado para ganhar peso, compreensão de
porque nasceu prematuro, pesando 1550 experiências e
exterior de eventos e experiências. A vida é expressões de
gramas, foram vinte e três dias(...) mas gestantes usuárias
vivida em dois níveis – o superficial e o pro-
ele saiu bem. (Jade) de um serviço
fundo. No nível superficial, a pessoa é o seu de saúde
cotidiano, suas rotinas; no nível profundo, a A vida possui três dimensões(7): como é
pessoa é o sentimento, a moral, as crenças, o vivida, como é experenciada e como é conta-
eu interior. Neste nível, o eu interior não é da. Uma vida vivida é o que na verdade acon-
freqüentemente mostrado aos outros e é por tece; a vida experenciada consiste nas ima-
isso que os estudiosos de autobiografias e gens, sentimentos, sensações, desejos, pen-
biografias podem capturar esse aspecto nos samentos e significados do conhecimento
documentos autobiográficos e biográficos. que a pessoa tem da vida e a vida contada - a
história de vida - é uma narrativa influenciada
O depoimento a seguir mostra a impor- pelas convenções culturais de quem está
tância da conjunção desses dois mundos no contando, de quem a ouve e do contexto so-
processo de experenciar. cial na qual está inserida.
Na minha primeira gravidez eu não tive Ametista relatou o medo que sentia em
conhecimento de nada, então quando as
relação ao parto, derivado do seu contexto
dores do parto começaram, fui para o
sócio-cultural:
hospital, tive o nenê e me deram alta, não
explicaram nada para mim(...) Mas desta E ainda ouvimos tantas notícias ruins
vez está sendo diferente, sinto que estou na televisão e nos jornais. Nessa se-
participando de tudo(...) Acho que estou mana mesmo ouvi que em uma materni-
sendo mais mãe e isso está sendo muito dade do interior morreram cinco nenês
importante para mim. (Coral) por infecção hospitalar... Quando ouço
essas coisas me sinto completamente
A vida é um projeto interminado ou um vulnerável. (Ametista)
conjunto de projetos. Uma pessoa tem a ten-
dência de organizar esses projetos ao redor de No entanto, não se deve adotar uma per-
sua identidade ou de sua biografia pessoal. feita correspondência entre essas três for-
Dessa forma, a vida é propriedade biográfica, mas e versões sobre a vida (6). Certamente é
não pertencendo somente à pessoa, mas tam- possível imaginar uma vida como é vivida,
bém à coletividade, à sociedade e ao mundo. experenciada e contada, se se acreditar no
perfeito relacionamento entre essas três for-
Toda vida é uma produção moral, polí- mas, entre o ideal e o real.
tica, técnica e econômica. Quando a vida é
escrita, a história que é contada pode re- Há inevitáveis lacunas entre a realidade,
gistrar as experiências de vida das pesso- a experiência e a expressão. Nesse sentido,
as, parcial ou totalmente; pode, ainda, ser deve-se estar alerta para essas lacunas e para
editada focalizando somente um conjunto os caminhos nos quais as pessoas e suas
particular de experiências significativas, ideologias se encaixam (7).
tais como as observadas nas narrativas a
seguir. A experiência e a expressão são os en-
contros individuais, os confrontos, as pas-
Outra coisa que me chamou a atenção sagens, e o que dá sentido aos eventos que
no berçário foram as mães amamentan- acontecem nas vidas das pessoas. Com base
do. Veja as fotos que tirei dos quadros nesse raciocínio, as mulheres atribuem signi-
de mães amamentando. Porque existem ficado às suas experiências, derivadas do seu
pessoas que acham que a amamentação contexto de vida. O contexto de vida é a ma-
não é importante, que a mamadeira subs- triz da relação ser humano-ambiente que sur-
titui o leite materno, na verdade não é
ge ao longo do cotidiano(8).
nada disso. Sabe, hoje eu tenho uma ex-
periência maior e sei o quanto é impor-

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Nos relatos de Cristal e Safira pode-se
tante amamentar a criança, além disso observar a influência do contexto no qual
eu acho tão bonito... Veja essa foto, para
estão inseridas.
mim ela mostra a beleza que é a mulher
amamentando...(Pérola) Rev Esc Enferm USP
2003; 37(4):69-76.
Ouço falar tantas coisas de parto e eu não torna-se imperativo o estudo dessas experi-
Marta Maria Melleiro
estou falando só do atendimento dos médi- ências e desses eventos marcantes, que são
Dulce Maria Rosa Gualda
cos e sim do imprevisto, que eu posso pas- chamados de epifanias.
sar mal (...) que meu nenê pode ter algum
problema (...) eu tenho medo disso (...) As epifanias são experiências problemáticas
Tenho medo do parto fórcipe, porque ouvi ou momentos de revelação na vida de uma pes-
dizer que machuca a cabeça do nenê... já soa. Na epifania, características individuais são
imaginou o nenê tão pequenininho e com dor...
reveladas como uma crise ou um evento signifi-
com a cabecinha toda machucada. (Cristal)
cativo que é confrontado ou experenciado.
Sabe tenho medo que aconteça tudo de
novo, porque da outra vez estava tudo bem As epifanias são momentos interacionais e ex-
durante o pré-natal e quando internei tive periências que deixam marcas nas vidas das pes-
todo aquele problema [referindo-se ao fato soas. São normalmente momentos de crise, que
de ter tido eclâmpsia]. Agora a médica pe- alteram estruturas significantes na vida das pes-
diu para eu tirar o sal da comida, para eu soas. Seu efeito pode ser positivo ou negativo (6).
fazer repouso e é o que eu estou fazendo
e quando vier ganhar o nenê, vou trazer o Safira relatou a experiência de ter tido
resumo de alta com tudo o que aconteceu eclâmpsia e de não ter saído de alta com
no outro hospital. (Safira) o seu bebê. Essa experiência deixou mar-
cas, que foram resgatadas no momento
A partir dessa perspectiva, a experiência
da pesquisa.
do parto de uma mulher é distinta da de outra
e pode ser conhecida pela descrição subjeti- No meu outro parto eu fui desacordada para
va individual desta. Assim, a experiência do a sala de parto... tive o que vocês chamam
parto é um evento pessoal único que é im- de eclâmpsia, a pressão subiu demais, tive
pregnado pelo contexto. O depoimento abai- convulsão e os médicos tiveram que fazer
xo ratifica essa premissa: uma cesárea, eles disseram para o meu
marido que a pressão alta poderia estar
Eu já ouvi muita história de parto, a minha “queimando” o nenê... Mas ele nasceu bem,
tia teve um parto fórcipe que machucou a tanto que teve alta antes de mim... Minha
cabecinha do nenê, uma amiga minha tam- mãe e meu marido levaram ele para casa e
bém, o médico puxou o nenê com fórcipe eu fiquei internada durante uma semana.
e quebrou o seu bracinho, quando o parto Quando voltei fiz questão de cuidar dele,
é cesárea essas coisas não acontecem, amamentar... mas amamentei por pouco tem-
não é mesmo? (Ametista) po, porque logo tive que trabalhar.(Safira)

As experiências podem ser problemáticas, A epifania é a fase crítica da experiência. São


rotineiras ou ritualizadas e são expressas de atos existenciais, onde alguns são ritualizados,
várias maneiras, incluindo rituais, filmes, arti- como nos rituais de passagens, outros são ain-
gos científicos, canções e vidas escritas por da rotineiros. Outros são totalmente emergen-
meio de autobiografias e biografias. Em tes e sem estrutura e a pessoa os confronta com
contrapartida, as expressões de experiências poucos conhecimentos prévios do que está para
são formuladas por convenções culturais, a acontecer. Os significados dessas experiências
convenção que a vida tem começo e fim. Ex- são sempre retrospectivos como se fossem
pressões são atividades processuais, que ini- revividos e reexperenciados nas histórias das
ciam uma performance e assumem um papel pessoas sobre o que aconteceu (9).
cultural e de texto social.
As epifanias são classificadas em(10):
As narrativas das experiências pessoais
não necessariamente posicionam o eu do con- 1) Epifania maior: interfere em toda a estrutu-
tador no centro da história, o seu foco está na ra de vida da pessoa, provocando rupturas.
experiência compartilhada. As narrativas das 2) Epifania cumulativa ou representativa:
experiências pessoais são embasadas nas ex- diz respeito às reações que as pessoas têm
periências comuns, rotineiras, todavia podem frente a uma série de eventos, que vêm acon-
envolver experiências críticas de vida (6). tecendo por um longo período de tempo.

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Dessa forma, evidencia-se a importância
da interpretação e da compreensão das expe-
riências pessoais, para o entendimento do
3) Epifania menor ou iluminativa: simboli-
camente marca tensões ou momentos proble-
máticos em um relacionamento ou em uma
2003; 37(4): 69-76 comportamento dos indivíduos. Para tanto, situação de vida.
4) Epifania reexperenciada: os significados Uma história é sempre um relato
O método biográfico
são dados no reviver de uma experiência ou interpretativo, mas certamente toda interpre- interpretativo na
de um evento marcante. Os efeitos são imedi- tação é tendenciosa. Entretanto, narradores compreensão de
experiências e
atos, mas as conseqüências só aparecerão podem neglicenciar fatores estruturais impor- expressões de
mais tarde, no reviver do acontecimento. tantes, que podem estar infringindo a vida do gestantes usuárias
de um serviço
informante. Muitas vezes, as gestantes en- de saúde
Nesse sentido, epifanias podem ser ca- traram em conflito por considerarem-se res-
racterizadas como momentos significativos ponsáveis por um determinado evento de sua
que deixam marcas na vida, que têm potenci- história de vida ou por se acharem forçadas a
al para criar experiências e que transformam a fazer a história que vivenciaram.
vida das pessoas. Através do registro des-
sas experiências o pesquisador é capaz de O relato de Pérola aponta um desses conflitos.
revelar os momentos de crise que ocorreram
na vida dessa pessoa. Eles são normalmente Na verdade, eles estavam querendo “ta-
par o sol com a peneira,” porque tinha erro
interpretados como experiências marcantes.
e erro deles, porque eles me deixaram muito
Tendo passado por essa experiência a pes-
tempo com as dores do parto, acho que
soa jamais será a mesma (10).
deveriam ter feito a cesárea antes, porque
As epifanias ocorrem dentro de grandes eu procurei o hospital (...), para que o bebê
arenas históricas, institucionais e culturais, não tivesse tido esse problema. (Pérola)
que cercam a vida das pessoas, sendo As histórias sempre vêm em versões múlti-
identificadas as quatro estruturas ou tipos plas e nunca têm começo e final claros; são base-
de momentos problemáticos existenciais, ci- adas na cultura de um grupo, onde critérios de
tados anteriormente. Esses quatro tipos po- veracidade são estabelecidos. As histórias con-
dem fundamentar-se neles próprios. Um de- tadas nunca são as mesmas histórias ouvidas,
terminado evento pode em fases diferentes, são moldadas por amplas forças ideológicas que
na vida ou nas relações das pessoas ser pri- pressionam as pessoas a estabelecer sua indivi-
meiramente maior e depois cumulativo ou dualidade nas histórias que constroem (10).
mais tarde, ainda, ser reexperenciado(6).
A vida e suas experiências são representa-
Sendo assim, a experiência de vida das das em histórias; são como pinturas que foram
colaboradoras deste estudo pode ser anali- cobertas e que quando essas pinturas são re-
sada nos diferentes âmbitos da epifania. O movidas algo novo se torna visível. O que é
parto pode ser considerado uma epifania novo é o que estava previamente coberto. Uma
maior, enquanto que o processo, até que ele vida e a sua história têm as qualidades do
aconteça, o pré-natal e o período de pentimento [mudança feita pelo pintor em seu
internação, por exemplo, podem se encaixar quadro que se traduz em um retoque, em uma
nas epifanias cumulativas ou menores. modificação ou em um refazimento. Vestígio de
uma composição anterior ou de alterações em
Nas narrativas estão, ainda, incorporadas um quadro, tornadas visíveis em pinturas a óleo
as epifanias reexperenciadas, onde muitas com a passagem do tempo]. Algo novo está sem-
relatam histórias de uma experiência, que apa- pre entrando em cena, deslocando o que estava
rece no reviver desse evento, conforme o previamente exposto. Não há exatidão na pintu-
depoimento de Jade: ra da vida, somente imagens múltiplas e traços
Além disso, na minha última gestação, eu
do que aconteceu, do que poderia ter aconteci-
tive pré-eclampsia, a minha pressão subiu do e do que é agora. Essas histórias se movem
muito e os médicos tiveram que fazer uma para fora das próprias pessoas para os grupos
cesárea de urgência, porque o nenê já não que proporcionam significado e estrutura (10).
estava mais mexendo (...) Me disseram que
Sob essa ótica, as pessoas são árbitros
por pouco ele não morre. Pensei nisso tudo
de sua própria presença no mundo e por isso
quando entrei na sala de parto (...) Será
devem ter a última palavra sobre ela. Os tex-
que tudo aquilo poderia se repetir? (Jade)
tos produzidos pelos pesquisadores devem
Para entender a vida, as epifanias e as ex- sempre refletir os discursos das pessoas como
periências pessoais que representam e mol- se elas tentassem dar significado e forma para
dam uma vida é necessário penetrar e enten- as suas histórias (10). Essas histórias são apren-
der essas grandes estruturas. Elas fornecem a
linguagem, as emoções, as ideologias, os ver-
dadeiros conhecimentos e experiências com-
didas e contadas nos grupos culturais. As his-
tórias que os membros dos grupos passam de
um para outro são reflexões do conhecimento
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partilhadas de como as histórias ocorrem. e da prática que são trabalhadas em um amplo 2003; 37(4):69-76.
sistema de entendimento cultural, que são in- relacionamentos sociais que fazem parte do con-
Marta Maria Melleiro
Dulce Maria Rosa Gualda fluenciadas pelos membros dos grupos. texto e que moldam as pessoas.
Esses conhecimentos contêm concep-
ções da vida das pessoas e suas experiências CONSIDERAÇÕES FINAIS
devem ser representadas. As histórias são
contadas e ouvidas e solucionam os dilemas Face ao exposto, é na esfera do Método
sobre a metafísica da presença que persegue Biográfico Interpretativo que os temas cultu-
o indivíduo, como ele tenta dar significado rais extraídos deste estudo encontraram sus-
para o que é chamado de vida e biografia. tentação, onde as colaboradoras, a princípio,
resgataram e classificaram, por meio da sua
Ametista, ao mesmo tempo em que dis- memória autobiográfica, as suas experiências
corre sobre as idiossincrasias do grupo cul- e as suas histórias de vida, na condição de
tural do qual faz parte, aponta para um even- manter os resultados dos eventos significati-
to comum a todas: a ansiedade em decifrar o vos considerados positivos ou de fazer uma
que, naquele momento, lhe é obscuro. releitura dos eventos tidos como negativos.
Fomos as últimas a chegar (...) [referindo- A partir dessa concepção, as colaboradoras
se à visita ao HU-USP]. Cada uma de nós prosseguiram vislumbrando o processo de
com uma história diferente, com seus me- nascimento em todas as suas dimensões, uti-
dos, suas inseguranças (...) O quê iríamos lizando, para o alcance dessa finalidade, o
encontrar nessa visita? Qual seria nossa olhar fotográfico, que ora permitiu que fatos
reação frente a tudo que mostrassem para fossem registrados e absorvidos e ora evitou
nós? Afinal era o local indicado para o nas-
que suas lentes captassem aquilo que seria
cimento de nossos filhos (...) e, isso deixa-
va todas nós muito ansiosas...(Ametista)
difícil elaborar naquele momento.

Quando escrevemos sobre a vida das pesso- Levando-se em conta o que foi apresenta-
as trazemos o mundo dessas pessoas para os do, durante esta investigação procuramos
nosso texto. Criam-se diferenças, oposições e pre- compreender e relatar as experiências, as ex-
senças, que permitem manter a ilusão de se captu- pressões e as expectativas de gestantes-
rar as experiências reais das pessoas. Na verdade, usuárias do HU-USP, cientes de que as narrati-
criam-se pessoas, sobre as quais se escreve a res- vas possuem dados a serem, ainda, processa-
peito, assim como essas pessoas criam-se a si pró- dos, uma vez que assim como a vida, as narra-
prias quando se empenham na prática de contar tivas são sempre infindáveis e sujeitas a múlti-
histórias.(6) Por conseguinte, torna-se imperativo plas interpretações. Todavia, acreditamos ter
aprender como conectar biografias e experiências escrito sobre documentos de vida, que carre-
vividas, as epifanias das vidas com os grupos e gam os sentimentos dessas mulheres.

REFERÊNCIAS

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